direitos fundamentais: uma tomada da posição dos direitos sociais … · 2017-06-21 · resumo...
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RODRIGO VITORINO SOUZA ALVES
DIREITOS FUNDAMENTAIS:
Uma tomada da posição dos direitos sociais no
sistema constitucional
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação -
Mestrado Acadêmico em Direito Público da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Uberlândia, para
obtenção do título de Mestre em Direito.
Área de Concentração: Direitos e Garantias Fundamentais.
Orientador: Professor Doutor Alexandre Walmott Borges.
Uberlândia
2011
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.
A474d
Alves, Rodrigo Vitorino Souza, 1985-
Direitos fundamentais [manuscrito] : uma tomada de posição dos
direitos sociais no sistema constitucional / Rodrigo Vitorino Souza Alves. -
Uberlândia, 2011.
196 f.
Orientador: Alexandre Walmott Borges.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em Direito.
Inclui bibliografia.
1. Direitos fundamentais - Teses. 2. Direitos sociais - Brasil - Teses. 3.
Direito constitucional - Brasil - Teses. I. Borges, Alexandre Walmott. II.
Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em
Direito. III. Título.
CDU: 342.72/.73
FOLHA DE APROVAÇÃO
Direitos Fundamentais: uma tomada da posição dos direitos sociais no
sistema constitucional.
Rodrigo Vitorino Souza Alves
Dissertação submetida à Banca Examinadora como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito. Aprovada em 08 de junho de
2011.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Orientador – Prof. Dr. Alexandre Walmott Borges – UFU/Uberlândia
_________________________________________________________
Membro – Prof. Dr. Altamirando Pereira da Rocha – UFU/Uberlândia
__________________________________________________________
Membro – Prof. Dr. Júlio César de Oliveira – UNIUBE/Uberlândia
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a realização
da pesquisa e elaboração deste trabalho, em especial:
Aos colegas e professores do Programa de Mestrado em Direito
Público da Universidade Federal de Uberlândia, pela amizade
desenvolvida durante os estudos e por todos os conhecimentos
transmitidos.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais –
FAPEMIG, pela concessão de bolsa de estudos durante parte dos estudos.
Ao Professor Doutor Alexandre Walmott Borges, pela orientação
científica, por sua confiança e amizade.
À esposa Paloma, aos meus pais e irmão, pelo amor, paciência,
compreensão, e pelo imprescindível estímulo para a realização dos estudos.
A Deus, por tudo.
RESUMO
ALVES, R.V.S. Direitos Fundamentais: uma tomada da posição dos
direitos sociais no sistema constitucional.
Com o presente trabalho pretende-se examinar os direitos fundamentais e a
forma de sua consagração na Constituição brasileira de 1988, com ênfase
no problema dos direitos sociais, buscando-se esclarecer quais são os
parâmetros para a proteção judicial dos direitos sociais a prestações. Para
tanto, a dissertação encontra-se estruturada em três capítulos, partindo de
considerações abrangentes sobre os direitos fundamentais para um estudo
específico dos direitos sociais. Apresenta-se o perfil histórico dos direitos
fundamentais no primeiro capítulo, indicando suas principais fontes e
descrevendo como foi seu desenvolvimento. No segundo capítulo, são
estudados importantes aspectos dos direitos fundamentais, relacionados ao
conceito e à classificação desses direitos, bem como à estrutura e à eficácia
das normas que os definem. Explora-se, no terceiro capítulo,
especificamente os direitos sociais, apreciando questões relacionadas ao
conceito e à fundamentalidade desses direitos, ao problema da eficácia de
suas normas e, finalmente, aos parâmetros para a sua justiciabilidade. No
que diz com o método utilizado, uma vez que o trabalho é desenvolvido no
campo da história do direito e do pensamento jurídico, da teoria geral do
direito e da dogmática constitucional, é imprescindível que sejam
realizadas pesquisas de ordem teórico-bibliográfica e documental. O perfil
histórico dos direitos fundamentais é delineado a partir de obras clássicas
referentes ao tema, desde o contratualismo dos séculos XVII e XVIII, e dos
principais documentos históricos, desde a Carta Magna do Rei João Sem
Terra, do século XIII. O estudo dos direitos fundamentais e particularmente
dos direitos sociais, sob a perspectiva teórico-jurídica, é efetuado
essencialmente com recursos bibliográficos, de autores nacionais e
estrangeiros, enquanto que o exame jurídico-positivo, isto é, dogmático, é
efetuado a partir da doutrina, da jurisprudência e, em especial, da
Constituição brasileira. Esse recorte investigativo é justificado em função
da importância reconhecida ao tema, tanto em razão da necessidade de se
promover avanços na teoria dos direitos fundamentais, contribuindo para a
decidibilidade dos conflitos com o menor grau de perturbação social,
quanto da relevância dos direitos fundamentais para assegurar o gozo de
uma vida digna. Desse modo, a cognição teórica dos direitos fundamentais,
em especial dos direitos sociais, e da forma como se goza de tais direitos
representa uma tentativa de superação de sérios problemas enfrentados pela
dogmática jurídica e pela sociedade, ainda que modesto seja o resultado.
Palavras-Chave: Direitos fundamentais; direitos sociais; eficácia.
ABSTRACT
ALVES, R.V.S. Fundamental rights: taking a position on social rights in
the constitutional system.
This dissertation intends to examine the fundamental rights and the form of
their recognition in the Constitution of 1988, with emphasis on the problem
of social rights, trying to determine what are the parameters for judicial
protection of social rights to public benefits. To reach this purpose, the
dissertation is structured into three chapters, starting with a broader
consideration about the fundamental rights moving to a specific study of
social rights. It presents the historical profile of fundamental rights in the
first chapter, stating their main sources and describing how was their
historical development. In the second chapter, it is studied the important
aspects of fundamental rights, related to the concept and classification of
these rights as well as the structure and effectiveness of rules that define
them. In the third chapter are explored specifically the social rights,
appreciating issues related to the concept and fundamentality of those
rights, as well as the problem of the effectiveness of their standards, in
order to point some parameters to their justiciability. As far as the method
is concerned, once the studies are done in the field of History of Law and
Legal Thinking, the General Theory of Constitutional Law and Legal
Dogmatic, it is essential that this research is carried out using related
literature and documents. The historical profile of fundamental rights is
outlined based on classical works on the subject, since the Contractualism
of the seventeenth and eighteenth centuries, and key historical documents
since the Magna Charta of King John Landless, in the thirteenth
century. The study of fundamental rights and in particular of the social
rights, under the theoretical-legal research, is made primarily with
bibliographic resources of national and foreign authors, whereas the
positive-legal examination, that is, dogmatic, is made from the doctrine, the
jurisprudence and in particular the Brazilian Constitution. This angle is
justified because of the importance accorded to the subject, both because of
the need to promote advances in the theory of fundamental rights,
contributing to the decidability of conflicts with the lowest degree of social
disruption, and the relevance of fundamental rights to ensure the enjoyment
of a dignified life. Thus, the cognition of fundamental rights, especially
social rights, and of how to enjoy such rights is an attempt to overcome the
serious problems faced by the Legal Dogmatic and by the society, albeit
modest, is the result reached.
Key-Words: Fundamental rights; social rights; effectiveness.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO 1 - Perfil histórico dos direitos fundamentais 15
1.1 Os direitos civis e a proteção da liberdade individual 17
1.2 A liberdade dos antigos: os direitos políticos 35
1.3 O avanço dos direitos sociais 55
1.4 Os direitos de solidariedade 75
CAPÍTULO 2 - Os direitos fundamentais e a Constituição
brasileira de 1988
81
2.1 Aproximação ao conceito de direitos fundamentais 81
2.2 Classificação dos direitos fundamentais 87
2.3 Estrutura normativa 98
2.3.1 Enunciado normativo, norma e direito 99
2.3.2 Conceito e estrutura das normas de direitos fundamentais 102
2.4 Eficácia das normas de direitos fundamentais 120
CAPÍTULO 3 - Os direitos sociais como problema específico 131
3.1 O conceito de direitos sociais na teoria jurídica 131
3.2 Direitos sociais como direitos fundamentais 137
3.2.1 Sobre a necessidade de prestações positivas pelo Estado 138
3.2.2 A fundamentalidade dos direitos sociais 142
3.3 Conceito e fundamentalidade dos direitos sociais desde a
Constituição brasileira de 1988
149
3.4 A eficácia das normas definidoras de direitos sociais a
prestações
154
3.4.1 O suporte fático dos direitos sociais 155
3.4.2 Eficácia das normas de direitos sociais 161
3.4.3 Parâmetros para a judicialização dos direitos sociais 167
CONCLUSÃO 177
BIBLIOGRAFIA 185
9
INTRODUÇÃO
O tema dos direitos fundamentais vem sendo estudado a partir de
diferentes perspectivas teóricas. Indagações sobre quais direitos um
indivíduo possui como ser humano ou como membro de uma comunidade
política são problemas relacionados a diversos campos do saber, cujos
enfoques investigativos podem ser classificados em duas grandes
categorias: a zetética e a dogmática1.
No presente trabalho, pretende-se examinar o fenômeno do direito
sob a perspectiva zetética, estudando-se as principais fontes históricas dos
direitos fundamentais bem como alguns dos mais importantes aspectos
teórico-jurídicos dos mesmos. Essa investigação permitirá conhecer como a
teoria dos direitos fundamentais foi sendo desenvolvida ao longo da
história e como doutrinadores contemporâneos refletem a respeito dos
mesmos. Entretanto, embora uma investigação de tal natureza seja de
grande relevância, com o trabalho pretende-se ainda formular
considerações no campo da dogmática jurídica constitucional, isto é,
1 De acordo com Ferraz Júnior (2003, p. 31-50), a investigação científica sob o enfoque
zetético procura colocar as opiniões em dúvida, com função explicitamente
especulativa, sendo esta especulação ilimitada na busca do saber ontológico, isto é, de
informar a respeito do que é algo. A seu tempo, o estudo dogmático tem função diretiva,
de como algo deve-ser, um saber deontológico, com questionamentos limitados por
pressupostos. O estudo zetético pode ocorrer, por exemplo, nos campos da sociologia,
antropologia, filosofia, história, politologia e economia, de modo que a zetética juríca
pode se manifestar, respectivamente, como sociologia jurídica, antropologia jurídica,
filosofia do direito, politologia jurídica, economia política e teoria do direito. São
investigações que têm em comum o fato de estar constantemente abertas ao
questionamento dos objetos em todas as direções. A respeito das investigações
dogmáticas, a ciência do direito é composta de disciplinas que tomam o referido objeto
partindo de uma abordagem limitada aos marcos de uma ordem jurídica vigente. Essa
ordem é para o estudante um dado, um ponto de partida inegável. Dentre outras, pode-se
destacar como disciplinas dogmáticas a ciência do direito civil, constitucional, penal,
processual e administrativo. O exame do direito sob essa perspectiva tem duas
importantes funções: controlar as incertezas que a diversidade de opiniões pode trazer e
possibilitar a decidibilidade dos conflitos que se lhe apresentam.
10
examinar os direitos fundamentais de uma perspectiva jurídico-positiva na
Constituição brasileira de 19882.
No campo dos direitos fundamentais, um tema que nas últimas
décadas ganhou destaque foi o dos direitos sociais (forma abreviada para os
direitos econômicos, sociais e culturais). No século XX houve uma
progressiva consagração desses direitos nas constituições. Contudo, sobre
esse fenômeno, prestigiados juristas apresentam posicionamentos diversos,
os quais se encontram, em muitos casos, polarizados, havendo grandes
defensores e enérgicos críticos dos direitos sociais.
Por essa razão, o objetivo do presente trabalho é refletir sobre os
direitos fundamentais e sua consagração na Constituição brasileira de 1988,
com ênfase no problema dos direitos sociais, buscando-se esclarecer quais
são os critérios para a proteção judicial dos direitos sociais a prestações.
Para tanto, esta dissertação encontra-se estruturada em três
capítulos, partindo de considerações abrangentes sobre os direitos
fundamentais para um estudo específico dos direitos sociais. No primeiro
capítulo, é apresentado o perfil histórico dos direitos fundamentais, com o
objetivo de apresentar suas principais fontes e de demonstrar como foi seu
desenvolvimento. No segundo, são estudados importantes aspectos
relacionados aos direitos fundamentais, os quais dizem respeito a seu
conceito e classificação, bem como à estrutura e à eficácia das normas que
os definem. No terceiro capítulo, explora-se especificamente os direitos
sociais, apreciando questões pertinentes ao conceito, à fundamentalidade,
ao problema da eficácia de suas normas e, finalmente, aos parâmetros para
a sua justiciabilidade.
2 De acordo com Canotilho (1993, p. 5), dogmática é um ―complexo de conceitos e
proposições (particularmente lógicos) que permite organizar e captar determinados
‗factos jurídicos‘ (ex.: a dogmática dos direitos fundamentais permite-nos captar as
dimensões objectiva e subjectiva dos direitos fundamentais na ordem jurídica positiva
portuguesa)‖.
11
No que diz com o método utilizado, uma vez que o trabalho é
desenvolvido no campo da história do direito e do pensamento jurídico, da
teoria geral do direito e da dogmática constitucional, é imprescindível que
sejam realizadas pesquisas de ordem teórico-bibliográfica e documental. O
perfil histórico dos direitos fundamentais é delineado a partir de obras
clássicas referentes ao tema, desde o contratualismo dos séculos XVII e
XVIII, e dos principais documentos históricos, desde a Carta Magna do Rei
João Sem Terra, do século XIII. O estudo dos direitos fundamentais e
particularmente dos direitos sociais, sob a perspectiva teórico-jurídica, é
efetuado essencialmente com recursos bibliográficos, de autores nacionais
e estrangeiros, enquanto que o exame jurídico-positivo, isto é, dogmático, é
efetuado a partir da doutrina, da jurisprudência e também de documentos
normativos, em especial, da Constituição de 1988. Trata-se de um estudo
de dogmática jurídica (mas não formal-positivista), prioritariamente
analítica, mas também empírica e normativa, esta porque no final são
propostos parâmetros para a concretização dos direitos sociais3.
Apresentada a estrutura do trabalho, bem como o objeto, o
problema e o método da pesquisa, passa-se agora a expor alguns
argumentos que demonstram sua importância. O primeiro argumento é
válido não apenas para o recorte investigativo proposto. Trata-se de uma
justificativa da própria dogmática jurídica. Isso porque, a investigação
científica do fenômeno do direito, como foi visto, pode ser realizada sob
uma perspectiva zetética e outra dogmática. Quanto a esta, não é sua
3 Para Alexy (2008, p. 32-37), há três dimensões da dogmática: uma analítica, uma
empírica e uma normativa. A primeira se dedica à dissecação sistemático-conceitual do
direito vigente, analisando-se conceitos elementares, construções jurídicas, a estrutura
do sistema e a fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais. A dimensão
empírica examina tanto a legislação quanto a práxis jurisprudencial, possibilitando a
cognição do direito positivo válido. A terceira dimensão, a normativa, avança para além
do direito positivo válido, elucidando e criticando a prática jurídica, determinando qual
a decisão correta em um caso concreto. Esta última dimensão visa apresentar uma
resposta racionalmente fundamentada a questões axiológicas deixadas em aberto.
12
característica a busca pelo ―ser‖, pela informação acerca da verdade, mas
pelo ―dever-ser‖, pela orientação da ação. Embora o jurista não se detenha
à investigação dogmática apenas, é importante destacar que esta tem uma
relevante função social: possibilitar que os conflitos sociais sejam
terminados sem maiores conseqüências perturbadoras. Sua função social
envolve, portanto, a decidibilidade de conflitos. Isto ela faz ao direcionar a
sistematização dos conceitos jurídicos (normas), ao apontar o caminho
interpretativo (sentido das normas) e ao orientar a argumentação jurídica
(decisão a partir das normas interpretadas). Em suma, a dogmática
possibilita que os conflitos surgidos do comportamento humano sejam
encerrados com o menor grau de perturbação social possível4.
Há, pelo menos, outras três razões que justificam a investigação
sobre os direitos fundamentais, e especialmente, dos direitos sociais. A
primeira reside na relevância desses direitos. Em cenários nitidamente
caracterizados pela pobreza e por graves desigualdades, os direitos sociais
assumem posição de elevada importância, pois, ao serem efetivados,
cooperam para a redução dos problemas mencionados e para a garantia da
dignidade da pessoa. O bem comum, finalidade primaz do Estado, somente
pode ser atingido por meio da promoção da justiça social.
Toma-se como exemplo a situação da saúde nos países em
desenvolvimento, de que faz parte o Brasil. Segundo recente relatório
publicado pela Organização Mundial de Saúde, mais de um bilhão de
pessoas não podem arcar com despesas relacionadas à área de saúde, sendo
que 100 milhões de pessoas tornam-se pobres anualmente em razão de
gastos com saúde5. Segundo essa mesma agência, estima-se que 26% das
crianças com menos de cinco anos de idade estavam abaixo do peso em
razão de desnutrição nos países em desenvolvimento em 2007, o que 4 Ferraz Júnior, Função social da dogmática jurídica, 1998, p. 119-171.
5 1 bilhão de pessoas não podem pagar pela saúde, diz agência da ONU [2009],
disponível em g1.globo.com, acesso em 22 de novembro de 2010.
13
representa um total de 112 milhões de crianças6; em 2008, havia por volta
de nove milhões de mortes entre crianças com menos de cinco anos,
equivalente a 65 para cada 1000 nascimentos com vida, sendo que mais de
três milhões de crianças morrem de diarréia e pneumonia por ano7; a cada
dia de 2008, aproximadamente 1000 mulheres morreram de sangramento
após o parto, de infecções, em razão de crises de hipertensão e da prática de
aborto8; no mesmo ano, 13% da população mundial (884 milhões) ainda
permanecia sem acesso a água potável9.
Diante desse quadro, propõe a OMS que ―os governos melhorem a
eficiência dos seus sistemas de saúde e usem novos impostos e medidas
inovadoras de arrecadação para financiar isso‖10
, ou seja, que tornem
efetivo o direito social à saúde. O déficit da saúde, assim como outros
problemas sociais, ainda restringe severamente a qualidade de grande parte
da população mundial.
Diretamente ligado à primeira razão está a segunda. Se estiver
correta a tese segundo a qual as liberdades constitucionalmente positivadas
e a participação no processo democrático somente podem ser desenvolvidas
no plano fático a partir do preenchimento de pressupostos materiais,
havendo grande parte da população desprovida de suficiente substrato
material que assegura o mínimo de dignidade, é inevitável a conclusão de
que o exercício daqueles direitos resta prejudicado. Desse modo, ações
estatais podem viabilizar o preenchimento dessas condições, para que os
referidos direitos sejam efetivados.
6 Underweight in children,. disponível em www.who.int, acesso em 22 de novembro de
2010. 7 Child mortality, disponível em www.who.int, acesso em 22 de novembro de 2010.
8 Maternal mortality, disponível em www.who.int, acesso em 22 de novembro de 2010.
9 Use of improved drinking water sources, disponível em www.who.int, acesso em 22
de novembro de 2010. 10
1 bilhão de pessoas não podem pagar pela saúde, diz agência da ONU [2009],
disponível em http://g1.globo.com, acesso em 22 de novembro de 2010.
14
Por fim, a terceira razão justificativa da investigação é a defesa de
que a busca por maior elucidação dogmática sobre o tema merece especial
atenção, porquanto trata da forma como a Constituição Federal é
interpretada e aplicada, bem como o modo que os governados gozarão de
seus direitos. Nesse contexto, há diversos problemas teóricos,
especialmente relacionados à eficácia das normas definidoras de direitos
sociais, os quais precisam ser mais bem esclarecidos. Isso, sem dúvidas,
traz avanços para a ciência jurídica e reflete na realidade sócio-econômica
do Brasil.
Com efeito, a cognição teórica dos direitos sociais e da forma como
se goza de tais direitos representa uma tentativa de superação de sérios
problemas enfrentados pela dogmática dos direitos fundamentais e pela
sociedade, ainda que modesto seja o resultado atingido.
15
CAPÍTULO 1
Perfil histórico dos direitos fundamentais
A Constituição brasileira de 1988 dedica diversos dispositivos à
consagração de direitos que são considerados de elevada importância e
dignos de receber especial proteção, os quais reúne especialmente em seu
Título II. O reconhecimento do caráter especial dos referidos direitos, como
é cediço, não consiste em mérito apenas da Assembléia Nacional
Constituinte que aquela promulgou.
A positivação desses direitos em normas constitucionais é fruto de
conquistas históricas, as quais pertencem ao patrimônio comum da
humanidade11
. Por certo, houve um inquestionável progresso, normalmente
analisado pela doutrina sob o prisma das ―gerações de direitos‖, que serve
de inspiração e fundamento para a sua constitucionalização.
Esses direitos são denominados ora como ―direitos naturais‖,
―direitos do homem‖, ―direitos humanos‖ ou ―direitos fundamentais‖.
Segundo Perez Luño12
, ―direitos naturais‖ é o termo clássico usado no
pensamento jusnaturalista, referindo-se àqueles direitos inatos ao homem
(seja por uma necessidade da natureza humana, da razão ou por imposição
divina), o qual foi sendo paulatinamente substituído pela denominação
―direitos do homem‖. Esta foi popularizada na esfera doutrinária pela obra
de Thomas Paine, ―The Rights of Man‖ (1791-1792). Na seqüencia, a
expressão ―direitos fundamentais‖ (fr. droits fondamentaux) aparece na
França no ano de 1770, no marco do movimento político e cultural que
conduziu à elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, sendo amplamente utilizada nas constituições modernas,
11
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 21. 12
Perez Luño, Los derechos fundamentales, 2005, p. 29-33.
16
especialmente a partir da Constituição Alemã de Weimar de 1919 (al.
Grundrechte). ―Direitos humanos‖, por ser expressão inclusiva (das
mulheres), passou a ser utilizada nas discussões internacionais a partir da
Segunda Guerra Mundial e da fundação da Organização das Nações
Unidas.
Para fins didáticos, pode-se distingui-las da seguinte maneira:
―direitos do homem‖ ou ―direitos naturais‖ quando se faz referência ao
reconhecimento dos direitos sob a ótica da filosofia, especialmente do
jusnaturalismo, ou seja, em um plano pré-positivo; ―direitos humanos‖ são
os direitos positivados na esfera do direito internacional, em tratados e
declarações; por fim, ―direitos fundamentais‖ são aqueles direitos
reconhecidos e protegidos pelo direito constitucional interno de cada
Estado13
.
Embora se distingam sob a perspectiva do reconhecimento (isto é,
nos planos pré-positivo, internacional e interno), quanto ao conteúdo, há
verdadeira unidade entre as categorias mencionadas. Isso porque todas elas,
em que pese às diferenças relativas à positivação, dizem respeito aos
direitos essenciais para a vida humana digna, reconhecidos como tais pelo
jusnaturalismo e então positivados em documentos internacionais,
especialmente na Declaração Universal de 1948, os quais inspiraram a
maior parte das constituições do pós-guerra. Daí porque há quem busque
13
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 30. Sobre o tema, Canotilho
(1993, p. 517) comenta que ―as expressões ‗direitos do homem‘ e ‗direitos
fundamentais‘ são frequentemente utilizadas como sinónimas. Segundo a sua origem e
significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são
direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-
universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-
institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem
arrancariam da própria natureza humana e daí o seu carácter inviolável, intemporal e
universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa
ordem jurídica concreta‖.
17
uma designação eclética, denominando-os como ―direitos humanos
fundamentais‖14
.
Prescindindo dessa discussão, por serem os direitos fundamentais
uma conquista histórica (seja como direitos naturais, direitos do homem ou
direitos humanos), serão tecidas breves considerações sobre o processo de
consagração desses direitos como direitos fundamentais pelas constituições
modernas.
1.1 Os direitos civis e a proteção da liberdade individual
O século XVIII presenciou o nascimento do constitucionalismo
clássico. Este, inspirado no pensamento liberal e em declarações
revolucionárias, deu início a um movimento de reconhecimento em
estatutos legais de direitos fundamentais para a vida humana em sociedade.
Eram assegurados especialmente os direitos relativos à proteção de uma
esfera de liberdade individual em face do Estado.
Certamente, embora a formulação jurídico-positiva dos direitos
fundamentais como direitos constitucionais seja um fenômeno recente, suas
raízes filosóficas remontam a representantes históricos do pensamento
humanista15
.
Sobre essas fontes de inspiração, é em nada irrelevante mencionar a
herança jurídica inglesa, as doutrinas filosóficas de John Locke e Thomas
Paine, bem como as Declarações americana de 1776 e francesa de 1789,
dada a grande repercussão histórica que as caracteriza.
O principal antecedente histórico do constitucionalismo clássico
surgiu na Inglaterra do século XIII, a Magna Charta Libertatum. Este
documento, firmado pelo Rei João Sem-Terra e pelos bispos e barões
14
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 32-33. 15
Perez Luño, Los derechos fundamentales, 2005, p. 30.
18
ingleses, prestou-se como ponto de referência para direitos civis clássicos,
como o habeas corpus, o devido processo legal e o direito de propriedade16
.
Sua mais conhecida cláusula é aquela contida no artigo 39:
No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his
rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his
standing in any other way, nor will we proceed with force
against him, or send others to do so, except by the lawful
judgement of his equals or by the law of the land17
.
A importância atribuída à Magna Carta não se deve ao seu caráter
único nem tampouco pela amplitude do direito de liberdade que prevê, pois
ela, de um lado, é apenas um exemplo de cartas de liberdade medievais18
e,
16
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 41. 17
―Nenhum homem livre será detido, aprisionado ou privado de seus direitos e
possessões, ou feito fora-da-lei ou exilado, ou de maneira alguma destituído de sua
posição, nem agiremos com força contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não
ser por legítimo julgamento dos seus pares, ou pela lei da terra‖ (Magna Charta
Libertatum, §39, disponível em www.bl.uk, acesso em 05 de novembro de 2010,
tradução nossa). 18
Perez Luño (2005, p. 33-34) menciona a existência de diversos documentos espanhóis
em que o monarca reconhece limitações ao exercício de seus poderes em favor da
Igreja, dos senhores feudais e das comunidades locais, isso nos moldes de declarações
de liberdades. Destaca também alguns pactos firmados na Idade Média, como aquele
realizado nas Cortes de León em 1188 entre Alfonso IX e o reino, na monarquia
castellano-leonesa, e o privilégio geral outorgado por Pedro III nas Cortes de Zaragoza
em 1283. Segundo Cerda (2006, p. 570-575), a Cúria de León, convocada por Alfonso
IX, é tradicionalmente considerada a primeira manifestação parlamentar da Europa
Medieval, a primeira a incorporar cidadãos na vida política do Reino, uma manifestação
primitiva da democracia e o mais importante precedente histórico da reforma
constitucional do século XIX. No entanto, discorda o autor dessa concepção tradicional,
haja vista que no mesmo ano de 1188, diversas assembléias com caráter parlamentar
foram realizadas na Europa, a exemplo da reunião convocada em janeiro por Henry II
em Le Mans, com a presença de seus nobres continentais, que estabeleceu a cobrança de
elevadas taxas para a promoção das cruzadas. No mesmo contexto, em fevereiro, por
aproximadamente duas semanas, reuniram-se em Geddington Henry II com bispos,
barões e outros poderosos. Na própria Espanha, em janeiro de 1188, Alfonso II, rei de
Aragão, conde de Barcelona e marquês de Provença, reuniu-se com seus bispos e nobres
em ―corte solene‖ na cidade de Huesca, resultando na concessão de privilégios para os
monastérios de Santa Cruz e Montearagón. Não considera, portanto, a Assembléia de
León como sendo a primeira ou mais importante reunião em caráter parlamentar.
Prescindindo dessa discussão, é fato que o ano de 1188 pode ser considerado como um
19
de outro, considera livres apenas alguns estamentos (não inclui, por
exemplo, a grande massa dos villains), isto é, a Carta serviu especialmente
para garantir privilégios aos nobres ingleses. No entanto, é digna de
destaque em função de sua notável continuidade, algumas vezes
interrompida, mas nunca totalmente cortada, sendo uma pedra basilar para
o parlamentarismo inglês e para o desenvolvimento dos direitos de
liberdade já mencionados19
.
Também na Inglaterra, podem ser destacadas as declarações de
direitos do século XVII, as quais asseguraram direitos aos cidadãos
ingleses, tais como o princípio da legalidade penal, a proibição de prisões
arbitrárias e o habeas corpus20
. São os atos do Parlamento Inglês: Petition
of Rights de 1627, Habeas Corpus Act de 1679, Bill of Rights de 1689 e Act
of Settlement de 170021
.
A rigor, a Petition of Rights (1627) não foi uma declaração de
direitos. Na verdade, consistiu de uma petição dirigida pelo parlamento ao
rei solicitando que este garantisse o seu respeito pelos antigos direitos e
liberdades territoriais, uma confirmatio cartarum, o que foi concedido. A
relevância dessa petição está no reconhecimento de liberdades não apenas a
determinados estamentos, mas para todos os ingleses22
.
período de intensa atividade parlamentar, isto é, de inclusão de cidadãos na vida política
do Reino. 19
Zippelius, Teoria Geral do Estado, 1997, p. 421. 20
Ibidem, p. 422-423. 21
Documentos disponíveis em www.legislation.gov.uk, acesso em 15 de outubro de
2010. 22
Alguns anos depois, diante do regime autoritário de Charles I, que buscava tutelar o
indivíduo em sua consciência religiosa, estourou um conflito em que se reivindicava a
autonomia dos indivíduos e das paróquias em questões religiosas. Essa reclamação de
autonomia, isto é, de uma esfera de liberdade inviolável sobre a qual o Estado não pode
dispor, converteu-se em veículo para abrir caminho à idéia dos direitos fundamentais.
Na mesma época, surge a idéia de que as comunidades e os poderes políticos são
constituídos por um contrato social. Especialmente prevendo a proteção da liberdade
religiosa, o Agreement of the People (1647) pretendeu ser esse instrumento, o qual seria
submetido à votação de todo o povo inglês, servindo-lhe de constituição. Entretanto,
não passou de um projeto (ZIPPELIUS, 1997, p. 422-423).
20
Também no século XVII, tendo como antecessor o mencionado
artigo 39 da Magna Carta, o Habeas Corpus Act (1679) tratou de formular
inequivocamente a proteção contra detenções arbitrárias. Segundo o
documento, cada detido deveria ser apresentado pessoalmente e no prazo
de três dias ao Lord Chancellor, ao Lord Privy Seal ou ao tribunal, a fim de
que se comprovassem os verdadeiros motivos da prisão.
O Bill of Rights (1689) é um dos resultados da Revolução Gloriosa,
o golpe que conduziu à superação do regime absolutista inglês. Trata-se de
uma declaração de direitos promulgada pelo Parlamento que prevê
garantias a favor do deste e também dos indivíduos em geral. Entre outros,
previu-se o direito de petição ao rei, de crença protestante, de liberdade de
expressão e debate, bem como a vedação de penas excessivas e cruéis.
Outro estatuto, Act of Settlement of 1700, apesar de restringir a
liberdade religiosa (pois qualquer que professasse o Catolicismo Romano
como crença seria excluído de qualquer instância do governo), declarou
direitos e liberdades individuais, impondo limitações diversas à Coroa
perante o Parlamento.
Estes estatutos, embora tenham servido de inspiração para outras
cartas de direitos, em particular as norte-americanas, não objetivavam a
proclamação de direitos do homem universal (como fizeram os americanos
e franceses), mas apenas do homem inglês. Além disso, embora tenham
sido considerados como direitos fundamentais, não houve
constitucionalização dos direitos, de forma que também o Parlamento fosse
por eles limitado. Por essa razão, não são considerados como fonte
imediata para a concepção dos direitos humanos fundamentais. Digna de
ser mencionada é a posição de Sarlet23
:
23
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 43.
21
Em que pese a sua importância para a evolução no âmbito da
afirmação dos direitos, inclusive como fonte de inspiração para
outras declarações, esta positivação de direitos e liberdade civis
na Inglaterra, apesar de conduzir a limitações do poder real em
favor da liberdade individual, não pode, ainda, ser considerada
como o marco inicial, isto é, como o nascimento dos direitos
fundamentais no sentido que hoje se atribui ao termo.
Fundamentalmente, isso se deve ao fato de que os direitos e
liberdade – em que pese a limitação do poder monárquico – não
vinculavam o Parlamento, carecendo, portanto, da necessária
supremacia e estabilidade, de tal sorte que, na Inglaterra,
tivermos uma fundamentalização, mas não uma
constitucionalização dos direitos e liberdades individuais
fundamentais.
Contudo, foi na filosofia do século XVII, herdeira da teologia cristã
desenvolvida nos vários séculos que a antecederam, que surgiu a corrente
de pensamento que influenciou decisivamente a teoria dos direitos
humanos e fundamentais, ao defender a existência de direitos naturais do
homem, anteriores ao Estado, os quais se impõem como seu limite
intransponível.
Na base dessa doutrina está o inglês John Locke, cuja obra, Two
Treatises of Government, publicada em um ambiente de reivindicação de
direitos, pouco depois da Revolução Gloriosa, não se limitou a defender o
direito dos ingleses apenas. Nela, além de uma teoria de divisão de poderes,
desenvolveu a idéia de que os homens seriam dotados de liberdades
originárias e inalienáveis24
.
Para ele, os homens estão naturalmente em um estado de perfeita
liberdade para determinar suas ações e dispor de suas possessões e pessoas
como pensam ser adequado, sendo iguais em poder e jurisdição. Trata-se
do ―estado de natureza‖25
.
Entretanto, essa liberdade não é absoluta. Embora seja um estado
em que haja ausência de controle da liberdade por outros (subordinação),
24
Zippelius, Teoria Geral do Estado, 1997, p. 424. 25
Locke, The Second Treatise of Civil Government [1689], Capítulo II, §4º.
22
os homens não têm licença para destruir a si mesmos ou a outros, nem
tampouco para subordiná-los de qualquer modo. Isso porque estão todos
obrigados à lei da natureza, que é a razão, a qual ensina aos homens que,
sendo todos iguais e independentes, não devem uns causar danos à vida,
saúde, liberdade e possessão dos demais. Acrescenta Locke que são todos
os homens obra do único onipotente e sábio criador – Deus – que os envia
ao mundo sem conceder-lhes autorização para mútua destruição26
.
Esse estado é contraposto às sociedades políticas. Nestas, os
homens, usando da liberdade natural, consentem em se sujeitar a um poder
político27
, definido por Locke28
como o direito de fazer leis com a
finalidade de regular e preservar a propriedade, empregando a força da
comunidade para sua execução.
Uma tal sujeição somente ocorre porque os homens são dotados por
Deus com a inclinação para a vida em sociedade, inclusive capacitados
com entendimento e linguagem para que isso seja possível29
, e também
porque a reunião em comunidade possibilita o desfrute de uma vida mais
confortável, segura e pacífica. Por meio do ―contrato social‖, transferem às
pessoas autorizadas na sociedade política a parcela necessária de liberdades
e direitos – embora deles não abdiquem – para assegurar a vida social no
interesse de todos. Enfim, forma-se um corpo político em que a maioria
tem o direito de agir e decidir pelo restante30
.
Nesse sentido, pode-se concluir que Locke funda o paradigma do
liberalismo político. Por mais paradoxal que pareça, em Locke, o direito,
26
Ibidem, Capítulo II, §6º. 27
Ibidem, Capítulo VIII, §95. 28
Ibidem, Capítulo I, §3º. 29
Ibidem, Capítulo VII, §77. 30
Ibidem, Capítulo VIII, §95.
23
por meio de seus comandos, prescrições, proibições, imposições, tem por
essência assegurar o máximo de liberdade a cada indivíduo31
.
Sob a influência de Locke, Thomas Paine examina a origem dos
governos na obra Common Sense, advogando o princípio da liberdade e da
propriedade individuais, a legitimidade do poder pelo consentimento dos
governados e o direito de resistência.
Sua tese fundamenta-se na diferença entre sociedade e governo.
Para o autor, a sociedade é produzida por nossos desejos, e o governo pelas
fraquezas; aquela promove a felicidade positivamente, ao unir qualidades, o
último a promove negativamente, ao restringir os vícios; a sociedade
encoraja o relacionamento, ao passo que o governo cria distinções; em cada
estado, a sociedade é uma bênção (o patrono), enquanto que o governo é
um mal necessário (dotado do poder punitivo) diante da desobediência do
homem à sua consciência32
.
Nessa direção, Paine33
defende que a origem do governo está na
necessidade. Para explicar seu posicionamento, supõe a existência de um
pequeno número de pessoas vivendo isoladas das demais. Esse grupo,
vivendo em um estado de liberdade natural, percebe as vantagens da vida
em sociedade e se organiza. No início, não é preciso destinar alguns para o
exercício do governo, pois é viável o gerenciamento das questões comuns
por todos. ―No primeiro parlamento, cada homem, por direito natural, tem
um assento‖34
.
Entretanto, com o crescimento da comunidade e conseqüentemente
dos interesses, torna-se conveniente eleger um número de representantes,
31
Billier; Maryioli, História da filosofia do direito, 2005, p. 147. 32
Paine, Common sense [1776], Capítulo I, §§1º e 2º. 33
Ibidem, Capítulo I, §2º. 34
Ibidem, Capítulo I, §5º.
24
os quais comporão o legislativo35
, cuja finalidade é promover a ampliação
da felicidade e da segurança36
.
Em semelhança com Locke, Paine entende que o governo nasce da
transferência de direitos pelos homens, tendo em vista o próprio benefício.
O direito de propriedade, carente de proteção – pois nem todos obedecem à
própria consciência – é restringido em parte para que haja segurança. Isto é,
o indivíduo submete parte de sua propriedade para criar meios de proteção
do restante dela37
.
Paine prossegue examinando o problema da monarquia e da
sucessão hereditária (Capítulo II), bem como o estado dos interesses
americanos naquela época (Capítulos III, IV e Apêndice). A esse respeito,
suas reflexões influenciaram diretamente a elaboração da Declaração da
Independência americana38
. Isso não foi apenas acidental, mas proposital,
haja vista que defendia a independência norte-americana. Na última parte
de sua obra, escreveu: ―não seja ouvido outro título entre nós senão o de
um bom cidadão, um amigo aberto e resoluto, e, um apoiador virtuoso dos
direitos da humanidade e dos Estados da América livres e
independentes‖39
.
Com mesma data que a obra Common Sense, de Paine, a
Declaração da Independência americana de 1776 constitui um marco na
ruptura dos colonos de origem britânica com a coroa inglesa. Nela constou
o seguinte:
We hold these truths to be self-evident, that all men are created
equal, that they are endowed by their Creator with certain
unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the
pursuit of Happiness.--That to secure these rights, Governments
35
Ibidem, Capítulo I, §6º. 36
Ibidem, Capítulo I, §7º. 37
Ibidem, Capítulo I, §2º. 38
Billier; Maryioli, História da filosofia do direito, 2005, p.167. 39
Paine, Common sense [1776], Apêndice.
25
are instituted among Men, deriving their just powers from the
consent of the governed, --That whenever any Form of
Government becomes destructive of these ends, it is the Right of
the People to alter or to abolish it, and to institute new
Government, laying its foundation on such principles and
organizing its powers in such form, as to them shall seem most
likely to effect their Safety and Happiness‖40
.
Essa Declaração proclama valores considerados anteriores e
superiores ao Estado, os quais devem vincular o próprio legislador. Embora
os direitos do homem tivessem sido apregoados por filósofos
contratualistas, a exemplo do francês Rousseau e do inglês Locke, o
documento americano é ―a primeira grande manifestação política destes
princípios‖41
.
O texto, contudo, constitui apenas uma proclamação e justificação
de direitos, com elevada importância política, mas desprovida de valor
jurídico. Segundo Morange42
, professor da Universidade de Paris, ―a
primeira manifestação jurídica da filosofia dos direitos humanos se
encontra no célebre Bill of Rights (ato de direitos) que precede o texto da
Constituição da Virgínia (1776)‖43
.
40
―Nós defendemos como sendo auto-evidente que todos os homens são criados iguais,
e são dotados por seu Criador com alguns Direitos inalienáveis, que entre esses estão a
Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade; Que para assegurar esses direitos, Governos
são instituídos entre os Homens, derivando o poder do consenso dos governados; Que,
se qualquer Forma de Governo se tornar destrutiva em relação a esses fins, é Direito do
Povo de alterá-lo ou aboli-lo, e de instituir novo Governo, tendo como fundamento
aqueles princípios e organizando seus poderes de modo a promover a Segurança e a
Felicidade‖ (Declaration of Independence, §2º, disponível em www.archives.gov,
acesso em 22 de novembro de 2010, tradução nossa). 41
Morange, Direitos humanos e liberdades públicas, 2004, p. 6. Alguns documentos
antecederam a declaração, prevendo liberdades para os colonos americanos: Mayflower
Compact (1620), Fundamental Orders of Connecticut (1639) e Massachusetts Body of
Liberties (1641), os quais estão disponíveis em www.loc.gov, acesso em 22 de
novembro de 2010. 42
Morange, Direitos humanos e liberdades públicas, 2004, p. 6. 43
A esse respeito, diverge Sarlet (2010, p. 44), na esteira de Martin Kriele, ao defender
que os americanos tinham direitos fundamentais, enquanto que os franceses legaram ao
mundo os direitos humanos. No entanto, a Declaração de Direitos inserida no início da
26
Escrita por George Mason e adotada pela Convenção Constitucional
da Virgínia de 12 de junho de 1776, esse documento prevê:
SECTION 1. That all men are by nature equally free and
independent, and have certain inherent rights, of which, when
they enter into a state of society, they cannot, by any compact,
deprive or divest their posterity, namely, the enjoyment of life
and liberty, with the means of acquiring and possessing
property, and pursuing and obtaining happiness and safety.
SECTION 2. That all power is vested in, and consequently
derived from, the people; that magistrates are their trustees and
servants, and at all times amenable to them. SECTION 3. That
government is, or ought to be, instituted for the common benefit,
protection, and security of the people, nation, or community; of
all the various modes and forms of government, that is best
which is capable of producing the greatest degree of happiness
and safety, and is most effectually secured against the danger of
maladministration; and that, when any government shall be
found inadequate or contrary to these purposes, a majority of the
community hath an indubitable, inalienable, and indefeasible
right to reform, alter, or abolish it, in such manner as shall be
judged most conducive to the public weal44
.
A Carta de Direitos, portanto, assegura a todo indivíduo o direito à
vida, à liberdade, à propriedade, à segurança e à busca pela felicidade,
direitos esses considerados inatos, aos quais está vinculado o governo, sob
pena de reforma, alteração ou abolição. Além disso, é previsto na Seção 5 a
Constituição da Virgínia de 1776 já considerava a existência de direitos inerentes a
todos os homens, e não os endereçando apenas aos americanos. 44
―Seção 1. Que todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes,
tendo certos direitos inerentes, que não podem, quando em um estado de sociedade, por
qualquer meio, ser privados ou retirados de sua posteridade, a saber, o direito ao gozo
da vida e da liberdade, com meios para aquisição e posse de propriedade, à busca e
obtenção da felicidade e segurança. Seção 2. Que todos os poderes são investidos pelo,
e conseqüentemente derivados do povo; que os magistrados são seus representantes e
servos, e que em todos os tempos controlados por eles. Seção 3. Que o governo é, ou
deveria ser, instituído para o bem comum, proteção e segurança do povo, nação ou
comunidade; em todos os variados modos e formas de governo, sendo melhor o que for
capaz de produzir o maior grau de felicidade e segurança, o que mais efetivamente seja
preservado do perigo da má administração; e que, se um governo for inadequado ou
contrário a esses propósitos, a maioria da comunidade tem um indubitável, inalienável e
intransponível direito de o reformar, alterar ou abolir, do modo que julgar mais
benéfico‖ (Constitution of Virginia, 1776, disponível em www.nhinet.org, acesso em 22
de novembro de 2010, tradução nossa).
27
separação de poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), na Seção 6 as
eleições livres das quais participam todos os homens com permanente
interesse na e vínculo com a comunidade, direitos relacionados ao processo
criminal (contraditório, celeridade, júri imparcial, o benefício da dúvida, o
direito de não produzir prova contra si mesmo, o devido processo legal) são
assegurados na Seção 8, em seguida a proteção contra penas ou multas
excessivas, na Seção 16 o direito ao livre exercício da religião em
observância aos valores da paciência, amor e caridade, entre outros. Na
seqüência, a Constituição da Virgínia dedica vários parágrafos para expor
as razões pelas quais o governo, anteriormente exercido pela coroa
britânica, estava sendo dissolvido, e para apresentar qual seria a nova forma
de governo, conforme o entendimento dos representantes do povo.
Mais de uma década depois, em 1787, a Constituição Federal
americana foi promulgada, com o objetivo de ―estabelecer a justiça,
assegurar a tranqüilidade doméstica, proporcionar a defesa comum,
promover o bem-estar geral, e preservar as bênçãos da liberdade‖45
.
Embora siga o mesmo ideal dos documentos anteriores, a Carta não
continha uma declaração de direitos, pois, segundo o Federalista, se o
Estado tinha o poder de proclamá-los, também o tinha para negá-los.
Contudo, as dez primeiras emendas propostas ao Congresso em 21 de
setembro de 1789 e ratificadas em 1791 mencionam direitos e liberdades,
definindo as relações entre o Estado federal e os Estados federados46
,
ressalvando-se, à nona emenda, que ―a enumeração na Constituição, de
certos direitos, não deve ser entendida como negação ou menosprezo a
outros direitos reconhecidos pelo povo‖, sendo afastada, portanto, a crítica
constante na obra Federalista.
45
The United States Constitution. Disponível em: www.house.gov. Acesso em: 23 de
novembro de 2010. 46
Morange, Direitos humanos e liberdades públicas, 2004, p. 7.
28
Destacam-se os seguintes direitos: direito à liberdade religiosa, de
expressão, de imprensa, de associação e de peticionar ao Governo a
correção de injustiças (primeira emenda); direito à proteção contra busca e
apreensão injustificadas (quarta emenda); direito de não produzir provas
contra si mesmo, ao devido processo legal, à proteção contra expropriações
para uso público sem compensação justa (quinta emenda); e, direito à
celeridade e publicidade no processo penal, bem como a um júri imparcial
(sexta emenda).
Influenciada pelos americanos, como atestam as discussões na
Assembléia Constituinte, e igualmente inspirada na filosofia contratualista,
a proclamação pelo povo francês da Declaração dos direitos do homem e
do cidadão47
em 27 de agosto de 1789 representou também grande avanço
para a teoria dos direitos fundamentais. A maior repercussão internacional
obtida pela Declaração em comparação com os documentos americanos e
ingleses é explicada pelo fato de a França ser a primeira potência política
ocidental no final do século XVIII, por ser a língua francesa lida e
compreendida em todos os meios cultos, e por ter sido obra de juristas de
envergadura48
.
Quanto ao seu conteúdo, é previsto nos dois primeiros artigos da
Declaração que o propósito da sociedade é a felicidade comum, que o
homem é dotado por natureza dos direitos à igualdade, à liberdade, à
47
Sobre a diferenciação entre direitos do homem e do cidadão, comenta Canotilho
(1993, p. 517-518) que: ―como é sabido, a Declaração de Direitos de 1789 intitulou-se
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Daí que se procurasse distinguir
entre direitos do homem e direitos do cidadão: os primeiros pertencem ao homem
enquanto tal; os segundos pertencem ao homem enquanto ser social, isto é, como
indivíduo vivendo em sociedade. Esta classificação pressupõe uma separação talhante
entre status negativus e status activus (na terminologia de G. Jellinek), entre direito
individual e direito político. Vendo bem as coisas, a distinção em referência é uma
sequela da teoria da separação entre sociedade e Estado, pois o binómio homem —
cidadão assenta no pressuposto de que a sociedade civil, separada da sociedade política
e hostil a qualquer intervenção estadual, é, por essência, apolítica‖. 48
Morange, Direitos humanos e liberdades públicas, 2004, p. 8.
29
segurança e à propriedade, os quais são detalhados nos artigos seguintes,
sendo o governo instituído para garantir o gozo destes direitos naturais e
imprescritíveis49
. Entretanto, o caráter jurídico desses direitos somente foi
reconhecido na França com a promulgação da Constituição de 1791, a
primeira Constituição escrita da história da França.
Embora tenha mantido fora do corpus constitucional a Declaração
de 1789, por esta ser considerada de caráter universal e perene (e não
apenas pertencente à nação francesa), a Constituição fez dos direitos nela
previstos o seu fundamento50
. Além disso, acrescenta aos direitos previstos
na Declaração, detalhando-os51
. A esse respeito, no Título I da Carta,
denominado ―Disposições fundamentais garantidas pela Constituição‖,
assegura-se que:
A Constituição garante como direitos naturais e civis que:
(...)
3º Os mesmos delitos serão punidos pelas mesmas penas sem
distinção alguma de pessoas.
A Constituição garante igualmente como direitos naturais e
civis: a liberdade para todo homem ir, permanecer e partir sem
poder ser impedido ou detido, senão em conformidade às formas
determinadas pela Constituição; a liberdade para todo homem de
falar, escrever, imprimir e publicar seus pensamentos, sem que
os seus escritos possa ser submetidos a censura alguma ou
inspeção antes de sua publicação, e exercer o culto religioso ao
qual esteja ligado; a liberdade aos cidadãos de se reunirem
pacificamente e sem armas, cumprindo as exigência das leis de
policia; a liberdade de enviar, às autoridades constituídas,
petições assinadas individualmente.
O poder legislativo não poderá fazer nenhuma lei que possa
prejudicar e obstaculizar o exercício dos direitos naturais e civis,
consignados no presente título e garantidos pela Constituição.
49
Declaração dos direitos do homem e do cidadão, disponível em www.dhnet.org.br,
acesso em 22 de novembro de 2010. 50
―A Assembléia Nacional, desejando estabelecer a Constituição francesa sobre a base
dos princípios que ela acaba de reconhecer e declarar, abole irrevogavelmente as
instituições que ferem a liberdade e a igualdade dos direitos‖ (Constituição Francesa de
1791, disponível em www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/const91.pdf, acesso em 22 de
novembro de 2010). 51
Israel, Direito das liberdades fundamentais, 2005, p. 103-105.
30
Mas como a liberdade consiste em só fazer aquilo que possa
prejudicar os direitos de outrem e a segurança pública, a lei pode
estabelecer penas contra atos que, ao atacarem a segurança
pública ou os direitos de outrem, sejam nocivos à sociedade.
A Constituição garante a inviolabilidade das propriedades, ou a
justa e prévia indenização daquelas propriedades cuja
necessidade pública, legalmente comprovada, exija o sacrifício.
Constituições de outros Estados também asseguraram direitos
fundamentais na esteira da tradição liberal52
. Pode-se falar da Constituição
espanhola de 1812, norueguesa de 1814, portuguesa de 1822, brasileira de
1824, belga de 1831, das Constituições da Itália em 1848 e da Alemanha
em 1849.
No contexto brasileiro, após a independência, buscou-se a
promoção da unidade nacional e a realização do liberalismo por meio de
uma constituição escrita. Para tanto, a Constituição Política do Imperio do
Brazil de 182453
, que regeu o país até o fim da monarquia, combinando
idéias de constituições européias, como a francesa e a espanhola, previa um
mecanismo de divisão de poderes (artigos 9º e 1054
) – segundo a
formulação quadripartida de Benjamin Constant – e uma declaração de
direitos (artigo 17955
), conforme postulava o artigo 16 da Declaração
52
Perez Luño, Los derechos fundamentales, 2005, p. 37; Velloso, Os direitos sociais na
Constituição do Brasil, 2003, p. 4; Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho,
2007, p. 29. 53
As constituições e a legislação infraconstitucional do Brasil estão disponíveis em
www.planalto.gov.br, acesso em fevereiro de 2010. 54
―Art. 9. A Divisão, e harmonia dos Poderes Politicos é o principio conservador dos
Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias, que a
Constituição offerece. Art. 10. Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do
Imperio do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder
Executivo, e o Poder Judicial.‖ (Constituição Política do Império do Brasil, disponível
em: www.planalto.gov.br, acesso em 22 de novembro de 2010). 55
―Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros,
que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela
Constituição do Imperio, pela maneira seguinte (...)‖ (Constituição Política do Imperio
do Brazil de 1824, disponível em: www.planalto.gov.br, acesso em 22 de novembro de
2010).
31
francesa56
. Basicamente, os direitos básicos assegurados eram a liberdade, a
segurança e a propriedade, sendo estes detalhados em 35 incisos. Entre
eles: ―IV. Todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras,
escriptos, e publica-los pela Imprensa, sem dependencia de censura (...)‖;
―V. Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que
respeite a do Estado, e não offenda a Moral Publica‖; ―XIII. A Lei será
igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção
dos merecimentos de cada um‖.
Os liberais lutaram por maior descentralização, o que foi
conquistado com a Constituição da República dos Estados Unidos do
Brasil, de 1891. Nela, foi abolido o poder moderador, agasalhando-se a
doutrina tripartida de Montesquieu, e foram asseguradas as liberdades
democráticas57
. No caput do artigo 77, rezava: ―A Constituição assegura a
brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade‖58
, nos
termos dos 31 parágrafos seguintes, destacando-se: ―§ 1º - Ninguém pode
ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei‖; ―§ 2º - Todos são iguais perante a lei‖; ―§ 8º - A todos é lícito
associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo intervir
a polícia senão para manter a ordem pública‖; ―§ 17 - O direito de
propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia‖; ―§ 18 - É
inviolável o sigilo da correspondência‖.
56
Silva [José Afonso da], Curso de direito constitucional positivo, 2000, p. 76-77;
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2007, p. 29. O artigo 16: ―A
sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a
separação dos poderes não tem Constituição‖ (Declaração dos direitos do homem e do
cidadão, disponível em www.dhnet.org.br, acesso em 22 de novembro de 2010). 57
Silva [José Afonso da], Curso de direito constitucional positivo, 2000, p. 80-81. 58
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, disponível em:
www.planalto.gov.br, acesso em 22 de novembro de 2010.
32
À semelhança destas, as Constituições seguintes preservaram no
texto uma declaração de direitos civis, apesar de todos os problemas de
efetividade que enfrentaram: Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil de 1934 (Título III – ―Da Declaração de Direitos‖,
Capítulo II – ―Dos direitos e garantias individuais‖), Constituição dos
Estados Unidos do Brasil de 1937 (―Dos direitos e garantias individuais‖,
artigos 122 e 123), Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946
(Título IV – ―Da declaração de direitos‖, Capítulo II – ―Dos direitos e
garantias individuais‖), Constituição da República Federativa do Brasil de
1967 (Título II – ―Da declaração de direitos‖, Capítulo IV – ―Dos direitos e
garantias individuais‖), a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 (Título II –
―Da declaração de direitos‖, Capítulo IV – ―Dos direitos e garantias
individuais‖) e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(Título II – ―Dos direitos e garantias fundamentais‖, Capítulo I – ―Dos
direitos e deveres individuais e coletivos‖).
Essas constituições brasileiras, todavia, se caracterizam por um
grande déficit de efetividade. Segundo Carvalho59
, o período colonial legou
ao Brasil uma herança de escravidão, que negava a condição humana do
escravo, e a grande propriedade rural, fechada à ação da lei. Esses fatores
revelaram-se persistentes e consistiram e ainda consistem em verdadeiros
empecilhos ao exercício dos direitos civis.
O Brasil foi o último país de tradição cristã e ocidental a libertar
escravos, o fazendo em 1888. Durante todo o período imperial, a
escravidão era o principal instituto na ordem econômica brasileira, havendo
escravos em todas as províncias, no campo e nas cidades, sendo a posse de
escravos muito difundida. Mesmo após a edição da Lei Áurea e da
Constituição Republicana de 1891, aos libertos não foram dadas nem
escolas, nem terras, nem empregos, de modo que muitos regressaram para
59
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2007, p. 45-56.
33
as fazendas para retomar o trabalho por baixo salário, sendo até os dias
atuais sentidos os efeitos da escravidão por setores da população brasileira.
Em relação à grande propriedade, o regime do coronelismo
predominou na sociedade rural até 1930, ainda exercendo seu poder em
algumas áreas do país, como Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Esse regime
significa a negação da justiça. Direitos de ir e vir, o direito de propriedade,
a inviolabilidade do lar, a proteção da honra e da integridade física, o
direito de manifestação, ficavam todos dependentes do poder do coronel. A
lei, que devia ser garantia de igualdade, tornava-se instrumento de castigo,
arma contra os inimigos. Daí a expressão popular da época: ―Para os
amigos, tudo; para os inimigos, a lei‖.
A esse quadro são acrescentados os períodos ditatoriais
experimentados no século XX, o Estado Novo de 1937 a 1945 e o Regime
Militar de 1964 a 1985, nos quais houve supressão de direitos civis.
Especialmente em relação ao segundo período, Carvalho60
destaca que os
direitos civis foram duramente atingidos por medidas de repressão,
especialmente por meio dos ―atos institucionais‖ editados pelos presidentes
militares. Houve censura da imprensa, eliminando-se a liberdade de
opinião; não havia liberdade de reunião, sendo os partidos regulados e
controlados pelo governo e os sindicatos estavam sob constante ameaça de
intervenção; o direito de defesa era cerceado por prisões arbitrárias, sendo
suspenso o habeas corpus para crimes contra a segurança nacional; a
justiça militar julgava crimes civis; a inviolabilidade do lar e da
correspondência eram inexistentes; o direito à integridade física era
desconsiderado nos casos de tortura praticados nos cárceres do governo.
A Constituição brasileira de 1988 representa nesse contexto um
marco histórico na recuperação dos direitos civis estabelecidos antes do
regime militar, trazendo também importantes inovações, como a criação do
60
Ibidem, p. 158-167.
34
direito ao habeas data, o mandado de injunção, a definição do racismo
como crime inafiançável e imprescritível e da tortura como crime
inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, a proteção do consumidor,
entre outros61
. E foi somente após a redemocratização e a promulgação da
nova Constituição que atos internacionais como o Pacto internacional sobre
direitos civis e políticos de 1966, a Convenção americana sobre direitos
humanos – Pacto de São José – de 1969 e a Convenção contra a tortura e
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes de 1984
entraram em vigor no Brasil, respectivamente por meio dos Decretos n. 592
de 1992, n. 678 de 1992 e n. 40 de 199162
.
Diversos diplomas normativos, de natureza civil e penal, estão em
vigor no Brasil e têm como objetivo regular o exercício da liberdade
individual, bem como promover sua proteção e de outros bens jurídicos
relacionados, como a vida, a integridade física e moral e a propriedade
contra intervenções ilegítimas, podendo ser mencionados os Códigos Civil
(Lei n. 10.406 de 2002) e Penal (Decreto-Lei n. 2.848 de 1940), as
respectivas legislações extravagantes, as leis processuais, as leis que
regulam o exercício da Administração Pública, entre outras.
61
Ibidem, p. 209. 62
Antes de 1988, podem ser destacados os seguintes atos internacionais relacionados a
direitos civis: a Convenção sobre a Escravatura de 1926 (Decreto n. 66 de 1965), a
Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à mulher de 1948
(Decreto n. 31.643 de 1952), Convenção para a Prevenção do Crime de Genocídio de
1948 (Decreto n. 30.822 de 1952), as Convenções para a melhoria da sorte dos feridos,
relativa ao tratamento dos prisioneiros de guerra e relativa à proteção dos civis em
tempos de guerra (Decreto n. 42.121 de 1957), a Convenção relativa à escravatura de
1953 e sobre a abolição da escravatura, tráfico de escravos e práticas análogas (Decreto
n. 58563), a Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação racial de 1966 (Decreto n. 65.810 de 1969). Entre os atos realizados após
1988, e que estão em vigor no Brasil, menciona-se: o Protocolo à convenção americana
sobre direitos humanos relativo à abolição da pena de morte de 1990 (Decreto n. 2.754
de 1998), a Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra
a mulher de 1994 (Decreto n. 1.973 de 1996) e o Protocolo facultativo à Convenção
contra a tortura de 2002 (Decreto n. 6.085 de 2007).
35
1.2 A liberdade dos antigos: os direitos políticos
A garantia de direitos civis pelo Estado é fundamental para que haja
democracia. A idéia de um indivíduo livre, sujeito de vontade racional,
capaz de elaborar juízos que se prestam para orientação de suas condutas,
inclusive aquelas de natureza política, levou Bovero63
a identificar tal
situação como o ―princípio da democracia‖. O indivíduo opera como o
ponto de partida fundamental para a democracia.
Examinando a relação dos direitos civis e políticos com o ideal da
liberdade, Constant64
identifica uma diferença de concepção da liberdade
pelos gregos, os ―antigos‖, e pelos pensadores iluministas, os ―modernos‖.
Constant denomina os direitos civis como a ―liberdade dos modernos‖ e os
direitos políticos como a ―liberdade dos antigos‖, pois na Modernidade os
indivíduos buscam a independência em sua vida privada, sendo a soberania
do Estado limitada por essa esfera de liberdade. Para os gregos, a liberdade
consistia em exercer de modo coletivo e direto a soberania: deliberavam em
praça pública sobre guerra e paz; concluíam com os estrangeiros tratados
de aliança; votavam as leis ou pronunciavam julgamentos.
Embora aponte as diferenças entre as concepções, Constant65
exorta
acerca de seu caráter complementar. Para ele, a ênfase excessiva em uma
ou outra liberdade gera perigos. Em relação à liberdade antiga, o risco está
em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no
poder social, os homens não se preocupam com os direitos e garantias
individuais. De seu turno, o perigo da liberdade moderna está em que,
absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de interesses
particulares, os indivíduos renunciam facilmente ao direito de participar do
poder político. 63
Bovero, Contra o governo dos piores: uma gramática da democracia, 2002, p. 28. 64
Constant, Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos, 1985, p. 10, 11. 65
Ibidem, p. 23.
36
Por certo, o afastamento da vida política não significa apenas a
abdicação do exercício dos direitos políticos. Se, de um lado, os direitos
civis são fundamentais para o exercício dos direitos políticos, de outro, o
exercício destes é essencial para a manutenção e ampliação daqueles, de
modo que os direitos civis e os direitos políticos estão em estreita e
evidente relação de complementaridade.
A respeito do avanço dos direitos políticos na Modernidade,
destaca-se que sua ocorrência se deu especialmente a partir do desejo de
retornar aos ideais da cidadania grega, à sua visão de liberdade (sem
prejuízo da liberdade moderna). Especialmente a fase de transição da Idade
Média para a Modernidade, conhecida como Renascença (séculos XIV a
XVII), caracterizou-se pelo questionamento da tradição medieval,
colocando-a em oposição aos sistemas filosóficos gregos, os quais
procurou resgatar.
The new birth of the purely theoretical spirit is the true meaning
of the scientific ―renaissence‖, and in this consists also its
kinship of spirit with Greek thought, which was of decisive
importance for its development66.
O Renascimento pode ser divido em dois períodos: o humanístico e
o da ciência natural. A fronteira entre os dois períodos encontra-se
possivelmente no século XVI. O primeiro período dedicou-se a suplantar a
tradição medieval pelo pensamento grego genuíno, sendo que o segundo foi
marcado pelo desenvolvimento gradativo das ciências naturais. Pode-se
dizer que a ciência natural moderna é a filha do humanismo67
. Quanto ao
66
―O novo nascimento do espírito puramente teorético é o verdadeiro significado da
‗renascença‘ científica, e é nisto que consiste também a sua familiaridade de espírito
com o pensamento grego, que foi de importância crucial para seu desenvolvimento‖
(WINDELBAND, 1950, p. 350, tradução nossa). 67
Windelband, A History of philosophy: with especial reference to the formation and
development of its problems and conceptions, 1950, p. 351.
37
último período, destacam-se Kepler, Galileu e Newton como cientistas
naturais e Bacon, Descartes e Hobbes, como expoentes filosóficos.
Se o Renascimento marcou o período de transição para os Tempos
Modernos, no estágio seguinte, denominado Iluminismo (século XVIII a
meados do século XIX), suas bases já estavam postas. Por certo, a filosofia
grega exercia grande influência na busca pelo conhecimento, sendo que,
assim como no Renascimento, os pensadores iluministas buscavam uma
―visão secular de vida‖68
.
Todavia, até então, a ênfase investigativa era de caráter
predominantemente metafísico, em especial no que se refere ao primeiro
período do Renascimento. O Iluminismo rompeu com essa tendência
especulativa, dedicando-se com maior afinco às questões da vida humana69
.
O início da filosofia iluminista remonta à Inglaterra, com Locke,
Berkeley e Hume, mas estendeu-se também à França, com Pierre Bayle,
Voltaire, Rousseau e Montequieu, e depois à Alemanha, com Leibniz,
Christian Wolff, Christian Thomasius e Kant. Este desempenhou
importante papel, pois a partir de seu pensamento desenvolveu-se o
Idealismo Alemão, representado pelo próprio Kant, por Fichte, Schelling,
Schleiermacher e Hegel70
.
Quanto à influência grega na visão política iluminista, considera-se
como principal expoente o sistema filosófico aristotélico. Foi Aristóteles
quem melhor fundamentou os direitos políticos, como advindos do status
de cidadão. Para o filósofo, o ser humano é por natureza um ―animal
político‖ – zoón politikón. No homem, é inata a tendência de viver em
sociedade com os próprios semelhantes, e desse modo, a vida social uma
necessidade natural. Esse agrupamento natural reclama, todavia, por
organização. É preciso haver governo; decisões são necessárias. 68
Ibidem, p. 438. 69
Ibidem, p. 438. 70
Ibidem, p. 438.
38
Ao se indagar sobre quem deve participar do governo, surge a
figura do cidadão. Cidadão é aquele dotado da ―virtude cívica‖, a
capacidade e a oportunidade de participar do governo, isto é, nos cargos
públicos e na administração política e legal. Nesse sentido, tão logo um
homem se torne capacitado para participar da autoridade, deliberativa ou
judicial, deve ser considerado cidadão do Estado71
.
Observa-se, contudo, que em função da limitada concepção
antropológica dos gregos, e não tanto de suas concepções políticas72
,
excluíam do status de cidadão as mulheres, os escravos e os estrangeiros,
ainda que habitantes da pólis. Estes tinham garantidos uns poucos direitos
civis, mas nenhum direito político.
O desenvolvimento do pensamento político no Iluminismo,
fundamentalmente a partir das fontes gregas, possibilitou o avanço dos
direitos políticos nos séculos XVIII, XIX e XX, em particular na Inglaterra,
nos Estados Unidos e na França.
Na Inglaterra73
, o desenvolvimento dos direitos políticos foi
possibilitado pelas revoluções do século XVII, que resultaram na limitação
do poder monárquico e na instauração do regime parlamentarista, que
perdura até os dias de hoje. Essa transição foi iniciada na década de 1640
com a Revolução Puritana, culminando com a Revolução Gloriosa em
1688.
Nesse período, destaca-se a proposta de uma Constituição escrita
pelos Levellers (―niveladores‖). Em 1647, esse movimento publica o
Agreement of the People, que consistiu de uma proposta que reivindicava,
além de outros direitos, o voto universal masculino. A proposta não foi
71
Aristóteles, Política, 1999, p. 212-219. 72
Bovero, Contra o governo dos piores: uma gramática da democracia, 2002, p. 30. 73
Informações sobre as revoluções e a reforma política da Inglaterra disponíveis em
www.parliament.uk e www.nationalarchives.gov.uk, acesso em 23 de novembro de
2010.
39
aceita e o movimento foi reprimido durante o governo de Oliver Cromwell
em 1653.
Até o início do século XIX, poucos ingleses tinham direito ao voto.
Em uma pesquisa realizada em 1780, foi revelado que menos de 3% da
população da Inglaterra, Gales e Escócia faziam parte do eleitorado. Após a
Revolução Francesa e sob a influência das idéias de Thomas Paine na obra
―Rights of Man‖, surgiram movimentos de reivindicação do direito de voto
para todos os homens.
Em 1832, o primeiro Reform Act conferiu o direito de voto nas
cidades a todos os homens que ocupassem uma propriedade com valor
anual de dez libras, o que excluía seis em cada sete homens do processo
eleitoral. Houve ampliação da cidadania com novo ato em 1867, quando
dois em cada cinco ingleses passaram a votar. O terceiro ato de reforma
ocorreu em 1884, por meio do qual todos os homens que possuíam casa, na
zona urbana ou rural, poderiam votar.
É digno de nota o fato que, durante a votação do ato de 1867, um
dos membros do Parlamento, John Stuart Mill, encaminhou proposta de
emenda para conferir às mulheres o direito de voto. Mas, seu projeto não
foi aprovado74
. Dois anos depois, Mill publica um eloqüente ensaio, ―The
subjection of women‖, onde apresenta diversos argumentos a favor da
igualdade dos sexos, incluindo direitos políticos e à educação. Em suas
palavras:
To have a voice in choosing those by whom one is to be
governed, is a means of self-protection due to everyone, though
he were to remain forever excluded from the function of
governing: and that women are considered fit to have such a
choice, may be presumed from the fact, that the law already
gives it to women in the most important of all cases to
themselves: for the choice of the man who is to govern a woman
to the end of life, is always supposed to be voluntarily made by
74
Wilson, John Stuart Mill, 2009.
40
herself. In the case of election to public trusts, it is the business
of constitutional law to surround the right of suffrage with all
needful securities and limitations; but whatever securities are
sufficient in the case of the male sex, no others need be required
in the case of women. Under whatever conditions, and within
whatever limits, men are admitted to the suffrage, there is not a
shadow of justification for not admitting women under the
same75
.
Apesar do avanço trazido pelas reformas, na época do Reform Act
de 1884, a Inglaterra era considerada um dos países menos democráticos da
Europa. Foi somente no século XX, a partir das manifestações organizadas
pela Women’s Social and Pollitical Union76
desde 1903, que a Grã-
Bretanha experimentou o sufrágio universal em 1918, ainda com restrição
etária diferenciada para mulheres (homens a partir de 21 anos e mulheres
somente com idade superior a 30 anos).
Nos Estados Unidos, apesar de originalmente a Constituição não
restringir os direitos políticos aos homens brancos, o direito de voto
somente foi assegurado aos negros a partir da 15ª Emenda, de 1870, e às
mulheres com a 19ª Emenda, de 1920. Com a 26ª Emenda, de 1971, o
direito de voto foi assegurado a todos os maiores de 18 anos.
No primeiro caso, a 15ª Emenda representou um avanço no âmbito
legal ao prever que ―o direito ao voto dos cidadãos dos Estados Unidos não
75
―A possibilidade de alguém decidir por quem será governado é um meio de auto-
proteção devido a todos, ainda que essa escolha seja feita por alguém permanentemente
excluído da função de governo: e que as mulheres devem ser consideradas aptas para
essa escolha pode ser presumido pelo fato de que a lei já confere às mulheres o direito
sobre a mais importante escolha: decidir qual homem irá governar sua vida até o fim,
decisão que deve ser tomada apenas por ela e de modo voluntário. No caso da eleição
para cargos públicos, é papel do direito constitucional proteger o direito de sufrágio com
todas as limitações e ressalvas necessárias; mas quaisquer ressalvas consideradas
suficientes para o caso do sexo masculino, são também para as mulheres, sem adições.
Sob quaisquer condições e dentro de quaisquer limites nos quais os homens são
admitidos ao sufrágio, não existe qualquer sombra de justificativa para não admitir as
mulheres sob as mesmas condições e os mesmos limites‖ (MILL, 2006, p. 59, tradução
nossa). 76
Women’s Social and Political Union, In: Encyclopædia Britannica – online,
disponível em www.britannica.com. Acesso em 07 de dezembro de 2010.
41
deve ser negado ou cerceado pelos Estados Unidos ou por qualquer outro
Estado por motivo de raça, cor, ou condição prévia de servidão‖77
. No
entanto, tal medida restou inefetiva em muitos Estados, pois era cobrada
uma taxa como pré-condição de voto (poll tax), limitando o exercício do
direito pelos mais pobres, entre os quais estava a maioria dos negros78
. Foi
somente na década de 1960, com o Civil Rights Act de 1964, a 24ª Emenda
de 1964 e com o Voting Rights Act de 1965, que tal restrição foi
definitivamente vedada79
. A 24ª Emenda previu que:
The right of citizens of the United States to vote in any primary
or other election for President or Vice President, for electors for
President or Vice President, or for Senator or Representative in
Congress, shall not be denied or abridged by the United States
or any State by reason of failure to pay any poll tax or other
tax80
.
Em relação à igualdade de sexos, o século XIX presenciou o
surgimento de diversos movimentos reivindicatórios dos direitos políticos
das mulheres81
. Fundada nessa época, em 1869, a National Woman
Suffrage Association82
defendia a reforma política para incluir as mulheres
na cidadania, por meio da organização de debates públicos. Esses direitos,
no entanto, foram proclamados inicialmente na Seneca Falls Declaration of
77
Tradução nossa. Texto original: ―The right of citizens of the United States to vote
shall not be denied or abridged by the United States or by any State on account of race,
color, or previous condition of servitude.‖. 78
Poll Tax, In: Encyclopædia Britannica – online, disponível em www.britannica.com,
acesso em 05 de dezembro de 2010. 79
Os documentos estão disponíveis em www.law.cornell.edu, acesso em 05 de
dezembro de 2010. 80
―O direito dos cidadãos dos Estados Unidos de votar em qualquer eleição primária ou
outras eleições para Presidente ou Vice-Presidente, ou para Senadores ou
Representantes no Congresso, não deve ser negado ou cerceado pelos Estados Unidos
ou por qualquer outro Estado por motivo de falha no pagamento de qualquer taxa
eleitoral ou outra taxa‖ (tradução nossa). 81
Mill, The Subjection of Women [1869], p. 16. 82
National Woman Suffrage Association, In: Encyclopædia Britannica – online,
disponível em www.britannica.com, acesso em 25 de junho de 2010.
42
Sentiments83
de 1848, que os reivindicava com fundamento no direito inato
e inalienável à igualdade. Nesse sentido, a 19ª Emenda, ao determinar que
―o direito ao voto dos cidadãos dos Estados Unidos não deve ser negado ou
cerceado pelos Estados Unidos ou por qualquer outro Estado por motivo de
sexo‖84
, foi o resultado da luta pela igualdade e constitui o marco da
extensão dos direitos políticos às mulheres.
Na França, a queda do Antigo Regime marca o início de suas mais
importantes reformas políticas. Nesse contexto, as propostas de Emmanuel
Sieyés, Jean-Jacques Rousseau e Nicolas de Condorcet, ainda que
utilizando diferentes abordagens, representam o espírito revolucionário e
ressaltam a necessidade de participação dos indivíduos na gestão da vida
pública.
Sieyés, antes do início da Revolução Francesa, apresentou uma
importante teoria em defesa da cidadania85
. No Antigo Regime, o reino era
representado diante do rei por meio dos Estados Gerais, que eram
compostos pela Nobreza, pelo Clero e pelo Terceiro Estado. Embora este
fosse composto pela maioria dos cidadãos, os quais eram pertencentes à
ordem comum, o monopólio político era detido pela Nobreza e pelo Clero,
uma vez que as decisões tomadas pelos Estados Gerais eram por Estado, e
não por cabeça. Desse modo, até aquele momento, o Terceiro Estado,
apesar de ser composto pela maioria dos cidadãos, não efetiva participação
política, pois os direitos políticos de seus membros eram nulos.
Diante dessa situação, são propostos três pedidos pelo abade:
primeiro, que a escolha dos representantes do Terceiro Estado seja
realizada apenas entre os cidadãos que dele sejam parte realmente,
83
Declaration of Sentiments, disponível em www.fordham.edu, acesso em 25 de junho
de 2010. 84
Tradução nossa. Texto original: ―The right of citizens of the United States to vote
shall not be denied or abridged by the United States or by any State on account of sex‖. 85
Sieyès, A Constituinte burguesa, 1997, p. 56-75.
43
excluindo-se todos os que tenham quaisquer privilégios; segundo, que o
número de deputados do Terceiro Estado seja o mesmo que o do Clero e da
Nobreza; terceiro, que o voto nos Estados Gerais seja por cabeça, e não por
ordens.
Todavia, apesar de fazer apologias ao Terceiro Estado, em
detrimento da nobreza e do clero, adotou uma postura exclusivista quanto
àqueles que receberiam a qualidade de cidadãos. Para Sieyés, cidadãos
eram aqueles que possuíam a ―virtude cívica‖. Estes seriam os cidadãos
ativos, dotados de igualdade interna entre si, ao passo que os demais, como
as mulheres, os servos, os pobres e os mendigos, seriam os cidadãos
passivos, com direito à proteção da própria pessoa, da propriedade e da
liberdade. Esta massa excluída era considerada ignorante e sem vontade
própria, cabendo aos cidadãos ativos o poder de governo. Embora tenha
contribuído para a eliminação de privilégios, Sieyés manteve a
marginalização política daqueles indivíduos86
.
De modo contrário, Rousseau afirmava a igualdade ampla entre os
aderentes do pacto social. Este, cujo objetivo seria formar uma associação
que ―defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a
força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo
a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes‖87
, possibilita que
seja para todos estabelecida a igualdade (pois todos igualmente alienam
sem reservas seus direitos naturais à comunidade toda) e a proteção da
liberdade (isto é, liberdade convencional) por meio da força comunitária.
86
Canotilho (1993, p. 518-519) aponta que Sieyés utiliza a distinção entre direitos civis
e políticos para afastar a possibilidade de sufrágio universal. Comenta que o autor
―formula esta distinção da seguinte maneira: os direitos civis ‗devem beneficiar todos os
indivíduos‘; pelo contrário, nem todos têm o direito a tomar parte activa na formação
dos poderes públicos, beneficiando de direitos políticos. Tal como já sucedia com a
dicotomia entre direitos do homem e do cidadão o artifício da distinção permitirá
proclamar o princípio da igualdade, mas, ao mesmo tempo, evitar o sufrágio universal‖. 87
Rousseau, Do contrato social, 1999, p. 69-70.
44
Sobre a associação, segundo Rousseau, havido o pacto social, por
meio do qual cada um põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a
direção suprema da vontade geral, em lugar da pessoa do particular de cada
contratante, surge um corpo moral e coletivo, que se compõe de tantos
membros quantos são os votos da assembléia, e que desse mesmo ato
recebe sua unidade. A esse respeito assevera:
Essa pessoa pública que se forma, desse modo, pela união de
todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o
de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus
membros de Estado quanto passivo, soberano quando ativo, e
potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos
associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se
chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da
autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do
Estado88
.
Esse corpo moral, designado corpo político ou soberano, não é
conduzido senão pela vontade geral. Para Rousseau89
, ―só a vontade geral
pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de sua
instituição, que é o bem comum‖. O fundamento desse princípio está no
fato de que foram os interesses particulares em oposição que tornaram
necessário o estabelecimento das sociedades, de modo que o Estado não
pode ser dirigido por interesses particulares dos indivíduos, mas somente
pelo que de comum neles há, isto é, a sociedade deve ser governada pelo
interesse comum.
Nesse sentido, Rousseau é defensor dos direitos dos indivíduos a
participarem ativamente na vida política, pois são eles quem compõem o
corpo moral e coletivo. Afirma que a soberania popular não pode ser
representada ou alienada, devendo os deputados do povo ser seus
comissários (mas não representantes), e por tal razão toda lei não ratificada
88
Ibidem, p. 71. 89
Ibidem, p. 85.
45
diretamente pelo povo é nula. O poder legislativo, portanto, seria exercido
diretamente pelo povo, como ocorria entre os gregos (o povo fazia tudo o
que precisava por si mesmo, reunindo-se freqüentemente na praça). Diante
disso, não bastaria para a caracterização de um povo como livre as eleições
de membros do parlamento, crítica que dirige aos ingleses. O mesmo,
contudo, não se aplica ao poder executivo, que não passa de aplicador da
lei90
.
Fundamental também para o desenvolvimento conceitual da
cidadania foi Nicolas de Condorcet. Divergindo de Rousseau, Condorcet,
em seu Projeto de Constituição, admite a conciliação entre a representação
e a participação ativa dos cidadãos na vida pública, por meio da deliberação
democrática realizada em observância a normas e procedimentos. Para ele,
o debate popular constituiria a base do sistema político francês, o qual
deveria acontecer nas Assembléias Primárias, nas quais todos os membros
que comporiam as demais instituições da República (v.g.: Corpo
Legislativo, Conselho Executivo da República, Corpos Administrativos das
Comunas) seriam eleitos e teriam suas atividades fiscalizadas, as atividades
da Assembléia Nacional seriam consultadas e discutidas, poderiam ser
votadas propostas de outras Assembléias Primárias bem como apresentados
projetos de emenda a leis e à própria Constituição. Certamente, o instituto
da deliberação democrática se tornou importante herança para o
constitucionalismo e a democracia moderna91
.
Não bastasse, foi o Marquês de Condorcet quem apresentou o
primeiro ensaio em defesa dos direitos políticos das mulheres, em 1790. Já
nas primeiras linhas, o autor aponta como violação dos direitos naturais, em
especial a igualdade, a exclusão das mulheres das decisões políticas.
90
Ibidem, p. 186-188. 91
Consani, O papel da deliberação democrática no plano constitucional de Condorcet,
2010, p. 64-71.
46
Custom may familiarise mankind with the extent, that even
among those who have violation of their natural rights to such
an lost or been deprived of these rights, no one thinks of
reclaiming them, or is even conscious that they have suffered
any injustice. Certain of these violations (of natural right) have
escaped the notice of philosophers and legislators, even while
concerning themselves zealously to establish the common rights
of individuals of the human race, and in this way to lay the
foundation of political institutions. For example, have they not
all violated the principle of the equality of rights in tranquilly
depriving one-half of the human race of the right of taking part
in the formation of laws by the exclusion of women from the
rights of citizenship? Could there be a stronger proof of the
power of habit, even among enlightened men, than to hear
invoked the principle of equal rights in favour of perhaps some
300 or 400 men, who had been deprived of it by an absurd
prejudice, and forget it when it concerns some 12,000,000
women?92
.
Ao longo do ensaio, Condorcet aponta diferentes argumentos em
defesa de sua tese, mencionando inclusive o fato de que em um não
pequeno número de países, mesmo não tendo sido concedidos direitos
políticos às mulheres, foram estas consideradas dignas de ocupar posições
na realeza93
.
Apesar de tão eloqüente argumentação, a França não viu os direitos
políticos estendidos às mulheres nesse período; o conceito de cidadão não
92
―O costume pode familiarizar a humanidade com o fato de que, mesmo aqueles que
tiveram seus direitos naturais violados a ponto de perdê-los ou serem impedidos de seu
gozo, não se pensa em reclamá-los ou não estão conscientes de terem sofrido tamanha
injustiça. Certamente, essas violações (aos direitos naturais) não têm sido percebidas
pelos filósofos e legisladores, até mesmo por aqueles que se vêem como zelosos dos
direitos individuais comuns à raça humana, os quais lançam a fundação das instituições
políticas com essa perspectiva. Por exemplo, não violaram todos eles o princípio da
igualdade de direitos ao tranquilamente impedirem a metade da raça humana de
exercerem o direito de participar da formação das leis, isto é, ao excluírem as mulheres
dos direitos de cidadania? Poderia haver prova mais contundente da força do hábito, até
mesmo entre homens esclarecidos, que ouvir o princípio da igualdade ser invocado em
favor de talvez 300 ou 400 homens, os quais foram impedidos de seu gozo por um
preconceito absurdo, e esquecer desse princípio quando relacionado a 12.000.000 de
mulheres?‖ (CONDORCET, 1912, p. 5, tradução nossa). 93
Condorcet, The First Essay on the Political Rights of Women: A Translation of
Condorcet’s Essay “Sur l’admission des femmes aux droits de Cité”, 1790 (On the
Admission of Women to the Rights of Citizenship), 1912, p. 11.
47
as abarcava. Interessante destacar que diante da exclusão feminina foi
proposta a ―Declaração dos direitos da mulher e da cidadã‖ por Olympe de
Gouges, em 1791. Em seu artigo 3º, defendia que a soberania residia
essencialmente na nação, entendida como a reunião de mulheres e homens,
da qual emanava toda autoridade. Em 1793, a autora foi guilhotinada em
Paris por ter se oposto aos revolucionários Robespierre e Marat94
.
Em 1804, o Código Civil Napoleônico consagrou a igualdade
perante a lei e a proteção da propriedade, no entanto, foram negados muitos
direitos individuais. A liberdade de expressão foi limitada, a crítica ao
governo era vista como subversiva e às mulheres foram negados os direitos
políticos básicos95
.
Nas décadas seguintes à Revolução, a França passou por
instabilidades econômicas e políticas. Em 1848 (ano de fundação da
Segunda República e o ano das revoluções na Europa), o tema foi
revisitado, mas sem sucesso. De acordo com Moon96
, apesar das
reivindicações desde a década de 1830, por ativistas como Eugenie
Niboyet, Jeanne Deroin, Suzanne Voilquin, Desirée Gay e Pauline Roland,
dos argumentos de que a República iria entrar em colapso sem a
participação moralizante da mulher na vida pública e sem suas habilidades
organizacionais, e das petições pelo direito de eleger representantes para a
convenção constitucional, as mulheres não conseguiram ver a pretensão
atendida. Tiveram o voto nacional negado, foram proibidas de formar
clubes políticos, impedidas de se candidatarem, presas por atividade
política, entre outros.
Entre março e maio de 1871, na Comuna de Paris, movimentos de
militância política feminista promoveram a realização de reuniões para
94
Assmann, Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, de Olympe de Gouges:
Apresentação e tradução, 2007, p. 1. 95
Bulliet, The Earth and Its Peoples: A Global History: Since 1500, 2009, p. 535. 96
Moon, Woman’s rights in France, 2004.
48
discussão de temas e desenvolvimento de estratégias relacionadas à
igualdade. Embora a ênfase fosse direcionada à igualdade de direitos
econômicos e sociais, os movimentos visavam reformas políticas que
beneficiassem as mulheres97
.
Nos anos seguintes, foram organizados congressos, fundadas
associações, realizados movimentos reivindicatórios de direitos, até que,
em 1944, por meio de um decreto especial do General Charles de Gaulle,
os direitos políticos foram estendidos às mulheres. A primeira participação
das cidadãs em eleições municipais e nacional ocorreu em 1945. O
reconhecimento da igualdade de direitos políticos em sede constitucional
deu-se apenas com a Constituição Francesa de 1946, no parágrafo terceiro
de seu preâmbulo98
.
No Brasil, a regulamentação constitucional da cidadania deu-se
desde a Constituição de 1824. Nessa época, a maioria da população era
excluída do sistema político, uma vez que não tinham direito de voto os
pobres, as mulheres e os escravos99
. De acordo com seu artigo 6º,
considerava-se cidadãos brasileiros os homens livres, nascidos no Brasil, os
estrangeiros desde que filhos de brasileiros, aqueles com residência ou
domicílio no país, assim como os naturalizados na forma da lei, os quais
tinham direitos de votar e ser votado, de participar das eleições primárias.
No entanto, estavam excluídos do rol de eleitores os clérigos de ordens
sacras e os menores de 25 anos que não fossem casados ou oficiais
militares, maiores de 21 anos, ou que não fossem bacharéis formados, bem
como os que não tivessem renda mínima anual de 100 mil-réis.
97
Eichner, Surmounting the barricades: women in the Paris Commune, 2004, p. 9-10. 98
La Citoyenneté politique des femmes: chronologie Du droit de vote et d’éligibilité dês
femmes, In: Assemblée Nationale Site, disponível em www.assemblee-nationale.fr,
acesso em 30 de junho de 2010, e Preamble to the Constitution of 27 October 1946, In:
Conseil Constitutionnel Site, disponível em www.conseil-constitutionnel.fr, acesso em
30 de junho de 2010, tradução nossa. 99
Lopez; Mota, História do Brasil: uma interpretação, 2008, p. 492.
49
A respeito dessa última limitação era de pouca importância. A
maioria da população trabalhadora ganhava mais de 100 mil-réis por ano.
Em 1876, o menor salário do serviço público era 600 mil réis, de modo que
o critério da renda não excluía a população pobre do direito de voto. As
exigências de renda na Inglaterra, na época, eram muito mais altas, mesmo
depois da reforma de 1832. Ademais, os analfabetos não eram excluídos do
exercício do direito de voto. Possivelmente, nenhum país europeu tinha à
época legislação tão liberal100
.
Em 1881, a Câmara dos Deputados aprovou lei que introduzia o
voto direto, eliminando o primeiro turno das eleições. Essa lei aumentou
para 200 mil-réis a exigência de renda, tornou mais rígido o procedimento
para sua comprovação, proibia o voto dos analfabetos e tornava o voto
facultativo. Como conseqüência, de 1 milhão de votantes em 1872,
correspondente a 13% da população livre, desceu para 100 mil eleitores,
0,8% da população total, em 1886, um corte de aproximadamente 90% do
eleitorado. Se na década de setenta a participação política no Brasil era
relativamente superior à maioria dos países europeus, a tendência brasileira
na década de 1880 não foi de ampliação, mas de restrição dos direitos
políticos101
.
A Constituição de 1891 avançou no sentido de reduzir a idade
mínima para votar de 25 para 21 anos. Embora promulgada após a abolição
da escravidão, não beneficiou a esmagadora maioria da população negra,
tendo em vista que excluía do alistamento eleitoral os mendigos e os
analfabetos, além de militares (praças) e religiosos. No tocante às mulheres,
durante os trabalhos de elaboração da Constituição Republicana, houve
quem defendesse o sufrágio universal, para incluir as mulheres na vida
100
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2007, p. 30. 101
Ibidem, p. 38-39.
50
política do país. 31 constituintes subscreveram uma emenda ao projeto de
constituição, mas não foi aprovada102
.
Sem dúvida, houve grande avanço em comparação com o período
colonial. No período de 1822 a 1930, que abrange as duas constituições já
mencionadas, houve eleições ininterruptas no Brasil. Houve alguns casos
de suspensão, mas apenas em situações específicas, como na província do
Rio Grande do Sul durante a guerra contra o Paraguai entre 1865 e 1870, e
por pouco tempo na época da proclamação da República em 1889. Havia
grande freqüência nas eleições, pois os mandatos de vereadores e juízes de
paz eram de dois anos, havia eleições de senadores sempre que um deles
morria, e a Câmara dos Deputados era dissolvida com freqüência. No
entanto, além da exclusão formal de setores da população, em termos de
efetividade, havia muito a ser desenvolvido ainda. Nas cidades, muitos
votantes eram funcionários públicos do governo. Nas áreas rurais, onde
estava 90% da população, havia o controle ou a influência dos grandes
proprietários. Apesar de muitos votarem, a experiência do governo
representativo era relativamente nova, sendo que estava em jogo não o
exercício de um direito do cidadão, mas o domínio político local. As
eleições eram tumultuadas e violentas, vencidas muitas vezes ―no grito‖103
.
Entre 1930 e 1937, o Brasil experimentou uma fase de grande
agitação política. Houve mobilização de pessoas em vários Estados da
Federação, incluindo diferentes grupos sociais, como operários, militares e
industriais. Multiplicaram-se os sindicatos, outras organizações de classe e
partidos. Entre os movimentos políticos, houve a criação do Clube 3 de
Outubro em 1931 e a Revolta Constitucionalista em 1932 (a Revolta
Paulista), cuja reivindicação incluía a convocação de eleições para escolher
uma assembléia constituinte. Foi nesse período também que se deu a
102
Pereira; Daniel, O voto feminino no Brasil, 2009. 103
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2007, p. 31-38.
51
criação do Código Eleitoral Provisório em 1932, introduzindo o voto
secreto, instituindo os deputados classistas (escolhidos não pelos eleitores
em geral, mas pelos sindicatos) e criando uma Justiça Eleitoral (com o
Tribunal Superior Eleitoral). Ampliou-se também a cidadania, incluindo as
mulheres no direito ao voto, apesar de se restringir a mulheres casadas com
autorização do marido, viúvas e solteiras com renda. Estas restrições foram
posteriormente eliminadas, com a edição Código Eleitoral em 1934. Como
conseqüência das manifestações políticas do período, especialmente da
Revolta Constitucionalista, ocorreram as eleições para a Assembléia
Constituinte em 1933, que confirmou Getúlio Vargas na presidência e
elaborou a segunda Constituição republicana do Brasil, inspirada na
Constituição de Weimar104
.
Em relação aos direitos políticos, a Constituição Brasileira de 1934
instituiu a idade de 18 anos como a idade mínima para votar e assegurou às
mulheres em seu texto o direito de voto. Manteve, entretanto, a mesma
restrição política aos mendigos e analfabetos (artigo 108). Em 1937, apesar
do golpe e do estabelecimento do Estado Novo, a Constituição outorgada
por Getúlio Vargas não alterou o quadro dos direitos políticos da
Constituição de 1934, como se verifica pelo seu artigo 117. A Constituição,
todavia, não vigorou (com exceção das Disposições Transitórias e Finais),
por não ter sido convocado o Plebiscito por ela requerido (artigo 187).
Vargas governou através dos decretos-leis, conforme era autorizado pelo
artigo 180. Durante o regime autoritário, foi determinado o fechamento do
Congresso Nacional (artigo 178 da Constituição) e a extinção dos partidos
políticos (Decreto-Lei n. 37, de 02 de dezembro de 1937), claro retrocesso
em relação àquilo que havia sido realizado nos anos anteriores.
Com o fim da Era Vargas em 1945, foram convocadas eleições
presidenciais e legislativas. Em 1946, foi promulgada em Assembléia
104
Ibidem, p. 97-103.
52
Constituinte a Constituição de 1946, marcando o início da
redemocratização. Em relação aos direitos políticos, a Constituição
manteve as conquistas do período anterior, garantindo direitos políticos,
ampliando-os para possibilitar o alistamento eleitoral de mendigos, mas
não de analfabetos (artigo 132)105
. Segundo Carvalho106
, a permanência
dessa restrição não é sem importância, uma vez que, em 1950, 57% da
população ainda era analfabeta. Como o analfabetismo se concentrava na
zona rural, os maiores prejudicados eram os trabalhadores rurais. Contudo,
apesar das restrições, a partir de 1945 a participação do povo na política
cresceu significativamente, tanto em relação às eleições quanto à ação
política organizada dos partidos, sindicatos, ligas camponesas e outras
associações. Se em 1930 os votantes não passavam de 5,6% da população,
em 1960 eram 18%.
O avanço perdurou até 1964, quando mais um regime ditatorial foi
instituído. Os direitos políticos foram restringidos, apesar da manutenção
do Congresso e da realização de eleições. Os períodos de maior repressão
política ocorreram entre 1964 e 1965, com Castelo Branco, e entre 1968 e
1974, especialmente sob o governo de Garrastazu Médici. Os instrumentos
legais foram os atos institucionais editados pelos presidentes militares107
.
105
Em 1950, com o Decreto n. 28.011, passa a vigorar a Convenção interamericana
sobre a concessão dos direitos políticos à mulher, de 1948. Por meio do Decreto n.
52.476 de 1963, vigora a Convenção sobre os direitos políticos da mulher de 1953.
Ambos os documentos reconhecem a igualdade de direitos políticos entre mulheres e
homens. 106
Ibidem, p. 145-146. 107
Ibidem, p. 157-161. Carvalho (2007, p. 164) menciona levantamento feito por
Marcos Figueiredo, segundo o qual, entre 1964 e 1973 foram punidas, com perda de
direitos políticos, cassação de mandato, aposentadoria e demissão, 4.841 pessoas, sendo
maior a concentração dos punidos em 1964, 1969 e 1970. Só o AI-1 atingiu 2.990
pessoas. Foram cassados os mandatos de 513 senadores, deputados e vereadores. 35
dirigentes sindicais perderam os direitos políticos, 3.783 funcionários públicos foram
demitidos, entre os quais se incluíam 72 professores universitários e 61 pesquisadores.
Foram expulsos 1.313 militares. Nas polícias militar e civil, foram 206 os punidos.
Entre 1964 e 1970 ocorreram 483 intervenções em sindicatos, 49 em federações e
quatro em confederações.
53
O primeiro foi introduzido em 1964, pelo qual foram cassados os
direitos políticos pelo período de dez anos de um grande número de líderes
políticos, sindicais, intelectuais e militares. Ocorreram ainda intervenções e
fechamentos de sindicatos, órgãos do movimento operário, e outras
entidades associativas108
. O segundo ato institucional, em 1965, aboliu a
eleição direta para Presidente da República, dissolveu os partidos políticos
criados a partir de 1945, estabeleceu um sistema de dois partidos, ampliou
o poder do Presidente, inclusive dando a ele autoridade para dissolver o
Parlamento. O terceiro ato determinava a eleição de governadores e vice-
governadores de Estado por meio de Colégio Eleitoral (eleição indireta) e
que os prefeitos de capitais e cidades de segurança nacional seriam
indicados e nomeados pelos governadores.
Por meio do quarto ato institucional, o Congresso Nacional foi
convocado para votação e promulgação da nova Constituição, em 1967.
Em 1968 foi editado o mais radical dos atos institucionais, o AI-5, que
determinou o fechamento do Congresso e estabeleceu o governo ditatorial
de Costa e Silva. Em 1969, por meio da Emenda Constitucional n. 1, o
texto da Constituição de 1967 foi completamente revisado, e que
incorporava, aprovava e excluía de apreciação judicial os atos institucionais
(artigos 181 e 182). No que diz respeito ao direito de voto, a Constituição
de 1967-1969 manteve a restrição aos analfabetos (artigo 142 em 1967 e
artigo 147 em 1969).
Após 1974, o Brasil experimentou um processo de liberalização,
com a progressiva eliminação das leis repressivas e com a mobilização dos
oposicionistas. Em 1978 foi revogado o AI-5, diminuíram as restrições à
propaganda eleitoral, foi posto fim à censura prévia e retornaram os
primeiros exilados políticos. Em 1979 foi abolido o bipartidarismo forçado, 108
Foi sob o regime do Ato Institucional n. 1 que o Código Eleitoral Brasileiro (Lei n.
4.737 de 1965) foi promulgado. Alguns de seus dispositivos foram revogados por leis
posteriores e outros não recepcionados pela Constituição de 1988.
54
dando lugar a seis novos partidos. Entre 1978 e 1979, grandes greves
aconteceram em diversas partes do país. Foram fortalecidos os sindicatos.
Organizações como a igreja Católica, a Ordem dos Advogados do Brasil, a
Associação Brasileira de Imprensa e a Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência se opuseram ao regime militar, assim como artistas e
intelectuais. O auge da mobilização popular foi a campanha pelas eleições
diretas, em 1984. Apesar de não ter sido vitoriosa, a campanha não foi
inútil. Apesar de realizada em um colégio eleitoral dominado pelo governo,
na eleição de janeiro de 1985 venceu o candidato da oposição, Tancredo
Neves, que contava com 69% da preferência popular. Terminava, então, o
ciclo dos governos militares109
.
Nesse processo de redemocratização, a emenda constitucional nº 25
de 15 de maio de 1985 vem a avançar em termos de direitos políticos,
excluindo do rol de quem não poderia se alistar os analfabetos (mantendo
apenas os que não poderiam se alistar e os que estivessem privados dos
direitos políticos), e incluiu o §4º no artigo 147, determinando que ―a Lei
disporá sobre a forma pela qual possam os analfabetos alistar-se eleitores e
exercer o direito de voto‖. Todavia, permaneciam como inelegíveis os
inalistáveis e os analfabetos (artigo 150).
Em 1988, a Assembléia Nacional Constituinte redigiu e aprovou a
constituição mais liberal e democrática da história brasileira. Desde 1960,
houve a primeira eleição direita para presidente em 1989. Os direitos
políticos atingiram grande amplitude. A soberania popular é reconhecida
no artigo 1º, parágrafo único, os direitos políticos são previstos nos artigos
14 a 16, sendo eliminada a barreira à universalidade do voto: a restrição aos
analfabetos, para quem o alistamento eleitoral se torna facultativo. Previu-
se a redução da idade de aquisição do direito de voto para 16 anos (voto
facultativo até 18 anos). A única vedação foi a do voto aos conscritos,
109
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2007, p. 173-190.
55
enquanto no exercício do serviço militar obrigatório. No artigo 17 é
assegurada e regulada a liberdade de associação partidária. Ressalta-se
ainda que, após a Constituição de 1988, entra em vigor no Brasil o Pacto
internacional sobre direitos civis e políticos de 1966 (Decreto n. 592 de
1992), que prevê em seu artigo 25, alínea b o direito de todo cidadão ―de
votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por
sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a
manifestação da vontade dos eleitores‖
Embora a experiência democrática não tenha sido sempre salutar
(em referência, por exemplo, à eleição e governo de Fernando Collor,
marcado por um dos mais ambiciosos esquemas de corrupção) e exista uum
longo caminho a ser percorrido, certamente houve um avanço sem
precedentes. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral e do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística110
, há no Brasil aproximadamente 135
milhões de eleitores, o que representa aproximadamente 70% da população
total, percentual superior a qualquer outro período da história brasileira e
comparável aos demais países democráticos modernos. Além disso, a
participação feminina é bastante elevada, com as mulheres constituindo a
maioria do eleitorado nacional. Em relação à transparência e segurança na
votação, as novas tecnologias desenvolvidas, especialmente a urna
eletrônica (utilizada desde 1996), vêm fazendo do Brasil um exemplo para
outros Estados.
1.3 O avanço dos direitos sociais
Se no constitucionalismo clássico dos séculos XVIII e XIX foi
conferido caráter jurídico aos direitos civis e políticos, proclamados por
110
Dados disponíveis em: www.tse.gov.br, agencia.tse.gov.br e www.ibge.gov.br.
Acesso em abril de 2011.
56
filósofos e nas declarações, com avanços até o tempo presente (embora
também com retrocessos e persistente o problema da efetividade), no
século XX houve a expansão da consagração constitucional111
de uma
categoria de direitos entendidos como fundamentais para a vida humana em
dignidade, os direitos econômicos, sociais e culturais, ou chamados apenas
de direitos sociais. Estes direitos representam um significativo marco na
história do constitucionalismo.
Bercovici112
comenta que as Constituições elaboradas no período
posterior à Primeira Guerra Mundial têm em comum a declaração dos
direitos sociais ao lado dos tradicionais direitos civis. Essas novas
Constituições consistem na tentativa de estabelecer uma democracia social,
envolvente de dispositivos relativos à ordem econômica e social, família,
educação e cultura, assim como instituindo a função social da propriedade.
Esses dispositivos, inspirados em concepções socializantes e
configuradores de princípios constitucionais para a intervenção estatal no
111
Expansão, e não surgimento, haja vista que os direitos sociais já haviam sido
previstos, por exemplo, na Declaração francesa de 1789 (―XXI - Os auxílios públicos
são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos infelizes, quer
seja procurando-lhes trabalho, quer seja assegurando os meios de existência àqueles que
são impossibilitados de trabalhar‖; ―XXII - A instrução é a necessidade de todos. A
sociedade deve favorecer tom todo o seu poder o progresso da inteligência pública e
colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos‖; e, ―XXIII - A garantia social
consiste na ação de todos, para garantir a cada um o gozo e a conservação dos seus
direitos; esta garantia se baseia sobre a soberania nacional‖), na Constituição francesa
de 1791 (Título I – Disposições fundamentais garantidas pela Constituição: 3º (...) Será
criado e organizado um estabelecimento geral de socorros públicos para criar as
crianças expostas, aliviar os pobres enfermos e prover trabalho aos pobres válidos que
não o teriam achado. Será criada uma instrução pública comum a todos os cidadãos,
gratuita em relação àquelas partes do ensino indispensáveis para todos os homens), na
Constituição francesa de 1793 (à semelhança da carta anterior), no Decreto de 25 de
fevereiro de 1848 (que impôs ao governo da II República Francesa a garantia de
trabalho a todos os cidadãos), e na Constituição brasileira de 1824 (―Art. 179. A
inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por
base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição
do Imperio, pela maneira seguinte: (...) XXXI. A Constituição tambem garante os
soccorros públicos; XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos‖). 112
Bercovici, Entre o Estado Total e o Estado Social: atualidade do debate sobre o
Direito, Estado e Economia na República de Weimar, 2003, p. 11.
57
domínio social e econômico, constituem o fundamento do novo
―constitucionalismo social‖ que se estabelece em boa parte dos Estados
europeus e alguns americanos.
Movimentos reivindicatórios de direitos sociais têm pelo menos
duas fontes de inspiração: o Manifesto Comunista e as doutrinas socialistas,
com sua crítica ao capitalismo burguês e ao sentido puramente formal dos
direitos do homem; e, a doutrina social da Igreja Católica Romana, a partir
do Papa Leão XIII com a Encíclica Rerum Novarum113
.
Com uma retórica persuasiva, o Manifesto Comunista de Marx e
Engels de 1848 tornou-se um dos textos mais lidos da humanidade,
traduzido para diversos idiomas. Foi proposto em um período histórico
marcado pelo aumento da miséria nas cidades e da opressão ao trabalhador,
e tinha como núcleo de sua doutrina a abolição da propriedade privada.
Segundo Marx e Engels, o primeiro passo nessa revolução
comunista, caracterizada pela ruptura radical com as relações tradicionais
de propriedade, deveria ser a intervenção despótica do proletariado no
direito de propriedade e nas relações burguesas de produção. Isso poderia
ser realizado aplicando-se medidas como: expropriação da propriedade
fundiária e emprego da renda da terra nas despesas do Estado, imposto
fortemente progressivo, abolição do direito de herança, confisco da
propriedade de todos os emigrados e rebeldes, centralização do crédito e
dos meios de transporte nas mãos do Estado, multiplicação das fábricas
nacionais e dos instrumentos de produção, trabalho obrigatório igual para
todos, unificação dos serviços agrícola e industrial, educação pública e
gratuita para todas as crianças. Essas medidas prestar-se-iam para eliminar
as diferenças de classe, sendo que o Estado não mais serviria como gestor
dos negócios da burguesia, não havendo mais dominação de classe, pois
não haveria diferenciação. Em lugar da antiga sociedade burguesa surgiria
113
Silva [José Afonso da], Curso de direito constitucional positivo, 2000, p. 179.
58
uma associação no qual o livre desenvolvimento de cada um seria a
condição para o livre desenvolvimento de todos114
.
Para os autores, seria necessário romper com a tradição que se
desenvolveu a partir da Revolução Francesa. Esta representou a transição
de um modelo de propriedade para outro, isto é, aboliu a propriedade
feudal em favor da propriedade burguesa. Este modelo é por eles
considerado a mais perfeita expressão do modo de produção e apropriação
de produtos que se baseia em antagonismos de classes, na exploração de
uns por outros. Por isso, deve ser abolida115
.
Em 1918, sob inspiração dos ideais socialistas e como produto da
Revolução Russa, é elaborada a Declaração dos Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado. Esta consistiu no documento criado pelo III
Congresso Pan-Russo dos Sovietes dos Deputados Operários, Soldados e
Camponeses, e teve como objetivo assentar ―os princípios essenciais da
Federação das Repúblicas Soviéticas da Rússia‖ (Capítulo IV), ―visando
principalmente a suprimir toda exploração do homem pelo homem, a abolir
completamente a divisão da sociedade em classes, a esmagar
implacavelmente todos os exploradores, a instalar a organização socialista
da sociedade e a fazer triunfar o socialismo em todos os países‖ (Capítulo
II)116
.
Aproximadamente 40 anos após a edição do Manifesto, manifesta-
se a Igreja Católica Romana sobre a questão operária por meio da edição da
Encíclica Rerum Novarum, documento que inaugura a Doutrina Social da
Igreja. Elaborada no pontificado de Leão XIII em 1891, é considerada a
primeira grande intervenção do magistério pontifício sobre problemas
originados pela industrialização e evolução das idéias sociais e políticas na
114
Marx; Engels, Manifesto do Partido Comunista, 2007, p. 66-67. 115
Ibidem, p. 60. 116
Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, disponível em
www.direitoshumanos.usp.br, acesso em 05 de setembro de 2010.
59
Europa Ocidental. Para essa intervenção terão contribuído decisivamente as
pressões dos católicos sociais e a chegada à Itália dos efeitos da industriali-
zacão117
.
Na Encíclica, o Papa condena a proposta comunista118
,
considerando-a ―sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos
proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão
completa do edifício social‖ 119
, e propõe como princípios de uma nova
ordem social. Entre os princípios basilares desta, encontra-se: a
manutenção da propriedade privada (artigos 3 a 5), a família (artigo 6), a
concórdia entre as classes (artigo 9), mútuo respeito entre patrão e
empregado, devendo-se respeitar a dignidade humana deste (artigos 10 e
11), entre outros.
A proposta da Doutrina Social da Igreja, portanto, não é de ruptura
com o capitalismo, mas de transformação das relações entre empregados e
117
Falcão, art. Rerum Novarum, 2010. 118
―3. Os Socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os
que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser
suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua
administração deve voltar para - os Municípios ou para o Estado. Mediante esta
transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades
que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz
aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito,
prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, é sumamente injusta,
por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender
para a subversão completa do edifício social.‖; ―35. Vede, Veneráveis Irmãos, por quem
e por que meios esta questão tão difícil demanda ser tratada e resolvida. Tome cada um
a tarefa que lhe pertence; e isto sem demora, para que não suceda que, adiando o
remédio, se tome incurável o mal, já de si tão grave. Façam os governantes uso da
autoridade protectora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos
seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias
legítimas; e, visto que só a religião, como dissemos no princípio, é capaz de arrancar o
mal pela raiz, lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos
costumes cristãos, sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência
humana serão pouco aptos para produzir salutares resultados. Quanto à Igreja, a sua
acção jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais
livremente se possa desenvolver.‖ (LEÃO XIII, art. 3 e 35, 1891). 119
Leão XIII, Carta Encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII sobre a condição
dos operários, 1891, art. 3.
60
empregadores, bem como ressalta o papel do Estado, da autoridade pública,
na solução dos conflitos sociais e redução das desigualdades (artigo 8).120
Os dois documentos, o Manifesto e a Encíclica, evidenciam a
preocupação com o grave problema das condições de vida dos
trabalhadores no século XIX. No constitucionalismo, o reflexo de tais
preocupações deu-se com a incorporação de direitos sociais nos textos das
constituições do século XX, tendo como ponto de partida oficial a
Constituição alemã de 1919, embora seja de grande importância histórica a
Carta mexicana de 1917.
A Constituição mexicana de 1917 é fruto da Revolução mexicana
de 1910. Ela reconhece e positiva as reivindicações de seus princípios
inspiradores, os quais têm como núcleo a reforma agrária. A Revolução
mobilizou milhões de camponeses e índios e se levantava contra a ditadura
do Presidente Porfírio Díaz, que perdurou de 1876 a 1911, apoiado pelo
exército, pela Igreja Católica Romana, por empresas privadas e pelos
grandes proprietários de terras, assim como se ergueu em defesa da
120
Outro importante documento da Doutrina Social da Igreja foi elaborado pelo papa
João Paulo II, Redemptor Hominis. Neste, buscou-se combater o individualismo,
substituindo-o pelo princípio da solidariedade. Em seu artigo 16, defendeu ―Com efeito,
existe já um real e perceptível perigo de que, enquanto progride enormemente o
domínio do homem sobre o mundo das coisas, ele perca os fios essenciais deste seu
domínio e, de diversas maneiras, submeta a elas a sua humanidade, e ele próprio se
torne objecto de multiforme manipulação, se bem que muitas vezes não directamente
perceptível; manipulação através de toda a organização da vida comunitária, mediante o
sistema de produção e por meio de pressões dos meios de comunicação social. O
homem não pode renunciar a si mesmo, nem ao lugar que lhe compete no mundo
visível; ele não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas económicos,
escravo da produção e escravo dos seus próprios produtos. Uma civilização de feição
puramente materialista condena o homem a tal escravidão, embora algumas vezes,
indubitavelmente, isso aconteça contra as intenções e as mesmas premissas dos seus
pioneiros‖ (PAULO II, art. 16, 1976). Comentando a respeito do capitalismo e do papel
do Estado, o jurista e filósofo alemão Böckenförde (2009) defende que, para a solução
dos graves problemas econômicos e sociais ocorridos no sistema capitalista, é
necessário substituir o extenso individualismo em matéria de propriedade, o qual toma
como ponto de partida e princípio estruturador o lucro dos indivíduos potencialmente
ilimitado, pelo princípio da solidariedade, como proposto pela Doutrina Social da
Igreja, especialmente na Encíclica Redemptor Hominis.
61
devolução de terras às comunidades indígenas, da nacionalização de
grandes empresas e bancos, da consolidação de direitos trabalhistas à classe
média emergente e da separação radical entre Igreja e Estado121
.
Essa Constituição, promulgada em 31 de janeiro de 1917, entrando
em vigor em 01 de maio do mesmo ano, consagrou, ao lado dos clássicos
direitos à liberdade, a exemplo da proibição da escravidão (artigo 2º) e a
liberdade de expressão e informação (artigo 6º), direitos sociais,
econômicos e culturais. Sobre estes, vale destacar que não se concentram
em um Capítulo da Constituição, mas estão dispersos por todo o texto da
Carta, destacando-se os seguintes: proteção à família (artigo 4º), direito à
saúde, de incumbência da Federação e das entidades federativas (artigo 4º,
§ 2º), direito à moradia digna, a ser concretizado por meio de apoio Estatal
(artigo 4º, § 3º), proteção pública dos menores (artigo 4º, §4º), direito ao
trabalho e ao produto que dele resulta (artigo 5º), proibição de contratos
que importem na perda de liberdade do indivíduo (artigo 5º, § 4º) e a
vedação à constituição de monopólios (artigo 28). Ademais, previu-se no
artigo 27 que as terras e águas são de propriedade da nação (podendo ser
transmitidas a particulares mediante propriedade privada), a possibilidade
de desapropriação de terras por utilidade pública mediante indenização, a
proteção da pequena propriedade e a função social da propriedade. Foram
ainda previstos no artigo 123 os direitos ao emprego (e o dever imposto ao
Estado de promover a criação de postos de trabalho), à jornada de trabalho
máxima de oito horas, à jornada noturna de seis horas, à proibição do
trabalho aos menores de 14 anos e jornada máxima de seis horas aos
maiores de 14 e menores de 16 anos, entre outros122
.
121
Pinheiro, A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a
preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do
constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917, 2006, p. 107-108. 122
Ibidem, p. 110-111.
62
A despeito de sua importância, não pode a Carta mexicana ser
considerada como inauguradora do constitucionalismo social, mas apenas
como precursora. Isso porque as circunstâncias que conduziram ao
movimento revolucionário e conseqüentemente à promulgação do texto, a
saber, as aspirações camponesas e indígenas, não assumiram as mesmas
feições em outros países, os quais almejavam a superação dos problemas da
pós-industrialização. Além disso, existiam à época poucos doutrinadores
cujas reflexões sobre a Constituição mexicana tiveram maior repercussão
internacional123
.
Coube à Constituição de Weimar de 1919 estabelecer, na linguagem
de Loewenstein, o ―equipamento-padrão‖, que motivou e conformou a
consagração e a sistematização de direitos sociais no texto
constitucional124
. Sobre o contexto social de seu surgimento, vale destacar
que,
Com a derrota na Primeira Guerra Mundial, a monarquia havia
se transformado em história na Alemanha. Proclamada em 9 de
novembro de 1918, a nova República precisava de uma
Constituição. Nas ruas das grandes cidades reuniam-se
trabalhadores e soldados e havia tumultos no espaço público. A
nova República precisava de uma ordem própria. Para isso foi
eleito um Parlamento, cujos membros tinham, a princípio, uma
tarefa primordial: redigir a Constituição do país. O Parlamento
foi constituído em 6 de fevereiro de 1919. Durante cinco meses,
os então 423 membros da Assembléia Nacional discutiram sobre
essa primeira Constituição no Teatro Nacional Alemão, em
Weimar. Como a situação em Berlim era instável, com muitos
distúrbios nas ruas, escolheu-se Weimar para sediar esse debate,
uma pequena e tranqüila cidade com então 37 mil habitantes e
que havia sido poupada das destruições da Primeira Guerra.
Concluídos os debates parlamentares, o presidente do Reich, o
social-democrata Friedrich Ebert, assinou em 11 de agosto de
1919 a Constituição de Weimar125
.
123
Ibidem, p. 120. 124
Ibidem, p. 121. 125
Schaum, Constituição de Weimar era assinada há 90 anos na Alemanha, 2009.
63
Com efeito, as graves crises política, econômica e social advindas
especialmente da derrota na Primeira Grande Guerra foi o ambiente em que
se proclamou a República. Esta teve como Carta Fundamental para sua
organização política e declaração de direitos a Constituição de Weimar, que
perdurou até a tomada do poder pelos nazistas, em 1933.
Apesar de ser pequeno o período de sua vigência, a Constituição
recebe grande destaque por ter previsto em seu corpus os direitos sociais de
modo sistematizado, ao contrário da Constituição Mexicana. O Livro II da
Constituição de Weimar estabelecia entre os direitos fundamentais do
cidadão alemão, além das liberdades fundamentais, normas definidoras de
direitos sociais, conciliando elementos de concepções liberais e socialistas,
as quais eram defendidas pelos partidos alemães à época da Assembléia
Nacional Constituinte.
Em seu Capítulo II, Constituição regulava ―A vida social‖, no
Capítulo IV a ―Educação e Escola‖ e no Capítulo V ―A vida econômica‖.
Nestes se concentravam a maioria das normas de direitos sociais, prevendo,
entre outros: o direito à proteção e assistência à maternidade (artigo 119,
§2º e 161) e à educação da prole (artigo 120); a proteção moral, espiritual e
corporal à juventude (artigo 122); o direito à pensão para família em caso
de falecimento e à aposentadoria no caso de servidor público (artigo 129);
o direito ao ensino de arte e ciência (artigo 142); o ensino obrigatório,
público e gratuito (artigo 145); a gratuidade do material escolar (artigo
145); direito à adequada subvenção aos pais dos alunos considerados aptos
para seguir os estudos secundários e superiores (artigo 146, §2º); a função
social da propriedade, desapropriação de terras, mediante indenização, para
satisfação do bem comum (artigo 153, §1º); o direito a uma habitação sadia
(artigo 155); o direito ao trabalho (artigo 157 e 162); a proteção à
maternidade, à velhice, às debilidades e aos acasos da vida, mediante
sistema de seguros, com a direta colaboração dos segurados (artigo 161); o
64
direito da classe operária a um mínimo geral de direitos sociais (artigo
162); o seguro-desemprego (artigo 163, §1º)126
.
Essa segunda parte da Constituição foi alvo das mais acirradas
polêmicas, em razão de inovações introduzidas, especialmente ao submeter
o individualismo à coletividade. É sabido que grande parte dos debates
travados durante a República de Weimar deram-se em torno do alcance,
limites e possibilidades do Livro II; no tocante aos direitos sociais, se eram
apenas normas de caráter programático ou algo mais que isso. De todo
modo, a Constituição de Weimar buscou legitimar a República por meio da
democracia e do Estado Social, uma busca audaciosa pela democracia na
forma e na substância, o que foi almejado ao se incorporar as classes
trabalhadoras no Estado com base na emancipação política completa e na
igualdade de direitos127
.
A Constituição de Weimar, embora tenha persistido pouco mais de
uma década, influenciou as constituições elaboradas posteriormente, como
a Constituição Espanhola de 1931128
. No Brasil, a Constituição de 1934
seguiu o ―equipamento-padrão‖ weimariano, expandindo os direitos sociais
protegidos constitucionalmente, ainda que não tivesse diretamente nos
movimentos socialistas sua mola propulsora.
Antes da Constituição de 1934, houve previsão de direitos sociais
nas constituições e na legislação, mas de modo tímido. Na Constituição
126
Pinheiro, A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a
preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do
constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917, 2006, p. 116-117. 127
Becovici, Entre o Estado Total e o Estado Social: atualidade do debate sobre o
Direito, Estado e Economia na República de Weimar, 2003, p. 12-14. 128
Segundo Starck (2009, p. 279-281), a consagração dos direitos sociais nas demais
constituições européias deu-se especialmente a partir da década de 1970. Na Inglaterra,
as reformas típicas do Welfare State foram fundamentadas especialmente no Beveridge
Report. Segundo seu autor, o Estado, em cooperação com o indivíduo, deveriam
combater os inimigos do progresso social, especialmente a miséria, a ignorância, a
preguiça, a necessidade e a doença, por meio da Seguridade Social (BEVERIDGE,
1942, p. 6-7).
65
brasileira de 1824, previa o artigo 179 a garantia dos socorros públicos
(inciso XXXI) e da gratuidade da instrução primária a todos os cidadãos
(inciso XXXII). Esses direitos, contudo, foram omitidos na Constituição
republicana de 1891.
O verdadeiro avanço nos direitos sociais ocorreu entre na década de
1930. De acordo com Carvalho129
, nesse período havia um grupo influente
que destoava do liberalismo dominante, mas também do socialismo. Trata-
se dos positivistas. A corrente mais forte do positivismo brasileiro,
chamada de ortodoxa, manteve-se fiel ao pensamento de Augusto Comte,
para quem, no que se refere à questão social, o principal objetivo da
política era incorporar o proletariado à sociedade por meio de medidas
protetivas ao trabalhador e a sua família. Diferente de correntes socialistas,
o positivismo enfatizava a cooperação entre trabalhadores e patrões ao
buscar a solução pacífica dos conflitos. Os dois grupos deveriam agir de
acordo com o interesse da sociedade, que era superior aos seus. Os
operários deveriam respeitar os patrões, os patrões tratar bem os
empregados. A maior influência do positivismo ortodoxo no Brasil
verificou-se no Estado do Rio Grande do Sul, de onde se originou Getúlio
Vargas. Nesse contexto, sob a influência da doutrina positivista, a
Constituição brasileira de 1934 inova ao incluir um capítulo referente à
ordem econômica e social e outro relativo à família, educação e cultura,
positivando em sede constitucional alguns direitos sociais.
A respeito dos direitos dos trabalhadores, assegurou-se, entre
outros: a proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por
motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; o salário mínimo,
capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, às necessidades
normais do trabalhador (o que inclui alimentação, vestuário, moradia, etc.);
o trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só
129
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2007, p. 110-111.
66
prorrogáveis nos casos previstos em lei; a proibição de trabalho a menores
de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres,
a menores de 18 anos e a mulheres; e, o repouso hebdomadário, de
preferência aos domingos (artigo 121). Previu-se também o amparo à
maternidade e à infância (artigo 141), a proteção da família (artigo 144), o
direito à educação com respectivo dever de promovê-la imposto à família e
ao Poder Público (artigo 149).
À semelhança da Carta de 1934, a Constituição de 1937, trouxe
uma declaração de direitos, prevista nos artigos 124 a 155, os quais
continham normas relativas à família, educação, cultura e ordem
econômica. Entretanto, uma vez que a Constituição dependia do plebiscito
para sua vigência, foi através de decretos-leis que os maiores avanços no
campo dos direitos sociais foram sentido.
Durante a Era Vargas, por meio do decreto-lei n. 1237 de 1939 foi
formalmente instituída a Justiça do Trabalho (já prevista nas Constituições
de 1934 e 1937), embora efetivamente instalada apenas em 1941, ainda
mantida na esfera administrativa, como órgão do Poder Executivo. Em
1940, o Decreto n. 2377 criou o imposto sindical, possibilitando que os
sindicatos dispusessem de recursos para sua manutenção. Em 1943, por
meio do decreto-lei n. 5452, foi criada a Consolidação das Leis do
Trabalho, o principal documento legislativo trabalhista brasileiro130
.
Em relação à previdência social, houve considerável expansão entre
1930 e 1945131
, mediante a criação dos institutos de aposentadorias e
130
As normas brasileiras de proteção do trabalhador datam inicialmente do século XIX.
O Decreto n. 1313 de 1891 regulamentou o trabalho dos menores entre 12 e 18 anos,
vedando o trabalho infantil. A lei sindical geral, o Decreto n. 1637, data de 1907. O
Decreto n. 3550 de 1918 criou o Departamento Nacional do Trabalho como órgão
fiscalizador do cumprimento das leis e informativo. 131
No campo do direito previdenciário, menciona-se como principais leis anteriores a
1930: o Código Comercial de 1850, que previa que os acidentes imprevistos e
inculpados que impedissem aos prepostos o exercício de suas funções não
interromperiam o vencimento do salário por três meses contínuos (artigo 79); o
67
pensões, a exemplo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos
em 1933 (Decreto n. 22.872), do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Comerciários e do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários em
1934 (respectivamente, Decreto n. 24.272 e Decreto n. 24.615) e do
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários em 1936 (Lei n.
367). O Instituto de Serviços Sociais do Brasil foi criado em 1945, por
meio do Decreto n. 7526.
Nas áreas da saúde e educação, destaca-se no período a criação do
Ministério da Educação e Saúde em 1930 (Decreto n. 19.402).
Aconteceram reformas no ensino secundário e a no ensino superior, por dos
decretos-leis 18.951 e 18.952, ambos de 1931. Em 1937, criou-se o
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), integrado, em 1942, ao
Fundo Nacional do Ensino Primário. Em 1942, foi promulgada a Lei
Orgânica do Ensino Secundário, que instituiu o primeiro ciclo secundário
de quatro anos, ou curso ginasial, e um segundo ciclo, de três anos, clássico
ou científico132
. No âmbito da saúde, foi criado em 1937 o primeiro órgão
de saúde pública de dimensão nacional, o Serviço Nacional de Febre
Amarela. Foram ainda criados: o Serviço de Malária no Nordeste em 1939,
o Serviço de Malária da Baixada Fluminense em 1940. O Departamento
Nacional de Saúde, criado em 1920 (Decreto n. 3.987), foi reestruturado,
passando a englobar vários serviços dispersos e a centralizar a direção
Regulamento n. 737 de 1850, que assegurava aos empregados acidentados no trabalho
os salários por no máximo três meses; o Decreto n. 3397 de 1888, que criou a Caixa de
Socorro para o pessoal das estradas de ferro do Estado; o Decreto n. 9.912-A de 1888,
que concedeu aos empregados dos correios o direito à aposentadoria; o Decreto n.
10269 de 1889, que estabeleceu um fundo especial de pensões para os trabalhadores das
Oficinas da Imprensa Régia; o Decreto n. 4682 de 1923 (Lei Elóy Chaves), que criou as
Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP‘s). 132
Antes de 1930, pode-se destacar a Lei Orgânica do Ensino no Brasil de 1827 e o
Decreto Imperial de 11 de agosto também de 1827, este instituidor dos primeiros cursos
jurídicos (São Paulo e Olinda). Em decorrência da atribuição concedida aos Estados
pela Constituição de 1891, a partir de 1920 teve início, em várias unidades da federação,
movimentos de renovação educacional.
68
política, administrativa e financeira de todas as atividades sanitárias no
país133
.
Certamente, embora os problemas sociais atacados pelas
constituições, legislação e políticas públicas não foram definitivamente
solucionados, nesse período estabeleceram-se as principais bases para os
avanços posteriores.
A Constituição de 1946 trouxe, semelhantemente às constituições
da década de 30, um declaração com dispositivos característicos da
constituição de um Estado Social, especialmente no ―Título V – Ordem
econômica e social‖ e no ―Título VI – Família, educação e cultura‖. Em
1967, tais dispositivos vieram insculpidos no ―Título III – Da ordem 133
Dados disponíveis em: http://portal.saude.gov.br e www.funasa.gov.br. Acesso em
fevereiro de 2011. Antes de 1930, pode-se destacar: a criação da primeira organização
nacional de saúde pública no Brasil em 1808 (Colégio Médico-Cirúrgico no Real
Hospital Militar da Cidade de Salvador e Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro); o
Alvará de 23 de nov. de 1808, sobre regimentos e jurisdição do Físico-Mor e Cirurgião-
Mor e seus delegados; a Lei de Municipalização dos Serviços de Saúde de 1828, que
conferiu às Juntas Municipais as funções exercidas anteriormente pelo Físico-Mor,
Cirurgião-Mor e seus delegados; criação da Inspeção de Saúde Pública do Porto do Rio
de Janeiro, subordinada ao Senado da Câmara em 1828; em 1837 ficou estabelecida a
imunização compulsória das crianças contra a varíola; em 1846, com o Decreto n. 464
foi organizado o Instituto Vacínico do Império; o Decreto n. 533 de 1850 autorizou o
governo a despender recursos para medidas tendentes a obstar a propagação de
epidemia; em 1851 houve a regulamentação da lei que criou a Junta Central de Higiene
Pública, subordinada ao Ministro do Império; o Decreto n. 752 de 1851, que abriu ao
Ministério do Império um crédito extraordinário para despesas com providências
sanitárias tendentes a atalhar o progresso da febre amarela a prevenir o seu
reaparecimento e a socorrer os enfermos necessitados; o Decreto n. 798, de 1851, que
mandou executar o regulamento do registro dos nascimentos e óbitos; o Decreto n. 826,
de 1851, que abriu ao Ministério do Império um crédito extraordinário para as despesas
com a epidemia de bexigas, na província do Pará e em outras; o Decreto Legislativo n.
1.151, de 1904, que instituiu a ―Reforma Oswaldo Cruz‖, o qual criou o Serviço de
Profilaxia da Febre Amarela e a Inspetoria de Isolamento e Desinfecção (com
responsabilidade de combate à malária e à peste no Rio de Janeiro); o Decreto n. 1.261
de 1904, que tornou obrigatória, em toda a República, a vacinação e a revacinação
contra a varíola; o Decreto n. 1.802 de 1907, que criou o Instituto de Patologia
Experimental de Manguinhos (atual Instituto Oswaldo Cruz), onde foram estabelecidas
normas e estratégias para o controle dos mosquitos, vetores da febre amarela; o Decreto
n. 13.000 de 1918, pelo qual foi criado o Serviço da Quinina Oficial, profilático da
malária; o Decreto n. 13.001 de 1918, a partir do qual foram iniciadas as atividades do
Serviço de Profilaxia Rural; o Decreto n. 15.003 de 1921, que instituiu a ―Reforma
Carlos Chagas‖.
69
econômica e social‖ e no ―Título IV – Da família, da educação e da
cultura‖ da Constituição. A emenda constitucional nº 1 de 1969 não tal
declaração, sendo mantida no ―Título III – Da ordem econômica e social‖ e
―Título IV – Da família, da educação e da cultura‖.
No âmbito infraconstitucional, a partir de 1946, podem ser
destacados avanços na legislação social. No campo da previdência social e
trabalho: o Decreto-Lei n. 8.738 de 1946, que criou o Conselho Superior da
Previdência Social; o Decreto-Lei n. 8.742 de 1946, criou o Departamento
Nacional de Previdência Social; a Lei n. 605 de 1949, dispondo sobre
repouso semanal remunerado; o Decreto n. 35.448 de 1950, que expediu o
Regulamento Geral dos Institutos de Aposentadoria e Pensões; a Lei n.
3.807 de 1960, que criou a Lei Orgânica de Previdência Social - LOPS,
unificando a legislação referente aos Institutos de Aposentadorias e
Pensões; a Lei n. 4.090 de 1962; que estabeleceu a gratificação natalina ou
décimo terceiro salário; em 1963 criou-se o Fundo de Assistência ao
Trabalhador Rural – FUNRURAL e o Regime Único dos Institutos de
Aposentadorias e Pensões; o Decreto-Lei n. 72 de 1966 reuniu os seis
Institutos de Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de
Previdência Social – INPS; a Lei Complementar n. 7 de 1970 criou o
Programa de Integração Social – PIS e a Lei Complementar n. 8, também
de 1970, instituiu o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor
Público – PASEP; em 1974 foi instituído o Ministério da Previdência e
Assistência Social desmembrado do Ministério do Trabalho e da
Previdência Social; a Lei n. 6.439 de 1977, que instituiu o Sistema
Nacional de Previdência e Assistência Social – SINPAS, responsável pela
proposição da política de previdência e assistência médica, farmacêutica e
social, bem como pela supervisão dos órgãos que lhe são subordinados e
das entidades a ele vinculadas; em 1984 é aprovada a Consolidação das
Leis da Previdência Social.
70
Na saúde: a Lei n. 1.920 de 1953, que desdobrou o Ministério da
Educação e Saúde em dois ministérios, da Saúde e da Educação e Cultura;
a Lei n. 1.944 de 1953, que tornou obrigatória a iodação do sal de cozinha;
a Lei n. 2.312 de 1954, que estabeleceu normas gerais sobre a defesa e
proteção da saúde; a Lei Ordinária n. 2.753 de 1956, que criou do
Departamento Nacional de Endemias Rurais; a Lei n. 4.709 de 1965, que
promoveu a criação da Campanha de Erradicação da Malária (CEM); o
Decreto n. 78.231 de 1976, que dispôs sobre a organização das Ações de
Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações e
estabeleceu normas relativas à notificação compulsória de doenças.
Na área da educação, pode-se mencionar a Lei n. 1.920 de 1953,
pelo qual o Ministério da Educação e Saúde passou a ser denominado como
Ministério da Educação e Cultura (artigo 2º), a Lei n. 4.024 de 1961, que
estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei n. 5.692 de
1971, que promoveu reformas no ensino de primeiro e segundo graus.
Embora o direito à moradia não tenha sido expressamente previsto
nas referidas constituições, ou anteriores, como um direito social134
, é
imperioso ressaltar que foi nesse período, por meio do Decreto n. 4.380 de
1964, que se instituiu o Sistema Financeiro de Habitação e que se criou o
Banco Nacional de Habitação (sucedido pela Caixa Econômica Federal
com o Decreto n. 2.291 de 1986), como instrumentos para intervenção no
setor habitacional, facilitando e promovendo a construção ou aquisição da
casa própria. Outro instrumento importante foi a Lei n. 6.766 de 1979, que
regulou o parcelamento do solo urbano, prevendo a necessidade de infra-
estrutura básica.
134
No entanto, pode-se compreender, por exemplo, a garantia do salário-mínimo na
Constituição de 1934 (artigo 121, b) como referência implícita ao direito à moradia,
haja vista que deveria ser suficiente para atender a todas as necessidades do trabalhador.
A referida previsão foi mantida nas constituições seguintes.
71
Observa-se, portanto, que o legislador procurou criar estruturas e
tornar efetivas as previsões constitucionais relativas a direitos sociais. A
Constituição de 1988 também trouxe previsões de conteúdo prestacional.
Em razão do modo como as consagrou, contudo, afasta-se da tradição
anterior, que desde a Constituição de 1934 costumava abrigar estes direitos
no título da ordem econômica e social, eminentemente sob a forma de
normas programáticas.
A Constituição prevê, além de normas programáticas de direitos
sociais em seu ―Título I – Dos princípios fundamentais‖, também direitos
sociais como direitos fundamentais no ―Título II – Dos direitos e garantias
fundamentais; Capítulo II – Direitos sociais‖, bem como um extenso rol de
normas relativas à atividade econômica, família, criança, adolescente,
trabalho, cultura, assistência social, previdência social e saúde no ―Título
VII – Da ordem econômica e financeira‖ e no ―Título VIII – Da ordem
social‖. Nesse sentido, avança em termos de eficácia e efetividade ao
conceder-lhes capítulo próprio e reconhecê-los de modo inequívoco como
direitos fundamentais135
.
Sob a vigência da Constituição de 1988, pode-se destacar, no
âmbito do direito do trabalho: a Lei n. 8.036 de 1990, que dispõe sobre o
FGTS; a Lei n. 7.998 de 1990, que regula o Programa do Seguro-
Desemprego, o Abono Salarial e institui o Fundo de Amparo ao
Trabalhador (FAT); a Lei n. 10.208 de 2001, que faculta o acesso do
empregado doméstico ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS
e ao seguro-desemprego.
Na área da previdência social, entre outros: o Decreto n. 99.350 de
1990, pelo qual o Instituto Nacional da Previdência Social se fundiu
ao Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência
Social para formar o Instituto Nacional de Seguridade Social; a Lei n.
135
Sarlet, Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988, 2001, p. 17.
72
8.213 de 1991, que tratou de reformar os planos de benefícios da
Previdência Social; a Lei Complementar n. 70 de 1991, que estabeleceu
a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS; o
Decreto n. 3.048 de 1999, que aprovou o Regulamento da Previdência
Social; a Lei 11.098 de 2005, que efetuou mudança estrutural no INSS,
criando a Secretaria da Receita Previdenciária com competência relativa à
arrecadação, fiscalização, lançamento e normatização de receitas
previdenciárias.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei n. 9.394 de 1996 é um
marco na história da legislação da educação após a Constituição de 1988,
após 25 anos de vigência da Lei n. 5.692 de 1971. A Lei n. 10.172 de 2001
aprovou o Plano Nacional da Educação, com o objetivo de elevar o nível de
escolaridade da população, melhorar a qualidade do ensino e reduzir as
desigualdades sociais.
No campo da saúde pública, a Lei Orgânica da Saúde, Lei n. 8.080
de 1990 detalhou o funcionamento do sistema de saúde no Brasil e instituiu
o Sistema Único de Saúde – SUS, definindo seus objetivos, princípios e
modo de organização, criou o subsistema de atenção à saúde indígena, e
regulou a prestação de serviços privados de assistência à saúde.
Com a Emenda Constitucional n. 26 de 2000, a moradia passou a
integrar o texto constitucional como um direito social, o que não havia sido
previsto expressamente nas constituições anteriores. Entre as normas
infraconstitucionais referentes à moradia posterior à emenda, pode-se
destacar: a Lei Complementar n. 111 de 2001, que regulamenta os artigos
79, 80 e 81 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, fazendo
com que o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza passe a vigorar até
2010, que tem como um de seus objetivos viabilizar o acesso de todos
brasileiros à habitação e outros direitos sociais; a Lei n. 10.257 de 2001,
que estabeleceu diretrizes gerais para política urbana (Estatuto da Cidade),
73
ordenando o desenvolvimento da função social das cidades; a Lei n. 10.406
de 2002 (Código Civil), em Título III, que confere direitos e impõe deveres
ao proprietário de bens; a Lei n. 11.124 de 2005, que dispõe sobre o
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, com o
objetivo de viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra
urbanizada e à habitação digna e sustentável; o Decreto n. 4.887 de 2003
regulamentou o procedimento para identificação, delimitação e titulação de
terras ocupadas por remanescentes dos quilombos. Antes de 2000, mas sob
a vigência da Constituição de 1988, tem-se, entre outras: a Lei n. 9.785 de
1999, que altera a Lei do parcelamento do solo urbano (artigo 2º, §5º da Lei
n. 6.766 de 1979), especificando como infra-estrutura básica os
equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação
pública, redes de esgoto sanitário e abastecimento de água potável, e de
energia elétrica pública e domiciliar e as vias de circulação pavimentadas
ou não; a Lei n. 8.009 de 1990, que instituiu a impenhorabilidade do bem
de família; e, a Lei n. 8.245, que trata da locação de imóveis urbanos
(alterada em 2009 pela Lei n. 12.112).
Vale destacar ainda que no Brasil foram promulgados atos
internacionais relativos à garantia de direitos sociais, em especial, o Pacto
internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais de 1966
(Decreto n. 591 de 1992) e o Protocolo adicional à Convenção americana
sobre direitos humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e
culturais – Pacto de San Salvador – de 1988 (Decreto n. 3.321 de 1999).
Tais documentos representam a participação do Brasil em um esforço
internacional para a promoção da dignidade humana.
Certo é que houve evolução social no Brasil nas últimas décadas.
Segundo dados do Programa das Nações Unidas para o
74
Desenvolvimento136
, a expectativa de vida dos brasileiros elevou-se de 62,5
anos em 1980 para 72,9 anos em 2010137
, a média de anos de estudo do
brasileiro subiu de 2,6 anos em 1980 para 7,2 anos em 2010, e o índice de
desenvolvimento humano evoluiu de 0,644 em 1975 para 0,800 em
2005138
. Certamente, as previsões constitucionais que estabeleceram o
modelo de Estado Social brasileiro, a legislação social (inclusive anterior à
década de 1930) e a realização de políticas públicas pelo Executivo, além
das iniciativas privadas, contribuíram para a ocorrência dessas melhorias na
qualidade de vida do cidadão brasileiro.
Entretanto, existe ainda muito a ser feito. Carvalho139
destaca que,
embora tenha havido progressos, esses ocorreram lentamente. Na
previdência, um dos mais graves problemas que persiste é o do valor das
aposentadorias, por sua insuficiência. Na educação, o índice de repetência
ainda é muito alto (em 2007 eram necessários 10 anos para se cumprir os
oito anos do ensino fundamental). As desigualdades sociais são ainda
grandes, uma vez que a riqueza nacional se concentra nas mãos de poucos.
O Brasil está entre os dez países com os piores índices de desigualdade no
mundo140
. Embora tenha havido na última década investimentos para a
redução da miséria, a situação continua grave. Em 2008, o Brasil ainda
136
Brasil sobe quatro posições no novo IDH; avanço é o mais expressivo de 2009 a
2010 [2010], disponível em http://www.pnud.org.br, acesso em janeiro de 2011. 137
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a expectativa de vida
ao nascer no Brasil era 27,3 anos em 1870, 34 anos em 1930, 51,43 anos em 1970 e
68,61 anos em 2000. A mortalidade infantil, de 123,9 mortes para mil nascimentos em
1970 decresceu para 30,57 em 2000 (Esperança de vida ao nascer [2009] e
Mortalidade infantil [2009], disponíveis em www.ipeadata.gov.br, acesso em janeiro de
2011). 138
Utilizando-se a nova metodologia, o IDH cresceu de 0,649 em 2000 para 0,699 em
2010. 139
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2007, p. 206-209. 140
Informações sobre a desigualdade social no Brasil estão disponíveis em
http://www.pnud.org.br, acesso em janeiro de 2011.
75
tinha 53,9 milhões de pessoas vivendo na pobreza, sendo 19,9 milhões na
miséria (pessoas com renda inferior a um quarto do salário mínimo)141
.
1.4 Os direitos de solidariedade
No período do pós Segunda Guerra, observa-se o aumento da
preocupação em se preservar direitos relacionados aos interesses voltados à
solidariedade humana, os quais se relacionam à paz, à autodeterminação
dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à qualidade de vida, à
conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural, entre outros.
São novas reivindicações fundamentais do ser humano, advindas de
necessidades produzidas especialmente pelo impacto tecnológico, pelas
ameaças de guerra e pelo processo de descolonização. A respeito da
positivação de direitos com vistas a atender tais reivindicações, houve
expansão no campo do direito constitucional, mas especialmente no direito
internacional142
.
Trata-se, novamente, de uma expansão de direitos, haja vista que
documentos anteriores já haviam enfrentado algumas dessas questões. A
Constituição mexicana de 1917 previa direitos de solidariedade. Na Carta,
o artigo 3º determina que o sistema educacional deverá promover a
consciência da solidariedade internacional, o artigo 25 afirma que os
setores sociais e privados da economia sujeitam-se aos interesses públicos e
devem cuidar da conservação dos recursos e do meio ambiente, o artigo 27
reconhece a necessidade de se editar medidas para preservar e restaurar o
equilíbrio ecológico143
. Na Constituição de Weimar, o artigo 150 previa
que monumentos de arte, históricos e naturais, bem como a paisagem,
141
Dados disponíveis em http://www.ipea.gov.br, acesso em janeiro de 2011. 142
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 48-49. 143
Constitución, disponível em www.diputados.gob.mx/ LeyesBiblio/pdf/1.pdf, acesso
em 15 de agosto de 2010.
76
gozam da proteção estatal, positivando constitucionalmente típicos direitos
de terceira dimensão, isto é, preservação ambiental e conservação dos
patrimônios históricos e culturais144
.
No Brasil, poucos direitos dessa ampla categoria foram previstos
antes de 1988. Na Constituição Brasileira de 1934, determinava o artigo
148 que era dever da União, dos Estados e dos Municípios proteger os
objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País. Semelhante
previsão se encontra nos artigos 134 da Constituição de 1937, 175 da
Constituição de 1946, 172 da Constituição de 1967 e no artigo 180 da
emenda constitucional nº1 de 1969.
Na Constituição de 1988, houve grande expansão, prevendo-se, no
artigo 4º, que a República deve reger-se nas suas relações internacionais
pelos princípios da autodeterminação dos povos, da devesa da paz, da
solução pacífica dos conflitos, entre outros. A proteção do patrimônio
cultural é prevista no artigo 216, §1º. A pesquisa científica básica que visa
o bem público e o progresso das ciências receberá tratamento prioritário do
Estado, conforme disposto no artigo 218, §1º. Os artigos 220 a 224 regulam
e protegem o direito à comunicação social. No artigo 225 é previsto que
―todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo...‖.
No âmbito infraconstitucional, pode-se ressaltar a Lei n. 10.257 de
2001, o Estatuto da Cidade, que estabelece normas para a proteção,
preservação e recuperação do patrimônio cultural, histórico, artístico,
paisagístico e arqueológico. Também sobre a proteção do patrimônio, o
Decreto-Lei n. 25 de 1937 e a Lei n. 3.924 de 1961, que regulam o
instituto do tombamento, bem como a Lei da Arqueologia (Lei n. 3.924 de 144
Pinheiro, A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a
preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do
constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917, 2006, p. 117.
77
1961), que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos de
qualquer natureza existentes no território nacional.
A comunicação social é regida pelas seguintes leis: Lei n. 11.652
de 2008, que institui os princípios e objetivos dos serviços de radiofusão
pública explorados pelo Poder Executivo ou outorgados a entidades de sua
administração indireta; a Lei Geral das Telecomunicações, Lei n. 9.472 de
1997; a Lei n. 9.612 de 1998, que regula a radiofusão comunitária; e, a Lei
n. 8.977 de 1995, que dispõe sobre o serviço de TV a Cabo; Lei n. 8.839 de
1991, que cria o Conselho de Comunicação Social; Lei n. 5.250 de 1967,
que regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informação
(tornada sem efeito em 2009 pelo STF, por ser considerada incompatível
com a Constituição de 1988); entre outras.
No campo da pesquisa científica, faz-se referência a: Lei n. 11.794
de 2008, que estabelece procedimentos para o uso científico de animais;
Lei n. 10.973 de 2004, que dispõe sobre incentivos à inovação e pesquisa
científica e tecnológica no ambiente produtivo; Lei n. 9.610 de 1998, a lei
de direitos autorais; Lei n. 8.958 de 1994, que regula a relação entre as
instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e
tecnológica e as fundações de apoio; Lei n. 8.501 de 1992, que dispõe
sobre a utilização de cadáver para fins de estudo e pesquisa científica; entre
outras.
Em relação ao direito ao meio ambiente saudável, podem-se ser
destacadas, desde a promulgação da Constituição de 1988: a Lei n. 7.754
de 1989, que estabelece medidas para a proteção de florestas existentes nas
nascentes dos rios; a Lei n. 7.802 de 1989, que dispõe sobre os resíduos de
embalagens e agrotóxicos; a Lei n. 8.974 de 1995, que estabelece normas
para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio
ambiente de organismos geneticamente modificados; a Lei n. 9.433 de
1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema
78
Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; a Lei n. 9.605 de 1988,
que dispõe sobre sanções penais e administrativas para condutas lesivas ao
meio ambiente (Lei dos Crimes Ambientais); a Lei n. 9.795 de 1999, que
dispõe sobre a educação ambiental e institui a Política Nacional de
Educação Ambiental; a Lei n. 9.966 de 2000, que dispões sobre a
prevenção e o controle da poluição das águas por óleo e outras substâncias;
a Lei n. 9.984 de 2000, que cria a Agência Nacional de Águas; a Lei n.
9.985 de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de conservação
da Natureza; a Lei n. 11.284 de 2006, que institui o Serviço Florestal
Brasileiro, cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal e dispõe
sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável; a Lei n.
11.428 de 2006, que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação
nativa do Bioma Mata Atlântica; e, a Lei 12.305 de 2010, que institui a
Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Antes da vigência da Constituição de 1988, podem ser
mencionadas: a Lei n. 7.661 de 1988, que institui o Plano Nacional de
Gerenciamento Costeiro; a Lei n. 6.938 de 1981, que dispõe sobre a
Política Nacional do Meio Ambiente; a Lei n. 6.766 de 1979, que trata do
parcelamento do solo urbano,; a Lei n. 5.197 de 1967, que dispõe sobre a
proteção da fauna; e, a Lei n. 4.771 de 1965, que institui o Código Florestal
(revogando o Código Florestal de 1934, Decreto 23.793).
Atualmente, após 12 anos de discussão, encontra-se aprovado o
Projeto de Lei 6.424 de 2005, que propõe alterações ao Código Florestal,
em trâmite no Congresso Nacional, que tem como um dos pontos mais
debatidos a definição das áreas de preservação ambiental nas margens dos
rios.
No plano internacional, é feita alusão aos seguintes acordos sobre
direitos de solidariedade: a Convenção Universal sobre o Direito do Autor
(Revisada) de 1971 (Decreto n. 76.905 de 1975), a Convenção sobre a
79
Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (UNESCO) de 1972
(Decreto n. 80.978 de 1977), a Convenção de Viena para a Proteção da
Camada de Ozônio de 1985 (Decreto n. 99.280 de 1990), a Convenção
sobre a Diversidade Biológica (Rio-92) de 1992 (Decreto n. 2.519 de 1998)
e o Protocolo de Quioto à Conveção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudança de Clima de 1997 (Decreto n. 5.445 de 2005).
A partir desse breve apanhado histórico, não é difícil concluir, em
consonância com Bobbio145
, que os direitos humanos fundamentais são
direitos históricos, ―nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por
lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas‖.
O catálogo de direitos fundamentais trazido pela Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 representa um acumulado de
conquistas históricas, sendo a positivação de direitos já incorporados ao
pensamento jurídico e a estatutos normativos passados.
Feitas essas considerações históricas, passa-se ao estudo dos
direitos fundamentais sob a perspectiva de uma teoria jurídica dos direitos
fundamentais, com especial destaque à consagração dos mesmos na
Constituição Brasileira de 1988.
145
Bobbio, A era dos direitos, 1992, p. 5.
80
81
CAPÍTULO 2
Os direitos fundamentais e a Constituição brasileira de 1988
Os direitos fundamentais podem ser examinados sob diferentes
perspectivas. No capítulo anterior, buscou-se apontar alguns eventos,
documentos e idéias que marcaram a história dos direitos fundamentais,
especialmente aqueles que mais diretamente proporcionaram as bases para
sua teorização na contemporaneidade. No presente capítulo, pretende-se
refletir a respeito da teoria dos direitos fundamentais, conferindo destaque
ao conceito e classificação dos direitos, bem como à estrutura e eficácia das
normas que os consagram. Para cada tema, pretende-se apontar tanto
noções de teoria teórico-jurídica quanto de teoria jurídico-positiva, esta
última tomando como objeto a Constituição brasileira de 1988146
.
2.1 Aproximação ao conceito de direitos fundamentais
Em obra clássica do Direito Constitucional brasileiro, Silva147
,
conceitua os direitos fundamentais como aquelas prerrogativas e
instituições consagradas pelo direito positivo para a garantia de uma
convivência digna, livre e igual de todas as pessoas, tratando-se de
situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não
convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive, direitos que devem ser
reconhecidos e efetivados em relação a todos.
Para o autor, esses direitos apresentam quatro características:
historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade.
Historicidade, por serem históricos como qualquer direito; nascem,
146
Semelhantemente, Canotilho, Direito Constitucional, 1993, p. 495-496. 147
Silva [José Afonso da], Curso de direito constitucional positivo, 2000, p. 182-183.
82
modificam-se e desaparecem. Inalienabilidade, pois são direitos
intransferíveis, inegociáveis, indisponíveis. Imprescritíveis, porque nunca
deixam de ser exigíveis. Irrenunciabilidade, pelo fato de que, apesar de
poderem não ser exercidos, não se admite que sejam renunciados. Além
destas características, na medida em que são inseridos no texto de uma
constituição, tornam-se direitos constitucionais, fundamentados no
princípio da soberania popular148
.
Certamente, e como o próprio doutrinador brasileiro reconhece, é
nítida a influência do pensamento jusnaturalista na proposta de
caracterização dos direitos fundamentais, especialmente no que diz respeito
ao fato de serem considerados inalienáveis, imprescritíveis e
irrenunciáveis, bem como por serem direitos que visam a garantia de uma
convivência digna, livre e igual. Afasta-se, contudo, da concepção de que
são direitos inatos, ao considerá-los como históricos. ―Sua historicidade
rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do
homem ou na natureza das coisas‖149
.
Na tradição espanhola, Perez Luño150
entende que os direitos
fundamentais são aqueles direitos humanos garantidos pelo ordenamento
jurídico positivo, na maior parte em sua normativa constitucional, os quais
gozam de uma tutela reforçada. Reconhece, portanto, que a idéia de direitos
fundamentais, bem como o conteúdo de tais direitos, têm como fonte de
inspiração a teoria dos direitos humanos, desenvolvida a partir das
concepções jusnaturalistas.
148
Ibidem, p. 184-185. 149
Ibidem, p. 185. A respeito da necessidade de positivação dos direitos fundamentais,
afirma Zippelius (1997, p. 437) que a obrigatoriedade pré-estatal que caracteriza os
direitos fundamentais não lhes assegura validade jurídica. Certamente, possuem os
direitos fundamentais vinculação moral ou ético-social, mas dificilmente conseguiriam
se operacionalizar concretamente na sociedade sem que tomem existência jurídica via
positivação normativa. No Estado, somente é possível a garantia da execução
(coercitiva) da norma mediante a tutela jurídica. 150
Perez Luño, Los derechos fundamentales, 2005, p. 46.
83
Quanto ao conceito de direitos humanos, entende o consagrado
autor espanhol que são o conjunto de faculdades e instituições as quais, em
cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da
liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas
positivamente pelos ordenamentos jurídicos na esfera nacional e
internacional151
.
Nesse sentindo, defende que o conteúdo desses direitos é vinculado
aos valores da dignidade, liberdade e igualdade, sendo que o modo de
concretização das referidas exigências pode variar ao longo da história.
Além disso, confere destaque ao fato de que são direitos garantidos pelos
ordenamentos jurídicos com tutela reforçada, distinguindo-se dos demais
direitos reconhecidos a indivíduos e coletividades.
Para Perez Luño152
, os direitos fundamentais possuem um sentido
mais preciso e estrito que os direitos humanos, uma vez que descrevem
direitos e liberdades que são juridicamente e institucionalmente
reconhecidos e garantidos pelo direito positivo. São, por isso, direitos
delimitados no tempo e no espaço, os quais se prestam para fundamentar o
sistema jurídico-político do Estado de Direito.
O jurista português Vieira de Andrade153
entende que os direitos
fundamentais consistem no conjunto de posições jurídicas atribuídas a
todos os indivíduos ou categoria de indivíduos, as quais lhes conferem a
proteção especial de determinados bens jurídicos considerados essenciais,
visando à concretização da dignidade da pessoa.
Essa definição, embora indique como conteúdo essencial dos
direitos fundamentais a proteção da dignidade da pessoa, permanece com
claro saliente formal, permitindo sua utilização pela dogmática jurídica
151
Ibidem, 2005, p. 46. 152
Ibidem, 2005, p. 47. 153
Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976,
2004, p. 82-83.
84
quando da análise de diferentes constituições. Ao defini-los, o autor deixa
em aberto particularidades relativas ao conteúdo e ao modo de proteção dos
direitos fundamentais, o que não pode ser precisado a não ser a partir de
elementos de cada sistema constitucional.
Na doutrina alemã, Loewenstein154
defende como direitos
fundamentais (ou liberdades fundamentais) as esferas de autodeterminação
individual que são protegidas em face da intervenção do Estado, que são
anteriores à constituição e que funcionam como controles verticais sobre o
poder político. Esses direitos compõem o núcleo essencial do sistema
político da democracia constitucional.
Essa definição, como é evidente, não abrange direitos políticos e
sociais, uma vez que estes não correspondem à mera proteção da esfera de
liberdade individual. Em relação aos direitos sociais, entende o autor que
não são direitos em sentido estrito, porquanto não podem ser exigidos
judicialmente do Estado até que sejam institucionalizados por uma ação do
próprio Estado155
.
Esses conceitos representam a tentativa doutrinária de fixar as
linhas mestras para a compreensão dos direitos fundamentais,
independentemente das particularidades que advenham da positivação nas
cartas constitucionais. No entanto, a conceituação dos direitos
fundamentais sob uma perspectiva jurídico-positiva exige que estas
particularidades sejam levadas em consideração, uma vez que são elas os
elementos configuradores o conceito. Na esteira do que propõe Hesse156
,
―são aqueles direitos que o direito vigente qualifica de direitos
fundamentais‖. Isto é, o conceito de direitos fundamentais depende das
características a eles atribuídas pelo sistema constitucional.
154
Loewenstein, Teoría de la Constitución, 1970, p. 390-392. 155
Ibidem, p. 401. 156
Hesse, Elementos de direito constitucional da república Federal da Alemanha, 1998,
p. 225.
85
Na Constituição Brasileira de 1988, os direitos fundamentais são
enunciados de forma sistemática nos cinco capítulos do Título II (Dos
Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Dos Direitos Sociais, Da
Nacionalidade, Dos Direitos Políticos e Dos Partidos Políticos). Esse
catálogo, todavia, não exclui o reconhecimento de outros direitos
fundamentais, dispersos no texto da própria Carta ou em função da abertura
que a própria Carta promove no artigo 5º, §2º: ―Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte‖157
e §3º ―Os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados,
em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais‖158
.
157
Veja-se, por exemplo, o reconhecimento do direito à busca pela felicidade: ―O
Tribunal, por maioria, deu provimento a agravo regimental interposto em suspensão de
tutela antecipada para manter decisão interlocutória proferida por desembargador do
Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, que concedera parcialmente pedido
formulado em ação de indenização por perdas e danos morais e materiais para
determinar que o mencionado Estado-membro pagasse todas as despesas necessárias à
realização de cirurgia de implante de Marcapasso Diafragmático Muscular – MDM no
agravante, com o profissional por este requerido. Na espécie, o agravante, que teria
ficado tetraplégico em decorrência de assalto ocorrido em via pública, ajuizara a ação
indenizatória, em que objetiva a responsabilização do Estado de Pernambuco pelo custo
decorrente da referida cirurgia, ‗que devolverá ao autor a condição de respirar sem a
dependência do respirador mecânico‘. (...) Além disso, aduziu-se que entre reconhecer o
interesse secundário do Estado, em matéria de finanças públicas, e o interesse
fundamental da pessoa, que é o direito à vida, não haveria opção possível para o
Judiciário, senão de dar primazia ao último. Concluiu-se que a realidade da vida tão
pulsante na espécie imporia o provimento do recurso, a fim de reconhecer ao agravante,
que inclusive poderia correr risco de morte, o direito de buscar autonomia existencial,
desvinculando-se de um respirador artificial que o mantém ligado a um leito hospitalar
depois de meses em estado de coma, implementando-se, com isso, o direito à busca da
felicidade, que é um consectário do princípio da dignidade da pessoa humana.‖
(Suspensão de Tutela Antecipada n. 223-AgR, Rel. p/ o ac. Min. Celso de Mello,
julgamento em 14-4-2008, Plenário, Informativo 502). 158
Cláusulas de abertura semelhantes são encontradas também na Constituição
portuguesa. Na lição de Canotilho (1993, p. 528), ―os direitos consagrados e
reconhecidos pela constituição designam-se, por vezes, direitos fundamentais
86
Os direitos fundamentais na Constituição Brasileira de 1988
caracterizam-se por estarem contidos em normas de aplicabilidade imediata
(artigo 5º, §1º), as quais, quando consagradoras de direitos e garantias
individuais e do voto (direto, secreto, universal e periódico), são protegidas
contra emendas constitucionais tendentes à sua abolição (artigo 60, §4º, II e
IV). Vale ressaltar que a limitação constitucional não se refere ao objeto do
direito fundamental (se liberdade ou igualdade material, se direitos civis ou
sociais), mas sim à titularidade, de modo que tal dispositivo constitucional
deve ser interpretado inclusivamente no que diz com os direitos sociais159
.
Assim, a Constituição confere a esses direitos tutela reforçada,
posicionando-os na base do ordenamento jurídico, razão pela qual
formalmente constitucionais, porque eles são enunciados e protegidos por normas com
valor constitucional formal (normas que têm a forma constitucional). A Constituição
admite (cfr. art. 16), porém, outros direitos fundamentais constantes das leis e das regras
aplicáveis de direito internacional. Em virtude de as normas que os reconhecem e
protegem não terem a forma constitucional, estes direitos são chamados direitos
materialmente fundamentais. Por outro lado, trata-se de uma ‗norma defattispecie
aberta‘, de forma a abranger, para além das positivações concretas, todas as
possibilidades de ‗direitos‘ que se propõem no horizonte da acção humana. Daí que os
autores se refiram também aqui ao princípio da não identificação ou da cláusula aberta.
Problema é o de saber como distinguir, dentre os direitos sem assento constitucional,
aqueles com dignidade suficiente para serem considerados fundamentais. A orientação
tendencial de princípio é a de considerar como direitos extraconstitucionais
materialmente fundamentais os direitos equiparáveis pelo seu objecto e importância aos
diversos tipos de direitos formalmente fundamentais. Neste sentido, o âmbito normativo
do art. 16 §1º ‗alarga-se‘ ou ‗abre-se‘ a todos os direitos fundamentais e não, como já se
pretendeu, a uma certa categoria deles — os direitos, liberdades e garantias‖. Além
disso, há também direitos fundamentais dispersos na Carta portuguesa: ―o amplo
catálogo de direitos fundamentais ao qual é dedicada a Parte I da Constituição não
esgota o campo constitucional dos direitos fundamentais. Dispersos ao longo da
Constituição existem outros direitos fundamentais, vulgarmente chamados direitos
fundamentais formalmente constitucionais mas fora do catálogo. Alguns destes direitos
são direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (exs.: arts. 106.73,
127.71, 217, 246.72, 268.72, 3,4 e 5, 269.73, 271.73 e 276.77); outros aproximam-se
dos direitos sociais (ex.: art. 102)‖ (CANOTILHO, 1993, p. 529). 159
Nessa mesma direção, Sarlet e Figueiredo (2010, p. 18-19) afirmam que os direitos
sociais, por força de uma exegese necessariamente inclusiva do artigo 60, §4º, inciso IV
da Constituição Federal, sejam negativos ou positivos, devem ser reconhecidos como
protegidos contra uma supressão ou erosão pelo poder de reforma constitucional. Sobre
essa discussão, cf. Sarlet, Direitos sociais como direitos fundamentais, 2009, p. 226-
233.
87
vinculam todos os indivíduos, todas as organizações, todos os agentes
públicos e todas as outras normas, prevalecendo no caso de conflito. A
depender do grau de violação a esses direitos, podem ser aplicadas medidas
de alta severidade para a retribuição e prevenção de novas condutas
violadoras, com caráter penal, a exemplo da prática do racismo, do tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins, do terrorismo e de crimes hediondos
(artigo 5º, XLII e XLIII).
No catálogo constitucional, são previstos expressamente, entre
outros, os seguintes direitos: direitos à vida, liberdade, igualdade,
segurança e propriedade nos termos do artigo 5º; direitos à saúde,
educação, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência
social, proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma dos artigos 6º a 11, e dos Títulos VII e VIII; direito à
nacionalidade brasileira, nos artigos 12 e 13; direitos políticos (como o
direito a votar de modo secreto e direto) e de associação política, conforme
o disposto nos artigos 14 a 17.
A interpretação e aplicação desses dispositivos é orientada pelos
fundamentos da República Federativa do Brasil constantes do artigo 1º da
Constituição (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político), sendo que os
direitos fundamentais têm como finalidade promover a sua concretização.
2.2 Classificação dos direitos fundamentais
Os direitos fundamentais podem ser classificados, pelos menos, a
partir de quatro critérios: conteúdo, titularidade, posições jurídicas e
surgimento histórico. O primeiro critério pode ser visto como a base
classificatória para os demais, haja vista que aponta o sentido dos direitos
de que se é titular, que possibilita a compreensão das posições jurídicas
88
fundamentais e que indica o que deve ser destacado ao longo do
desenvolvimento histórico de sociedades.
Quanto ao conteúdo, os direitos fundamentais podem ser
classificados como civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e de
solidariedade. Esse critério tem caráter basilar, uma vez que os outros
modos de classificar os direitos necessariamente fazem referência a ele. Foi
ainda o critério utilizado para o exame dos direitos fundamentais sob a
perspectiva histórica, no capítulo anterior.
Os direitos civis compõem a classe de direitos que visa resguardar
uma esfera de liberdade individual em face de ingerências ilegítimas, sejam
estas praticadas por outros indivíduos, por organizações ou pelo Estado.
Essa classe inclui o direito à proteção e segurança, a proteção contra
discriminação, bem como as liberdades de tradição liberal.
Quanto a estas, Bovero160
destaca a existência de quatro grandes
liberdades: a liberdade pessoal, de opinião, de reunião e de associação. A
liberdade pessoal consiste no direito de não ser detido arbitrariamente,
sendo o seu corolário a liberdade de mover-se não impedido por barreiras
opressivas. A liberdade de opinião e de imprensa refere-se à liberdade de
expressar, manifestar e difundir o próprio pensamento, equivalente ao
direito ao dissenso e à crítica pública. A liberdade de reunião diz respeito
ao direito de protesto coletivo. Finalmente, a liberdade de associação é o
direito de criar organismos coletivos, como os sindicatos e partidos livres,
abrindo a possibilidade de uma escolha política efetiva para os cidadãos.
Essa categoria de direitos, que corresponde à proteção contra
intervenções ilegítimas, foi magistralmente defendida por Mill em sua obra
On Liberty, em que apresenta o conflito existente entre governantes e
governados, e sugere que a tirania social é um perigo latente nas nações
160
Bovero, Contra o governo dos piores: uma gramática da democracia, 2002, p. 46.
89
modernas e comerciais161
. Ao utilizar a expressão ―tirania da maioria‖162
,
que toma de Tocqueville, Mill enfatiza que existe um limite para a
intervenção legítima da coletividade na independência individual. O único
princípio racional que governa a sociedade em relação ao indivíduo é o
―princípio do dano‖.
Esse princípio deve reger de modo absoluto as relações entre a
sociedade e o indivíduo, especialmente no que diz respeito àquelas de
compulsão e controle, seja através de penalidades ou de coerção moral pela
opinião pública. Enfim, o único propósito para que o poder seja exercido
corretamente é a prevenção de danos163
.
Se qualquer indivíduo comete um ato danoso a outros, há
possibilidade de punição. Entretanto, naquilo que diz respeito apenas a ele,
às ações que o afetem apenas, é de modo absoluto independente. Essa é a
esfera individual de liberdade, compreendendo o domínio interior da
consciência, o que requer liberdade de consciência, liberdade de
pensamento, sentimento e opinião. Destas, é inseparável a liberdade de
161
Mill, embora defensor da liberdade e da diversidade de modos de vida individuais,
admitia o despotismo como governo legítimo quando os governados são bárbaros (isto
é, incapazes de avançarem por meio do exercício da liberdade de discussão) e os
governantes buscam o desenvolvimento dos indivíduos (MILL, 1952a, p. 272). Nesse
particular, Parekh (2006, p. 44, 45) critica o posicionamento de Mill, porquanto este,
embora admita a existência de modos de vida diversos, não aceita a diversidade cultural,
o que é evidenciado por sua defesa do despotismo, considerado de todo inadequado. A
liberdade se expressa, para Parekh, na diversidade de culturas (ainda que consideradas
―bárbaras‖), e não apenas em modos de vida individuais em um mesmo contexto
cultural. 162
Mill, On Liberty, 1952a, p. 269, tradução nossa. 163
Ibidem, p. 271. Dworkin (1978, p. 261) ressalta que esse princípio tem uma esfera de
aplicação restrita, por se referir apenas aos casos relativamente raros nos quais se pede a
um governo que proíba algum ato pela única razão de que o ato é perigoso para quem o
pratica, como dirigir uma motocicleta sem capacete. Ou pelo motivo de que o ato é
ofensivo aos padrões morais da comunidade, como a prática da homossexualidade ou a
publicação ou leitura de material pornográfico. Tais decisões constituem uma parte
insignificante das ocupações de qualquer governo responsável. Seu princípio nada diz
sobre o modo como o governo deve distribuir recursos escassos como renda, segurança
ou poder, ou como deve decidir quando limitar a liberdade em nome de algum outro
valor. Em relação às dificuldades de aplicação do princípio, ver nota adiante.
90
expressão, que precisa ser examinada ainda sob outra perspectiva,
porquanto é pertinente também às relações entre indivíduos. Além disso, há
a liberdade de gostos e buscas, de planejar a própria vida. Finalmente, da
liberdade do indivíduo deflue a liberdade de indivíduos combinados, a
saber, a liberdade de união para propósitos que não envolvam dano a
outros164
.
Em Mill, portanto, a liberdade é negativa. Trata-se do pensar, sentir,
expressar e mover sem impedimentos postos pela coletividade ou por
outros indivíduos. A única limitação legítima dessa liberdade é aquela
motivada pela prevenção de danos aos outros. ―Ninguém – seja um
indivíduo ou um governo – tem o direito de restringir a palavra, a
publicação de idéias ou a conduta de alguém, a não ser para evitar que esse
alguém cause dano a outra pessoa‖165
. Somente a prevenção do dano
justifica a intervenção na liberdade166
.
O princípio consagrado por Mill, conhecido como ―princípio do
dano a outros‖ ou apenas ―princípio do dano‖, opera como centro de sua
doutrina e é a base de legitimação das normas penais nos países de fala
inglesa, desempenhando um papel essencial desde o século XIX. Nos anos
oitenta do século XX, o influente filósofo do direito americano, Joel
Feinberg, esforçou-se para desenvolver o referido princípio167
.
164
Mill, On Liberty, 1952a, p. 271-273. 165
Adams; Dyson, Cinqüenta pensadores políticos essenciais: da Grécia antiga aos
dias atuais, 2006, p. 117 166
Comentando a teoria de Mill, Dworkin (1978, p. 263) salienta que as leis que
restringem um homem pela suposição de que ele é incompetente para decidir o que é
certo para ele, o ofendem profundamente. Tais leis o tornam subserviente intelectual e
moralmente à maioria e negam a ele a independência à qual tem direito. 167
Hirsch, El concepto de bien jurídico y el “principio del daño”, 2007, p. 38-39.
Defende Feinberg (1974, p. 46, 47) que a legitimidade da coerção social e política é
verificada na medida em que esta impede males maiores do que aqueles provocados
pela própria coerção. O dano, portanto, é o fundamento de legitimação da restrição da
liberdade, sendo que o dano pode ser considerado como público ou privado. O princípio
do dano público justificaria a restrição da liberdade de uma pessoa em razão da
necessidade de impedir o enfraquecimento das instituições e do sistema normativo, ao
91
De seu turno, os direitos políticos, também compreendidos como
forma de exercício da liberdade, como liberdade positiva ou ―liberdade dos
antigos‖168
, refere-se ao direito de participação na vida política do Estado.
Silva169
compreende como direitos políticos o conjunto de normas
legais permanentes que possibilitam o exercício do direito democrático de
participação do povo no governo, isto é, o conjunto de normas que regula a
atuação da soberania popular. Esses direitos compõem a cidadania, sendo
cidadãos os titulares de direitos políticos, e podem ser classificados como
direitos políticos positivos ou negativos.
O conjunto de normas que asseguram o direito subjetivo de
participação no processo político e nos órgãos governamentais são os
direitos políticos positivos. Eles se referem às diversas modalidades de
sufrágio, como: direito de voto nas eleições, de elegibilidade, de voto nos
plebiscitos e referendos, de participação popular (exemplos: iniciativa
popular e ação popular), e o direito de organizar e participar de partidos
políticos170
. Esse último guarda estreita relação com o direito de reunião e
associação.
Direitos políticos negativos consistem no conjunto de regras que
negam ao cidadão esses direitos. O cidadão pode se ver privado de seus
direitos políticos positivos de modo definitivo (perda, por exemplo: no caso
de cancelamento da naturalização) ou temporário (suspensão, por exemplo:
enquanto perdurarem os efeitos de sentença criminal transitada em
julgado). Sob outra perspectiva, o cidadão pode ser qualificado pela
inelegibilidade ou inalistabilidade. A primeira refere-se ao impedimento à
passo que o princípio do dano privado possibilita a restrição da liberdade em face de
danos provocados a outros indivíduos. Segundo o filósofo norte-americano, Mill é o
principal defensor do princípio do dano privado, embora entenda que ―Mill fosse a favor
de ambas as versões‖. 168
Constant, Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos, 1985, p. 10, 11. 169
Silva [José Afonso da], Curso de direito constitucional positivo, 2000, p. 345-348. 170
Ibidem, p. 349.
92
capacidade eleitoral passiva, ao direito de ser eleito, ao passo que a
segunda diz respeito ao impedimento à capacidade eleitoral ativa, ao direito
de ser eleitor171
.
Os direitos econômicos, sociais e culturais, de seu turno, são
tradicionalmente referidos em conjunto. Isso porque todos esses direitos
podem ser abrangidos por uma categoria maior, denominada como direitos
sociais em sentido amplo. Esses dizem respeito à intervenção estatal na
sociedade de modo a assegurar a efetividade do princípio da dignidade da
pessoa humana, ao menos o mínimo necessário para seu gozo.
Na categoria dos direitos econômicos são enquadrados, por
exemplo, o direito ao trabalho em favoráveis condições (referentes à
remuneração, higiene, iguais oportunidades de promoção, repouso), direito
de organizar e participar de sindicatos e direito à seguridade social. Como
direitos culturais, destacam-se o direito à educação, à participação da vida
cultural e do progresso científico. Direitos sociais em sentido estrito seriam
o direito à proteção da família e da saúde, bem como à garantia das
condições básicas para subsistência, como moradia, vestuário, alimentação
e lazer.
A respeito da relação entre direitos civis, direitos políticos e direitos
sociais, impende observar que os mesmos desempenham diferentes papéis
em relação à atividade estatal. Se de um lado os direitos civis e sociais
contribuem para a justiça do Estado (comutativa e distributiva), de outro, os
direitos políticos conferem a ele legitimidade (procedimento e
participação).
Os direitos de solidariedade dizem respeito à preservação dos
interesses comuns da humanidade. São direitos relacionados não à esfera
de liberdade individual ou a prestações positivas com vistas à efetivação da
171
Ibidem, p. 382-394.
93
dignidade de pessoas de um determinado lugar ou época, mas sim à
manutenção das condições básicas para existência da humanidade.
Essa classe de direitos compreende, entre outros, o direito de viver
em um meio ambiente saudável, ao desenvolvimento, à autodeterminação
dos povos, à proteção do patrimônio histórico e cultural, à paz, entre
outros. Trata-se de uma categoria heterogênea, mas que envolve a proteção
dos interesses que transcendem a presente geração.
Quanto à titularidade, os direitos fundamentais podem ser
individuais, coletivos e difusos. A primeira categoria abrange os direitos de
titularidade do indivíduo, entre os quais está o direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à saúde, à moradia, à educação, ao lazer e de votar e ser votado.
Os direitos coletivos são aqueles cuja titularidade é atribuída a um grupo,
categoria ou classe de pessoas, as quais estão vinculadas por uma relação
jurídica, a exemplo dos direitos trabalhistas relacionados a uma categoria
profissional. Os direitos difusos são aqueles de titularidade indeterminada,
como o direito à paz e segurança pública, direitos relacionados à família, à
criança, ao adolescente e ao idoso, às relações de consumo, ao meio
ambiente, ao patrimônio histórico e cultural, às pessoas portadoras de
deficiência, entre outros172
.
A esse respeito, vale destacar que não se pode confundir direitos
sociais, que são direitos que encontram seu fundamento e função na
proteção de pessoas em situações sociais concretas, com direitos coletivos
ou difusos, que são direitos de titularidade de grupos e indeterminada,
172
É seguida aqui a conceituação contida no Código de Defesa do Consumidor, Lei n.
8078 de 1990: ―Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das
vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo
único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos
difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza
indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias
de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código,
os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe
de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base‖.
94
respectivamente. Na verdade, os direitos sociais são direitos sempre
referidos, em primeira linha, ao indivíduo, uma vez que visam à
preservação da dignidade da pessoa humana, mas que podem também
apresentar a faceta coletiva173
.
Quanto às posições jurídicas, tem-se como paradigma a teoria do
status, de Jellinek. Segundo ele, os direitos fundamentais podem pertencer
ao status passivo (status subiectionis), ao status negativo (status libertatis),
ao status positivo (status civitatis) e ao status ativo (status da cidadania
ativa). Jellinek define status como uma forma de relação entre cidadão e
Estado174
.
No status passivo encontra-se o indivíduo em razão de sua sujeição
ao Estado no campo da esfera de obrigações individuais. Estar em um
status passivo significa se encontrar em uma posição caracterizada por
deveres e proibições. Isto é, o indivíduo encontra-se em um estado de
sujeição175
.
Quanto ao status negativo, Jellinek explica que ao membro do
Estado é concedida uma esfera (espaço ou campo) individual de liberdade
no qual os fins estritamente individuais encontram a sua satisfação por
meio da livre ação do indivíduo. Essa esfera é a classe das ações dos
súditos que são juridicamente irrelevantes para o Estado, que são
promovidas a partir do exercício da faculdade jurídica176
.
No status positivo está inserido o indivíduo sempre que o Estado a
ele reconhece a capacidade jurídica para recorrer a seu aparato e
instituições. Esse status faz que o Estado garanta ao indivíduo pretensões
positivas de modo que, de um lado, o indivíduo tenha direitos a algo em
face do Estado e tenha uma competência para vê-los efetivados; de outro,
173
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 216-218. 174
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 255. 175
Ibidem, p. 256-257. 176
Ibidem, p. 258-261.
95
que ao direito do indivíduo corresponda o dever do Estado de realizar essa
ação177
.
Finalmente, o que o dever e a obrigação representam para o status
passivo, que a faculdade representa para o status negativo e que direitos a
algo representam para o status positivo, o conceito de competência
representa para o status ativo. Segundo Jellinek, competências são aquelas
capacidades que estão além da liberdade natural, sendo que participam
desse status somente aquelas competências que tenham como objetivo uma
participação na formação da vontade estatal, a exemplo do direito de
votar178
.
Quanto ao surgimento histórico dos direitos fundamentais,
menciona-se a teoria das gerações de direitos. Propõem seus defensores que
os direitos humanos fundamentais são direitos históricos, reivindicados e
positivados em função das necessidades de seu contexto.
Bobbio179
entende que os direitos humanos fundamentais foram
afirmados, em um primeiro momento, como direitos de liberdade, tendo
Locke como o seu ―campeão‖. Estes direitos são aqueles que tendem a
limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo ou para grupos
particulares uma esfera de liberdade em relação ao Estado. Num segundo
momento, foram proclamados os direitos políticos, que concebem a
liberdade não apenas negativamente, mas positivamente, tendo como
conseqüência a participação cada vez mais ampla, generalizada e freqüente
dos membros da comunidade no poder político (liberdade no Estado). São
os direitos de primeira geração.
Constituindo uma expressão do amadurecimento de novas
exigências, a exemplo do bem-estar e da igualdade material, são defendidos
os direitos econômicos, sociais e culturais (liberdade através ou por meio 177
Ibidem, p. 263-265. 178
Ibidem, p. 268-269. 179
Bobbio, A era dos direitos, 1992, p. 32-33.
96
do Estado), denominados como direitos de segunda geração. Entre eles
menciona-se a proteção do trabalho, a instrução básica, e a assistência ao
inválido e ao idoso180
.
Ainda conforme o ensino do jurista italiano, ao lado destes direitos
emergiram os direitos de terceira geração, relacionados aos problemas
ecológicos (isto é, o direito de viver num ambiente não poluído), e os de
quarta geração, referentes aos efeitos da pesquisa biológica181
.
Nessa mesma corrente, Vasak182
ex-Diretor da Divisão de Direitos
Humanos e Paz da UNESCO, refletindo sobre o processo da
internacionalização de direitos e sobre a Declaração Universal de Direitos
Humanos de 1948, defende que a Declaração proclamou as duas primeiras
gerações de direitos: de um lado, os direitos civis e políticos; de outro, os
direitos econômicos, sociais e culturais. Esses direitos haviam sido
reconhecidos anteriormente, sendo que a Declaração contribuiu para a
consagração dos mesmos no plano do direito internacional.
Entretanto, outros direitos foram sendo reconhecidos em sede
constitucional e de direito internacional ao longo dos anos seguintes. Em
razão das alterações nos padrões sociais, observou-se, desde a década de
70, o surgimento de uma terceira geração de direitos, relacionados à
solidariedade, que incluem o direito ao meio ambiente saudável e
ecologicamente balanceado, direito à paz, à propriedade da herança comum
da humanidade, entre outros de caráter coletivo183
.
A particular contribuição de Vasak, no entanto, não se encontra no
reconhecimento das gerações. Seu pioneirismo está em relacionar as
gerações de direitos com o lema revolucionário francês. Segundo
180
Ibidem, p. 5. 181
Ibidem, p. 6. 182
Vasak, A 30-year struggle: the sustained efforts to give force of law to the Universal
Declaration of Human Rights, 1977, p. 29. 183
Ibidem, p. 29.
97
Morales184
, professora da Universidade de Leuven (Bélgica), durante uma
palestra em comemoração ao trigésimo aniversário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos em 1978, Vasak refletiu sobre a relação
entre solidariedade e fraternidade, apresentando uma nova concepção da
realização dos direitos essenciais ao ser humano por meio da defesa de
direitos de solidariedade, inspirando-se na Revolução Francesa. Nesta, o
termo ―fraternidade‖ significou o reconhecimento de uma área comum
pertencente aos membros da comunidade. Diante disso, Vasak sugere uma
nova classificação dos direitos: a primeira geração de direitos (civis e
políticos) correspondendo à liberdade (liberté); a segunda geração de
direitos (econômicos, sociais e culturais) à igualdade (égalité); e, a terceira
geração, os direitos de solidariedade, correspondentes ao princípio da
fraternidade (fraternité). Essa relação entre as gerações de direitos e os
pilares da Revolução Francesa tornou-se paradigmática no âmbito das
reflexões sobre os direitos humanos fundamentais.
Ainda a respeito do critério histórico, pode-se mencionar a tese de
T. H. Marshall relacionada à consagração desses direitos na Inglaterra. Sob
uma perspectiva sociológica, Marshall assegura que os direitos
fundamentais foram reconhecidos na Inglaterra observando-se a seguinte
seqüência: as liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um
Judiciário cada vez mais independente do Executivo; com base no
exercício das liberdades, expandiram-se os direitos políticos consolidados
pelos partidos e pelo Legislativo; finalmente, pela ação dos partidos e do
Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática pelo
Executivo185
.
184
Morales, UNESCO’s Philosophy of “intellectual and moral solidarity” in attaining
peace, 2010. 185
Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2002, p. 220. No entanto, segundo
Carvalho (2002, p. 219), essa lógica foi invertida no Brasil. A expansão dos direitos
sociais ocorreu primeiro, na década de 30, por influência do Positivismo. Os direitos
98
Sob a perspectiva jurídico-positiva da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, é adotado mais de um critério para a
sistematização dos direitos fundamentais. No Capítulo I do Título II, o
critério é o da titularidade (individuais e coletivos), enquanto que os
Capítulos II a IV utilizam o critério do conteúdo (direitos sociais e
políticos).
De todo modo, a Constituição reconhece a existência de direitos
fundamentais de primeira geração (direitos civis e políticos; direitos de
liberdade; direitos do status negativo e do status ativo), direitos de segunda
geração (direitos econômicos, sociais e culturais; direitos
preponderantemente do status positivo) e direitos de terceira geração
(direitos de solidariedade; posições de diferentes status, especialmente
negativo e positivo), sejam eles de titularidade individual, coletiva ou
difusa.
2.3 Estrutura normativa
Apresentados o conceito e a classificação dos direitos
fundamentais, sob as perspectivas teórico-jurídica e jurídico-positiva (na
Constituição brasileira de 1988), segue-se com o exame da estrutura das
normas definidoras de direitos fundamentais, principiando pela
diferenciação entre enunciado normativo, norma e direito.
políticos vieram posteriormente, entre os anos 1945 e 1964. Finalmente os direitos civis,
de 1985 em diante. Entretanto, cumpre ressalvar que a tese de José Murilo de Carvalho
considera os direitos fundamentais sob a perspectiva da efetividade, e não da
positivação. No último caso, verifica-se que desde a Constituição Imperial de 1824
havia positivação de direitos civis e políticos, ainda que de modo limitado.
99
2.3.1 Enunciado normativo, norma e direito
Para melhor compreensão do modo como os direitos fundamentais
são positivados em sede constitucional, é imperioso examinar os conceitos
de enunciado normativo, norma e direito. Embora estejam estreitamente
conectados, são conceitos distinguíveis.
De acordo com Alexy186
, embora a cada direito corresponda uma
norma, tenha esta a estrutura de princípio ou de regra, nem sempre a uma
norma corresponderá apenas um direito, pois diferentes direitos podem ser
extraídos de uma norma. Além disso, esta pode ser prevista textualmente de
diferentes modos. Em síntese, o significado do enunciado normativo
configura as normas e estas, por sua vez, definem os direitos.
Utiliza-se o autor de um exemplo da Constituição alemã. O artigo
16, §2º, 1 prevê que ―nenhum alemão pode ser extraditado‖. Esse
enunciado tem como significado a vedação da extradição de alemães, sendo
essa a norma expressada por aquele. Entretanto, a norma poderia ser
expressa de diferentes modos, por exemplo, ―é proibido extraditar
alemães‖, ou ―alemães não podem ser extraditados‖, ou ainda ―alemães não
serão extraditados‖. Isso faz com que o conceito de norma seja diferente do
enunciado normativo, sendo que a compreensão das normas deve ser
buscada no nível das normas, e não dos enunciados normativos. Naquele
nível, as modalidades deônticas básicas que auxiliam a compreensão são o
dever, a proibição e a permissão, ou em síntese, o ―dever-ser‖187
.
Ávila188
também examina a matéria. O autor brasileiro afasta-se de
Alexy ao defender que são três, e não dois, os tipos de normas, a saber, as
186
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 50-55. 187
Ibidem, p. 54-56. 188
Ávila, Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos,
2009, p. 30.
100
regras, os princípios e os postulados189
. Contudo, assemelha-se a ele ao
diferenciar as normas do texto normativo. Isso porque as normas não são
textos nem o conjunto deles. Antes, são os sentidos construídos a partir da
interpretação sistemática de textos normativos, de modo que os dispositivos
se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado.
Para Ávila190
o importante é que não existe correspondência entre
as normas e o dispositivo, no sentido de que sempre que houver um
dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá
haver um dispositivo específico que lhe sirva de suporte. Um exemplo
disso encontra-se no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, quando
prevê a ―proteção de Deus‖, pois não há norma a ser construída a partir do
referido enunciado191
. No mesmo sentido a ―Exposição de Motivos‖, de
cujo texto não é construída norma alguma. Além desses, menciona-se
também o princípio da segurança jurídica, não previsto em nenhum
dispositivo específico.
Quanto à interpretação do texto normativo, acrescenta Ávila192
que
não se trata apenas de um ato de descrição de um significado previamente
dado, mas de uma decisão que constitui a significação e os sentidos do
texto. Por isso é que se fala em construção da norma a partir do dispositivo,
e não descrição. Para o autor, o intérprete constrói os sentidos, porquanto a
189
Para Ávila (2009, p. 122), os postulados ―são normas imediatamente metódicas que
instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da
aplicação. Assim, qualificam-se como normas sobre a aplicação de outras normas, isto
é, metanormas. Daí se dizer que se qualificam como normas de segundo grau‖. Entre
estas, destaca o autor a ponderação de bens, a concordância prática, a proibição de
excesso, a igualdade, a razoabilidade e a proporcionalidade. 190
Ávila. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos,
2009, p. 30. 191
A esse respeito:―Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação
da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição
estadual, não tendo força normativa‖ (STF, Ação Direita de Inconstitucionalidade n.
2.076, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 08/08/03). 192
Ávila. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos,
2009, p. 31-32.
101
linguagem nunca é algo dado previamente, mas algo que se concretiza no
uso, ou melhor, como uso.
Uma vez que as normas são construídas pelo intérprete a partir dos
dispositivos, não se pode concluir que este ou aquele dispositivo contém
uma regra ou um princípio. Essa qualificação normativa é construída pelo
intérprete, o que, todavia, não significa que este é plenamente livre nesse
processo. Isso porque o ordenamento jurídico estabelece a realização de
fins, a preservação de valores e a manutenção ou a busca de determinados
bens jurídicos essenciais à realização daqueles fins e à preservação desses
valores. E esses pontos de partida não podem ser desprezados193
.
Na Constituição brasileira, os enunciados que expressam as normas
de direitos fundamentais concentram-se especialmente no seu Título II.
Dessas normas são extraídos ou construídos os direitos fundamentais,
classificados como: direitos individuais e coletivos (artigo 5º); direitos
sociais (artigos 6º a 11); e, nacionalidade, direitos políticos e partidos
políticos (artigos 12 a 43).
Dos dispositivos que definem direitos individuais e coletivos são
extraídos direitos como o direito à vida, à privacidade, à igualdade, à
liberdade e à propriedade, direitos assegurados tanto aos brasileiros quanto
aos estrangeiros residentes no país194
. Entre os direitos sociais estão
193
Ibidem, p. 34-35. 194
Sobre a extensão desses direitos aos estrangeiros não residentes no país: ―O súdito
estrangeiro, mesmo aquele sem domicílio no Brasil, tem direito a todas as prerrogativas
básicas que lhe assegurem a preservação do status libertatis e a observância, pelo Poder
Público, da cláusula constitucional do due process. O súdito estrangeiro, mesmo o não
domiciliado no Brasil, tem plena legitimidade para impetrar o remédio constitucional do
habeas corpus, em ordem a tornar efetivo, nas hipóteses de persecução penal, o direito
subjetivo, de que também é titular, à observância e ao integral respeito, por parte do
Estado, das prerrogativas que compõem e dão significado à cláusula do devido processo
legal. A condição jurídica de não nacional do Brasil e a circunstância de o réu
estrangeiro não possuir domicílio em nosso País não legitimam a adoção, contra tal
acusado, de qualquer tratamento arbitrário ou discriminatório. Precedentes. Impõe-se,
ao Judiciário, o dever de assegurar, mesmo ao réu estrangeiro sem domicílio no Brasil,
os direitos básicos que resultam do postulado do devido processo legal, notadamente as
102
previstos direitos relativos aos trabalhadores, à seguridade, à educação e
cultura, ao meio ambiente e os direitos da criança e do idoso. Finalmente,
na última categoria, há o direito à nacionalidade brasileira, os direitos do
estrangeiro, os direitos políticos e a regulação político-partidária.
Apresentada essa distinção entre direitos, normas e textos
normativos, é importante expor ainda outra distinção, aquela entre
princípios e regras.
2.3.2 Conceito e estrutura das normas de direitos fundamentais
Foi dito anteriormente que direitos fundamentais são entendidos
como os direitos que protegem as necessidades essenciais do ser humano.
Há quem considere como direitos fundamentais somente aqueles
relacionados à dignidade da pessoa como liberdade formal (liberalismo).
Outros defendem uma perspectiva mais abrangente, incluindo a liberdade
real, devendo ser garantidas as condições materiais para que seja de fato
possível a liberdade (tradição social).
Alexy, no entanto, advoga a tese de que não se deve vincular os
direitos fundamentais e as normas que os definem a perspectivas
previamente concebidas. Isso porque não há consenso a respeito de qual
posição é adotada pelo Constituinte. Um conceito formal e geral é o mais
adequado para o estudo dogmático dos direitos fundamentais. Entende o
autor que as normas de direitos fundamentais podem ser conceituadas
como aquelas normas que são expressas por disposições de direitos
prerrogativas inerentes à garantia da ampla defesa, à garantia do contraditório, à
igualdade entre as partes perante o juiz natural e à garantia de imparcialidade do
magistrado processante.‖ (STF, Habeas Corpus n. 94.016, Rel. Min. Celso de Mello,
julgamento em 16-9-2008, Segunda Turma, DJE de 27-2-2009). No mesmo sentido:
STF, Habeas Corpus n. 102.041, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 20-4-2010,
Segunda Turma, DJE de 20-8-2010; STF, Habeas Corpus n. 94.404, Rel. Min. Celso de
Mello, julgamento em 18-11-2008, Segunda Turma, DJE de 18-6-2010.
103
fundamentais; e disposições de direitos fundamentais são os enunciados
presentes no texto da Constituição como tais195
.
Alexy relaciona dois critérios para distinguir as normas de direitos
fundamentais das demais normas previstas na Constituição. Ao examinar a
Constituição alemã, defende os direitos fundamentais como posições tão
importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser
simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples196
. Observa-se,
portanto, que a importância e a forma de positivação são a idéia-guia que
orienta a compreensão de direitos fundamentais.
Na Constituição alemã, disposições de direitos fundamentais são
aquelas contidas nos artigos 1º a 19, 20 §4º, 33, 38, 101, 103 e 104. Normas
de direitos fundamentais são as normas diretamente expressas por essas
disposições197
. No Brasil, as normas de direitos fundamentais são aquelas
extraídas especialmente dos dispositivos constantes do Título II da
Constituição, havendo outros dispersos no texto constitucional ou fora dele,
mas pela Constituição reconhecidos.
Em relação à estrutura, essas normas de direitos fundamentais
podem assumir a configuração de princípio ou de regra. Tradicionalmente,
princípios e regras são distinguidos em função do grau de abstração das
normas que os definem.
Na lição do filósofo do direito inglês Hart, em obra de 1961, os
princípios são, relativamente às regras, extensos, gerais ou não específicos.
As regras, portanto, são mais específicas, com menor grau de abstração e
maior grau de determinabilidade. Além disso, os princípios também se
referem a uma certa finalidade ou valor que se deseja preservar,
contribuindo para a fundamentação lógica e justificação das regras198
.
195
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 65-68. 196
Ibidem, p. 446. 197
Ibidem, p. 68-69. 198
Hart, O conceito de direito, 2007, p. 322.
104
Dworkin, afastando-se da distinção de grau (em sua crítica ao
positivismo jurídico de Hart), defende que a diferença entre princípios e
regras é de caráter lógico. Ambos os standards apontam para uma decisão
particular a respeito de uma obrigação legal em dadas circunstâncias, mas
se diferem no caráter da direção que implementam199
. No caso das regras:
Rules are applicable in an all-or-nothing fashion. If the facts a
rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which
case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in
which case it contributes nothing to the decision […]. The rule
might have exceptions, but if it does then it is inaccurate and
incomplete to state the rule so simply, without enumerating the
exceptions. In theory, at least, the exceptions could all be listed,
and the more of them that are, the more complete is the
statement of the rule200
.
Observa-se, então, que, no modelo das regras, preenchidas as
condições fixadas pela norma, a conseqüência jurídica é necessária, salvo
nos casos de exceções previstas. A única possibilidade de não aplicação das
conseqüências é o caso de invalidade da norma. Portanto, ou a regra é
válida e suas conseqüências são necessárias, ou a regra é inválida, não se
falando em conseqüências.
Entretanto, os princípios não operam dessa forma. Eles não
prevêem conseqüências para o caso de preenchimento de condições. Mais
que isso. Os princípios não estabelecem condições para conseqüências
normativas, não determinando de modo absoluto a decisão, isto é, não
requerem uma decisão particular. Antes, os princípios estabelecem uma
199
Dworkin, Taking Rights Seriously, 1978, p. 24. 200
―Regras são aplicáveis na forma de tudo-ou-nada. Se o fato que a regra estipula
acontece, então ou a regra é válida, caso em que a resposta que ela determina deve ser
aceita, ou ela não é considerada válida, caso em que não contribui para a decisão [...]. A
regra pode ter exceções, mas se ela tiver, então é imprecisa e incompleta qualquer
descrição que não as leve em consideração, enumerando-as. Na teoria, ao menos, as
exceções podem todas ser listadas, e quanto mais completa for a lista, mais completa é a
descrição da regra‖ (DWORKIN, 1978, p. 24-25, tradução nossa).
105
razão, um fundamento que aponta para uma direção. Um princípio jurídico
é aquele que, quando pertinente, contribui para inclinar a decisão para uma
ou outra direção201
. Além disso, os princípios não operam sob a lógica do
“all-or-nothing”, mas na dimensão do peso.
Principles have a dimension that rules do not - the dimension of
weight or importance. When principles intersect (the policy of
protecting automobile consumers intersecting with principles of
freedom of contract, for example) one who must resolve the
conflict has to take into account the relative weight of each202
.
A relação entre princípios na dimensão do peso significa que,
mesmo havendo a utilização de um princípio para a fundamentação de uma
decisão, a validade de outros que estejam em intersecção com ele não é
retirada. Ocorre apenas a atribuição de maior importância a um princípio
do que a outro, em um caso específico, em função de suas
particularidades203
.
Como visto, no caso de conflito de regras, não é possível que uma
se sobreponha a outra em virtude de eventual maior peso ou importância.
201
Dworkin, Taking Rights Seriously, 1978, p. 25-26. 202
―Princípios tem uma dimensão que as regras não possuem – a dimensão do peso ou
importância. Quando os princípios estão em intersecção (a política de proteção aos
consumidores de automóveis em intersecção com os princípios de liberdade contratual,
por exemplo), a decisão sobre o conflito deve levar em consideração o peso relativo de
cada um‖ (DWORKIN, 1978, p. 26, tradução nossa). 203
Exemplo de colisão entre princípios definidores de direitos fundamentais: ―Agravo
Regimental em Suspensão de Tutela Antecipada. Pedido de restabelecimento dos efeitos
da decisão do Tribunal a quo que possibilitaria a participação de estudantes judeus no
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em data alternativa ao Shabat. Alegação de
inobservância ao direito fundamental de liberdade religiosa e ao direito à educação.
Medida acautelatória que configura grave lesão à ordem jurídico-administrativa. Em
mero juízo de delibação, pode-se afirmar que a designação de data alternativa para a
realização dos exames não se revela em sintonia com o princípio da isonomia,
convolando-se em privilégio para um determinado grupo religioso. Decisão da
Presidência, proferida em sede de contracautela, sob a ótica dos riscos que a tutela
antecipada é capaz de acarretar à ordem pública. Pendência de julgamento da ADI 391 e
da ADI 3.714, nas quais este Corte poderá analisar o tema com maior profundidade.‖
(STF, Suspensão de Tutela Antecipada 389-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes,
julgamento em 3-12-2009, Plenário, DJE de 14-5-2010).
106
Se duas regras estão em conflito, uma delas não pode ser considerada
válida (―all-or-nothing‖), sendo que a decisão sobre a validade precisa
apelar para considerações que estão além dessas regras em jogo. O sistema
deve conter outras regras que regulam os conflitos, por exemplo: a
prevalência das regras promulgadas por autoridade superior, ou
posteriormente, ou das regras mais específicas204
.
Nesse sentido, o filósofo do direito norte-americano, ao propor uma
diferenciação que leva em consideração o modo de aplicação e o
relacionamento normativo (critérios classificatórios, de ordem lógica),
distancia as duas espécies normativas. Por essa razão, a distinção de Hart
pode ser considerada fraca, ao passo que a de Dworkin, forte, o que
representa um marco na evolução doutrinária relacionada à estrutura das
normas. E, partindo de suas considerações, na doutrina alemã, Alexy
precisou ainda mais o conceito de princípio205
.
Ao enfrentar a matéria, Alexy expõe que as disposições, os
enunciados normativos de direitos fundamentais têm um caráter duplo, pois
deles podem ser extraídos normas com natureza de regras e de princípios.
Entretanto, isso não significa que as normas de direitos fundamentais
compartilhem necessariamente desse mesmo caráter duplo. De início, elas
são regras ou princípios. Contudo, essas normas podem adquirir um caráter
duplo se forem construídas de modo que os dois níveis sejam reunidos
nelas206
.
A respeito da diferença entre princípios e regras, Alexy207
advoga
que princípios ordenam que algo seja realizado na maior medida possível
dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes; são mandamentos de
204
Dworkin, Taking Rights Seriously, 1978, p. 27. 205
Ávila, Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos,
2009, p. 36-39. 206
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 141. 207
Ibidem, p. 90-91.
107
otimização, caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e
pelo fato de que a mediada devida de sua satisfação não depende somente
das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. A seu
turno, as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas,
contendo, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e
juridicamente possível. Enfim, princípios são definidos como mandamentos
de otimização e as regras como normas que sempre ou são satisfeitas ou
não o são.
Essa diferenciação mostra-se com maior clareza nos casos de
colisões entre princípios e regras. Um conflito entre regras ocorre na
dimensão da validade, enquanto a colisão entre princípios (e somente
princípios válidos podem colidir) ocorre na dimensão do peso. Desse
modo, se isoladamente considerados dois princípios conduzirem a
resultados contraditórios entre si, ainda assim nenhuma dessas normas será
inválida, nenhuma tem precedência absoluta sobre a outra. A solução é
encontrada no sopesamento, verificando-se qual conduta a ser praticada
satisfaz na maior medida possível os princípios em jogo. Isso não ocorre,
porém, com as regras. Para estas, a solução é dada por meio da inclusão de
uma cláusula de exceção que elimine o conflito ou pela declaração de
invalidade de uma das regras, não havendo sopesamento208
.
Isso é denominado por Alexy como a ―lei de colisão‖, sendo
considerada um dos fundamentos de sua teoria dos princípios. A lei reflete
a natureza dos princípios como mandamentos de otimização, confirmando
a inexistência de relação absoluta de precedência entre princípios. Vale
destacar também que Alexy afasta a possibilidade de arbitrariedade quando
da realização do sopesamento, tendo em vista que o seu resultado é a
formação de uma norma que tem estrutura de uma regra, com natureza de
208
Ibidem, 2008, p. 92-103.
108
direito fundamental (por atribuição), aplicável definitivamente em outros
casos se o suporte fático for o mesmo209
.
Pelas razões expostas, Alexy conclui que há um distinto caráter
prima facie dos princípios e das regras. Uma vez que os princípios exigem
que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades
jurídicas e fáticas existentes, eles não contêm mandamentos definitivos,
mas apenas prima facie. De seu turno, as regras exigem que seja feito
exatamente aquilo que elas ordenam, contendo uma determinação da
extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e
fáticas210
.
Entre nós, Ávila também examina a estrutura das normas de direitos
fundamentais, propondo três critérios de distinção entre princípios e regras,
a saber: a natureza do comportamento prescrito, a natureza da justificação
exigida e a medida de contribuição para a decisão.
De acordo com o autor211
, o primeiro critério distintivo relaciona-se
à natureza do comportamento prescrito. Enquanto as regras são normas
imediatamente descritivas, pois estabelecem obrigações, permissões ou
proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada, os princípios são
normas imediatamente finalísticas, uma vez que estabelecem um estado de
coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados
comportamentos. ―Os princípios são normas cuja qualidade frontal é,
justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente
relevante, ao passo que característica dianteira das regras é a previsão do
comportamento‖212
.
209
Ibidem, p. 102. 210
Ibidem, p. 103-104. 211
Ávila, Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos,
2009, p. 71. 212
Ibidem, p. 71.
109
Para melhor compreensão do que seja ―estado de coisas‖, Ávila213
define este como uma situação caracterizada por específicas qualidades,
sendo que o estado de coisas se transforma em fim quando alguém aspira
conseguir, gozar ou possuir as qualidades presentes na referida situação.
Exemplo mencionado pelo autor é o princípio do Estado de Direito, que
estabelece uma situação caracterizada pela existência de responsabilidade
(do Estado), de previsibilidade (da legislação), de equilíbrio (entre
interesses públicos e privados) e de proteção (dos direitos individuais), para
cuja realização é indispensável a adoção de determinadas condutas, como a
criação de ações destinadas a responsabilizar o Estado, a publicação com
antecedência da legislação, o respeito à esfera privada e o tratamento
igualitário.
Desse modo, os princípios, por estabelecerem fins a serem
atingidos, exigem a promoção de um estado de coisas que impõe condutas
necessárias à sua preservação ou realização, sendo verdadeiras ―normas-do-
que-deve-ser‖. A seu turno, as regras são definidas como normas
mediatamente finalísticas, isto é, que estabelecem indiretamente fins, para
cuja concretização estabelecem maior exatidão qual o comportamento
devido. Por isso são ―normas-do-que-fazer‖214
.
O segundo critério mencionado por Ávila refere-se à natureza da
justificação exigida. No caso das regras, como há maior determinação do
comportamento em razão do caráter descritivo do enunciado prescritivo, o
aplicador deve argumentar de modo a fundamentar uma avaliação de
correspondência da construção factual à descrição normativa e à finalidade
que lhe dá suporte. Nesse caso, é irrelevante a previsão sobre um estado
futuro de coisas, dizendo-se, por essa razão, que as regras possuem, em vez
de um elemento finalístico, um elemento descritivo. Demonstrada a
213
Ibidem, p. 71. 214
Ibidem, p. 72.
110
correspondência, o ônus argumentativo é menor, na medida em que a
descrição normativa serve, por si só, como justificação. Se a construção
conceitual do fato, embora corresponda à construção conceitual da
descrição normativa, não se adequar à finalidade que lhe dá suporte ou for
superável por outras razões, o ônus argumentativo é muito maior. São esses
os chamados casos difíceis. Exemplo disso é a hipotética regra de proibição
de entrada de animais em táxi sob pena de multa: se o animal for um cão–
guia de um passageiro cego, a multa poderá deixar de ser aplicada diante de
uma ponderação de razões, quais sejam, segurança no trânsito e liberdade
de locomoção215
.
Em se tratando dos princípios, o elemento finalístico recebe
precedência em relação ao descritivo, devendo o aplicador argumentar de
modo a fundamentar uma avaliação de correlação entre os efeitos da
conduta e a realização do estado de coisas requerido. Não há casos fáceis
ou difíceis, porquanto não se trata de demonstração de correspondência; o
ônus argumentativo estável216
.
O terceiro critério é aquele da medida de contribuição para a
decisão. Segundo Ávila217
, as regras são preliminarmente decisivas e
abarcantes, pois, a despeito da pretensão de abranger todos os aspectos
relevantes para a tomada de decisão, têm a aspiração de gerar uma solução
específica para o conflito entre razões. Exemplo dessa característica pode
ser construído a partir do dispositivo que exclui a competência das pessoas
políticas para instituir impostos sobre livros, jornais e periódicos (art. 150,
VI, ―d‖, CF) e que predetermina quais são os objetos que são
preliminarmente afastados do poder de tributar, podendo ser enquadrados,
nesse aspecto relativo à exclusão de poder, na espécie de regras. Nesse
sentido, possui a pretensão de determinar que somente os livros, os jornais 215
Ibidem, p. 73-74. 216
Ibidem, p. 74-75. 217
Ibidem, p. 76-77.
111
e os periódicos não podem ser objeto de tributação, afastando, de antemão,
quaisquer dúvidas quanto à inclusão de outros objetos, como quadros ou
estátuas no seu âmbito de aplicação.
Nesse caso, a regra pode ser extraída do dispositivo tendo em vista
a limitação dos objetos feitas pelo constituinte. Entretanto, caso fosse
estabelecido que ―ficariam excluídos da tributação todos os objetos que
fossem necessários à manifestação da liberdade de manifestação do
pensamento ou da arte‖218
, uma vez que haveria abertura normativa, tratar-
se-ia de um puro princípio, porquanto estaria traçada apenas uma diretriz
valorativa a ser atingida. É certo, contudo, que um princípio também pode
ser construído a partir da referida prescrição, o da liberdade de
manifestação do pensamento
Diversamente, os princípios estão entrelaçados. Eles estabelecem
diretrizes valorativas a serem atingidas, sem descrever, de antemão, qual o
comportamento adequado a essa realização. Além disso, os princípios
possuem pretensão de complementaridade, pois não tem a pretensão de
gerar uma solução específica, mas de contribuir, ao lado de outras razões,
para a tomada de decisão, a exemplo do princípio da proteção dos
consumidores, que não tem pretensão monopolista, no sentido de
prescrever todas e quaisquer medidas de proteção aos consumidores, mas
aquelas que possam ser harmonizadas com outras medidas necessárias à
promoção de outros fins, como livre iniciativa e propriedade219
.
Em síntese, as regras são definidas como:
normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas
e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja
aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre
centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que
lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção
218
Ibidem, p. 77. 219
Ibidem, p. 76-77.
112
conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos
fatos220
.
A seu turno, os princípios são considerados como:
normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e
com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para
cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o
estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da
conduta havida como necessária à sua promoção‖221
.
A doutrina elaborada por Ávila parte da crítica aos critérios de
distinção entre princípios e regras formulados pelos autores anteriores. Ele
identifica a existência de ao menos três critérios de distinção: o do caráter
hipotético-dedutivo, do modo final de aplicação e do relacionamento
normativo. O primeiro baseia-se no fato de que as regras possuem uma
hipótese e uma conseqüência que predeterminam a ação, sendo aplicadas
ao modo ―se, então‖, enquanto os princípios apenas indicam o fundamento
a ser utilizado. O segundo critério trata das dimensões de aplicação de
regras e princípios, isto é, que as regras observam o modo ―tudo-ou-nada‖,
e os princípios o modo gradual (―mais ou menos‖). O terceiro critério, o do
relacionamento ou conflito normativo, se fundamenta no pressuposto de
que, havendo conflito entre regras, a solução se dá no plano da validade ou
com a criação de exceções, ao passo que a ponderação orienta o confronto
entre princípios (peso)222
.
A crítica de Ávila ao primeiro critério, utilizado tanto por Dworkin
quanto por Alexy, reside no fato de que considera haver uma confusão
entre dispositivo e norma, uma vez que a existência de uma hipótese de
incidência é questão de formulação lingüística e, portanto, não pode ser
elemento distintivo de uma espécie normativa. Para ele, princípios também 220
Ibidem, p. 78. 221
Ibidem, p. 78-79. 222
Ibidem, p. 39.
113
podem ser formulados de modo hipotético-condicional, por exemplo, o
princípio democrático pode ser descrito como ―se o poder estatal for
exercido, então deve ser garantida a participação democrática‖. Desse
modo, a formulação de um enunciado de modo hipotético-condicional não
significa necessariamente que é um princípio ou uma regra. De um mesmo
enunciado podem ser extraídos princípios e regras, uma vez que pode haver
referência a fins e a descrição de condutas, simultaneamente, por exemplo:
―se houver instituição ou aumento de tributo, então a instituição ou
aumento deve ser veiculado por lei‖ pode ser aplicado como regra (o
aplicador o entende como mera exigência de lei formal para a validade do
aumento) e como princípio (o aplicador verifica a referência aos valores
liberdade para permitir o planejamento tributário e vedar a analogia, e
segurança, para garantir a previsibilidade da determinação legal)223
.
Acertada é a posição de Ávila. Isso porque, se os enunciados, como
visto anteriormente, podem ser elaborados de diferentes formas, seja como
uma afirmação ou com caráter hipotético-dedutivo, isso significa que a
estrutura lingüística do enunciado não pode ser critério para distinção entre
as normas. Tanto princípios quanto regras podem ser extraídos de
enunciados hipotético-dedutivos, e também podem ser formulados em
termos hipotético-dedutivos.
Em relação ao critério do modo final de aplicação, Ávila propõe
que: em primeiro lugar, o modo de aplicação de uma norma não diz
respeito a seu aspecto estrutural; em segundo lugar, a diferença quanto à
aplicação, se de modo absoluto (tudo-ou-nada) ou relativo (dimensão do
peso), não se presta para diferenciar regras de princípios, pois as duas
espécies normativas (e não apenas os princípios) são caracterizadas por
certo grau de vagueza ou abstração, o que requer a consideração de
questões que não estão previstas na própria norma (por exemplo, para a
223
Ibidem, p. 40-43.
114
definição de seu sentido), de modo que ―não é adequado afirmar que as
regras ‗possuem‘ um modo absoluto ‗tudo ou nada‘ de aplicação‖; em
terceiro lugar, afirma o autor que a vagueza, que afasta a aplicação ―tudo-
ou-nada‖, não é característica exclusiva dos princípios, mas dos próprios
enunciados normativos em geral, dos quais são extraídas também as
regras224
.
Nesse sentido, defende o autor que tanto para a aplicação de regras
quanto de princípios podem ser levadas em consideração situações
particulares não previstas na norma. Utiliza, entre outros, o seguinte
exemplo:
A norma construída a partir do art. 224 do Código Penal [217-A,
após a reforma], ao prever o crime de estupro, estabelece uma
presunção incondicional de violência para o caso de a vítima ter
idade inferior a 14 anos. Se for praticada uma relação sexual
com menor de 14 anos, então deve ser presumida a violência por
parte do autor. A norma não prevê qualquer exceção. A referida
norma, dentro do padrão classificatório aqui examinado, seria
uma regra, e, como tal, instituidora de uma obrigação absoluta:
se a vítima for menor de 14 anos, e a regra for válida, o estupro
com violência presumida deve ser aceito. Mesmo assim, o
Supremo Tribunal Federal, ao julgar um caso em que a vítima
tinha 12 anos, atribuiu tamanha relevância a circunstâncias
particulares não previstas pela norma, como a aquiescência da
vítima ou a aparência física e mental de pessoa mais velha, que
terminou por entender, preliminarmente, como não configurado
o tipo penal, apesar de os requisitos normativos expressos
estarem presentes. Isso significa que a aplicação revelou aquela
obrigação, havida como absoluta, foi superada por razões
contrárias não previstas pela própria ou outra regra225
.
O exemplo, todavia, parece infeliz. O caso apresentado por Ávila
para justificar a tese de que a aplicação das regras não observa o
procedimento do ―tudo-ou-nada‖, ou seja, que o aplicador pode levar em
consideração circunstâncias concretas e individuais não previstas na norma,
224
Ibidem, p. 47-48. 225
Ibidem, p. 45.
115
não aponta a existência dessa relativização judicial do caráter absoluto da
regra. Apesar de o autor afirmar o contrário (―a norma não prevê qualquer
exceção‖), trata-se de caso de exceção à regra prevista. Isso porque o
próprio Código Penal, por meio da regra contida no artigo 20, §1º
(descriminante putativa), reconhece que ―é isento de pena quem, por erro
plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se
existisse, tornaria a ação legítima‖. Nesse sentido, nota-se que a própria
decisão do STF indica ter havido ―aquiescência da vítima‖ e ―aparência
física e mental de pessoa mais velha‖. Portanto, não há que se falar em
consideração de circunstâncias particulares não previstas, uma vez que a
Parte Geral do Código Penal estabelece os parâmetros para a aplicação dos
tipos penais, ou seja, para a consideração das circunstâncias particulares. É
possível valer-se ainda, na aplicação de diversas normas, da previsão da Lei
de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (nova epígrafe atribuída à
Lei n. 4. 657 de 1942 pela Lei n. 12.376 de 2010), ao determinar que ―Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às
exigências do bem comum‖, que consiste em exceção para aplicação de
diversas regras.
Além disso, o próprio autor relativiza sua crítica ao ressalvar que ―a
afirmação de que as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada só tem
sentido quando todas as questões relacionadas à validade, ao sentido e à
subsunção final dos fatos já estiverem superadas‖226
. Isso dá a entender
que, após solucionados os problemas interpretativos, as regras são
aplicadas de modo ―tudo-ou-nada‖. Desse modo, uma vez fixado o sentido
da norma, identificadas as exceções e reconhecida sua validade, dado o fato
previsto, a conseqüência jurídica é necessária, o que não ocorre com os
princípios, por não preverem conseqüências jurídicas específicas. Nessa
direção, conclui-se que as regras são diferentes dos princípios a partir do
226
Ibidem, p. 47.
116
critério ―modo de aplicação‖, ainda que isso não esclareça suas diferenças
estruturais.
Menciona ainda Ávila que as teses de Dworkin e Alexy
relacionadas à aplicação das regras, cada um a seu modo (mas,
basicamente, a concepção do ―tudo ou nada‖), não são plausíveis em razão
da possibilidade de casos em que, mesmo não tendo sido satisfeitas as
condições fixadas por uma regra, suas conseqüências jurídicas podem ser
aplicadas. Entende ser o caso da analogia227
.
No entanto, a analogia não é procedimento especificamente
destinado à aplicação de normas, mas sim para integração de lacunas no
ordenamento. Ela não se presta para possibilitar a aplicação de uma
conseqüência sem a existência de norma que a preveja, mas sim para a
ampliação do sentido de uma norma para abranger casos semelhantes.
Segundo Bobbio, a analogia é um recurso de auto-integração do
ordenamento que possibilita a extensão da disciplina de uma norma a um
caso que, embora não expressamente previsto, apresente a mesma ratio
legis. Trata-se de um ―recurso de auto-integração‖ porque o próprio
ordenamento prevê a possibilidade dessa extensão lógica da disciplina228
.
No caso brasileiro, o artigo 4º da Lei n. 4. 657 de 1942 prevê a
possibilidade do uso do raciocínio analógico. Desse modo, utilizada a
analogia, são consideradas como preenchidas as condições exigidas pela
regra para a aplicação de sua conseqüência.
Em continuidade, quanto à vagueza ou grau de abstração das
normas (como aquele proposto por Hart), diferentemente do autor, entende-
se que o mesmo contribui para a diferenciação entre princípios e regras,
caso seja compreendido como amplitude da previsão normativa. Isto é, se
os princípios prescrevem um estado de coisas e as regras descrevem
227
Ibidem, p. 50. 228
Bobbio, O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, 1995, p. 214-220.
117
condutas específicas, entende-se que, estruturalmente, são distintas as
normas quanto à amplitude de sua previsão (pois estado de coisas apontado
em normas finalísticas é mais abrangente que comportamentos
determinados em normas descritivas).
Em relação ao critério do conflito normativo, Ávila retoma as idéias
de Dworkin e Alexy referentes ao tema, as quais, no tocante aos princípios,
referem-se à dimensão de peso e à ponderação, respectivamente, para então
apresentar sua crítica.
Para o autor brasileiro, não é apropriado que a ponderação seja
considerada como método privativo de aplicação dos princípios, nem que
os princípios possuam uma dimensão de peso. Para ele, a ponderação ou
consideração do peso das normas não é método privativo de aplicação dos
princípios. Isso porque, em alguns casos as regras entram em conflito sem
que percam sua validade, e a solução para o conflito depende da atribuição
de peso maior a uma delas.
Menciona um exemplo do Código de Ética Médica, em que é
previsto o dever do médico de dizer ao paciente toda a verdade sobre sua
doença, e também o dever de utilizar todos os meios disponíveis para curar
seu paciente. Nesse caso, defende Ávila, ocorre sopesamento de razões. No
entanto, não procede sua crítica ao critério do conflito normativo,
especialmente na versão de Alexy.
Em primeiro lugar, para o autor alemão, a ponderação não é
simplesmente método para sopesamento de razões e contra-razões que
culmina com a decisão de interpretação, mas sim sopesamento no plano
normativo, que, após realizado, dá origem a uma nova norma com caráter
de regra.
No tocante aos princípios, por não preverem condutas específicas a
serem adotadas e por serem dotados de elevada complexidade (definem um
estado de coisas a ser perseguido, o que é compreendido por um conjunto
118
de elementos), admite-se maior flexibilização de seus limites, embora não
de modo arbitrário, uma vez que o balizamento se um princípio deve
ocorrer por meio da consideração de outros princípios pertinentes. Esse
procedimento faz com que as próprias normas sejam sopesadas, e não
apenas suas razões. No caso das regras, não ocorre essa flexibilização, mas
sim apenas consideração de exceções. Sua rigidez é mantida, mas sua
aplicabilidade é afastada nos casos excepcionais admitidos pelo próprio
ordenamento.
De fato, a atividade interpretativa envolve sempre sopesamento de
razões, seja para a definição de uma regra ou princípio a partir de um
enunciado. No entanto, a atividade aplicativa da norma pode não admitir o
sopesamento, como é o caso das regras. De um lado, os fatos não
compreendidos pelo âmbito de sentido de uma regra (no caso de analogia,
há ampliação de tal âmbito) fazem com a disciplina prevista reste
inaplicável. De outro, os fatos que preencham as condições previstas,
ressalvadas as exceções, demandam a aplicação da conseqüência jurídica.
Não há, pois, sopesamento, mas subsunção do fato à norma.
Em segundo lugar, em relação ao exemplo utilizado do Código de
Ética Médica, não se trata de conflito de regras. De fato, o enunciado que
prescreve o dever de dizer a verdade ao paciente pode ser compreendido
como uma regra (pois determina um comportamento específico de modo
imediato), mas também como um princípio (honestidade, transparência).
Quanto ao segundo enunciado, que prescreve o dever de utilização de todos
os meios disponíveis para curar o paciente não pode prestar-se para a
definição de uma regra, uma vez que estabelece um estado de coisas, uma
finalidade, a saúde do paciente.
Nesse caso, temos dois princípios em colisão, os quais, após a
ponderação, resultam em uma norma com caráter de regra. Esta poderia ter
o seguinte conteúdo: ―o médico tem o dever de dizer a verdade ao paciente,
119
a não ser que dizer a verdade sobre a doença diminua consideravelmente as
chances de cura‖. O interessante é que a mesma colisão principiológica
poderia dar origem a norma diversa: ―o médico tem o dever de buscar
meios para a cura do paciente, desde que não oculte fatos ou minta‖. Como
resolver o impasse? Isso é feito no momento da interpretação, atribuindo-se
maior peso a uma ou outra razão (por exemplo: grau de perigo que a
verdade pode acarretar, necessidade de o paciente conhecer os perigos que
enfrenta para planejar seu futuro, etc.). Um dos parâmetros que poderia ser
utilizado para a escolha das melhores razões é o critério da utilidade ou
bem maior, embora isso ainda não torne o processo de interpretação
puramente objetivo.
Do exposto, conclui-se que, na definição das normas
(interpretação), ocorre a consideração do peso das razões e contra-razões, a
ponderação de razões, em função da vagueza dos enunciados normativos, e
isso em relação tanto às regras (que descrevem de modo imediato
comportamentos) quanto aos princípios (que fixam um estado de coisas a
ser perseguido). Entretanto, no momento da aplicação, a eleição da norma a
ser aplicada exige, para os princípios, que sejam considerados em conjunto
os que são pertinentes ao caso (por não terem caráter absoluto, mas apenas
prima facie), criando-se uma nova norma com caráter de regra que regulará
o caso específico e todos os casos que guardem as mesmas características;
e para as regras, que seja verificado se há alguma exceção (seja por regras
expressamente previstas em lei ou advindas da ponderação de princípios),
para então ser aplicada sua disciplina.
Na verdade, trata-se, então, sempre de aplicação de uma regra. O
que muda é o processo de seu reconhecimento, isto é, se resulta apenas da
ponderação de princípios, em que não há um enunciado normativo
específico que a preveja, ou de uma regra extraída de um enunciado
normativo específico, interpretada de modo sistemático (considerando-se as
120
exceções previstas e aqueles advindas da ponderação de princípios). Desse
modo, os princípios são sempre aplicados de modo mediato, pois
dependem da regra que resultará da ponderação (não necessariamente de
um enunciado normativo criado pelo legislador que contenha uma regra
específica), e as regras aplicadas de modo imediato. Ressalva-se que não se
trata de aplicabilidade mediata ou imediata no sentido de eficácia das
normas, tema que será examinado adiante.
Como bem afirmou Ávila, as diferenças na aplicação e na relação
entre regras e princípios não são de ordem estrutural. Entretanto, são
diferenças. O modo de aplicação e de relação entre as regras e entre os
princípios não é o mesmo, sendo consideradas procedentes as teses de
Dworkin e Alexy, especialmente deste.
De todo modo, as teorias dos princípios e regras defendidas por
Hart, Dworkin, Alexy e Ávila apresentam importantes diretrizes para a
análise das normas jurídicas, diretrizes que se prestam especialmente para o
exame dos princípios e das regras de direitos fundamentais, como aqueles
previstos nos enunciados da Constituição brasileira de 1988.
2.4 Eficácia das normas de direitos fundamentais
A fim de demarcar adequadamente a consistência da situação
jurídica dos indivíduos ante os preceitos constitucionais, faz-se necessário
compreender como as normas constitucionais são sistematizadas. Na lição
de Barroso, estas podem ser de organização, definidoras de direitos ou
programáticas229
.
As normas de organização são aquelas que têm por objeto organizar
o exercício do poder político, contendo o arcabouço da organização política
229
Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição brasileira, 2009, p. 89-90.
121
do Estado. Instituem órgãos, definem competências e determinam as
formas e os processos para seu exercício. Portanto, essas normas: veiculam
decisões políticas fundamentais ao definirem a forma de Estado e de
governo, a divisão orgânica do poder ou o sistema de governo; definem
competências dos órgãos estatais e das entidades estatais, a exemplo do
Congresso Nacional e da União, respectivamente; criam órgãos públicos,
autorizam sua criação e traçam regras para sua composição e
funcionamento; e, estabelecem normas procedimentais ou processuais para
revisão e defesa da Constituição, para aplicação de outras normas, de
elaboração legislativa e de fiscalização230
.
As Constituições modernas, além de organizarem o exercício do
poder político, definem direitos fundamentais em suas normas. Nesse caso,
as normas são caracterizadas pela bilateralidade, isto é, de um lado,
conferem direitos subjetivos (a faculdade de exigir), de outro, criam
deveres jurídicos (a obrigação de cumprir)231
. Em relação aos direitos,
sabe-se que podem ser organizados em diferentes categorias conforme o
conteúdo, a exemplo dos direitos políticos e direitos sociais, o que já foi
objeto de estudo deste trabalho, não sendo necessária sua retomada.
Finalmente, as normas programáticas são aquelas indicações de fins
sociais a serem alcançados. Certamente, a finalidade maior do Estado é a
promoção do bem comum. Entretanto, existem outros diversos objetivos
específicos, os quais inspiram ou deveriam inspirar o poder público em
cada época. Nesse sentido, as normas programáticas são aquelas que fixam
programas de ação para o Poder Público com vistas a realizar tanto o
objetivo geral quanto os objetivos específicos232
.
As normas constitucionais, sejam elas de organização, definidoras
de direitos ou programáticas, são normas jurídicas e por isso caracterizadas 230
Ibidem, p. 93-94. 231
Ibidem, p. 95. 232
Ibidem, p. 113-114.
122
pela imperatividade. Entretanto, esta nem sempre se manifesta com a
mesma intensidade233
. Isso nos remete ao problema da eficácia e, para
examiná-lo, é essencial apontar a distinção dos conceitos de justiça,
validade e eficácia, o que será realizado inicialmente nos moldes da teoria
de Bobbio.
O problema da correspondência ou não da norma a valores que
inspiram um determinado ordenamento jurídico é um problema de justiça.
A reflexão acerca da justiça ou injustiça de uma norma é equivalente à
reflexão sobre a aptidão da norma para a realização daqueles valores.
Pensar sobre o problema da justiça da norma é pensar sobre o que é real e o
que é ideal. Trata-se do problema deontológico do direito234
.
Validade refere-se ao problema da existência da norma, isto é, se
pertence ou não ao sistema, independentemente de juízo de valor (por
exemplo, se justa ou injusta). A decisão sobre a validade pode ser realizada
por meio de três operações: averiguação da legitimidade da autoridade que
a produziu, de sua permanência no sistema (se foi revogada expressamente)
e da compatibilidade com outras normas (se foi revogada tacitamente).
Refletir sobre a validade é refletir sobre o problema ontológico do
direito235
.
A eficácia de uma norma relaciona-se com o problema
fenomenológico do direito, uma vez que o estudo da eficácia leva em
consideração o fato de ser a norma seguida ou não pelos seus destinatários
e, no caso de violação, ser imposta através de meios coercitivos pela
autoridade que a evocou236
.
Esses três critérios são considerados independentes, uma vez que a
norma pode ser justa sem ser válida (v.g.: normas do direito natural), se
233
Ibidem, p. 74-75. 234
Bobbio, Teoria da norma jurídica, 2001, p. 46. 235
Ibidem, p. 46-47. 236
Ibidem, p. 47.
123
válida sem ser justa (v.g.: leis raciais), ser válida sem ser eficaz (v.g.: leis
de proibição de bebidas nos Estados Unidos entre as duas guerras), ser
eficaz sem ser válida (v.g.: regras da boa educação), ser justa sem ser eficaz
(v.g.: quando a sabedoria popular diz que ―não há justiça nesse mundo‖) ou
ser eficaz sem ser justa (v.g.: normas que permitiam a escravidão)237
.
No tocante ao último conceito, existe a possibilidade de considerá-
lo sob uma segunda perspectiva. Aquela se refere à eficácia social de uma
norma. Entretanto, pode-se considerar também sua eficácia jurídica. Na
clássica lição de Silva238
, eficácia jurídica é a possibilidade de aplicação da
norma aos casos concretos com a geração dos efeitos jurídicos que lhe são
inerentes; já a eficácia social consiste na real obediência e aplicação no
plano dos fatos, também denominada de efetividade. Nesse mesmo sentido,
Barroso239
pondera que a efetividade significa a realização do Direito, o
desempenho concreto de sua função social, representado a materialização,
no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão
íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade
social.
Os comentários seguintes limitar-se-ão ao exame da eficácia
jurídica das normas definidoras de direitos fundamentais, tendo em vista a
237
Ibidem, p. 48-51. A respeito da relação entre justiça e validade das normas, vale
destacar a posição posterior à Segunda Guerra de Gustav Radbruch: ―O conflito entre
justiça e segurança jurídica pode ser bem resolvido desta maneira: a lei positiva,
assegurada pela legislação e poder, tem precedência até mesmo quando seu conteúdo é
injusto e falha em beneficiar o povo, salvo se o conflito entre o estatuto e a justiça
alcança um nível intolerável que o estatuto, como ‗lei defeituosa‘, precisa se submeter à
justiça‖ (...) ―É impossível desenhar uma linha divisória precisa entre os casos de
ilegalidade estatutária e estatutos que são válidos apesar de suas falhas. Uma linha de
distinção, todavia, pode ser desenhada com extrema claridade: onde não existe ao
menos uma tentativa à justiça, onde a igualdade, o núcleo da justiça, é deliberadamente
traída pela lei positiva, então o estatuto não é apenas uma ‗lei defeituosa‘, ele carece
completamente da própria natureza do direito‖ (RADBRUCH, apud BIX, 2006, p. 140).
Seria o caso das leis raciais na Alemanha hitlerista. 238
Silva [José Afonso da], Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 65-66. 239
Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição brasileira, 2009, p. 82-83.
124
natureza e limites da investigação, o que será feito mediante a apresentação
da classificação das normas conforme sua eficácia. Na tipologia proposta
por Silva240
, as normas constitucionais podem ser consideradas como
normas de eficácia plena, contida ou limitada.
As normas da primeira categoria podem ser compreendidas como
aquelas que, desde que a constituição entrou em vigor, produzem ou têm a
possibilidade de produzir todos os efeitos essenciais, os quais se referem
aos interesses, comportamentos e situações regulados direta e
normativamente pelo constituinte. Essas normas contêm vedações ou
proibições, conferem isenções, imunidades ou prerrogativas, não designam
órgãos ou autoridades especiais aos quais estejam especificamente
incumbidas de sua execução, e não indicam processos especiais para sua
execução. Além disso, essas normas não exigem a elaboração de outras
normas legislativas para que seu sentido e alcance sejam completados241
.
De eficácia contida são as normas nas quais o legislador
constituinte regulou de modo suficiente os interesses relativos a uma dada
matéria, embora tenha deixado margem para a atuação restritiva por parte
da competência discricionária do Poder Público, nos termos fixados pela
lei. Desse modo, essas normas remetem à intervenção do legislador
possibilitando a restrição de seu sentido. No entanto, se não realizada a
intervenção, a eficácia continua plena, sendo de aplicabilidade direta e
imediata242
.
No tocante às normas de eficácia limitada, estas podem se
manifestar como normas declaratórias de princípios institutivos ou
organizativos e normas declaratórias de princípios programáticos. Observa-
se que o autor utiliza a expressão ―normas constitucionais de princípio‖
tomando o termo ―princípio‖ no sentido de ―início‖. Assim, normas 240
Silva [José Afonso da], Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 86. 241
Ibidem, p. 101. 242
Ibidem, p. 116.
125
constitucionais de princípios são normas que instituem a gênese do
esquema estrutural de determinado órgão, entidade ou instituição ou de um
programa, ficando a efetiva criação, estruturação ou desenvolvimento a
cargo da lei. A característica essencial desta espécie normativa está em que
a norma indica uma legislação futura que lhes compete a eficácia e lhes dê
efetiva aplicação243
.
Em síntese, pode-se afirmar que as normas de eficácia plena são
caracterizadas por serem de aplicabilidade direta, imediata e integral. As
normas de eficácia contida são aquelas de aplicabilidade direta, imediata,
mas possivelmente não integral. As normas constitucionais de eficácia
limitada têm a eficácia reduzida e se subdividem em normas declaratórias
de princípios institutivos ou organizativos e de princípios programáticos, as
quais dependem do legislador infraconstitucional para serem aplicadas244
.
É necessário, todavia, apontar uma ressalva. As normas
programáticas, mesmo inexistindo lei que as concretize, desde o início de
sua vigência geram efeitos imediatos. Elas revogam os atos normativos
anteriores que disponham em sentido colidente com o princípio que
substanciam e acarretam em juízo de inconstitucionalidade para os atos
normativos editados posteriormente, caso sejam com elas incompatíveis245
.
Quanto à relação entre a teoria da eficácia e a teoria dos princípios,
pode-se afirmar que a eficácia de uma regra construída a partir da
243
Ibidem, p. 118. Segundo o autor, Normas constitucionais de princípios institutivos
são ―aquelas através das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de
estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou instituições, para que o legislador
ordinário os estruture em definitivo, mediante lei‖ (SILVA, 1998, p. 126). Normas
constitucionais de princípios programáticos são ―aquelas normas constitucionais através
das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados
interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos
(legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos) como programas das
respectivas atividades, visando a realização dos fins sociais do Estado‖ (SILVA, 1998,
p. 138). 244
Silva [José Afonso da], Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 86. 245
Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição brasileira, 2009, p. 117.
126
ponderação de princípios (isto é, não extraída diretamente de um enunciado
normativo) apresenta grau diverso dos princípios a ela subjacentes. Os
princípios são sempre normas de eficácia contida, haja vista serem sempre
passíveis de ponderação e restrição por outros princípios. Já a regra
resultante da ponderação terá eficácia plena e aplicabilidade imediata, e não
contida, haja vista já terem sido realizadas as restrições quando da
ponderação. No entanto, a referida regra derivada da ponderação pode se
tornar inaplicável ou sofrer restrições caso haja lei infraconstitucional que
regule a matéria.
No caso das normas definidoras de direitos fundamentais, prevê a
Constituição Brasileira de 1988 no artigo 5º, §1º que ―as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata‖.
Sendo a aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais uma
determinação constitucional expressa, isso significa que sua eficácia
poderia ser plena ou contida, mas não limitada, uma vez que nesse último
caso a aplicação dependeria de regulação infraconstitucional. A título de
exemplo, a norma que define a jornada máxima de trabalho tem estrutura
de regra (pois prescreve uma conduta a ser praticada) e é de eficácia plena;
a norma que define a liberdade de expressão tem estrutura de princípio
(pois define um estado de coisas a ser buscado) e é de eficácia contida.
No entanto, cumpre observar que a doutrina pátria ainda não
alcançou um avançado grau de consensualidade no que diz respeito ao
alcance e significado do preceito em exame, sendo persistentes dois
problemas: o da abrangência material da norma (se aplicável a todos os
direitos fundamentais) e aquele do significado do preceito (grau de eficácia
e aplicabilidade).
Em relação ao primeiro, parece ser desprovida de razão a
interpretação restritiva do preceito constitucional. Seria realizar uma
restrição injustificada daquilo que a Constituição claramente estabeleceu de
127
modo abrangente. Isto é, a aplicabilidade imediata conferida a todos os
direitos fundamentais, e não apenas às liberdades públicas ou direitos
políticos, bem como a aplicabilidade imediata dos direitos não
expressamente consagrados (artigo 5º, §2º, CF). Nesse sentido a lição de
Sarlet246
:
Do exposto – ainda que não tenhamos esgotado o tema –
entendemos que há como sustentar, a exemplo do que tem
ocorrido na doutrina, a aplicabilidade imediata (por força do art.
5º, §1º, da CF) de todas as normas de direitos fundamentais
constantes do Catálogo (art. 5º a 17), bem como dos localizados
em outras partes do texto constitucional e nos tratados
internacionais. Aliás, a extensão do regime material da
aplicabilidade imediata aos direitos fora do catálogo não
encontra qualquer óbice no texto de nossa Lei Fundamental,
harmonizando, para além disso, com a concepção materialmente
aberta dos direitos fundamentais consagrada, entre nós, no art.
5º, §2º, da CF.
Em relação ao problema do significado do artigo 5º, §1º da
Constituição Federal, a partir do exposto em relação à classificação das
normas quanto à eficácia que lhes é inerente, pode-se compreender, ao
menos a partir de uma primeira leitura do preceito, que as normas de
direitos fundamentais são de aplicabilidade imediata e, portanto, de eficácia
plena e contida.
No entanto, pondera a doutrina247
, outras normas, também de
natureza constitucional, reconhecem a limitação da eficácia de direitos
fundamentais. Por exemplo, o artigo 5º, inciso XXXII determina que o
Estado deverá promover a proteção do consumidor, ―na forma da lei‖, e
ainda, no artigo 7º, inciso XI é prevista a participação nos lucros e
resultados da empresa, ―conforme definido em lei‖. Há, portanto, normas
de direitos fundamentais com eficácia limitada. A partir desse argumento, a
246
Sarlet, Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988, 2001, p. 27. 247
Ibidem, p. 28.
128
solução adotada por Sarlet248
é pela compreensão da norma do artigo 5º,
§1º da Constituição como sendo de natureza principiológica, operando
como um mandado de otimização, de modo que a aplicabilidade imediata
da norma deve ser presumida, admitindo-se a recusa judicial ao seu
reconhecimento, desde que necessariamente fundamentada249
.
A nosso ver, o efeito da reserva de lei sobre a eficácia da norma
definidora de direito fundamental não pode ser torná-la de eficácia
limitada, o que resultaria em sua aplicabilidade mediata. Por força do
preceito constitucional, que não pode ser desprezado, não é impensável que
um direito fundamental seja exigido judicialmente com fundamento na
Constituição apenas, quando inexistente uma lei específica que o regule. O
papel da lei seria não o de viabilizar o gozo do direito (pois assim restaria
esvaziado o seu conteúdo, atribuindo-se ao Legislativo o poder de ativar ou
não o exercício do direito), mas sim de possibilitar a delimitação seu
alcance.
Vale destacar a função desempenhada pelas reservas legais
estabelecidas pela Constituição, sob a perspectiva da dogmática analítica. É
sabido que os direitos fundamentais podem sofrer restrições aceitáveis,
248
Ibidem, p. 29-30. 249
Reconhecendo a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais: ―Extradição e
necessidade de observância dos parâmetros do devido processo legal, do estado de
direito e do respeito aos direitos humanos. Constituição do Brasil, arts. 5º, § 1º, e 60, §
4º. Tráfico de entorpecentes. Associação delituosa e confabulação. Tipificações
correspondentes no direito brasileiro. (...) Obrigação do STF de manter e observar os
parâmetros do devido processo legal, do estado de direito e dos direitos humanos.
Informações veiculadas na mídia sobre a suspensão de nomeação de ministros da Corte
Suprema de Justiça da Bolívia e possível interferência do Poder Executivo no Poder
Judiciário daquele país. Necessidade de assegurar direitos fundamentais básicos ao
extraditando. Direitos e garantias fundamentais devem ter eficácia imediata (cf. art. 5º, §
1º); a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos deve obrigar o Estado a
guardar-lhes estrita observância. (...) Em juízo tópico, o Plenário entendeu que os
requisitos do devido processo legal estavam presentes, tendo em vista a notícia
superveniente de nomeação de novos ministros para a Corte Suprema de Justiça da
Bolívia, e que deveriam ser reconhecidos os esforços de consolidação do estado
democrático de direito naquele país.‖ (STF, Extradição 986, Rel. Min. Eros Grau,
julgamento em 15-8-2007, Plenário, DJ de 5-10-2007).
129
fundamentadas em preceitos constitucionais. Isso significa que nem toda
restrição a direitos fundamentais é uma violação. Entretanto, no caso da
reserva de lei, para Alexy, não se trata de uma restrição propriamente dita,
mas da possibilidade jurídica criada pelo constituinte para a restrição. Ou
seja, a reserva de lei fundamenta a ―restringibilidade‖ de um direito250
.
Nessa direção, estaria assegurado o exercício do direito
fundamental, sendo o efeito da reserva de lei apenas o de possibilitar futura
restrição do direito pelo legislador. Caberia, assim, ao judiciário fixar os
critérios para tanto até a edição da lei, não podendo a inércia legislativa
obstar o gozo de um direito previsto em norma definidora de direito
fundamental. Desse modo, a reserva de lei tornaria a norma de eficácia
contida, mas não limitada, conforme terminologia de Silva. O problema, no
entanto, exige maior atenção quando se trata de normas definidoras de
direitos sociais, análise que será procedida adiante.
250
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 282.
130
131
CAPÍTULO 3
Os direitos sociais como problema específico
Nos capítulos anteriores, os direitos fundamentais foram
examinados sob três perspectivas – histórica, teórico-jurídica e jurídico-
positiva – as duas primeiras de ordem zetética, e a última, dogmática.
Diferentes aspectos dessa categoria de direitos foram visitados, entre os
quais estão: histórico, conceito e classificação dos direitos fundamentais,
bem como conceito, estrutura e eficácia das normas que os definem.
Entretanto, em função da natureza, do objetivo e das limitações dessa
pesquisa, nessa parte final, serão recortados e explorados alguns dos
principais problemas relacionados aos direitos econômicos, sociais e
culturais (ou apenas direitos sociais), com a indicação de possíveis
caminhos.
O primeiro problema que será abordado relaciona-se ao conceito
dos direitos sociais, especialmente com a pretensão de investigar se de fato
podem ser denominados como ―direitos‖. Admitindo-se que possuem esta
natureza, surge como um segundo problema a possibilidade ou não de
serem considerados direitos fundamentais. O terceiro e último problema
objeto desse capítulo é aquele pertinente à eficácia das normas que definem
os direitos sociais. Com efeito, essas questões merecem atenção, porquanto
tratam da forma como se interpreta e se aplica a Constituição, assim como
do modo como os governados gozarão de seus direitos.
3.1 O conceito de direitos sociais na teoria jurídica
Embora a expressão ―direitos sociais‖ já tenha sido mencionada
algumas vezes ao longo do estudo, em referência àquelas prestações
132
positivas proporcionadas pelo Estado para melhoria das condições de vida
dos cidadãos, convém nesse ponto precisar o seu conceito. Isso porque,
embora a expressão seja utilizada em grande parte das constituições
ocidentais produzidas nas últimas três décadas, a doutrina dominante na
maioria dos países europeus e na América do Norte se mostra sempre
disposta a defender que eles não seriam direitos autênticos, por lhes faltar a
justiciabilidade perante os tribunais. Por serem considerados objetivos ou
fins do Estado, não seriam exigíveis juridicamente251
.
O professor de Yale Ping-Cheung-Lo impugna a noção de direitos
sociais a partir do argumento de que direitos, tomados em seu sentido
estrito, supõem dívidas por parte de outros sujeitos; como no caso dos
direitos sociais não aparece alguém como sendo devedor no sentido
próprio, não se poderia falar, a rigor, em direitos. Ademais, um direito
deveria ter força suficiente para ser exigido frente a outro sujeito, sendo
esta a diferença entre meros interesses e direitos, de modo que no caso dos
direitos sociais, essa força não é suficiente. Ainda, embora seja conhecido
que para que o mundo resulte mais habitável seja necessária a presença de
conveniências morais, como a virtude do amor e da generosidade, bem
como da justiça distributiva, isso, segundo o autor, não daria lugar a
direitos em contrapartida252
. Nesse sentido, é indagado se a expressão
―direitos sociais‖ está correta, ou seja, se são direitos ou apenas finalidades
do Estado.
Antes de prosseguir nessa discussão, é imperioso reconhecer que os
direitos sociais são, de algum modo, dotados de caráter jurídico. Essa
afirmação funda-se na idéia de que seu conteúdo é consagrado em textos
251
Herrera, Estado, Constituição e Direitos Sociais, 2008, p. 5. 252
Correas, Filosofia del Derecho: el Derecho y los Derechos Humanos, 1994, p. 148.
Para Feinberg (1974, p. 143), os direitos sociais não constituem direitos absolutos, uma
vez que circunstâncias facilmente imagináveis e comumente reais podem reduzi-los a
meras reivindicações.
133
legais ou constitucionais, não permanecendo apenas no plano valorativo de
alguma tradição político-filosófica ou como propostas de algum
movimento reformador ou revolucionário. Ademais, essa positivação pode
ser fundamentada tanto a partir do marco do Estado liberal quanto do
social, perspectivas que se comunicam com o sistema jurídico. No Estado
social, cuja característica mais marcante é a utilização de meios
intervencionistas para estabelecer o equilíbrio na repartição dos bens
sociais, o dever estatal de garantir a satisfação das necessidades básicas dos
indivíduos precisa ser revestido de caráter jurídico. Na perspectiva liberal,
os direitos sociais também poderiam assim se manifestar, porquanto
constituem o meio para o exercício efetivo das liberdades (fundamentação
instrumental)253
.
Os mesmos argumentos podem ser utilizados para a afirmação da
necessidade de consagração desses conteúdos como direitos, para que
sejam exigíveis judicialmente. Uma vez que as prestações positivas e as
ações reguladoras do Estado se prestam para a redução da desigualdade e
da exclusão social, no marco de um Estado social é imprescindível que a
estratégia utilizada seja a da positivação daqueles conteúdos como direitos.
Além disso, não há como se ver concretamente realizadas as liberdades
públicas sem que haja a satisfação das necessidades básicas do indivíduo,
em relação a que o Estado pode desempenhar um papel fundamental254
.
Sobre a tese de Ping-Cheung-Lo, caso se tenha como ponto de
partida a idéia de que as relações de intercambio entre indivíduos são as
únicas sujeitas às regras da justiça, ou ainda, se a justiça comutativa ou
sinalagmática for a única forma possível de justiça, é evidente que os
253
Pulido, Fundamento, Conceito e Estrutura dos Direitos sociais: uma crítica a
“Existem direitos sociais?” de Fernando Atria, 2008, p. 149-150. 254
Essa, contudo, não é a posição do liberalismo radical, como aquele postulado por
Dahrendorf (1987, p. 99-100), para quem o Estado social não traz soluções ao problema
da exclusão, apenas amenizando-se, sendo necessária a realização de um liberalismo
radical.
134
deveres de justiça distributiva, como a repartição de bens comuns, situam-
se fora do âmbito jurídico. Entretanto, trata-se de uma redução
injustificada, devendo ser reconhecido aos encarregados da comunidade o
dever de promover o bem humano, e para se atingir tal finalidade, os
direitos sociais desempenham importante papel255
.
Do ponto de vista jurídico-constitucional, foi visto que os preceitos
constitucionais podem conter normas programáticas, de organização ou
definidoras de direitos256
. Canotilho, a partir das mesmas categorias, analisa
as normas relacionadas a conteúdos de natureza social257
.
Nas normas programáticas as constituições condensam princípios
definidores dos fins do Estado, de conteúdo eminentemente social, tendo
relevância política, pois servem para pressão sobre os órgãos competentes,
mas também jurídica, pois, por um lado, através dessas normas pode obter-
se o fundamento constitucional da regulamentação das prestações sociais e,
por outro lado, as normas, transportando princípios conformadores,
dinamizadores da Constituição, são susceptíveis de ser trazidas à colação
no momento de concretização.
255
Correas, Filosofia del Derecho: el Derecho y los Derechos Humanos, 1994, p. 152.
Em Aristóteles, a justiça distributiva é a virtude na distribuição das honras e das
riquezas ou de outras vantagens que devam ser repartidas entre os membros da
comunidade. Embora a justiça distributiva seja identificada com a igualdade, pertence a
seu campo apenas os modos da relação igualitária, independente das especificações
políticas, que podem variar de um Estado para outro. O mérito é um critério básico, mas
nem todos os Estados o reconhecem da mesma forma (FERRAZ JÚNIOR, 2002, p.
183). Refletindo a conceituação aristotélica, contemporaneamente Rawls (2000, p. 66)
defende que todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as
bases sociais da autoestima – devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma
distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos. Essa
distribuição se justifica, segundo Rawls (2000, p. 183), pelo argumento de que através
dela o mínimo existencial (social minimum) seria garantido, de maneira que os cidadãos
teriam as condições sociais essenciais para o desenvolvimento adequado e para o
exercício pleno e consciente de seus poderes morais, de sua liberdade. Para o autor, a
participação na sociedade dependeria de um nível mínimo de bem-estar material. 256
Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição brasileira, 2009, p. 89-90. 257
Canotilho, Direito Constitucional, 1993, p. 545-546.
135
No tocante aos direitos sociais como normas de organização, trata-
se de normas constitucionais organizatórias atributivas de competência, que
impõem ao legislador a realização de direitos sociais, de modo que, ao
impor constitucionalmente a certos órgãos a emanação de medidas
tendentes à promoção do bem-estar do povo, à sua segurança econômica e
social, abre-se o caminho para as regulamentações legais dos direitos
sociais. Contudo, a não atuação dos órgãos competentes para a
concretização destas imposições não se ligam quaisquer sanções jurídicas,
mas apenas efeitos políticos.
Finalmente, tem-se os direitos sociais como direitos subjetivos. Há
uma grande diferença entre situar os direitos sociais, econômicos e
culturais num nível constitucional dotando-os de uma dimensão subjetiva, e
considerá-los como simples imposições constitucionais donde derivariam
direitos reflexos para os cidadãos. É a dimensão subjetiva que faz dos
direitos sociais direitos públicos subjetivos das pessoas e não apenas
deveres objetivos do Estado258
.
Na lição de Alexy, uma norma pode ou não conferir um direito
subjetivo. Quando o Estado é obrigado a realizar uma determinada ação,
isso não significa que tal norma define que um indivíduo tenha direito à
realização dessa ação estatal. Para que seja configurado um direito
subjetivo, é fundamental a caracterização de um predicado triádico
expresso como ―... tem em face de ... um direito a ...‖. Esses direitos podem
ter conteúdos diversos, distribuídos em três categorias básicas, a saber:
direitos a algo, liberdades e competências. No campo dos direitos sociais,
fala-se em direitos a algo, ou mais especificamente, o direito de indivíduo
258
Canotilho (1993, p. 546) acrescenta ainda a possibilidade de normatização dos
direitos sociais como garantias institucionais, que podem ser traduzidas como uma
imposição dirigida ao legislador, obrigando-o, por um lado, a respeitar a essência da
instituição e, por outro lado, a protegê-la tendo em atenção os dados sociais,
econômicos e políticos.
136
ou coletividade a uma ação fática positiva em face do Estado259
.
Utilizando-se a terminologia de Jellinek, são direitos advindos do status
positivo ou civitatis. Como mencionado anteriormente, o indivíduo está
inserido no status positivo sempre que o Estado a ele reconhece a
capacidade jurídica para recorrer a seu aparato e instituições e a ele garanta
pretensões positivas de modo que, de um lado, o indivíduo tenha direitos a
algo em face do Estado e tenha uma competência para vê-los efetivados, e
de outro, que ao direito do indivíduo corresponda o dever do Estado de
realizar essa ação260
. Diante disso, entende-se que os direitos sociais podem
ser considerados como direitos subjetivos, facultas agendi, isto é, o poder
de exigir determinado comportamento de outrem, in casu, do Estado261
.
Tendo em vista essas considerações, menciona-se a afirmação de
Alexy262
de que os direitos sociais são ―direitos do indivíduo, em face do
Estado, a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros
suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia
também obter de particulares‖. Semelhantemente, Silva263
compreende-os
como ―prestações positivas proporcionadas pelo Estado direita ou
indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam
melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar
a igualização de situações sociais desiguais‖.
259
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 182-201. 260
Ibidem, p. 263-265. 261
A partir das disposições da Constituição Portuguesa, Canotilho e Moreira (1991, p.
127-129) defendem que os direitos econômicos, sociais e culturais não são meras
normas programáticas ou diretivas de ação estatal de alcance essencialmente político,
não são simples normas organizatórias de atribuição ou competência do Estado, não se
reduzem a garantias institucionais ou a imposições constitucionais. Se, de um lado, os
direitos sociais possuem uma dimensão objetiva relacionada à obrigação estatal, de
outro, possuem uma dimensão subjetiva, que faz deles direitos fundamentais, direitos
públicos subjetivos das pessoas. 262
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 499. 263
Silva [José Afonso da], Curso de direito constitucional positivo, 2000, p. 289.
137
Embora essa categoria de direitos seja bastante ampla (trabalho,
moradia, educação, saúde, assistência, família, entre outros), albergando
direitos com características diversas, a intersecção entre eles consiste na
finalidade de sua consagração, que é a promoção da justiça social, e no
destinatário da maioria de seus conteúdos, o Estado, ―a quem incumbe em
primeira linha satisfazê-los ou criar as condições para os realizar‖,
conforme magistério de Canotilho e Moreira264
.
3.2 Direitos sociais como direitos fundamentais
A afirmação do caráter jurídico e da compreensão dos direitos
sociais como direitos subjetivos conduz à reflexão acerca da inclusão ou
exclusão dos direitos sociais do rol de direitos fundamentais de um sistema
constitucional.
Uma vez que os direitos fundamentais se referem àquelas
prerrogativas e instituições destinadas à garantia de uma convivência digna,
livre e igual de todas as pessoas, tratando-se de situações jurídicas sem as
quais a pessoa humana não se realiza265
, faz-se necessário verificar se os
direitos sociais podem contribuir para o cumprimento de tal função.
Inicialmente, serão expostos alguns argumentos e contra-
argumentos relativos à necessidade de prestações positivas pelo Estado,
como aquelas praticadas no Welfare State. Na seqüencia, será abordado o
problema específico da fundamentalidade dos direitos sociais, para então
ser procedido o exame destes direitos no sistema constitucional brasileiro.
264
Canotilho; Moreira, Fundamentos da Constituição, 1991, p. 113. 265
Silva [José Afonso da], Curso de direito constitucional positivo, 2000, p. 182-183.
138
3.2.1 Sobre a necessidade de prestações positivas pelo Estado
Em uma reflexão acerca dos direitos sociais, não é irrelevante
examinar o problema da necessidade de implementação de prestações
positivas pelo Estado. Estas visam à redução das desigualdades fáticas,
fundamentadas, portanto, no princípio da igualdade.
A doutrina constitucional tradicionalmente reconhece a igualdade
como aplicação igual do direito. Inicialmente, trata-se da igualdade perante
a lei ou igualdade formal, que consiste na exigência dirigida ao juiz e às
autoridades administrativas no sentido de se assegurar formalmente a igual
aplicação da lei a todos os cidadãos. No entanto, mais que igualdade
formal, a igualdade na aplicação do direito é também a igualdade através da
lei, falando-se então não apenas em aplicação igual do direito, mas também
em aplicação igual do direito igual, compreendendo-a também como
igualdade material266
.
Nesse sentido, pode-se afirmar a igualdade como o direito a um
direito justo, ou como direito à igualdade de oportunidades. Considerar a
igualdade sob esta perspectiva significa conferir a ela duas funções: uma
normativa e outra social. A função normativa consiste no dever do
legislador de tratar por igual situações de fato iguais e desigualmente
situações de fato desiguais, vedando-se, portanto, o arbítrio. A esta função
normativa se soma a função social de promoção da eliminação das
desigualdades fáticas, que pode ser verificada em textos constitucionais
quando o constituinte não apenas impõe determinações negativas à
efetivação da igualdade, mas também consagra imposições positivas que
vinculam o legislador267
.
266
Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a
Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas, 1994, p. 381. 267
Ibidem, p. 381-384.
139
Assim, a adoção do modelo do Estado social, por meio da previsão
de normas programáticas ou definidoras de direitos sociais, evidencia o
reconhecimento da igualdade não apenas em sua função normativa, mas
também socialmente diretiva, tendente à eliminação das desigualdades
fáticas.
No entanto, há quem defenda a impropriedade de tal função social.
Sob uma perspectiva histórica e teórico-jurídica, Hirschman analisa a
oposição ao avanço dos direitos sociais a partir do estudo da retórica
reacionária, que utilizou três espécies de argumentos para convencer o
interlocutor contra a consagração de direitos sociais prestacionais, a saber,
os argumentos da perversidade, da futilidade e da ameaça.
A tese da perversidade é utilizada pelos reacionários como forma de
manobra intelectual, na tentativa de se demonstrar que o esforço para se
dirigir a sociedade a uma particular direção causaria o efeito contrário.
Trata-se, especialmente, de um ―ataque contra as políticas econômicas e
sociais que formam o moderno Welfare State‖268
.
Esse efeito perverso está relacionado a um dogma central da
economia: a idéia de um mercado que se auto-regula. Nesse sentido,
qualquer política pública que almeje alterar os resultados do mercado, a
exemplo dos preços e salários, é considerada nociva ao suposto equilíbrio
desse mesmo mercado. Como exemplo, os reacionários defendiam que se o
salário mínimo fosse estabelecido ou aumentado, a probabilidade do nível
de emprego cair seria bastante grande, ocasionando uma renda agregada
menor para o trabalhador. No mesmo sentido, o aumento da assistência
social aos pobres significaria um incentivo à preguiça e à depravação,
268
Hirschman, A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça, 1992, p.
30.
140
produzindo como conseqüência maior pobreza. Destacam-se nessa corrente
Frieman, Defoe, Burke, Malthus e Toqueville269
.
Porém, ao contrário do previsto, Karl Polanyi comentou em 1944
que as poor laws inglesas ajudaram a garantir a paz social e a manutenção
da produção interna de alimentos durante o período das Guerras
Napoleônicas, depois de terem suplementado os salários baixos270
.
Embora existam efeitos colaterais, entende-se que os efeitos
positivos os superam. Exemplo disso são os efeitos positivos do serviço
militar universal sobre a alfabetização. Da mesma forma a instituição da
instrução obrigatória possibilitou a muitas mulheres a obtenção de um
emprego, certamente, uma conseqüência imprevista e muito positiva. Com
relação à assistência social, é improvável que as pessoas arranquem seus
olhos visando o pagamento da seguridade social. Igualmente, é muito
pouco provável um trabalhador se auto-mutilar para receber o seguro de
acidente de trabalho, como era alegado por alguns empregadores. Se houve
constatações com tamanha estranheza, certamente ocorreram de forma
isolada, não devendo ser generalizadas271
.
A tese da futilidade refere-se ao argumento de que quaisquer
supostas mudanças são apenas superficiais, não provocando alterações nas
estruturas profundas da sociedade. Em relação à transferência de bens aos
pobres, pode ocorrer de a classe média manipular esses benefícios,
tornando-se a maior favorecida. Trata-se da idéia do desvio272
.
Defendem os reacionários, como Stigler, Tullock, Feldstein, que a
classe média pode manipular o sistema em seu benefício, mediante o
controle do poder político. Programas como seguro-desemprego ou serviço
público de saúde favoreceriam mais os membros da classe média que os
269
Ibidem, p. 30-31. 270
Ibidem, p. 32. 271
Ibidem, p. 39-42. 272
Ibidem, p. 57.
141
pobres. Tais ações seriam frustradas pelo fato de as estruturas da sociedade
não serem alteradas273
.
Trata-se, contudo, de uma leitura simplista e conservadora da
realidade. Certamente há casos em que programas sejam considerados
ineptos ou irrelevantes, o que faz com que não devam ser levados adiante.
Mas, reduzir a tensão entre as metas anunciadas de um programa social e
sua real efetividade ao contraste ―superficialidade‖ e ―profundidade‖, ou
―máscara‖ e ―realidade‖, é não considerar a complexidade do problema.
Declarar a futilidade de um programa diante de um primeiro indício de que
não funcionará é agir de modo precipitado, não levando em consideração a
possibilidade de aprendizado social e de planejamento acumulativo e
corretivo. Enfim, a tese da futilidade não reflete seriamente acerca das
estratégias de redução das desigualdades sociais274
.
Finalmente, a tese da ameaça fundamenta-se na idéia de que uma
nova reforma social pode colocar em perigo reformas anteriores, que
alcançou resultados a duras penas e com muitos sacrifícios. Defende-se que
o Welfare State coloca em perigo a liberdade e a democracia275
.
Grande arauto dessa doutrina é Hayek, ao alertar que a interferência
governamental no mercado seria o fim da liberdade. Nessa linha de
raciocínio, qualquer função adicional e além da ―competência‖ do Estado,
estaria fadado a ameaçar a liberdade, pois o Estado só poderia fazê-lo por
meio da coação, destruindo tanto a liberdade quanto a democracia. No
início dos anos 70, O´Connor defendia que a acumulação de capital social e
os gastos sociais (para saúde, educação e assistência social) eram um
processo altamente irracional do ponto de vista da coerência administrativa.
Para Huntigton, em escrito de 1975, a expansão das despesas de assistência
273
Ibidem, p. 58-62. 274
Ibidem, p. 69-72. 275
Ibidem, p. 94.
142
social gerariam crises na governabilidade, por acarretarem sobrecarga da
atividade governamental276
.
É imperioso observar, contudo, que o argumento da ameaça é
fragilizado pelo fato de que uma nova reforma não é necessariamente
ameaçadora das reformas anteriores. Pode haver a complementação, isto é,
o apoio mútuo entre as duas reformas. No caso das políticas do Welfare
State, o principal argumento que foi utilizado em seu favor inicialmente
residia na idéia de que eram condições essenciais para a continuidade do
capitalismo frente a seus próprios excessos, como desemprego e migração
em massa. Embora uma nova reforma possa ultrapassar alguns limites e
restringir avanços de reforma anterior, isso não é necessário277
.
As teses sistematizadas por Hirschman são, portanto, contrárias ao
avanço dos direitos sociais. Uma estratégia estatal de constitucionalização e
de fundamentalização de direitos sociais é vista pelos reacionários
conservadores como perigosa aos avanços liberais já conquistados no
campo dos direitos civis e políticos. No entanto, pelos argumentos
esboçados, não podem prevalecer.
3.2.2 A fundamentalidade dos direitos sociais
Sob o ponto de vista liberal, direitos fundamentais seriam aquelas
garantias do cidadão frente ao Estado, especificamente os direitos civis e
políticos. Os direitos civis operam como direitos de defesa (proteção de
uma esfera de liberdade individual frente a ingerências ilegítimas),
enquanto que os direitos políticos possibilitam ao cidadão participar
ativamente da formação da vontade estatal (diretamente ou por meio de
seus representantes). Por certo, as raízes dessa postura encontram-se no
276
Ibidem, p. 94-102. 277
Ibidem, p. 105-106.
143
Contratualismo, e foram conquistas históricas de elevada importância para
a promoção da dignidade humana. Contudo, historicamente, observa-se a
insuficiência da consagração apenas formal das liberdades, pois se mostrou
incapaz de promover a referida dignidade. O século XX presenciou um
movimento de inclusão de cláusulas definidoras de direitos sociais nas
constituições, que possibilitou o desenvolvimento de um novo modelo
estatal especialmente a partir de 1945, a saber, o Estado do Bem-Estar.
Conceitualmente, Estado pode ser considerado como comunidade e
poder juridicamente organizados; em sua vertente de bem-estar, é
caracterizado pela postura de intervenção para transformar ou conformar a
sociedade278
. Esse modelo de Estado visa propiciar aos indivíduos o direito
de participar do bem-estar social e não apenas vedar ao Estado o direito de
intervir ilegitimamente na esfera de liberdade individual, como defende a
tradição liberal. Busca-se, então, não apenas liberdade do e perante o
Estado, mas também liberdade através do Estado279
.
Os regimes constitucionais do Ocidente comprometem-se, explícita
ou implicitamente, a realizar o Estado Social de Direito, seja mencionando
esta expressão em seus dispositivos ou definindo um capítulo de direitos
sociais e econômicos280
. Por exemplo, a Constituição portuguesa define
como objetivo do Estado a realização da democracia econômica, social e
cultural, e considera como uma das tarefas basilares do Estado a de
promover o bem-estar, a qualidade de vida do povo, a igualdade real entre
os portugueses, bem como a efetivação dos direitos econômicos, sociais e
culturais281
. Semelhantemente, a Constituição brasileira de 1988 atribuiu ao
Estado a função de promover a justiça social, trazendo já em seu preâmbulo
278
Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, 2005, p. 170-172. 279
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 47. 280
Silva [José Afonso da], Curso de direito constitucional positivo, 2000, p. 119. 281
Canotilho; Moreira, Fundamentos da Constituição, 1991, p. 86.
144
a previsão da finalidade do Estado de ―assegurar o exercício dos direitos
sociais‖.
Nesse sentido, e no marco do Estado democrático e social, a
perspectiva liberal não é suficiente. Uma vez que a satisfação das
necessidades básicas é essencial para o gozo das liberdades públicas e da
autonomia política, os direitos sociais devem ser considerados igualmente
como direitos fundamentais.
Em Alexy282
, a justificação da fundamentalidade dos direitos sociais
reside em sua importância, pois, ao se satisfazer as necessidades básicas do
indivíduo, a este é possibilitado o real exercício da liberdade, efetivando-se
o princípio da dignidade da pessoa283
. No Brasil, a importância dos direitos
sociais é patente. Em função das graves desigualdades sociais existentes
(em 2010 o Brasil ocupava a 73ª posição na classificação do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, que tem como critério o Índice de
Desenvolvimento Humano284
), os direitos sociais são a condição essencial
282
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 506. 283
Nesse sentido: ―Ação direta de inconstitucionalidade: Associação Brasileira das
Empresas de Transporte Rodoviário Intermunicipal, Interestadual e Internacional de
Passageiros – ABRATI. Constitucionalidade da Lei 8.899, de 29-6-1994, que concede
passe livre às pessoas portadoras de deficiência. Alegação de afronta aos princípios da
ordem econômica, da isonomia, da livre iniciativa e do direito de propriedade, além de
ausência de indicação de fonte de custeio (arts. 1º, IV; 5º, XXII; e 170 da CF):
improcedência. A autora, associação de classe, teve sua legitimidade para ajuizar ação
direta de inconstitucionalidade reconhecida a partir do julgamento da ADI 3.153-AgR,
Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 9-9-2005. Pertinência temática entre as finalidades da
autora e a matéria veiculada na lei questionada reconhecida. Em 30-3-2007, o Brasil
assinou, na sede da ONU, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
bem como seu Protocolo Facultativo, comprometendo-se a implementar medidas para
dar efetividade ao que foi ajustado. A Lei 8.899/1994 é parte das políticas públicas para
inserir os portadores de necessidades especiais na sociedade e objetiva a igualdade de
oportunidades e a humanização das relações sociais, em cumprimento aos fundamentos
da República de cidadania e dignidade da pessoa humana, o que se concretiza pela
definição de meios para que eles sejam alcançados‖ (STF, Ação Direita de
Inconstitucionalidade n. 2649, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 8-5-2008,
Plenário, DJE de 17-10-2008). 284
Relatório do Desenvolvimento Humano. Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento. Organização das Nações Unidas, disponível em: www.pnud.org.br,
acesso em janeiro de 2011.
145
para a realização da democracia e das liberdades públicas. Com efeito, a
positivação de liberdades e de direitos políticos na Carta Constitucional
sem que haja a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos corre o
risco de ser mera ilusão.
O reconhecimento da fundamentalidade dos direitos sociais
contribui também para a legitimação do Estado. Sob tal prisma, propõe
Bovero285
que a prestação pelo Estado de direitos sociais é essencial para
haja verdadeira democracia. Isso porque, caso não haja a realização de
direitos sociais, os quais ―foram reivindicados pelos movimentos
socialistas, as liberdades individuais ficam vazias, os direitos fundamentais
de liberdade se transformam de fato em privilégios para poucos‖. Embora
Bovero entenda que a democracia não possa ser adjetivada como liberal ou
socialista, ela tem como sua precondição elementos das duas tradições, a
saber, as quatro liberdades fundamentais (pessoal, expressão, reunião e
associação)286
e os direitos sociais mínimos (satisfação das necessidades
primárias essenciais). Sem estes elementos ela se torna apenas democracia
aparente, isto é, o processo democrático de participação nas decisões
políticas não pode se desenvolver corretamente. Daí porque os direitos
sociais devem ser considerados também como direitos fundamentais.
A partir dessas considerações, pode-se afirmar não apenas uma
dimensão negativa aos direitos fundamentais, mas também uma positiva,
surgindo para o Estado o dever de prover as necessidades básicas dos
indivíduos e para o indivíduo o direito subjetivo a esta provisão.
285
Bovero, Contra o governo dos piores: uma gramática da democracia, 2002, p. 48. 286
Segundo Bovero (2002, p. 46), a liberdade pessoal consiste no direito de não ser
detido arbitrariamente, e do qual pode ser considerada um corolário a liberdade de
mover-se não impedido por barreiras opressivas; a liberdade de opinião e de imprensa é
a liberdade de expressar, manifestar e difundir o próprio pensamento, equivalente ao
direito ao dissenso e à crítica pública; a liberdade de reunião pode ser entendido como o
direito de protesto coletivo; e, a liberdade de associação é o direito de criar organismos
coletivos, como os sindicatos livres, e os livres partidos, abrindo a possibilidade de uma
escolha política efetiva para os cidadãos.
146
Há, porém, ao menos três argumentos que são levantados pela
doutrina como oposição à consagração dos direitos sociais como direitos
fundamentais. O primeiro, elaborado por Pereira-Menaut (e antes por
Tocqueville), consiste na idéia de que direitos sociais são apenas objetivos
do Estado, sendo que consagrá-los como direitos provocaria um incremento
do poder do Estado, uma vez que o governo, estando obrigado a satisfazer
tantos e tão complexos direitos, necessitaria de um poder extenso e
vigoroso. O reconhecimento dos direitos sociais conduziria
necessariamente à anulação das liberdades dos cidadãos287
. O segundo é
aquele do custo dos direitos sociais e a conseqüente dificuldade de
efetivação. É defendido que os direitos sociais se diferenciam dos direitos
civis em relação à exigência de elevados investimentos para a realização de
prestações positivas, fazendo com que aqueles direitos sejam de
problemática implementação288
. Semelhante é o argumento relativo à
diferença entre direitos de defesa e os direitos sociais a prestações baseado
na necessidade de mediação do Poder Público para a realização dos
últimos, no sentido de que é fragilizada a exeqüibilidade dos direitos
sociais por ser imprescindível a atuação do Estado289
.
287
Correas, Filosofia del Derecho: el Derecho y los Derechos Humanos, 1994, p. 148. 288
Cruz, Um olhar crítico-deliberativo sobre os direitos sociais no Estado Democrático
de Direito, 2008, p. 94-96. 289
Sobre a necessidade de mediação do Poder Público, Canotilho (1993, p. 543)
comenta que ―a expressa consagração constitucional de direitos económicos, sociais e
culturais não implica, de forma automática, um 'modus' de normativizacão uniforme, ou
seja, uma estrutura jurídica homogénea para todos os direitos. Alguns direitos
económicos, culturais e sociais são verdadeiros direitos self-executing (ex.: liberdade de
profissão, liberdade sindical, igualdade no trabalho); outros são direitos a prestações
dependentes da actividade mediadora dos poderes públicos. O facto de estes direitos
estarem dependentes da acção do Estado e apresentarem um inequívoco défice de
exequibilidade e justicialidade, leva os autores a falarem de aporia dos direitos
fundamentais, económicos e sociais, e a reconduzir a problemática dos direitos sociais
para o campo da ‗política social‘, ao mesmo tempo que se reduz o princípio da
democracia económica, social e cultural a uma simples linha de direcção da actividade
estadual. Este não é, contudo, o entendimento constitucional‖.
147
Entretanto, tais críticas não podem prevalecer. A respeito da
impugnação de Pereira-Menaut, o reconhecimento de direitos sociais como
direitos fundamentais não visa à eliminação das liberdades públicas, ou
ainda, a instalação de um Estado totalitário. De fato, trata-se de uma
modificação do Estado da perspectiva liberal, embora sem deixar de
garantir as conquistas deste. O que se rejeita é sua visão puramente
individualista, de que a função dos governos é tão somente promover a
harmonização dos direitos a bens particulares. O papel do Estado é também
a garantia da participação de todos no bem comum290
.
No tocante ao segundo argumento, a diferença entre direitos civis e
sociais em razão dos gastos públicos não pode ser considerada como
essencial, a ponto de afastar a fundamentalidade dos direitos sociais. É
evidente que estes direitos demandam elevados investimentos. Contudo, o
aparato estatal indispensável para assegurar direitos civis e políticos, a
exemplo dos recursos necessários para a manutenção da segurança pública
e para a realização de eleições, também custa elevados recursos à fazenda.
Além disso, admitindo-se que a pobreza e a exclusão são algumas das
principais causas da violência, maiores investimentos em direitos sociais
provocariam a redução da criminalidade, e assim, a diminuição de gastos
com segurança e saúde, tanto a partir do erário público quanto de
investimentos privados. O custo dos direitos sociais ou a dificuldade de sua
implementação, portanto, não podem ser critérios para excluir os direitos
sociais do rol dos direitos fundamentais subjetivos, isto é, não é um critério
para afastar sua fundamentalidade e sua exigibilidade judicial291
.
290
Correas, Filosofia del Derecho: el Derecho y los Derechos Humanos, 1994, p. 152-
153. 291
Salienta-se que, embora o argumento do custo dos direitos sociais não se preste para
afastar sua fundamentalidade, é certo que é aponta um problema para sua efetividade.
Na lição de Silva (2010, p. 241-242), o custo dos direitos sociais, além de envolver tudo
aquilo que é necessário para a produção dos efeitos das liberdades públicas – proteção,
organizações, procedimentos, etc. – exige algo mais. E essa adição de gastos, além de
148
Em relação ao terceiro argumento, semelhantemente ao anterior,
pode-se responder afirmando que todos os direitos fundamentais
demandam a atuação do Poder Público para sua efetivação. O próprio
aparato judiciário é um exemplo de estrutura criada para viabilizar o gozo
dos direitos fundamentais de defesa.
Portanto, as críticas apontadas não são suficientes para
descaracterizar os direitos sociais como direitos fundamentais, o que é
reforçado pelo fato de que tais direitos conferem legitimidade ao Estado, ao
possibilitar o exercício das liberdades públicas e a existência de real
democracia, e porque são dotados de elevada importância para a satisfação
das necessidades humanas básicas e, assim, para assegurar a dignidade da
pessoa humana.
Examinando-se comparativamente direitos sociais e direitos civis e
políticos, embora existam diferenças estruturais entre eles, não há
diferenças radicais: uns e outros se destinam à satisfação de necessidades
básicas, como a necessidade individual de exercer a liberdade privada, a
autonomia política e de gozar das condições básicas para a vida digna; ou
ainda, os direitos sociais são as condições para o efetivo exercício dos
direitos civis e políticos292
.
pressupor recursos financeiros nem sempre disponíveis, costuma ser específico para
cada um dos direitos sociais. Por exemplo, a construção de hospitais e a compra de
medicamentos são aproveitadas para um único direito social, o direito à saúde. De modo
semelhante, para Sarlet e Figueiredo (2010, p. 27-28), embora não se possa negar que
todos os direitos fundamentais impliquem em custos, no caso dos direitos sociais a
prestações, a efetividade destes resta prejudicada caso não haja alocação direta de
recursos, os quais devem ser especificamente destinados à realização dos mesmos. Daí
possuírem maior relevância econômica que os direitos de defesa. 292
Pulido, Fundamento, Conceito e Estrutura dos Direitos sociais: uma crítica a
“Existem direitos sociais?” de Fernando Atria, 2008, p. 150. Para Canotilho e Moreira
(1991, p. 129), o que distingue os direitos sociais dos direitos civis e políticos não é a
sua natureza jurídico-constitucional, pois, na Constituição Portuguesa, todos são direitos
fundamentais. A diferença reside apenas no objeto.
149
Na verdade, não há como se apartar os direitos de liberdade dos
direitos sociais, exceto para fins didáticos293
. Assim como, ―de modo
metafórico, é possível estudar de forma apartada os sistemas circulatório e
respiratório do homem, mas, na prática, eles não podem subsistir um sem o
outro‖, os direitos civis e políticos não subsistem sem os direitos sociais.
São distinguidos apenas didaticamente294
. Desse modo, se as liberdades são
direitos fundamentais, os direitos sociais também o são, porquanto
imprescindíveis para a efetivação daquelas.
Veja-se ainda que o reconhecimento dos direitos sociais como
direitos fundamentais faz com que os mesmos não sejam considerados
apenas como uma concessão do Estado (à semelhança da formulação da
dogmática alemã na metade do século XIX em relação aos direitos de
tradição liberal). Os direitos sociais fundamentais impõem-se como uma
exigência da soberania popular aos órgãos que dependem dela295
.
3.3 Conceito e fundamentalidade dos direitos sociais desde a
Constituição Brasileira de 1988
Do texto da Constituição da República de 1988 são extraídas
normas definidoras de direitos sociais. É certo que alguns enunciados
normativos não trazem direitos juridicamente exigíveis, mas tão somente
293
Courtis (2008, p. 489-490) assevera que não há um traço ou característica comum
que seja capaz de definir tanto os direitos civis e políticos como os direitos sociais,
como se tais direitos formassem um catálogo perfeitamente consistente de direitos. O
esforço para reduzir (argumento reducionista – blanket arguments) direitos civis e
políticos a direitos de caráter negativo (direitos que requerem uma abstenção estatal) e
para reduzir os direitos sociais a direitos positivos (direitos que requerem uma ação
estatal) é claramente errado. Para o autor, todo direito requer tanto abstenção quanto
ação do Estado, não havendo praticamente direito algum que não demande recursos
para ser implementado e protegido. 294
Cruz, Um olhar crítico-deliberativo sobre os direitos sociais no Estado Democrático
de Direito, 2008, p. 96. 295
Em sentido semelhante, mas em relação aos direitos fundamentais como limitação do
poder do Estado, cf. Viñas, El abuso de los derechos fundamentales, 1983, p. 81-82.
150
objetivos de caráter social (como ―erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais‖, conforme previsão no artigo
3º, III). Entretanto, textos como o artigo 6º, caput, claramente prevêem
prestações positivas como direitos, como educação, saúde e alimentação,
ainda que exista certa indeterminação quanto à medida de cada direito.
No Título denominado ―Dos direitos e garantias fundamentais‖, são
formalmente296
reconhecidos como direitos fundamentais, entre outros, os
seguintes direitos sociais: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia,
lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados (artigo 6º)297
. No artigo 7º, são assegurados
diversos direitos trabalhistas, como a proteção da relação de emprego
contra despedida arbitrária ou sem justa causa, o seguro-desemprego, o
fundo de garantia por tempo de serviço, a irredutibilidade do salário,
duração máxima do trabalho, repouso semanal remunerado, gozo de férias
anuais, licença à gestante e licença-paternidade, aposentadoria, entre
outros. O artigo 8º assegura a livre associação profissional ou sindical com
vistas à defesa dos interesses da classe. O direito de greve é garantido no
296
Segundo Dimoulis e Martins (2009, p. 119-120), a posição dos direitos fundamentais
no sistema jurídico é definida com base na fundamentalidade formal, sendo condição
necessária a garantia do direito por meio de normas que tenham força jurídica própria da
supremacia constitucional, ainda que tenha alcance e relevância social bastante
limitados, como o exemplo do direito (fundamental) dos maiores de 65 anos de viajar
gratuitamente nos meios de transporte coletivo urbano (artigo 230, §2º). 297
Sobre a fundamentalidade desses direitos, a exemplo do direito à saúde: ―O § 4º do
art. 199 da Constituição, versante sobre pesquisas com substâncias humanas para fins
terapêuticos, faz parte da seção normativa dedicada à ‗Saúde‘ (Seção II do Capítulo II
do Título VIII). Direito à saúde, positivado como um dos primeiros dos direitos sociais
de natureza fundamental (art. 6º da CF) e também como o primeiro dos direitos
constitutivos da seguridade social (cabeça do artigo constitucional de nº 194). Saúde
que é ‗direito de todos e dever do Estado‘ (caput do art. 196 da Constituição), garantida
mediante ações e serviços de pronto qualificados como ‗de relevância pública‘ (parte
inicial do art. 197). A Lei de Biossegurança como instrumento de encontro do direito à
saúde com a própria Ciência. No caso, ciências médicas, biológicas e correlatas,
diretamente postas pela Constituição a serviço desse bem inestimável do indivíduo que
é a sua própria higidez físico-mental‖ (STF, Ação Direita de Inconstitucionalidade n.
3510, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 29-5-2008, Plenário, DJE de 28-5-2010).
151
artigo 9º. O direito de participação dos trabalhadores e empregadores nos
colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou
previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação é previsto no artigo
10. No artigo 11, consta o direito de eleição de um representante nas
empresas de mais de duzentos empregados, com a finalidade exclusiva de
promover-lhes o entendimento direto com os empregadores.
Ressalta-se, contudo, que os direitos sociais não se limitam àqueles
expressamente positivados no catálogo. À luz do que determina o artigo 5º,
§2º da Constituição, é possível a existência de outros direitos sociais, como
aqueles implícitos e decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados ou aqueles positivados em tratados internacionais, além dos
direitos sociais previstos em outras partes do texto constitucional298
. Nos
dispositivos da ordem social, encontramos, entre outros, o direito de
participação da iniciativa privada na assistência à saúde (artigo 199), a
vedação de benefício previdenciário não inferior ao salário mínimo (artigo
201, §5º), o direito à educação em face do Estado (artigo 205), a igualdade
de acesso e permanência na escola (artigo 206, I)299
.
298
Nesse mesmo sentido, Sarlet e Figueiredo (2010, p. 18) defendem que, no âmbito do
sistema de direito constitucional positivo nacional, todos os direitos sociais são
fundamentais, tenham sido eles expressa ou implicitamente positivados, estejam no rol
do Título II da Constituição Federal ou dispersos pelo restante do texto constitucional,
ou ainda, localizados nos tratados internacionais regularmente firmados e incorporados
pelo Brasil. 299
Sobre o tema: ―(...) deve-se mencionar que o rol de garantias do art. 7º da
Constituição não exaure a proteção aos direitos sociais.‖ (STF, Ação Direita de
Inconstitucionalidade n. 639, voto do Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 2-6-
2005, Plenário, DJ de 21-10-2005). A esse respeito, digno de nota é o comentário de
Sarlet (2009, p. 223): ―Em síntese, firma-se aqui posição em torno da tese de que – pelo
menos no âmbito do sistema de direito constitucional positivo nacional – todos os
direitos, tenham sido eles expressa ou implicitamente positivados, estejam sediados no
Título II da Constituição Federal (dos direitos e garantias fundamentais), estejam
localizados em outras partes do texto constitucional ou nos tratados internacionais
regularmente firmados e incorporados pelo Brasil, são direitos fundamentais. Como
corolário desta decisão em prol da fundamentalidade dos direitos sociais na ordem
constitucional brasileira, e por mais que se possa e, até mesmo (a depender das
circunstâncias e a partir de uma exegese sistemática), por mais que seja possível
152
Nesse sentido, verifica-se que a Constituição confere a estes
conteúdos de caráter social a natureza de direitos subjetivos, isto é, que
podem ser exigidos pelos indivíduos ou categorias em face do Estado. Em
reforço a essa interpretação, menciona-se a previsão do artigo 5º, §1º, ao
reconhecer a aplicabilidade imediata de todos os direitos fundamentais, ou
seja, a possibilidade de serem exigidos judicialmente com base no texto
constitucional, sem a necessidade de intervenção do legislador
infraconstitucional.
Entretanto, é imperioso destacar que a Constituição não reconhece
apenas direitos sociais a prestações, que é um dos aspectos distintivos de
um Estado social. Verifica-se ter havido a consagração de direitos de
natureza diversa sob o gênero ―direitos sociais‖, criando-se dificuldades
para a elaboração de um conceito dogmático abrangente.
Observa-se a existência de duas grandes categorias de direitos
sociais: aqueles que regulam a relação entre particulares (direitos de
defesa) e aqueles que conferem o direito subjetivo a prestações fáticas. Por
exemplo, os direitos trabalhistas ao salário mínimo ou à jornada máxima de
quarenta e quatro horas semanais não são prestações fáticas, mas regulação
de relações privadas. A seu turno, o direito à moradia ou ao seguro
desemprego são primariamente direitos a ações fáticas por parte do
Estado300
.
reconhecer eventuais diferenças de tratamento, os direitos sociais – por serem
fundamentais – comungam do regime da dupla fundamentalidade (formal e material)
dos direitos fundamentais‖. 300
No entanto, embora seja explorado adiante, vale ressaltar que os direitos sociais,
ainda que de caráter prestacional, possuem também uma dimensão negativa. Sarlet e
Figueiredo (2010, p. 16-17), examinando o direito social à moradia, do enunciado
normativo extraem duas normas, uma que define o direito de defesa contra ações do
Estado ou de terceiros que visem uma restrição ao direito não fundamentada, e outra
que define um direito positivo, podendo servir de fundamento a uma atuação do Estado
no sentido de assegurar, mediante determinadas prestações jurídicas ou materiais o
acesso a uma moradia, o que também pode ser aplicado ao direito à saúde.
153
Nessa direção, e conforme a lição de Sarlet, há uma classe de
direitos sociais de cunho notoriamente negativo (precipuamente dirigidos
uma conduta omissiva por parte do destinatário, seja o indivíduo ou o
Estado), que tem sido denominada de ―liberdades sociais‖, integrando o
que se poderia chamar de um ―status negativus socialis‖ ou ―status socialis
libertatis‖, sob a inspiração da concepção de Jellinek. Segundo o autor, o
mesmo fenômeno se verificava, ao menos parcialmente e na sua
formulação original, na Constituição Portuguesa de 1976, em que vários
dos direitos fundamentais trabalhistas, inicialmente contidos no título dos
direitos econômicos, sociais e culturais, foram integrados, na revisão de
1982, no título dos direitos, liberdades e garantias. Assim, uma
conceituação dos direitos fundamentais sociais, a partir da Constituição
brasileira, como direitos a prestações estatais é manifestamente
incompleta301
.
Diante dessas ponderações, pode-se concluir que a expressão
―direitos sociais‖ encontra sua razão de ser na circunstância de que todos
esses direitos, sejam prestacionais ou de defesa, consideram o ser humano
em sua situação concreta na ordem social, tendo como objetivo criar e
garantir a igualdade material e a liberdade real, seja por meio de
301
Sarlet, Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988, 2001, p. 18-19.
Em comentário ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e sua relação com os
direitos econômicos, sociais e culturais, Courtis (2008, p. 490-491) constata a
dificuldade existente para a classificação de alguns direitos, exemplo da liberdade
sindical e do direito da família à proteção estatal, na categoria dos direitos sociais,
econômicos e culturais em sua acepção tradicional, defendendo que não se pode
considerar direitos sociais apenas como direitos a prestações e direitos civis e políticos
como direitos de defesa. Todos os direitos possuem uma parcela de defesa e outra de
prestações. Canotilho e Moreira (1991, p. 127) apontam também que os direitos sociais,
além da componente positiva, possuem também uma componente negativa, que se
traduz num direito à abstenção do Estado ou de terceiro. Como exemplo, mencionam o
direito ao trabalho, que consiste não apenas na promoção da criação de postos de
trabalho, mas também na obrigação do Estado em se abster de impedir ou limitar o
acesso dos cidadãos ao trabalho (liberdade de acesso ao trabalho). O mesmo raciocínio
se aplica à saúde, reconhecendo-se o dever do Estado não apenas de assegurar o direito,
mas também de não prejudicar a saúde dos cidadãos.
154
determinadas prestações materiais e normativas, seja pela proteção e
manutenção do equilíbrio das forças na esfera das relações sociais. Desse
modo, os direitos fundamentais sociais podem ser conceituados como
direitos à libertação da opressão social e da necessidade302
.
3.4 A eficácia das normas definidoras de direitos sociais a prestações
Considerada a fundamentalidade dos direitos sociais, passa-se ao
exame da eficácia das normas definidoras de direitos sociais a prestações.
De início, é preciso reconhecer que todo e qualquer preceito da
Constituição é dotado de certo grau de eficácia jurídica e aplicabilidade,
consoante a normatividade que lhe tenha sido outorgada pelo Constituinte.
Não há, portanto, normas constitucionais sem eficácia.
Nessa direção, há deveres do Estado impostos por normas, ainda
que de caráter programático. Estes deveres podem ser de efeito imediato e
também ligados à realização progressiva de cada direito. Podem ser
mencionados como de efeito imediato o dever de proteção negativa, ao
reconhecer a garantia de proteção aos titulares contra ação estatal que viole
os direitos sociais, e o dever de igual proteção e não-discriminação, ao
impor que, se um grupo é beneficiado por direitos sociais, em função do
tratamento igualitário, outros grupos podem também ser beneficiados,
salvo diferenças justificadoras. Como efeito ligado à realização progressiva
de cada direito, menciona-se especialmente a vedação do retrocesso, que
proíbe qualquer medida estatal que prejudique a realização dos direitos
sociais, isto é, que implique em regresso303
.
302
Sarlet, Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988, 2001, p. 20-21. 303
Curtis, Critérios de justiciabilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais:
breve exploração, 2008, p. 491-512. Sobre a vedação do retrocesso, menciona-se o
magistério de Canotilho e Moreira (1991, p. 131): ―as normas constitucionais que
155
Observa-se, porém, que dois fatores estão intimamente vinculados
ao grau de eficácia e aplicabilidade: a função precípua do direito social
atribuída pela Constituição (isto é, se direito de defesa ou prestacional) e a
forma de sua positivação (por exemplo: se normas programáticas ou que
conferem direitos subjetivos; ou, se normas de eficácia plena, contida ou
limitada)304
.
Esse estudo, por ser a discussão relativa aos direitos de defesa
caracteriza por menor tensão, voltar-se-á para o exame da eficácia das
normas de direitos sociais de caráter prestacional. Para tanto, será
examinado inicialmente o conceito de suporte fático e sua aplicação aos
direitos sociais, seguido do estudo do problema da eficácia, tanto de uma
perspectiva teórico-jurídica quanto jurídico-positiva na Constituição
brasileira de 1988.
3.4.1 O suporte fático dos direitos sociais
Embora pouco mencionado no direito constitucional brasileiro, o
conceito de suporte fático é essencial para a melhor compreensão dos
direitos fundamentais, especialmente sob a perspectiva da dogmática
analítica. No âmbito dos direitos sociais especificamente, não é menor sua
importância.
reconhecem direitos econômicos, sociais e culturais de carácter positivo têm pelo menos
uma função de garantia da satisfação adquirida por esses direitos, impondo uma
‗proibição de retrocesso‘, visto que, uma vez dada satisfação ao direito, este
‗transforma-se‘, nessa medida, em ‗direito negativo‘ ou direito de defesa, isto é, num
direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele‖. Estes mesmos autores
destacam outros efeitos das normas programáticas, que, embora não assegurem direitos
subjetivos diretamente aos cidadãos, prestam-se para conferir fundamento
constitucional para ações e medidas estatais que, sem elas, poderiam não ser
constitucionalmente lícitas, e consubstanciam valores constitucionais que orientam a
interpretação de outras normas constitucionais (CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p.
128). 304
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 257-260.
156
O suporte fático pode ser conhecido a partir de suas duas
modalidades básicas: o suporte fático abstrato e o concreto. O primeiro é
formado por aqueles fatos ou atos do mundo que são descritos por
determinada norma e para cuja realização ou ocorrência se prevê
determinada conseqüência jurídica; isto é, ao ser preenchido o suporte
fático, a conseqüência jurídica é ativada. O suporte fático concreto, de seu
turno, é a ocorrência no mundo da vida, dos fatos ou atos que a norma, em
abstrato, atribuiu relevância jurídica. Nessa direção, da configuração do
suporte fático depende a aplicação dos direitos fundamentais, tanto para a
subsunção, quanto para o sopesamento ou a concretização305
.
Examinando o conceito de suporte fático no campo dos direitos de
defesa, Alexy propõe que o conceito deve ser composto por dois
elementos: o bem protegido e a intervenção, podendo ser apresentado a
partir de duas ―leis de intervenção‖. A primeira determina que ―todas as
medidas que sejam intervenções em um bem protegido por um direito
fundamental são prima facie proibidas pelo direito fundamental‖. A
segunda, que ―todas as medidas que sejam intervenções em um bem
protegido por um direito fundamental, e que não sejam justificadas por uma
restrição, são definitivamente proibidas pelo direito fundamental‖306
.
Observa-se que a primeira lei é mais abrangente que a segunda, haja vista
que nesta as medidas proibidas são apenas aquelas que não são justificadas
por uma restrição.
O suporte fático, nesse sentido, presta-se como condição para a
aplicação da conseqüência jurídica, a exemplo do reconhecimento da
inconstitucionalidade. No entanto, não é a única. Se o suporte fático pode
ser considerado como uma condição positiva (isto é, deve estar presente), a
ele é necessário acrescentar a noção de restrição, uma condição negativa. 305
Silva [Virgílio Afonso da], Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia, 2010, p. 67-68. 306
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 306.
157
Para Alexy, as restrições a direitos fundamentais constituem o lado
negativo das normas de direitos fundamentais, uma vez que são aquilo que
conduz a uma exclusão da proteção do direito fundamental307
. Por exemplo,
uma regra (compatível com a Constituição) é uma restrição a um direito
fundamental se, com sua vigência, surge uma não-liberdade definitiva308
.
Desse modo, para que a conseqüência jurídica definitiva de um direito
fundamental ocorra, o suporte fático deve ser preenchido e a cláusula de
restrição, não309
.
Esta teoria do suporte fático dos direitos fundamentais, todavia,
recebe críticas da doutrina brasileira. Para Silva, o problema da definição
de Alexy reside na compreensão do suporte fático apenas como a junção de
dois elementos: o âmbito de proteção e a intervenção estatal. Segundo o
autor brasileiro, deve-se levar em consideração não dois, mas quatro
elementos, apontados a partir das indagações sobre o que é protegido,
contra o que é protegido, qual a conseqüência jurídica que poderá sobrevir
e o que é necessário para que a conseqüência ocorra. Assim, além de haver
alguma restrição ao bem protegido (por exemplo, liberdade religiosa)
realizada por alguém (Estado), a violação do direito fundamental e a
conseqüência jurídica cabível (por exemplo: declaração de
inconstitucionalidade e retorno ao status quo ante) somente ocorreriam se
ausente fundamentação constitucional que permitisse ou determinasse tal
restrição. A ausência de fundamentação, portanto, é um elemento do
suporte fático310
.
Entretanto, não pode prevalecer a referida crítica. Em primeiro
lugar, porque o próprio autor brasileiro diferenciou suporte fático e
307
Ibidem, p. 301. 308
Ibidem, p. 283. 309
Ibidem, p. 308. 310
Silva [Virgílio Afonso da], Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia, 2010, p. 70-74.
158
conseqüência jurídica (quando apresentou a distinção entre suporte fático
abstrato de concreto), não podendo a conseqüência ser elemento integrante
daquele. Se comparado com o direito penal, o suporte fático abstrato é
equivalente ao tipo legal, como bem salienta o autor311
, onde são previstos
os elementos objetivos (como verbo-núcleo e resultado) e os elementos
subjetivos (como dolo, culpa ou elemento subjetivo especial), do qual não é
elemento a sanção penal, de modo que, do suporte fático não pode ser
elemento a conseqüência jurídica. Como o próprio nome demonstra, é um
resultado da ocorrência do suporte fático, isto é, da verificação de seus
elementos.
No tocante à ausência de fundamentação constitucional, esta não é
necessariamente elemento integrante do conceito de suporte fático. A
ausência de fundamentação constitucional pode compreender uma segunda
etapa de análise, à semelhança da antijuricidade no conceito tripartido de
delito. A fundamentação constitucional, por isso, constitui uma causa
excludente da ilicitude da conduta, tornando, por exemplo, a intervenção
estatal na liberdade de locomoção legitimada. Sob outra perspectiva,
ocorrido o suporte fático, a ausência de fundamentação constitucional para
a conduta restritiva de direito fundamental é condição de aplicabilidade da
conseqüência jurídica, e não elemento integrante do suporte fático.
Ressalva-se, porém, que assim como no direito penal pode-se
distinguir ―tipo‖ de ―delito‖, ou ainda, prática de fato descrita como crime e
prática do crime, pode-se distinguir também no campo do direito
constitucional o suporte fático lato sensu e stricto sensu. O primeiro pode
ser comparado ao conceito de delito (fato típico, antijurídico e culpável),
que é o fundamento para a conseqüência jurídica, ao passo que o segundo é
comparável ao conceito de tipo, que é o elemento básico para a
configuração do delito. A ausência de fundamentação constitucional não é
311
Ibidem, p. 65-66.
159
elemento do suporte fático em sentido estrito, mas apenas do suporte fático
em sentido amplo, sendo elemento deste o suporte fático em sentido estrito
(âmbito de proteção e intervenção) e a cláusula de restrição, ou melhor, o
não preenchimento de uma cláusula de restrição.
No campo dos direitos sociais, o mesmo raciocínio é aplicável. No
entanto, não há que se falar em intervenção como elemento do suporte
fático. Acompanha o âmbito de proteção não a intervenção, mas a ausência
de intervenção ou intervenção deficiente.
Alexy menciona o exemplo do tratamento igualitário (em qualquer
âmbito), apontando a seguinte formulação para o suporte fático com a
restrição: ―se uma ação estatal x constitui um tratamento desigual, e se não
houver razão suficiente para a permissibilidade desse tratamento desigual,
então, a realização de x é proibida‖312
. Veja-se, portanto, que se não há
razão suficiente para o tratamento desigual (condição negativa), havido tal
tratamento (condição positiva), deve ocorrer a conseqüência jurídica
(conferir o mesmo tratamento ou reconhecer sua inconstitucionalidade)313
.
Nesse mesmo sentido, a proteção de direitos sociais implica uma
exigência de ações estatais, mas somente ações que fomentem a realização
desses direitos. Há, portanto, uma inversão dos elementos em relação aos
direitos de liberdade. Nestes, o direito à não intervenção e a ocorrência de
312
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 430. 313
A esse respeito: ―A lei pode, sem violação do princípio da igualdade, distinguir
situações, a fim de conferir a uma tratamento diverso do que atribui a outra. Para que
possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se manifeste, é necessário que a
discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio. A Constituição do
Brasil exclui quaisquer exigências de qualificação técnica e econômica que não sejam
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. A discriminação, no
julgamento da concorrência, que exceda essa limitação é inadmissível.‖ (STF, Ação
Direita de Inconstitucionalidade n. 2716, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 29-11-
2007, Plenário, DJE de 7-3-2008); ―A igualdade, desde Platão e Aristóteles, consiste em
tratar-se de modo desigual os desiguais. Prestigia-se a igualdade, no sentido
mencionado, quando, no exame de prévia atividade jurídica em concurso público para
ingresso no MPF, dá-se tratamento distinto àqueles que já integram o Ministério
Público. Segurança concedida.‖ (STF, Mandado de Segurança n. 26.690, Rel. Min. Eros
Grau, julgamento em 3-9-2008, Plenário, DJE de 19-12-2008).
160
intervenção compõem o suporte fático. Naqueles, o direito à intervenção e
a ausência ou insuficiência da intervenção o compõem314
.
Havido o preenchimento do suporte fático, e inexistente uma
fundamentação constitucional para a restrição do direito social (isto é, para
sua não realização), é ativada a conseqüência jurídica, que consiste no
reconhecimento de um direito definitivo à realização dessa ação. Em suma,
se x é uma ação estatal que fomenta a realização de um direito social e a
inércia ou insuficiência estatal em relação a x não é fundamentada
constitucionalmente, então a conseqüência jurídica deve ser o dever de
realizar x315
.
Desse modo, o conteúdo dos direitos sociais está intimamente
ligado a um complexo de fundamentações necessárias para a justificação de
eventuais não-realizações desse direito, assim como acontece com qualquer
outro direito. Esse complexo de fundamentações que participam da
configuração do suporte fático, portanto, aponta qual é o conteúdo
essencial de um direito social. Restrições que não estejam previstas a partir
desse complexo são inconstitucionais, ferindo o conteúdo essencial do
direito316
.
314
Silva [Virgílio Afonso da], Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia, 2010, p. 77. 315
Ibidem, p. 78. 316
Ibidem, p. 205-206. A noção de ―conteúdo essencial‖ ou ―conteúdo mínimo‖ advém
da tradição constitucional alemã, e consiste no nível mínimo de obrigação de um Estado
no que se refere a um serviço ou benefícios relacionados ao bem-estar e à promoção da
dignidade humana, e compreendem o acesso à alimentação, moradia e assistência social
às pessoas necessitadas (COURTIS, 2008, p. 504). Sobre o problema da dificuldade de
determinação do suporte fático dos direitos sociais, cf. Starck, Direitos sociais, 2009, p.
287-289.
161
3.4.2 Eficácia das normas de direitos sociais
Embora a compreensão do conceito e da fundamentalidade dos
direitos sociais seja importante, maior destaque ganha no atual cenário o
problema da eficácia dos direitos fundamentais sociais a prestações. Como
visto anteriormente, a doutrina aponta a existência de duas modalidades de
eficácia: a jurídica e a social. Eficácia jurídica é a possibilidade de
aplicação da norma aos casos concretos com a geração dos efeitos jurídicos
que lhe são inerentes; já a eficácia social consiste na real obediência e
aplicação no plano dos fatos, também denominada de efetividade. Os
comentários seguintes limitar-se-ão ao exame da eficácia jurídica e à
aplicabilidade das normas definidoras de direitos fundamentais sociais.
Que os direitos sociais são direitos fundamentais é inegável, seja
porque se destinam a prover o homem de meios de subsistência, seja por
que evidenciam o grau de democracia no Estado. No direito constitucional
brasileiro, os direitos sociais são formalmente reconhecidos como
fundamentais, uma vez que incluídos no Título II da Constituição Federal.
Contudo, indaga-se se qual é ou deve ser a eficácia reconhecida às normas
que os definem.
Quanto a essa questão, Silva317
aponta a existência de objeções
levantadas por parte da doutrina que negam aos direitos sociais a eficácia
plena ou a aplicabilidade imediata, por diferentes razões.
A primeira delas reside no entendimento de que os direitos de
liberdade se beneficiam da tutela constitucional diretamente, o que impede
a eficácia plena dos direitos sociais. Verifica-se, assim, que os direitos
sociais são limitados pelos direitos individuais, adotando-se uma
interpretação restritiva.
317
Silva [José Afonso da], Garantias econômicas, políticas e jurídicas da eficácia dos
direitos sociais, 2005, p. 4-8.
162
Outro argumento que pode ser mencionado refere-se ao princípio da
separação dos poderes. Quando se concebe os direitos sociais como
prestações positivas do Estado, em verdade não há como estes se
realizarem na prática, a não ser quando o Estado executa o programa que
possibilita sua satisfação concreta. Nessa acepção, não se fala em
aplicabilidade imediata das normas dos direitos sociais, mas de
aplicabilidade progressiva conforme a agenda política estatal.
A terceira razão está relacionada ao problema da eficácia dos
direitos diante de terceiros. Entende-se que alguns direitos sociais,
especialmente os relativos aos trabalhadores, não constituem meras
prestações estatais. O Estado não realiza diretamente as obrigações que
derivam desses direitos. Ele impõe a outros sujeitos sua realização, de
modo que, por serem os direitos sociais exercidos unidirecionalmente, isto
é, pelo indivíduo em face dos poderes públicos, não há que se falar em
respeito a tais direitos por terceiros. Assim, somente seria possível
aplicação direta daquelas normas definidoras de direitos que não dependem
da atuação de terceiros.
Opõe-se também à idéia de que as normas de direitos sociais sejam
de aplicabilidade imediata Zippelius318
, por defender que em casos nos
quais a ação estatal deve criar os fundamentos materiais para o
desenvolvimento da liberdade individual, a justiça social não pode ser
convertida em direitos subjetivos exigíveis por via de ação judicial.
Argumenta, a exemplo do direito ao trabalho, que sua exigência judicial
somente seria possível em uma economia socialista de administração
central. Em uma democracia pluralista, contudo, a oferta de emprego não
está sujeita à disposição estatal, mas é regulada de acordo com as leis do
mercado. Nesse caso, o Estado pode intervir de forma orientadora e
incentivadora, mas apenas de maneira limitada. Mantém-se também as
318
Zippelius, Teoria Geral do Estado, 1997, p. 460-461.
163
normas programáticas vinculativas, como atuar, na medida do possível, no
sentido de alcançar o pleno emprego, mediante subsídios ou incentivos.
Cunha Júnior319
apresenta argumentação referente à necessidade da
interpositio legislatoris para a conformação do conteúdo e do alcance das
prestações que constituem o objeto dos direitos fundamentais sociais.
Afirma-se que são cláusulas tão genéricas que esses direitos não podem
fundamentar diretamente pretensões exigíveis judicialmente. Dessa
maneira, não se apresentam como direitos imediatamente desfrutáveis pelo
cidadão, senão quando conformados pelo legislador, sendo, portanto,
direitos sociais derivados à prestação320
.
Parte outra da doutrina, em sentido contrário aos argumentos
anteriormente esboçados, sustenta que as normas definidoras de direitos
fundamentais sociais são dotadas de eficácia (grau de eficácia a depender
de alguns fatores) e aplicabilidade imediata, nos termos seguintes.
De acordo com o modelo apresentado por Alexy321
, os indivíduos
possuem direitos fundamentais sociais de modo definitivo, conforme a
319
Cunha Júnior, A efetividade dos direitos fundamentais sociais e a reserva do
possível, 2008, p. 371-372 320
Esse mesmo argumento é mencionado por Curtis (2008, p. 489), ao destacar a
existência de uma suposição geral de que os direitos econômicos, sociais e culturais não
seriam justiciáveis como categoria em virtude de alguma impossibilidade inerente de
definição de seu conteúdo, que os tornaria incertos e vagos. 321
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 511-512. Sobre o mínimo
existencial, destacam Sarlet e Figueiredo (2010, p. 20-21) que, na doutrina do Pós-
Guerra, o primeiro jurista de renome a sustentar a possibilidade de reconhecimento de
um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos mínimos para uma existência digna
foi Otto Bachof, diante da ausência de previsão expressa no texto da Lei Fundamental
da Alemanha de 1949. Considerou Bachof que o princípio da dignidade da pessoa
humana não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de
segurança social, por meio da garantia de recursos materiais para uma existência digna.
Um ano depois, em 1954, o Tribunal Federal Administrativo da Alemanha reconheceu o
direito subjetivo do indivíduo carente a auxílio material por parte do Estado, e cerca de
duas décadas depois, o Tribunal Constitucional Federal consagrou o reconhecimento de
um direito fundamental à garantia das condições mínimas para uma existência digna. Na
doutrina alemã contemporânea (especialmente em H. F. Zacher), entende-se que a
garantia das condições mínimas para uma existência digna integra o conteúdo essencial
164
ponderação de princípios. No entanto, esses direitos são garantidos apenas
relativamente, tendo em vista a possibilidade de serem restringidos diante
de eventual colisão de princípios constitucionais, respeitando-se os
―direitos sociais mínimos‖, a exemplo dos direitos a um mínimo
existencial, a uma moradia simples, à educação fundamental e média e a
um patamar mínimo de assistência médica que são necessária e
definitivamente garantidos a cada indivíduo.
Sarlet322
defende idéia semelhante, por compreender que embora
sejam todas as normas consagradoras de direitos fundamentais dotadas de
eficácia, o quantum da prestação carece de determinação. Apesar disso,
assegura o jurista que o patamar mínimo de garantia deve ser preservado,
pois ao Estado compete assegurar a proteção das condições existenciais
mínimas, estabelecidas em observância ao princípio da dignidade da pessoa
humana323
.
No mesmo sentido dos anteriores, Sarmento324
assegura que, diante
da necessidade de ponderação de princípios, deve-se respeitar o núcleo
essencial dos direitos fundamentais. Para ele, há um conteúdo mínimo
destes direitos que não pode ser amputado, seja pelo legislador, seja pelo
aplicador do direito, de modo que o núcleo essencial traduz o ―limite dos
limites‖, ao demarcar um reduto inexpugnável, protegido de qualquer
espécie de restrição.
Essa discussão não se restringe ao âmbito da teoria jurídica. No
plano do direito internacional, de um lado, segundo o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotado pela Assembléia
Geral das Nações Unidas em 1966 e aprovado pelo Congresso Nacional
do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais tarefas e
obrigações. 322
Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2010, p. 280-281. 323
Ibidem, p. 349. 324
Sarmento, Os princípios constitucionais e a ponderação de bens, 1999, p. 60.
165
brasileiro por meio do Decreto Legislativo n. 226-1991, os direitos civis e
políticos são auto-aplicáveis ao passo que os direitos sociais, econômicos e
culturais são programáticos, sendo direitos que demandam aplicação
progressiva. Isso porque não podem os direitos sociais ser implementados
sem que exista um mínimo de recursos econômicos disponível, um mínimo
standard técnico-econômico, um mínimo de cooperação econômica
internacional, fazendo-se necessária a colocação dos mesmos como uma
prioridade na agenda política nacional. Em outras palavras, o Pacto
conhece os direitos sociais como normas de eficácia limitada. De outro
lado, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais tem enfatizado
o dever dos Estados-parte de assegurar, ao menos, o núcleo essencial
mínimo, o minimum core obligation, relativamente a cada direito
enunciado no Pacto, cabendo aos Estados o dever de respeitar, proteger e
implementar tais direitos325
.
No âmbito do direito constitucional brasileiro, escorreita é a posição
de Barroso326
, ao considerar que ―é puramente ideológica, e não científica,
a resistência que ainda hoje se opõe à efetivação, por via coercitiva, dos
chamados direitos sociais‖. Isso porque o artigo 5º, §1º reconhece a
aplicabilidade imediata de todos os direitos fundamentais, e os direitos
sociais fazem parte desse rol327
. Entretanto, questão outra é conhecer a
325
Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 2006, p. 170. A
respeito do reconhecimento da eficácia dos direitos sociais na jurisdição de outros
Estados, cf. Lima, Efetivação Judicial dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais,
2005. Curtis (2008, p. 489), contra àquela suposição geral de que os direitos
econômicos, sociais e culturais não são justiciáveis, apresenta o argumento relativo à
evidência de quase um século de funcionamento de tribunais do trabalho e de
jurisprudência maciça em área como seguridade social, saúde ou educação perante
tribunais de todas as regiões do mundo. 326
Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição brasileira, 2009, p. 102. 327
Em sentido contrário: ―Participação nos lucros. Art. 7°, XI, da CF. Necessidade de
lei para o exercício desse direito. O exercício do direito assegurado pelo art. 7°, XI, da
CF começa com a edição da lei prevista no dispositivo para regulamentá-lo, diante da
imperativa necessidade de integração. Com isso, possível a cobrança das contribuições
166
extensão, em que medida esses direitos devem ser garantidos, problema
que segue agudo.
O Supremo Tribunal Federal, em relação a essa questão, no
Mandado de Injunção 721-7 Distrito Federal com decisão publicada em 30
de novembro de 2007, admitiu a possibilidade de se tutelar os direitos e
liberdades constitucionais mediante decisão judicial em face da omissão
inconstitucional do Legislativo. O voto do ministro Eros Grau destacou
que, vencido o prazo sem a edição da norma regulamentadora, aqueles cujo
direito não é exercitado por falta de norma e que vêm ao Poder Judiciário
pedir que lhes assegure o exercício do direito, por via de mandado de
injunção, podem ter a garantia do exercício do direito previsto na
Constituição, caso em que o Tribunal, em conhecendo de reclamação,
decide a hipótese concreta328
.
Nesse sentido, é possível concluir que os direitos sociais, por serem
dotados de fundamentalidade e por guardarem estreita relação com o
modelo de Estado adotado pelo constituinte originário no Brasil (o Estado
previdenciárias até a data em que entrou em vigor a regulamentação do dispositivo.‖
(STF, Recurso Extraordinário 398.284, Rel. Min. Menezes Direito, julgamento em 23-
9-2008, Segunda Turma, DJE de 19-12-2008). E também: STF, Recurso Extraordinário
393.764-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 25-11-2008, Primeira Turma,
DJE de 19-12-2008. 328
―Mandado de injunção. Natureza. Conforme disposto no inciso LXXI do art. 5º da
CF, conceder-se-á mandado de injunção quando necessário ao exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania. Há ação mandamental e não simplesmente declaratória de omissão. A carga
de declaração não é objeto da impetração, mas premissa da ordem a ser formalizada.
Mandado de injunção. Decisão. Balizas. Tratando-se de processo subjetivo, a decisão
possui eficácia considerada a relação jurídica nele revelada. Aposentadoria. Trabalho
em condições especiais. Prejuízo à saúde do servidor. Inexistência de lei complementar.
Art. 40, § 4º, da CF. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do
servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos
trabalhadores em geral – art. 57, § 1º, da Lei 8.213/1991.‖ (STF, Mandado de Injunção
n. 721, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 30-8-2007, Plenário, DJ de 30-11-
2007). Nesse mesmo sentido: STF, Mandado de Injunção n. 795, Rel. Min. Cármen
Lúcia, julgamento em 15-4-2009, Plenário, DJE de 22-5-2009; STF, Mandado de
Injunção n. 788, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 15-4-2009, Plenário, DJE de 8-
5-2009.
167
Social e Democrático de Direito), devem ser considerados como
diretamente aplicáveis e dotados de máxima eficácia. No entanto, como
ocorre com qualquer princípio constitucional é imperioso reconhecer a
necessidade de se ponderar os princípios definidores de direitos socais com
outros princípios constitucionais, observados os parâmetros materiais
abaixo indicados. De todo modo, portanto, há direitos originários a
prestações fáticas na Constituição Federal329
que não dependem,
necessariamente, da interpositio legislatoris, embora possam sofrer
restrições pelo legislador (eficácia contida), desde que não se trate de um
direito definitivo (por exemplo, jornada máxima de trabalho) ou do núcleo
essencial de um direito (por exemplo, educação básica).
3.4.3 Parâmetros para a judicialização dos direitos sociais
Os direitos sociais são garantidos em normas com estrutura de
princípios ou de regras. Quando há determinação de condutas específicas a
serem adotadas pelo Estado ou terceiros (direitos sociais como direitos de
defesa), existe a consagração de uma regra definidora de direito social.
Caso seja uma norma com conteúdo finalístico, apontando para um estado
ideal de coisas, tem-se um princípio. Dos diversos enunciados normativos
especialmente do artigo 7º da Constituição Federal podem ser extraídas
regras como aquela que determina a jornada máxima de trabalho ou que
impõe a remuneração do repouso semanal. São direitos subjetivos
definitivos, que devem ser garantidos, salvo exceções admitidas pela
própria Constituição. No entanto, direitos sociais, como o direito à moradia
329
―Afirma-se a existência de direitos originários a prestações quando: (1) a partir da
garantia constitucional de certos direitos (2) se reconhece, simultaneamente, o dever do
Estado na criação dos pressupostos materiais indispensáveis ao exercício efectivo desses
direitos; (3) e a faculdade de o cidadão exigir, de forma imediata, as prestações
constitutivas desses direitos‖ (CANOTILHO, 1993, p. 543).
168
ou educação, são direitos subjetivos apenas prima facie, uma vez que
podem ser ponderados com outros princípios constitucionais, como o
princípio da liberdade. O resultado da ponderação, no entanto, é uma regra
que estabelece um direito definitivo para todas as situações semelhantes.
Essa regra opera como restrição a direito fundamental330
.
Contudo, falar em ponderação desacompanhada de standards que a
estruturem e limitem pode dar origem a uma ―caixa preta‖, da qual o
intérprete pode extrair qualquer solução, convertendo-se em puro
decisionismo331
. Por essa razão, a referida ponderação entre princípios, que
possibilita a concretização judiciária dos direitos sociais, deve observar
alguns parâmetros materiais.
Em primeiro lugar, deve ser reconhecida a limitação do Judiciário
em sua atuação perante pedidos envolventes de direitos sociais. Seria
impossível ou indesejável atribuir ao Judiciário a possibilidade garantir a
concretização de todos os direitos sociais em toda a sua amplitude. Sua
atuação deve limitar-se à garantia das condições necessárias para que cada
um possua igual possibilidade de realizar um projeto razoável de vida
(autonomia privada) e de participar do processo de formação da vontade
coletiva (autonomia pública)332
.
Como segundo parâmetro, a atuação do Judiciário deve ser
restringida aos hipossuficientes. Nessa direção, é afirmado que os direitos
sociais a prestações somente podem ser exigidos judicialmente na medida
em que seus titulares são incapazes de arcar com os seus custos com
recursos próprios, sem inviabilizar a garantia de outras necessidades
básicas333
.
330
Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, 2008, p. 283. 331
Sarmento, A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-
jurídicos, 2008, p. 568. 332
Souza Neto, A justiciabilidade dos direitos sociais: alguns parâmetros, 2008, p. 535. 333
Ibidem, p. 539.
169
No terceiro lugar, aponta-se o reconhecimento da unidade de seu
sistema, isto é, da relação que o direito mantém com o restante dos direitos
sociais também garantidos pela ordem constitucional brasileira. Em
diversos contextos, os direitos sociais são intercambiáveis. Verbi gratia, se
um indivíduo está desempregado, sem condições de ver supridas
necessidades relacionadas à saúde, alimentação, educação, o Judiciário, ao
invés de determinar a abertura de um posto de trabalho, deve assegurar
prestações públicas de cunho assistencial necessárias à garantia da
dignidade humana. Desse modo, o Judiciário não deve observar cada
direito social particularmente, mas como unidade334
.
Pode-se apontar também como parâmetro o nível de investimento
da Administração Pública em políticas sociais. Nesse sentido, se há
investimentos consistentes em direitos sociais, sendo o orçamento
executado de modo efetivo, o Judiciário deve ser menos incisivo no
controle das políticas no setor. Isto é, havendo priorização pelos governos
da garantia de direitos sociais, é reforçada a presunção de
constitucionalidade de suas opções orçamentárias. No entanto, na medida
em que a Administração não realiza semelhante tarefa, o controle
jurisdicional deve ser mais intenso335
.
334
Ibidem, p. 541. 335
Ibidem, p. 542-543. Em semelhante sentido: ―Ação direta de inconstitucionalidade
por omissão em relação ao disposto nos arts. 6º, 23, V; 208, I; e 214, I, da Constituição
da República. Alegada inércia atribuída ao Presidente da República para erradicar o
analfabetismo no País e para implementar o ensino fundamental obrigatório e gratuito a
todos os brasileiros. Dados do recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística demonstram redução do índice da população analfabeta, complementado pelo
aumento da escolaridade de jovens e adultos. Ausência de omissão por parte do chefe
do Poder Executivo Federal em razão do elevado número de programas governamentais
para a área de educação. A edição da Lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional) e da Lei 10.172/2001 (Aprova o Plano Nacional de Educação)
demonstra atuação do Poder Público dando cumprimento à Constituição. Ação direta de
inconstitucionalidade por omissão improcedente.‖ (STF, Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 1.698, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 25-2-2010,
Plenário, DJE de 16-4-2010).
170
Um quinto parâmetro para a concretização dos direitos sociais é
aquele da possibilidade de universalização da medida. Isso significa que
um determinado quantum de um direito social somente pode ser exigido
quando a prestação puder ser universalizada em relação a todos os que não
podem arcar com os seus custos, observados os parâmetros anteriores. A
judicialização dos direitos sociais deve observar o tratamento igual, isto é,
uma medida que não pode ser aplicada a todos os que se encontram na
mesma situação deve ser vedada. Enfim, a prestação deve ser
universalizável336
.
Esse standard é conhecido também como a reserva do possível
fática. A expressão ―reserva do possível‖ foi difundida a partir de uma
decisão da Corte Constitucional Alemã em 1972 (BVerfGE 33.303),
conhecida como Numerus Clausus, que tratou da validade da limitação do
número de vagas nas universidades públicas diante da pretensão de
ingresso de um número maior de candidatos. A Corte reconheceu que o
direito à educação se encontra sob a reserva do possível, no sentido de
estabelecer o que poderia o indivíduo razoavelmente exigir da sociedade337
.
Na jurisdição constitucional brasileira, o referido conceito já foi ventilado
na decisão monocrática do ministro Celso Mello em sede de Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, mas para restringir sua
aplicabilidade, ao consignar que:
336
Souza Neto, A justiciabilidade dos direitos sociais: alguns parâmetros, 2008, p. 540.
Para Lopes (2010, p. 159-162), o problema da escassez dos recursos não pode ser
tratado com indiferença pelo Judiciário. Já expressava o brocardo romano que
―impossibilium nulla obligatio est”, isto é, ninguém é obrigado ao impossível. O que se
deve considerar, no entanto, não é a impossibilidade empírica plena, mas sim a
impossibilidade econômica técnica, também conhecida como a escassez de recursos.
Bens escassos são aqueles que não podem ser usufruídos por todos, de modo que,
embora existam condições para sua criação, por motivos variados, a provisão do bem
não pode ser feita sem o sacrifício de outros bens. Starck (2009, p. 287) também
reconhece o problema da escassez natural dos objetos das pretensões como um limite de
todo direito fundamental social. 337
Sarmento, A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-
jurídicos, 2008, p. 569.
171
A cláusula da reserva do possível – ressalvada a ocorrência de
justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada,
pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento
de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa
conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou,
até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados
de um sentido essencial de fundamentalidade338
.
Observa-se que a reserva do possível poderia ser invocada, embora
não para afastar plenamente o cumprimento de uma obrigação
constitucional. Do ponto de vista processual, a reserva do possível é
matéria de defesa, tendo o Estado o ônus da prova de demonstrar que a
concessão de determinada prestação deve ser limitada pela reserva do
possível, por ser impossível sua universalização339
. A esse respeito, veja-se
a decisão do Superior Tribunal de Justiça, ao descartar o argumento
meramente hipotético da reserva do possível:
... não há como concluir que o fornecimento do medicamente a
uma única paciente possa causar lesão de conseqüências
significativas e desastrosas à economia do Estado de São Paulo.
Destaco, ainda, que o efeito multiplicador alegado como
justificativa ao pedido de suspensão é meramente hipotético, não
tendo a postulante trazido qualquer indício de que, animadas pela
decisão recorrida, tenham sido ajuizadas outras ações com igual
pretensão340
.
338
STF, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45-DF, 29 abr. 2004,
Min. Celso Mello. Segundo Wang (2010, p. 359), a partir de 2007, em relação ao direito
à saúde, o Supremo Tribunal Federal, conforme a tendência apontada pelo julgamento
da ADPF 45, vem reconhecendo que os custos dos direitos, em um contexto de escassez
de recursos, pode ser uma limitação à proteção judicial de direitos, embora ainda não
seja possível afirmar a uniformidade da aplicação dos critérios a todos os casos. 339
Sarmento, A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-
jurídicos, 2008, p. 572. Sarlet e Figueiredo (2010, p. 33) acompanham o entendimento
de que a impossibilidade material para a tutela do direito social, diante da previsão do
artigo 5º, §1º da Constituição Federal, deve ser comprovada pelo poder público. 340
STJ, Suspensão de Segurança n. 1.408-SP, 08 set. 2004, Min. Edson Vidigal. Sobre a
necessidade de comprovação da impossibilidade, veja-se: ―Tratando-se de direito
fundamental, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico
para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos
planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação
172
O parâmetro da possibilidade de universalização da prestação,
portanto, pode ser considerado quando da ponderação de princípios341
.
Mas, não há que se falar em mera presunção de impossibilidade fática de
concretização do direito social. Compete à Administração Pública
demonstrar a existência de ações judiciais requerentes de prestações fáticas
de mesma natureza e que é impossível atender a todas elas em sua
plenitude. Isso, todavia, não exclui o dever da Administração de prover o
máximo possível a cada jurisdicionado, conferindo tratamento
igualitário342
.
Desse modo, os direitos sociais, como quaisquer outros direitos,
devem ser realizados na maior medida possível, diante das condições
fáticas e jurídicas presentes343
. Ressalva-se, todavia, que embora o
conteúdo dos direitos sociais a prestações não possa ser limitado à garantia
do mínimo existencial, quando este estiver em discussão, a reserva do
possível, embora seja um dos fatores na ponderação, não pode constituir
objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal‖ (STJ, Recurso
Especial n. 1.136.549-RS AgRg, Rel. Min. Humberto Martins, DJ 21-06-2010). 341
A respeito da relação entre princípios e a reserva do possível, veja-se a lição de
Canotilho (1993, p. 534): ―princípios são normas que exigem a realização de algo, da
melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os
princípios não proibem, permitem ou exigem algo em termos de ‗tudo ou nada‘;
impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a ‗reserva
do possível‘, fáctica ou jurídica. Assim, por ex., quando no art. 47.° da CRP se garante a
liberdade de escolha de profissão ‗salvas as restrições legais impostas pelo interesse
colectivo ou inerentes à sua própria capacidade‘, deparamos já com uma dimensão
principal: a liberdade de escolha não se impõe em termos absolutos, dependendo de
condições fácticas ou jurídicas (assim, um jovem invisual pode ter acesso à
Universidade para obter a licenciatura em direito, mas pode já existir a ‗não
possibilidade‘, em virtude da sua deficiência física, de acesso ao curso de medicina)‖. 342
É interessante notar que a reserva do possível, embora constitua uma espécie de
limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, pode atuar também, em determinadas
circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de
conflito de direitos, quando da indisponibilidade de recursos com o intuito de preservar
o conteúdo essencial de outro direito fundamental (SARLET, 2009, p. 238). 343
Silva [Virgílio Afonso da], Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia, 2010, p. 205.
173
um obstáculo à sua garantia, isto é, à garantia das condições minimamente
necessárias para a vida digna344
.
Com efeito, o critério da universalidade apresenta uma importante
razão que torna dificultosa a justiciabilidade dos direitos sociais: o caráter
prioritariamente coletivo desses direitos. Embora existam direitos sociais
de titularidade individual, a realização desses direitos deve ser priorizada
quando a tutela puder ocorrer coletivamente, para que haja tratamento
igualitário345
.
344
Sarlet; Figueiredo, Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde:
algumas aproximações, 2010, p. 36. No mesmo sentido, STF, Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45-DF, 29 abr. 2004, Min. Celso Mello
(citada anteriormente). 345
Silva [Virgílio Afonso da], Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia, 2010, p. 243. Sob o ponto de vista de uma análise econômica do direito (Law
and Economics), se é verdade que se deve procurar uma interpretação que garanta ao
máximo o respeito aos direitos fundamentais, por outro lado, isso não significa uma
leitura de curto prazo, que não reflete sobre o futuro. A realidade orçamentária não pode
ser compreendida como peça de ficção. O desperdício de recursos públicos, em um
universo de escassez, gera injustiça com aqueles potenciais destinatários aos quais tais
recursos deveriam atender. Nesse sentido, a ponderação de princípios não pode se dar
apenas por meio de um método retórico-discursivo, mas deve haver também uma
ponderação concreta, comprometida não só com a disputa argumentativa (o melhor
argumento apresentado), mas também com o resultado. Para tanto, a ciência econômica
pode oferecer importantes contribuições para o intérprete e aplicador do direito. Uma
delas é a consideração da decisão judicial sob a perspectiva da eficiência. Esta significa
a aptidão para obter o máximo ou o melhor resultado ou rendimento, com a menor perda
ou o menor dispêndio de esforços. Busca-se, portanto, o ótimo, evitando desperdícios,
de modo que a solução deve buscar atender de modo mais abrangente um maior número
de pessoas necessitadas dos recursos sociais. Processualmente, o meio mais adequado
para tanto são as ações coletivas, porquanto os direitos não devem ser apropriados por
um indivíduo em prejuízo de toda a sociedade (TIMM, 2010, p. 53-61). No entanto, sob
o ponto de vista de uma teoria dos sistemas, a necessidade de o juiz levar em
consideração elementos do sistema político ou econômico pode representar o
enfraquecimento da função do sistema jurídico, uma vez que haverá a corrupção de seu
código binário (lício-ilícito). Isso porque o direito passaria a ser utilizado para resolver
problemas para os quais seu código não pode oferecer respostas ou é absolutamente
inadequado (CAMPILONGO, 2002, p. 99-100). Ressalta-se, todavia, que é possível
examinar o problema da escassez sem que se recorra a análises próprias da economia ou
política. Trata-se do exame de razoabilidade e proporcionalidade. Razoabilidade indica
a qualidade de razoável, adjetivo de raiz latina derivado da palavra razão (ratio), sendo
alguns de seus significados: logicamente plausível, racional, aceitável pela razão,
ponderado e sensato. A seu turno, o princípio da proporcionalidade determina a análise
do equilíbrio entre meios e fins, especialmente no tocante à adequação dos meios tendo
174
Além da modalidade fática da reserva do possível, pode-se
mencionar também a reserva do possível jurídica. Esta não se refere à
possibilidade de universalização da medida, mas se identifica com a
existência de embasamento legal para que o Estado incorra nos gastos
necessários à satisfação do direito social reclamado. O ponto central da
discussão diz respeito ao papel do Judiciário diante da insuficiência das
verbas previstas na lei orçamentária frente ao princípio da legalidade da
despesa346
.
A argumentação pode ser polarizada na medida em que se
reconhece, de um lado, que é papel do legislador a alocação dos recursos
pelo fato de possuir a melhor visão de conjunto das inúmeras necessidades
da sociedade que carecem de recursos para a sua satisfação, e de outro, que
o juiz não deve se preocupar com a existência ou inexistência de previsão
orçamentária para a realização de despesas atreladas a direitos sociais, pois
em vista a aptidão para atingirem determinadas finalidades. Para Humberto Ávila (2009,
p. 152), a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais
com as individualidades do caso concreto. Enquanto a razoabilidade foi incorporada nos
ordenamentos pela influência da rule of reasonableness, de origem inglesa, que se
sedimentou na criação norte-americana do devido processo legal substantivo, a
proporcionalidade é postulado extraído das construções jurisprudenciais do Tribunal
Constitucional alemão depois do período do nacional-socialismo e da Lei Fundamental
de Bonn, que dissociou o conceito em três subelementos constitutivos, quais sejam:
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Adequação denota
ponderação de aptidão que o meio escolhido tem para alcançar o resultado pretendido.
Por necessidade ou exigibilidade entende-se a indagação acerca do grau de restrição do
meio escolhido em relação aos demais direitos fundamentais. Proporcionalidade em
sentido estrito envolve a razoável proporção no equilíbrio ou ponderação entre bens e
valores, ou seja, entre a limitação do direito e a gravidade da situação fática. O exame
de proporcionalidade, segundo Sarlet (2003, p. 24-25), de um lado, considera que o
poder público não pode afetar de modo desproporcional um direito fundamental,
prejudicando-o excessivamente (proibição de excesso); de outro, não pode atuar de
modo insuficiente, não implementando adequadamente os deveres de proteção
(proibição de insuficiência). Nesse sentido, o princípio da proporcionalidade opera
como critério de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos
fundamentais, especialmente dos direitos sociais, uma vez que a garantia de prestações a
um indivíduo não pode resultar em restrições excessivas nos direitos de outro. 346
Sarmento, A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-
jurídicos, 2008, p. 573.
175
se trata de efetivação de direitos já consagrados constitucionalmente347
(―Fiat iustitia et pereat mundus‖)348
.
Esses dois pólos apresentam conclusões extremadas, e como tal
inadequadas, pois, embora seja necessária a previsão orçamentária, é
também necessária a garantia dos direitos fundamentais e inafastável a
tutela jurisdicional diante de sua lesão ou ameaça de lesão, de modo que se
propõe uma solução intermediária.
Para Sarmento349
, a ausência de previsão orçamentária é um
elemento que deve comparecer na ponderação de interesses, embora não
seja definitivo, porquanto na ponderação o mesmo pode ser superado de
acordo com as particularidades do caso. Tal opinião é considerada
apropriada, haja vista que, embora deva ser levada em consideração a
estratégia legislativa, a efetividade dos direitos sociais previstos na
Constituição não poderia ser sujeitada à vontade do legislador
infraconstitucional ou do administrador, por serem considerados como
direitos fundamentais e por constituírem a base para o exercício dos
direitos civis e políticos, ou seja, para existência da própria democracia,
para a legitimação do Poder Legislativo e da Administração Pública.
Ressalva-se, porém, que a atividade do Judiciário somente é
constitucionalmente adequada se, além da verificação de que uma ação
347
No último sentido já se manifestou o ministro Celso de Mello ao julgar Agravo
Regimental em Recurso Extraordinário, ao afirmar que ―a falta de previsão
orçamentária não deve preocupar o juiz... mas apenas o administrador... entre proteger a
inviolabilidade do direito à vida e à saúde... ou fazer prevalecer, contra esta prerrogativa
fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado,... razões de ordem ética-
jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção‖ (STF, Recurso Extraordinário
273.834-RS, DJ 02 fev. 2001, Min. Celso de Mello). 348
Do latim, ―faça-se justiça ainda que pereça o mundo‖. 349
Sarmento, A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-
jurídicos, 2008, p. 573-574.
176
estatal possa promover um direito fundamental social à prestação, haver
também infundada omissão350
.
De todo modo, um argumento baseado exclusivamente na
separação de poderes, o ―mito de Montesquieu‖351
, não pode ser um óbice à
atuação do Judiciário como garantidor dos direitos fundamentais, uma vez
que, no marco da Constituição de 1988, cabe ao Judiciário o controle das
ações do Legislativo e da Administração, especialmente no que diz com a
implementação dos direitos material e formalmente reconhecidos como
direitos fundamentais.
350
Silva [Virgílio Afonso da], Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia, 2010, p. 251. 351
Silva [Virgílio Afonso da], O Judiciário e as Políticas Públicas entre transformação
social e obstáculo à realização dos direitos sociais, 2008, p. 589. Sobre o tema: ―Não
podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de
fundamental importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade
administrativa. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos
poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos
fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos
direitos sociais, igualmente fundamentais‖ (STJ, Recurso Especial n. 1.136.549-RS
AgRg, Rel. Min. Humberto Martins, DJ 21-06-2010). Semelhantemente: ―É certo que
não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder
Judiciário – e nas desta Suprema Corte em especial – a atribuição de formular e
implementar políticas públicas, pois nesse domínio, o encargo reside, primeiramente,
nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência no entanto, embora em
bases excepcionas, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos
estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre
eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e
integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura
constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo
programático‖ (STF, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45-DF,
29 abr. 2004, Min. Celso Mello).
177
CONCLUSÃO
Ao final deste percurso, é possível apontar algumas considerações
conclusivas:
1. Da investigação histórica precedentemente desenvolvida,
pôde-se precisar o significado histórico dos direitos civis, políticos, sociais
e de solidariedade. Após a investigação do surgimento de tais direitos na
modernidade, observa-se que os mesmos foram sendo afirmados ao longo
dos séculos passados, incorporando-se ao patrimônio comum das nações,
sendo de grande relevância as formulações filosófico-políticas,
especialmente de inclinação jusnaturalista, bem como as manifestações
sociais. São direitos que foram considerados como sendo essenciais para a
vida humana com dignidade.
2. De uma perspectiva teórico-jurídica, os direitos fundamentais
consistem no conjunto de posições jurídicas atribuídas a todos os
indivíduos ou categoria de indivíduos, as quais lhes conferem a proteção
especial de determinados bens jurídicos considerados essenciais, visando a
concretização da dignidade da pessoa.
3. Na Constituição Brasileira de 1988, os direitos fundamentais
são enunciados de forma sistemática nos cinco capítulos do Título II, não
excluindo o reconhecimento de outros direitos fundamentais no texto
constitucional, ou decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte. Esses direitos estão previstos em normas de aplicabilidade imediata,
que, quando consagradoras de direitos e garantias individuais e do voto, são
protegidas contra emendas constitucionais tendentes à sua abolição. Estão
na base do ordenamento jurídico, vinculado todos os indivíduos, todas as
178
organizações, todos os agentes públicos e todas as outras normas,
prevalecendo no caso de conflito.
4. Os direitos fundamentais podem ser classificados, pelos
menos, a partir de quatro critérios, a saber: conteúdo, titularidade, posições
jurídicas e surgimento histórico. Quanto ao conteúdo, os direitos
fundamentais podem ser classificados como civis, políticos, econômicos,
sociais, culturais e de solidariedade. Em relação à titularidade, são direitos
individuais, coletivos e difusos. No que diz com as posições jurídicas,
podem pertencer ao status passivo (status subiectionis), ao status negativo
(status libertatis), ao status positivo (status civitatis) e ao status ativo
(status da cidadania ativa). A respeito do surgimento histórico, os direitos
fundamentais podem ser classificados sob a perspectiva da teoria das
gerações de direitos (primeira, segunda, etc.).
5. A Constituição vigente adota mais de um critério para a
sistematização dos direitos fundamentais. No Capítulo I do Título II, o
critério é o da titularidade (individuais e coletivos), enquanto que os
Capítulos II e IV utilizam o critério do conteúdo (direitos sociais e
políticos).
6. Em relação à estrutura normativa dos direitos fundamentais,
foi visto que os enunciados normativos, as normas e os direitos se
relacionam do seguinte modo: o significado do enunciado normativo,
construído pelo intérprete, configura as normas, com estrutura de princípios
ou de regras, e estas, por sua vez, definem os direitos.
7. A respeito do conceito das normas de direitos fundamentais,
foi visto que as normas de direitos fundamentais são conceituadas como
aquelas normas expressas por disposições de direitos fundamentais; e
disposições de direitos fundamentais são os enunciados presentes no texto
da Constituição como tais.
179
8. As normas de direitos fundamentais assumem a estrutura de
princípios ou de regras. Os princípios são considerados como normas que
estabelecem finalidades com vistas a promover a realização de um estado
de coisas, que são complementares entre si (caráter prima facie) e que
vinculam condutas na medida em que estas sejam consideradas como
necessárias para a consecução do fim almejado pela norma. De seu turno,
as regras são definidas como normas que descrevem uma conduta a ser
praticada, com pretensão de decidibilidade, exigindo-se para sua aplicação
a avaliação da correspondência e a observância dos princípios que lhes
fundamentam.
9. Em relação ao procedimento da ponderação, pode-se concluir
que o mesmo é utilizado tanto na fase de interpretação quanto de aplicação
da norma. Na definição das normas (interpretação), ocorre a consideração
do peso das razões e contra-razões, isto é, a ponderação de razões, em
função da vagueza dos enunciados normativos, e isso em relação tanto às
regras (que descrevem de modo imediato comportamentos) quanto aos
princípios (que fixam um estado de coisas a ser perseguido). Entretanto, no
momento da aplicação, a eleição da norma a ser aplicada exige, para os
princípios, que sejam considerados em conjunto os que são pertinentes ao
caso (por não terem caráter absoluto, mas apenas prima facie), criando-se
uma nova norma com caráter de regra que regulará o caso específico e
todos os casos que guardem as mesmas características. Para as regras,
exige-se que seja verificado se há alguma exceção (seja por regras
expressamente previstas ou advindas da ponderação de princípios), para
então ser aplicada sua disciplina.
10. Na verdade, trata-se, então, sempre de aplicação de uma regra.
O que muda é o processo de seu reconhecimento, isto é, se resulta apenas
da ponderação de princípios, em que não há um enunciado normativo
específico que a preveja, ou de uma regra extraída de um enunciado
180
normativo específico, interpretada de modo sistemático (considerando-se as
exceções previstas e aqueles advindas da ponderação de princípios). Assim,
os princípios são sempre aplicados de modo mediato, pois dependem da
regra que resultará da ponderação, e as regras aplicadas de modo imediato.
É importante ressaltar que não se trata aqui da eficácia das normas, mas
sim das conseqüências da colisão entre princípios, não se afirmando a
necessidade de criação pelo legislador de um enunciado normativo que
contenha uma regra específica (interpositio legislatoris). É mediato o seu
caráter por depender do procedimento da ponderação. Enfim, a discussão
principiológica, diante da colisão, é sempre na fase interpretativa. É da
ponderação resulta a regra que será aplicada.
11. Em relação à eficácia das normas de direitos fundamentais, foi
reconhecido que podem ser de eficácia plena, contida e limitada. As
normas de eficácia plena são caracterizadas por serem de aplicabilidade
direta, imediata e integral. As normas de eficácia contida são aquelas de
aplicabilidade direta, imediata, mas possivelmente não integral. As normas
constitucionais de eficácia limitada têm a eficácia reduzida e se subdividem
em normas declaratórias de princípios institutivos ou organizativos e de
princípios programáticos, as quais dependem do legislador
infraconstitucional para serem aplicadas
12. Na Constituição, a aplicabilidade imediata é conferida a todos
os direitos fundamentais, e não apenas às liberdades públicas ou direitos
político, bem como a direitos não expressamente consagrados.
13. No tocante ao efeito da reserva de lei sobre a eficácia da
norma definidora de direito fundamental, entende-se que não pode ser
torná-la de eficácia limitada, o que resultaria em sua aplicabilidade
mediata. É apenas a possibilidade jurídica criada pelo constituinte para a
restrição, e não uma restrição em si, competindo ao judiciário fixar os
critérios para sua aplicação até a edição da lei, não podendo a inércia
181
legislativa obstar o gozo de um direito previsto em norma definidora de
direito fundamental.
14. Em relação aos direitos sociais, inicialmente foi mencionado
que podem ser definidos como os direitos do indivíduo, em face do Estado,
a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros suficientes e se
houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia também obter de
particulares. No entanto, essa definição não abrange todos os direitos
sociais. Existem duas grandes categorias de direitos sociais: aqueles que
regulam a relação entre particulares (direitos de defesa) e aqueles que
conferem o direito subjetivo a prestações fáticas. Aquela definição presta-
se apenas para esta última classe de direitos sociais.
15. A despeito das críticas doutrinárias relacionadas à necessidade
de prestações fáticas pelo Estado, em especial as teses da perversidade, da
futilidade e da ameaça, pode-se afirmar a função social das normas
definidoras de direitos sociais, voltadas para a promoção da eliminação das
desigualdades fáticas, que pode ser verificada em textos constitucionais na
medida em que o constituinte não apenas impõe determinações negativas à
efetivação da igualdade, mas também consagra imposições positivas que
vinculam o legislador.
16. No tocante à fundamentalidade dos direitos sociais, esta deve
ser reconhecida, pois esses direitos conferem legitimidade ao Estado, ao
possibilitar o exercício das liberdades públicas e a existência de real
democracia, e porque são dotados de elevada importância para a satisfação
das necessidades humanas básicas e, assim, para assegurar a dignidade da
pessoa humana.
17. Do texto da Constituição da República de 1988 são extraídas
normas definidoras de direitos sociais, os quais são formalmente
reconhecidos como direitos fundamentais. Alguns enunciados normativos
não trazem direitos juridicamente exigíveis, mas tão somente objetivos.
182
Mesmo nesses casos, há o reconhecimento de efeitos imediatos (proteção
negativa, igual proteção e não discriminação) e relativos à realização
progressiva dos direitos (vedação do retrocesso). Entretanto, outros textos
claramente prevêem prestações positivas como direitos, ainda que exista
certa indeterminação quanto à medida de cada direito. A Constituição
confere a estes conteúdos de caráter social a natureza de direitos subjetivos,
isto é, que podem ser exigidos pelos indivíduos ou categorias em face do
Estado.
18. As normas de direitos sociais que possuem a estrutura de
princípios são de eficácia contida. A limitação do conteúdo a ser garantido
se dá, enquanto não editadas leis que as regulamente, pela ponderação de
princípios, de cujo procedimento é extraída uma regra. A ponderação de
princípios deve ser orientada pelos parâmetros materiais para a
judicialização dos direitos sociais, quais sejam: o reconhecimento da
limitação da atuação do judiciário; as prestações devem ser destinadas em
especial aos hipossuficientes; a unidade do sistema de direitos sociais; o
nível de investimento da Administração Pública em direitos sociais; e, a
possibilidade de universalização das prestações.
19. Esses parâmetros podem ser compreendidos, de um lado,
como a fundamentação constitucional para a restrição do direito social a
fim de justificar a inércia ou a insuficiência estatal diante da garantia plena
de um direito social, ou, de outro, os parâmetros operam como o
fundamento para o reconhecimento da inconstitucionalidade da omissão
estatal. Há que se ver, portanto, se há ou não há fundamento constitucional
para a omissão estatal.
20. Em suma, se uma ação estatal que fomenta a realização de um
direito fundamental social não for praticada, e essa inércia ou insuficiência
estatal em relação à ação requerida não é justificada constitucionalmente,
então a conseqüência jurídica deve ser o dever de realizar tal ação, sendo o
183
quantum da prestação definido a partir da ponderação de princípios,
observados os parâmetros mencionados.
184
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