dissertao geraldo
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UIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JAEIRO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBAISMO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM URBAISMO
Geraldo Browne Ribeiro Filho
A FORMAO DO ESPAO COSTRUDO: CIDADE E LEGISLAO URBASTICA EM VIOSA, MG
Dissertao de mestrado em Urbanismo apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Urbanismo PROURB da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do grau de mestre em Urbanismo.
Orientador: Profa. Dra. Rosngela Lunardelli Cavallazzi
Rio de Janeiro, RJ - Brasil Dezembro - 1997
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A FORMAO DO ESPAO COSTRUDO: CIDADE E LEGISLAO URBASTICA EM VIOSA, MG
Geraldo Browne Ribeiro Filho Dissertao de Mestrado em Urbanismo apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Urbanismo PROURB da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do grau de mestre em Urbanismo.
Aprovada por:
Profa. Dra. Rosngela Lunardelli Cavallazzi (Orientador)
Profa. Dra. Denise B. Pinheiro Machado
Profa. Dra. Lilian Fessler Vaz
Rio de Janeiro, RJ - Brasil Dezembro - 1997
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ii
minha esposa Maria Alba e aos
meus filhos arayana e Gabriel, pelo
amor, pelo carinho e pela dedicao.
minha irm Ana Lgia, que est ao
lado do Senhor, a quem dedico este
trabalho.
A meus pais, irmo e irm, pela
amizade fraterna e pelo incentivo
constante.
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iii
AGRADECIMETO
Ao Supremo Arquiteto (e Urbanista) do Universo Divino Senhor da
Criao ...
Aos sobrinhos Vtor, Ana Carolina e Pedro Paulo, pela alegria que sempre
me proporcionam.
Ao Sr. Joo e D. Alba, aos cunhados e sobrinhos e aos demais familiares
de minha esposa, pelo apoio e incentivo.
Ao tio Oscar e tia Ainha, meus pais no Rio de Janeiro, pelo carinho e pela
compreenso com que me receberam.
Ao tio Manoel e tia Terezinha, pelas palavras de incentivo, principalmente
nos momentos mais difceis desta jornada.
professora Rosngela Lunardelli Cavallazzi, o meu especial
agradecimento, pela ateno, pelo entusiasmo, pela dedicao e competncia na
orientao desta dissertao.
professora Denise B. Pinheiro Machado, pelo incentivo, pelo apoio e por
acreditar que na rea de Urbanismo pode haver tambm um engenheiro civil.
professora Lilian Fessler Vaz, pela ateno e pelas importantes crticas,
que contriburam para enriquecer este trabalho.
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iv
Ao professor Eduardo Vasconcelos, pelos importantes conselhos e pelo
estmulo ao desenvolvimento do tema deste trabalho.
Aos professores do PROURB, pelo ambiente harmnico e rico em
conhecimentos, que contribuiu para estimular o desenvolvimento deste trabalho.
Aos colegas e amigos da primeira turma de mestrado do PROURB, pela
amizade que construmos na trajetria em comum.
Aos funcionrios do PROURB, pela pronta ateno em todos os momentos.
Ao amigo Janot, figura extraordinria que tive o privilgio de conhecer,
conviver e bater altos papos, principalmente nas caronas de volta do Fundo, pelo
incentivo e pela fora em todas as etapas deste trabalho.
Ao amigo e professor Alberto Jones, pela fora revitalizadora nos
momentos difceis, de incertezas e dvidas.
Ao amigo e professor Paulo Tadeu Leite Arantes, que, com o seu projeto
utpico, nos descortinou um outro universo de conhecimentos e mudou a nossa
vida.
Aos colegas do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFV, pelo
apoio, sem o qual no seria possvel concluir esta pesquisa.
Ao amigo e professor Tibiri, pelo incentivo constante e pela fora,
principalmente na etapa final.
amiga e professora Aline Werneck Barbosa de Carvalho, pelo coleguismo
e pela solidariedade demonstrados a todo momento.
Ao amigo e professor Rolf, pelo incentivo e pela disponibilizao das fotos
de Viosa.
Aos professores Tlio e talo, pelo apoio nos vrios momentos deste
trabalho.
Aos amigos, professores Cludio Furtado e Luiz Fernando Reis pela
amizade que se solidificou no decorrer deste trabalho.
s alunas e amigas Flvia Antunes Corra e Patrcia Wlassow, pelo
desprendimento em participar desta pesquisa em suas diversas etapas.
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v
Ao engenheiro Vicente Alvim e arquiteta Lutrcia, da Prefeitura
Municipal de Viosa, pelas preciosas informaes que enriqueceram esta pesquisa.
Aos vereadores e funcionrios da Cmara Municipal de Viosa, pela
colaborao importante que deram a esta pesquisa, colocando os arquivos sobre
normas urbansticas nossa disposio.
Ao vereador e professor Euter Paniago, pela luta por uma Viosa melhor.
Ao arquiteto, urbanista e vereador Aguinaldo Pacheco, pelas informaes
importantes que nos passou, com o objetivo de tentar reconstituir uma parte da
histria recente de Viosa e da qual foi agente ativo.
Ao professor Tancredo Almada, por ter colocado nossa disposio
importante pesquisa realizada sob a sua coordenao.
Aos engenheiros Snzio Borges e Jos Luiz, do SAAE, pelas ricas
informaes e pela ateno com que nos receberam em vrios momentos.
Aos meus alunos de Desenho Urbano, turmas 97/I e 97/II do curso de
Arquitetura e Urbanismo da UFV, pela importante contribuio na realizao deste
trabalho.
Aos colegas e amigos do grupo de pesquisa, orientado pela Profa. Dra.
Rosngela Lunardelli Cavallazzi, pelo incentivo constante.
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vi
COTEDO
Pgina
RESUMO........................................................................................................... 1 ABSTRACT....................................................................................................... 3 INTRODUO ................................................................................................. 5 Consideraes iniciais..................................................................................... 5 Objetivos ......................................................................................................... 9 O problema e sua importncia ........................................................................ 9 Alguns aspectos relevantes sobre Viosa..................................................... 12
Metodologia .................................................................................................... 15 CAPTULO 1..................................................................................................... 21 A ESTRUTURAO DO USO E OCUPAO DO SOLO URBANO: A CAMINHO DA SEGREGAO SOCIOESPACIAL...................................... 21 1.1. Apropriao do espao regime de apropriao territorial e
desenvolvimento urbano no Brasil: referncias histricas fundamentais 21 1.1.1. Consideraes gerais .......................................................................... 21 1.1.2. Das Sesmarias Lei de Terras de 1850.............................................. 28 1.1.3. A Lei de Terras................................................................................... 42
1.2. A apropriao do espao da cidade e a renda fundiria urbana............... 49
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vii
Pgina CAPTULO 2..................................................................................................... 57 ESPAO POLTICO-JURDICO: ESTADO RACIONAL MODERNO E LEGISLAO URBANSTICA....................................................................... 57 2.1. O Estado moderno.................................................................................... 58 2.1.1. O Estado moderno e a legislao urbanstica..................................... 64 2.1.2. Forma espacial e formalismo jurdico ordenao da sociedade na
cidade.................................................................................................. 65 2.1.3. Posse e funo social da posse ........................................................... 69 2.1.4. Propriedade privada urbana e funo social da propriedade.............. 73 2.1.5. Funo social da cidade...................................................................... 82 2.1.6. Parmetros urbansticos e construes possveis: a eficcia relativa
das normas e prticas sociais instituintes ........................................... 85 2.1.7. Forma espacial: o ordenamento da cidade ......................................... 86
CAPTULO 3..................................................................................................... 90 A CONFIGURAO ESPACIAL DE VIOSA A CIDADE CONSTRUDA E CONSTRUINDO DESIGUALDADES .............................. 90 3.1. A histria da cidade: presenas e vazios.................................................. 90 3.1.1. A Cidade-Patrimnio: o primeiro plano urbano ............................. 92 3.1.1.2. A virada do sculo e os ideais de modernizao............................. 101 3.1.2. A Cidade-Ferrovia .......................................................................... 108 3.1.3. A Cidade-Universitria: transio para o processo de urbanizao 113
3.2. At a dcada de 70: trs obras, trs cidades............................................. 140 3.3. A configurao espacial de Viosa no final do sculo XX: a
sobreposio de quatro cidades............................................................... 141 3.3.1. A dcada de 70: um acentuado processo de urbanizao................... 141 3.3.2. A dcada de 80 - o Cdigo de Obras mutilado: o papel dos
empresrios da construo civil ........................................................ 154 3.3.3. A dcada de 90: A consolidao da segregao socioespacial .......... 177
GUISA DE CONCLUSO FRAGMENTOS PARA O FUTURO: NOVAS PERSPECTIVAS DO ESPAO CONSTRUDO .............................. 188 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................... 197 APNDICES...................................................................................................... 210 APNDICE A - MAPA DOS BAIRROS DE VIOSA ................................... 211
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viii
APNDICE B - MAPAS DE USO DO SOLO, VOLUMETRIA, RELAO PBLICO X PRIVADO E FOTOGRAFIAS AREAS DO CENTRO - VIOSA, MG .................................................................................................... 213
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APNDICE C - MAPAS DE USO DO SOLO, VOLUMETRIA, RELAO PBLICO X PRIVADO DO BAIRRO RAMOS - VIOSA, MG. .................. 220
APNDICE D - MAPAS DE USO DO SOLO, VOLUMETRIA, RELAO PBLICO X PRIVADO DO BAIRRO BELA VISTA - VIOSA, MG............ 224 APNDICE E - MAPAS DE USO DO SOLO E VOLUMETRIA DO CONDOMNIO PARQUE DO IP - VIOSA, MG........................................ 228 APNDICE F MAPA DE EVOLUO URBANA DE VIOSA, MG. ......... 231 APNDICE G - MAPA DE DISTRIBUIO DE RENDAS POR BAIRROS DE VIOSA, MG.............................................................................................. 233 APNDICE H - MAPA DOS PERMETROS URBANOS DE VIOSA,MG. 235 APNDICE I - FOTOGRAFIA AREA: CIDADE X UNIVERSIDADE....... 237 APNDICE J - RELAO DE NORMAS URBANSTICAS MUNICIPAIS CITADAS (1892 - 1948) ................................................................................... 239 APNDICE L - RELAO DE NORMAS URBANSTICAS MUNICIPAIS CITADAS E DE PREFEITOS (1948 - 1996)................................................... 241 APNDICE M - PATRIMNIOS DA IGREJA............................................... 244
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RESUMO
RIBEIRO FILHO, Geraldo Browne, M. S., Universidade Federal do Rio de Janeiro, dezembro de 1997. A formao do espao construdo: cidade e legislao urbanstica em Viosa, MG. Profa. Dra. Rosngela Lunardelli Cavallazzi (Orientador), Profa. Dra. Denise B. Pinheiro Machado e Profa. Dra. Lilian Fessler Vaz.
Este trabalho consistiu na anlise da formao do espao construdo da
cidade de Viosa - MG, ocorrido a partir da dcada de 70, quando sofreu um
processo intenso de urbanizao, em razo, principalmente, da expanso das
atividades da Universidade Federal de Viosa - UFV. Objetivou-se contemplar nesta
pesquisa duas situaes: o estudo da formao do espao construdo da cidade de
Viosa - MG e o papel empreendido pelo Estado, expresso nas normas urbansticas
vigentes no perodo 1970 - 1996, na formao deste espao. Realizou-se uma
pesquisa direta, em campo, para apreenso do espao urbano da cidade. Alm disso,
na Cmara Municipal foi coletada toda legislao urbanstica de Viosa. Recorreu-
se tambm a mapas, material iconogrfico e a diversos depoimentos. Confrontou-se
as aes deste Estado racional e moderno, que, atravs das normas urbansticas,
pretende ordenar as cidades, com o espao construdo da cidade de Viosa. A partir
desta confrontao foram elaboradas algumas concluses. Verificou-se que os
empresrios da construo civil estiveram sempre diretamente articulados com o
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poder pblico municipal para editar e modificar as leis, objetivando construir a
cidade de acordo com os seus interesses particulares. Constatou-se que a segregao
socioespacial encontrada em Viosa originria dos processos de concesso,
apropriao e legitimao, privilegiados e juridicamente questionveis, dos espaos
da cidade, empreendidos pelo Estado, atravs das normas urbansticas, em favor das
elites locais. Foi verificado tambm que as legislaes urbansticas, que objetivaram
ordenar o uso e a ocupao do solo urbano de Viosa, no foram eficazes
socialmente, uma vez que cerca de 90% de suas edificaes e de seus loteamentos
so ilegais ou irregulares. Estas construes e estes loteamentos irregulares
possibilitaram a identificao pelo menos duas cidades: a ilegal e a legal, que se
superpem e se misturam por todos os bairros da cidade.
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3
ABSTRACT
THE DEVELOPMET OF THE BUILT SPACE: CITY AD
URBA LEGISLATIO I VIOSA, MG
This work bases its focus in the development of the built space in the city of
Viosa, MG, since the 70s, when the city faced an intensive process of
urbanization, mainly because of the increasing of the activities of the Universidade
Federal de Viosa - UFV. Two different situations were treated in this research: the
study of the built space in Viosa and the State role, expressed by urban legislation,
during the period of 1970 - 1996, in the development of this space. An in loco
research was donne to understand the city urban space. Besides, all urban legislation
was collect at the City Council of Viosa. Several statements, maps, pictures,
drawings were used to document the research. The actions of that rational and
modern State, that intends to organize the city through urban legislation, were
confronted with the city of Viosa, which urban space was built from the inequality.
After this confronts some conclusions were made. It was possible to verify that the
civil construction managers were always articulated to the municipal government to
write and modify the legislation, in accordance to their own private interests. It was
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also verified that the social and spatial segregation in Viosa were originated from
the privileged processes of concession, apropriation and legitimation, of the city's
space, undertook by the state, through urban legislation which gave privilege to the
local elite. Another conclusion shows that the urban legislation that objectified to
order the use and occupation of the land in Viosa, were not socially efficient,
because about 90% of their constructions and land subdivision are illegal or
irregular. Those constructions and land subdivision allowed to identify at least two
differents cities: the illegal and the legal one, that overlap and mix themselves for all
over the city's neighbourhoods.
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5
ITRODUO
A cidade , ao mesmo tempo, uma regio e um lugar, porque ela uma totalidade, e suas partes dispem de um movimento combinado, segundo uma lei prpria, que a lei do organismo urbano, com o qual se confunde. Na verdade h leis que se sucedem, denotando o tempo que passa e mudando as denominaes desse verdadeiro espao-tempo, que a cidade.
Milton Santos1
Consideraes iniciais
As cidades se assemelham a um grande mosaico disforme, onde se inter-
relacionam espaos urbanos construdos2 ao lado de um grande nmero de lotes
vagos ou de glebas no-urbanizadas, convivendo com reas densamente construdas,
algumas com grandes edificaes e outras onde predominam as construes
faveladas, traduzindo as situaes contraditrias que, de uma forma ou de outra, so
reflexo da nossa sociedade, plena de contradies e de imagens incmodas.
1 SANTOS, Milton. Tcnica, espao, tempo; globalizao e meio tcnico-cientfico informacional. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 71. 2 De acordo com VAZ (1984:30), espao urbano construdo aquele constitudo pelos seus elementos fsicos no naturais, mas instalados, por seu conjunto e suas relaes que se revelam por meio de sua forma, ou melhor, da morfologia urbana.
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A heterogeneidade destes espaos urbanos nos levou a refletir sobre estas
cidades, procurando compreend-las no que diz respeito formao de seu espao
construdo, sob a perspectiva do papel empreendido pelo Estado, expresso nas
legislaes urbansticas.
A formao desse espao urbano desigual tem obedecido a uma lgica
econmica, que aquela do modo de produo capitalista, caracterizada pela
economia de mercado. Sob esta lgica, o valor de uso das propriedades urbanas no
considerado, pois elas so consideradas como uma mercadoria qualquer,
adquirindo o status de valor de troca, e passveis de serem transacionadas no
mercado imobilirio.
A cidade, produto de longa formao histrica, traz as marcas das
contradies sociais e dos interesses polticos e econmicos em jogo na sociedade.
A sua formao tem se dado atravs da disputa travada pela posse e/ou propriedade
urbana, entre os diferentes segmentos sociais, na medida em que se estabelece uma
relao entre oferta e demanda para acesso ao solo urbano. Nessa disputa, os
segmentos sociais de renda mais alta, via de regra, levam vantagem, pois conseguem
produzir, construir e transformar no s o seu prprio espao, como tambm os
espaos dos segmentos sociais populares3, de acordo com seus interesses
particulares.
Entre os agentes sociais que participam do jogo do mercado imobilirio,
jogo este que define essa forma desigual de uso e ocupao do solo urbano, o Estado
desempenha papel importante, pois so da sua competncia a edio das normas
urbansticas e as polticas oficiais econmicas, habitacionais, de provimento e
gesto de infra-estruturas e servios pblicos. Invariavelmente, o Estado, que
deveria exercer o papel de mediador dos conflitos gerados pelos diferentes
segmentos sociais que estruturam a sociedade capitalista e de implementador destas
3 Os segmentos sociais populares se subordinam dominao poltica e ideolgica do Estado e do segmento dominante, impostas pela explorao econmica. Estes segmentos sociais se inserem de modo diferenciado nos diversos estgios do processo de produo capitalista, o que origina categorias heterogneas de trabalhadores. No entanto, h uma homogeneizao desses segmentos sociais quanto situao de expropriao econmica, subordinao poltica e ideolgica e espoliao urbana a que esto submetidos pelo Estado e pelos segmentos sociais dominantes.
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7
polticas socioeconmicas de forma igualitria entre os diferentes segmentos sociais,
principalmente no que diz respeito produo do espao urbano, age no interesse
dos que detm a riqueza produtiva e no sentido de encobrir, ao que parece,
propositadamente, uma sociedade retalhada pelo conflito de classes antagnicas4.
O processo acelerado de urbanizao das cidades brasileiras um fato,
principalmente a partir da dcada de 50, contribuindo para formar e agravar um
quadro de urbanizao segregadora e excludente, existente desde os tempos
coloniais. Em um curto espao de tempo, novas reas so incorporadas ao espao
urbano em forma de loteamentos legais ou ilegais, clandestinos ou irregulares;
mudanas de usos e formas de ocupao do solo urbano ocorrem nos diferentes
espaos da cidade; e edificaes so construdas, demolidas e transformadas a todo
momento. Esse processo de produo e renovao urbana acompanhado por
demandas relativas a aes de ordenamento desse espao e implantao de infra-
estrutura, servios e equipamentos pblicos urbanos.
A incapacidade para atender essa demanda tem justificado as aes do
Estado, que privilegiam a distribuio de recursos, via de regra, para as reas da
cidade onde os segmentos sociais dominantes habitam ou tm interesses para a
reproduo do capital. Esta alocao desigual de recursos pblicos, associada a
aes diferenciadas de ordenamento do uso e da ocupao do solo urbano, so
fatores que contribuem para que algumas reas, na cidade, sejam mais valorizadas
do que outras. Isto , o Estado, ao privilegiar com suas polticas pblicas e
investimentos os meios de produo, contribui para a formao de uma cidade
diferencialmente servida por infra-estruturas, servios e equipamentos urbanos, fato
este que contribui para gerar uma valorizao desigual dos diferentes espaos da
cidade e uma apropriao tambm diferenciada destes espaos pelos diferentes
segmentos sociais.
Nesse contexto, a atuao do Estado, atravs das legislaes urbansticas de
ordenamento de uso e ocupao do solo urbano, em sintonia com as demandas do
4 LOJKINE, Jean. O estado capitalista e a questo urbana. So Paulo: Martins Fontes, 1981, p. 321.
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mercado, contribui no s para modificar o mapa de valores do solo urbano, como
tambm para distinguir as construes no espao urbano e, consequentemente, a
prpria formao deste espao.
A valorizao desigual das diferentes reas da cidade, enquanto fator
decisivo no processo de construo do espao urbano, explicita a lgica segundo a
qual somente os segmentos sociais de renda mais elevada tm acesso aos espaos
mais valorizados da cidade, da mesma forma que, a populao de baixa renda tem
acesso aos espaos menos valorizados.
O Estado instituio poltico-jurdica ser analisado neste trabalho
considerando-se a distino jurdica, ou seja: nveis federal, estadual e municipal.
O Estado poder pblico municipal , no Brasil, o responsvel formal
pela organizao do espao urbano. A Unio e os Estados, apenas indiretamente,
podem ordenar este espao.
Tendo em vista que, pela Constituio Federal de 1988, art. 5o, o Estado
deveria garantir no s a igualdade de todos perante a lei, sem distino de qualquer
natureza, seja brasileiro, seja estrangeiro residente no pas, como tambm a
inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e
propriedade, na realidade isto no tem acontecido. As normas urbansticas expressas
em Planos Diretores, Cdigos de Obras, leis de parcelamento, de uso e ocupao,
zoneamentos, em vez de ordenarem o espao construdo de forma equilibrada, vm
contribuindo para gerar problemas de ordem social, espacial, ambiental e econmico
para as cidades e seus habitantes.
Esses instrumentos no tm considerado as desigualdades socioespaciais da
cidade capitalista; pelo contrrio, eles tendem a homogeneiz-las ou padroniz-las,
estipulando modelos de assentamentos e comportamentos que, na maioria das vezes,
so impossveis de serem realizados em uma sociedade desigual.
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Objetivos
Vrios estudos tm procurado compreender as diferentes formas de atuao
do Estado no espao urbano. A maioria deles tem enfocado o papel do Estado no
provimento de infra-estruturas, equipamentos e servios urbanos. Procurou-se
contemplar nesta pesquisa duas situaes: o estudo da formao do espao urbano
da cidade de Viosa cidade de pequeno porte e o papel empreendido pelo
Estado, expresso nas normas urbansticas, para a formao deste espao, com o
intuito de compreender a lgica de sua produo e transformao, sob a vigncia das
vrias normas urbansticas, que se sucederam desde 1970 at 1996.
Nesse sentido, procurou-se identificar as normas urbansticas municipais,
estaduais e federais que procuraram regulamentar o uso e a ocupao do solo
urbano, que estiveram e ainda esto vigorando e que contriburam para a formao
do espao construdo da cidade de Viosa. Alm disso, no mbito das normas
municipais, procurou-se verificar a existncia de planos diretores que, no perodo de
abrangncia deste estudo, objetivaram ordenar o crescimento da cidade. Estas
normas foram dispostas cronologicamente, de forma a buscar uma contextualizao
no s entre elas, mas tambm com o processo de urbanizao ocorrido em Viosa.
O problema e sua importncia
Esta pesquisa est centrada na anlise da formao do espao construdo da
cidade de Viosa MG, no perodo compreendido entre 1970 e 1996,
privilegiando o papel do Estado no mbito das legislaes urbansticas. Este perodo
delimitado para a pesquisa caracterizou-se por acentuado processo de urbanizao
que aconteceu no Brasil, acompanhado no s de crescimento econmico
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10
significativo, mas de desigualdade5, propiciando uma nova imagem para as cidades
atuais, caracterizadas pelas marcas da excluso social6 de parcela significativa da
populao, impressas no seu espao territorial, como conseqncia da concentrao
da renda, da misria, da violncia, da poluio, entre outros problemas. Para
MARICATO7, no h como definir um limite preciso entre o excludo e o includo
por no se tratar de um conceito mensurvel, mas de uma situao complexa que
envolve a informalidade, a irregularidade, a ilegalidade, a pobreza, a baixa
escolaridade, o oficioso, a raa, o sexo, a origem e, principalmente, a falta de voz.
Algumas destas desigualdades socioespaciais foram apontadas em pesquisa
realizada por GOMES8, ao delimitar o nvel de pobreza e estimar a dvida social
urbana de Viosa. Neste estudo, que abrange 26 bairros da cidade, a autora
constatou, ao analisar pesquisa realizada pela Universidade, que as famlias que
recebiam at 3,67 salrios mnimos eram dos segmentos sociais pobres,
correspondendo a cerca de 40% da populao urbana. Esta pesquisa constatou
tambm que esta populao pobre estava distribuda por 21 dos 26 bairros
pesquisados, sendo, em alguns deles, identificadas ilhas de pobreza, como a favela
Rebenta Rabicho, o Alto de Santa Clara e Nova Viosa.
A escolha da cidade de Viosa - MG como estudo de caso dessa pesquisa
teve como motivo principal o fato de seu espao construdo, caracterizado pela
desigualdade socioespacial, possuir uma referncia forte da legislao urbanstica.
Mesmo sabendo que parte da cidade foi construda margem das normas
urbansticas, isto no significa que elas no tenham influenciado, com as suas
presenas, com as suas ausncias, com as suas lacunas ou com suas falhas, a
construo do seu espao urbano.
5 RIBEIRO, Luiz Csar de Queiroz. Reforma urbana na cidade em crise: balano terico e desafios. In: ---, SANTOS JNIOR., Orlando Alves dos. (Orgs.) Globalizao, fragmentao e reforma urbana. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1994, p. 271. 6 Para MARICATO (1994:51) a excluso social tem sua expresso mais concreta na segregao espacial ou ambiental, configurando pontos de concentrao de pobreza semelhana dos guetos (favelas) ou imensas regies nas quais a pobreza homogeneamente disseminada (periferias urbanas). 7 Ibid., p. 51. 8 GOMES, Ruth Almada Cruz. Delimitao da pobreza e estimativa da dvida social urbana do municpio de Viosa. Viosa, MG: UFV, 1993. Dissertao. (Mestrado em Extenso Rural) - Universidade Federal de Viosa, 1993, p. 59-60.
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A importncia de se estudar o espao construdo de Viosa e sua relao
com as normas urbansticas deve-se ao fato tambm de ela ser representativa de um
universo expressivo de cidades brasileiras com populao na faixa de 60.000
habitantes, que se caracterizam por sofrerem um processo intenso de urbanizao,
bem como por refletirem as condies sociais de vida de grande parcela da
populao urbana brasileira.
Outro motivo de escolha da cidade de Viosa para o desenvolvimento desta
pesquisa, deve-se ao fato de a Universidade Federal de Viosa, situada nesta cidade,
contar atualmente com os cursos de graduao em Arquitetura e Urbanismo e de
Direito, bem como de ps-graduao Lato Sensu em Planejamento Municipal,
cujo enfoque principal o desenvolvimento de trabalhos em cidades de pequeno e
mdio portes. Estas cidades, em sua imensa maioria, se no todas, so carentes de
intervenes urbansticas que visem a melhoria da qualidade de vida da sua
populao como um todo e no apenas de parte dela. Compreender o processo de
construo do espao urbano da cidade de Viosa contribuir para a atuao
tambm nestas cidades.
A contextualizao desta pesquisa foi necessria, uma vez que o perodo se
caracterizou por uma srie de momentos polticos e de transformaes
socioeconmicas que foram determinantes nas aes empreendidas pelo Estado e
que contriburam para a formao do espao construdo da cidade.
Esta pesquisa partiu da hiptese de que as aes do Estado, expressas nas
normas urbansticas, voltadas para ordenar o uso e a ocupao do espao urbano,
no s so ineficazes socialmente, como tambm so condicionadas pelos interesses
e, muitas vezes, pelo desinteresse (dos agentes produtores) do mercado imobilirio
da cidade de Viosa.
O estudo da formao do espao construdo da cidade de Viosa,
privilegiando o papel do Estado, expresso nas legislaes urbansticas, tem no Brasil
um campo frtil, na medida em que h um descompasso entre os motivos ditos
determinantes da elaborao das leis e os resultados alcanados com sua aplicao e
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12
tambm entre os propsitos declarados nos discursos polticos e os meandros da
ao dos rgos governamentais.9
Alguns aspectos relevantes sobre Viosa
Figura 1 - Localizao.
O municpio de Viosa localiza-se na Zona da Mata de Minas Gerais e
possui trs distritos: o sede, Silvestre e Cachoeira de Santa Cruz. Ele limitado
pelos municpios de Teixeiras e Guaraciaba, ao norte; Paula Cndido e Coimbra, ao
sul; Cajuri e So Miguel do Anta, a leste; e Porto Firme, a oeste. A cidade tem como
coordenadas geogrficas o paralelo de 20o 45 14 latitude sul e o meridiano de 42o
52 54 longitude W Gr e dista, aproximadamente, 220 km de Belo Horizonte e 350
km do Rio de Janeiro. O clima de Viosa classificado como tropical de altitude e
sua temperatura mdia anual de 18,5oC, sendo a mdia das mnimas de 8,2oC e a
mdia das mximas de 28,5oC.
9 FONSECA, Maria Guadalupe Piragibe da, CAVALLAZZI, Rosngela Lunardelli, PAIVA, Maria Arair Pinto. Teoria jurdica e prticas agrrias; o conflito no campo. Rio de Janeiro: Idia Jurdica, 1994, p. 3.
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O municpio possui uma rea de 279 km2 e est situado em um planalto,
com relevo acidentado, composto por cadeias de montanhas agrupadas, prximas
uma das outras, com altas declividades, formando vales estreitos. A rea urbana est
localizada em um vale, com uma altitude prxima a 649 m, e cerca de 40% do
espao construdo est situado em rea com declividade de at 15%; 20% deste
espao est situado em rea com declividade entre 15 e 30% e os 40% restantes
esto situados em terrenos com declividades iguais ou superiores a 30%.10 O
municpio cortado pelos rios Turvo Sujo e Turvo Limpo, que se confluem na
regio de Duas Barras, nos limites de Viosa com os municpios de Porto Firme e
Guaraciaba. O rio Turvo Sujo tem a direo aproximada SE-NW, e o seu principal
afluente o ribeiro So Bartolomeu principal curso dgua que corta a rea
urbana. Prximo s margens deste ribeiro nasceu o primeiro ncleo urbano, que
deu origem cidade e foi ao longo de suas margens que a cidade se expandiu. Ele
no s se constitui em uma das principais fontes de gua para a populao da
cidade, como tambm um dos principais depositrios dos seus esgotos.
A populao urbana de Viosa vem crescendo, desde 1950, em mais de
80% em cada dcada, de forma que quase dobra a cada 10 anos. Este acentuado
crescimento populacional desencadeou uma srie de problemas urbanos na cidade,
tpicos das metrpoles brasileiras: reas faveladas; ausncia de infra-estruturas;
acentuado processo de verticalizao das suas edificaes em determinadas reas da
cidade, ocasionando densificao excessiva; e construes e parcelamentos de terras
clandestinos e ilegais, ou seja, sem controle do poder pblico municipal.
Esse processo de urbanizao, que se iniciou por volta de 1950, acentuou-se
no final da dcada seguinte, atingindo ndices expressivos nas dcadas posteriores,
conforme demonstrado no Quadro 1.
10 MANN, Jacqueline, SIDDLES, Martin, PALERMO, Frank. Planejando comunidades brasileiras; documentando a cidade. Halifax: Technical University of Nova Scotia, 1993, p. 21.
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Figura 2 - Mapa de isodeclividade.
Quadro 1 - Populao total, urbana e rural de Viosa (1950-1991)
DCADA POP. TOTAL POP. URBAA POP. RURAL
50 18.325 6.424 11.901
60 21.120 9.342 11.778
70 25.784 17.000 8.784
80 38.655 31.143 7.512
90 55.316 49.320 5.996
FONTE: FIBGE.
Pode-se verificar, ao analisar o Quadro 1 que, em 1950, o municpio era
predominantemente rural. Em 1960, os nmeros j mostram uma tendncia
urbanizao. Em 1970, o quadro se inverteu completamente, pois, de
predominantemente rural, o municpio passou a predominantemente urbano.
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15
O municpio, ainda na dcada de 70, teve acentuado xodo rural, visto que a
proporo de habitantes rurais passou de 34,07% para 19,40% em 1980, e, neste
mesmo perodo, a populao cresceu a metade do que existia em 1970, ou seja,
cerca de 13.000 habitantes. O censo de 1991 apontou uma taxa de urbanizao de
89,16%, que foi superior brasileira, a qual atingiu 75,5%, colocando Viosa como
um municpio eminentemente urbano.
Metodologia
A metodologia utilizada para desenvolver este trabalho seguiu, no que diz
respeito s categorias temporal e espacial, a orientao de SANTOS11. Neste estudo
sobre o espao construdo da cidade de Viosa, procurou-se articular a categoria
espao com a categoria tempo.
O espao foi trabalhado como uma categoria histrica, pois o seu conceito
muda ao longo do tempo, medida que so acrescentadas novas variveis, como as
questes sociais, polticas, econmicas e jurdicas, as quais contribuem para a sua
formao.
Com relao ao tempo, procurou-se dividi-lo em perodos, isto , os
pedaos de tempo submetidos mesma lei histrica, que mantm as mesmas
estruturas, pois, durante a vigncia de um determinado perodo de tempo, um
conjunto de relaes e de propores sociais, polticas, jurdicas, econmicas as
estruturas se mantm constante, o que possibilita definir o objeto de anlise deste
estudo.
Atravs, portanto, desta articulao entre espao e tempo procurou-se
compreender a formao do espao construdo de Viosa e, consequentemente, a
histria da cidade no como um dado passivo, mas como um dado ativo, em
11 SANTOS, Milton. op. cit., 1996, p. 68-72.
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constante produo, transformao e renovao, fato este que no se deixou de levar
em conta nesta anlise. A histria da produo continuada do espao da cidade a
prpria histria da cidade.
Dessa maneira, com o objetivo de compreender a formao do espao
urbano construdo de Viosa, procurou-se relacionar o espao e o tempo. Ou seja, de
um lado, foram catalogados e sistematizados o espao construdo possuidor de
uma dimenso material e as formas jurdicas e sociais, possuidoras de uma
dimenso dos comportamentos obrigatrios. De outro lado, colocou-se o tempo
tal como ele se d nas diferentes escalas de sua existncia, ainda que tenhamos
freqentemente dificuldade em precis-la.
Ao se relacionar espao e tempo, desde a dcada de 70 at meados da
dcada de 90, estamos procurando compreender a configurao atual da cidade, uma
vez que esta a soma de pedaos de realizaes atuais e de realizaes do
passado. Viosa, fundada por volta de 1800, apresenta at hoje em seu espao
urbano provas dos diferentes perodos de sua construo, patentes no s nos
diferentes estilos e padres arquitetnicos de suas edificaes e na sua diversificada
estrutura fundiria, como tambm no seu traado urbano primordial.
Alm disso, a cidade e o urbano no podem ser compreendidos sem as
instituies oriundas das relaes de classe e de propriedade12. Tm lugar na
cidade, configurando o seu processo de construo, as instituies mais especficas,
em nvel municipal, e as instituies mais gerais, como as que dependem do
Estado, da realidade e da ideologia dominante. Estas instituies coexistem com
aquelas propriamente urbanas, administrativas e culturais.
Fundamentando ainda o processo de construo do espao da cidade de
Viosa, encontra-se a questo fundiria. O espao urbano atual da cidade foi
construdo, desde o perodo colonial, sob a vigncia de um estatuto da terra,
estruturado em funo de um pacto entre proprietrios, que moldou uma concepo
para a propriedade privada imobiliria com contornos nitidamente absolutistas. Este
12 LEFEBVRE, Henri. O direito cidade. So Paulo: [s. n.], 1969, p. 53.
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modelo de propriedade pautou-se no s pelo direito de o proprietrio decidir o que
fazer com a sua propriedade, como tambm por colocar o Estado como seu agente
de proteo eficiente e gil, atravs da elaborao de uma densa malha de normas,
regulamentos e formas jurdicas, que procuraram impedir o acesso da populao
pobre propriedade imobiliria, seja pela compra, seja pela locao. Nesse sentido,
esta populao localiza-se nos espaos da cidade que os proprietrios imobilirios
permitem.
Esta referncia aos vrios perodos, inclusive ao passado, tem por objetivos
no s buscar uma aproximao da contextualizao, to necessria para uma
melhor compreenso do objeto de estudo, como tambm reconstruir alguns cenrios
que em parte se esvaram e buscar o significado da memria, que em muitos casos
se encontra envolta em mistrios, nebulosa, se no pereceu sob o manto de muitas
interpretaes, muitas vezes conflitantes.
Nesse sentido, empreendeu-se uma pesquisa direta, em campo, em todos os
bairros da cidade, para apreenso do seu espao urbano na atualidade. Alm disso,
buscou-se junto Cmara Municipal pesquisando fontes primrias as normas
urbansticas municipais desde 1892, quando foi editada a primeira resoluo, at
1996. Na falta de bibliografia completa sobre a histria de Viosa, procurou-se,
atravs do levantamento destas normas em perodo anterior ao que se concentra este
estudo, reconstituir ou resgatar alguns cenrios perdidos ou ainda no desvendados
sobre o espao construdo da cidade de Viosa.
Alm desta pesquisa direta, foi realizada tambm uma pesquisa indireta,
recorrendo a mapas, material iconogrfico e depoimentos de diversas pessoas que,
de alguma maneira, participaram do processo de construo do espao urbano de
Viosa, para dirimir algumas dvidas surgidas e que no tinham registro histrico.
Recorreu-se tambm a alguns estudos e pesquisas realizados pelos diversos
departamentos da Universidade sobre a cidade.
No Departamento de Obras e Projetos da Prefeitura Municipal foi feito um
levantamento sobre licenas de construo, regularizaes de obras, habite-se e
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projetos de loteamento; e no SAAE Servio Autnomo de gua e Esgoto -
colheram-se informaes sobre ligaes de gua e deficincias de rede de gua e
esgoto dos diversos bairros da cidade.
Para definir o contexto estudado, baseou-se, principalmente, no perodo de
maior expanso urbana de Viosa (dcadas de 70 a 90), nas dcadas censitrias do
FIBGE Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, nos perodos de
vigncia de diversas normas urbansticas e nos perodos dos diversos governos
federal, estadual e municipal, segundo as diversas polticas econmicas e sociais.
De posse do material e das informaes coletadas, procurou-se sistematiz-
las e relacion-las com as referncias tericas utilizadas para propiciar suporte
terico a este trabalho. Estas referncias tericas, se por um lado sofreram
influncias das obras de Marx, uma vez que os autores referenciados foram os que
discutiram com mais propriedade os assuntos abordados nesta pesquisa, por outro,
cumpre observar que as suas idias no foram aqui tomadas como dogmas.
Dessa forma, dividiu-se este trabalho em quatro partes. Inicialmente, na
Introduo, foram elaboradas algumas consideraes iniciais a respeito da cidade no
contexto do sistema capitalista e sobre o processo de desigualdade social e espacial
a que esto submetidas em razo deste sistema. Discorreu-se tambm sobre o
objetivo deste trabalho, sobre o problema e a importncia de estud-lo e a
metodologia empregada para o seu desenvolvimento.
O primeiro captulo - A estruturao do uso e ocupao do solo: a caminho
da segregao socioespacial, foi dividido em duas partes. Na primeira parte -
Apropriao do espao - regime de apropriao territorial e desenvolvimento urbano
no Brasil: referncias histricas fundamentais - procurou-se buscar no perodo
colonial, recorrendo s sesmarias e Lei de Terras, a compreenso da estruturao
do uso e da ocupao das cidades brasileiras de modo geral e de Viosa em
particular e como foi se dando, atravs do tempo, a ocupao desigual do seu
territrio. Objetivou-se, ao incluir esta parte no trabalho, compreender como este
tipo de ocupao se agravou nas ltimas trs dcadas. Ou seja, as desigualdades
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19
socioespaciais encontradas na cidade atualmente no so uma construo recente,
mas fruto de uma poltica de ocupao do territrio nacional, no s em sua rea
urbana mas tambm rural, empreendida inicialmente pelos portugueses. Esta poltica
procurou privilegiar os segmentos sociais que tinham rendimentos financeiros
significativos, em detrimento de outros de menor poder aquisitivo. Na segunda parte
deste captulo, procurou-se compreender como os diferentes segmentos sociais se
localizam na cidade, desenvolvendo-se um estudo sobre a apropriao do espao da
cidade em funo da renda fundiria.
No captulo 2 estudado o Espao Poltico-Jurdico: Estado racional
moderno e a legislao urbanstica, tendo em vista que s se conseguiria elaborar
uma crtica normativa urbanstica a partir da compreenso do Estado que dita o
Direito e as legislaes urbansticas, que o Estado racional e moderno. Nas
manifestaes do Estado, expressas nas normas jurdicas, encontram-se
racionalidade, lgica e sentido da concretude que, a rigor, no prprio do campo
urbanstico. Pelo contrrio, as normas urbansticas so mais fragmentrias, pontuais
e com muitas possibilidades de se fazer uma interpretao mais flexvel. As normas
urbansticas, ao no formarem um todo homogneo, como o Cdigo Civil, permitem
uma interpretao mais flexvel, com base na eqidade, ou seja, para cada caso uma
deciso.
Ainda neste captulo discorre-se sobre a posse e sua funo social, a
propriedade e sua funo social e a funo social da cidade, uma vez que as
desigualdades socioespaciais esto referenciadas em um modelo de propriedade
adotado no Brasil com fortes traos absolutistas. E a eficcia ou no das legislaes
urbansticas est fortemente referenciada neste modelo de propriedade.
O captulo 3 - A configurao espacial de Viosa: a cidade construda e
construindo desigualdades - foi dividido em duas partes. Na primeira, discorreu-se
sobre a construo e transformao do espao urbano de Viosa desde a sua
formao inicial, no incio do sculo passado at a dcada de 60 deste sculo. O
objetivo desta primeira parte foi o de fornecer subsdios para uma melhor
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compreenso da formao do espao construdo de Viosa ps-dcada de 60.
Na segunda parte deste captulo descreve-se sobre a construo e transformao do
espao urbano de Viosa, em razo do papel do Estado expresso nas normas
urbansticas, desde a dcada de 70 at meados da dcada de 90.
Finalmente, com base no referencial terico, compreendido pelos captulos
1 e 2, procurou-se extrair algumas concluses a partir do relatado, consubstanciado
nas informaes levantadas no s diretamente em campo, mas tambm
indiretamente atravs de mapas, fotos, depoimentos, jornais, publicaes e estudos
cientficos. Incluram-se tambm alguns apndices, constitudos de mapas e quadros
informativos, com o objetivo de esclarecer e complementar este relato.
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CAPTULO 1
A ESTRUTURAO DO USO E OCUPAO DO SOLO URBAO: A CAMIHO DA SEGREGAO SOCIOESPACIAL
1.1. Apropriao do espao regime de apropriao territorial e desenvolvimento urbano no brasil: referncias histricas fundamentais
1.1.1. Consideraes gerais
O problema da apropriao e ocupao do territrio no Brasil tem sido
abordado a partir de diferentes perspectivas, geralmente em funo do interesse ou
da especialidade ou dos objetivos tericos e/ou polticos de diferentes investigadores
e analistas. Este tipo de abordagem especializada possui reconhecidas virtudes
metodolgicas.
Por outro lado, apesar das vantagens que os procedimentos especializados de
investigao apresentam, a verdade que, sem o enquadramento das anlises pela
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mediao de variveis que permitam a unificao das diferentes perspectivas ou
tendncias tericas, torna-se bastante problemtica a compreenso adequada do
processo de apropriao e ocupao dos espaos, quer sejam rurais ou urbanos.
Com essa observao preliminar, no inteno afirmar que a perspectiva
adotada neste trabalho seja melhor ou mais adequada que outras. Entretanto, supe-
se que, para alm da anlise especfica do processo de ocupao dos solos,
possvel e necessrio adotar um abordagem (aproach) que possibilite o
esclarecimento objetivo das diferentes interfaces deste processo de ocupao do
territrio e seus desvios e da consolidao desta determinada forma de
ocupao desigual, cujo delineamento ou configurao, em ltima anlise,
apresenta-se para considerao ao se tratar da questo urbana.
Colocando o problema sob esta perspectiva, pode-se afirmar que a
compreenso do espao urbano como se apresenta, para observao e anlise, o
arranjo da ocupao dos solos urbanos brasileiros, caracterizado por um
determinado tipo de segregao socioespacial, tem as suas origens e o seu perfil
delineados, historicamente, no mbito do processo mais amplo de ocupao do
territrio brasileiro, em geral, e das formas jurdicas e concretas que permearam esse
processo especfico de ocupao e destinao econmica dada ao territrio, no
Brasil, desde as suas origens coloniais.
JONES1, em seu estudo sobre a ocupao dos solos agrrios brasileiros,
coloca esse problema nos seguintes termos:
No Brasil, onde as terras so, originalmente, pblicas, a sua incorporao ao processo de produo social no prescindiu da transferncia do seu domnio para a iniciativa privada. Assim, uma dimenso relevante para a anlise da estrutura agrria brasileira refere-se institucionalizao do processo de reconhecimento e legitimao da propriedade territorial rural pelo Estado. Trata-se de um processo, de fato, de privatizao das terras pblicas: da transferncia, para a esfera privada, do domnio sobre um territrio que nasceu pblico.
1 JONES, Alberto da Silva. A poltica fundiria do regime militar - legitimao privilegiada e grilagem especializada (do instituto de sesmarias ao estatuto da terra). So Paulo: Universidade de So Paulo, 1997. 414 p. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 1997, p. 1. Grifos nossos.
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Essa maneira de colocar o problema abre uma nova perspectiva para a
abordagem da questo da propriedade territorial. A rigor, ela define com clareza e
objetividade o carter do processo de ocupao dos espaos territoriais, tanto
pblicos quanto, sobretudo, privados, oferecendo, dessa forma, um instrumental
especfico para a anlise desta problemtica. Trata-se de um processo, de fato, de
privatizao das terras pblicas.
Caberia, portanto, aos diferentes analistas, partindo desta situao jurdico-
real e objetiva, buscar a apreenso e interpretao de suas profundas e complexas
especificidades, as quais so produto do processo mais amplo e concreto da luta pela
terra no Brasil e das formas como o poder pblico ofereceu diferentes respostas, no
tempo, a esta luta. Portanto, o que importa tanto das condies efetivas de
sociabilidade quanto da sua dimenso jurdico-formal, isto , aquele referente s
diversas normas e procedimentos sejam jurdicos ou simplesmente
administrativos atravs dos quais o Estado, em ltima anlise, reconheceu e
legitimou, ou no, o processo de ocupao efetiva do territrio.
O mrito do estudo de Alberto Jones foi o de ter afirmado a hiptese de que o
processo de apropriao territorial no Brasil foi, efetivamente, um processo de
apropriao e legitimao privilegiada e, juridicamente, questionvel.
A perspectiva levantada por JONES2 possibilita formular a hiptese de que o
processo de uso e ocupao dos espaos urbanos fundamenta-se em um determinado
fenmeno de segregao socioespacial, cuja origem pode ser apreendida da anlise
do processo de ocupao econmica do espao: seja das terras agrrias ou urbanas.
Esse processo fundou-se na necessidade de consolidao poltica do domnio sobre
o espao colonial e nacional, por um lado, e, por outro, na concesso de privilgios.
A mediao desse duplo processo, pelas vias da institucionalizao engendrou, na
prtica, tanto a desorganizao da ocupao dos espaos quanto a do ordenamento
jurdico e administrativo que deveria oferecer coerncia e legitimidade ao processo.
Ou seja, no basta apenas afirmar o fato objetivo do privilgio e da ilegitimidade
que acompanharam, historicamente, os processos de ocupao e privatizao dos
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espaos urbanos e rurais do territrio brasileiro e que tiveram como conseqncia uma
ocupao desigual e problemtica. necessrio identificar e interpretar os nexos que se
encontram nas suas origens e as implicaes deste processo.
No caso deste estudo, limitar-se- a uma dimenso especfica desta
problemtica, que se refere ao mbito do espao urbano e, particularmente, cidade
de Viosa, reduzindo, inclusive, a abrangncia das anlises ao problema urbano-
espacial.
Entretanto, exatamente em face da especificidade do problema em estudo,
torna-se fundamental o seu enquadramento a partir de uma perspectiva mais ampla,
sem a qual poder-se-ia dar a falsa impresso de que Viosa seria um caso parte,
quando, na verdade, os problemas experimentados por esta cidade, embora
apresentando suas especificidades, so comuns a outras cidades brasileiras.
Portanto, a interpretao contempornea desses problemas tem,
necessariamente, que levar em considerao o carter do processo de privatizao
territorial, suas especificidades e caractersticas, tais como foram construdas no
tempo. Isso obriga a uma breve recapitulao das diferentes formas assumidas,
historicamente, pelo processo de construo das condies de sociabilidade e do seu
reconhecimento formal, jurdico, pelo Estado Portugus, no perodo Colonial, e
Nacional, aps a Independncia.
Segundo MEIRELLES3,
No Brasil, todas as terras foram originalmente pblicas, por pertencerem nao portuguesa, por direito de conquista. Depois passaram ao Imprio e Repblica, sempre como domnio do Estado. A transferncia das terras pblicas para os particulares se deu paulatinamente, por meio de concesses de sesmarias e de datas (instituto sesmarial), compra e venda, permuta e legitimao de posses (Lei 601). Da a regra de que toda terra sem ttulo de propriedade particular de domnio pblico.
Colocado o problema nestes termos, torna-se necessria, uma sistemtica,
ainda que breve, referncia ao processo de constituio da propriedade privada
territorial brasileira, que torne possvel a anlise fundamentada da problemtica da
2 Ibid. , p.1. 3 MEIRELLES, Hely Lopes, 1971, p. 447. (Apud. JONES, Alberto da Silva, op. cit., 1997, p.1.)
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ocupao dos espaos urbanos e de suas distores e implicaes.
Nesse sentido, importante ressalvar, no estudo da configurao do espao
(seja rural ou urbano) as esferas pblica e privada, embora, formalmente,
passveis de separao para fins de anlise, apresentem-se inevitavelmente
correlacionadas: seja no sentido da clara delimitao e separao entre a
propriedade privada territorial e os bens pblicos, seja no que se refere aos diversos
processos de constituio e, sobretudo, de valorizao daquela, pela implementao
de projetos de desenvolvimento pelo poder pblico. Este fato leva, necessariamente,
considerao das relaes entre os espaos pblicos (servides, ruas, praas etc.)
e os apropriados privadamente. Este fenmeno incorpora ou repe, no mesmo
contexto analtico, as relaes entre as propriedades imobilirias pblicas, de uso
privativo do Estado, e as de domnio privado, conjunto este impossvel de se
desvincular, especialmente em um estudo que busca compreender a problemtica
urbanstica ou da ocupao espacial e econmica das cidades.
Adjacentes, mas no menos importantes que essas situaes, esto os espaos
sejam eles pblicos ou privados que permanecem ou se encontram
abandonados. Na linguagem do Direito Portugus antigo (em muitos aspectos
transladada para o Ordenamento Jurdico Brasileiro) trata-se dos terrenos maninhos
e dos pardieiros4, que, apesar disso ou exatamente por isso encontram-se na
situao de serem ocupados ou apropriados, seja de forma ilegtima ou extra-
legal, por diferentes agentes sociais, sobretudo os situados nos extremos das
camadas sociais (os excludos, quando se trata de reas perifricas, favelizadas etc.;
e os especuladores imobilirios, ou pessoas fsicas ou jurdicas privilegiadas pelo
status ou pela posio econmica, quando se constituem condomnios de luxo,
urbanos ou prximos a estes, em reas bem dotadas de paisagem natural, infra-
estrutura etc.). Esse fenmeno vem agravar, ainda mais, as desigualdades sociais
4 Terrenos maninhos, isto , abandonados, inexplorados, e pardieiros terrenos urbanos ou habitaes em runas ou abandonadas. Referiam-se a imveis urbanos ou rurais no aproveitveis ou no aproveitados (para o cultivo ou residncia). Propriedades incultas, estreis e inaproveitadas; que no tinham dono ou que eram de logradouro pblico, de uso comum. No Direito Portugus, referiam-se, ainda, aos bens de morto que no deixara filhos ou herdeiros.
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que se manifestam na ocupao diferencial dos espaos, em particular os urbanos.
Trata-se do fenmeno da segregao socioespacial.
Para encerrar essas consideraes preliminares acerca do problema de
pesquisa, importante registrar o pressuposto fundamental da hiptese apresentada
neste trabalho, que ser fundamentado nas idias desenvolvidas, entre outros, por
Hely Lopes Meirelles, Ruy Cirne Lima e Alberto Jones, para o tratamento da
problemtica da propriedade territorial no Brasil. Neste sentido, segundo a hiptese
geral aqui apresentada, a segregao socioespacial, passvel de ser observada nas
cidades brasileiras atuais e que tende a agravar-se com o desenvolvimento
econmico do Pas tem a sua origem nos processos de concesso, apropriao e
legitimao privilegiadas e, juridicamente, questionveis, que vm caracterizando a
privatizao dos espaos territoriais brasileiros, sejam eles rurais ou urbanos, desde
as suas origens, no perodo colonial.
A materializao desses privilgios ilegtimos, frisados por JONES5 para a
propriedade rural, ocorre, no meio urbano, segundo hiptese especfica, atravs da
excludncia, especialmente em relao aos equipamentos urbanos implicando,
portanto, a valorizao das propriedades e dos imveis particulares. Esta situao d
s cidades brasileiras, inclusive Viosa, a forma especfica de um espao de
distribuio excludente, no qual as iniciativas pblicas de construo e, sobretudo,
de valorizao dos espaos, fundamentam-se, da mesma forma que se verificou no
meio rural, no privilgio e no favorecimento pessoal e de grupos econmicos
particulares.
A elaborao de planos econmicos de desenvolvimento ou de planos
diretores quando estes existem acaba, neste sentido, por configurar ou
assegurar privilgios, por um lado, e, inversamente, implicar o agravamento do
abandono das populaes pobres sua prpria sorte, as quais, por esta razo,
passam a ocupar clandestinamente as reas perifricas e ainda no
demandadas pelo desenvolvimento econmico ou pelo crescimento das cidades,
dando origem aos bairros pobres: favelas, palafitas, mucambos etc. Este fenmeno
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est na base da especulao imobiliria e da misria e marginalidade nas cidades,
em particular nas mais populosas.
Esse desenvolvimento urbano desigual (e combinado) pode ser interpretado
como um produto histrico especfico, caracterstico de um processo de
desenvolvimento econmico e social contraditrio, fundado, por um lado, no favor e
no privilgio das concesses, tpicos de uma sociedade patrimonial, associado a uma
espcie particular de patronagem poltica, que vem se consolidando desde o perodo
colonial. Por outro lado, esse mesmo fenmeno reproduz-se, de forma ainda mais
problemtica, no mbito da sociedade burguesa em formao ou pretendida6, cujas
regras de conduta poltica e econmica, supostamente de fundo liberal,
permaneceram (e ainda permanecem), em grande medida, subsumidas pelas
interferncias polticas de feio oligrquica e patrimonialista, em suma autoritria.
Esse fenmeno urbano particular tem como resultado visvel, nas cidades
brasileiras, inclusive Viosa, a presena promscua, na ocupao dos espaos, de
reas amplamente modernizadas do ponto de vista dos equipamentos urbanos,
ladeadas por espaos marginais, caracterizados pelo abandono, pela favelizao e
pela ausncia, quase completa, das mnimas condies de urbanizao e conforto.
Enfim, vislumbra-se um quadro em que a opulncia coexiste com a mais
profunda misria. Desenvolver algumas hipteses que possibilitem a compreenso
objetiva deste quadro real e contraditrio a tarefa perseguida neste estudo.
5 JONES, Alberto da Silva. op. cit., 1997, p. 1. 6 JONES, Alberto da Silva., op. cit., 1997, p. 25.
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1.1.2. Das Sesmarias Lei de Terras de 1850
JONES7 destaca duas situaes objetivas que se encontram na gnese do
processo de ocupao territorial do Brasil e que marcam profundamente todo o
ulterior processo de seu desenvolvimento. A primeira refere-se ao fato, alis,
destacado pela maioria dos estudiosos do problema, de que
ao ser descoberto o Brasil e integrado ao patrimnio do Estado Portugus, por direito de conquista, ficava implcita a transformao de todo o seu territrio em propriedade colonial do Reino de Portugal, passando a constituir-se em uma espcie particular de propriedade estatal, pblica. Isso significava, igualmente, que a partir desse ato formal de tomada de posse um ato no apenas jurdico e poltico, mas sobretudo econmico deixou de existir, no Brasil, terra adspota, sem dono. Todas as terras passaram, desde ento, condio de domnio da Coroa Portuguesa.
A segunda condio objetiva, realada por aquele autor8, refere-se ao fato de
que a sujeio referida significava que, a partir de ento,
o acesso e a explorao (produtiva ou no) das terras coloniais passava, necessariamente, a ser mediados pelo consentimento do Governo de Portugal. Tratava-se, portanto, de um processo de privatizao, de transferncia de direitos, fosse de uso ou, em alguns casos, do prprio domnio, sobre as terras coloniais. Porque Portugal ao deter, juridicamente, a propriedade da colnia, detinha ipso facto , o direito de autorizar ou impedir o acesso ou a explorao das terras coloniais, que eram do seu domnio
Nesse contexto, ainda segundo JONES9, a Coroa portuguesa, para explorar as
terras da Colnia, o que significava torn-las produtivas, e, assim, poder auferir,
concretamente, os
frutos da propriedade colonial, teria de submeter-se s condies objetivas das conjunturas polticas e econmicas, tanto internas ao reino, quanto, sobretudo, internacionais. Estas condies situavam-se para alm da vontade do Estado Portugus e no dependiam da sua condio de proprietrio formal da Colnia. nesta conjuntura objetiva que o Estado Portugus se ver obrigado a implementar um determinado e especfico processo de ocupao e explorao da Colnia, ao integr-la ao seu patrimnio. Portanto, a colonizao do Brasil e as formas jurdicas e administrativas concretas, implementadas pelo Estado (...) para assegurar o seu domnio e a explorao sobre a colnia, exigiro de Portugal um determinado e especfico processo de colonizao. Este processo
7 JONES, Alberto da Silva. op. cit., 1997, p. 25. 8 JONES, Alberto da Silva. op. cit., 1997, p.25. 9 JONES, Alberto da Silva. op. cit., 1997, p.25.
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fundado no consentimento, ainda que oneroso, possibilitando a determinadas camadas da populao portuguesa empreender (...) o povoamento e a explorao da Colnia.
nessa conjuntura que, no perodo colonial, o sistema adotado para
ocupao e consolidao do territrio brasileiro fundou-se na aplicao do antigo
instituto das sesmarias, regime este j implantado em Portugal, aps a poca da
Reconquista10, pela Carta Rgia11 de 1375, no reinado de D. Fernando I, o
Formoso. Este instituto, implementado no Reino, tinha o objetivo de tentar impedir
no apenas que as terras daquele pas continuassem incultas em perodo de fome e
misria12, mas de criar ou fortalecer o estamento de proprietrios leais ao rei, na
medida em que recebiam a concesso de terras gratuitamente e de acordo com a sua
vontade13.
No Brasil, dada a conjuntura especfica de sua condio colonial em plena
poca de florescimento do mercantilismo, a implementao do instituto sesmarial
sofrer transformaes ainda mais importantes do que em Portugal. JONES14,
apoiando-se nos argumentos de Roberto Simonsen, Caio Prado Jnior e Alberto
Passos Guimares, entre outros, registra, com propriedade, que, diante da
necessidade de assegurar as condies de reproduo econmico-social da Colnia e
na impossibilidade de a Coroa Portuguesa poder assegurar os recursos necessrios
ao processo de ocupao e defesa efetiva do territrio colonial, ela obrigada a
aceitar determinado nvel de desvirtuamento do instituto sesmarial, especialmente
no que se referia exigncia de explorao da totalidade da terra concedida.
Essa tolerncia, segundo aquele autor, no se devia simples extenso
territorial do Brasil, nem, muito menos, pode ser interpretada como significando o
renascimento de antigas instituies medievais ou feudais, mas s exigncias
10 Ver a respeito dessa conjuntura: RAU, Virgnia (1982); CIRNE LIMA, Ruy (1954); SIMONSEN, Roberto (1978); FAORO, Raymundo (1996) e JONES, Alberto da Silva (1997), entre outros. 11 O instituto sesmarial, regulamentado pela Carta Rgia de 1375, sofreu, no desenvolvimento da economia mercantil portuguesa, inmeros ajustes e modificaes, ainda em Portugal, os quais foram sucessivamente consolidados nas Ordenaes do Reino: as Afonsinas, de 1446; as Manuelinas, de 1511, 1512 e 1521; e as Filipinas, de 1603. 12 FRIDMAN, Fnia, RAMOS, Carlos Alexandre Fiaux. A histria da propriedade da terra no Brasil. Cadernos IPPUR/UFRJ. Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 1991, p. 63. 13 MARICATO, Ermnia. Metrpole na Periferia do Capitalismo. So Paulo: Hucitec, 1996, p.35. 14 JONES, Alberto da Silva. op. cit., 1997, p.25.
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concretas, resultantes das condies histricas objetivas da situao colonial em
suas mediaes com o mercado exterior. neste contexto que Portugal v-se
obrigado a proceder a imensas concesses territoriais, que, nas precrias condies
de desenvolvimento das foras produtivas sociais da poca, eram fundamentais para
a implementao de um processo de produo em larga escala, destinado ao
mercado exterior, fundado na explorao extensiva das plantations. Por outro lado,
essas mesmas dificuldades implicaram a necessidade do suprimento de fora de
trabalho pela via da escravido.
A gesto de todo esse processo e, em particular, a administrao da colnia,
nestas condies, deram origem s especificidades do modelo de reproduo
colonial, cujas caractersticas particulares so produto das condies econmicas e
polticas da poca, no se tratando, portanto, de reinvenes de antigas instituies
medievais europias, por mais que as aparncias possam criar essa impresso.
Segundo JONES15:
(...) nas condies objetivas da poca, implicaram a necessidade da concesso de determinados privilgios, em troca da garantia do domnio colonial. Disto derivam os amplos poderes consentidos pelo Estado Portugus aos primeiros colonizadores, na verdade, autnticos delegados polticos do Rei. Por outro lado, estes concessionrios, ao receberem, em certo sentido, a transferncia do direito de explorao da terra, estavam, da mesma forma, sujeitos s condies objetivas, impostas pela situao da Colnia. Isto significa que, para poderem exercer este direito de explorao - uso -, necessariamente teriam que promover e prover os meios, antes de tudo, econmicos, capazes de assegur-lo. Isto significava que deveriam, estes concessionrios, reproduzir o mesmo modelo de realizao da propriedade recebida, promovendo a concesso de sesmarias para pessoas que pudessem diretamente explorar a terra e promover a defesa e ocupao da Colnia. Desta forma era assegurada a reproduo da totalidade do sistema.
Nesse sentido, ainda segundo aquele autor, tambm o direito de
propriedade, na Colnia, no pode ser interpretado como uma simples extenso do
Direito Portugus; ao contrrio, era o resultado da interao entre este ltimo e a
realidade efetiva da colnia e do jogo de interesses internacionais, mediados pela
lgica especfica do mercantilismo. Exatamente a interao desse conjunto de
variveis, jurdicas, polticas e, sobretudo, econmicas, com as respectivas
15 JONES, Alberto da Silva. op. cit., 1997, p.26.
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mediaes das condies de sociabilidade que permite compreender a aceitao,
por parte da Coroa Portuguesa, do desvirtuamento, na implementao prtica, do
instituto sesmarial.
Finalmente, esses fatos esto na origem dos resultados diversos da aplicao
do referido instituto em Portugal e na Colnia: l, promovendo, em geral, a
formao de pequenas quintas produtivas; e, no Brasil, propiciando o latifndio
extensivo e escravista, em grande parte subexplorado, ou incorporando grandes
reas inexploradas, consideradas como reserva de terra para expanso da produo
de incorporao de novas fronteiras. JONES16 resume sua posio a este respeito
nos seguintes termos:
nesta conjuntura que o instituto das sesmarias ser implementado no Brasil, adquirindo as especificidades que efetivamente o caracterizaram aqui, e que se distanciaram, em muitos sentidos, da forma e atributos que possua, primitivamente, no Reino. Se na Metrpole este sistema de colonizao implicou a formao de pequenas propriedades produtivas e, aqui, o contrrio, isto deveu-se certamente s condies coloniais. E no apenas, nem fundamentalmente, ao fato de que na Colnia existiam terras abundantes - embora este fato fosse relevante. Tambm porque, a produtividade do trabalho, sobretudo em face das dificuldades de incorporao de meios tcnicos, implicava a explorao extensiva da terra, para tornar possvel a produo na quantidade e volume necessrios sua realizao no mercado mundial, sem o que no seria possvel a reproduo do sistema. Esta mesma espcie de limitao concreta, no que se refere possibilidade de consecuo de fora-de-trabalho local ou oriunda da Metrpole, implicaria no imperativo da importao de escravos africanos. Dessas limitaes impostas explorao da Colnia, derivam-se a formao de grandes plantaes e a explorao da mo-de-obra escrava.
Essa mesma lgica ser reproduzida nos centros mais povoados da Colnia,
nas vilas, constituindo-se na fonte originria do fenmeno da especulao
imobiliria urbana e da segregao socioespacial que se prolongar no Pas,
assumindo evidentemente novas formas, conforme as novas conjunturas geradas
pelo desenvolvimento econmico, at os dias atuais17.
As sesmarias tinham o seu direito fundado em contratos enfituticos, ou
seja, que asseguravam o direito real de uso alienvel e transmissvel por herana.
Isto conferia ao enfiteuta concessionrio o pleno usufruto do imvel, porm sujeito
16 JONES, Alberto da Silva. op. cit., 1997, p. 26.
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a condies resolutivas claramente estabelecidas na Carta de Concesso: o dever de
medi-lo, demarc-lo e explor-lo efetivamente; de no deterior-lo e de pagar
determinado foro anual, sobre os frutos da terra, Ordem de Cristo18.
Entretanto, cabe realar, como frisa JONES, que apenas era concedido o
direito real de uso, no a propriedade da terra, sobretudo se se tomar este conceito
em seu sentido jurdico moderno, de propriedade absoluta e burguesa. Por esta
mesma razo, o fato de a concesso ser hereditria em nada modifica o seu carter
jurdico: os herdeiros herdavam o mesmo direito real de uso, no a propriedade da
terra, posto que esta permanecia domnio eminente da coroa. O mesmo acontecia no
caso de alienao: alienava-se o direito real de uso, no a propriedade da terra.
Nessa conjuntura, portanto, o sistema sesmarial, no Brasil, com os
desvirtuamentos indicados anteriormente, sofreu ainda muitas outras transformaes
e ajustamentos, tanto em nvel formal quanto, sobretudo, concreto, que acabaro por
dar margem formao de uma estrutura fundiria e de direito territorial
profundamente catica e problemtica.
Em Portugal as sesmarias possuam dimenses tais que eram consideradas
como minifndios e tinham a finalidade especfica de produzir os meios materiais
de abastecimento do mercado interno, sobretudo alimentar; alm de, em cada
comarca, existirem sesmeiros que tinham o dever de coibir abusos e desvios na
implementao do instituto das concesses e seu uso. J no Brasil, despovoado,
marcado por longas distncias etc., essas funes administrativas do sistema
ficavam efetivamente prejudicadas. Tudo conspirava para o desrespeito, na prtica,
s normas estabelecidas, sobretudo em funo do fato de que o objetivo primordial
de Portugal era, no Brasil, o de assegurar o seu domnio poltico contra pretenses
estrangeiras. A este objetivo secundavam-se todos os demais.
17 A este respeito, ver BALDEZ (1986:1-21). 18 A Ordem de Cristo, de acordo com FRIDMAN, RAMOS (1991:72), era uma instituio privada, de origem militar-religiosa, administrada por um gro-mestre vitalcio, que era o prprio rei de Portugal, eleito pelos freires; criada em 1494, teve origem na Ordem dos Templrios, da Frana, e na Sociedade de Jesus, da Espanha; permaneceu independente da Coroa Portuguesa at 1520, mas, aps esse perodo, teve seus bens patrimoniais confundidos com os da prpria Coroa. Foi a Ordem de Cristo que financiou a viagem de Cabral ao Brasil.
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Nesse sentido, a ocupao produtiva da terra apresentava-se como um
problema de necessidade histrica de manter as condies de reproduo econmica
do sistema. Era, portanto, uma condio necessria para assegurar os custos da
hegemonia: esta permanecia o objetivo primeiro do processo. No se est afirmando
com essa argumentao que os tributos e a explorao coloniais fossem de somenos
importncia para a coroa portuguesa, e sim que, para assegurar e viabilizar esse
objetivo permanente, era necessrio, antes, assegurar a propriedade colonial, ou seja,
o domnio poltico de Portugal sobre as terras coloniais19.
Outro fato gerador de conflito associado implementao do processo de
distribuio de sesmarias, no Brasil, diz respeito impreciso na definio das
normas que regulavam, em particular, a dimenso das concesses, o que dificultava
a interpretao e, sobretudo, a implementao do processo em nvel do real.
Em Portugal, devido s pequenas dimenses de seu territrio e pelo fato de
possuir uma populao bem superior do Brasil, acontecia o binmio pouca terra e
muita gente, o que gerava conflitos no processo de distribuio de terras, uma vez
que a relao entre a oferta e a demanda no era equilibrada. Com esta situao,
quando havia terras a serem repartidas, surgiam muitos pretendentes disputando
acirradamente cada lote, imputando aos sesmeiros ateno especial no
fracionamento e na sua repartio.
No Brasil, a situao era diversa: terras imensurveis e quase ningum para
explor-las, o que propiciava especialmente se levar em considerao os fatos
registrados acima e que o objetivo maior de Portugal era assegurar o seu domnio
sobre a colnia as condies favorveis para formao de latifndios. PORTO20
cita o registro do Procurador de Domingos Jorge Velho, que discorria sobre
pendncia na regio dos Palmares:
davam-se mais terras do que se tm descoberto, porque os homens as pedem com largueza e, como esto incultas e inabitadas, se do com liberalidade e os donatrios no cumprem a condio de se povoarem nos termos da lei.
19 Estes argumentos esto fundamentados nos estudos de JONES (1997). 20 PORTO, Jos da Costa. Formao territorial do Brasil. Braslia: Ministrio da Justia/Fundao Petrnio Portella, 1982, p. 43
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De fato, nos dois primeiros sculos da colonizao, distribuam-se terras
com largueza, visto que, muitas vezes, o pretendente pleiteava a concesso de
reas desdobradas 5, 10, 20 lguas, ora simples, ora quadradas, e, sobrando solo,
as autoridades no regateavam, concediam de uma s vez reas de grandes
dimenses. Isto acorreu em 1671, quando Souza Coutinho, governador de
Pernambuco, doou a trs moradores de Olinda uma sesmaria de vinte lguas
quadradas ou quatrocentas lguas simples, correspondendo s dimenses de
latifndio.
Outra situao comum era o recebimento de vrias datas sucessivas pelo
requerente, apesar do impedimento legal, no s para a sua utilizao, como tambm
para esposa e filhos, com o objetivo de aumentar o patrimnio fundirio; em
algumas oportunidades, estas datas eram adquiridas de vizinhos com o mesmo
objetivo.
Alm de no ocorrer uma distribuio de sesmarias de dimenses pelo
menos semelhantes entre elas e de acordo com as possibilidades econmicas do
requerente, um outro fator contribuiu para que esse sistema se caracterizasse como
regressivo: a posio social dos pretendentes, que consistia da pequena nobreza,
onde se destacavam mestres do acar, oleiros, soldados (Cavaleiros da Casa d`El
Rey) e outros homens honrados, muitos de sobrenome de S; daqueles que
queriam ingressar na vida religiosa e necessitavam de patrimnio; e de alguns
estrangeiros, africanos e castelhanos21, no estando includos a, portanto, os
escravos, ex-escravos e, principalmente, os ndios, que eram os proprietrios de
direito dessas terras.
A implantao do sistema sesmarial em povoados, vilas e cidades pouco ou
nada diferia daquele do campo. Nesses casos, de acordo com FRIDMAN e
RAMOS22, as sesmarias eram distribudas para chos para casa, em sua maioria
nos primeiros anos de fundao das vilas e sob as condies de o requerente residir
no povoado, no alienar seu domnio til nos primeiros trs anos e pagar o dzimo
21 FRIDMAN, Fnia, RAMOS, Carlos Alexandre Fiaux. op. cit., 1991, p. 65.
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Ordem de Cristo. As cartas de doao de sesmarias exigiam que as terras fossem
medidas atravs da braa craveira: duas varas de medir por uma, como no Reino
se costuma medir.
Originariamente, em Portugal, sesmeiro era o termo que denominava as
autoridades encarregadas, pelo Estado, de proceder ao processo de distribuio e
fiscalizao do cumprimento das condies resolutivas no que se referia ocupao
e ao aproveitamento das terras. Porm, pouco a pouco, este conceito foi se alterando
no Brasil colonial e passou-se a designar sesmeiro no mais o repartidor, mas o
beneficirio das terras. De uso popular, o termo acabou por ser aceito oficialmente,
figurando, provavelmente, pela primeira vez, na Carta Rgia de 28 de setembro de
1612, que objetivava regularizar as terras no Rio Grande do Norte, restringindo suas
dimenses23.
Pelo fato de as sesmarias serem de regime hereditrio, ocorreram vrios
casos de uma grande concesso (latifndio) ser ulteriormente subdividida em
parcelas menores, tendo em vista a sua transferncia ou alienao, tanto em vida
como pos mortem, para seus herdeiros (mulher e filhos), sendo, assim, fracionado o
imvel. mulher cabia 50% e aos filhos os outros 50%. Acontecia, tambm, o
movimento contrrio, ou seja, a agregao de pequenas ou mdias concesses, com
a formao de latifndios pela incorporao de novas terras, em particular terras
pblicas ainda no concedidas por recurso ilegtimo das grandes posses, que
passavam a integrar antigas concesses.
Apesar de no constar expressamente no texto das cartas de doao e nos
respectivos forais das capitanias que o aproveitamento das sesmarias era por tempo
determinado, esta exigncia estava, entretanto, explcita nas Ordenaes do Reino,
ao estabelecer:
22 De acordo com FRIDMAN, RAMOS (1991:64-65), a formao do povoado era espontnea; a vila era criada por ato donatrio; e a cidade era fundada por ato real ou papal. 23 PORTO, Jos da Costa. op. cit., 1982, p. 56.
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em qualquer caso que os sesmeiros dem sesmarias, assinem sempre tempo aos que as derem, ao mais de cinco anos e da para baixo, que as lavrem e aproveitem. E se as pessoas (...) as no aproveitarem (...) os sesmeiros (...) dem as terras (...) a outros que as aproveitem24.
Analisando a problemtica da relao entre a formulao jurdico-formal
das normas e as condies concretas de sociabilidade, especialmente caracterizada
pelo fato da manuteno, no texto legal, de determinadas exigncias ou prescries
que, em nvel concreto, aparente ou efetivamente, no so implementadas como
foi o caso evidente do instituto sesmarial no Brasil, JONES25 argumenta que
Portugal, ao manter nas normas que regulavam o instituto sesmarial as clusulas
resolutivas e tolerar, na prtica, seu desvirtuamento, na verdade agia
politicamente,
no sentido de que a exigncia legalmente assegurada, portanto se constituindo em condio sine qua non legalizao das possveis ocupaes territoriais que, de fato, isto , margem das normas reguladoras do acesso propriedade, nunca deixaram de ocorrer. Entretanto, ao serem formalmente, isto , legalmente, mantidas as normas reguladoras do acesso e legitimao das terras, de fato, era criada uma situao, na qual, as apropriaes que no se ajustassem a essa exigncia, tambm apenas aparentemente se constituam em verdadeiras propriedades, posto que dependiam sempre de confirmao, isto , reconhecimento, por parte do Estado. Isso fazia com que todo o processo retornasse aos termos do instituto de sesmarias, portanto podendo, nestes casos, fazer valer as exigncias formais, e implicar, assim, o confisco da terra e, mais que isso, at a priso, dependendo da conjuntura e do status do ocupante ou posseiro. Portanto, esse formalismo jurdico em sua contradio com o fato concreto das ocupaes era uma carta forte na manga do Estado Colonial, sobretudo porque, mesmo as concesses legalmente feitas, no asseguravam a absolutizao da propriedade. Tratava-se de um duplo artificio legal a impedir a efetivao do processo de apropriao. Esta caracterstica do instituto jurdico da sesmaria d razo a Faoro ao defender a tese de que, em Portugal, a propriedade territorial, nos termos do instituto da sesmaria, bloqueia o enfeudamento; e a Roberto Smith ao referir-se ao fato de que a propriedade territorial, neste contexto, tanto em Portugal como no Brasil, no se absolutiza: isto , que embora no sendo feudal, tambm, no assume o carter absoluto, mercantil, da propriedade burguesa.
conveniente frisar esta questo do tempo determinado de aproveitamento
das sesmarias, porque em Portugal havia a necessidade de produzir alimentos, sob o
risco de desabastecimento, e, no Brasil, como j foi dito, no havia mercado
consumidor a atender. Os objetivos perseguidos pela coroa portuguesa eram de
24 PORTO, Jos da Costa. op. cit., 1982, p. 51. 25 JONES, Alberto da Silva, op. cit., 1997, p.64 (nota 9).
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assegurar a hegemonia sobre o territrio colonial, o que deveria ser realizado, pela
tica do Estado portugus, atravs do povoamento do territrio e da estruturao das
condies materiais para defend-lo e preserv-lo. Tudo isso implicava a
necessidade histrica de desenvolvimento de um processo produtivo e auto-
sustentvel, o que apenas poderia ser conseguido pela produo em larga escala para
o mercado exterior em franca expanso mercantilista. Essa conjuntura explica a
tolerncia do Estado Portugus em face da deteriorao das clusulas resolutivas
contidas nas cartas de doao, no Brasil. Entretanto, as exigncias permanecem e,
como ser visto, sero retomadas com todo o vigor pela Lei 601 de 1850.
Alis, tem-se a impresso, quando da leitura de uma carta de sesmaria, que
este documento de concesso das datas era incondicional, isto , recebendo a terra o
sesmeiro poderia lograr a terra e fazer dela e em ela o que bem lhe convier, como
cousa sua prpria que j ; mas, na realidade, a doao ficava subordinada a
condies umas suspensivas e outras resolutivas. Um exemplo de condio
resolutiva diz respeito ao inadimplemento da data; neste caso, o beneficirio perdia
o direito sobre a terra, que voltava Coroa como terra devoluta26.
De 1534, quando houve a sua implantao na Colnia, at mais ou menos
1580, quando Portugal passa ao domnio espanhol, o sistema de sesmarias se
desenvolveu dentro da rotina fixada nas cartas de doao e forais na forma e nas
condies determinadas nas Ordenaes, exceo feita em 1548, quando, atravs do
Regimento dos Provedores, a Coroa estabelece que
os ditos Provedores, cada um em sua Provedoria, faro fazer livro (...) em que se registraro todas as cartas de sesmaria de terras e guas que os capites tiverem ora dadas e ao diante derem, e as pessoas (...) sero obrigadas a registrar as ditas cartas (...) num ano, e, no a registrando (...) as perdero.
Este registro tinha o objetivo de no superpor doaes e, principalmente, de
facilitar a cobrana do dzimo, j que o provedor teria uma lista com os nomes dos
sesmeiros27.
26 Com o passar dos anos, esta expresso se popularizou, considerando-se como devoluta toda terra no aproveitada, no ocupada, no trabalhada, no aplicada a algum uso pblico ou particular. 27 PORTO, Jos da Costa. op. cit., 1982, p. 63.
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Porm, a partir do final do sculo XVI e incio do XVII, durante o perodo de
domnio espanhol, mudanas profundas comearam a acorrer. A Espanha
empreendeu um processo de sucateamento e explorao no s de Portugal, como
tambm de suas colnias, inclusive o Brasil. Alm disso, em 1590, contrabandistas
franceses aportaram na faixa do Rio Grande do Norte, com o apoio da populao
local, prejudicando o processo de explorao espanhol.
A Espanha, ao ver parte de suas finanas sendo ameaada, adotou medidas
para expulsar os franceses e entregou a administrao daquela Capitania a Jernimo
de Albuquerque, que se aproveitou de sua posio para contemplar parentes com
doaes excessivas de glebas. A Espanha respondeu a essas ameaas com a Carta
Rgia, de 28 de setembro de 1612, que, apesar de ter objetivo apenas local, expressa
o pensamento daquela Metrpole sobre a questo do no-cumprimento, por parte
dos sesmeiros, do que determinava as cartas de doa
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