educaÇÃo patrimonial: estudo da memÓria ao...
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EDUCAÇÃO PATRIMONIAL:
ESTUDO DA MEMÓRIA AO PERTENCIMENTO*
Fernanda da Silva Campos**
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar a Educação Patrimonial como forma de incentivo e
aporte educacional para a conservação e a democratização da memória e do patrimônio,
tendo como estudo de caso as ações desenvolvidas no Museu Histórico de Campos,
trabalhando autores que façam referência à relação museu-escola, utilizando referências
em Educação Patrimonial e Patrimônio, como Maria de Lourdes Parreiras Horta (1999),
Evelina Grumberg (2011), Françoise Choay (2006), entre outros. Estes estudos
fornecem subsídios para o entendimento e esclarecimento acerca da preservação da
história e da memória da cidade de Campos dos Goytacazes. A pesquisa objetiva
estabelecer paralelos entre as práticas desenvolvidas em outros museus no Brasil no que
tange à Educação Patrimonial. Neste sentido, há necessidade de rever a função do
museu tradicional para um papel fundamental de construção de cidadania e identidades
culturais.
Palavras-chave: Educação Patrimonial, memória, museu, identidade cultural,
pertencimento.
1. Introdução
Museu é uma palavra de origem latina proveniente do termo museun, que por sua
vez deriva do grego mouseion. Inicialmente faz referência ao templo dedicado às nove
musas, filhas de Zeus com Mnemosine, a deusa da memória. No entanto, foi só a partir
do Renascimento que este termo passou a ser aplicado em relação a coleções de objetos
de valor histórico e artístico (ICOM, 2014).
De acordo com o site do IBRAM, sigla do Instituto Brasileiro de Museus,
segundo a Lei n° 11.904 de 14 de janeiro de 2009,
Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem
fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e
expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico,
* O presente artigo é apresentado ao Curso de Pós-graduação lato sensu em Literatura, Memória
Cultural e Sociedade, linha de pesquisa Memória e Cultura, do Instituto Federal Fluminense, campus Campos - Centro, como trabalho de conclusão, sob a orientação do Professor Ms. Rodrigo Rosselini Julio Rodrigues. **
Graduada em Licenciatura em História (UNIFLU-FAFIC), pesquisadora e professora. E-mail: fes_campos@yahoo.com.br
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artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural,
abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento.
(IBRAM, 2009)
Em conformidade com o que preconiza a Lei, podemos notar que, entrementes, a
função educativa é parte integrante da definição do termo. Sendo assim, é papel do
museu levar à população conhecimento acerca da história através de seu acervo e
práticas educativas.
A instituição museológica, enquanto elemento diversificado criado pelo homem, é
importante para o ontem, ao materializar o percurso do indivíduo, de uma comunidade
ou corporação. Tem determinante importância para o hoje ao se configurar um
alimentador da cultura em movimento constante e persistente renovação fazendo-o
adquirir um caráter novo. É, principalmente, importante para o amanhã ao se constituir
um recurso a ser gerido e explorado pelas próximas gerações para a promoção de
espaços de arte, lazer, memória e, em especial, aprendizado e reflexão.
Em Campos dos Goytacazes, os historiadores de História Regional e
memorialistas tentam, a partir do seu trabalho, fazer com que a população crie uma
identidade com suas raízes, pois é conhecendo esta identidade que se passa a valorizar e
preservar aquilo que se reconhece como seu. O município apresenta uma riquíssima
história desde o início de sua colonização. Desta maneira, torna-se imperioso tratar
dessas questões e fomentar, junto à população, o tamanho do significado da constituição
da sociedade campista, pois são os suportes da memória coletiva que possibilitam o
conhecimento do passado.
Nesta perspectiva, o artigo utilizou como base principal o Museu Histórico de
Campos dos Goytacazes, prédio secular que abriga em sua exposição permanente um
rico acervo que preza pela preservação da memória de Campos e região, além de
analisar outros estudos escritos também com a finalidade de suscitar a questão da
importância da preservação não apenas das histórias locais, como também, e
principalmente, a importância da Educação Patrimonial, tendo em vista a necessidade
da preservação da noção de identidade e pertencimento das pessoas com suas histórias.
Para além da necessidade das análises acerca da Educação Patrimonial, faz-se
necessário entender que esta possui como principal alicerce a memória e,
consequentemente, a história.
3
Neste sentido, surge a interrogação sobre o que está sendo feito atualmente no
Brasil no que se refere à Educação Patrimonial com vistas à preservação e fomento das
Histórias Regionais, e de que maneira, não apenas o Museu Histórico de Campos, como
outros museus no país, se adequam a esta real necessidade de se trabalhar a história e
memória locais. Qual o papel desempenhado por essas instituições para a Educação
Patrimonial?
Como argumenta Stuart Hall (2001), a globalização está diretamente ligada ao
processo de afirmação das identidades nacionais, onde estas se sobrepõem a outras
fontes, mais específicas de identificação cultural. Num período de rápidas mudanças
sem precedentes, atualmente, as pessoas estão muitas vezes a ponto de esquecer ou
negligenciar a sua própria história e tradições culturais em face deste processo. Neste
sentido, o museu apresenta-se como o local perfeito para promover e incentivar a
consciencialização voltada para a questão patrimonial.
2. Sobre Educação Patrimonial
Existem muitas e diversas definições de cultura1. Uma das mais conhecidas é a
que trata da cultura enquanto erudição e refinamento (GRUMBERG, 2011). Tal
definição nos é insuficiente, pois todas as ações e processos individuais e coletivos de
criação e recriação de formas de perceber, organizar e integrar o mundo que os homens
fazem entre si e o meio ambiente, num sentido antropológico, pode ser definido como
cultura.
É o que nos afirma Lévi-Strauss quando diz que
existem mais culturas humanas do que raças humanas, pois que
enquanto umas se contam por milhares, as outras contam-se pelas
unidades; duas culturas elaboradas por homens pertencentes a uma
mesma raça podem diferir tanto ou mais que duas culturas
provenientes de grupos racialmente afastados (LÉVI-STRAUSS, 1993
pp. 329-330).
A cultura é o fator primordial que qualifica o homem como ser humano, onde
todas as ações através das quais os povos expressam suas formas específicas de ser são
cultura e onde seus membros se identificam como integrantes de um grupo dentro de
1 Segundo Terry Eagleton (2005), esta originalmente significa “lavoura”, utilizando um sentido
etimológico onde cultura deriva do próprio conceito de natureza; Stuart Hall (2011), defende cultura num
sentido epistemológico, onde esta se refere às relações entre conhecimento e conceitualização; e ainda
Roger Chartier (1995), apresenta dois conceitos diferentes de cultura popular: Um que a concebe como
um sistema simbólico e autônomo e outro que a percebe como dependente em relação às culturas ditas
dominantes.
4
um contexto social. Reconhecer que cada povo produz cultura, e que cada um tem uma
forma diferente de expressá-la, significa aceitar a diversidade cultural, pois
esta diversidade não é a mesma que é dada por um corte de amostras
inerte ou por um catálogo dissecado. É indubitável que os homens
elaboraram culturas diferentes em virtude do seu afastamento
geográfico, das propriedades particulares do meio e da ignorância em
que se encontravam em relação ao resto da humanidade, mas isso só
seria rigorosamente verdadeiro se cada cultura ou cada sociedade
estivesse ligada e se tivesse desenvolvido no isolamento de todas as
outras. (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 232)
Se o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado (LARAIA,
2001) logo, os bens culturais, as manifestações artísticas e as relações humanas
produzidas por um determinado povo, podem ser considerados o ponto de partida para a
observação e a exploração destes como recursos educacionais, aplicando uma
metodologia de trabalho que chamamos de Educação Patrimonial.
A utilização do termo Educação Patrimonial começou a ser utilizada no Brasil nos
anos 80, a partir da realização do I Seminário sobre o Uso Educacional de Museus e
Monumentos, no Museu Imperial de Petrópolis, RJ, em 1983. De acordo com o Guia
Básico de Educação Patrimonial, de autoria de Maria de Lourdes Parreiras Horta,
Evelina Grumberg e Adriana Queiroz Monteiro, a Educação Patrimonial consiste em
um processo permanente e sistemático, centrado no Patrimônio Cultural como fonte
primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo, cuja metodologia se
aplica a
qualquer evidência material ou manifestação cultural, seja um objeto
ou conjunto de bens, um monumento ou um sítio histórico ou
arqueológico, uma paisagem natural, um parque ou uma área de
proteção ambiental, um centro histórico urbano ou uma comunidade
de área rural, uma manifestação popular de caráter folclórico ou ritual,
um processo de produção industrial ou artesanal, tecnologias e saberes
populares, e qualquer outra expressão resultante da relação entre
indivíduos e seu meio ambiente. (HORTA et al, 1999, p. 6)
Esta afirmativa pode ajudar aos utilizadores do Museu na leitura crítica e no
conhecimento de seu patrimônio, ou seja, fazê-los reconhecer, nas referências
patrimoniais relativas ao passado e nas evidências do presente, as linhas e expressões de
suas próprias mãos, herdadas de seus antepassados e reconstruídas diariamente pelos
seus contemporâneos.
O princípio básico da Educação Patrimonial consiste na experiência direta e nas
relações das pessoas com os fenômenos culturais, num processo contínuo de descoberta.
5
(HORTA, 2003). Estas descobertas são fundamentais para a construção das identidades
e a Educação Patrimonial, enquanto objeto de “alfabetização cultural”, se apresenta
como, talvez, a única alternativa de preservação e disseminação das especificidades
históricas e práticas culturais. Neste sentido, a cultura, que é dinâmica, é transmitida e
apreendida dentro de um processo de socialização que permite a formação de grupos
voltados à construção das identidades.
Cabe ressaltar que os protagonistas no âmbito da Educação Patrimonial são os
membros das comunidades, pois a eles cabem o pertencimento sobre o seu patrimônio,
de modo que esses membros devem indicar os rumos que as políticas públicas
preservacionistas devem tomar, envolvendo não apenas os agentes públicos, como
terminantemente os civis, pois
a preservação de bens culturais deve ser tratada como uma prática
social, ou seja, é necessário que os sujeitos e a comunidade
reconheçam e agreguem valor aos bens culturais que o Estado
pretende preservar por meio dos mecanismos e instrumentos que
dispõe. (FREIRE, 2011, p.12)
Neste sentido, a educação é fator primordial, pois é ela que será ponte para o
desenvolvimento e a devida apropriação desses bens pela comunidade, onde os
processos educacionais devem promover a reflexão e o pertencimento acerca do
patrimônio cultural, visando a compreensão e valorização da nossa intensa e rica
diversidade cultural. (ibidem)
De acordo com o portal do Iphan, Educação Patrimonial pode ser entendida como
os processos educativos formais e não-formais que têm como foco o
patrimônio cultural apropriado socialmente como recurso para a
compreensão sócio histórica das referências culturais em todas as suas
manifestações, com o objetivo de colaborar para o seu
reconhecimento, valorização e preservação. (BRASIL, 2014)
Afirmativa que corrobora o fato de os setores educativos dos museus
apresentarem uma função primordial, não apenas na salvaguarda dos acervos, mas
principalmente na difusão do conhecimento acerca do patrimônio, a fim de criar uma
sensação de pertencimento de um povo com sua história.
O Iphan considera ainda que os processos educativos devem primar pela
coletividade, estabelecendo um diálogo permanente entre os múltiplos agentes
envolvidos, além da participação das comunidades detentoras dos referenciais culturais
onde estão abrigados o patrimônio. (BRASIL, 2014)
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Estes estudos baseados no diálogo necessário, fornecerão subsídios para o
entendimento e esclarecimento acerca da preservação da história e da memória da
cidade.
Para além do entendimento acerca da questão patrimonial ligada à história
regional, a orientação teórica suscita autores como Pierre Nora, ao afirmar que a
memória está intimamente ligada à história (NORA, 1993), no sentido em que a
memória é o alimento da história, e que o passado que ela traz deve servir ao presente e
à construção do futuro. (LE GOFF, 2003)
Indivíduos e sociedades não podem preservar e desenvolver a sua identidade
senão na duração e através da memória. (CHOAY, 2006). Logo, percebe-se que o
passado não existe por si mesmo. Ele existe dentro de um contexto histórico presente,
pois é neste que vivenciamos sonhos, alegrias, medos, onde criamos perspectivas
baseados, inclusive, no suporte de acontecimentos anteriores, como, por exemplo, as
referências pessoais (BRAGA, 2011). Neste sentido, a memória se apresenta como a
força propulsora do presente, uma vez que nela se encontra a fonte de conhecimentos
para a construção da vida de cada um individualmente, bem como nossas relações com
a sociedade que constituímos.
3. A Importância da História e da Memória para a Preservação das
Identidades
Marco Tulio Cícero, orador, filósofo, historiador e político do período romano
clássico, trouxe a ideia de que a história era a “mestra da vida” (em latim: historia
magistra vitae). Com esta expressão, Cícero queria dizer que por meio dos exemplos do
passado, dos sofrimentos e sucessos, das tragédias e dos grandes feitos das gerações
anteriores, podemos extrair lições para nos orientarmos no presente, diante dos
problemas que se apresentam.
A História como fonte de conhecimento da evolução da humanidade dentro das
diversas sociedades, é uma ciência que atrai a atenção por conter informações de um
processo de vida e evolução do homem enquanto ser humano. Desde os primórdios da
pré-escrita, onde, por exemplo, pelas pinturas rupestres e vestígios deixados por nossos
antepassados podem ser comprovados a vida em tão longínqua época, além de
podermos vislumbrar o nascer do ser humano que seria o transformador e protagonista
de toda a História do mundo. Com o surgimento da escrita, o acompanhamento dos
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fatos históricos foi facilitado, situando-os cronologicamente na linha do tempo que o
homem desenvolveu, para que pudéssemos saber sobre as etapas do aperfeiçoamento
das sociedades em função das suas organizações política, econômica, cultural, religiosa,
social, artística, científica e tecnológica ao longo dos séculos.
É o que afirma Hobsbawm quando diz que “todo ser humano tem consciência do
passado (definido como o período imediatamente anterior aos eventos registrados na
memória de um indivíduo)” (HOBSBAWM, 2013, p. 25). Neste sentido se faz
necessário conhecer e mais, apreender o seu próprio tempo como reflexo de tempos idos
e espelho de tempos vindouros, pois, segundo Marc Bloch quando analisa o tempo
histórico, esta é uma
realidade concreta e viva, submetida à irreversibilidade de seu
impulso, o tempo da história, ao contrário, é o próprio plasma em que
se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade
(BLOCH, 2001 p. 55).
Considerada uma das bases da compreensão humana, a memória está intimamente
relacionada à história e ambas passam pela questão da construção das identidades.
Como uma coisa viva, a memória o tempo todo deixa lembranças ou sequelas. A
memória é a estrutura fundamental da cultura e o culto a memória faz com que ela
permaneça viva a fim de reafirmar seus valores para com a geração atual e as futuras.
Somente a memória fará com que a verdadeira história permaneça concreta, sem
modificações ou adições circunstanciais de fora. A memória é o conceito formador da
identidade.
Preservar a memória vai muito além de resgatar o passado. Também é
compreender as diferenças e reconhecer os limites de cada período. É ter referenciais
consistentes para construir o presente e planejar o futuro, descobrir valores, renovar os
vínculos e, sobretudo, refletir sobre a história, não apenas como quem recorda, mas
exercitando uma verdadeira práxis, em que a reflexão e a prática andam lado a lado.
A memória individual existe baseada no contexto da memória coletiva, posto que as
lembranças são constituídas no interior de um determinado grupo. As ideias que por vezes
atribuímos ao indivíduo são, na verdade, inspiradas pelo grupo. (HALBWACHS, 2004).
Falar de memória coletiva é falar de identidade social, afinal somos seres históricos
propensos a mudanças permanentes, o que faz com que nosso próprio conceito de identidade
também mude uma vez que estamos, atualmente, sujeitos às mais variadas formas de cultura,
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e não apenas àquela que nos é inerente, como nos afirma Stuart Hall, pois “A identidade
torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam.” (HALL, 2001, p.13). Logo, “A identidade plenamente unificada, completa, segura
e coerente é uma fantasia.” (HALL, 2001, p.13). Tal afirmativa demanda atenção sobre a
necessidade em preservar os regionalismos, vide o patrimônio cultural, face a este imenso
universo global repleto de informações que nos chegam a todo instante.
O patrimônio cultural de uma comunidade diz respeito a tudo aquilo que a identifica
com aquele espaço. O próprio século XX forçou as portas do domínio patrimonial.
(CHOAY, 2006). A ideia de patrimônio cultural agrega desde prédios, ruas, praças e
monumentos que dizem das modificações e sobreposições da formação da dinâmica urbana
de uma comunidade, passando pelos aspectos antropológicos dos grupos humanos como a
língua, ritos, crenças e costumes.
O patrimônio em si é documento, independente da forma em que ele se apresente, pois
este é tudo aquilo que pode evocar o passado e perpetuar a necessária recordação, voluntária
ou involuntária das sociedades históricas, sem que se desprezem as escrituras históricas, pois,
se a história faz-se com documentos escritos, (LE GOFF, 2013), também é feita com outros
recursos, como, por exemplo, os monumentos arquitetônicos.
Os monumentos são heranças do passado, cabendo ao historiador a tarefa de discernir
sobre aquilo que será estudado, avaliado enquanto história, pesquisado, transformando-os –
os monumentos – em documentos, em função da memória coletiva, uma vez que esta é que
possibilita o conhecimento acerca do passado e que, com isso, também fundamenta os fatos
históricos, utilizando-se de todo material considerado por ele – historiador e membro da
sociedade – relevante para o processo de construção do conhecimento, pois
com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para
fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras.
Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas.
Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames
de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos
químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem,
depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a
presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (LE
GOFF, 2013, p.490).
Sobre a importância das escolhas do historiador enquanto parte integrante de uma
comunidade, afirma Hobsbawm:
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Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu
passado (ou da comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O passado
é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um
componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da
sociedade humana. O problema para os historiadores é analisar a natureza
desse “sentido do passado” na sociedade e localizar suas mudanças e
transformações. (HOBSBAWM, 2013, p. 25)
Possivelmente são essas escolhas sobre o que pode ser considerado importante e
relevante enquanto documento histórico a ser estudado que acabam deixando em segundo
plano aquilo que é considerado específico em cada lugar, que é a História Local. Esta, muitas
vezes, é deixada de lado face a real importância da Macro História, fazendo com que caia no
esquecimento de toda uma população.
Le Goff (2013) afirma que a memória é a propriedade de conservar certas
informações, sendo a memória social um dos meios fundamentais de abordagem para os
problemas do tempo e da história. Se por um lado a memória coletiva fundamenta a
identidade de um grupo, por outro o que fica deixado para trás também é relevante, pois este
“esquecimento” muitas vezes é voluntário, uma vez que indica a vontade deste grupo em
ocultar, ou até mesmo negligenciar determinados fatos históricos, pois
a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta
das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e
do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos
grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. (LE GOFF, 2013, p. 390)
A memória é um fenômeno sempre atual, em permanente evolução (NORA, 1993),
logo, o estudo acerca do patrimônio só pode ser compreendido a partir de sua vinculação
com as problemáticas atuais que definem interesses específicos com relação ao passado. Em
Campos dos Goytacazes, os cânones preservados no Museu são os fundamentados nos
escritos de historiadores e, sobretudo, dos memorialistas especialistas em História Regional.
É justamente essa história, por vezes considerada menos importante por tradições
historiográficas que privilegiam abordagens de cunho econômico e político, que precisa ser
estudada com mais atenção, seus documentos vistos com mais zelo, pois é visto que não há,
atualmente, políticas efetivas de preservação de histórias regionais. Preservar as
especificidades de uma sociedade, e inseri-las num contexto histórico maior, mais do que
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trabalho do historiador, precisa ser tarefa de toda uma comunidade, a construção de um novo
olhar sobre o próprio chão.
4. Levantamento prévio acerca dos museus e educação patrimonial no
Brasil
Patrimônio Histórico é uma expressão que designa um bem destinado ao usufruto
e estudo de uma comunidade e que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela
acumulação contínua de objetos de significativo valor e que congregam um passado
comum (CHOAY, 2006), sejam estes obras de arte, trabalhos manuais ou através do
imaterialismo da oralidade. Neste sentido, apresenta-se o museu como o local ideal para
a consolidação da apropriação sobre o patrimônio. Apropriar-se de seu patrimônio é
identificar-se nele, é fortalecer o senso de pertencimento ao grupo do qual ele representa
simbolicamente a identidade.
Sobre a necessidade do passado como objeto de Educação Patrimonial, Horta nos
diz que esta
consiste em promover situações de aprendizado sobre o processo
cultural e seus produtos e manifestações, que despertem nos alunos o
interesse em resolver questões significativas para sua própria vida,
pessoal e coletiva (HORTA et al, 1999, p. 8)
Logo, a permanência dos resultados do processo educativo se dá a partir da
construção do conhecimento, concebido como resultado de uma interação entre os
diversos sujeitos sociais que compõem a comunidade: escola, família, instituições,
igrejas, associações, etc., na qual o sujeito-aprendiz é sempre um elemento ativo, que
procura compreender o mundo que o cerca e que busca resolver as interrogações que
esse mundo provoca.
Na busca por respostas a estes questionamentos, o artigo buscou
metodologicamente analisar sete estudos cujo objeto foi a Educação Patrimonial,
escritos entre os anos de 2006 e 2014 com o objetivo de avaliar o que efetivamente tem
sido dito e construído dentro desse contexto. Publicados pelo Iphan, em revistas ou em
sites de pesquisa de artigos conceituados, como a scielo, através da “Educação em
Revista”, os textos abordam questões como a relação museu-educação patrimonial,
materiais pedagógicos, vivências educativas, ou ainda, se há uma política do
esquecimento sobre a Educação Patrimonial, passando pela constatação da falta de
11
iniciativa das esferas governamentais em promover políticas públicas que atendam esse
setor.
No que se refere à teorização da prática educativa em museus, o texto de autoria
de Ana Carmem Amorim Jara Casco, “Sociedade e Educação Patrimonial” (2006),
publicado pelo Iphan em razão do 1° Encontro Nacional de Educação Patrimonial, em
2005, avalia a Educação Patrimonial sob um aspecto social, e defende que há um
avanço significativo em relação aos projetos de educação, bem como na escolha dos
bens a serem preservados em oposição a uma falta sistemática de iniciativa por parte do
Estado em estabelecer e cobrar medidas metodológicas que visem a organização e
manutenção desse campo educativo. Dessa forma, endente-se que o texto defende a
necessidade em se criar políticas públicas de preservação dos bens patrimoniais e da
memória que estes preservam, através dos aparelhos estatais, mas de forma a não
engessar as instituições culturais dentro de normas e diretrizes, mas ao contrário, que
elas tenham a liberdade de criar de acordo com sua própria independência.
Tais políticas deveriam atuar para complementar o currículo formal das escolas,
enquanto exercício de afetividade e preservação da memória e do patrimônio. Segundo
Almeida (2008) o veículo das exposições museais é o objeto, logo, as ações educativas
devem ampliar as possibilidades de aproveitamento pedagógico dos acervos para que o
visitante acentue seu espírito crítico. As ações educativas devem ter coerência e dialogar
com o acervo e com o discurso expositivo do museu a fim de torna-las mais leves.
No texto de Evelina Grumberg, arquiteta do Museu Imperial de Petrópolis,
“Educação Patrimonial – Utilização dos Bens Culturais como Recursos Educacionais”,
o tema Educação Patrimonial é tratado como um objeto cultural de iniciação a um
processo de aprendizagem, onde se deve levar em conta a percepção e observação
individuais. O usuário do museu deve, sobretudo, aprender a descobrir e relacionar,
comparar e utilizar o próprio raciocínio (GRUMBERG, 2011). Estes fatores devem,
portanto, gerar motivação, e esta ser a base de toda experiência museal, unindo
educação e cultura. Neste sentido, a autora converge com Chagas (2006) quando este
afirma que a educação é uma prática sociocultural, onde não se pode deixar de elencar o
caráter indissociável da educação e da cultura ou ainda na
inseparabilidade entre educação e patrimônio. Não há hipótese de se
pensar e de se praticar a educação fora do campo do patrimônio ou
pelo menos de um determinado entendimento de patrimônio.
(CHAGAS, 2006, p.4)
12
Quanto aos escritos sobre experiências patrimoniais, Angélica Schwanz (2006)
traz a metodologia proposta no Guia Básico de Educação Patrimonial, publicado em
1999, através do estudo de dois trabalhos desenvolvidos no Rio Grande do Sul: “O
Legal no Museu é...!” e o “Programa Regional de Educação Patrimonial.
O primeiro programa foi desenvolvido no “Museu da Baronesa”, onde a história
da cidade de Pelotas e, consequentemente, de toda uma geração de rio-grandenses, é
contada através de um recorte dos costumes de uma família tradicional, e o foco inicial
do projeto eram crianças, como forma de inserir a ideia da Educação Patrimonial nos
currículos escolares, na tentativa de despertar a comunidade escolar para a compreensão
de conceitos como patrimônio, cultura e memória.
O segundo trabalho estudado pela autora foi um projeto desenvolvido na região
de colonização italiana no sul rio-grandense, conhecida como Quarta Colônia,
envolvendo os municípios de Garibaldi, Bento Gonçalves e Caxias do Sul, cuja
proposta era valorizar a história do Rio Grande do Sul (SCHWANZ, 2006).
Nota-se que em ambos os casos a ideia é a de valorizar a história regional
sulista, analisando para isso casos específicos das histórias das cidades gaúchas a fim de
fortalecer seus laços identitários, muitas vezes fragmentados diante da enormidade no
nacionalismo. Ainda sobre regionalismos, há o exemplo do Museu Histórico do Norte
de Minas e do Museu do Folclore, ambos objetos de estudo dos pesquisadores Filomena
Reis e João Olímpio Reis, que traçam um perfil do prédio colocando-o como o principal
personagem da história local, onde a prática educativa baseia-se exclusivamente nas
visitas monitoradas.
Martins (2008) afirma que o museu é mais do que um cenário de narrativas, ele
pode ser considerado um espaço de lutas políticas e seu material pedagógico serve como
ponto de partida para a percepção da história e da memória que devem ser
instrumentalizadas pelos museus com o objetivo de educar. Dessa forma, o museu pode
ser concebido como espaço de poder e produtor de sentidos do passado, além de
constatar deficiência na produção de materiais pedagógicos, estando os museus
pautados, em sua maioria, em atividades lúdicas e meramente informativas (MARTINS,
2008).
Neste sentido, é importante a discussão sobre o papel que os museus, de um modo
geral, devem desempenhar no tocante a interação do público com seus respectivos
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acervos. Os museus, apesar do tradicionalismo, podem, e devem, ser dinâmicos, sem
ficar somente no campo da contemplação. É preciso que haja uma comunicação eficaz
entre público e conteúdo, onde as emoções sejam despertas para que o sensível conheça
a importância da história que está ali representada, pois
La polémica gira en torno a si todos los mecanismos presentes en la
comunicación del conocimiento en el contexto de una exposición
deben respetar una construción constructivista o si, por el contrario, se
podrían utilizar mecanismos no constructivos que resultaram efectivos
al menos em una parte del processo. El aprendizaje informal marcaria
así una via a la que, en nuestra humilde opinión, tampoco debería
renunciar el aprendizaje fromal. (POL et al, 2002, p. 93)
Os museus devem, portanto, estabelecer com o usuário um padrão interativo, sem
que se prescinda do tradicional, pois ambos podem caminhar juntos, no processo de
descoberta e conhecimento dos objetos. Ensinar além e através da análise da cultura,
oferecendo recursos que possibilitem ao usuário a própria interpretação, convertendo-se
dessa maneira, num museu múltiplo e crítico.
No Brasil, a política de preservação do patrimônio histórico e artístico tem sua
instituição a partir do Decreto-lei n° 25, de 30 de novembro de 1937 (SCHWANZ,
2008), que estabeleceu o tombamento como prática de preservação fundada na
conservação do objeto e na sua autenticidade. Apesar disso, apenas na década de 80 a
metodologia da Educação Patrimonial começou a ser difundida no país quando surgiram
as primeiras discussões conceituais sobre o assunto.
A questão patrimonial pode também adequar-se às mais variadas manifestações
culturais, tornando o museu um palco que permite sensações e ideias, imagens e
transformações, reunindo valores essenciais para a formação do ser humano e, com isso,
o sopro de pertencimento fundamental para a identificação com seu povo e sua história.
5. O caso do Museu Histórico de Campos
Campos dos Goytacazes apresenta uma vasta história desde o início de seu
processo de colonização, datada do século XVI. A cidade cresceu sobre a planície da
margem sul do rio Paraíba, inicialmente habitada pelos índios Goitacás (FEYDIT,
2004), fazendo parte da Capitania de São Tomé, doada a Pero de Góes da Silveira em
1536.
14
Em desacordo com o que acredita a maioria dos campistas, a primeira atividade
econômica desenvolvida na região não foi a cana-de-açúcar, e sim a pecuária, na
primeira metade do século XVII, após requerimento dos sete capitães no ano de 1627,
sendo estes senhores de engenho em Cabo Frio e na Guanabara que, após lutarem ao
lado da Coroa na expulsão dos franceses do Rio de Janeiro solicitaram “a doação de
sesmaria para a criação de gado, com a finalidade de abastecer o mercado do Rio de
Janeiro.” (FREITAS, 2012, p.19)
Somente no século XVIII é que se iniciou a produção de açúcar, monocultura
ainda com forte presença na região, de forma que a cidade passou a ser fortemente
vinculada a esse produto. A produção açucareira motivou a expansão comercial da
cidade e, consequentemente, o progresso urbanístico, como, por exemplo, a abertura do
Canal Campos-Macaé e o advento da ferrovia, já no século XIX. Em 1870 apareceram
as primeiras turbinas e o processo à vácuo na fabricação do açúcar (MACHADO, 2012)
o que proporcionou o aumento das usinas na região, que suplantaram os pequenos
engenhos e tornaram-se símbolo da cidade.
A história da cidade está contada em livros e em outras publicações escritas por
historiadores e memorialistas, base para que fosse constituído o acervo do Museu
Histórico, constituído uma linha do tempo que compreende cinco séculos de história,
não apenas de Campos, mas das regiões afins.
5.1. Do Solar ao Museu
O solar do Visconde de Araruama, situado na principal praça na área central de
Campos dos Goytacazes, a de São Salvador, foi erguido em fins do século XVIII, com a
finalidade de servir de moradia a José Caetano Barcelos Coutinho, então nomeado
Brigadeiro e posteriormente Mestre de Campo, títulos que lhe favoreceram a primeira
provedoria da Santa Casa de Misericórdia de Campos e, onde em 1797 recebeu o título
de primeiro Coronel de Milícias da Vila de São Salvador de Campos dos Goytacazes.
(ESCOCARD, 2012).
Não tendo o Sr. José Caetano Barcelos Coutinho deixado herdeiros diretos, coube
a seu sobrinho, José Carneiro da Silva, a herança sobre seu legado patrimonial. Grande
proprietário rural, José Carneiro da Silva serviu em milícias, tendo alcançado a patente
de Tenente Coronel em Campos dos Goytacazes. “Exerceu ainda o cargo de
15
Comandante Superior da Guarda Nacional em Macaé e Capivari (atual Silva Jardim)
entre 1852 e 1856. Atuou também como Juiz Municipal, Delegado de Polícia e Juiz de
Paz em Quissamã. Recebeu as condecorações de Grande do Império, Comendador da
Imperial Ordem da Rosa e Fidalgo Cavaleiro da Casa Imperial.” (ESCOCARD, 2012).
Além disso, foi membro da Assembleia Legislativa Provincial do Rio de Janeiro pelo
Partido Conservador.
Todas essas atribuições fizeram com que José Carneiro da Silva tivesse se tornado
um homem influente dentro das aspirações do Império Brasileiro, o que se confirmou
com suas nomeações nobiliárquicas aos títulos de 1° Barão de Araruama por decreto
imperial de 05 de maio de 1844, e de 1° Visconde de Araruama, também por decreto
imperial de 15 de abril de 1847, “Sendo este título conferido por Decreto, registrado no
Livro de Registro de Leis, Alvarás e Cartas, Vol. 8, folha 155, sob a guarda do Arquivo
Nacional, códice 528.” (ESCOCARD, 2012).
O Visconde de Araruama não ficou apenas fadado a questões de títulos e de
heranças. Foi também um homem ligado à história de seu tempo, tendo escrito a obra
“Memória Topographica e Histórica Sobre os Campos dos Goytacazes”, um tratado
sobre as produções econômicas e o comércio da região, publicado em 1819 e ofertado
ao “Muito Alto e Poderoso Rei D. João VI” por um “Natural do Paiz”, como ele próprio
se define. Há também sua intensa participação na abertura do Canal Campos-Macaé,
vide a necessidade em obter uma abertura para o mar a fim de facilitar o transporte e
escoamento da produção de açúcar de Campos dos Goytacazes, além de transportar
passageiros. Construído com mão-de-obra escrava, o Canal conta com 105 quilômetros
de extensão, e interligava as bacias do Paraíba do Sul, da Lagoa Feia e do Macaé.
Quanto ao solar, este apresenta em seu interior cômodos generosos, pátios
internos e sua fachada principal é voltada para a Praça de São Salvador. Os fundos do
solar dão acesso a Rua Barão de Amazonas e em seus primórdios abrigava as cocheiras
de onde saíam os tílburis que faziam às vezes de meio de transporte. Quando da morte
do Visconde, em 1864, sua viúva, alguns anos depois resolve vendê-lo para a Câmara
Municipal de Campos. A partir de então, tem-se início a trajetória do prédio para a
utilização de órgãos públicos, o que até hoje se mantém. O prédio passou então a
abrigar a sede da Câmara de Vereadores de Campos no ano de 1870.
O projeto de uma biblioteca municipal foi criado desde 1871 através de uma lei
provincial de n°1650. Entretanto, apenas em 1903, o então presidente da Câmara de
16
Vereadores, Dr. Benedito Gonçalves Pereira Nunes, tomou a iniciativa de adaptar o
antigo anexo que inicialmente fora preparado para receber o quartel dos Bombeiros,
para enfim abrigar a Biblioteca Municipal que, tendo recebido inúmeras doações,
também passou a contar com coleções de revistas, jornais, além de mais livros
adquiridos pela própria Câmara em favor da população.
Em 1904, o prédio que já abrigava a Câmara e a Biblioteca, passou também a
receber a Prefeitura Municipal, que se originou da segunda reforma Constitucional
Fluminense, aprovada em 18 de setembro de 1903 (RODRIGUES, 2014) onde se
definiu que as prefeituras seriam, a partir de então, o único órgão responsável pelas
questões administrativas das cidades de modo que
o poder executivo antes exercido pelo presidente da Câmara seria
entregue a prefeitos escolhidos pelo presidente do Estado naqueles
municípios onde o governo Estadual fornecesse serviços públicos e
fosse fiador de empréstimos. (RODRIGUES, 2014, p. 45)
De modo que a cidade de Campos teve seu primeiro prefeito empossado em
janeiro de 1904, na figura de Rodrigues Peixoto. O local ficou à época conhecido como
o “Paço Municipal”, pois ali, efetivamente, encontravam-se instalados os órgãos
executivo e legislativo do município de Campos dos Goytacazes, além da Biblioteca
Municipal.
O Solar do Visconde de Araruama foi tombado pelo Instituto Estadual do
Patrimônio Artístico e Cultura – INEPAC, em ano de 1978, impossibilitando sua
demolição ou descaracterização. Essa proibição definida pelo tombamento, não impediu
a deterioração do prédio.
Apesar de no início da década de 90 do século XX este secular edifício ter sido
ocupado com o projeto de um Museu, apenas em 1997 foi, efetivamente, criada a Lei
Municipal n° 6339 de 14 de maio, que dá conta da criação do Museu de Campos dos
Goytacazes. Neste mesmo ano, o prédio foi interditado pela Defesa Civil do Município
por apresentar riscos aos seus ocupantes devido ao seu péssimo estado de conservação.
Durante mais de uma década, o prédio encontrou-se abandonado e esquecido, até o ano
de 2009, quando deu-se início a um longo processo de reforma e restauração com a
finalidade deste servir definitivamente de abrigo ao Museu Histórico de Campos dos
Goytacazes, o qual teve sua inauguração em junho de 2012.
17
A cidade de Campos dos Goytacazes apresenta, ainda hoje, um dos mais
importantes acervos arquitetônicos em cultura eclética no Brasil e, embora não mais se
possa afirmar, já foi a segunda cidade no país a apresentar tais características. Até o
século XVIII, Campos possuía um pequeno núcleo urbano constituído, pois a maior
parte da população residia na área rural, posto que a pecuária continuava a ser a
principal prática econômica e era onde havia a “gente que só quer saber do campo. Lá é
que moram em singelos casalejos, de envolta com a própria criação” (LAMEGO, 2007,
p. 100).
Somente no século XIX, com o advento da indústria açucareira e a implantação
dos primeiros engenhos é que se observa um contínuo crescimento da área urbana, que
passou a abrigar os detentores do poder, as classes mais abastadas, que passaram a
residir no centro da então Villa de São Salvador (TEIXEIRA, 2008).
O ecletismo em Campos misturou elementos que se inspiravam nos padrões
estéticos europeus, sobretudo o francês, com a estética colonial predominante até então.
Exemplo desse período é a construção do Solar da Baronesa, que embora atualmente
encontra-se abandonado e necessitando urgente de restauro, ainda surge imponente às
margens da RJ 356, que liga Campos a Itaperuna. Além do Solar da Baronesa, Campos
possui muitas outras construções desse período, como o imponente prédio do Visconde
de Araruama, situado na Praça de São Salvador, na área central da cidade e, desde o
início dos anos 90, destinado a ser o abrigo do Museu de Campos (TEIXEIRA, 2008).
Em 1990, foi instalado no edifício do Solar o projeto de um museu, entretanto,
este não possuía tal característica pela falta de um acervo que assim o representasse,
tampouco uma preocupação em implantar práticas educativas. As exposições desse
período eram basicamente fotográficas, além de apresentações teatrais, musicais,
poéticas, mas não havia um museu de fato, instituído, nem uma metodologia
patrimonial para a preservação de acervo. Em 1997, a Defesa Civil do município
interditou o prédio, devido as péssimas condições de preservação do mesmo, pois este
oferecia risco a qualquer pessoa que estivesse em suas dependências.
Após onze anos de interdição, teve início o processo de reforma e restauro do
edifício, obra que demandou quase quatro anos, sendo entregue pelo poder público à
comunidade para a elaboração da exposição permanente por historiadores, museólogos
e monitores. O prédio, abandonado até então, passou de mero monumento à importante
documento histórico, dialogando com a teoria de Jacques Le Goff ao, através de seu
18
acervo, estabelecer com a comunidade uma relação baseada em um propósito de
memória coletiva, pois “o documento não é qualquer coisa que fica por conta do
passado, ele é um produto da sociedade que o fabricou, segundo as relações de força
que detinham o poder” (LE GOFF, 2013, p. 495). Demonstrando a força do passado de
um povo, a história pode ser interpretada como uma ciência que personaliza a memória
coletiva através da produção cultural de uma sociedade, onde monumento e
consequentemente o documento são os materiais que a tornam imortal.
5.2. O Museu Histórico de Campos e a educação patrimonial
O Museu Histórico de Campos surge então com uma proposta de se trabalhar uma
metodologia patrimonial, passando pela capacitação de sua equipe no que tange ao
acervo ali representado. Desde a sala que expõe artefatos que remontam à ferrovia, no
piso inferior, às que contam as histórias da constituição da sociedade campista a partir
do século XVI, com objetos arqueológicos dos primeiros habitantes desta planície, os
Índios Goitacás, a implantação da pecuária, relembrando a luta de Benta Pereira, os
objetos de suplício pelos quais passavam os escravos, a opulência econômica do período
do açúcar, até a biblioteca do ex-presidente Nilo Peçanha, fazem com que, através das
escolhas dos historiadores que estabeleceram esta linha do tempo, os visitantes
percebam e interajam com as heranças de seu passado.
O Setor Educativo atende aos grupos escolares e espontâneos com o objetivo de
democratizar o conhecimento, utilizando para tanto não apenas a monitoria guiada que
percorre todas as salas de exposição, mas também estabelecendo parcerias, por
exemplo, com o Curso Livre de Teatro, através de monitorias dramatizadas; com a
Coordenação de Animação Cultural da Secretaria Municipal de Educação, com
exposições realizadas na sala temporária, palestras e capacitações, como, por exemplo, a
“Folcloriando a Cavalhada”, que contou a história da Cavalhada de Santo Amaro,
tradição secular da Baixada Campista; com o INEPAC, através da parceria para sediar o
IV Seminário Estadual para a Preservação de Bens Móveis e Integrados; a Academia
Pedralva de Letras, com seus cafés literários e a ONG Orquestrando a Vida, com o
projeto “Música no Museu”, levando música de qualidade ao público.
19
Cabe ressaltar que, dentro do universo de 70.000 visitantes que o Museu recebeu
desde junho de 2012, há um quantitativo de mais de 15.000 estudantes que foram
recebidos através do agendamento prévio de visitas, recebendo uma média de 500
alunos por mês. No mês de agosto, observou-se um aumento no quantitativo dos
visitantes, entre estudantes e público em geral, pois é quando acontecem as monitorias
dramatizadas, apresentadas pelos alunos do Curso de Teatro e por Animadores
Culturais, e que contam, através da ludicidade do teatro, as histórias da planície,
ressaltando a cultura popular muitas vezes esquecida, trazendo à cena a tradição do Boi
Pintadinho, as lendas da Baixada sob a ótica de José Cândido de Carvalho, e a já citada
Cavalhada, pois, segundo Chartier, “supõe-se que os novos instrumentos de mídia tenham
destruído uma cultura antiga, oral e comunitária, festiva e folclórica, que era ao mesmo tempo,
criadora, plural e livre” (CHARTIER, 1995, p. 181).
Segundo o pedagogo e monitor do Museu, Rossini Reis, o conjunto arquitetônico
do prédio em si é o que mais chama a atenção dos visitantes, junto aos instrumentos de
suplício do período escravocrata e a biblioteca de Nilo Peçanha, mulato, representado
como branco nas pinturas de época expostas na sala dedicada a ele. Para Rossini, a
Educação Patrimonial é “parte muito importante para a assimilação de nossa história,
principalmente para os estudantes que nos visitam e que desconhecem a importância de
nossa cidade no cenário histórico nacional”, criando uma consciência histórica que
converge com a teoria de que todo homem precisa ter consciência de seu passado e que
cabe aos historiadores e demais pessoas ligadas à história localizar suas mudanças e
transformações (HOBSBAWM, 2013).
Para Graziela Escocard, gerente do Museu Histórico de Campos, este pode ser
melhor aproveitado a partir das visitas monitoradas, pois o acervo por si só, sem os
esclarecimentos devidos, o tornaria em um mero museu-vitrine, dentro de uma proposta
apenas contemplativa, fora do dinamismo que propõe a Educação Patrimonial, pois
los contactos sociales y el aprendizaje cooperativo se dan de manera
más natural y menos estructurada que en el contexto formal [...] El
aprendizaje informal sitúa al aprendiz en un ambiente nuevo,
intrinsecamente estimulante y no degradado (POL et al, 2002, p. 92).
Ainda segundo Escocard, o diferencial é a comunicação do monitor com as
escolas e visitantes em geral. E, embora não haja na grade curricular das escolas uma
20
proposta de ensino em História Regional, o Museu supre essa necessidade, pois é,
atualmente, o único aparelho na cidade que trabalha a Educação Patrimonial.
Dentro de uma perspectiva de apropriação do patrimônio cultural local, o Museu
de Campos enquanto espaço de memória, pretende atuar numa perspectiva consciente
de seu papel na sociedade, que passa pelo entendimento sobre a necessidade de atender
aos seus interesses através de uma ideologia patrimonial e, sabedor de que não é o único
detentor do conhecimento, pensar no espaço como uma cesta de possibilidades onde,
ensinando e aprendendo a partir das exposições memoriais dos visitantes, atuar como,
nestes tempos globalizados, antídoto contra o esquecimento e ferramenta para a criação
do pertencimento.
6. Considerações finais
A partir do estudo realizado sobre Educação Patrimonial através da ótica museal,
e utilizando como objeto o Museu Histórico de Campos, pude constatar que os museus,
de uma forma geral, figuram como fonte de suma importância para o estudo do passado,
compreensão do presente e constituição de um futuro baseado na preservação da
memória cultural, partindo do princípio da valorização da história regional.
Neste sentido, a Educação Patrimonial se firma como, certamente, o principal
recurso e instrumento para que se concretize o que foi defendido por Horta (1999) no
que se refere ao termo “alfabetização cultural”, que pode ser interpretado como uma
nova leitura do mundo em que se vive através da ótica da arte, da música, das tradições,
da oralidade, dos sabores, numa tentativa constante de não se deixar perder a memória e
de que forma ela constitui a história do grupo social que ora constituímos.
Inúmeros artigos, teses, livros têm sido escritos no Brasil com vistas a trazer à
tona essa necessidade – preservar a memória –, e neste contexto, foram estudados sete
trabalhos que trataram das questões teóricas e práticas que trataram da necessidade do
estudo da Educação Patrimonial, objeto maior desse artigo, reafirmando sua importância
e a necessidade cada vez maior de trabalha-la. Para além da teoria, a prática precisa ser
aplicada, pois, apesar das tentativas, a Educação Patrimonial ainda é muito pouco
difundida.
Para a cidade de Campos, o Museu existe como um importante lugar de memória,
uma vez que trabalha dentro de uma metodologia patrimonial que busca preservar e
21
consubstanciar a história da região, a fim de fortalecer os laços de pertencimento da
população com sua história.
Os Museus, sejam eles Históricos, de Ciências, de Arte, desempenham um papel
crucial e não reconhecido na tentativa de preservação e disseminação da história. A
Educação Patrimonial é necessária e fundamental, e suas ações precisam ser
reconhecidas, não apenas nos Museus, como também nos arquivos, nas Casas de
Cultura, nas Bibliotecas, para que sejam realizadas de forma continuada,
independentemente das inúmeras dificuldades que se apresentam, seja na falta de
material, na falta de planejamento e, principalmente, na falta de políticas públicas
eficazes.
Entender como se processa a relação entre o homem e o objeto no espaço
institucional é, antes de mais nada, entender que neste espaço habita um imensa e
intensa complexidade cultural e relações de nós com o outro, e de nós com a nossa
história, que precisam ser estreitadas cotidianamente. Só assim, poderemos, com
propriedade, consolidar, re-interpretar, e re-significar para, enfim, real e
verdadeiramente, nos sentirmos pertencentes à nossa cultura.
22
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