cunha, r. - o (não) lugar do indígena na literatura brasileira
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Boitat Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLLISSN 1980-4504 122
O (NO)LUGAR DO INDGENA NA LITERATURA BRASILEIRA: PORONDE COMEAR A INCLUSO?
THE PLACE OF THE INDIGENOUS IN THE BRAZILIAN LITERATURE:HOW SHOULD WE START THE INCLUSION?
Roselene Berbigeier Feil1
Resumo: Repensar a literatura brasileira, inserindo a produo do ndio no rol de textoscanonizados, implica no aceitar que, na verdade, o que se tem no Brasil nada mais que umaliteratura lusfona. Ao enaltecer a literatura indgena no se pretende dar um valor apenaspara compensar um sentimento de dvida, mas de dar visibilidade a algo que existe h muitotempo, inclusive antes da chegada da escrita ao territrio do que hoje chamado Brasil2. Oexerccio que se h de fazer para a valorizao da literatura indgena, seja ela oral ou escrita,em lngua autctone ou em lngua portuguesa, como objetos estticos e culturais singulares,percebendo o que essa literatura tem de especfica e de universal ao mesmo tempo. Tambmos indgenas concordam que se a escrita for imprescindvel ela deve ser um recurso, contantoque eles obtenham um espao: o ndio fala, o ndio pensa. Ento, vamos passar na escrita,pra que a sociedade entenda melhor o povo indgena3.Palavras-chave: Indgena; Literatura Brasileira; Identidade; Resistncia; Incluso.
Resumen: Repensar la literatura brasilea, incluir la produccin de los indgenas en la lista delos textos canonizados, implica no aceptar que, de hecho, lo que hay en Brasil es ms que unaliteratura de habla portuguesa. Al alabar la literatura indgena no es nuestra intencin dar unvalor nico para compensar un sentimiento de deuda, sino para llamar la atencin sobre algoque ha existido por mucho tiempo, incluso antes de la llegada de la escritura en el territorio delo que hoy es Brasil. El ejercicio que se va a hacer es para el desarrollo de la literaturaindgena, ya sea oral o escrita, en lengua materna o portuguesa, presentando lasespecificidades culturales y los objetos estticos como singulares, al darse cuenta de que enesta literatura hay un particular y un universal al mismo tiempo. Tambin aceptan los indiosque, si la escritura debe ser una caracterstica esencial, no hay duda de que se puede utilizarsede ella, siempre y cuando consiguen un espacio: el indio habla, el indio piensa. Por lo tanto,vamos a pasar por escrito, para que a la sociedad tenga una mejor comprensin de los pueblosindgenas".Palabras-clave: Indgena; Literatura brasilea; Identidad; Resistencia; lnclusin.
1 Doutoranda em Literaturas Portuguesa e Luso-africanas pelo Programa de Ps-graduao em Letras daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista Capes. Email: rose-feil@hotmail.com.2 Considerando-se a literatura oral, a composio dos cantos e das fbulas cosmognicas.
3 Fala do ndio guarani Olivio Jekup citada em GOLDEMBERG, Dborah & CUNHA, Rubelise da. LiteraturaIndgena Contempornea: o encontro das formas e dos contedos na poesia e prosa do I Sarau de PoticasIndgenas. In: Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 117-148, jan./jun. 2010. p. 137.
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Erro de portugus
Quando o portugus chegouDebaixo duma bruta chuva
Vestiu o ndioQue pena!
Fosse uma manh de solO ndio teria despido
O portugus(ANDRADE, 1978, p.177)
O belo poema Erro de Portugus, de Oswald de Andrade (1890-1954), d a entender
que a situao de ofuscamento do ndio na cultura brasileira foi causada por uma
circunstncia meteorolgica passageira. Contudo, a bruta chuva ainda no cessou e o
indgena continua vivendo sob a esperana de um sol que demora sculos a chegar. O sol,
fonte de energia, de calor e de vida, ainda aguardado e sua ausncia impe ao povo nativo
um estado culturalmente vegetativo, toda a exuberncia se perde gradativamente e o ndio j
no consegue se destacar na paisagem brasileira, a ponto de parecer espcie extinta ou em
vias de extino.
O que se tem mostrado urgente a necessidade de se combater a falsa inexistncia
do indgena, atravs de polticas, institucionais ou no, que minimizem as fronteiras culturais,
ou que, ao menos, as tornem porosas o suficiente, a ponto de romperem o enraizado
isolamento, estabelecendo a interlocuo do ndio e do branco como iguais, da literatura
indgena e da literatura brasileira como produes paralelas e complementares, jamais como
autoexcludentes. Identificar o que h de indgena na literatura brasileira e o que h de
brasileiro na literatura indgena pode ser um bom caminho para essa aproximao4. O certo
que a literatura indgena no aparece no conjunto da literatura brasileira sequer como
retalho. Apesar de alguns esforos para uma aproximao entre as duas literaturas, se que
so apenas duas, se considerada a quantidade de comunidades indgenas que existiu e, ainda,
existe no territrio brasileiro, no se pode dizer que haja qualquer sucesso, essencialmente se
tomados como base de pesquisa os conceituados manuais de historiografia literria brasileira
4 Diz-se aproximao, pois se reconhece que h particularidades e/ou diferenas que devem ser mantidas, sobo risco de as duas literaturas se tornarem uma mesma literatura, o que no seria produtivo, uma vez que odilogo deve ser a tnica dessa interao. Sabe-se que em qualquer relao de poder a cultura dominante sesobrepe, mostra-se notrio que, ao longo da Histria brasileira, a cultura branca, tambm por sua tradiointelectual eurocntrica, teria privilgios e, possivelmente, se destacaria em relao cultura indgena.
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de Jos Verssimo (1969/1977), de Silvio Romero (1960) e de Alfredo Bosi (1970). A
literatura indgena no vista e, portanto, valorizada, nem na crtica literria mais tradicional
de Afrnio Coutinho (1968/1971) e de Araripe Junior (1958/1970), nem na prestigiada crtica
sociolgica de Antonio Candido (1964/1965), por exemplo.
Considerar as criaes literrias indgenas, em especial, pode revelar amplos painis
das condies de existncia, da identidade indgena e do esprito brasileiro. De qualquer
modo: o que nos interessa de fato no a literatura sobre os ndios, ou com os ndios, ou de
qualquer forma inspirada nos ndios. O que interessa aqui a literatura dos ndios, conforme
defende Charles Bicalho (2010, p. 209). No interessa cultura brasileira a imagem do ndio
fragilizado e fadado a no ser ndio, um sujeito incompleto em sua essncia, mas visto e
aceito (?) pelo senso-comum como apenas mais um brasileiro.
Nas poucas menes ao ndio na literatura brasileira o que ganha evidncia, quase
sempre, so os procedimentos de idealizao promovidos pelos romances indigenistas na
literatura do sculo XIX ou nos textos informativos dos primeiros colonizadores. Nestes
textos, a imagem do ndio a de um ser bonito, forte, saudvel, completamente vontade sob
um fundo onrico, com a virtude e o valor de ser e de se manter selvagem, estabelecendo
um elo ntimo entre o Humano e o Natural. Alfredo Bosi, em Dialtica da Colonizao
(1992), d a entender que essa indissociabilidade entre homem e natureza seria um dos
motivos pelos quais os indgenas foram to facilmente dizimados. Em sua concepo, o ndio
se via, e ainda se v, como um integrante do ambiente, no como um dono da terra. Para
Bosi, o indgena no tinha qualquer noo de posse, j que lhe era desnecessrio nutrir esse
sentimento. O crtico alerta que esse histrico de interao absoluta gerou a sensao de que
no precisavam lutar pela terra5. Neste sentido, compreende-se por que, ainda hoje, as
comunidades indgenas se recusam a receber reas de terras distantes do seu local de origem e
porque o deslocamento territorial soa inaceitvel. Grosso modo, seria como recompensar um
branco que perde seu filho dando-se um filho novo em substituio ao perdido.
Cludia Neiva Matos (2005) apresenta uma sntese do que seria o ndio como
espetculo visual, dado a conhecer apenas por um olhar externo a ele, nunca pelo ouvido, o
ndio do Brasil apresentou-se desde o incio e durante muito tempo, como figura muda (p.
5 Essa tendncia foi sendo revista no decorrer do sculo XX. Sobretudo nas ltimas dcadas, a aculturaomostrou aos ndios o valor de possuir, o que, neste caso parece legtimo: trata-se de instinto de sobrevivncia.
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435). Todavia, essa deficincia contestada por Olivio Jekup6 que, durante entrevista para
o programa Entrelinhas da TV Cultura, ressaltou: o ndio, na verdade, ele sempre foi escritor,
s que ele no sabia ler e escrever, ento o que acontece, ele ficou conhecido como contador
de histria oral, o contador de histria oral, ele um escritor, s que ele no sabe escrever.
Bicalho (2010) refora o que parece regra, dizendo que costuma-se associar o termo
literatura estritamente escrita. Ento quando se fala na literatura dos ndios, ou literatura
indgena, algumas pessoas sentem um estranhamento. A associao que se costuma fazer :
literatura = livros. Os ndios normalmente no escrevem livros. Ento no podem ter
literatura (p. 11).
No saber ou no querer escrever, no os coloca ou, ao menos, no deveria colocar, em
situao desfavorvel, pois, independente disso, a capacidade de se comunicar com o mundo
se mantm: todas as culturas indgenas tm conscincia da fora da palavra, seu uso tem um
poder mtico, atravs da ao mgica da palavra, criam-se os seres no mundo. Entretanto,
desde sempre, os colonizadores, os jesutas e os desbravadores estrangeiros, que
descobriam o Brasil a partir do sculo XVI, no pareceram estar interessados naquilo que o
ndio poderia ter a dizer. Ser que isso mudou depois de alguns sculos? Ao que parece no,
ou muito pouco. O que permanece a tendncia a registrar o texto indgena, oral ou escrito, a
partir de uma viso unvoca, sem qualquer traduo ou mediao intercultural, nunca numa
perspectiva onde a interculturalidade entendida como um dilogo respeitoso entre as
diferentes culturas. importante destacar que nas sociedades indgenas, a natureza e a cultura
no se distinguem como nas culturas ocidentais. Parte da boa parte da dificuldade em
despertar significados comuns atravs da traduo intercultural: a distncia entre os mundos
mostra-se imensa e poucos se dispem a percorr-la. O exerccio de traduo intercultural no
pode ser somente uma transferncia passiva do contedo de uma cultura a outra, mas a
construo dialtica de novos significados, na qual as novas significaes so discutidas e
construdas em p de igualdade, sem que uma se sobressaia e imponha o abandono da tradio
e da referncia do outro como tem sido a prtica recorrente ao longo dos processos de
reconhecimento do outro. Nas palavras de Patrick Chamoiseau, que recupera a teoria sobre a
6 Olvio Jekup autor de diversos livros, brasileiro e ndio Guarani, mantm-se fiel s razes e s causasindgenas. Apesar de ser escritor identifica-se como representante de uma sociedade de tradio oral, isto , quedispensa os recursos da escrita.
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alteridade na composio da identidade, como requisito formador do discurso seguindo a
linha terica de Mikhail Bakhtin,
o outro me modifica e eu o modifico. Seu contato me anima e eu oanimo. E estes desdobramentos nos oferecem ngulos de sobrevida enos amplificam. Cada outro se torna um componente de mim, emborapermanea distinto. Eu me torno o que sou em meu apoio aberto aoOutro. E esta relao ao Outro abre-me em cascatas de infinitasrelaes a todos os Outros, uma multiplicao que funda a unidade e afora de cada indivduo (CHAMOISEAU apud BERND, 2004, p.103).
Na literatura brasileira um dos primeiros escritores a ponderar a incluso dos ndios na
literatura nacional, como poetas, foi Gonalves de Magalhes que, segundo destacou
Coutinho (1974, p. 24), afirmou: eles o foram [poetas], e ainda o so. Contudo, o que se
nota desde ento que a voz do ndio no passou de pretensa abertura s manifestaes de um
ideal de nacionalizao com a restrita preocupao de encontrar e formatar o tipo e o tema
brasileiros por excelncia, como esteretipos que melhor capitalizassem ou realizassem o
nacionalismo literrio, conforme apontou Coutinho (1968). Promovendo, desta forma, uma
literatura brasileira simplificadora, que ignora a alteridade, a heterogeneidade das etnias e das
lnguas, como se observa nas palavras do mesmo autor:
a idia de natureza; a busca do carter nacional e do carter que deveassumir a produo literria para ser brasileira; o instinto denacionalidade na literatura; o indianismo ou o indgena comoelemento diferenciador; as caractersticas sociais; o sentimentontimo necessrio para dar cunho distintivo poesia e fico; ostipos nacionais e o seu comportamento na diferenciao literria; oproblema da lngua portuguesa no Brasil e sua diferenciao para aexpresso da alma brasileira nas artes e letras; o problema do gneromelhor adequado expresso de uma literatura nova; a busca dasntese da nacionalidade na literatura; os assuntos (histricos, sociais,populares, nativos, paisagsticos...) peculiares nova civilizao e quedeveriam ser prprios da nova literatura; o problema das heranas einfluncias estrangeiras, ou do choque da cultura nova no contato coma tradio ocidental. Em resumo, esse conjunto de idias, que sepodem reunir na frmula Que ser brasileiro? (COUTINHO, 1968,p. 135).
Jos Ribamar Bessa Freire (2002) ao trabalhar com a recuperao de arquivos
indgenas constatou cinco ideias equivocadas sobre esse povo. Nestes equvocos possvel
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identificar algumas das barreiras que impedem aos ndios acesso categoria de brasileiros
povo particularssimo por suas caractersticas natas, aguerrido, progressista, fidalgo, moderno
e, sobretudo, culto. Para Freire (2002), incorreto ver o ndio como um ser genrico, assim
como um engano entender a cultura indgena como atrasada e congelada, bem como
achar que o ndio pertence ao passado e querer ver o brasileiro como no-ndio.
Em se tratando da contribuio de Freire (2002), pode-se observar que a construo do
espao do ndio na sociedade baseada: 1) na percepo que os indgenas tm de si mesmos,
e 2) na percepo que os no-ndios tm deles como esteretipos e modelos ultrapassados,
fixados pela literatura e, na atualidade, deturpados pela mdia. Neste aspecto, um esboo do
quadrado semitico de A. J. Greimas pode ser interessante por permitir a apresentao de
algumas relaes/oposies binrias que agem sobre a identidade indgena:
ser ndio Verdade parecer ndio (autoidentificao)
Segredo Mentira (anulao) (negao)
no parecer Falsidade no ser ndio ndio
Numa anlise bastante simples, o entrecruzamento proposto acima incita questes
sobre a identidade indgena e de como ela pode se colocar em relao identidade no-
indgena:
A identidade indgena Verdadeira, ou seja, h uma unidade entre ser ndio e
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parecer ndio, uma identidade que se reflete e se refrata, em aes e comportamentos, aceitos
tanto pela comunidade indgena quanto pela expectativa da sociedade branca. Assumir-se
como um sujeito ndio pr-se em existncia, mesmo que a autoimagem no seja a
revelao do sujeito em sua totalidade, pois muito do que se no passa de expectativa do
outro.
possvel que ela seja Falsa? Existem aqueles que no parecem ndios e no so
ndios, entretanto, enunciam-se como tal e, desta forma, assumem uma identidade de
convenincia?
A identidade indgena que mantida em Segredo ao ser recorrente gera anulao.
H algum motivo justificvel para ser ndio e ocultar essa origem? No querer parecer ndio
se traduz em motivo de aceitao pelos no-ndios? O Segredo seria a sntese do conflito entre
identidades espelhadas pelo ser versus no-ser, ou seja, apresenta-se como o resultado de
aes de poder que criam regras de conduta e falseamento, ao mesmo tempo, com vistas
incluso social.
H Mentira? Parecer ndio e no ser ndio, ou seja, ter uma imagem controversa de si
mesmo. possvel que conjuntos de acontecimentos discursivos determinem quem ou no
ndio? Quem est habilitado a configurar a identidade de quem?
Toda identidade, e a identidade indgena no difere disso, busca no que ela no a sua
forma de ser, no dilema que transita entre o ser e o no ser contnuo. O sentido que o homem
prope a si mesmo uma constante mudana de significao, no h unanimidade nunca, o
discurso dominante branco, masculino, ocidental interfere na condio de ser ndio atravs
de manipulaes que o foram a ter ou a negar certa identidade. O problema da identificao
de quem escreve, e neste caso em especial quem escreve literatura indgena, influencia na
anlise do que est escrito, de quem o ndio e de onde ele fala, qual o espao que reclama no
mundo da cultura padro.
Considerando-se uma srie considervel de publicaes que trazem textualidades
indgenas observa-se que boa parte dos autores so no-ndios e podem, facilmente, ser
confundidos com estes por apropriarem-se de suas narrativas, seja com a compilao de suas
fbulas ou com a transcrio de textos de autoria coletiva indgena onde figuram como
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autores individuais7. Muitas vezes, o texto indgena foi objeto de apropriao e de indevida
transposio cultural e a matria narrativa das fbulas e lendas foi exportada dos acervos
literrios orais indgenas para, respectivamente, o folclore em lngua portuguesa e a literatura
escrita brasileira (MATOS, 2005, p. 457). Poucos so os textos em que os autores se
autodenominam ndios e mantm um perfil individual. Destacam-se alguns deles: Daniel
Munduruku com Histrias de ndios (1999), Nuku Mimawa (1995) e Coisas de ndios (2000);
Kaka Wer Jecup e seus Todas as vezes que dissemos adeus (1994), A terra dos mil povos:
histria indgena do Brasil contada por um ndio (1998), Tup Tenand: a criao do
universo, da terra e do homem (2001); Eliana Potiguara em A terra a me do ndio (1992) e
Metade Cara, Metade mscara (2004); Umsin Panln Kumu e Tolomn Kenhir com Antes
o mundo no existia: a mitologia heroica dos ndios Desan (1980); Pihuvy Cinta Larga com
Tor Dug, nosso povo (1985) e Mantere Ma Kw Tinhin: histrias de maloca
antigamente (1988). Apesar da contribuio desses autores para a afirmao da literatura
indgena, mais precisamente a partir dos anos 1980, ela ainda se mostra irrisria frente
quantidade de povos e do acesso que os ndios conquistaram nas universidades, por exemplo.
Algumas instituies pblicas tm demonstrado interesse em fomentar publicaes indgenas,
mas percebe-se que as editoras privadas so as que publicam com mais frequncia, contudo,
mesmo que hajam publicaes o acesso a elas bastante difcil, seja por no serem facilmente
encontradas no mercado ou porque possuem uma tiragem muito pequena, por vezes sendo
restritas a pesquisadores e instituies de fomento leitura, onde no ganham visibilidade.
Retomando-se a questo identitria prudente destacar que o sujeito que fala alguma
coisa inapreensvel, sendo um polo de tenso entre as relaes interpessoais e a sua
individualidade. No entanto, que pode ser interpretado a partir dos significados que produz
sobre si mesmo, pelo conjunto de escolhas que faz para produzir um sentido prprio: o que
feito e como feito para significar aquilo que significou. So essas significaes prprias que
merecem ser expostas cultura dos brancos. Sugere-se atravs dessa ao uma reviso nos
conceitos da sociedade branca.
A traduo intercultural na literatura brasileira fracassou em muitos pontos, mas
7 No que isso seja execrvel, mas o que se quer ver a literatura indgena na voz do prprio ndio, seguindo-seo conselho de Mikhail Bakhtin que frisou: pode-se falar da palavra do outro somente com a ajuda da prpriapalavra do outro em Questes de literatura e esttica: a teoria do romance. 2. Ed. So Paulo: Ed.UNESP/Hucitec, 1990. p. 203.
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destaca-se, em especial, a dos ndios e dos brancos, isto , a literatura indigenista, que
trouxe para os brancos o universo indgena com uma viso externa a ele, no corresponde
riqueza de sua cultura. Por certo, no se espera que a escrita d conta de um retrato fidedigno
da cultura indgena, certo grau de intraduzibilidade sempre existir, alis, ele pode ser
saudvel para a manuteno das especificidades e do encanto pelo particular em cada cultura.
O certo que o grau de intraduzibilidade cultural nunca ser suprimido por completo, alguns
pontos que definem o que cultura, retirados de Mirror for Man, de Clyde Kluckhohn, citado
por Clifford Geertz (1989) mostram-se intransponveis por uma capacidade que no se
adquire apenas pelo exerccio de aproximao, mas requer vivncias contnuas e ininterruptas,
algo que cinco sculos de convivncias, alis pouca, no consegue minimizar. Dentre esses
pontos destacam-se: a) o modo de vida global de um povo e as significaes que ele mesmo
teceu; b) o legado social que o indivduo adquire de seu grupo; c) uma forma de pensar, sentir
e acreditar; d) um celeiro de aprendizagem em comum - os saberes; e) um conjunto de
orientaes padronizadas para os problemas recorrentes; f) um mecanismo (intrnseco) para a
regulamentao normativa do comportamento e, por fim, g) um precipitado da histria, ou
seja, a tradio que extrapola as marcas temporais conhecidas e registradas pela historiografia
eurocntrica.
Essa intraduzibilidade foi reforada por uma escrita marcada pela impessoalidade dos
brancos8 frente aos ndios e seu universo, como j destacado. Da a necessidade de se estudar
as textualidades indgenas com urgncia, mesmo que elas sejam manifestadas em
modalidades textuais variadas e possuam contornos imprecisos, caso dos cantos, das danas e
demais performances, ainda que tenham outra ordem de valores e que estes dependam do
universo cultural de cada etnia. O intraduzvel do ndio e o ser ndio vo muito alm da
concepo de uma Iracema (1865) alencariana dotada de santidade e enlevo, a
[...] virgem dos lbios de mel, que tinha os cabelos mais negros que aasa da grana, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jatino era doce como seu sorriso; nem a baunilha rescendia no bosquecomo seu hlito perfumado. Mais rpida que a ema selvagem, amorena virgem corria o serto e as matas do Ipu, onde campeava suaguerreira tribo, da grande nao tabajara. O p grcil e nu, mal
8 Nota-se que essa escrita funcionou como recurso na sedimentao das j fragmentadas identidades indgenas,dando ao ndio uma adjetivao apreciada pelo colonizador e pelos aventureiros que se propunham a desbravar onovo continente.
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roando, alisava apenas a verde pelcia que vestia a terra com asprimeiras guas (ALENCAR, 1991, p. 9).
Iracema no serve de modelo reflexo exigida nesse momento, nem Peri, em O
guarani (1857), com a sua poeticidade de ndio selvagem percebida aos olhos do portugus:
lvaro fitou no ndio um olhar admirado. Onde que este selvagemsem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa. [...] No issoa poesia? O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse beroperfumado; no meio de cenas to diversas, entre o eterno contraste dosorriso e da lgrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno, no um poeta?Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natureza;ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que temdiante dos olhos, a expresso do sentimento vago e confuso que lheagita a alma.Sua palavra a que Deus escreveu com as letras que formam o livroda criao; a flor, o cu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes coisas quea natureza fez sorrindo.A sua frase corre como o regato que serpenteja, ou salta como o rioque se despenha da cascata; s vezes se eleva ao cimo da montanha,outras desce e rasteja como o inseto, sutil, delicada e mimosa(ALENCAR, 1996, p. 94).
No que se refere aos povos indgenas, a viso positivista do bom selvagem, sem
mculas, uma tabula rasa apta a fornecer ao colonizador uma oportunidade de recomeo, foi
uma construo identitria de fundo romntico e positivista que atendia aos interesses da
classe letrada, classe que dispunha tanto dos recursos poltico-econmicos quanto culturais
para a formao da essncia do que viria a ser a nao brasileira. A viso do bom ndio
sugeria um processo colonizador no passvel de fracasso; as prticas de demonizao e de
canibalismo eram temidas pelos europeus que tinham conhecimento destas em outros
territrios; a idealizao de um paraso terreno convinha; os escribas com prodgios de
imaginao tornaram fluidas as fronteiras entre o real e a fico nos relatos oficiais, mais
tarde assimiladas pela potica do romantismo brasileiro, do qual Jos de Alencar (1829-1877)
expoente.
Muito ao contrrio do que possa parecer, a poesia indgena no um fato
arqueolgico, nem caracterstica retratada apenas nos romances indigenistas, mas (...)
continua viva na voz dos cantadores indgenas (MATOS, 2005, p. 457). Para que continue
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viva, essa poeticidade deve ser evidenciada, lembrando que [...] no h povo que no ostente,
no elenco dos seus signos mais expressivos, objetos de linguagem correspondentes ao que, em
nosso mundo, chamamos poesia (RISRIO, 1993, p. 25), sob o risco de se perder, assim
como foram perdidas, no s no Brasil bem como em outros pases, inmeras criaes
estticas autctones ao longo do processo de colonizao. Muitos podero estranhar a escolha
de textos canonizados de um no-ndio, Alencar, para ilustrar a percepo que os brancos tm
do ndio, isso se deve, tambm, ao fato de o ndio no ter uma viso muito definida de si
prprio, ele nunca precisou autoafirmar-se nesses termos ser ou no-ser ele sempre soube
que era e , sem que precisa-se recorrer indagaes filosficas vazias de sentido.
Sabe-se que a qualidade da produo esttica indgena pode ser equiparada aos
padres ocidentais e urbanos, sendo elas grafas ou no. O que representam, no sentido do
manuseio da linguagem humana para alm da referencialidade, incorporadas vida cotidiana
das comunidades indgenas, reflete uma poesia pura: em geral direcionada para funes
culturais diversas, sejam elas cosmolgicas, educacionais, pedaggicas ou blicas, sejam elas
conscientes de serem isso, poticas, ou no (GOLDEMBERG, 2009, p. 77).
Para inserir o ndio tambm nesse espao cultural, necessrio avaliar se a imagem
do indgena idealizado por Alencar e por outros autores do sculo XIX prejudica a imagem do
ndio na atualidade e o coloca como mito. Algumas vezes se tem a impresso, e certa
expectativa, de se encontrar esse espcime sublime e sublimado nas regies onde habitam.
Entretanto, no preciso avanar muito para se perceber uma deformao na imagem do ndio
que chega escola, aos meios de comunicao e sociedade. Em geral o que se nota um
choque bastante grande. H uma profunda deturpao da realidade em que vivem. Poucos
brasileiros tm conscincia de que o papel do ndio na sociedade contempornea outro,
muito diferente daquele retratado por Alencar e seus pares o ndio de papel no condiz com
o papel do ndio. Contrariando essa expectativa utpica, a imagem mais recorrente bastante
parecida com a retratada na poesia de Emmanuel Marinho9, poeta sul-mato-grossense que
convive com as cenas descritas em seu poema de nome sugestivo Genocndio:
(crianas batem palmas nos portes)
9 Emmanuel Marinho branco e o que se pode chamar de um poeta da literatura marginal, edita e publica seuslivros atravs de editoras cartoneiras (que aproveitam o papel reciclado pelos catadores, mantendo o aspectoprecrio como proposta de um trabalho que ilustre a situao da produo marginal), ignorado pelo cnone,sem nenhuma fortuna crtica, mas que no deixa de abordar temas polmicos.
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tem po velho?
no, crianatem o po que o diabo amassoutem sangue de ndios nas ruase quando noitea lua geme aflitapor seus filhos mortos.
tem po velho?
no, crianatemos comida farta em nossas mesasabenoada de toalhas de linho, talherestemos mulheres servs, geladeirasautomveis, fogomas no temos po.
tem po velho?
no, crianatemos asfalto, gua encanadasuper-mercados, edifciostemos ptria, pinga, prisesarmas e ofciosmas no temos po.
tem po velho?
no, crianatem sua fome travestida de traposnas caladasque tragam seu pezinhosde anjo faminto e frgilpedindo po velho pela vidatemos luzes sem alma pelas avenidastemos ndias suicidasmas no temos po.
tem po velho?
no, crianatemos msseis, satlitescomputadores, radarestemos canhes, navios, usinas nucleares
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mas no temos po.
tem po velho?
no, crianatem o po que o diabo amassoutem sangue de ndios nas ruase quando noitea lua geme aflitapor seus filhos mortos.
tem po velho?(MARINHO, 2001, s.p.)
O bicho, de Manuel Bandeira (1886-1968), outro exemplo de poema que desperta
reflexes sobre tudo o que aconteceu e ainda acontece para se ter um homem, um ndio, em
condies de absoluta precariedade: qual o percurso histrico e social que os conduziu a essa
situao calamitosa? Como se deu e se d o confronto cultural ndio versus no-ndio, a ponto
de uma possvel associao entre a condio humana poetizada por Bandeira e o ndio
brasileiro?
Vi ontem um bichoNa imundcie do ptioCatando comida dentre os detritos.
Quando achava alguma coisa,No examinava nem cheirava:Engolia com voracidade.
O bicho no era um co.No era um gato.No era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.(BANDEIRA, 1983, p. 27)
Depois de umas ponderaes cidas sobre a realidade indgena preciso dizer que
tentar compreender as sociedades indgenas no apenas procurar conhecer o outro, o
diferente, mas reavaliar a conduta da sociedade branca diante desses diferentes, sobretudo
com reflexes sobre o tipo de sociedade branca em que se vive e como se processam as
dinmicas sociais de incluso e excluso de alguns grupos. No simplesmente apiedar-se
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com determinadas situaes, mas saber quem o ndio e quem o branco diante do ndio e o
que esse ndio espera de si mesmo e espera do branco. Tendo-se em mente o alto grau de
intraduzibilidade intercultural, alm de ter conscincia dos problemas que se colocam devido
variabilidade lingustica e comportamental, sabendo-se que toda traduo do outro sempre
ser uma recriao, muitas vezes com significativa perda de sentido das partes envolvidas. Tal
interpretao necessria como mediao entre culturas diferentes, como ponte dinmica e
viva que interessa pelo infinito trnsito entre culturas diversas. Considerando sempre um
ordenamento de valores diferentes dos eurocntricos e procurando saber como e porque as
comunidades indgenas foram dizimadas e o que ainda pode ser feito para manter as poucas
existentes, sobretudo aquelas que esto sufocadas culturalmente. Neste sentido, conhecer o
ndio significa acessar, dentro dos limites que o tempo impe, o passado para compreender as
relaes no presente e no se comprometer o futuro. Retomando, necessrio reconhecer o
valor da literatura dos povos tradicionais do Brasil, que, s agora se submetem escrita
alfabtica (na forma trazida da Europa pelos conquistadores), e que tiveram, por tanto tempo,
ignorada a importncia de seus textos na formao do que chamamos de literatura brasileira
(BICALHO, 2010, p. 207), como possibilidade de acesso ao seu inconsciente coletivo, que
no deixa de ser o inconsciente coletivo que dirige a construo da identidade brasileira.
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[Recebido: 28.nov.11 - 03.jan.12]
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