das cenas urbanas aos territórios virtuais -...
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Das Cenas Urbanas aos Territórios Virtuais
consumo, experiência e materialidades sonoras nas cenas musicais.
Coordenação: Simone Pereira de Sá (UFF)
RESUMO DA MESA
A mesa tem por objetivo central a reflexão em torno da noção de cena musical e seus desdobramentos, abordando criticamente a noção e discutindo sua produtividade a partir de estudos de caso que traduzam articulações específicas envolvendo experiências estéticas e afetos compartilhados tanto quanto práticas sociais de transformações e apropriação de espaços urbanos e virtuais. Desta maneira, interessa-nos refletir sobre como o termo envolve diferentes encaixes de experiências diante da música e de suas aplicações a agrupamentos musicais específicos, tais como a cena da nova música instrumental e a cena do metal no Brasil.
De maneira ampla, a mesa pretende contribuir para uma compreensão dos aspectos antropológicos, sociais, mercadológicos e materiais presentes nas cenas musicais e sua aplicabilidade como ferramenta de análise dos processos comunicacionais da música popular massiva
PALAVRAS-CHAVE: Cena Musical 1, Materialidade 2, Experiência 3, Consumo 4 e Música
Popular Massiva 5.
SUMÁRIO
Resumo da mesa ...................................................................................
01
I Cenas musicais: nas cidades e no ciberespaço, a trajetória de um conceito Simone Pereira de Sá
02
II A cidade não para a cidade só cresce: a relevância das cenas musicais e da experiência estética na urbe em tempos de identidades musicais globalizadas Jeder Janotti Jr
15
III “Bom para bandas novas e ruim para as reconhecidas?” Continuidades e Rupturas na cena do metal nacional na era dos downloads Malina Aparecida dos Santos Silva
30
IV Perto e longe das capitais: a cena (descentralizada) da nova música instrumental brasileira Victor de Almeida Nobre Pires
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- I -
CENAS MUSICAIS
Nas cidades e no ciberespaço, a trajetória de um conceito1
Simone Pereira de Sá2
Universidade Federal Fluminense
RESUMO:
O trabalho discute a noção de cena musical, proposta pelo pesquisador Will Straw, retomando
a trajetória do debate cujo contexto mais amplo é o da discussão proposta pelos pesquisadores
do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos (CCCS) de Birminghan sobre os
agrupamentos juvenis e seus desdobramentos críticos nos anos 90.De maneira geral, buscou-
se destacar algumas linhas de articulação entre diferentes interlocutores da discussão ao
mesmo tempo que sua rentabilidade epistemológica para o estudo da dimensão comunicativa
das práticas musicais da atualidade.
Palavras-chave: 1-cenas musicais;2- Will Straw;3- espaços urbanos; 4- ciberespaço; 5- mídias
1 - Cenas Musicais: a origem
A discussão de Will Straw sobre a noção de cena musical inaugura-se por ocasião de
uma conferência intitulada “The Music Industry in a Changing World”, realizada no outono
de 1990 e publicada como uma coleção de artigos no periódico “Cultural Studies”.
O cenário do “mundo em mudanças” de 1990 é o contexto mais amplo das duas
últimas décadas do século passado, sintetizado a partir da palavra-chave globalização.
Momento que, como se sabe, os fluxos internacionais de comércio, cultura, migrações e
1 Trabalho integrante da Mesa Das Cenas Urbanas aos Territórios Virtuais apresentada durante o IV Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 15 a 17 de agosto de 2012, na Escola de Comunicação e Artes da USP, São Paulo/SP.Versão deste trabalho, intitulada: “Will Straw: cenas musicais, sensibilidades, afetos e a cidade” foi publicada na coletânea: Comunicação e Estudos Culturais, organizada por Jeder Janotti Jr e Itania Maria Mota Gomes (EDUFBA; 2011) 2 Coordenadora e professora do Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e professora também do curso de Mídia da mesma instituição; coordenadora do LabCult – Laboratório de Pesquisa em Culturas Urbanas e Tecnologias da Comunicação. Pesquisadora do CNPq. E-mail: sibonei.sa@gmail.com Link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/6382966782640472
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mídias intensificam-se, rearticulando as culturas locais entre si e com o mundo global; e, ao
mesmo tempo, problematizando sobremaneira noções fundadoras da modernidade, tais como
as de Estado-nação, das comunidades com laços estabelecidos a partir de bases territoriais e
das identidades (um pouco) mais fixas ou estáveis.
O mesmo trabalho vai ser também incluído, numa versão mais sintética, na coletânea
“The Subculture Reader” organizada por Ken Gelder & Sarah Thornton alguns anos depois,
em 1997. De novo, a menção ao contexto não é casuística.Pois, na esteira do leit-motif acima
mencionado da globalização, a década de 90 vai ser marcada também, no âmbito da reflexão
sobre as culturas juvenis, pela revisão crítica da noção de subcultura, oriunda dos seminais
estudos culturais de Birminghan sistematizados em obras tais como Subcultural Conflict and
Working Class Community (Cohen; 1972) Resistance through rituals (Hall & Jefferson;
1976); Profane Culture (Willis, 1978) e Subculture: the meaning of style (Hebdige, 1979).
Estes estudos, ancorados nos pilares que sustentaram o debate do CCCS a partir das
noções de hegemonia, de Gramsci; de ideologia, de Althusser e ainda da cultura como prática
e lugar de disputa na produção de significados, de Williams, vão dar um novo fôlego aos
estudos sobre os grupamentos juvenis.
Pois, partindo desta perspectiva, os diversos trabalhos dedicam-se às (sub) culturas
espetaculares dos jovens ingleses da classe trabalhadora – tais como skinheads, punks, mods –
analisadas a partir da sua relação mais ou menos “resistente” a partir do consumo de música,
roupas e outros símbolos identitários; ao mesmo tempo que a partir do grau de autonomia que
eles mantém dos valores de sua comunidade, representadas pela cultura parental e pela classe
trabalhadora.3
Com a distância que nos permite reconhecer a importância destes estudos para a
consolidação da noção de juventude como categoria sociológica; mas também seus limites,
entendemos a coletânea organizada por Thornton & Gelder como um bom documento de
época, ao colocar lado a lado os antecedentes do CCCS nos estudos das subculturas, com
destaque para expoentes da Escola de Chicago (na parte 1); os expoentes da tradição de
Birminghan (na parte 2); e as revisões e contestações a estes pressupostos, que ganham
generoso espaço nas partes subseqüentes do trabalho (parte 3 a 7)
Dentre os esforços revisionistas, que reúnem críticas oriundas de ambientes
intelectuais heterogêneos, interessa-nos mencionar a perspectiva que aposta no fim dos 3 No âmbito brasileiro, recomendo os trabalhos de Freire Filho (2007) e de Garson (2009), que discutem com riqueza de detalhes estas posições, contextualizando historicamente o debate.
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processos de rotulação e das demarcações identitárias rígidas, uma vez que elas incidem de
maneira muito influente nos estudos sobre música eletrônica, em especial sobre a cultura
clubber e/ou das raves.4
Assim, também bebendo nas águas de autores muito diversos tais como a perspectiva
do simulacro de Baudrillard, a sociologia formista de Mafesolli ou o método genealógico de
Nietzche e Foucault, por exemplo – a vertente classificada frouxamente como pós-moderna
ou pós-subcultural vai ter como característica comum a crítica às metanarrativas da
modernidade e, no campo da discussão sobre identidades juvenis, a aposta no fim dos projetos
identitários estáveis.
Seja enfatizando a mescla de estilos e recombinações possíveis numa mesma pista de
dança “dos hooligans do futebol aos hippies da nova era” (Redhead, 1993;3); ou identificando
a lógica de pertencimento “nômade, superficial, efêmera, fluida, transitória e dispersa das
identificações” sem imersão e comprometimento, a partir da cultura de consumo – que
Polhemus (1998) chama de Supermercado de Estilo e Maffesoli de sinceridades sucessivas
(1987) – o argumento, aqui esboçado de maneira genérica, é o de que a atitude de
comprometimento profundo, intensivo e enraizado com movimentos musicais foi substituída
por identificações transitórias, onde todas as combinações são possíveis, uma vez que a noção
de autenticidade foi, definitivamente, descartada na contemporaneidade. (Bennett; 1999;
Muggleton & Weinzierl, 2003; Redhead, 1997). Assim, se até os anos 70 um jovem é punk ou
roqueiro, a partir dos 80, para estes autores, ele está clubber, uma vez que a atitude pós-
moderna por excelência é marcada pela ausência de preocupação com o futuro, a celebração
pela celebração, o escapismo, a utilização de drogas sem objetivos transcendentais.Atitude
que, no terreno musical, a geração pós-punk, e em especial os amantes da música eletrônica
ilustram bem.
É neste contexto - quando a noção de hibridismo cultural ganha traços ubíquos para a
explicação dos agenciamentos culturais de ordens diversas e que a tensão entre movimentos
localistas de resistência à ordem global e outros de afirmação da ordem cosmopolita
complexifica-se - que a discussão de Will Straw sobre a noção de cena torna-se oportuna.
4 Acompanho Simon Reynolds, que ao historiar o surgimento da cultura da Música Eletrônica na Inglaterra, distingue entre a geração pioneira, chamada de clubber por freqüentar os clubs da cidade de Londres; e a geração seguinte, que chega a conviver com os pioneiros nos clubs mas que se destaca por freqüentar as raves – grandes festas que aconteciam por noites seguidas nos arredores de Londres, em galpões e fábricas abandonadas. Para detalhes da discussão, que não cabe nos limites deste trabalho, ver Reynolds (1999)
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Apropriando-se do termo primeiro utilizado pelo jornalismo cultural, Straw baseia-se
em Shanks para propor a noção em oposição à de comunidade musical.Assim, se a
comunidade define tradicionalmente um grupo de composição relativamente estável, cujo
envolvimento com a música toma a forma da exploração de idiomas musicais enraizados
geográfico-historicamente; a noção de cena nos remete a um grupo demarcado por um espaço
cultural onde coexiste uma diversidade de práticas musicais que interagem de formas
múltiplas, através de diferentes trajetórias de troca e fertilização.
Elaborando o argumento, Straw afirma que esta distinção ajuda-nos a identificar dois
vetores opostos: o primeiro trabalhando a favor da estabilização de uma tradição musical –
como é o caso, num exemplo familiar, da comunidade do samba no Brasil, eternamente
engajada na busca das raízes, origens e linhas de autenticidade; e o outro trabalhando no
sentido da disrupção das continuidades, buscando um diálogo cosmopolita e relativizador das
raizes com o cenário internacional e que tem na mudança, e não na estabilidade estilística, a
referência mais importante, como seria o caso, também num exemplo que nos é familiar, o da
geração do BRock dos anos 80 no Brasil.
Utilizando no seu artigo a comparação entre duas cenas distintas - a do rock pós-punk
e da dance music – o autor enfatiza ainda as diferentes lógicas de articulação de cada uma
delas não só com seus locais específicos de existência como também com o que cada uma
considera o seu passado e suas linhas de “evolução” musical, etc
Posteriormente (2006), enfatizando a metáfora espacial presente na expressão, o autor
esclarece que as cenas são espaços geográficos específicos para a articulação de múltiplas
práticas musicais, destacando a importância do espaço urbano, em especial das metrópoles,
para estas agregações.
A cena pode então sugerir, segundo ele: 1) Congregação de pessoas num lugar; 2) O
movimento destas pessoas entre este lugar e outro;3) As ruas onde se dá este movimento; 4)
Todos os espaços e atividades que rodeiam e nutrem uma preferência cultural particular;5) O
fenômeno maior e mais disperso geograficamente do qual este movimento é um exemplo
local; 6) As redes de atividades microeconômicas que permitem a sociabilidade e ligam esta
cena à cidade (2006;6)
Seu argumento nos parece produtivo por várias razões. Primeiramente porque aponta
para a flexibilidade e fluidez das práticas musicais contemporâneas, ressaltando os vetores de
fluxo, movimento e mutabilidade das identidades pós-modernas, sem, no entanto, abrir mão
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de uma unidade cultural flexível que possa circunscrevê-las.Trata-se, pois, de uma noção que
pode indicar, ao mesmo tempo, a direção de um movimento e sua escala, sem a rigidez que a
noção de subcultura, atrelada a discussões de classe e cultura parental, apresenta; nem a
excessiva flexibilidade de conceitos pós-modernos tais como neo-tribos ou canais, que se
tornam poucos operativos por ignorarem a centralidade dos processos de classificação e suas
disputas simbólicas como elementos de construção identitária e de sociabilidade.(Sá et al;
2008; Garson; 2009)
Em segundo lugar, conforme ele mesmo aponta (2006;6), porque esta expressão evoca
ao mesmo tempo a intimidade de uma comunidade e o fluido cosmopolitismo da vida urbana,
podendo assim ser utilizada para descrever unidades culturais cujos limites são invisíveis e
elásticos. Assim, à concepção de comunidade a noção acrescenta dinamismo; e à vida urbana
cosmopolita, ela reconhece “uma vida interior e secreta” constituída por movimentos
microscópicos e locais dos grupos que ainda não ganharam visibilidade espetacular ou
midiática. Além disto, no caso de cenas locais inspiradas em movimentos globais – tais como
a cena de heavy metal gaúcha, a cena de indie rock carioca ou a cena de música eletrônica
paulistana – a expressão é produtiva justamente porque circunscreve uma unidade local sem
se esquecer de seus vasos comunicantes com a esfera global.
Em terceiro lugar, porque ela revelou-nos apta a um produtivo diálogo com outras
discussões em torno da noção de valor e gênero musical, tal como comparece nos trabalhos de
Simon Frith (1998) e de Jeder Janotti (2003; 2005; 2006); e da discussão em torno dos
processos de rotulação (Bourdieu; 1974; 1989; 2007; Thornton;1997) que também nos são
muito caras.5
Retomando os pontos centrais da discussão deste grupo de autores, interessa-nos
sublinhar, primeiramente, que entendemos que a discussão em torno da noção de gênero
musical permanece como central para a compreensão da experiência de produção, circulação
e escuta musical, mesmo num cenário marcado pela hibridação entre fluxos globais e
apropriações locais. O gênero musical é um importante mediador, uma vez que, conforme
sublinha Frith (1998) são as expectativas e convenções de gênero que orientam nossas
escolhas no cenário musical.
5 Estes debates foram apresentados em vários textos de autores participantes do LabCult. Ver, dentre outros: Sá (2006); Sá e De Marchi (2003); Sá, et al (2008); Garson (2009).
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Corroborando o argumento de Frith, Janotti Jr (2003) entende os gêneros como
“modos de mediação entre as estratégias produtivas e o sistema de recepção, supondo ao
mesmo tempo elementos textuais, sociológicos e ideológicos”; e observa ainda que os gêneros
são dinâmicos e instáveis – justamente porque estão sempre tensionados pelas disputas
simbólicas em torno de suas fronteiras.6
Entretanto, a partir do trabalho de Sarah Thornton sobre as Club Cultures e sua
retomada da discussão de Bourdieu, também entendemos que não é possível abordar o
processo de rotulação sem compreender a disputa simbólica entre os diversos agentes
envolvidos. Longe de um processo livre de ambigüidades, a rotulação que dá origem aos
gêneros supõe um campo de batalha demarcado pelos atores em disputa pela autoridade. Uma
batalha onde agentes, munidos de certo poder simbólico, travam “com poderes concorrentes,
hostis, aliados ou neutros, os quais é preciso aniquilar, intimidar, conchavar, anexar ou
coligar”, na busca pela legitimidade de suas posições (Bourdieu;1989;293).
Além disto, no caso das culturas juvenis contemporâneas, a noção de capital
subcultural também se torna um importante marcador do debate. Proposta por Thornton no
(1997) no contexto de sua revisão do paradigma de Birminghan, ao discutir as fronteiras da
cultura da música eletrônica inglesa, nos anos 90, a noção enfatiza, à luz da reflexão de
Bourdieu sobre capital cultural, a importância de um capital bastante específico. Trata-se
daquele conhecimento adquirido pelos agentes no contato com a(s) mídia(s), e que significa
consumir informação exclusiva, produtos culturais “adequados” e cultivar relações sociais
com as “pessoas que importam” para serem aceitos pelo grupo. Conhecimento exclusivo que
vai transferir status ao agente, abrindo-lhe portas e garantindo-lhe um lugar hierárquico
privilegiado nesta cultura de gosto.
6 Ainda conforme Janotti Jr (2005), em afirmação que compartilhamos inteiramente: “Na verdade, os gêneros delimitam as produções de sentido, demarcando a significação e os aspectos ideológicos dos textos, bem como o alcance comercial (e o público alvo) dos produtos midiáticos. Toda definição de gênero pressupõe uma demarcação negativa e/ou comparativa com outros gêneros, ou seja, analisar um produto midiático através dessa perspectiva pressupõe perceber as relações entre esse produto e outros de diferentes gêneros, compará-lo com expressões canônicas ou similares dentro do mesmo paradigma. Os gêneros são dinâmicos justamente porque respondem a determinadas condições de produção e reconhecimento, indicativos das possibilidades de produção de sentido e de interação entre os modos de produção/circulação/consumo dos produtos midiáticos.” A definição é interessante, dentre outros motivos, por apontar para os aspectos extra-musicais presentes na construção genérica; e ao mesmo tempo o caráter tensivo desta noção.Ou seja: longe de serem definitivas ou imanentes ao universo musical, o fato é que a noção de gênero supõe sempre disputa, negociação e rearranjos sucessivos, colocando em questão a autoridade discursiva de cada um dos agentes dentro do campo musical. Sobre a discussão em torno do dinamismo e fluidez dos gêneros musicais, ver ainda: Shuker (1999)
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Assim sendo, mesmo admitindo que a paisagem contemporânea nos permita falar em
produtos sonoros híbridos, isto não significa enxergá-la como uma rede livre de rótulos e
constrições, onde qualquer tipo de combinação é possível. Conforme já apontamos em outros
trabalhos (Sá et al; 2008), este é o ponto onde divergimos dos estudos pós-subculturais, uma
vez que pudemos constatar na nossa pesquisa que a categoria de “autenticidade” ainda é um
valor para construção das identidades, valorizada a partir da dicotomia
underground/mainstream.
Assim, do ponto de vista da nossa perspectiva, os gêneros musicais são um conjunto
de regras – técnicas, semióticas e formais – que são encenadas ou atualizadas pelas cenas. É
portanto nas cenas que eles se confirmam ou são transformados em possíveis novos gêneros –
ou sub-gêneros – e é esta articulação entre as duas noções que nos parece produtiva.
Tomemos mais um exemplo. Na pesquisa sobre música eletrônica nos deparamos o
tempo todo com rótulos de “novo estilos”, feitos para não durar, dentre os quais podemos
listar o electro, o disco-punk, o minimal, o retro-rock, o new rave, numa lista classificatória
infindável, que se multiplica a cada dia a partir de desdobramentos e fusões e misturas dos
sub-gêneros mais consolidados da eletrônica tais como o house, o techno, o drum & bass e o
garage e o trance.
Conforme discutimos anteriormente (Sá et al; 2008), a rotulação faz parte de uma
estratégia de distinção social – no sentido proposto por Bourdieu e retomado por Sarah
Thornton. Ou seja: o sentido de exclusividade é fundamental para estes grupamentos; e cada
vez que o novo estilo se torna conhecido num círculo ampliado, definido negativamente pelos
seus participantes como o mainstream, deixa de ser valorizado pelos freqüentadores, que
partem em busca da próxima novidade exclusiva – o hype -, numa velocidade pautada pelo
ritmo com que o conhecimento se difunde através das redes sociais.
Neste contexto, a noção de cena funciona como uma metáfora que permite ao
observador-pesquisador lidar com a multiplicidade de novas expressões musicais, captando a
forma como as comunidades de gosto lidam com o fluxo e o excesso informacional.
II - A cidade com palco para as cenas musicais
Entretanto, para seus críticos, esta mesma flexibilidade transforma-se no maior
obstáculo à utilização da noção – uma vez que a cena tanto pode ser usada para descrever uma
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unidade mínima de análise, como um bar e seus freqüentadores, como referir-se a um cenário
abstrato e global tal como a cena mundial de heavy metal, por exemplo.
Buscando revisar e responder às críticas em seu segundo trabalho sobre o tema Straw
(2006) assume esta possível fragilidade decorrente da elasticidade da noção; ao mesmo tempo
que nos dá pistas de que a dimensão espacial da metáfora é que pode, talvez, circunscrevê-la
de maneira menos abstrata, reiterando que cenas são espaços geográficos específicos para a
articulação de múltiplas práticas musicais.
Explorando esta dimensão espacial – que dialoga implicitamente com as noções de
espaço, território e lugar também muito caras à discussão dos estudos culturais em tempos de
globalização -7 a noção pode ser útil para o pesquisador cartografar as sociabilidades e regiões
de uma cidade, ao mesmo tempo que suas interconexões, apontando para a organização das
comunidades de gosto através dos espaços metropolitanos.
Ela nos permite, pois, captar os momentos em que a sociabilidade a princípio
subterrânea e sem objetivos, tal como um agrupamento num café, se adensa, criando
identidades de grupo a partir de conversas e objetivos comuns; e sublinha a multiplicidade de
atividades e a mobilidade de um grupo, cujo movimento, a partir de articulações transversais,
promove um realinhamento das cartografias da cidade.
Um outro aspecto que me parece sugestivo no argumento é o de que as cenas apontam
para espaços praticados, no sentido proposto por Certeau (1994). Ou seja, elas apropriam-se
de pedaços da cidades para suas práticas, criando circuitos concretos marcados pelos rastros
do agrupamento em movimento, enfatizando simultaneamente a efervescência das cidades
enquanto espaços sociais vívidos e produtivos.
.Por outro lado, num diálogo que parece infindável entre cenas musicais e cidades, as
cenas também são marcadas pelos espaços urbanos que ocupam. E o caso das raves londrinas,
que aconteceram em grandes galpões e fábricas nos subúrbios daquela cidade cidade, uma vez
que o perímetro urbano da capital altamente ocupada tanto quanto sua rígida legislação
referente à ordem pública impedia este tipo de agregação, é exemplar do tipo de articulação
entre espaço urbanos e cena musical que pode ser explorado na discussão.8
7 Ver, por exemplo, a discussão de Canclini (1990) sobre as noções de territorialização e reterritorialização; a de Castells (1999) sobre territórios e espaços de fluxo; a de Augé (2007) sobre não lugares e a de Certeau (1994) sobre lugares praticados. 8 Um outro exemplo deste tipo de apropriação e diálogo mútuo é discutido por Fernandes (2007)
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Observo ainda que, na mesma discussão, o autor minimiza o que pareceu-nos uma
fragilidade do texto anterior – a oposição entre comunidade, definida como estável e
conservadora; e cena, como fluida e disruptiva. Aqui, ele afirma que “nem sempre as cenas
são disruptivas” e que elas podem trabalhar no sentido conservador da fixação e perpetuação
de práticas, gostos e afinidades, trabalhando contra a mudança e aproximando-se mais do
sentido de comunidade. De novo, o exemplo do RockBr pode ser ilustrativo. Pois, se nos
anos 80, o vetor desta cena, no contexto brasileiro, era o da mudança e da ruptura com os
cânones da MPB; a partir dos 90, o vetor inverte sua direção, apontando no sentido de uma
certa conservação dos valores defendidos. Assim, cenas e comunidades são vetores ao invés
de noções dicotômicas.
III - Cenas, mídias e ciberespaço
Antes de concluir, creio que duas outras dimensões não abordadas pelo autor também
merecem ser exploradas, ampliando o debate. A primeira diz respeito ao fato de que, neste
início de século, a apropriação dos lugares realizada pelas cenas se dá não só através de
circuitos urbanos, mas também através das redes imateriais da cibercultura – nos sites, listas,
blogs e redes sociais diversas, que desempenham muito fortemente o papel de construção de
comunidades de gosto atual.
Não cabe aqui investigar em detalhes as diversas modalidades de articulação do
espaços virtuais e espaços geográficos para a consolidação de uma cena musical, mas esta é
uma dimensão central dos agrupamentos na contemporaneidade, que tem merecido nossa
atenção em diversos trabalhos. (Sá et al; 2008; Sá e De Marchi; 2005)
O segundo ponto é o de que as cenas são marcadas fortemente pela dimensão
midiática., constituindo-se na relação – seja de oposição ou de adesão – com as mídias.
Assim, seja na utilização das mídias como ferramentas para divulgação dos valores de
uma cena; seja, principalmente na relação referencial das cenas com a cultura midiática e
com o consumo - marcada por ícones pop, apropriação e citação de gêneros musicais
massivos, paródias, releituras, etc – a dimensão midiática é fundamental para sua construção
na contemporaneidade, reforçando a relevância da discussão mais ampla dos estudos culturais
em torno do tripé juventude, mídia e consumo.
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IV - Considerações finais
Frente à discussão aqui delineada, entendemos que a noção de cena refere-se: a) A um
ambiente local ou global; b) Marcado pelo compartilhamento de referências estético-
comportamentais; c) Que supõe o processamento de referências de um ou mais gêneros
musicais, podendo ou não dar origem a um novo gênero; d) Apontando para as fronteiras
móveis, fluidas e metamórficas dos grupamentos juvenis; e) Que supõem uma demarcação
territorial a partir de circuitos urbanos que deixam rastros concretos na vida da cidade e de
circuitos imateriais da cibercultura, que também deixam rastros e produzem efeitos de
sociabilidade; f) Marcadas fortemente pela dimensão midiática.
Nessa perspectiva, os grupamentos que chamamos de cenas musicais não se
distinguem somente por produzirem ou consumirem sonoridades particulares, mas sim por
evocarem universos distintos, povoados por um tipo de público, pelos locais que ocupam, por
uma forma de fazer música, por sua vez relacionada a um tipo de escuta e fruição próprias que
demarcam as fronteiras entre “nós” – os insiders – e “eles”, os outsiders – mas que ao mesmo
tempo intersectam-se, modulam-se e comunicam-se mutuamente.
Por fim, a noção insere-se, de maneira mais ampla, no debate que discute os processos
de desterritorialização- entendido como o processo de “perda da relação ‘natural’ da cultura
com os territórios geográficos e sociais”; e de reterritorialização, entendida como “certas
relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas”.
(Canclini; 1990; 288). Contribui, pois, para ultrapassarmos argumentos baseados nas
oposições entre centro e periferia, ou na noção de comunidades – pensadas como conjuntos
homogêneos, orgânicos e fechados - em direção ao reconhecimento da multiplicidade de
modulações dos grupos inseridos no mundo global das economias cruzadas, dos sistemas de
significado diversos e interconectados e das personalidades fragmentadas e múltiplas que
constituem a cultura das redes.
Bibliografia:
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-II-
A Cidade não Para a Cidade só Cresce9 A relevância das cenas musicais e da experiência estética na urbe em tempos de identidades
musicais globalizadas
Jeder Janotti Jr10 UFPE
Resumo: Este artigo propõe a construção de um protocolo analítico da música popular massiva centrado na articulação de 4 (quatro) noções chaves para a compreensão dos processos estéticos e midáticos que envolvem a música popular massiva: cena musical, experiência estética, midiatização e crítica cultural. Na verdade, a separação dessas instâncias só acontece para fins analíticos, uma vez que há o pressuposto de que é a partir da inter-relação entre essas camadas de consumo da música que é possível propor uma análise comunicacional dos julgamentos de valor, das práticas comunicacionais , dos aspectos sensíveis e identitários que envolvem a música no mundo contemporâneo.
Palavras-chave: Cena Musical 1, Experiência Estética 2, Midiatização 3, Crítica Musical 4
1- Introdução
O artigo aqui apresentado é centrado na articulação de 4 (quatro) noções chaves para a
compreensão dos processos estéticos e midiáticos que envolvem o consumo singular de
música popular massiva na urbe: cena musical, experiência estética, midiatização e crítica
cultural. Na verdade, a separação dessas instâncias só acontece para fins analíticos, uma vez
que há o pressuposto de que é a partir da inter-relação entre essas camadas de consumo da
música que é possível propor uma análise comunicacional dos julgamentos de valor e das
práticas comunicacionais que envolvem a música no mundo contemporâneo. Como ponto de
partida também é importante apontar que há uma espécie de conjunção na abordagem da
experiência, dos processos de midiatização e da importância da crítica musical para a
compreensão desses fenômenos a partir da afirmação das cenas musicais na atual cultura de
consumo da música.
9 Trabalho apresentado como parte da mesa “Das Cenas Urbanas aos Territórios Virtuais: consumo, experiência e materialidades sonoras nas cenas musicais”. 10Jeder Janotti Junior, Bolsista Produtividade CNPq,Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação UFPE, apaixonado por rock and roll. Aqui colocar informações mínimas do pesquisador, incluindo vínculo institucional, área de atuação, link http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4777130T1, jederjr@gmail.com
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Em princípio, pode-se dizer que as possibilidades de vivências estéticas seriam um
diferencial para marcar a especificidade das cenas em meio à profusão de sons no tecido
urbano. Desde já, cabe reconhecer que a noção de cena, seja em sua origem a partir do
consumo do jazz nos EUA, seja sua afirmação através do rock e da música eletrônica,
pressupõe culturas de escuta de conhecedores, ou seja, atores sociais como músicos, críticos e
fãs que possuem dedicam tempo não só para a feitura e o consumo distintivo de música, bem
como para a reflexão em torno dessas práticas. Na perspectiva aqui adotada não há cena que
se afirme sem exercícios de auto-reflexão.
O artigo destaca então a inter-relação entre a emergência das cenas musicais e sua
nomeação pela crítica musical que é distinguida como parte importante dos processos de
midiatização das experiências estéticas e práticas de consumo ligadas à música popular
massiva. A midiatização é vista como lugar privilegiado de articulação de redes sociais,
práticas econômicas e expressões musicais para a configuração de um amálgama que forja a
afirmação (e a constante reconstrução) das cenas musicais através de práticas de
comunicação. Isso implica pensar que o valor da música popular massiva envolve não só
ritmos e sonoridades, como também lugares de circulação, embalagem e vivência da música
nos tecidos sociais.
2. Cena musical
A idéia de “cena” foi pensada para tentar da conta de uma série de práticas sociais,
econômicas e estéticas As práticas que caracterizam uma cena musical procuram transformar
lugares geográficos em espaços significantes, ou seja, os indivíduos que circulam em uma
cena musical criam mapas urbanos que envolvem afetos, experiências estéticas, práticas
sociais e relações de consumo. As cenas musicais funcionam assim como um enquadramento
de práticas de escuta que englobam experiências estéticas, redes sociais e lógicas econômicas.
Os territórios sonoros forjados nas cenas são circunscrições de experiências e consumos
culturais, reforçando desse modo a importância dos mapas sonoros para a apreensão do valor
estético e econômico da música popular massiva.
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As primeiras utilizações da nomenclatura cena remetem aos anos 40 do século XX,
quando jornalistas estadunidenses tentavam dar conta do mundo de conflitos e diálogos em
torno da apropriação de práticas musicais que faziam parte da produção e consumo do jazz,
nomeando essas práticas como a cena jazz (BENETT; PETERSON, 2004). O interessante é
que apesar de inicialmente servir de roteiro para os primeiros jovens brancos e boêmios que
adentravam os espaços de consumo da música negra, o termo tentava dar conta também da
complexa rede de atores sociais responsáveis pela afirmação de uma cena, ou seja, músicos,
produtores culturais, gravadoras, locais de shows, críticos e fãs. Na verdade, parece que desde
suas primeiras utilizações, a noção de cena congrega práticas mercadológicas e aprendizados
sociais de consumo cultural. De lá para cá o termo se tornou “popular” entre músicos,
críticos, produtores e consumidores de música. A título de exemplo, pode-se perceber como a
matéria “Doçura Psicodélica”, sobre a banda amapaense Box Lunar, congrega feitios estéticos
em torno da sonoridade da banda aos aspectos geográficos de seu lugar de origem.
Na verdade, Macapá possui uma cena11 pequena, em que todos se conhecem – o tecladista Otto e o baterista Taiguara tocam uma dezena de bandas locais (“mini Box” é o nome local para designar mercadinhos de bairro). Nessa terra ilhada cheia de gente que vem de longe (JJ é de Salvador, Alexandre de Brasília, Taiguara e Sandy de Belém, Otto do interior do Pará – só Heluana nasceu no Amapá), a lenta destilação de rock e MPB resultou em uma doçura psicodélica e tipicamente amazônica (ANTUNES, 2009)
Como podemos perceber no texto acima, normalmente, quando aparece alguma
ebulição cultural em torno de expressões da música popular massiva de caráter singular, ela é
logo nomeada pela crítica cultural, que procura mapear a existência destas cenas. Essa ideia
pressupõe práticas de críticos culturais que não estariam restritos aos agendamentos forjados
pelos grandes circuitos de shows ou pelos tradicionais lançamentos da grande indústria
musical. Ao invés de intermediários culturais, os jornalistas que participam do processo de
nomeação de novas cenas musicais seriam agentes responsáveis por materializar experiências
singulares ligadas a práticas musicais que ainda não se caracterizariam pela capacidade de
auto-reflexão.
A sistematização acadêmica das cenas musicais foi proposta por Will Straw como um
modo diferencial de circulação de música nos tecidos urbanos. Inicialmente Straw procurou
perceber as redes de sociabilidade que moldavam o consumo do rock alternativo e da dance
11 O destaque em negrito em cena ao longo das citações são de responsabilidade do autor do artigo.
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music em cidades como Montreal, Toronto, Detroit, Los Angeles e Londres. Essa perspectiva
procurava diferenciar comunidades musicais de cenas, apontando os aspectos ativos das
últimas contra o engessamento geográfico das primeiras.
Como ponto de partida, é possível colocar uma cena musical como distinta, de modo significante, da velha noção de comunidade musical. A última pressupõe um grupo populacional cuja composição é relativamente estável – de acordo com uma ampla gama de variáveis sociológicas – em que o envolvimento com a música toma a forma de uma contínua exploração de um ou mais idiomas musicais pronunciados que são enraizados dentro de uma herança geográfica e histórica específica. Uma cena musical, em contraste, é um espaço cultural em que uma diversidade de práticas musicais coexistem, interagem umas com as outras em meio a uma variedade de processos de diferenciação, de acordo com uma ampla variedade de trajetórias, de mudanças e hibridismos (STRAW, 1991, p. 494)
A proposta de Straw tenta dar conta das relações formadas na circulação global da
música popular massiva, ou seja, ao invés de reconhecer as identidades culturais como algo
fechado, centradas em locais geográficos delimitados e nas línguas nativas, a noção de cena
musical aponta para um processo de identificação, “(...) uma falta de inteireza que é
‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pela forma pelas quais nós imaginamos ser vistos por
outros” (HALL, 1999, p.39. Grifos do autor).
No consumo globalizado da música, não é mais possível isolar as inter-relações entre
música e identidade em espaços engessados, o que permite perceber que nas cenas se afirmam
identidades nas constantes negociações entre afirmações cosmopolitas (conexão com
expressões musicais que circulam em lugares distintos do planeta através da internet e outros
meios) e a forma como as mesmas expressões musicais se materializam em diferentes espaços
urbanos. O trecho da crítica abaixo demonstra como essas relações emergem nos exercícios
críticos, pontuando que essa discussão está presente de modo saliente na perspectiva de
críticos, músicos e consumidores.
Incialmente conhecido na cena de Detroit como DJ e produtor de hip-hop, Mayer sempre foi um dedicado pesquisador de música. De tanto ouvir gravações de Al Green, Curtis Mayfield e Barry White, entre outras lendas da soul music, resolveu ele próprio escrever um tema nesse estilo, cuidando da execução de todos esses instrumentos. Da primeira música ao primeiro álbum, foi um pulo. E o trabalho de Mayer, rapidamente ganhou o escaninho do tal neo-soul, gênero bastante em voga, que abriga artistas devotos de música negra norte-americana, sejam renovadores ou não (FLÁVIO JUNIOR, 2011, p.34).
Até hoje a noção de cena é vista como contraponto às estratégias econômicas das
grandes gravadoras, ou seja, há um peso na diferença entre a apropriação da música e sua
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produção em grande escala. O problema é que uma boa parte das expressões musicais ditas
distintas ou alternativas, como o indie rock e o samba, também circularam pela grande
indústria da música. Muitas vezes questões como autenticidade e autonomia não estão ligadas
somente ao processo de produção/circulação, bem como aos modos de afirmação desses
valores dentro do jogo das próprias “majors”, fato demonstrado por exemplos canônicos
como as trajetórias dos Beatles, Jimmi Hendrix, Janis Joplin, Mutantes, Chico Buarque,
Strokes, Los Hermanos, Rolling Stones, Elis Regina, entre outros.
Se, em um primeiro momento os textos de Straw pareciam muito ligados às práticas
locais, por outro lado não podemos deixar de lembrar, que cenas musicais como o Grunge de
Seattle ou o Manguebeat de Recife, permitiram a conexão da música produzida nesses locais
aos espaços globalizados de consumo da música. Nos exemplos citados, ainda que o núcleo
inicial se mantenha como principal foco de produção, as cenas exerceram influência em
outros espaços geográficos. Mesmo que essas cenas tenham moldado mercados e práticas
culturais locais em torno de certas produções musicais, elas acabam servindo como base
distintiva para a projeção dos músicos locais para além das fronteiras regionais, ou de modo
agregado, para a conjunção de territórios geográficos e experiências afetivas em torno da
produção musical, ou seja, “ as identidades restritas devem se articular com a identidade
mundial para se sustentarem no processo total de globalização e da mundialização, pois é esta
última identidade que detém a posição privilegiada na geração de sentido social na
contemporaneidade” (NICOLAU NETTO,2009, p.125).
Talvez as palavras de Nicolau Netto, apesar de pertinentes, possam ser um pouco
relativizadas, já que se pode pensar não só em “posição privilegiada na geração de sentido”,
bem como em possíveis articulações entre formações identitárias musicais restritas a
determinados espaços geográficos e suas possíveis inter-relações com os processos de
globalização, como se pode perceber na matéria “Pernambuco Além da Crítica” que expõem
a complexidade dos diálogos entre práticas locais e o mundo globalizado;
China acredita que o Pernambuco não se pode restringir apenas ao que houve no começo da década de 1990, cena a qual participou ativamente com sua antiga banda Sheik Tosado. Porém, não nega – e nem deve negar – que a turma que veio antes, do Manguebeat, foi, e ainda é, de suma importância para o que se faz atualmente no Estado. “A nossa última grande referência em Pernambuco tinha sido Alceu Valença, ainda da década de 1970 e 1980. O ‘mangue’ trouxe uma renovação na música local muito sentida e respeitada.”,
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completa o músico. De fato, as referências diversas e o modo autoral de composição nascido no estilo são as características que permanecem vivas entre os atuais músicos, e não apenas ao que se restringe à antropofagia e regionalidade do Manguebeat, como comparam por aí. (VENANZONI, 2011).
É possível notar no trecho a nomeação da cena pernambucana como uma tentativa de
configurar modos estéticos e topográficos característicos de uma prática musical singular que
permite sua projeção para além de suas fronteiras iniciais. È como se um circuito cultural
restrito também servisse para incluir a cena em uma cadeia de produção musical ampliada,
que inclui não só circulação de música, bem como espaço para turnês e visibilidades para
além da cena de origem
Como ferramenta interpretativa, a noção de cena deve encorajar, portanto, o exame da
interconectividade entre os atores sociais e os espaços culturais das cidades – suas indústrias,
suas instituições e suas mídias. “‘Cena’ é usada para circunscrever amplos grupamentos locais
de atividades que dão unidade a práticas dispersas através do mundo. Ela funciona para
designar sociabilidades face a face e é um indolente sinônimo para a globalização virtual das
comunidades de gosto” (STRAW, 2005, p.6).
Com o passar do tempo e o desenvolvimento das redes sociais dedicadas à música, a
noção de cena passou por mudanças, adquirindo novas possibilidades e importância dentro
dos estudos de música e comunicação. Afinal, como toda noção produtiva, a concepção de
cena musical teve de ser ampliada para abarcar as transformações que atingiram o mundo da
música ao longo da primeira da década do século XXI.
Para Bennett e Peterson (2004) as cenas envolvem uma nova gama de práticas
musicais: as cenas locais, translocais e virtuais que, apesar de interligadas, ganhariam
diferentes recortes de acordo com as relações entre tradições musicais regionais, a articulação
de maneira mais ampla com outros territórios e a capacidade de se afirmarem como
comunidades de gosto que se materializam na internet. A partir desse quadro poderíamos
imaginar que, por exemplo, a cena heavy metal de Belo Horizonte seria local), a cena de
heavy metal brasileira seria translocal, pois englobaria espaços geográficos distintos, já a cena
de heavy metal mundial se estabeleceria na complexa rede comunicação presente na internet:
“como os participantes das cenas translocais, os participantes das cenas virtuais estão
separados geograficamente, mas ao contrário das cenas translocais, os participantes da cena
virtual formam uma única cena através da internet” (BENNET; PETERSON, 2004, p.10). O
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grande problema dessa articulação é que apesar de tentar levar em conta relações de
sociabilidades desterritorializadas, ela perde o foco nos tecidos urbanos como um dos locais
privilegiados de materialização da música popular massiva. As cidades que na proposição
original de Straw eram o espaço por excelência de aparecimento das cenas, acabam por
tornar-se mero acessório nessa nova triangulação. O trecho abaixo mostra como o jornalista
Leonardo Lichote, ao descrever a nova cena musical de MPB, faz uma conexão entre sua
emergência e a tessitura cultural da cidade de São Paulo, afirmando que as novas tecnologias
(e a circulação de bens culturais na internet) não significa, necessariamente, um arrefecimento
do papel da urbe como espaço privilegiado da produção e do consumo de música.
Alguma coisa acontece no coração da nova música popular brasileira quando cruza certas esquinas paulistanas neste início de século XXI. Aos poucos, nos últimos anos, uma geração de artistas baseados em São Paulo, de diferentes motivações e origens (Paraná, Recife, Ceará, Rio e mesmo a capital paulista), vem trocando ideias, e-mails, arquivos MP3, mensagens no Facebook, links do MySpace - produzindo muito e alimentando uma cena que agora, madura, se configura como a mais consistente do país, apesar do pequeno alcance comercial. Pode ser cedo para afirmar, mas talvez pela primeira vez desde a década de 60, quando foram realizados os festivais e os programas da paulista TV Record (como "Jovem Guarda" e "O fino da bossa"), São Paulo concentre os olhares de quem está interessado nos rumos da futura MPB - antes, desde os tempos da Rádio Nacional, passando pela bossa nova e pelo Rock Brasil dos anos 80, o epicentro era o Rio (2010).
O exemplo demonstra que tal como aconteceu em outro lugares a referência a um
terreno urbano específico acaba por dotar o agrupamento de certas expressões musicais que
servem, inclusive, para a circulação ampliada a esses produtos musicais. Assim, mesmo
reconhecendo a proposição de Benett e Peterson (2004) procura dar conta da circulação da
música em espaços distintos não há como deixar de notar que ela negligencia o papel que as
cidades ocupam no consumo da música, esvaziando a abrangência de uma idéia que em sua
proposição inicial tentava dar conta da complexidade das relações entre indivíduos, tecidos
urbanos e produtos musicais. Por isso, acredita-se ser mais importante pensar diferentes
gradações das cenas musicais como possibilidades de articulação de processos identitários
dinâmicos e diferenciados do que como recortes que separariam diferentes tipos de cena,
Portanto, podemos pensar que haja três níveis ao menos de identidades geradoras de sentido: o nível no qual se encontram as identidades restritas e que adotam um discurso pré ou infra-nacional; o nível das próprias identidades nacionais e; e o nível da identidade mundial. A questão a qual nos focamos é compreender, em primeiro lugar, como essas identidades se relacionam, como já dissemos, a globalização e a mundialização são processos totais, e como (e a
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quem) essas identidades condicionam sua pertinência (NICOLAU NETTO, 2009, p. 113).
Em um mundo em que a circulação de música atua de forma dinâmica nas interações
entre práticas globais e locais, não parece mais possível isolar as relações entre música e
identidade em espaços engessados. As cenas projetam identidades nas constantes negociações
entre afirmações cosmopolitas (conexão com expressões musicais que circulam em lugares
distintos do planeta através da internet e outros meios) e as formas como as mesmas
expressões musicais se materializam em diferentes espaços urbanos e simbólicos, como as
referências ditas nacionais.
Apesar da importância dos aspectos estéticos na conformação das cenas, parece que
ainda há uma relevância acentuada nas lógicas de mercado ou no papel exercido pelas redes
sociais. Boa parte dos trabalhos sobre as cenas musicais não apontam para um estudo mais
aprofundado dos aspectos sensíveis do consumo de música na cidade. Seguindo outro
caminho, mas apontando para elementos que se manifestam no consumo da música para além
dos aspectos estritamente econômicos, a perspectiva aqui proposta abre caminho para se
pensar a experiência tal como articulada em uma estética da comunicação, incluindo nas
discussões sobre as cena musicais possibilidades de vivências de experiências nas inter-
relações entre participantes da cena, tecidos urbanos e expressões da música popular massiva
2- Experiência
A proposta de uma estética relacional, que parte da noção de John Dewey de
experiência, coloca em perspectiva a importância dos aspectos sensoriais das vivências
humanas diante dos produtos midiáticos. A partir dessa abordagem, pode-se pensar na ampla
possibilidade de relações sensoriais abertas pela existência das cenas musicais e na relevência
que a noção de experiência possui quando se aborda o consumo musical na
contemporaneidade a partir de seus aspectos processuais.
Essa visão procura agregar a circulação dos produtos musicais no tecido urbano às
experiências em torno de expressões musicais como importante ponto para a reunião dos
atores sociais em torno das lógicas econômicas, práticas sociais e vivências estéticas que
ocorrem nas cenas musicais. Assim, procura-se acrescentar os aspectos relacionais dessas
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experiências que ocorrem nas cidades contemporâneas, concetando cadeia produtiva da
música, cricuitos culturais, fruição musical e relações mercadológicas.
Neste ponto, pode-se associar a já citada distinção entre estímulos auditivos do mundo
da música e as culturas da escuta, que são caracterizadas pela capacidade de ouvir com
atenção. As cenas musicais abrem probabilidades para experiências particulares, já que elas
chamam atenção para certas singularidades da escuta da música e suas especificidades. Como
afirma Dewey em relação à consecução da experiência,
A experiência singular tem uma unidade que confere seu nome – aquela refeição, aquela tempestade, aquele rompimento de amizade. A existência dessa unidade é constituída por uma qualidade ímpar que perpassa a experiência inteira, a despeito da variação das partes que a compõem. Essa unidade não é afetiva, nem prática nem intelectual, pois esses termos nomeiam distinções que a reflexão pode fazer dentro dela. (2010, p.112).
As próprias especificidades que música e urbe adquirem ao serem vívidas em uma
cena musical presentificam a abertura para essas experiências. Há uma negociação sensorial
entre a cidade em sentido amplo (que envolve circulação de fundo de expressões musicais) e a
presença da música em territórios mapeados através de vivências singulares. Isso não quer
dizer que toda fruição da música nas cenas seja da ordem de uma experiência estética e sim
que as vivências de escuta nas cenas musicais trabalham com enquadramentos que muitas
vezes favorecem a emergência de experiências estéticas. Nesse sentido, é importante atentar
para a qualidade das experiências que podem ser vividas em uma cena musical.
Sendo “interação”, a experiência para Dewey certamente não é “etérea”, está implicada nas condições e nas dimensões concretas da relação do indivíduo com o meio ambiente e conseqüentemente não pode ser caracterizada por um ou outro aspecto exclusivamente. Em outras palavras, isso significa que a “experiência” exige a mobilização sensorial e fisiológica do corpo humano; é ao mesmo tempo uma atividade prática, intelectual e emocional; é um ato de percepção e, portanto, envolve interpretação, repertório, padrões: existe sempre em função de um “objeto”, cuja materialidade, condições de aparição e de circunscrição histórica e social não são indiferentes. (GUIMARÃES; LEAL, 2007, p.7)
A análise dessa “qualidade ímpar” nas cenas musicais está atrelada a suas descrições
por parte da crítica de música, que por sua própria natureza é marcada pelo exercício de
tradução das expressões sonoras em descrições verbais, calcadas muitas vezes em um
processo de “adjetivação” das músicas criticadas. Um dos aspectos preponderantes da crítica
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seria a capacidade de “narrativizar” os produtos musicais, sendo incorporadas então como
parte importante da própria ideia de experiência estética conectada à música popular massiva.
Assim, a experiência em uma cena musical envolve relações em torno da música que
pressupõem interações não só entre a música e o meio ambiente que a circunda, bem como
traços sinestésicos que envolvem práticas de escuta, aspectos imagéticos da música e da
cidade, elementos olfativos, gustativos e uma amplificação dos aspectos táteis que envolvem
as mídias de reprodução musical, a cidade e os participantes das cenas musicais.
As cenas são uma espécie de enquadramento da música que pode funcionar como
canalizador de experiências singulares. Como acontece em boa parte de nossas interações com
os produtos midiáticos, há um jogo tensivo e dinâmico que envolve intensidade e codificação
dos espaços de consumo cultural nas cenas musicais.
Nessa perspectiva, é presumível imaginar uma interação entre o enquadramento, o
imaginário social e as sensibilidades evocadas pelas tramas dos espaços urbanos em conexão
com a diversidade de sonoridades que disputam lugar nesses cenário. Esses estímulos atuam
como elementos sinestésicos que abrem possibilidades para as escutas de uma maneira
singular, que podem evocar uma espécie narrativização da música no ouvinte, pois: “as
narrativas, assim, tecem a experiência vivida e podem aparecer no cotidiano, contadas pelos
seres humanos, ajudando-os a viver e agrupando-os, distinguindo-os, marcando seus lugares e
possibilitando a criação de comunidades” (LEAL, 2006b, p.20).
Assim, a materialização desse processo de comunicação pressupõe a constituição de
uma tessitura narrativa em torno de práticas que envolvem ao mesmo tempo, consumo
cultural, experiências singulares, exercícios sociais e práticas mercadológicas. Segundo o
jornalista Ronaldo Bressane
Agora que ficou combinado que o CD é suporte para o trabalho ao vivo, antes meio que fim, ficou mais liberado todo mundo tocar com todo mundo. Seja solidário ou morra: a cena musical deriva concretamente da dinâmica das redes, que se tornaram o novo paradigma da comunicação (online e interativa, da internet e dos videogames), substituindo o de difusão (próximo dos festivais de TV e dos programas de rádio). Faz sentido a aproximação de artistas e bandas de gêneros musicais distantes. Isso não tem nada a ver com movimento: a liga é mais forma que conteúdo, mais modo de trabalho que programa artístico (2009).
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A própria complexidade da crítica musical, que é produto de um artefato de
comunicação, endereçamento de consumo, condutor de sociabilidades e fruições estéticas
acaba por demonstrar a importância de se compreender a dinâmica da comunicação através de
seus processos, englobando consumos de produtos aos aspectos relacionais que envolvem às
experiências de escuta. Por isso, muitas vezes, nota-se uma tensão entre o processo de
mercantilização das práticas musicais e suas possibilidades de vivências estéticas.
3- Midiatizações
A ideia de que as cenas possibilitam a materialização da música nos espaços urbanos
está alicerçada na afirmação de um processo de midiatização que não pressupõe mais uma
separação entre atores sociais e meios. Na verdade podemos pressupor que o que caracteriza
uma cena musical são as interações relacionais entre música, dispositivos midiáticos, atores
sociais e o tecido urbano em que a música é consumida. De acordo com José Luiz Braga,
a “circulação social” que caracteriza os processos midiáticos, além de ultrapassar o nível de mercado, ultrapassa também o mero uso transmissivo e o “momento de contacto”. Através de retomadas sucessivas e de reobjetivações, o que “faz a mídia” é uma questão social e gera processos que dizem respeito a nossos modos de ser, passando a fazer, nuclearmente, parte da sociedade, quer sejam positivos ou negativos. (2007, p.151)
Uma parcela considerável das vivências dos seres humanos está relacionada ao
consumo de produtos midiáticos que, em grande medida, são responsáveis pelas
possibilidades de experiências singulares para o homem e a mulher contemporâneas. Isso
desloca a perspectiva de experiências relacionadas a objetos específicos para os aspectos
processuais das relações com as mídias. No caso da música, com o fim da hegemonia do
produto editorial (o disco) e a ascensão do consumo música atrelada à experiência em sentido
amplo, o processo midiático, e seus aspectos relacionais, destacam a midiatização como eixo
importante para a compreensão de seus aspectos identitários e da força que o tecido urbano
ganha como cenário em que ocorre esse processo.
Na sociedade em mediatização tudo “vem misturado” em um ambiente de cotidianidade e de situações banais. Tanto no nível da percepção criadora como no que se refere aos processos descritivos de eventuais experiências estéticas,
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não há distinções fortemente preestabelecidas. Reduzido o grau de foco e de atenção, o processo se modifica. A questão que se coloca aqui não é desvalorizar essa situação por contraste a um envolvimento intencionadamente preocupado com questões estéticas. Trata-se diversamente de se perguntar sobre as modificações que tal situação faz incidir sobre a experiência estética. (BRAGA, 2010, p. 77)
Nesse sentido, uma cena musical é configurada por práticas sociais, lógicas
econômicas e vivências sensoriais de ocupação do espaço através dos processos de
midiatização – que envolvem produção, consumo e circulação das expressões musicais. Nesse
sentido, amplia-se a perspectiva inicial, das definições de cena, para perceber que esses
processos de comunicação envolvem possibilidades de gradações tensivas, mas também de
diálogos produtivos entre mercado, criação, produção cultural, consumo global, apropriações
locais e experiência estética. Como se observa em uma matéria sobre Lady Gaga, há uma
outra forma de relacionar-se com a música, que antes de romper com o consumo tradicional
de música, engloba-o, “remediatizando” as práticas tradicionais através das novas esferas de
circulação da música. A crítica musical se torna ainda mais relevante, quando diante desse
cenário ela articula pontos importantes do consumo musical, como a própria existência das
cenas, dos shows e as discussões sobre a qualidade dos produtos que circulam nesse novo
ambiente cultural.
Mesmo ao observar “produtos”, estaríamos voltados, através de seu exame, para questões de circulação em que podem ser envolvidos. Isso assegura a coerência entre o tema da circulação interacional, na qual os produtos midiáticos se inscrevem, e a afirmação anterior sobre os objetos como médium da experiência. (BRAGA, 2010, p. 77)
As cenas musicais fazem então com que a vibração musical se materialize nos espaços
geográficos através de sua nomeação. Há uma tessitura da intriga que envolve letras (ou
não!), melodias e harmonias que circulam na cidade, bem como os lugares em que essas
vibrações são vividas, o modo como se relacionam com outras expressões musicais e como
são imaginadas nos produtos culturais.
Os aspectos táteis da arquitetura, as cores, a amplificação sonora dispostas nos locais
de escuta; a valorização do grave em detrimento dos sons agudos (ou vice-versa), os tipos de
timbragem das vozes, as preferências por locais de apresentação de música, a valorização das
calçadas ou dos inferninhos, os selos de distribuição de música, a tensão com outras
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interações na cidade, os espaços de dança, as lojas de instrumentos musicais, a preferência por
downloads, as banquinhas de camisetas e CDs nos espaços de shows, os pontos de encontro
para bater papo, a vestimenta que paramenta cenas, os psicotrópicos associados às expressões
musicais, enfim, uma série de processos comunicacionais presentes nos aspectos
mercadológicos e sensíveis das cenas musicais.
Em meios a esse panorama podemos perceber como o processo de midiatização do
consumo musical possui traços de continuidade, inclusive destacando-se a permanência do
papel da crítica do jornalismo cultural nessa rede, ao mesmo tempo em que se transforma com
novos formatos de escuta e circulação da música.
A abordagem das cenas musicais proposta na perspectiva apresentada no artigo não
deve assumir ares classificatórios ou numéricos, a observação de como a crítica revela o
entrelaçamento de experiências estéticas e práticas comunicacionais através do mapeamento
das cenas e dos produtos musicais que circulam nestes espaços devem permitir a compreensão
da importância que o exercício dinâmico da crítica assume na consolidação de experiências
estéticas, sociais e mercadológicas.
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-III- “Bom para bandas novas e ruim para as reconhecidas?”
Continuidades e Rupturas na cena do metal nacional na era dos downloads12
Melina Aparecida dos Santos Silva13 Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ
RESUMO
A proposta analisa a disponibilização de álbuns de metal para download, oferecida por bandas nacionais, relacionando-a à economia da dádiva, apresentada pelo antropólogo Marcel Mauss. Parte-se da premissa de que estas práticas de circulação musical na internet, inseridas nesta lógica gratuita e de conflito com a velha guarda do metal, não é desinteressada, e buscam outras moedas de troca como prestígio, emoção e poder. Na primeira parte, descreve-se os modelos de distribuição musical adotados pelos grupos Dynahead, PoisonGod e Liar Symphony, na cena virtual do metal nacional. A seguir, discute-se as ideiais maussianas, estendendo para os pensamentos de Claude Lévi-Strauss sobre o princípio de reciprocidade. Palavras-chave: Metal nacional, Dádiva, Cena Virtual, Downloads.
Headbanger não compra CD no camelô, faz downloads
A pirataria virou um fenômeno mundial, na verdade é a máfia do CD. Não acredito que nos atinjam, não vejo um headbanger comprando um CD de metal no camelô, mas sim fazendo vários downloads. Bom para bandas novas e ruim para as reconhecidas. Infelizmente acham que seu trabalho é gratuito, que você fez música pra animar a festa dos outros. Aliás, foda-se. A gente se adapta à nova realidade (BOCÁTER, 2012, online).
A opinião de Dick Siebert, baixista do ícone do metal nacional Korzus, apresenta a
posição clara da 'velha guarda do metal nacional', quando indagada sobre as 'novas' práticas
de consumo musical, leia-se downloads, realizadas via internet. Faca de dois gumes, “a
12 Trabalho apresentado à Mesa “Das Cenas Urbanas aos Territórios Virtuais: consumo, experiência e materialidades sonoras nas cenas musicais”, do IV Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 15 a 17 de agosto de 2012, na Escola de Comunicação e Artes da USP, São Paulo/SP. 13 Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde desenvolve pesquisa sobre heavy metal nacional e distribuição musical na internet. Pesquisadora do LabCult – Laboratório de pesuqisa em Culturas Urbanas e Tecnologias da Comunicação. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4494152243994844. E-mail: mel.santos1985@yahoo.com.br
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tecnologia trouxe esse mal [piratarias física e virtual14] juntamente com milhares de coisas
boas. Eu [Rodrigo Oliveira, baterista do Korzus] baixo muita coisa da internet, porém nunca
deixei de comprar CDs” (BOCÁTER, 2012, online). Desta forma, ao realizar downloads em
detrimento da compra de álbuns, a nova geração de headbangers, segundo a antiga geração do
metal, “não tem respeito pela música como forma de arte” (ALVES, 2012, online), como
afirmado por Rob Caggiano, guitarrista do grupo norte-americano Anthrax.
Entretanto, ao contrário da velha guarda do metal, que torce o nariz para o
compartilhamento de arquivos digitais, bandas da nova geração postam downloads de seus
álbuns nas redes digitais. Para abordar esta ruptura nas práticas musicais do metal nacional,
no estilo Do it yourself, três bandas ilustrarão o debate proposto: duas da nova geração, a
brasiliense Dynahead e a capixaba PoisonGod, e uma da velha guarda, a paulista Liar
Symphony.
O grupo de thrash metal PoisonGod disponibilizou o EP Bullets e o álbum
Daemonacracy para download, no site oficial, em 2007, após a finalização das gravações do
primeiro trabalho. Duas justificativas descrevem a escolha da banda: a postura do grupo em
relação à distribuição gratuita de álbuns de metal e o objetivo de não se distanciar das 'raízes'
do thrash metal clássico, “num momento onde a música parece carecer de identidade própria”
(POISONGOD, 2007, online). O público, após baixar o arquivo compactado, depara-se com
um manifesto acoplado ao álbum, com capas, letras e fotografias, em que a banda declara sua
posição prol internet, e contra a indústria fonográfica. O PoisonGod, ao contrário do
Dynahead, não lançou o formato físico de Daemoncracy e Bullets.
A banda de progressive/thrash metal Dynahead disponibilizou o primeiro álbum
Antigen (2008) para download, no site oficial, como parte de comemorações do lançamento
do segundo álbum Youniverse. O primeiro chamou a atenção das cenas internacional e
nacional pela técnica e composições de alta qualidade. A banda se destaca pela habilidade em
utilizar as redes sociais para divulgação [Twitter, Facebook, Orkut], visto que, antes de
disponibilizar definitivamente Antigen para download, somente as pessoas que divulgassem o
Dynahead, através do 'pay with a tweet', teriam acesso ao link. O suporte físico de Antigen
está esgotado para venda, desde 2010. Por isso, o arquivo digital foi postado em qualidade
14 Para Gisela Castro, o termo pirataria precisa ser melhor discutido, visto que a proliferação da internet de banda larga tem favorecido a consolidação de novas práticas de consumo musical. Para a autora, os usos e abusos de dispositivos informacionais e controle de cópias não autorizadas, bem como as licenças alternativas do Creative Commons para bens culturais, apresentam o complexo contexto da suposta “pirataria” virtual. Ver mais em: CASTRO, GISELA. Música, internet, consumo e pirataria: alguns pontos para a discussão.
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máxima, 320 kbps, com encarte, wallpapers e letras. Com YOUniverse, o Dynahead
novamente chamou a atenção dos headbangers, devido ao caráter experimental do álbum.
Entretanto, YOUniverse está disponível apenas para venda do suporte físico, sob o preço de
R$15.
Com 19 anos de formação, a banda de power/progressive metal Liar Symphony,
considerada um dos ícones do metal nacional, disponibilizou a discografia completa para
download. Ao contrário das bandas mais antigas, que utilizam a internet para manter os sites
oficiais ou lançam certas faixas dos álbuns para download, como executado pela lendária
Stress15, o Liar Symphony compartilhou os seis álbuns, incluindo o trabalho mais recente,
Acoustic, Alive, in Studio, com encartes e letras. O grupo conquistou reconhecimento na cena
nacional e internacional, a partir de 1997, com a demo Power. Em parceria com o selo
Megahard Records, em 2000, o Liar Symphony gravou o primeiro álbum Affair of Honour,
considerado pela mídia especializada um dos melhores álbuns de 2000. Affair of Honour foi
lançado posteriormente no Japão. Um ano depois, o grupo lançou o segundo álbum, The
Symphony Goes On, distribuído em diversos países. Entre os momentos marcantes do grupo
estão: os shows de abertura do grupo dinamarquês Mercyfyl Fate e do norte-americano
Savatage. Atualmente, o Liar Symphony está em período de gravação do próximo álbum de
trabalho.
Para compreender as disputas nas práticas do metal, partiremos do conceito de cena
musical (STRAW, 1997; 1991). As cenas seriam espaços culturais em que uma diversidade
de práticas musicais coexistem, interagem entre si em meio a vários processos de
diferenciação, levando-se em conta uma gama de trajetórias e mudanças. Assim, a cena do
heavy metal nacional possui dois contextos, formados pelas práticas musicais atuais [bandas
novas] e pela herança musical deixada por grupos anteriores.
O artigo propõe debater as práticas contínuas e as atuais, em torno da cadeia produtiva
do metal nacional. Pretende-se discutir as tensões entre as formas de circulação adotadas por
grupos antigos e a nova geração do heavy metal: disponibilização de downloads nas redes
sociais x distribuição tradicional [venda de suportes]. Para discutirmos as questões, o trabalho
está dividido em duas partes. Na primeira, analisamos a economia da dádiva de Mauss. Na
parte seguinte, descreve-se os modelos de distribuição musical escolhidos pelas bandas de
metal, articulando-os às trocas de dádivas e às descontinuidades na cena do metal. Os
15 Mais informações no site oficial da banda, http: stress.mus.br
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depoimentos foram coletados nos sites oficiais, em entrevistas a mídias segmentadas,
divulgados no período de lançamento dos álbuns.
AS IDEIAS DE MAUSS
O antropólogo Marcel Mauss16 apresenta um entendimento da formação das
sociabilidades através de trocas constantes de ‘dádivas’ (presentes; visitas; festas; comunhões;
esmolas; heranças), em sua obra Ensaio sobre a dádiva. Para ilustrar o caráter universal desse
‘dar-e-receber’, Mauss analisa como sociedades ‘primitivas’ da Polinésia, do Oceano Índico,
da Melanésia e noroeste americano, arquitetavam e realizavam essas distribuições de bens
(potlatch) entre tribos.
Desta forma, argumenta que estas trocas produzem alianças, sejam elas matrimoniais,
políticas (trocas entre chefes), religiosas (sacrifícios), econômicas, jurídicas ou diplomáticas
(hospitalidade). Este sistema de prestações podem ser “totais” (contratos eternos de clã para
clã; de família para família; tendo por intermédio seu chefe) ou “agonísticas” (caso do
potlatch, marcado pelo desenvolvimento da rivalidade entre linhagens) (MAUSS, 2001, p.57).
Na visão do antropólogo, este “sistema das dádivas trocadas” está impregnado “em
todos os sentidos, por dádivas dadas, recebidas, retribuídas, obrigatoriamente; e por interesse,
por grandeza e por serviços, em desafios e em apostas” (MAUSS, 2001, p.97). Assim, são
elementos do potlatch: “a honra; o prestígio” e “a obrigação absoluta de retribuir essas
dádivas sob pena de perder essa autoridade, esse talismã, essa fonte de riqueza que é a própria
autoridade” (MAUSS, 2001, p. 60).
Logo, a dádiva é simultaneamente espontânea e obrigatória. Para Lanna (2000), o
estudo da dádiva permitiu à Sociologia a compreensão de antagonismos observados na
sociedade ocidental, como espontaneidade x obrigatoriedade; interesse x desinteresse;
egoísmo e solidariedade. Contudo, uma das principais contribuições de Mauss, foi a
compreensão de circulação de dádivas como momento de sociabilidades.
Para Claude Lévi-Strauss, e seu “Princípio de Reciprocidade”, as trocas de dádivas
16 Marcel Mauss assumiu a descontinuidade de sua obra Ensaio sobre a dádiva. O antropólogo confrontou-se com críticas, visto que não realizou pesquisa de campo para redigir o Ensaio. As características das sociedades primitivas apresentadas foram coletadas de estudos de Bronislaw Malinowski, Franz Boas e A.R. Radcliffe-Brown. É interessante observar que Mauss participava do Partido Socialista Francês e se pautou para separar a vida pessoal – militância socialista – e acadêmica. Sua obra foi inspiradora para diversos estudos. Um dos mais significativos é o “Movimento anti-utilitarista nas Ciências Sociais”, que publica há mais de uma década o periódico semestral “La Revue du M.A.U.S.S”, organizado por Jacques Godbout e Allain Caillé.
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têm função tripla: 1) restituir presentes anteriormente recebidos (acrescidos de juros
convenientes); 2) estabelecer publicamente a reivindicação de um grupo familiar - ou social -
a um título, ou anunciar oficialmente uma mudança de situação; 3) superar rivais, utilizando a
perspectiva de retribuição (com a expectativa de que o outro não possa realizá-la); “(...) de
maneira a arrancar do rival privilégios, títulos, categoria, autoridade e prestígio” (LÉVI-
STRAUSS, 1982, p. 93).
As festas oferecidas por várias tribos da Nova Guiné, exemplifica Lévi-Strauss, têm
por função principal obter o reconhecimento de um novo membro por testemunhas. Objetivo
semelhante das trocas de dádivas do Alasca. Desta forma, existem variações do circuito de
dádivas, mas há um padrão estrutural que sustenta a distribuição de bens nas diversas
sociedades. Para Lévi-Strauss (1982, p.93), “trata-se de um modelo cultural universal, mesmo
quando não igualmente desenvolvido em toda parte”, em que os participantes não retiram
destas trocas de presentes nenhum benefício ou vantagem econômica. “Os bens não são
somente comodidades econômicas, mas veículos e instrumentos de realidade de outra ordem,
como potência, poder, simpatia, posição e emoção” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p.94).
A GUERRA ENTRE DUAS GERAÇÕES DO METAL “Desde o primeiro ensaio o POISONGOD sempre teve como objetivo principal a
divulgação de sua música para o maior número de pessoas possível, independente do veículo
usado para tal”. Com este tom, o PoisonGod inicia o manifesto, anexo ao álbum, em que
descreve as relações conflitantes entre a indústria fonográfica e o gênero musical. A banda
permitiu que o público redistribuísse e copiasse a obra em questão, sem a necessidade de
pagamento para ter acesso ao formato. “O mercado musical vive hoje o ápice de uma guerra
entre dois mundos: o da indústria fonográfica e o da Internet. Aos poucos vamos percebendo
quem sairá vitorioso nessa guerra. É uma questão de tempo” (POISONGOD, 2007, online).
LEMOS (2005) argumenta que existem artistas que incentivam o acesso às suas obras,
distribuindo-as gratuitamente na rede. Na realidade, eles desejam que os usuários continuem o
seu trabalho, seja reinterpretando-o, reconstruindo-o ou recriando-o. “Para essas pessoas, não
faz sentido nem econômico, nem artístico, que seus trabalhos se submetam ao regime de todos
os direitos reservados” (LEMOS, 2005, p. 83).
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Reforçando o argumento do caráter universal das trocas, que não produzem um
resultado material, como nas transações comerciais de nossa sociedade, observamos que as
bandas da nova geração não esperam um lucro relacionado à moeda em si.
Acreditamos na nossa MÚSICA e na nossa integridade. O dinheiro nunca foi e nunca será força motriz no contexto da banda. Fazemos o que amamos, mesmo que não nos traga retorno financeiro algum. O mercado musical vive hoje o ápice de uma guerra entre dois mundos: O da indústria fonográfica e o da Internet. Aos poucos vamos percebendo quem sairá vitorioso nessa guerra. É uma questão de tempo. A AMBIÇÃO desmedida da indústria fonográfica massacrou o mercado através da prática de preços ABUSIVOS por anos. O consumidor pagava o preço que ELES queriam. E rogava por uma RESPOSTA. Esta resposta veio sob o nome de INTERNET. Não discutimos virtudes e defeitos de ambos os lados. Estamos aqui unicamente para DIVULGAR a nossa música. (…) Pode ser que um dia “DAEMONCRACY” venha a ser lançado oficialmente. Mas a verdade é que os preços abusivos praticados pelas partes integrantes do mecanismo de fabricação de um CD levam a crer que essa hipótese tende a se tornar apenas mais uma utopia. Por isso resolvemos liberar o DOWNLOAD completo do primeiro álbum do POISONGOD. “DAEMONCRACY” foi concebido com o intuito de satisfazer a nós mesmos e a todos os ouvintes da boa música pesada (POISONGOD, online, 2007).
A ação colaborativa implantada por PoisonGod, insere-se na ideia de que, nestas
distribuições de obras, os MP3s não são “somente comodidades econômicas, mas veículos e
instrumentos de realidade de outra ordem, como potência, poder, simpatia, posição, emoção”
(LÉVI-STRAUSS, 1982, p.94).
Ao disponibilizar os álbuns para download, as bandas da nova geração romperam com
as práticas musicais consolidadas pela velha guarda do metal, gerando conflitos em torno dos
downloads, como observa-se na argumentação de Edu Falaschi, vocalista das bandas
Almah/Angra:
Antigamente não tinha internet e as pessoas interagiam entre si! Hoje é tudo muito virtual, tanto pro bem quanto pro mal, as pessoas preferem ficar com a bunda na cadeira em frente do computador vendo os vídeos dos shows e baixando as músicas das bandas, e aí postando seus comentários e conclusões baseadas só no que se vê e ouve pelo computador! (…) O público ausente disso tudo [de ir aos shows; comprar discos] não entende que existe uma troca, o artista faz um trabalho do qual ele acredita, gasta dinheiro e tempo, se dedica, para que em contrapartida, as pessoas que se identifiquem com aquilo e que se tornem fãs, deem seu apoio comprando os discos e indo aos shows, para que seu artista possa continuar a fazer músicas, discos e shows. Não existe uma via de mão única na música (FALASCHI, 2011, online)
Para os grupos da antiga geração, o público perdeu o comprometimento com a cena, a
partir do momento em que baixam álbuns na internet, como revelou o guitarrista do grupo de
thrash metal norte-americano, Rob Caggiano:
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Essa nova geração de garotos não tem respeito pela música como forma de arte. Não entendem o conceito de nossas vidas. É a nossa carreira e custa muito dinheiro para gravar um disco. Quando se está no computador fazendo downloads se está roubando, mas eles não entendem assim. De alguma forma isso precisa mudar e acho que irá. Penso que os músicos precisam retomar o controle ou não sobreviveremos (ALVES, 2012, online).
Nota-se que as práticas típicas das cenas, como troca de correspondências, de fitas-
cassete, ou leitura de fanzines, começaram a se modificar com a internet. O grupo de redes
informais, desenvolvido em torno das cenas, expandiu-se com os fóruns de discussão e trocas
de e-mails. O acesso às informações se tornou veloz, devido à criação de sites oficiais de
bandas, e boletins online. Para Kahn-Harris (2007), a internet produziu novas práticas, ao
transformar, abandonar ou conservar certas dinâmicas. O e-mail substitui, aos poucos, a
circulação de cartas, visto que as trocas de correspondências ainda são realizadas entre
membros da cena. O circuito de performances ao vivo permanece intacto e, cada vez mais,
valorizado pela comunidade. Fanzines e/ou revistas especializadas criaram páginas oficiais na
internet.
Entre as maiores discussões trazidas pelo uso da internet é se o compartilhamento de
arquivos digitais caracterizaria a obsolescência do formato álbum. Álbuns continuam a ser
consumidos pelo público, visto que “ainda há poucos sinais do iminente colapso econômico
da cena, apesar de alguns afirmarem vagamente que as vendas caíram” (KAHN-HARRIS,
2007, p.94). A prática de colecionar formatos musicais, como vinis e CDs, ainda está muito
enraizado na cena, como podemos observar nos catálogos de gravadoras segmentadas, como
Century Media, Roadrunner Records e Relapse Records. Mesmo com o anúncio da morte do
vinil, após a criação do CD [década de 1980], observa-se que o formato possui entusiastas e
colecionadores fiéis.
O debate de Lindsay Fullerton e Matthew Rarrey (2012) sobre colecionadores de
música brasileira que disponibilzam suas coleções em weblogs, apresenta uma reflexão
interessante sobre a materialidade do álbum nas redes digitais. Mesmo com a internet, os
colecionadores se empenham em importar certos aspectos físicos do formato [capas;
imagens], juntamente com os MP3s. Conceito denominado, pelos autores, como
“materialidade virtual”. Semelhante ao detectado nas trocas de arquivos entre headbangers,
em que esferas do CD são transportadas para o digital, nas discografias disponibilizadas em
blogs e programas de compartilhamento. Para Yochim e Biddinger (2008), não é apenas a
qualidade sonora em si que encanta os colecionadores de vinil. Um fator preponderante de sua
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paixão pelo formato é a arte das capas, visto que o tamanho das imagens é superior ao
apresentado no CD. “(...) ele proporciona espaço para arte mais elaborada, encorajando os
artistas a serem mais cuidadosos, e esforçados, na criação das capas" (p.191).
O conflito entre as duas gerações do metal nacional, originado por esta distribuição de
álbuns na internet, apresenta duas características do potlatch: a) reivindicação pública de um
grupo social [a internet a favor de bandas novas; velha guarda x pirataria física e virtual] ou
anunciar oficialmente uma mudança de posição [bandas novas que disponibilizam álbuns
inteiros para download]; b) superar rivais [o gênero musical x a indústria fonográfica e seus
padrões estéticos e comerciais; os próprios veículos de comunicação etc]. A internet se
transformou numa resposta para os grupos de metal, ignorados pelos grandes veículos de
comunicação. Nas palavras de Pedro Esteves, guitarrista do Liar Symphony:
Metal, nunca vai tocar no Faustão, o Metal aqui é completamente marginalizado pela mídia popular, mesmo com shows lotados e sendo uma puta indústria, a mídia só dá espaço pro axé, pagode, sertanejo, etc, eu não tenho nada contra esses estilos, cada um na sua, mas não precisa marginalizar quem esta de fora desse grupo (ESTEVES, 2008, online).
As práticas de circulação musical inserem-se na análise de mercado de bens
simbólicos (BOURDIEU,1992). O sociólogo afirma que os campos culturais são constituídos
por dois modos distintos de produção e de circulação: a) economia da arte pela arte, onde
encontramos rupturas com a ideia do 'lucro rápido', adotado pela indústria cultural; b) a
comercialização de obras intelectuais, conferindo prioridade ao sucesso imediato e
temporário. A entrevista de Caio Duarte, vocalista do Dynahead, é esclarecedora sobre a
esfera da arte pela arte no metal.
É bacana ver a coisa se espalhando de uma forma orgânica, no boca a boca, sem politicagem nem jabá. Algumas pessoas realmente se conectam à nossa música e cada vez que recebemos um e-mail de alguém de outro continente dizendo que está apaixonado por nosso trabalho. Sabemos que está sendo um grande sucesso mesmo sem vender milhões de cópias (FINATTO JR, 2012, online).
Como verificado nos depoimentos listados anteriormente, existem divergências de
opiniões entre a velha e a nova guardas sobre o papel da internet para o fortalecimento do
cenário. Neste caso, a visão de Janotti Jr (2011) sobre as negociações que envolvem as cenas
musicais é esclarecedora:
Por mais que vivamos na época da rede mundial de computadores, são as próprias
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modificações culturais operadas pela internet que fazem com que as cenas musicais se materializem nas cidades, através dos aspectos táteis da arquitetura; (…) das preferências por locais de apresentação de música; da valorização das calçadas ou dos inferninhos; dos selos de distribuição de música; da tensão com outras interações na cidade; dos espaços de dança, das lojas de instrumentos musicais, da preferência por downloads, das banquinhas de camisetas e dos CDs nos espaços de shows, dos pontos de encontro para bater papo, da vestimenta que paramenta cenas, dos psicotrópicos associados às expressões musicais, da crítica e da circulação de comentários sobre as cenas. Enfim, uma série de aparatos culturais que forjam os aspectos mercadológicos e sensíveis do consumo especializado de música nas cidades contemporâneas (JANOTTI JR, 2011, p.13).
Estas rupturas, conflitantes com o mercado fonográfico e com a velha guarda do metal
nacional, apresentam as relações de força inseridas no campo [e subcampos] da música
popular massiva17 (JANOTTI, 2007). Estes subcampos estão ligados a gêneros que
reproduzem o modelo de distribuição, além de criar capitais simbólicos gerados pelas práticas
de produção, rotulação, circulação e consumo musical. “Essas práticas conferem autoridade,
prestígio, distinção, destaque e reconhecimento aos atores do campo musical” (JANOTTI,
2007, p.5).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao discutir o paradigma da dádiva, Lanna (2000) defende que por mais que a
sociedade ocidental moderna se caracterize pelo capitalismo, Mauss (1950) nos alerta que
“nem tudo está ainda classificado exclusivamente em termos de compra e venda” (p.174). Se,
em alguns contextos, existem conflitos entre a dádiva e a mercadoria, em outros pode ocorrer
complementaridade. Há esferas onde cada uma dessas ideias opostas se verificam, a
mercadoria ora pressupondo ora destruindo a dádiva.
É neste contexto que inserimos nossa questão: arriscamos que as trocas de músicas no
ciberespaço, realizadas por músicos independentes e usuários, apresentam similaridades com
o potlatch observado por Mauss no Ensaio. Neste circuito musical, notamos que existem
conflitos entre a dádiva e a mercadoria, inseridas na cena do metal nacional: nova geração e
disponibilização de álbuns x velha geração e a relação com a venda de suportes físicos. Deste
modo, observamos que as trocas de dádivas assumem formas e conteúdos variados, como na
circulação de músicas na internet.
17 Janotti (2006) apresenta a música popular massiva como um campo, análise que pressupõe o reconhecimento de uma linguagem própria, acúmulo de capital simbólico por parte dos atores envolvidos no meio musical. O pesquisador destaca o uso das tecnologias digitais na produção musical; a manipulação dos elementos plásticos dos sons e apropriações culturais ligadas às afirmações de autonomia das expressões musicais.
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REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CASTRO, Gisela. Música, internet, consumo e pirataria. In: I Encontro da Ulepicc-Brasil. Economia Política da Comunicação: Interfaces sociais e Acadêmicas do Brasil. Niterói, Rio de Janeiro, out.2006. FULLERTON, Lindsay; RAREY, Matthew. Virtual Materiality: Collectors and Collection in the Brazilian Music Blogosphere. Communication, Culture & Critique. Vol 5, n.1 (Março, 2012). JANOTTI, Jeder. Música Popular Massiva e Comunicação: um universo particular. In: VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação – NP Comunicação e Culturas Urbanas. XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos, São Paulo, 2007. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1144-1.pdf. Acesso em 12 mai 2012. JANOTTI JR, Jeder. Os Cantos das Cidades: cenas musicais e mediatização na era dos downloads. In: XI Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação – NP Comunicação e Culturas Urbanas. XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Recife, Pernambuco, 2011. KHAN-HARRIS, Keith. Extreme metal: music and culture on the edge. Oxford: Berg, 2007. LANNA, Marcos. Notas sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, Paraná, nº14, p.173-194, jun.2000. LEMOS, Ronaldo. Direito, tecnologia e cultura. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005. LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1982. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Rio de Janeiro: Edições 70, 2001. STRAW, Will. Systems of Articulation, Logics of Change: Scenes and Communities in
Popular Music. Cultural Studies Vol. 5, No. 3, Oct. 1991, pp. 361-375.
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Programas de Pós-graduação em Comunicação, ago.2006.
TAYLOR, Charles. Uma era secular. São Leopoldo: UNISINOS, 2010.
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-IV- Perto e longe das capitais18
a cena (descentralizada) da nova música instrumental brasileira
Victor de Almeida Nobre Pires19 Universidade Federal de Pernambuco, Recife/PE Resumo: O presente artigo analisa a cena de rock instrumental brasileira a partir das noções propostas por Will Straw, Andy Bennett & Richard Peterson, Holly Kruse, João Freire Filho & Fernanda Fernandes e Jeder Janotti Jr. Pensando as cenas como redes de alianças em torno de determinados gêneros e rótulos musicais, localizadas ou descentralizadas. A partir disso, o artigo mostra o surgimento da nova cena de música instrumental, como foi rotulada pela mídia, a partir de três polos – São Paulo, Belo Horizonte e Cuiabá – para depois se espalhar por outras localidades e se mostrar como uma cena articulada nacionalmente.
Palavras-chave: Cena Musical 1, Nova música instrumental 2, São Paulo 3, Belo Horizonte 4 e Cuiabá 5.
Introdução
No início dos anos 2000, começaram a surgir no Brasil algumas bandas, que
influenciadas por grupos estrangeiros, mesclavam elementos do rock, em suas mais variadas
vertentes, para a composição de músicas sem letra. Bandas instrumentais como Tortoise
(EUA), Mogwai (ESC), Godspeed You! Black Emperor (CAN) e Explosions In The Sky
(EUA) eram referências para boa parte dos grupos que nasciam no começo do novo século em
solo brasileiro.
As letras e vocais, elementos de grande importância dentro do rock, não eram mais
importantes para essas bandas. Esses elementos perderam espaço para as ambiências e os
temas que eram criados a partir da experimentação musical. E essas influências se refletiram
no surgimento das primeiras bandas de rock instrumental no Brasil.
Bandas como Hurtmold (SP), Macaco Bong (MT), Constantina (MG), Ruído/mm
(PR), Sobre a Máquina (RJ), A Banda de Joseph Tourton (PE), Labirinto (SP), Burro Morto
(PB), Herod Layne (SP), Camarones Orquestra Guitarrística (RN), dentre outras, atraíram a
18 Trabalho apresentado a mesa coordenada “Das Cenas Urbanas aos Territórios Virtuais: consumo, experiência e materialidades sonoras nas cenas musicais”, do IV Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, realizado no período de 15 a 17 de agosto de 2012, na Escola de Comunicação e Artes da USP, São Paulo/SP. 19 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4417759H3, victoranpires@gmail.com.
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atenção da mídia para o que está acontecendo. A medida que as primeiras bandas começavam
a se destacar localmente em suas respectivas regiões, era possível ver um conjunto de grupos
que tinham traços estéticos em comum, festivais que aglutinavam a circulação, selos que
lançavam os discos.
O discurso midiático sobre as bandas colocava em questão o surgimento de uma cena,
que foi nomeada como a nova cena de música instrumental. Mas ao contrário do que ocorria
anteriormente, quando uma cidade só aglutinava toda movimentação, agora várias cidades
assumem protagonismo com bandas, festivais e selos.
O presente artigo tem como objetivo analisar a nova cena de música instrumental, a
partir das noções propostas por Will Straw, Andy Bennet & Richard Petterson, Holly Kruse,
Fernanda Ferandes & João Freire Filho e Jeder Janotti Jr. Além de mostrar que é possível
pensar numa cena que se articule não apenas em uma cidade, mas nacionalmente.
Cenas musicais: do local aos pólos descentralizados
A ideia de “cena” foi pensada para tentar dar conta de uma série de práticas sociais,
econômicas, tecnológicas e estéticas ligadas aos modos como a música se faz presente nos
espaços urbanos. Isso inclui processos de criação, distribuição e circulação, além das relações
sociais, afetivas e econômicas decorrentes desses fenômenos.
É um termo que leva a refletir como o espaço urbano e os atores sociais ligados à
música exercem influência e são importantes para afirmação de bandas e gêneros musicais,
principalmente, ligados ao rock. Por exemplo, é assumir o protagonismo da cidade do festival
Abril Pro Rock para a consolidação da cena manguebeat e do festival e programa de rádio
Coquetel Molotov para a afirmação da cena indie, ambos na cidade de Recife.
Atentando para isso, o primeiro pesquisador a propor a análise das cenas como um
conceito que permitia a compreensão mais ampla de parte das práticas musicais atuais foi
Will Straw. De acordo com a primeira definição de Straw, cena musical é “um espaço cultural
em que várias práticas musicais coexistem interagindo entre si com uma variedade de
processos de diferenciação” (1997, p.494).
Toda cena musical é um conjunto de práticas ao redor de gêneros, rótulos e
arquiteturas musicais que permitem uma relações dinâmica entre o modo como são
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negociados o consumo dos produtos culturais nas diversas tessituras urbanas em que
circulamos e o cosmopolitismo ligado a essas mesmas práticas.
Se, em um primeiro momento os textos de Straw pareciam muito ligados às práticas
locais, por outro lado não podemos deixar de lembrar que cenas já citadas, como o grunge de
Seattle ou a cena mangue de Recife, permitiram a conexão da música produzida nesses locais
aos espaços globalizados do circuito cultural de consumo da música.
Com a popularização da Internet, as fronteiras pensadas por Straw foram modificadas
pela forte presença de práticas de produção, circulação e consumo de música presentes nas
redes de comunicação digital. Portanto, a ideia de cena musical foi ampliada, valorizando
ainda mais questões como a globalização das culturas musicais e os novos limites abertos
pelas tecnologias de comunicação.
Ainda com o passar do tempo e o desenvolvimento das redes sociais dedicadas à
música, a noção de cena passaria por mais mudanças adquirindo novas possibilidades. Pois,
por ser uma ideia flexível, o conceito de cenal musical foi ampliada assumindo as mudanças
que transformaram a produção e o consumo musical no início dos anos 2000.
Repensando os trabalhos de Straw, Andy Bennett & Richard Peterson, colocaram em
questão uma classificação de cenas. Segundo os autores, as cenas musicais poderiam ser
classificadas de acordo com o tipo, alcance e formação, levando em conta o desenvolvimento
das tecnologias de comunicação, das redes sociais e o aumento da complexidade das relações
estabelecidas entre a música, a cidade e os atores socais.
De acordo com os autores, as cenas são de três tipos: local, translocal e virtual. O que
pressupõe levar em consideração a (...) “relação orgânica entre a música e a história cultural
local e as maneiras nas quais a cena emergente usa a música apropriada via os fluxos globais e
redes para construir narrativas particulares locais” (BENNETT & PETERSON, 2004, p. 07).
Para os autores, as cenas locais apresentariam práticas musicais restritas a determinada
localidade e práticas especificas ligadas à tradição cultural.
Ainda segundo os autores, as cenas locais são focadas em atividades sociais que
acontecem em um espaço delimitado e em uma época específica. Eles demonstram interesse
em centros de um gênero em particular, onde essas cenas desenvolvem elementos de estilos
de vida em comum, o que geralmente inclui maneiras de dançar, estilo de vestuário, uso de
determinadas drogas, política e mais uma variadade de fatores.
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Levando isso em consideração, poderíamos pensar a cena manguebeat como um
exemplo materializado de cena local. Pois, ao mesmo tempo, em que a musicalidade
característica do mangue seja um diálogo entre expressões da cultura popular com práticas
musicais globais, a cena era restrita à cidade de Recife, bem como aos anos 90.
As cenas translocais são uma gradação das cenas locais. As relações sociais,
econômicas e culturais tornam-se mais complexas e o intercâmbio de informações entre
diferentes localidades se evidencia.
(...) a maioria das cenas locais que focam em um gênero musical particular estão em contato regular com outras cenas locais similares em lugares distantes. Elas interagem entre si trocando gravações, bandas, fãs e fanzines”. (BENNETT & PETERSON, 2004, p.9)
A tese defendida aqui no presente trabalho é que as articulações desenvolvidas na
nova cena de música instrumental a fariam um exemplo de cena translocal. Já que, como será
apresentado a seguir, a cena tem vários pólos de articulação, com destaque para São Paulo,
Belo Horizonte e Cuiabá (mas poderíamos pensar outros pólos como Natal, Recife, Salvador
e Curitiba também) ela se desenvolve a partir das bandas, selos, festivais e fãs dessas cidades.
Por sua vez, as cenas virtuais teriam aparecido na era em que
(...) comunicação eletrônica, fã-clubes de determinado artista, banda e subgênero se proliferaram usando a Internet para se comunicarem entre si. Como os participantes das cenas translocais, os participantes da cenas virtuais estão separados geograficamente, mas ao contrário da cenas translocais, os participantes da cena virtual formam uma única cena através da Internet. (BENNETT & PETERSON, 2004, p.10)
Ainda que as cenas locais e translocais sejam movidas pelos contatos cara-a-cara em
shows, clubes noturnos, festivais, onde os fãs convergem, se comunicam e compartilham o
senso de pertencimento a determinada cena, na cena virtual o contato pessoa-a-pessoa é
mediado pela internet e o controle é exercido mais fortemente pelos fãs.
Ainda que Bennett & Peterson, tragam exemplos de cenas virtuais, compostas por um
apenas um artista (como a cena devotada a cantora britânica Kate Bush), por listas de
discussão dedicadas ao alternative country, por fanzines focados no pós-rock e até no revival
do Canterbury Sound dos anos 60, por entusiastas em comunidades online que, através da
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nostalgia, trazem de volta o rock associado a uma cidade inglesa, não me parece que essas
cenas virtuais devam existir em outro contexto.
Ao meu ver, as cenas musicais, como descritas por Straw, se caracterizam por ser um
espaço cultural onde determinadas práticas musicais são desenvolvidas, comunicadas e
consumidas. A internet, ao meu ver, não caracterizaria uma cena distinta, mas atuaria como
um canal de comunicação seria capaz de alargar as fronteiras e o alcance das cenas musicais,
sejam elas locais ou translocais.
Segundo Freire Filho e Fernandes,
A utilização do conceito de cena permite escaparmos de uma descrição mais restrita da mecânica da experiência sociomusical, ampliando o escopo da análise, passando a considerar a rede de afiliações mais ampla que permeia atividade musical (...) Lançar mão do conceito de cenas musicais – como moldura analítica para o estudo da lógica de formação das alianças, no campo da experiência musical independente da cidade – pode ajudar a capturar, mais integralmente, a gama de forças que afetam a prática musical urbana. (2006, p.33)
Se é possível que uma cidade como Maceió articule uma cena de indie rock, com suas
bandas, público, mídia, festivais e circuito próprio, também é possível pensar que uma
articulação semelhante aconteça em Recife, Natal, João Pessoa – fazendo que essas cenas
dialoguem regionalmente – bem como em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
Horizonte – para se pensar em uma rede nacional. Nesse sentido, percebe-se que as fronteiras
das cenas são dinâmicas e são reconfiguradas a partir das articulações com outras localidades.
Os centros do rock instrumental: uma cena, vários pólos
Para se pensar o rock instrumental no Brasil, como uma cena descentralizada é preciso
perceber a articulação que ocorreu nas cidades para o surgimentos de bandas, consolidação
das mesmas e como algo que acontecia em um centro vai assumindo capilaridades em outras
localidades.
Para narrar o desenvolvimento da nova cena de música instrumental, o presente
trabalho propõe a análise inicial de três centros urbanos – São Paulo, Belo Horizonte e Cuiabá
– cidades onde, respectivamente, nasceram as bandas Hurtmold, Constantina e Macaco Bong
– três dos grupos de maior importância para o surgimento e popularização da cena.
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São Paulo, 1998.
Egressos de bandas de hardcore, Maurício Takara, Guilherme Granado, Marcos Gerez,
Mário Cappi e Fernando Cappi montam o Hurtmold. Pós-rock, jazz, música brasileira,
hardcore, afrobeat, tudo isso era matéria-prima e influência. O grupo, que em 2003, incluiu o
percussionista Rogério Martins e desde então tem sua formação fixa de sexteto.
A sonoridade do grupo remetia, no início, à grupos de fora do país, como o Fugazi,
banda mítica do cenário punk rock norte-americano liderada por Ian Mackaye, e,
principalmente, o Tortoise, grupo instrumental de Chicago. Mas o fato do Hurtmold ter sido
influenciado por essas bandas não foi um fator limitador. As características do grupo
mudariam com a incorporação de elementos da música brasileira e com o passar do tempo
criariam uma sonoridade híbrida. Segundo uma matéria do jornalista Diego Dacax para o
Guia da Semana:
Nessa época, punk e hardcore estavam entre os sons mais escutados por eles. Fugazi é uma banda que sempre foi referência para os caras. E isso fica mais evidente nos primeiros álbuns. Em 3 am: A Fonte Secou..., lançado em 1999 apenas em fita K7, e E.T. Cetera, que saiu um ano depois em CD, essas influências ficam mais explícitas. Nessa segunda obra, no entanto, o baixo e a bateria já se destacavam mais, sinalizando de certa forma o que viria pela frente. (DACAX, S/D)
No ano de 2004, a banda lançaria o disco de maior repercussão de sua carreira até
então. Com Mestro (Submarine Records, 2004), a música do grupo começaria a transpor as
fronteiras brasileiras. Além do álbum ter sido lançado na França pelo selo Nacopajaz, o
Hurtmold fez uma turnê pela Europa, incluindo participação no Festival Sónar (ESP).
Se por um lado é possível pensar na projeção do Hurtmold fora do país com Mestro,
por outro, com o mesmo disco, a banda abriu algumas portas para a nova música instrumental
no Brasil. O sexteto de São Paulo participou de vários festivais grandes ao redor do país.
Acho que hoje existe uma abertura maior em vários sentidos. Não só pelo estilo musical, mas por toda uma aceitação estética em si. Algo que já existe há muito (tempo) na música, mas ainda era um pouco remoto por aqui. Acho também que o Hurtmold já abriu algumas portas que o MDM (projeto solo do instrumentista) não terá que abrir, saca? (Mário Cappi, guitarrista do Hurtmold, em entrevista ao autor)
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Além de Mestro, banda já lançou outros quatro discos: Et Cetera (Submarine Records,
2000), Cozido (Submarine Records, 2002), Hurtmold/The Eternals – Split (Submarine
Records, 2003) e Hurtmold (Submarine Records, 2007). Com uma carreira em ascensão, a
banda começou a despontar no cenário independente nacional. Em 2007, no dia 17 de julho, a
Folha de São Paulo publicou na capa de seu caderno Ilustrada, uma reportagem sobre o
surgimento e desenvolvimento de bandas instrumentais em São Paulo intitulada de “Rock
esquisitão”.
Se, antes, a banda Ira! era a cara de São Paulo, ao cantar versos como “pobre São Paulo, pobre paulista”, hoje grupos “silenciosos” como Hurtmold refletem toda a confusão, as contradições e a variedade cultural que movem a cidade. (SAITO, 2007)
Para alguns jornalistas musicais, o marco zero da formação da nova cena de música
instrumental brasileira é o lançamento de Et Cetera. Mesmo que outras bandas já existissem
nessa época, o primeiro disco a ter certa relevância no cenário independente e apontar para
essa nova tendência foi o debut do Hurtmold.
Mas a banda conseguiu fugir dos nichos e dos rótulos de música difícil ou inacessível
e conseguiu ser bem aceita por um público que acompanhava o cenário independente
nacional. Após figurar em vários festivais no Brasil, passando pelo circuito do jazz, da música
contemporânea e do indie rock, o Hurtmold aparecia não só como o maior expoente do pós-
rock e da nova música instrumental brasileira, mas também, como uma das bandas mais
respeitadas no cenário independente.
Belo Horizonte, 2003.
O Hurtmold já tinha lançado Et Cetera e Cozido. O rock instrumental no Brasil dava,
então, os primeiros passos quando quatro bandas mineiras encerravam suas atividades. Dos
grupos Ana, Retórica, Moan e Filit saíram seis músicos, que juntos decidiram criar músicas
instrumentais com sutis interferências eletrônicas, a banda se chamaria Constantina.
O Constantina aparece em um momento em que ainda não se falava tanto em música
instrumental ou pós-rock, no Brasil. Algumas bandas em São Paulo começavam a se destacar
no circuito underground, quando os irmãos Daniel Nunes, Bruno Nunes e Leo Nunes se
reuniram. Minas Gerais entraria no mapa da nova música instrumental brasileira.
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Dois anos após a formação do grupo, eles lançaram o primeiro disco: Constantina (La
Petite Chambre, 2005). O álbum rendeu boas surpresas e foi considerado pela Trama Virtual
como um dos melhores discos daquele ano. Se o Hurtmold ficou conhecido pelo caráter
orgânico e forte presença percussiva, o Constantina ficaria conhecido pelas belas melodias e
ambiências.
Flavio Seixlack escreveu para o portal do Trama Virtual:
A banda mineira de rock instrumental Constantina aparece como uma das boas surpresas do ano. O ano de 2005 vem chegando ao fim, mas não para de revelar surpresas no meio musical independente. Talvez uma das melhores entre elas venha de Minas Gerais. O Constantina, que conta com seis integrantes, faz música instrumental remetendo a bandas como Explosions In The Sky e Do May Say Think. Fugindo do termo post-rock, o grupo, que não tem vocalista, teve seu primeiro disco lançado esse ano por seu próprio selo. (SEIXLACK, 2005)
O segundo álbum, Jaburu (Open Field, 2006), é inteiro composto por sobras das
sessões de gravação do primeiro disco. O disco foi resenhado pelo jornal online português
BodySpace, onde apareceu como uma referência da nova musica instrumental independente
brasileira. Segundo André Gomes:
O pós-rock parece ter caído bem às bandas brasileiras mais underground. Parece ser um dos caminhos mais apetecíveis para quem quer estar na periferia da música feita no Brasil. Os Hurtmold estarão à cabeça nesse território (muito graças a Mestro de 2004), mas existem outras bandas que, de forma mais ou menos distinta, seguram a bandeira do pós-rock, fazendo dele diferentes aproveitamentos. Os Constantina são uma dessas bandas, um colectivo de Belo Horizonte que se reuniu em 2003 com o intuito de, acreditando no myspace como fonte, “criar, experimentar, tocar, montar, mostrar”, numa lógica de intimismo colectivo. (GOMES, 2006)
O Constantina ainda seria reconhecido pelo caráter experimental e improvisado de seu
trabalho. O terceiro disco da banda, seguindo um pouco o rumo de Jaburu, foi um disco
composto “ao vivo”. Música Livre em Mariana/MG (La Petite Chambre, 2007) é o registro de
um show dos mineiros com a dupla catarinense Colorir.
O show foi disponibilizado para download gratuito e conta com apenas uma música de
cerca de uma hora de duração, que nunca foi ensaiada e foi criada a partir da interação dos
músicos improvisando durante toda a apresentação. É importante perceber que a Internet tem
uma forte influência na construção da trajetória dessas bandas. Se não fosse o aparecimento e
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o desenvolvimento da banda larga no Brasil, por exemplo, iniciativas como essas não seriam
possíveis.
No início do ano seguinte, após o show em Mariana, a banda lança o seu terceiro disco
Hola, Amigos! (La Petite Chambre, 2008). O álbum tem quatro músicas que comprovavam o
amadurecimento do grupo com uma linguagem um pouco mais pop e trabalhando com um
processo de pós-produção mais profissional.
Em 2010, após um hiato de cerca de dois anos, o Constantina volta a ativa, agora
como um septeto, e prepara o sucessor de Hola, Amigos!. Haveno, lançado em 2011, colocou
a banda em outro patamar. Com o lançamento do disco, o grupo foi convidado em 2011 para
o festival South by Southwest, realizado no Texas, e em março de 2012 está embarcando para
a segunda turnê em solo americano.
Mas o Constantina é importante para sua região não só por causa da sua música. A
movimentação cultural feita pelos seus integrantes colocou Belo Horizonte no circuito e já é
possível visualizar outras iniciativas importantes, além do selo e do Festival Pequenas
Sessões, ambos geridos pela banda. Por isso, é possível ver um cenário fértil para o
surgimento de novas bandas instrumentais em Minas Gerais, como os novos Dibigode,
4instrumental e Iconili.
Cuiabá, 2004.
O Macaco Bong é um trio instrumental formado pelo tripé básico do rock: guitarra,
baixo e bateria. Enquanto o Hurtmold, em São Paulo, conseguiu ter relevância na mídia
especializada e destaque em grandes festivais de música, o Macaco Bong fez o caminho
inverso, circulou pelas cinco regiões do Brasil fazendo pequenos shows para formação de
platéia. O trio formado por Bruno Kayapy, Ynaiã Benthroldo e Ney Hugo circulou por
circuitos diferenciados, tanto nas casas de shows e festivais dedicados ao indie rock, como em
eventos do circuito da música instrumental brasileira.
No ano de 2004, o Brasil se preparava para ver a formação de duas instituições
importantes para o cenário independente nacional. No ano seguinte, o Circuito Fora do Eixo e
a Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin) seriam fundados e uma das
bandas que mais soube tirar proveito do circuito cultural que se organizaria a partir desse
momento foi o Macaco Bong.
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Antes de gravar o primeiro disco, a banda lançou dois EPs, o primeiro com três
músicas e o segundo com cinco, disponibilizados gratuitamente pela plataforma do Trama
Virtual e foi destaque em vários festivais pelo Brasil, principalmente os ligados ao circuito
Fora do Eixo e à Abrafin: Grito Rock (MT), Festival Calango (MT), Goiânia Noise Festival
(GO), MADA Festival (RN), PMW Festival (TO), Festival Varadouro (AC), Festival
Jambolada (MG), Festival Demosul (PR), Festival Beradeiros (RO), Vaca Amarela Festival
(GO), Laboratório Pop Festival (RJ), entre outros.
Em 2008, a banda lançaria seu primeiro disco. Artista Igual Pedreiro (Monstro
Discos, 2008), também lançado pelo Álbum Virtual da Trama, chegando a figurar como o
mais baixado a frente de artistas como Elis Regina, Tom Zé e Otto. O disco foi muito bem
recebido pela crítica de publicações tradicionais e de pequenos blogs. Hugo Montarroyos, em
texto para o blog da revista O Grito, escreveu:
Pensando bem, a estratégia de lançar o disco gratuitamente pela Trama Virtual, através do projeto Álbum Virtual foi mais do que acertada. Artista Igual Pedreiro é daquelas obras que, esteticamente, estão bem distante do diálogo popular e do consumo fácil. É uma jornada de mais de uma hora pelos caminhos obscuros da música instrumental, pouco acessível e de concessão zero para o ouvinte. Este é exigido na audição de cada segundo, instigado, provocado, e por vezes levado até a vontade de desligar o som e contemplar o silêncio. Mas, por algum mistério da natureza musical do trio, acaba não o fazendo. (MONTARROYOS, 2008)
Ainda no ano de 2008, a banda foi a que mais circulou dentro dos festivais
independentes. Analisando as programações dos festivais de música vinculados à Abrafin
naquele ano, é possível localizar a participação do trio em cinco deles. Aliando uma boa
divulgação na Internet com uma estratégia de circulação descentralizada, o Macaco Bong fez
de Artista Igual Pedreiro um dos discos mais comentados do ano.
Tanto que no final do ano de lançamento, a banda teve o seu disco de estreia escolhido
pela revista Rolling Stone como o melhor disco nacional do ano, um feito inédito para uma
banda instrumental, a frente de artistas mais populares como Mallu Magalhães, Lenine e Ney
Matogrosso.
Essa premiação é considerada por muitos como um dos grandes acontecimentos para o
rock instrumental no Brasil. Sinal de que, além de bons shows, as bandas fazem bons discos e
de qualidade reconhecida pela mídia especializada.
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O Macaco Bong, então, ajudou no alargamento do público das bandas instrumentais
que passavam a circular mais pelo Brasil. A partir de 2007, o que se viu foi um crescimento
do número de bandas instrumentais, do espaço na mídia, de eventos que incluíam grupos
desse tipo e eventos dedicados exclusivamente à nova música instrumental brasileira. Era o
nascimento de uma cena que agregava bandas com sonoridades bastante diversificadas e de
diferentes regiões do Brasil em torno do diferencial de produção de rock instrumental.
Saindo do eixo
Já influenciados por Hurtmold, Constantina e Macaco Bong, muitos grupos
começaram a aparecer influenciados pela nova música instrumental brasileira, aumentando, e
muito, o número de bandas. As bandas rotuladas como “instrumentais” começaram a ter lugar
cativo em festivais, circular pelo Brasil e se apresentar para outros públicos dentro de
circuitos distintos. Mas, além de figurar nesses circuitos independentes, a nova música
instrumental brasileira começa a ter seu próprio cenário. Pois, a maioria das bandas
instrumentais circulavam, e ainda circulam, majoritariamente em outros circuitos como o do
indie rock, por exemplo.
Em reportagem do Jornal O Globo, publicada em 21 de junho de 2009, o jornalista
William Helal Filho analisa o surgimento de um conjunto de bandas instrumentais no Brasil.
E para tal, o jornalista faz o uso do termo cena para abarcar as bandas analisadas. Segundo
ele:
Ficou no passado aquele rock instrumental viajante, de músicos se achando deuses pregando talento no palco. Por todo o Brasil, a cena independente está vendo crescer a família de bandas mudas, mas baseadas em linhas escancaradamente pop. Com um som superacessível, grupos como Macaco Bong (MT), Pata de Elefante (RS) e Fantasmagore (RJ) deram voz a uma turma que era vista com algum preconceito pelo público. (HELAL FILHO, 2009)
A reportagem aprofunda a pesquisa e mostra que a tendência já estava espalhada por
boa parte do país. Bandas começaram a despontar em estados como Ceará, Paraná, Bahia, Rio
de Janeiro e Paraíba, mostrando que a nova música instrumental não estava restrita apenas a
São Paulo.
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Esse bonde do instrumental tem passageiros de todos os cantos. Entre os mais badalados também estão Elma (São Paulo), Fóssil (Ceará), Burro Morto (Paraíba), Trilobit (Paraná) e por aí vai. O Retrofoguetes, formado em Salvador por devotos da Surf Music e do Rockabilly, acabou de lançar seu já elogiado último CD, "Cha cha chá". O engraçado é que, em muitos casos, a ideia inicial nem era ficar sem vocalista. Foi assim, por exemplo, com o Pata de Elefante, o Macaco Bong e o Fantasmagore, formado no Rio ano passado, com influências como Black Sabbath, White Stripes e The Strokes. (HELAL FILHO, 2009)
Esse tipo de reportagem sobre o surgimento da nova cena de música instrumental se
tornou uma constante em vários veículos do Brasil. Jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro
já tinha atentado para o fato. Mas ao contrário do que se viu em cenas mais conhecidas, em
que geralmente era levado em conta o surgimento de uma movimentação em torno de um
gênero musical particular. O que se pode perceber no caso é que a cena da nova música
instrumental nasceu e foi fortalecida não por um gênero musical específico, mas por diversos
gêneros que foram agrupados sobre o rótulo “instrumental”. Assim, foi possível unir bandas
de gêneros tão distintos em torno de algo comum.
O Diário de Pernambuco publicou no dia 07 de fevereiro de 2010 uma reportagem
fazendo a mesma análise que as outras citadas anteriormente, mostrando como a nova música
que circulava no Brasil tinha influenciado a música pernambucana. A reportagem de André
Dib chama a atenção para a visibilidade que as novas bandas recebiam.
O rock instrumental está em alta. No Recife, bandas se organizam em palcos e estúdios. Ao longo deste ano, Wassab, Ska Maria Pastora e Anjo Gabriel lançam álbuns de estreia. O mesmo vale para Radistae e A Banda de Joseph Tourton, [...] Elas reforçam o cenário formado por grupos de composições próprias, jovens e veteranos, como Rivotrill, Monodecks, A Roda, Tonami Dub, Chambaril, Monstro Amor, Treminhão, Variant TL e Kastarrara. [...] A diferença é que agora elas estão mais visíveis. A ascensão do formato tem a ver com o surgimento de produtores dispostos, um circuito de festivais antenado e a consequente formação de público para esse tipo de som. A nova cena local acompanha uma tendência nacional, formada por Hurtmold, Elma, São Paulo Underground, Dead Rocks e Guizado, todos de São Paulo. Macaco Bong (MT), Pata de Elefante (RS), Retrofoguetes (BA), Burro Morto (PB) e Camarones Orquestra Guitarrística (RN) dão a entender que não se trata de um fenômeno regional. A unidade entre elas não está exatamente no estilo, distinto, mas na disposição em investir num formato que, apesar de soar estranho aos ouvidos do grande público, vem se afirmando como um dos mais criativos da música brasileira. (DIB, 2010)
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Dentro da nova cena de música instrumental, um caso que merece destaque é o caso de
Sabará, cidade do interior de Minas Gerais. Sabará acompanhou de perto o desenvolvimento
das novas bandas mineiras vinculadas à cena e inclusive recebeu eventos regulares dedicados
à música instrumental. Bandas como Constantina (MG), Dibigodi (MG), Iconili (MG), M
Takara 3 (SP), Caldo de Piaba (AC), entre outras, além da local 4instrumental (MG), já
passaram pelos palcos da cidade que tem um festival chamado Real Instrumental, promovido
pelo coletivo local Forceps, e já recebeu shows do Festival Pequenas Sessões.
Percebe-se, portanto que a cena tratada aqui no presente trabalho é fortalecida a partir
de vários polos, que dependentes um do outro, se mostram mais coerentes quando analisados
de modo macro. Não se trata de analisar as bandas fora de seu contexto local, ou descartar as
características específicas de cada espaço, mas perceber como determinadas práticas musicais
podem ser absorvidas em diferentes localidades criando uma rede de articulações, como
demonstrado até aqui.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À medida em que se desenvolvem as tecnologias de comunicação, as relações de
consumo e as práticas de produção e circulação musicais, as cenas se tornam mais complexas
e suas fronteiras mais fluídas. Não é o caso de imaginar uma cena genérica que comporte
todas as expressões musicais semelhantes, mas sim, identificar uma rede de alianças e
articulações em torno de determinados gêneros ou rótulos musicais.
A noção de cena musical se mostra um importante operador para se buscar um
entendimento mais amplo das práticas musicais urbanas contemporâneas, principalmente, no
circuito do rock. Pois é onde a ideia de cena se apresenta com maior força no imaginário dos
fãs, jornalistas, produtores e, principalmente, músicos.
É necessário se repensar as cenas como molde analítico, principalmente, atualizando o
que já foi feito, levando em conta as contradições e as mudanças em curso na indústria
fonográfica e nos mercados musicais de nicho.
Referências
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