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A CRIMINOLOGIA NO SÉCULO XXI
Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Especialista em Direito
Penal e Criminologia, Mestre em Direito Social (enfoque em Processo Penal),
Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual
Penal Especial e Criminologia na graduação e pós graduação da Unisal.
RESUMO: O texto apresenta a evolução do pensamento criminológico, passando
pelos suas diversas fases até a moderna configuração crítica. Põe em destaque
especialmente os momentos de alteração epistemológica no trato dos problemas
criminais, desde o surgimento do interesse nos estudos criminológicos até o
desenvolvimento desse pensamento de acordo com novos paradigmas deconhecimento.
SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Conceito e objeto da criminologia - 3. A evolução do
pensamento criminológico: 3.1 Preliminares; 3.2 A escola liberal Clássica do
Direito Penal; 3.3 O Positivismo e o nascimento da criminologia: Criminologia
Clínica e Criminologia Sociológica; 3.3.1 O Positivismo; 3.3.2 Criminologia Clínica
e Criminologia Sociológica; 3.3.3 Teorias Estrutural - Funcionalistas; 3.4 A NovaCriminologia: Criminologia Crítica, Dialéticas, Radical, Interacionista ou da Reação
Social; 3.4.1 Preliminares; 3.4.2 "Labeling Approach" ou Teoria da Reação Social;
3.4.3 A Sociologia do Conflito e a Criminologia - 4. Conclusão - 5. Referências
Bibliográficas.
PALAVRAS - CHAVE: Criminologia - Criminologia Clínica - Criminologia
Sociológica - Criminologia Crítica - Criminologia Integrada - Positivismo - Direito
Penal - Estrutural Funcionalismo - "Labeling Approach" - Reação Social - Defesa
Social - Sociologia Criminal - Sociologia do Conflito.
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1 - INTRODUÇÃO
O estudo do fenômeno criminoso sempre esteve em pauta e na atual fase
do desenvolvimento social, marcada por uma forte heterogeneidade a acirrar os
ensejos de conflito, torna-se tema obrigatório e de alta relevância.
A ciência em qualquer de seus ramos deve contextualizar-se e tomar
consciência do seu papel social, pois que ela "está no âmago da sociedade e,
embora bastante distinta dessa sociedade, é inseparável dela, isso significa que
todas as ciências, incluindo as físicas e biológicas, são sociais."1
É preciso ter em mente o enorme potencial transformador do conhecimento
e do trato científico dado a um problema. Um modelo ou uma espécie de
abordagem imprimidos a determinadas questões levará a conseqüências práticas
positivas ou negativas. Morin adverte para essa realidade ao asseverar:
"E, no entanto, essa ciência elucidativa, enriquecedora, conquistadora e
triunfante, apresenta- nos, cada vez mais, problemas graves que se referem ao
conhecimento que produz, à ação que determina, à sociedade que transforma.Essa ciência libertadora traz, ao mesmo tempo, possibilidades terríveis de
subjugação. Esse conhecimento vivo é o mesmo que produziu a ameaça do
aniquilamento da humanidade. Para conceber e compreender esse problema, há
que acabar com a tola alternativa da ciência 'boa', que só traz benefícios, ou da
ciência 'má', que só traz prejuízos. Pelo contrário, há que, desde a partida, dispor
de pensamento capaz de conceber e de compreender a ambivalência, isto é, a
complexidade intrínseca que se encontra no cerne da ciência."2
Transportando estas observações para a questão do pensamento
criminológico, constata-se a necessidade de buscar a construção de um saber
complexo, evitando reducionismos, preconceitos e idealizações que distorçam a
realidade e produzam conclusões que orientem ações meramente simbólicas,
1 Edgar MORIN, Ciência com consciência, p. 20.2 Ibid., p. 16.
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incapazes de ensejarem transformações efetivas, mas, ao contrário, atuando
como elementos reprodutores e perpetuadores de um quadro social marcado pela
violência e desigualdade.
No decorrer deste trabalho procurar-se-á expor sumariamente o caminho
percorrido pelo pensamento criminológico, desde o seu surgimento até a
atualidade, propiciando a constatação dos frutos (positivos e negativos)
produzidos em conformidade com o referencial teórico adotado para o estudo do
fenômeno criminal.
2 - CONCEITO E OBJETO DA CRIMINOLOGIA
A conceituação e a delimitação do campo de atuação da criminologia
apresenta uma variação de acordo com o modelo de interpretação do surgimento
do fenômeno criminal.
Etimologicamente, criminologia deriva do latim "crimino" (crime) e do grego
"logos" (tratado ou estudo).3 Trata-se, portanto, consensualmente, do estudo do
crime. Entretanto, podem variar as naturezas das abordagens aplicadas a esteestudo, de modo a implicarem em diversas concepções da ciência criminológica.
Pode-se falar de um verdadeiro divisor de águas entre uma concepção
tradicional da criminologia e a revolução que emergiu com o florescimento da
chamada "Nova Criminologia" ou "Criminologia Crítica".
Essa guinada conceitual constitui, em verdade, o cerne da evolução
criminológica e o principal tema desta exposição.
Tradicionalmente o crime era encarado como uma realidade em si mesmo,
ou seja, ontologicamente considerado. O criminoso como um indivíduo diferente,
anormal ou até mesmo patológico. Desse modo todos os esforços eram alocados
para as pesquisas em torno dos fatores produtores da delinqüência e os
3 Newton FERNANDES, Valter FERNANDES, Criminologia integrada, p. 24.
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mecanismos capazes de prevenir, reprimir e corrigir as condutas desviantes.
Crime e criminoso vistos como entes naturais, embora deletérios.
A Criminologia Crítica abandona definitivamente tais concepções e
desmistifica a crença no crime como realidade ontológica e natural, bem como a
ideologia da figura do criminoso como um anormal. "A consideração do crime
como um comportamento definido pelo direito, e o repúdio do determinismo e da
consideração do delinqüente como um indivíduo diferente, são aspectos
essenciais da nova criminologia."4
Essa mudança de enfoque possibilita a conclusão crucial para um estudo
mais realista, de que "o delito não é um ente de fato, mas um ente jurídico". "O
delito é um ente jurídico porque sua essência deve consistir, indeclinavelmente, na
violação de um direito."5
Durkheim assinala que o crime é um fato rotineiramente tomado como
patológico pela maioria dos criminologistas, devido a uma atitude precipitada e
irrefletida. Afinal de contas o crime não é encontrável somente em certas
sociedades com estes ou aqueles caracteres. Trata-se de algo presente em toda e
qualquer sociedade; um elemento constante. Nem mesmo a evolução social
conduz, juntamente com o seu maior nível organizativo, a um decréscimo nos
índices de criminalidade. Na verdade, opera-se justamente o oposto: nassociedades mais complexas ocorre um avanço da criminalidade. "Não há,
portanto, fenômeno que apresente de maneira mais irrefutável todos os sintomas
de normalidade, dado que aparece como estreitamente ligado às condições de
qualquer vida coletiva. Transformar o crime numa doença social seria admitir que
a doença não é uma coisa acidental mas que, pelo contrário, deriva, em certos
casos, da constituição fundamental do ser vivo; seria eliminar qualquer distinção
entre o fisiológico e o patológico"6
Tendo em vista essa alteração do enfoque epistemológico, observar-se-á
uma grande diferença entre os conceitos tradicionais de criminologia e aquele hoje
preconizados pelos autores críticos.
4 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 30.5 Francesco CARRARA, Apud, Ibid., p. 36.6 Émile DURKHEIM, As regras do métodos sociológico, p. 82 - 83.
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Em um primeiro plano pode-se destacar alguns conceitos que bem ilustram
a concepção tradicional:
Edwin H. Sutherland define a criminologia como "um conjunto de
conhecimentos que estudam o fenômeno e as causas da criminalidade, a
personalidade do delinqüente, sua conduta delituosa e a maneira de ressocializá-
lo."7
Em sintonia com esse modelo também pode-se arrolar a definição de
Newton Fernandes e Valter Fernandes:
"Criminologia é a ciência que estuda o fenômeno criminal, a vítima, as
determinantes endógenas e exógenas, que isolada ou cumulativamente atuam
sobre a pessoa e a conduta do delinqüente, e os meios labor - terapêuticos ou
pedagógicos de reintegra-lo ao agrupamento social".8
Ainda nesta mesma linha de pensamento apresenta-se a conceituação de
Frederico Marques, para quem "a criminologia é a ciência que cuida das leis e
fatores da criminalidade, consagrando-se ao estudo do crime e do delinqüente, do
ponto de vista causal - explicativo".9
Estes são apenas alguns exemplos de conceituação fulcradas na aceitação
do crime como entidade natural e do criminoso como sujeito anormal. Verifica-se
claramente um intento de obter uma determinação daquilo que causaria ofenômeno da criminalidade, seja como fator intrínseco no ser - humano, seja como
algo proporcionado pelo ambiente. De qualquer forma, opera-se um corte
epistemológico artificial entre o crime (pretensamente tomado como realidade
ontológica) e as normas jurídicas produzidas pela vida social, afora a total
ausência de preocupação com a atuação do sistema penal. Enfim, desconsidera-
se a característica fundamental do fenômeno criminal, ou seja, sua realidade
essencialmente normativa.
Considerando essa concepção tradicional, o objeto de estudo da
criminologia cinge-se basicamente à etiologia e profilaxia do crime.
7 Apud, Newton FERNANDES, Valter FERNANDES, Criminologia integrada, p. 24.8 Ibid., p. 25.9 José Frederico MARQUES, Curso de Direito Penal , Volume 1, p. 52.
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Por seu turno, a "Nova Criminologia" apresenta conceituações bastante
diferenciadas, ensejando uma ingente reformulação na condução dos estudos do
fenômeno criminal.
Zaffaroni e Pierangeli conceituam a criminologia como "a disciplina que
estuda a questão criminal do ponto de vista biopsicossocial, ou seja, integra-se
com as ciências da conduta aplicadas às condutas criminais".10
Para os criminologistas radicais ou críticos a criminologia é a ciência que
estuda a geração do fenômeno delinqüencial pela ordem social, buscando uma
prática social transformadora, com profundas e radicais alterações nas estruturas
sociais como meio para o equacionamento do problema do crime e da
criminalidade.11
Dessa forma, não só o conceito, mas também o objeto de estudo alteram-se significativamente. O enfoque principal desloca-se do ato e do agente
criminosos para o Sistema Penal e os processos de criminalização, ensejando a
revelação de uma função velada da antiga criminologia como uma "ideologia de
justificação do sistema penal e do controle social de que este forma parte."12
Este é o parecer de Baratta ao afirmar que "de fato, as teorias
criminológicas da reação social e as compreendidas no movimento da
'criminologia crítica', deslocaram o foco de análise do fenômeno criminal, dosujeito criminalizado para o sistema penal e os processos de criminalização que
dele fazem parte e, mais em geral, para todo o sistema da reação social ao
desvio."13
Ao invés de justificar, legitimar e perpetuar todo o aparato repressivo
organizado em torno do fenômeno criminal, a nova criminologia presta-se a levar a
efeito uma rigorosa crítica ao Sistema Penal e aos processos criminalizadores,
abrindo os horizontes inclusive para maiores preocupações com campos
importantes de proliferação do crime, normalmente relegados a um segundo
10 Eugenio Raúl ZAFFARONI, José Henrique PIERANGELI, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 158.11 Newton FERNANDES, Valter FERNANDES, Criminologia integrada, p. 473. Ver ainda: AlessandroBARATTA, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal , passim.12 Eugenio Raúl ZAFFARONI, José Henrique PIERANGELI, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 159.13 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 49.
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plano, como os casos da criminalidade econômica, ambiental etc., afeitas às
classes socialmente melhor posicionadas.
Como se vê, com a "Criminologia Crítica" emerge uma radical mudança de
paradigma no trato da questão criminal. Este fenômeno, segundo o pensamento
de Thomas Kuhn, constitui a natureza mesma de qualquer ciência, pois que esta
encontra-se atrelada a determinados modelos ou paradigmas que mudam com o
tempo e as revoluções científicas. Para o autor enfocado, a chamada "Ciência
Normal" "é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é
o mundo. Grande parte do sucesso do empreendimento deriva da disposição da
comunidade para defender esse pressuposto - com custos consideráveis se
necessário. Por exemplo, a ciência normal freqüentemente suprime novidades
fundamentais, porque estas subvertem necessariamente seus compromissosbásicos."14
As revoluções científicas desintegram a tradição ligada à chamada "Ciência
Normal", através do embate entre segmentos da comunidade científica. Este "é o
único processo histórico que realmente resulta na rejeição de uma teoria ou na
adoção de outra".15
A crise da criminologia tradicional exsurge exatamente desse conflito entre
um velho paradigma que não mais se sustenta em confronto com o novo modelocriminológico que desvela os seus pressupostos equivocados e a sua natureza
ideológica no sentido de encobrir fatores deslegitimantes do Sistema Penal.
Bastante incisiva é a exposição de Baratta quanto a essa questão, razão
pela qual torna-se imperativo proceder à sua transcrição em arremate:
"Sobre a base do paradigma etiológico a criminologia se converteu em
sinônimo de ciência das causas da criminalidade. Este paradigma, com o qual
nasce a criminologia positivista perto do final do século passado, constitui a base
de toda a criminologia 'tradicional', mesmo de suas correntes mais modernas, as
quais, à pergunta sobre as causas da criminalidade, dão respostas diferentes
daquelas de orem antropológica ou patológica do primeiro positivismo, e que
14 Thomas S. KUHN, A estrutura das revoluções científicas, p. 24.15 Ibid., p. 25 - 27.
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nasceram, em parte, da polêmica com este (teorias funcionalistas, teorias
ecológicas, teorias multifatoriais etc.).
O paradigma etiológico supõe uma noção ontológica da criminalidade,
entendida como uma premissa preconstituída às definições e, portanto, também à
reação social, institucional ou não institucional, que põe em marcha essas
definições. Desta maneira, ficam fora do objeto de reflexão criminológica as
normas jurídicas ou sociais, a ação das instâncias oficiais, a reação social
respectiva e, mais em geral, os mecanismos institucionais e sociais através dos
quais se realiza a definição de certos comportamentos qualificados como
'criminosos'.
A pretensão da criminologia tradicional, de produzir uma teoria das
condições (ou causas) da criminalidade, não é justificada do ponto de vistaepistemológico. Uma investigação das causas não é procedente em relação a
objetos definidos por normas, convenções ou valorações sociais e institucionais.
Aplicar a objetos deste tipo um conhecimento causal - naturalista, produz uma
'reificação' dos resultados dessas definições normativas, considerando-os como
'coisas' existentes independentemente destas. A 'criminalidade', os 'criminosos'
são, sem dúvida alguma, objetos deste tipo: resultam impensáveis sem
intervenção de processos institucionais e sociais de definição, sem a aplicação dalei penal por parte das instâncias oficiais e, por último, sem as definições e as
reações não institucionais."16
3 - A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO CRIMINOLÓGICO
3.1 - PRELIMINARES
16 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 209 - 210.
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Neste item pretende-se apresentar um breve esboço das diversas correntes
do pensamento criminológico, desde seu surgimento e desenvolvimento
"tradicional" até os dias atuais, com as suas formulações críticas ou radicais.
Duas observações devem ser feitas antes da exposição das diversas
concepções: as linhas de pensamento criminológico não têm, em sua seqüência,
uma divisão estanque, de maneira que convivem em algumas épocas orientações
distintas e às vezes complementares. Por outro lado, a diversidade de orientações
no estudo do fenômeno criminal, inclusive passando pelos métodos e
instrumentos de diversas ciências, revela uma tendência de isolamento de cada
linha de pesquisa, cada qual arrogando-se a descoberta da melhor explicação
para o fenômeno criminal. É notável que isso ocorra num campo nitidamente
complexo como o da criminologia, cujo caminho natural seria o de integração ouinterdisciplinaridade, conforme bem destacam Newton e Valter Fernandes.17
3.2 - A ESCOLA LIBERAL CLÁSSICA DO DIREITO PENAL
A figura do crime, da violência, acompanham a sociedade humana desde
os primórdios. A infração às normas de conduta social e sua punição são temas
constantes na história da humanidade. Desde a Antigüidade, passando pela Idade
Média, o fenômeno criminal tem sido objeto de curiosidade. Entretanto, a
abordagem inicial do tema detinha-se basicamente em concepções místicas no
Direito Antigo18 ou de afirmação dos poderes dos soberanos, na era absolutista.19
Todo desvio somente apresentava duas explicações: uma ofensa a Deus ou ao
Príncipe, não havendo qualquer preocupação explicativa do seu germe ou a
consideração de fatores externos a essas relações (legitimidade da punição,
utilidade da pena, legalidade etc.).
17 Newton FERNANDES, Valter FERNANDES, Criminologia integrada, p. 589 - 607.18 Ibid., p. 54 - 60.19 Michel FOUCAULT, Vigiar e Punir , p. 47.
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Com o advento do Iluminismo no século XVIII, inicia-se uma fase de
estudos e preocupações com a face jurídica do crime e das penas. Surge o
Princípio da Humanização das sanções e a busca de uma utilidade ou função para
estas, sem a qual qualquer punição é tomada como simples crueldade gratuita e
injustificável.20
A Escola Clássica Liberal desenvolve-se nesse contexto na Europa no
século XVIII e primeira metade do século XIX. Entretanto, sua preocupação não se
dirige ao estudo do fenômeno criminal ou ao criminoso. Seus postulados referem-
se ao conteúdo jurídico - penal, procurando desenvolver uma formulação teórica
do Direito Penal.
É apenas com o Positivismo e o surgimento da Antropologia Criminal que
se opera um voltar de olhos ao crime para o criminoso e a atenção ao estudo dofenômeno criminal em si.
O interessante é notar que embora na Escola Clássica não se possa falar
especificamente de uma criminologia, a qual nascerá com o Positivismo, como se
verá posteriormente, existem alguns pontos de contato entre a visão clássica de
delito e a teorização da Criminologia Crítica em oposição à tradicional.
Efetivamente a Escola Liberal Clássica não considera o delinqüente como
um ser diferenciado dos demais, detendo-se basicamente sobre o crime entendidocomo um conceito jurídico. Para os clássicos a conduta criminosa deriva
simplesmente do "livre arbítrio" do criminoso e não de causas patológicas ou
influências ambientais. Desse modo a pena não visa intervir sobre o delinqüente
para reforma-lo, mas apenas subsiste como uma "contramotivação em face do
crime". Essa concepção do crime como ente jurídico - normativo e não natural,
bem como do criminoso como um ser - humano não diferenciado, é resgatada
pela Criminologia Crítica ao rebater os pressupostos da Criminologia Tradicional.
Além disso, ao destacar que o poder punitivo do Estado deveria ser
assinalado pela "necessidade e utilidade" da pena e pelo "Princípio da
Legalidade", a Escola Liberal Clássica funcionava como uma "instância crítica em
face da prática penal e penitenciária do antigo regime". Aqui também apresenta
20 Ver neste sentido: Cesare BECCARIA, Dos Delitos e das Penas , passim.
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um ponto de contato com a Criminologia Moderna que, "contestando o modelo da
criminologia positivista, desloca sua atenção da criminalidade para o direito penal,
fazendo de ambos o objeto de uma crítica radical do ponto de vista sociológico e
político".21
3.3 - O POSITIVISMO E O NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA: CRIMINOLOGIA
CLÍNICA E CRIMINOLOGIA SOCIOLÓGICA
3.3.1 - O POSITIVISMO
A doutrina filosófica do positivismo floresceu no século XIX, generalizando
na Filosófica Ocidental um espírito antimetafísico e antiteológico. Ou seja,
pretende-se transplantar até mesmo para a Filosofia o rigor do método científico, 22
reduzindo o conhecimento humano àquele "claro e distinto", obtido pela análise de
fatos e coisas concretas no melhor estilo cartesiano.
23
O principal expoente desse período foi Augusto Comte (1798 - 1857), cuja
doutrina, divulgada a partir de 1826, costuma, em um sentido mais restrito e
histórico, ser designada como o próprio positivismo. A doutrina de Comte abrange
"uma teoria da ciência, uma reorganização da sociedade e uma religião".24
Segundo Comte, "o caráter essencial do novo espírito filosófico consiste na
sua tendência necessária a substituir por toda parte o absoluto pelo relativo".25
Assim sendo, o significado emprestado ao termo "positivo" é aquilo que "vigora de
21 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 30 - 32.22 René DESCARTES, Discurso do Método, passim.23 Urbano ZILLES, Grandes tendências da filosofia do século XX , p. 131.24 Ibid., p. 131.25 Augusto COMTE, Discurso sobre o espírito positivo, p. 50.
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fato ou tem realidade efetiva".26 Neste sentido afirma Comte que "a palavra
positivo designa o real em oposição ao quimérico".27
Dessa maneira, o positivismo procura estender a todas as áreas o método
científico (até mesmo à filosofia e à religião), destacando a importância do
conhecimento puro e simples dos fatos e de suas relações.
Zilles expõe sumariamente as teses fundamentais do positivismo:28
a) O único conhecimento verdadeiro possível é o científico e seu método é o único
válido. Afastam-se quaisquer ingerências metafísicas, devido ao fato de que esta é
incessível ao método da ciência.
b) O método científico é exclusivamente descritivo, investigando somente os fatos
e a relação entre eles.
c) Sendo o método da ciência o único válido, deve ser estendido a todos oscampos da pesquisa e da atividade humana.
Para Comte, "tudo obedece às leis imutáveis da natureza", cabendo "ao
homem descobrir essas leis e reduzi-las a uma unidade, restringindo-se aos
fatos".29 O autor sob comento apresenta a chamada "Doutrina dos Três Estados"
ou "Lei da Evolução Intelectual da Humanidade". Por esta doutrina, todas as
investigações humanas estão inevitavelmente sujeitas à passagem por "três
estados teóricos diferentes e sucessivos", denominados de "teológico, metafísicoe positivo". 30 Sobre o tema transcreve-se a narrativa do próprio Comte, bastante
elucidativa:
"No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas
investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de
todos os efeitos que o tocam numa palavra, para os conhecimentos absolutos,
apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes
sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas
as anomalias aparentes do universo.
26 Urbano ZILLES, Grandes tendências da Filosofia do século XX , p. 132.27 Augusto COMTE, Discurso sobre o espírito positivo, p. 48.28 Urbano ZILLES, Grandes tendências da filosofia do século XX , p. 133. Ver ainda: Alfredo de AraújoLIMA, O que é o Positivismo?, passim.29 Ibid., p. 133.30 Ibid., p. 133.
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No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que simples
modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por
forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos
diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas
próprias todos os fenômenos observado, cuja explicação consiste, então em
determinar para cada um uma entidade correspondente.
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a
impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o
destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para
preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do
raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis
de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termosreais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos
fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência
tende cada vez mais a diminuir."31
Todo esse clima de efervescência da supervalorização do método das
ciências, teve seus reflexos no âmbito do Direito e, conseqüentemente, nas
Ciências Criminais.
No âmbito do Direito o Positivismo Jurídico vem para contrapor-se aoJusnaturalismo. O Positivismo Jurídico procura aproximar o Direito, ao máximo
possível, do método das ciências naturais, reduzindo-o àquilo que possui de
palpável, observável, passível de medida e descrição, ou seja, as normas legais.
Também nesta área faz-se presente a oposição entre o método cientifico
como único norte válido e as concepções supostamente equivocadas, tomadas
como elementos a serem alijados do conhecimento humano (misticismo,
metafísica etc.).
Bobbio retrata sumariamente o antagonismo reinante entre as concepções
Jusnaturalistas e Positivistas a respeito do conceito de "Justiça":
"Enquanto para um jusnaturalista clássico tem, ou melhor dizendo, deveria
ter, valor de comando só o que é justo, para a doutrina oposta é justo só o que é
31 Augusto COMTE, Curso de Filosofia Positivista, In: Ceticismo Positivista - Coleção Os Pensadores,Volume 33, p. 10.
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comandado e pelo fato de ser comandado. Para um jusnaturalista uma norma não
é válida se não é justa; para a teoria oposta uma norma é justa somente se for
válida. Para uns, a justiça é a confirmação da validade, para outros, a validade é a
confirmação da justiça."32
O objeto da ciência jurídica passa necessariamente a ser as normas
jurídicas. Segundo Kelsen, "na afirmação evidente de que o objeto da ciência
jurídica é o Direito, está contida a afirmação - menos evidente - de que são as
normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na
medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou
conseqüência, ou - por outras palavras - na media em que constitui o conteúdo de
normas jurídicas".33
Por seu turno, a questão de uma conceituação abstrata de justiça é postaem xeque, como um objetivo quimérico, inalcançável através de um rigoroso
procedimento científico, de modo que as definições obtidas pela cultura humana
até então não passariam de fórmulas vazias, maleáveis e servíveis a quaisquer
interpretações.34
Para Kelsen, "nenhuma outra questão foi tão passionalmente discutida; por
nenhuma outra foram derramadas tantas lágrimas amargas, tanto sangue
precioso; obre nenhuma outra, ainda, as mentes mais ilustres - de Platão a Kant -meditaram tão profundamente. E, no entanto, ela continua até hoje sem resposta.
Talvez por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado saber
de que o homem nunca encontrará uma resposta definitiva; deverá apenas tentar
perguntar melhor".35
Esse abandono das questões não submetíveis ao método experimental,
conduziu, em sede de Ciências Criminais, ao surgimento de uma preocupação
com a descoberta de relações e regras constantes capazes de explicar o
32 Norberto BOBBIO, Teoria da norma jurídica, p. 58 - 59.33 Hans KELSEN, Teoria Pura do Direito, p. 79.34 Hans KELSEN, O que é Justiça?, passim. Hans KELSEN, A ilusão da Justiça, passim. É interessante notar na primeira obra indicada sua crítica à famosa definição de Justiça ("dar a cada um o que é seu"): "Atribui-sea uma das sete sabedorias gregas a famosa definição de justiça: conceder a cada um aquilo que é seu. Essafórmula foi aceita por muitos pensadores importantes, principalmente filósofos do Direito. É fácil demonstrar que é totalmente vazia, pois a questão decisiva - o que é que realmente cada um pode considerar como 'seu' -
permanece sem resposta". Ibid., p. 14.35 Ibid., p. 1.
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fenômeno da criminalidade. Surge então a Criminologia, proporcionando, pela
primeira vez, uma mudança de enfoque no âmbito criminal, dando maior
relevância ao estudo da figura do criminoso, que era praticamente deixada de lado
no Direito Penal Clássico, afeito tão somente à teoria jurídica do crime.
3.3.2 - CRIMINOLOGIA CLÍNICA E CRIMINOLOGIA SOCIOLÓGICA
Tendo em vista a concepção positivista quanto a um suposto "progresso
histórico" do pensamento humano, que direciona-se de forma ascendente de
explicações místicas, passando por uma fase metafísica, até chegar aoentendimento estritamente científico dos fenômenos; passa-se a tentar reduzir
todo conhecimento à experimentação, considerando-se primitivas quaisquer
outras especulações.
Neste clima, o fenômeno criminal somente poderia ser pesquisado com
base em dados empíricos fornecidos pela realidade de leis naturais imutáveis e
experimentáveis.
A primeira conseqüência seria necessariamente a individualização docriminoso como objeto de estudo. Isso operou-se através do afastamento absoluto
do "livre arbítrio" pugnado pela Escola Clássica como elemento de legitimação da
responsabilidade criminal. O resultado disso foi a consideração do delinqüente
como um "anormal". Segundo Ferri, "o homem que comente um delito, ou por seu
preponderante impulso fisiopsíquico (causa endógena) ou por predomínio de
condições de ambiente (causa exógena), pelo menos no momento em que realiza
o fato, está em condições anormais".36
Seria necessário dotar o pesquisador de instrumentos hábeis a selecionar,
cientificamente, os criminosos (anormais), dentre a população humana
aparentemente homogênea ou normal.
36 Enrico FERRI, Princípios de Direito Criminal , p. 250 - 251.
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O primeiro esforço neste sentido parte da doutrina de Cesare Lombroso,
especialmente com a publicação da famosa obra "O Homem Delinqüente", no ano
de 1876.37
Lombroso pensou haver detectado no criminoso uma espécie diferenciada
de "homo sapiens", que apresentaria certos sinais ("stigmata") físicos e psíquicos.
Esses estigmas físicos caracterizariam o "criminoso nato" (forma da calota
craniana e da face, dimensões do crânio, maxilar inferior procidente, sobrancelhas
fartas, molares muito salientes, orelhas grandes e deformadas, corpo assimétrico,
grande envergadura dos braços, mãos e pés etc.), além daqueles psíquicos
(pouca sensibilidade à dor, crueldade, leviandade, aversão ao trabalho,
instabilidade, vaidade, tendência à superstição, precocidade sexual etc.). Todos
esses sinais seriam conseqüência de um "regresso atávico", dadas suassemelhanças com as formas primitivas dos seres humanos.38
Além disso Lombroso julgou encontrar uma relação entre a epilepsia e a
"insanidade moral". Entretanto, tendo em vista que durante suas próprias
investigações constatou que nem todos os criminosos apresentam as
características preconizadas39, elaborou uma distinção entre "criminosos
verdadeiros (natos)" e "pseudo - criminosos", sendo estes últimos os "ocasionais"
e os "passionais". Portanto, Lombroso "nunca disse que todo criminoso é nato e,sim, que o verdadeiro criminoso é nato".40
O determinismo lombrosiano levaria a conclusões e conseqüências
relevantes na seara da Política Criminal. Por exemplo, sendo portador não
deliberado do impulso criminoso praticamente irresistível,o infrator não poderia ser
exposto a "expiações morais e punições infamantes". A sociedade poderia,
porém, defender-se aplicando-lhe desde a prisão perpétua até a pena de morte.41
Essa doutrina, contudo foi amplamente criticada e desmentida por
pesquisas posteriores a indicarem não existir qualquer indício seguro a
demonstrar alguma diferença fisiológica, física ou psíquica entre os homens
37 Newton FERNANDES, Valter FERNANDES, Criminologia integrada, p. 74.38 Ibid., pl 74.39 Lombroso realizou exames em detentos vivos e mortos recolhidos aos cárceres italianos em sua época.40 Ibid., p. 75.41 Ibid., p. 75.
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encarcerados e aqueles que jamais foram submetidos a uma condenação
criminal.42
Malgrado as características deterministas e até mesmo ensejadoras de
atitudes preconceituosas, propiciadas por uma absoluta precipitação conclusiva de
Lombroso; tem de ser a ele reconhecido o mérito de haver dado o primeiro
impulso à Criminologia, sob a forma da "Antropologia Criminal". A Lombroso
cabem os louros pela inauguração do estudo do homem delinqüente, sendo
considerado o "Pai da Criminologia".43
Também foi a partir de Lombroso que se iniciaram os diversos estudos
acerca da pesquisa de elementos endógenos capazes de eclodirem a face
criminosa de um ser humano.
Diversas pesquisas em campos variados das ciências naturais e biológicasformaram um conjunto de teorias explicativas do fenômeno criminal, ao qual
costuma-se denominar de "Criminologia Clínica". Como já exposto anteriormente,
essas teorias apresentam uma grave falha porque pretendem explicar
isoladamente, dada uma com seus instrumentos, o crime e o criminoso.
Apenas a título exemplificativo e sumário, passa-se a mencionar alguns
campos de pesquisa desta orientação:
a) Biologia Criminal - São estudos voltados à caracteriologia e morfologia doscriminosos, visando sua classificação. São expoentes dessa linha de pesquisa
Nicola Pende, Ernst Kretschmer e William Sheldon.44
b) Criminologia Genética - Neste campo destacam-se os estudos acerca do
cromossomo XYY, tomado como portador dos caracteres ensejadores da conduta
violenta no ser humano. Entretanto, nenhum estudo conseguiu comprovar uma
relação entre anomalias cromossômicas, como por exemplo a "Síndrome do Y
extra", e a tendência para o crime.45
42 Menciona-se especialmente as pesquisas de Baer e Bleuler na Alemanha. Ibid., p 75.43 Ibid., p. 82.44 Ibid., p. 147 - 152.45 Ibid., p. 156 - 157.
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A relação entre genética e criminologia torna-se, hoje, bastante atual, em
face da grande potencialidade de manipulações genéticas propiciadas pelo
avanço científico dessa área.
Embora seja inadequado no atual estágio da criminologia pensar-se em
uma origem genética ou numa "Herança Patológica" da criminalidade, não é
impossível que a descoberta de certos genes responsáveis por alguma
característica considerada arbitrariamente negativa, torne-se fator de tentação
para a indevida ingerência na individualidade humana. A questão neste tema é,
além de científica e jurídica, de índole ética, pois representa uma perigosa
possibilidade de desrespeito à personalidade e à liberdade humanas. Neste
sentido é a manifestação de Stella Maris Martinez:
"A tentação de modificar, conforme um plano preconcebido, o patrimôniogenético de significativos grupos sociais, apresenta-se como um dos principais
riscos derivados das novas técnicas de engenharia genética. Em tal sentido,
Rothley salientava: 'O benefício da análise do genoma coniste em seu uso na
prevenção de enfermidades. Frente a este benefício se encontram graves riscos
que as análises genéticas podem ocasionar. Os referidos perigos residem
especialmente na possibilidade de que surjam imperativos eugênicos e
preventivos de isolamento social de extratos inteiros da população'."
46
c) Psiquiatria e Psicologia Criminais- Trata-se dos estudos do crime como
conseqüência de distúrbios psíquicos, procurando neste campo indicar a
anormalidade do criminoso em relação ao restante da população humana.
São estudos acerca da formação da personalidade (caracteriologia), do
narcisismo, das personalidades, moléstias mentais (neuroses, psicoses e
oligofrenias), desvios sexuais, parafilias etc.47
Especial destaque merece neste campo a "Teoria Freudiana do Delito por
Sentimento de Culpa". Ela tem origem na doutrina freudiana da neurose e em sua
aplicação no intuito de explicar o comportamento criminoso.
46 Manipulação genética e Direito Penal , p. 258.47 Newton FERNANDES, Valter FERNANDES, Criminologia integrada, p. 118 - 219 / 250 - 255.
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No que se refere ao crime e ao indivíduo que o perpetra, "a psicanálise
cuida de demonstrar que o crime não é mera resultante de fatores exógenos; que
o mundo externo não atua somente sobre a consciência, mas, também, sobre os
extratos mais profundos da personalidade; que esta tem seu comportamento
determinado por seus componentes psíquicos, sendo a conduta anti - social a
forma de externalização de um conflito interno. Essas são as idéias centrais da
psicanálise, das quais parte a criminologia psicanalítica".48
Especificamente no caso da "Teoria do Delinqüente por sentimento de
culpa", cujo escrito data de 1916 e teve enorme importância, sendo texto
fundamental como ponto de partida para todos os estudos criminológicos que se
seguiram49, é relevante salientar que representou "uma radical negação do
tradicional conceito de culpabilidade e, portanto, também de todo o direito penalbaseado no princípio de culpabilidade".50
Segundo Freud, os instintos delituosos são reprimidos, mas não destruídos
pelo superego, permanecendo sedimentados no inconsciente. Tais instintos são
acompanhados, no inconsciente, por um sentimento de culpa e uma tendência a
confessar. Então mediante o comportamento criminoso, o sujeito supera o
sentimento de culpa e realiza sua tendência à confissão.51
Em seu trabalho ("I delinquenti per senso di colpa") ele relata que váriaspessoas respeitáveis, ao falarem sobre sua puberdade, narravam a perpetração
de atos ilícitos (pequenos furtos, estelionatos, incêndios etc.). Inicialmente Freud
apenas creditava tais ocorrências à debilidade moral natural nessa fase da vida
humana. Entretanto, sentiu a necessidade de aprofundar-se porque alguns
pacientes narravam fatos que tais praticados na idade adulta.
A constatação de Freud foi a de que a prática dessas ações estava
associada ao fato de serem proibidas e sua execução propiciava um alívio
psíquico àqueles que as cometiam. Observou ainda que tais pacientes sofriam de
um "oprimente sentimento de culpa" de origem desconhecida e que, depois da
48 Sheila Jorge Selim de SALES, Acerca da Criminologia Psicanalítica, Revista Brasileira de Ciências
Criminais, 17/225. Ver ainda sobre o tema: Joe Tennyson VELO, Criminologia Analítica, passim.49 Ibid., p. 231.50 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 50.51 Ibid., p. 50.
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prática delituosa, a opressão da culpa era abrandada, tendo em vista que tal
sentimento podia ser creditado a algo real.
Havia, no caso, uma inversão, na qual o sentimento de culpa preexistia à
ação ilegal, ao invés de surgir depois de seu cometimento. O crime "era a
resultante do sentimento de culpa", mais que isso, era a sua racionalização.52
Não somente pelo prestígio do autor, como também pela proposta
etiológica aplicável a determinados casos de fatos criminosos, é interessante o
destaque dessa teoria freudiana. Entretanto, agora tomando a Criminologia
Psicanalítica em geral, pode-se dizer que seu maior destaque está na pioneira
inclusão (já por volta dos anos 20 e 30) da sociedade, "sob um ângulo
inteiramente diferente" na explicação do fenômeno criminal. Antecedendo a
reflexão propriamente sociológica proporciona em Freud e seus seguidores umameditação acerca da validade do Princípio da Culpabilidade, constituindo-se em
elemento crítico frente ao Direito Penal tradicional.
Por outro lado, outro filão da Criminologia Psicanalítica, constituído pelas
"Teorias Psicanalíticas da Sociedade Punitiva" (Theodor Reik, Franz Alexander,
Hugo Staub, Paul Reiwald, Helmut Ostermeyer e Edward Naegeli), coloca "em
dúvida também o princípio de legitimidade e, com isto, a legitimação mesma do
direito penal. A função psicossocial que atribuem à reação punitiva permiteinterpretar como mistificação racionalizante as pretensas funções preventivas,
defensivas e éticas sobre as quais se baseia a ideologia da defesa social
(Princípio da Legitimidade) e em geral toda ideologia penal. Segundo as teorias
psicanalíticas da sociedade punitiva, a reação penal ao comportamento delituoso
não tem a função de eliminar ou circunscrever a criminalidade, mas corresponde a
mecanismos psicológicos em face dos quais o desvio criminalizado aparece como
necessário e ineliminável da sociedade".53
Embasado na teoria freudiana do "delinqüente por sentimento de culpa",
Theodor Reik apresenta uma teoria psicanalítica do Direito Penal. Defende a
existência de uma dupla função da pena:
52 Sheila Jorge Selim de SALES, Acerca da Criminologia Psicanalítica, Revista Brasileira de Ciências
Criminais, 17/ 231 - 232.53 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 49 - 50.
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a) para o indivíduo desviante, a pena dirige-se à satisfação da necessidade
inconsciente de punição que o impulsiona a uma ação proibida;
b) para a sociedade, a pena satisfaz uma necessidade de punição, por meio de
uma inconsciente identificação com o infrator.
Desse modo, as concepções retributiva e preventiva da pena,
tradicionalmente defendidas nos meios jurídicos, não passam de "racionalizações
de fenômenos que fundam suas raízes no inconsciente da psique humana." 54
Toda essa identificação da sociedade punitiva com o infrator, apresentada
por Reik, Alexander e Staub, baseada ainda no mecanismo de "projeção"
freudiano, levou Paul Reiwald a desenvolver sua teoria do criminoso como um
"bode expiatório" da sociedade. Alguém sobre quem recai a descarga de culpas
inconscientes numa tentativa de purificação.55
Efetivamente em Freud desde logo encontra-se a definição do tabu como
sendo algo desejável mas proibido. "A base do tabu é uma ação proibida, para
cuja realização existe forte inclinação do inconsciente".56 Assim sendo, as ações
consideradas desviantes têm um característico de serem atrativas aos integrantes
da sociedade em geral (afinal não seria necessário proibir algo que não fosse de
modo algum desejado), gerando a conclusão de que a punição dos infratores das
regras sociais proibitivas se dá por um mecanismo inconsciente de identificaçãode desejos reprimidos. Essa é a conclusão do próprio Freud ao asseverar que "é
igualmente claro por que é que a violação de certas proibições tabus constitui um
perigo social que deve ser punido ou expiado por todos os membros da
comunidade se é que não desejam sofrer danos. Se substituirmos os desejos
inconscientes por impulsos conscientes, veremos que o perigo é real. Reside no
risco da imitação, que rapidamente levaria à dissolução da comunidade. Se a
54 Ibid., p. 5l. É interessante destacar que Franz Alexander e Hugo Staub enriqueceram a teoria psicanalítica
da sociedade punitiva, transportando os conceitos de identificação da sociedade com o delinqüente, para aidentificação daqueles que incorporam os órgãos do sistema penal com os desviantes. Existiria entre estas
pessoas uma afinidade, consistente em fortes tendências anti - sociais não suficientemente reprimidas, asquais levariam as pessoas ocupantes dos cargos afetos ao Sistema Penal a um zeloso exercício da função
punitiva num afã inconsciente de auto - punição por identificação com aqueles que são realmente punidos.Além disso a violência imprimida aos desviantes em forma de punição legal (violência legal ou legítima),constituiria uma descarga de impulsos agressivos reprimidos. Ibid., p.53 - 54.55 A figura do "bode expiatório" está ligada ao costume de povos antigos em sacrificar um animal aos deusescomo meio de purificação de seus pecados. Ibid., p. 55.56 Sigmund FREUD, Totem e Tabu, p.41.
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violação não fosse vingada pelos outros membros, eles se dariam conta de
desejar agir da mesma maneira que o transgressor."57
Verifica-se que a Criminologia Psicanalítica, muito embora não apartada da
explicação etiológica para o crime, tem a qualidade de introduzir o elemento crítico
do Sistema Penal na pauta de discussões, seja de um ponto de vista
microssociológico ("Teoria do Delinqüente por sentimento de culpa"), seja de um
ângulo macrossociológico ("Teorias Psicanalíticas da Sociedade Punitiva").
d) Endocrinologia - Estuda a atuação de secreções endócrinas (glandulares) para
a produção do evento criminoso. Tratam-se de pesquisas voltadas para a
"psicofisiologia criminal".
Segundo Quintilhano Saldaña, as secreções internas ou endócrinas são deinfluência reconhecida nas funções psíquicas e sobre fenômenos psicofisiológicos
complexos. As glândulas endócrinas lançam produtos diretamente no sangue, que
é o elemento biológico mais determinante das funções cerebrais. De acordo com
essas pesquisas, "as secreções endócrinas influenciariam os estados emocionais,
podendo produzir modificações de condutas normais ou patológicas." Podendo
também "produzir psicoses e influenciar o cometimento de crime".58
e) Estudo das Toxicomanias - Trata da pesquisa da relação entre as
toxicodependências ou mesmo do simples consumo de drogas (legais e ilegais)
como elemento criminogenético. Estes estudos, diferentemente dos demais casos
até agora expostos, não têm a pretensão de apresentarem uma explicação de
caráter geral para o evento criminoso, mas somente procuram a eventual relação
com a utilização de tóxicos em casos concretos e específicos. A conclusão a que
se chega nesses casos é a de que as toxicomanias são "um razoável fator de
criminalidade e fenômeno de patologia social que, dia após dia, perigosamente,
ganha proporções alarmantes e dificilmente controláveis."59
57 Ibid., p. 42 - 43.58 Newton FERNANDES, Valter FERNANDES, Criminologia integrada, p. 282.59 Ibid., p. 580 - 581.
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Apresentado um esboço dos principais aspectos da chamada "Criminologia
Clínica", passa-se agora a expor os fundamentos da "Criminologia Sociológica".
A "Criminologia Sociológica" surge como um elemento crítico da
"Criminologia Clínica", expondo que sua insistência nas causas endógenas da
criminalidade deixava a descoberto as influências ambientais ou exógenas
presentes na gênese delitiva, estas, segundo seus defensores, amplamente
preponderantes.
Seu principal precursor no Positivismo foi Enrico Ferri, o qual no prefácio de
sua obra "Princípios de Direito Criminal", assim se manifesta:
"Esta ciência, a que eu chamo 'sociologia criminal' e que estuda a gênese
natural do crime, como fato individual e social, e dele indica os meios de defesa
preventiva e repressiva, compreende necessariamente também a organização jurídica da repressão, contida no Código Penal e no Processo Penal".60
A "Criminologia Sociológica" continua na senda da pesquisa da etiologia do
delito. Apenas altera a natureza dessa etiologia, transplantando-a para a influência
do ambiente.
No Brasil Tobias Barreto lapidou a afirmação de que "a sociedade é co - ré
na maioria dos crimes julgados pelos tribunais".61
Os estudos sobre a influência do ambiente na criminalidade são bastanteabundantes e variados. Podem ser mencionados exemplificativamente estudos de
influências de diversas espécies:62
a) Geografia Criminal e Meio Natural - Estudos referentes à repercussão do meio
ambiente (em sentido amplo) na gênese criminal.
b) Metereologia Criminal - Refere-se a estudos relativos à influência do clima na
incidência criminal.
60 Enrico FERRI, Princípios de Direito Criminal , p. 19.61 Apud, Newton FERNANDES, Valter FERNANDES, Criminologia integrada, p. 607.62 Ibid., p. 315 - 389.
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c) Higiene e Nutrição - Destaca a atuação criminogênica da promiscuidade e da
falta de meios básicos de subsistência, sublinhando também a pobreza e a
miséria como fatores importantes, embora não necessariamente vinculados ao
crime.
Ao tratar do problema do relacionamento eventual entre o crime e a
condição social das pessoas é interessante lembrar uma questão que muitas
vezes passa despercebida como uma face oculta dos discursos que pregam
atuações assistenciais preventivas em bairros ou localidades pobres. Percebe-se,
através de uma análise mais acurada, que os benefícios levados ou projetados
para essas localidades não estão focando em um primeiro plano a satisfação dos
direitos básicos dessas pessoas que vinham sendo desprezados, mas, na
verdade, atuam como uma instância preventiva no âmbito criminal, visando atingir e neutralizar uma população considerada potencialmente perigosa no aspecto
delitivo.
Essa constatação é que leva Theodomiro Dias Neto a questionar onde
ficariam as fronteiras entre a atuação política e social, visando garantia de direitos
às pessoas e a mentalidade meramente preventiva e até mesmo preconceituosa
de uma prevenção voltada para os meios sociais menos favorecidos, rotulados
como potenciais geradores de criminosos. Questiona o autor: "ações voltadas aoaprimoramento do ensino ou à criação de espaços de lazer para jovens em uma
área de baixa renda e de alto risco criminal devem ser classificadas como medidas
de prevenção criminal? Como seriam as mesmas medidas classificadas se
dirigidas a um público de maior poder aquisitivo?"63
Baratta também alerta para o risco de confusão entre políticas públicas ou
sociais e políticas criminais, mencionando o perigo da "criminalização das políticas
sociais". Passa a haver uma indevida promiscuidade entre a satisfação estatal de
direitos fundamentais com o fim de prevenção social do crime. Essa mentalidade
acaba dividindo a sociedade infratores potenciais e potenciais vítimas ou entre
vigiados e protegidos. A assistência social não é trabalhada como um dever do
Estado para com cidadãos marginalizados e solapados em seus direitos
63 A Nova Prevenção: uma política integrada de segurança urbana, Revista Brasileira de Ciências Criminais,36/394.
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fundamentais, mas sim como um dever de proteção contra criminosos
potenciais.64
Essa é uma visão crítica necessária para que a proposta de uma pesquisa
etiológica entre criminalidade e condição social seja sempre recebida com certa
cautela, em face de seu conteúdo muitas vezes estigmatizante, produtor de
estereótipos indevidos, em suma, geradora de preconceitos que, inclusive,
ocultam-se até mesmo no bojo de discursos de caráter assistencial.
d) Sistema Econômico - Põe em evidência a capacidade do Sistema Econômico
em criar conflitos sociais, em especial devido à desigualdade e ao consumismo
alimentados pelo Capitalismo. O modelo econômico pode ser a origem de outros
fatores considerados criminogenéticos, tais como a pobreza, a miséria, a fone, adesnutrição, o analfabetismo, a educação precária, desemprego, subemprego,
êxodo rural e industrialização, urbanização e densidade demográfica, dentre
outros. Ainda ligada umbilicalmente ao Sistema Econômico, especialmente na
realidade atual, está a Política, cuja atuação perpetuante das injustiças sociais
somente faz fomentar o arcabouço criminogenético existente.
e) Mal vivência - Trata-se da constatação do potencial criminógeno da adoção
deliberada ou desafortunada de um modo de vida marginal. São os casos dosandantes, vagabundos, mendigos, prostitutas etc.
f) Ambiente Familiar - A desestruturação do lar e da família apresentada como
uma das causas determinantes da criminalidade precoce ou mesmo adulta.
Seriam fatores exemplificativos: a violência doméstica, abusos sexuais no lar,
alcoolismo e toxicomanias dos pais, carências afetivas etc.
g) Profissão - Indica-se, através de observações do dia a dia, a relação entre
determinadas profissões e a espécie de crime favorecido por elas. Muitas vezes a
atividade profissional do indivíduo pode incliná-lo à prática de certas infrações
penais. Por exemplo: médicos e crimes culposos por imperícia ou abortos;
64 Alessandro BARATTA, Defesa dos Direitos Humanos e Política Criminal, Discursos Sediciosos.Crime,
Direito e Sociedade, 3/60.
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funcionários públicos e atos de corrupção; advogados e contadores e crimes de
fraudes processuais ou fiscais; investidores e crimes financeiros; engenheiros e
crimes culposos (desabamentos) etc.
Newton Fernandes e Valter Fernandes fazem menção nesses casos aos
chamados "Criminosos Situacionais", afirmando que "é induvidoso que certas
posições, ocupações ou profissões, ensejam ao indivíduo facilidades e benefícios,
que confrontados com a situação em que vivem os demais, conferem-lhe
privilégios, que a maioria das pessoas não consegue alcançar".65
h) Guerra - Constituem estudos sobre a influência do ambiente criado durante e
após uma guerra como fator gerador de condutas criminosas.
i) Migração e Imigração - Em especial autores norte - americanos apresentam
trabalhos dedicados a este tema (v.g. Edwin Sutherland, Breckinridge, Abbot,
Gillin, Healy, Ângelo Vacaro, Zorbaugh, Clayton etc.), certamente devido à grande
incidência de imigrantes ilegais naquele país e seu relevante papel nas
estatísticas criminais. Deixando de lado, por ora, a questão da "seletividade do
Sistema Penal", que será analisada no estudo da "Criminologia Radical", constata-
se como elemento criminogenético nos casos de migração e imigração, aheterogeneidade cultural que passa a avultar no ambiente social e as dificuldades
de adaptação dos agregados, bem como seus sentimentos de frustração ante as
expectativas alimentadas quando de sua partida e a realidade encontrada no
destino escolhido. Na realidade brasileira isso pode ser muito bem retratado com
os migrantes de Estados Nordestinos que se instalam em precárias condições nas
favelas de São Paulo.
j) Prisão e Contágio Moral - A influência deletéria da prisão sobre os encarcerados
e sua atuação contrária aos objetivos comumente preconizados é tema já bastante
comentado pela literatura criminológica. O fenômeno do contágio moral pode
ocorrer nas prisões ou mesmo na vida em sociedade, devido à convivência com
65 Criminologia integrada, p. 506.
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pessoas enfronhadas na marginalidade, no submundo do crime. Ocorre que nas
prisões tal fenômeno encontra todo o ambiente especialmente propício para o seu
desenvolvimento.
O que se opera no ambiente carcerário, ao contrário da recuperação do
delinqüente, é a sua adequação completa a um submundo criminoso, fenômeno
conhecido como "prisionização". Por isso, vige na doutrina a assertiva consensual
de que "a realidade, (...), revela que a ressocialização é impossível de ser
alcançada, seja porque ela, em si mesma, é paradoxal, seja porque os meios
oferecidos para a sua execução são imprestáveis. Por isso, hoje, não passa de um
mito".66
Na verdade o tradicional discurso da recuperação ou ressocialização vai
perdendo terreno na nova realidade econômica mundial em que as populaçõesmarginalizadas tornam-se um entrave, um descarte necessário do sistema,
inexistindo qualquer preocupação com sua inserção ou reinserção social. Ao
contrário, o objetivo maior tende para a sua exclusão definitiva.67 Não é outra a
conclusão de Minhoto:
"Hoje, o enfraquecimento da ideologia de reabilitação e a guinada rumo à
valorização da função meramente incapacitadora do cárcere, para além do debate
estritamente acadêmico, parece ter mais a ver com a transformação da prisão emfábrica de exclusão social, na medida em que o confinamento tende a se
configurar como uma alternativa ao emprego, uma estratégia de neutralização dos
setores da população que se tornam descartáveis ao olhos do sistema produtivo,
para os quais não há trabalho ao qual se reintegrarem."68
Sobre este tema muito haveria a expor. Contudo, seu desenvolvimento
excederia os objetivos do presente trabalho, razão pela qual remete-se o leitor à
farta literatura disponível a respeito.69
66 Roberto LYRA, João Marcello de ARAUJO JÚNIOR, Criminologia, p. 192.67 Eduardo Luiz Santos CABETTE, Direito Penal e Globalização, Boletim IBCCrim, 84/4.68 Laurindo Dias MINHOTO, Crime, Castigo e Distopia no Capitalismo Global, Revista Brasileira de
Ciências Criminais, 36/418.69 Cezar Roberto BITENCOURT, Falência da Pena de Prisão, passim. Augusto THOMPSON, A questão
penitenciária, passim. Erving GOFFMAN, Manicômios, Prisões e Conventos, passim. Eduardo Luiz SantosCABETTE, A desmistificação do caráter da pena: a ineficácia do Direito Penal como fator de contenção dacriminalidade, Revista Direito & Paz , 1/7-23.
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k) Meios de Comunicação - Os meios de comunicação podem ter uma atuação
importante na prevenção criminal, cumprindo sua função educativa e cultural.
Entretanto, o que se verifica é a incontrolada busca por índices de audiência,
mediante a exploração de casos criminais reais, divulgando e banalizando a
violência, bem como "ensinando" modalidades de atuação criminosa. Afora isso,
os meios de comunicação atuam de maneira relevante para inculcarem nas
mentes o furor consumista, consistindo em importante fator de frustração para as
camadas mais baixas da sociedade.
Zaffaroni constata essa atuação deletéria dos "mass midia" e propõe um
controle equilibrado a fim de minimizar seus efeitos:
"(…), as notícias podem ser submetidas a um controle técnico que evite suadifusão através da televisão de maneira a provocar ou implicar metamensagens
reprodutoras ou instigadoras públicas de violência, de delito, de uso de armas, de
condutas suicidas ou consumo de tóxicos.
Sem dúvida, este controle técnico seria atacado como lesivo à liberdade de
expressão. No entanto, apesar de a liberdade de expressão consistir na livre
circulação e no amplo direito à informação, as idéias podem circular com liberdade
sem que isso seja incompatível com a proteção da produção nacional, a criaçãode fontes de trabalho e a economia de divisas. O amplo direito à informação não é
limitado quando não se impede a circulação das notícias, mas quando se proíbe
inventar fatos violentos não ocorridos, mostrar pela televisão cadáveres
despedaçados, explorar a dor alheia surpreendendo declarações de vítimas
desoladas e desconcertadas, violar a privacidade de vítimas humildes e outros
recursos semelhantes, como a incitação de brigas entre vizinhos de bairros
populares, invenção de pseudo - especialistas em matérias que desconhecem
totalmente, apresentação de profissionais desconhecidos como catedráticos etc;
isto é, a propagação de mensagens irresponsáveis que constituem uma
deslealdade comercial com o simples objetivo de obter audiência, numa
competição viciada (…)."70
70 Eugenio Raúl ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas, p. 175 - 176.
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Efetivamente é fato notório a capacidade reprodutora da violência pelos
meios de comunicação com sua atuação gananciosa e irresponsável. Um exemplo
histórico foram os casos de "vitriolagem" ocorridos em França em determinado
período. Paul Aubry atribuiu a disseminação da prática (jogar ácido sulfúrico no
rosto das pessoas), a um fenômeno de "mimetismo" ou "contágio moral"
propiciado pela divulgação dos casos de forma irresponsável pela imprensa.71
Imagine-se, hoje, o quanto esse problema se agigantou, considerando o grau de
desenvolvimento das comunicações e o fenômeno da globalização.
Findo este quadro sumário das pesquisas da "Criminologia Sociológica" e
das diversas etiologias sociais indicadas para a origem do crime, no próximo
tópico apresentar-se-á as chamadas "Teorias Estrutural - Funcionalistas", tambémde matiz sociológico, mas que merecem ser estudadas separadamente, tendo em
conta suas peculiaridades.
3.3.3 - TEORIAS ESTRUTURAL - FUNCIONALISTAS
As Teorias Estrutural - Funcionalistas têm por ponto de partida a
constatação de que o crime é produzido pela própria estrutura social, tendo a sua
função dentro do sistema, razão pela qual não deve ser tomado como uma
anomalia ou moléstia social.
O fundamento teórico básico e original é ofertado por Émile Durkheim ao
apontar para a normalidade do crime em todas as sociedades. É dele a afirmação
de que "o crime é normal porque uma sociedade isenta dele é completamente
impossível".72 Mais que isso, para Durkheim, o crime é "necessário" para a
coesão social e uma sociedade sem crimes é que daria indícios de deterioração.
Para o autor o fenômeno criminal provoca uma reafirmação da ordem social e uma
legitimação para a sua existência. Portanto, toda vez que ocorre um crime, a
71 Apud, Newton FERNANDES, Valter FERNANDES, Criminologia integrada, p. 383 - 384.72 As regras do método sociológico, p. 83.
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reação contra ele reafirma os laços sociais e confirma a vigência e validade das
normas regulamentadoras do convívio. É isto que afirma textualmente: "O crime é
necessário; está ligado às condições fundamentais de qualquer vida social mas,
precisamente por isso, é útil; porque estas condições de que é solidário são elas
mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e do direito".73
O desvio, sendo funcional, conforme demonstrado, somente será perigoso
para a existência e o desenvolvimento da sociedade quando exceder certos
limites. Nestes casos pode advir uma situação de absoluta desorganização e
anarquia, em que todo o sistema normativo de conduta perde seu valor. Ao
mesmo tempo, outro sistema não se firma em substituição, gerando um estado de
absoluta falta de regras ou normas, uma ausência de qualquer orientação sobre a
conduta humana. A este estado de coisas, Durkheim denomina "anomia" e estasim pode ser um fator extremamente deteriorante da sociedade.74
Um exemplo sempre atual de uma situação de "anomia" é a sensação de
impunidade e de ausência ou negligência dos órgãos oficiais, gerando um amplo
descrédito no sistema normativo vigente, mas inoperante. Aliás essa constatação
não é nova, encontrando-se intuída desde antanho na afirmação de Beccaria de
que "não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a
certeza do castigo (...)".
75
A noção de "anomia" e da funcionalidade do crime na sociedade conduz a
uma revolução inclusive no que tange à finalidade e fundamento da pena, pois que
não mais devem ser buscados na profilaxia de um mal. "Com efeito, se o crime é
uma doença, a pena é o remédio e não pode ser concebida de modo diferente;
assim todas as discussões que suscita incidem sobre a questão de saber em que
deve consistir para desempenhar o seu papel de remédio. Mas se o crime não tem
nada de mórbido, a pena não pode ter como objetivo cura-lo, e a sua verdadeira
função deve ser procurada noutro lugar".76 Confirma-se assim a assertiva
antecedente a este item, onde afirma-se que as teorias ora em exposição, embora
de matiz sociológico e buscando as origens do crime, apresentam peculiaridades
73 Ibid., p. 86.74 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 59 - 60.75 Cesare BECCARIA, Dos Delitos e das Penas , p. 80.76 Émile DURKHEIM, As regras do método sociológico, p. 88.
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que as diferenciam das demais pesquisas sociológico - criminais praticamente
acríticas quanto à visão maniqueísta do crime, do criminoso e das funções do
Direito Penal.
Ainda sob a orientação estrutural - funcionalista há que mencionar a
doutrina de Robert Merton. O autor sob comento se utiliza da noção de "anomia"
para indicar como o desvio é um produto da própria estrutura social,
absolutamente normal, na medida em que esta própria estrutura acaba
compelindo o indivíduo à conduta desviante, apresentando-lhe metas, mas não lhe
disponibilizando os meios necessários para a sua consecução, de maneira a "tirar-
lhe o chão", abandonando-o sem possibilidades "normais" de obter seus objetivos.
Ausentes os meios legais, mas presente a pressão para a conquista dos objetivos
impostos socialmente, esse vácuo ("anomia") necessitará ser preenchido dealguma forma. Essa forma é a perseguição dos fins por meios ilegais, desviantes,
já que os legítimos não estão disponíveis.
Segundo Merton, "a desproporção entre os fins culturalmente reconhecidos
como válidos e os meios legítimos à disposição do indivíduo para alcança-los, está
na origem dos comportamentos desviantes".77 E mais: "a cultura coloca, pois, aos
membros dos estratos inferiores, exigências inconciliáveis entre si. Por um lado,
aqueles são solicitados a orientar a sua conduta para a perspectiva de um altobem estar; por outro, as possibilidades de faze-lo, com meios institucionais
legítimos, lhes são, em ampla medida, negadas".78
A maior crítica que se faz à doutrina de Merton é a de que ela somente
explica a criminalidade das classes sociais mais baixas. Ela não serviria para
desvelar a criminalidade de "Colarinho Branco" (v.g. econômica, fiscal, ambiental
etc.). Isso porque tais sujeitos ativos ocupariam um "status" social elevado e
teriam à sua disposição os meios legítimos para o alcance dos fins culturalmente
impostos. Mesmo assim incidiriam na senda do crime. A essa questão a
orientação mertoniana não apresentaria uma resposta satisfatória.
Na visão de Merton essa objeção não seria crucial. Para ele os "criminosos
de colarinho branco" seriam exatamente a personificação do contraste entre os
77 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 63.78 Robert MERTON, Apud, Ibid., p. 65.
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fins culturais socialmente impostos e os meios legítimos para o seu alcance. Os
chamados "homens de negócios" que incidem em práticas criminosas seriam,
então, aqueles que absorveram amplamente os fins culturais (sucesso
econômico), mas, por outro lado, não interiorizaram as normas institucionais que
determinam os meios legais para a consecução daqueles fins.
Não obstante, Baratta afirma que "a criminalidade de colarinho branco
permanece, substancialmente, um corpo estranho na construção original de
Merton. Esta é adequada somente para explicar, naquele nível superficial de
análise ao qual chega, a criminalidade das camadas mais baixas".79 Aduz o autor
que Merton, ao tentar adequar sua explicação à criminalidade de "colarinho
branco", se vê "constrangido a acentuar a consideração de um elemento subjetivo
- individual (a falta de interiorização das normas institucionais) em relação a de umelementos estrutural - objetivo (a limitada possibilidade de acesso aos meios
legítimos para a obtenção do fim cultural, o sucesso econômico)."80
Razão parcial assiste a essa crítica. Efetivamente a adaptação feita por
Merton privilegia um aspecto subjetivo em detrimento de um elemento objetivo
original, de maneira a desvirtuar a teoria enquanto fórmula explicativa geral.
No entanto, não parece inadaptável de forma absoluta a criminalidade de
"colarinho branco" à teoria mertoniana de desequilíbrio entre fins culturais e meiosinstitucionais, em sua formulação original.
Essa correlação conturbada entre fins e meios, na realidade da sociedade
capitalista, atinge a todos indistintamente. Dependendo da posição ocupada
socialmente pelo indivíduo, variará o grau de sofisticação dos fins almejados. No
entanto, a pressão exercida para a conquista destes ou daqueles fins, mais ou
menos sofisticados, necessários ou supérfluos, acaba não diferindo
qualitativamente em face da interiorização pelo indivíduos em geral das
concepções de obtenção sempre maior de bem estar e acúmulo de riquezas. Para
uns, o fim cultural em face à sua condição social, pode ser somente um carro
novo, uma casa ou até mesmo um simples tênis. Para outros, milhões em
dinheiro, jatos particulares, jóias etc. Na sociedade capitalista não existem limites
79 Ibid., p. 67.80 Ibid., p. 66.
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para o acúmulo e o consumo, estando invariavelmente submetidos a um afã de
progresso econômico infinito, todos aqueles que são submetidos e dominados por
tal pressão cultural.
Nesse quadro, em qualquer caso, os fins culturais nunca estarão
suficientemente equilibrados com os meios legais disponíveis ao seu alcance. Se
um empresário já tem altos lucros e muitos bens materiais, estará sempre impelido
a aumentar esse lucros e adquirir mais bens. Nem sempre essa operação é viável
pelos meios institucionais, o que o levaria, igualmente àquele indivíduo das
classes mais baixas, à senda da ilegalidade para a consecução de seus objetivos,
os quais só diferem dos deste pelo grau de sofisticação. A "necessidade" de
alcance de certos fins na sociedade capitalista é muito mais psicológica do que
material e então não há diferença substancial entre as expectativas de progressoeconômico das classes baixas ou altas, a não ser, como já frisado, pelo grau de
sofisticação.
Na verdade se os fins culturais preconizados por Merton fossem aqueles
básicos, que constituem uma necessidade material mínima dos seres humanos,
sua teoria não somente seria inválida para as classes superiores, mas também
para qualquer uma que estivesse acima da linha da miséria. Como já destacado,
esses fins culturais exercem uma atuação muito mais psicológica nos indivíduos,do que constituem verdadeiras necessidades básicas (v.g. roupas da moda, jóias,
carros, bebidas, mobiliário luxuoso etc.). Mesmo estando em uma situação
econômica privilegiada podem haver certos objetivos inalcançáveis pelos meios
institucionais, mas almejados pelo indivíduo dominado pelo modelo capitalista.
Hobsbawn retrata essa realidade atual: "(...), é evidente que se as pessoas
vivem em um nível de subsistência, isto é, sem garantia dos elementos básicos de
vida, como alimento, roupa, abrigo, então é muito importante sair dessa situação.
Elas ficam felizes simplesmente por viver em uma situação na qual não mais
precisam temer a fome. (...). Mas, quando se vive acima do nível da miséria, as
coisas são muito diferentes. Mesmo um aumento na renda ou uma ampliação da
gama de divertimentos não assegura, de modo necessário ou automático, um
sentimento de realização ou satisfação. Num mundo em que as pessoas podem
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viver de bolo, em vez de pão, não se pode evitar o estresse da inveja e da
competição social. Para um indivíduo rico em uma sociedade dinâmica, é difícil
não fazer comparações com a riqueza acumulada por outros membros do mesmo
grupo social, mesmo tendo obtido já todo êxito que esperava. (...). E isto,
obviamente, reduz a felicidade e aumenta a insegurança."81
Do exposto conclui-se que, na verdade, o equívoco de Merton foi no sentido
de pretender desvirtuar sua teoria original, inserindo um elemento subjetivo
desnecessário no caso dos crimes de "colarinho branco", ao invés de atentar para
a natureza homogênea da pressão psiciológica dos fins culturais na sociedade
capitalista.
Por outro lado, Baratta também critica a teoria mertoniana em virtude de
sua negligência quanto à "relação funcional objetiva" entre a criminalidade de"colarinho branco" e a "estrutura do processo de produção e do processo de
circulação do capital" legais. Segundo o autor, é fato evidente que "uma parte do
sistema produtivo legal se alimenta de lucros de atividades delituosas em grande
estilo".82
Sem dúvida, essa é uma lacuna nos estudos de Merton, a qual, porém, não
tem o condão de invalidar suas conclusões nos limites a que se propôs.
Uma teoria que surgiu como uma "alternativa à teoria funcionalista" foiaquela apregoada por Edwin H. Sutherland, denominada de "Teoria da
Associação Diferencial". Segundo ela, a criminalidade, à semelhança de qualquer
modelo de comportamento, é aprendida, de acordo com os convívios específicos
aos quais se submete o sujeito, em seu ambiente social e profissional.83
Tal pensamento serviu de base para a formulação da chamada "Teoria das
Subculturas Criminais". O indivíduo aprenderia o crime (técnicas e fins) de acordo
com o seu convívio em determinados meios e assumiria as feições de certos
grupos aos quais estaria ligado por aproximação voluntária (convívio opcional com
certos grupos sociais); ocasional (classe social) ou coercitiva (prisão).84
81 Eric HOBSBAWN, O novo século, p. 126 - 127.82 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 67.83 Ibid., p. 66.84 As subculturas são amplamente verificáveis especialmente no ambiente carcerário e o processo deaprendizagem do crime é também constatado em vários estudos, recebendo o nome de "prisionização" aindicar não somente o aprendizado do crime, mas toda uma adaptação às normas e costumes do submundo da
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Sutherland afirma que pelo processo de "associação diferencial" o
indivíduo, de acordo com seu convívio, aprende e apreende as condutas
desviantes. Por isso, tal teoria poderia explicar tanto a criminalidade das classes
baixas como das altas. Os criminosos menos abastados cometeriam sempre os
mesmos crimes, porque estariam ligados ao convívio de pessoas de seu nível
social e somente poderiam aprender essas espécies de condutas delitivas, não
tendo acesso a informações que os tornassem hábeis a outras práticas mais
sofisticadas. Por seu turno, aqueles mais privilegiados aprenderiam outras
modalidades de crimes afetos a seus meios e, por isso, também raramente
incidiriam nas condutas das classes mais baixas.
Aqui residiria um ponto de contato ou síntese entre a teoria de Merton (fins
culturais e meios institucionais) e a da "associação diferencial". Isso porque amodalidade de conduta seria distribuída de acordo com os meios dispostos aos
indivíduos para desenvolverem seus impulsos.
Segundo Baratta, coube a Cloward, em um artigo publicado em 1959,
proceder à síntese entre as concepções de Merton e Sutherland, nos seguintes
termos:
"Entre os diversos critérios que determinam o acesso aos meios ilegítimos,
as diferenças de nível social são, certamente, as mais importantes (...). Tambémno caso em que membros de estratos intermediários e superiores estivessem
interessados em empreender as carreiras criminosas do estrato social inferior,
encontrariam dificuldades para realizar essa ambição, por causa de sua
preparação insuficiente, enquanto os membros da classe inferior podem adquirir,
mais facilmente, a atitude e a destreza necessárias. A maior parte dos
pertencentes às classes média e superior não são capazes de abandonar
facilmente sua cultura de classe, para adaptar-se a uma nova cultura. Por outro
lado, e pela mesma razão, os membros da classe inferior são excluídos do
acesso aos papéis criminosos característicos do colarinho branco".85
prisão. "O efeito da prisão que se denomina prisionização, sem dúvida é deteriorante e submerge a pessoanuma 'cultura de cadeia', distinta da vida do adulto em liberdade". Eugenio Raúl ZAFFARONI, Em busca das
penas perdidas, p. 136. Ver ainda sobre o tema: Carlos Alberto Marchi de QUEIROZ, O Direito de Fugir , p.83 - 99. José Ricardo RAMALHO, O mundo do crime: a ordem pelo avesso, passim.85 R.A. CLOWARD, Apud Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 70 -71.
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Mas, a concepção de Sutherland pretende ser mais abrangente e geral do
que a de Merton, dispondo-se a fornecer uma fórmula geral capaz de explicar a
criminalidade das classes inferiores e também aquela de "colarinho branco".
Referida fórmula residiria na afirmação de que qualquer conduta desviante é
"aprendida em associação direta ou indireta com os que já praticaram um
comportamento criminoso e aqueles que aprendem esse comportamento
criminoso não têm contatos freqüentes ou estreitos com o comportamento
conforme a lei". Para Sutherland, uma pessoa torna-se ou não criminosa de
acorco com o "grau relativo de freqüência e intensidade de suas relações com os
dois tipos de comportamento" (legal e ilegal), ao que chama propriamente de
"associação diferencial".86
A "Teoria das Subculturas Criminais" demonstra uma coincidência entre osmecanismos de aprendizagem e interiorização das normas e paradigmas
comportamentais ligados à delinqüência e aqueles mesmos mecanismos da
socialização normal. Deixa clara a relatividade do livre arbítrio pessoal frente a
esses mecanismos de socialização. Desse modo, "constitui não só uma negação
de toda teoria normativa e ética da culpabilidade, mas uma negação do próprio
princípio de culpabilidade ou responsabilidade ética individual, como base do
sistema penal".
87
Finalmente releva tratar da chamada "Teoria das Técnicas de
Neutralização", trazida a lume por Gresham M. Sykes e David Matza, como uma
"importante correção da teoria das subculturas criminais". "A correção foi obtida
pela análise das 'técnicas de neutralização', ou seja, daquelas formas de
racionalização do comportamento desviante que são apreendidas e utilizadas ao
lado dos modelos de comportamento e valores alternativos, de modo a neutralizar
a eficácia dos valores e das normas sociais aos quais, apesar de tudo, em
realidade, o delinqüente geralmente adere".88
É verificável que o indivíduo, mesmo que submergido numa subcultura
criminal, sempre tem algum contato com a cultura oficial e, de algum modo,
86 Edwin H. SUTHERLAND, Apud, Ibid., p. 72.87 Ibid., p. 76.88 Ibid., p. 77.
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influencia-se e reconhece algumas de suas regras. Se assim não fosse, sequer
poderia ter consciência do caráter desviante de sua conduta. A partir dessa
constatação Sykes e Matza procuram expor os mecanismos utilizados pelos
indivíduos para justificarem para si mesmos e os outros, a prática da conduta
desviante em detrimento daquela normalizada. Dessa forma, demonstram como
as regras oficiais atuam perante a consciência dos desviantes, fato este não
analisado pela "Teoria das Subculturas".
Os autores descrevem alguns tipos fundamentais de "técnicas de
neutralização": 89
a) Exclusão da própria responsabilidade - o delinqüente se identifica como vítima
das circunstâncias, muito mais passivamente do que ativamente encaminhado
para a atuação criminosa. Por exemplo: "Pratico roubos porque estoudesempregado e preciso cuidar da minha família".
b) Negação da ilicitude - o infrator interpreta suas ações somente como proibidas,
mas não criminosas, imorais ou danosas e procura redefini-las eufemisticamente.
Por exemplo: "um ato de vandalismo é definido como simples 'perturbação da
ordem'; um furto de automóvel como 'tomar por empréstimo' etc ". Em nossa
realidade é emblemática a frase reducionista em que a pessoa acusada de algumilícito pergunta em tom de inconformismo: "O que é que tem isso? Não matei nem
roubei!"
c) Negação da vitimização - interpreta-se a vítima como merecedora do mal ou
prejuízo que lhe foi infligido.
d) Condenação dos que condenam - atribuição de qualidades negativas às
instâncias oficiais. Por exemplo: Estado opressor; exploração fiscal; polícia
corrupta etc. Também a qualificação de "hipócritas" às pessoas cumpridoras da
lei.
89 Ibid., p. 78 - 79.
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e) Apelo às instâncias superiores - valorização especial de pequenos grupos aos
quais o desviado pertence, com suas normas e valores (v.g. "gangs", família,
amizades etc.), em detrimento do organismo social e seus regramentos.
Na realidade, a própria formação de uma subcultura é a maior e mais
operante "técnica de neutralização", pois nada enseja uma capacidade tão
relevante de abrandar a consciência e defender-se dos remorsos, quanto o efetivo
apoio e aprovação por parte de outras pessoas que são aderentes ao mesmo
modelo comportamental.90
3.4 - A NOVA CRIMINOLOGIA: CRIMINOLOGIA CRÍTICA, DIALÉTICA,RADICAL, INTERACIONISTA OU DA REAÇÃO SOCIAL
3.4.1 - PRELIMINARES
Como já visto, a Nova Criminologia constitui uma alteração radical doparadigma científico da pesquisa do fenômeno criminal. Implica no abandono da
tese, tomada como premissa pela Criminologia Tradicional, do crime como uma
realidade ontológica reificada. O crime passa a ser considerado semente dentro
de seus limites de uma realidade meramente normativa, criada pelo Sistema
Social de que fazem parte as normas penais. Conseqüentemente o criminoso
deixa de ser rotulado como um "anormal" e o crime como "patológico" à
semelhança do que já era adiantado por Durkheim.
A compreensão da criminalidade passa a ser buscada no desvendamento
da "ação do sistema penal que a define e reage contra ela, começando pelas
normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições
penitenciárias) que as aplicam." Portanto, a atribuição do papel de criminoso a
90 Ibid., p. 81.
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determinada pessoa depende da atuação das "instâncias oficiais de controle
social", uma vez que, mesmo praticando atos anti - sociais, um indivíduo não é
tratado como criminoso enquanto não é alcançado pela atuação dessas instâncias
que exercem um forte papel seletivo. O fato de ser ou não criminoso não se liga à
existência ou não de uma moléstia ou anormalidade individual, mas sim a haver
ou não o sujeito sido apanhado pelas malhas das agências seletivas que atuam
com base nas pautas normativa e socialmente estabelecidas. 91
As teorias da Criminologia Radical que se passarão a expor significam,
portanto, o abandono do antigo paradigma etiológico para a construção de uma
abordagem crítica do Sistema Penal, inclusive com o questionamento sério de sua
legitimidade.
Parte-se da idéia de que o sistema punitivo é organizado com base em umaideologia da sociedade de classes (matiz marxista). Assim sendo, seu objetivo
primordial não seria a defesa social ou a criação de condições para o convívio
harmônico, mas sim a proteção de "conceitos e interesses que são próprios da
classe dominante". O Sistema Penal e todos os demais instrumentos de controle
social não passariam de dispositivos opressivos para a consecução do domínio de
umas classes sobre as outras. "O Direito Penal é, assim, elitista e seletivo,
fazendo cair fragorosamente seu peso sobre as classes sociais mais débeis,evitando, por outro lado, atuar sobre aqueles que detêm o poder de fazer as leis".
O sistema tem por escopo manter "a estrutura vertical de poder e dominação"
existente na sociedade, conservando as desigualdades e até mesmo alimentando-
as.92
Essa visão impõe a constatação da enorme diferença de intensidade do
alcance do Direito Penal sobre os setores marginalizados e inferiores da
sociedade. Ao mesmo tempo, verifica-se a sua fragilidade perante
comportamentos de suma gravidade afetos às classes hegemônicas (v.g. delitos
econômicos, ambientais etc.).
91 Ibid., p. 86.92 Roberto LYRA, João Marcello de ARAUJO JÚNIOR, Criminologia, p. 204 - 205.
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"A criminologia radical tenta demonstrar que o Direito Penal não é
igualitário, nem protege o bem como e, também que sua aplicação, (...), não é
isonômica".93
3.4.2 - "LABELING APPROACH" OU TEORIA DA REAÇÃO SOCIAL
A Criminologia Tradicional parte do pressuposto de que a qualidade criminal
de um comportamento existe objetivamente e, aliás, preexiste às normas que o
definem como crime, as quais seriam mero reconhecimento de sua característica
negativa. E mais, entende que as normas sociais constituem um acordo universal,um consenso "válido a nível intersubjetivo".
Para os teóricos do "labeling approach" ou "etiquetamento" , um fato só é
considerado criminoso a partir do momento em que adquire esse "status" por meio
de uma norma criada de forma a selecionar certos comportamentos como
desviantes no interesse de um Sistema Social. Num segundo momento ainda, a
atribuição da qualidade de criminoso a um sujeito dependerá do modelo de
atuação (novamente seletivo) das instâncias de controle social (Polícia, MinistérioPúblico, Juízes etc.).
Em suma, "os criminólogos tradicionais examinam problemas do tipo 'quem
é criminoso?', 'como se torna desviante?', 'em quais condições um condenado se
torna reincidente?', 'com que meios se pode exercer controle sobre o criminoso?'.
Ao contrário, os interacionistas, como em geral os autores que se inspiram no
'labeling approach', se perguntam: 'quem é definido como desviante?', 'que efeito
decorre dessa definição sobre o indivíduo?', 'em que condições este indivíduo
pode se tornar objeto de uma definição?' e, enfim, 'quem define quem?'."94
A "Teoria do Etiquetamento" leva a uma derrocada do mito do Sistema
Penal enquanto recuperador de indivíduos desviantes. Ao inverso, a conclusão é a
de que a rotulação inicial de um indivíduo como desviante tende a exercer uma
93 Ibid., p. 205.94 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 88.
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pressão para sua permanência nesse papel social, tendo em vista uma forte
estigmatização. Por isso as instituições carcerárias ou penitenciárias, ao contrário
de recuperar, somente produziriam um reforço da identidade desviante do detento,
proporcionando seu "ingresso em uma verdadeira e própria carreira criminosa". O
Sistema Penal em um sentido amplo pode então ser visto como um criador e
reprodutor da violência e da criminalidade. A repressão penal apenas funciona nas
aparências como contentora da criminalidade, pois sua verdadeira atuação é de
reintrodução da violência no seio social.
Por derradeiro é interessante notar que muitas vezes essa rotulação de que
trata o "labeling approach" se apresenta até mesmo previamente à atuação das
instâncias de controle social, através de conceitos anteriormente construídos em
seu próprio seio e mesmo no senso comum. Esses "pré - conceitos" é queacabam dirigindo a atuação seletiva das agências repressivas, sempre
conservando a estrutura vertical de poder da sociedade, de modo a atingir
preferencial ou exclusivamente as classes inferiores ou marginalizadas.
É sob este prisma que Zaffaroni fala dos "estereótipos" do criminoso:
"O sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona de acordo com
estereótipos fabricados pelos meios de comunicação de massa. Estes
estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com aimagem que corresponde à descrição fabricada, deixando de fora outros tipos de
delinqüentes (delinqüência de colarinho branco, dourada, de trânsito etc.). Nas
prisões encontramos os estereotipados. Na prática, é pela observação das
características comuns à população prisional que descrevemos os estereótipos a
serem selecionados pelo sistema penal , que sai então a procura-los. E, como a
cada estereótipo deve corresponder um papel, as pessoas assim selecionadas
terminam correspondendo e assumindo os papéis que lhes são propostos".95 Cabe
aqui lembrar o chamado fenômeno do "self - fullfilling profecy" (Profecia que se
auto - realiza), segundo o qual "a expectativa do ambiente circunstante determina,
em medida notável, o comportamento do indivíduo".96
95 Eugenio Raúl ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas, p. 130.96 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 174.
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Toda essa carga crítica tem como sua principal qualidade a condução a
uma reavaliação do Sistema Penal e, especialmente de sua falta de isonomia,
apontando-se a necessidade de emprestar maior atenção a gravíssimas condutas
afetas às classes dominantes, geralmente deixadas de lado, seja pela própria
atuação legislativa (falha ou lacunosa), seja pela benéfica ou condescendente
atuação das agências repressivas. Além disso, conduz a uma conscientização
quanto à irracionalidade do agigantamento do Direito Penal e da constante
criminalização de conflitos que se traduzem em uma tendência a um
"pampenalismo"97 simbólico que longe de resolver as questões sociais, apenas
perpetua desigualdades e reintroduz mais violência no seio da sociedade.
3.4.3 - A SOCIOLOGIA DO CONFLITO E A NOVA CRIMINOLOGIA
A Sociologia do Conflito questiona o suposto consenso acerca de certos
fins e valores protegidos pelas regras sociais. Essa concepção não passaria de
uma ficção construída no intuito de legitimar a ordem social vigente que, naverdade, seria produto do conflito de interesses de grupos antagônicos com a
prevalência daqueles que lograram exercer a dominação. Significa a libertação do
mito da "sociedade fechada em si mesma e estática, desprovida de conflito e
baseada no consenso".98
No campo criminal conduz às seguintes conclusões:
a) os interesses que embasam a criação e aplicação das normas penais são
aqueles dos grupos que têm o poder de influir sobre os processos de
criminalização. Desse modo, esses interesses não são comuns a todos os cidadão
de forma consensual.
97 Alberto Silva FRANCO, Crimes Hediondos, p.36 - 37. "Nunca é demais advertir que o pampenalismo, istoé, a utilização do Direito Penal como uma espécie de 'panacéia para todos os males', quando não traduz uma
bastardização deste instrumento de controle social, pode representar uma completa desmoralização decorrentede sua inoperância e ineficácia".98 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 122.
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b) como a criminalidade é criada por meio do processo social de criminalização,
regido pelo embate de diferentes interesses, toda ela e todo o Direito Penal são de
natureza política.
A primeira expressão relevante de uma teoria da criminalidade, baseada na
sociologia do conflito, é atribuída a Georg D. Vold em 1958.99 Entretanto, Baratta
apresenta um escrito de Sutherland, datado dos anos 30, que bem descreve a
teoria enfocada:
"O crime é parte de um processo de conflito, de que o direito e a pena são
outras partes. Este processo começa na comunidade, antes que o direito tenha
existência, e continua na comunidade e no comportamento dos delinqüentes
particulares, depois que a pena foi infligida. Este processo parece que sedesenvolve mais ou menos do seguinte modo: um certo grupo de pessoas
percebe que um de seus próprios valores - vida, propriedade, beleza da paisagem,
doutrina teológica - é colocado em perigo pelo comportamento de outros. Se o
grupo é politicamente influente, o valor importante e o perigo sério, os membros do
grupo promovem a emanação de uma lei e, desse modo, ganham a cooperação
do Estado no esforço de proteger o próprio valor. O direito é o instrumento de uma
das partes em causa, pelo menos nos tempos modernos. Aqueles que fazemparte do outro grupo não consideram tão altamente o valor que o direito foi
chamado a proteger, e fazem algo que anteriormente não era crime, mas que se
tornou um crime com a colaboração do Estado. Este é a continuação do conflito
que o direito tinha sido chamado a eliminar, mas o conflito se tornou maior no
sentido de que agora envolve o Estado. A pena é um novo grau do mesmo
conflito. Também ela, por sua vez, é um instrumento usado pelo primeiro grupo no
conflito com o segundo grupo, por meio do Estado."100
"O crime, neste sentido, é comportamento político e o criminoso torna-se,
na realidade, um membro de um 'grupo minoritário', sem a base pública suficiente
para dominar e controlar o poder político do Estado".101
99 Ibid., p. 126.100 Edwin SUTHERLAND, Apud, Ibid., p.127.101 Ibid., p. 128.
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Esta explicação criminológica tem sido taxada de simplista, considerando a
descrição do processo pelo qual os grupos poderosos logram conduzir o processo
legislativo, utilizando-se do Sistema Penal como um instrumento para subjugar
condutas inconvenientes dos grupos adversos.102 Realmente trazem em seu bojo
tais teorias algo assemelhado a uma idéia de conspiração de classes, supondo um
liame subjetivo interno que dificilmente poderá ser empiricamente comprovado.
Não obstante, a sociologia do conflito aplicada ao âmbito jurídico (não só
penal), tem a vantagem de por a descoberto a ficção, tomada como realidade pela
maioria dos juristas, acerca do suposto consenso geral em torno de certos valores
a legitimar toda a gama de normas legais reguladoras da vida humana.
4 - CONCLUSÃO
O surgimento e a evolução da ciência criminológica foram esboçados neste
trabalho, procurando-se dar especial destaque à guinada conceitual e
epistemológica que sofreu no decorrer dos procedimentos investigatórios levados
a efeito ao longo da história.Especial evidência merecem dois momentos: o primeiro, da transição entre
a tradição teórica do Direito Penal Clássico para o nascimento da Criminologia sob
os auspícios do Positivismo, com as primeiras pesquisas da Antropologia Criminal
de Cesare Lombroso, dando-se importância central, pela primeira vez, ao homem
criminoso e não apenas a formalidades teórico - jurídicas; o segundo momento foi
o da alteração radical do paradigma teórico da Criminologia, com o advento das
teorias integrantes da denominada "Criminologia Crítica", a qual ocasiona o
abandono do modelo de pesquisa etiológico - profilático, para investigar a criação
do fenômeno criminal pela própria organização social através de mecanismos
estigmatizantes, seletivos e de dominação.
102 Ibid., p. 129.
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Foram expostas as principais linhas de pesquisa desenvolvidas de acordo
com ambos os paradigmas acima mencionados, passando pela "Criminologia
Clínica", "Criminologia Sociológica", "Teorias Estrutural - Funcionalistas", até
chegar ao atual modelo da "Criminologia Dialética".
A virada epistemológica constatada na ciência criminológica não desmerece
os estudos anteriores e, muito menos, desprestigia essa área do conhecimento
em face de uma possível demonstração da insegurança de suas conclusões.
Ao reverso, no dizer de Karl Popper, o que prova que uma teoria é científica
é o fato de ela ser falível e aceitar ser refutada. Sua cientificidade está abrigada na
possibilidade de experimentação contínua e descoberta de erros, acertos e pontos
frágeis, o que conduz a um processo dinâmico de aperfeiçoamento. Eis o que
literalmente afirma o autor:"Pero, precisamente porque nuestra finalidad es estabelecer la verdad de
las teorias, debemos experimentarlas lo más severamente que podamos; esto es,
debemos intentar encontrar sus fallos; debemos intentar refutarlas".103
As novas indicações possibilitadas pelo pensamento da "Nova
Criminologia" têm o grande predicado de constituírem um fértil campos para o
desenvolvimento de uma visão crítica da organização social em geral e do
Sistema Penal em especial, inclusive com repercussões no âmbito legislativo e daPolítica Criminal.104 Contudo, não se pode olvidar sua lacuna ao desconsiderar a
real existência de condutas conflituosas inaceitáveis e deletérias ao sadio convívio
social, para as quais necessariamente deve haver mecanismos de controle,
independentemente de quaisquer relações de poder subjacentes ou ocultas
ideologicamente.
As pesquisas levadas a efeito sob a égide do modelo etiológico - profilático,
embora apresentem algumas explicações parciais para o fenômeno criminal e
partam de um pressuposto equivocado (crime como entidade ontologicamente
cognoscível) , não devem ser lançadas ao fogo ou simplesmente relegadas a uma
espécie de limbo do conhecimento. Assim como seria errônea a concepção de
103 La miseria del historicismo, p. 149.104 Note-se a atual efervescência acerca da discussão e aperfeiçoamento legislativo e operacional para arepressão à macrocriminalidade (crime organizado, crimes de colarinho branco, criminalidade ambiental etc.).
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que qualquer das linhas de pesquisa envolvidas poderia, sozinha, explicar o
fenômeno do crime, também incidiria no mesmo erro quem desprezasse
completamente e a "priori" as contribuições das hipóteses etiológicas do crime e
da conduta violenta, ainda que se resumissem à explicação apenas de certos
casos concretos, sem uma validade de regra geral. Neste passo vale salientar a
proposta de Newton Fernandes e Valter Fernandes quanto à configuração de uma
"Criminologia Integrada":
"A preocupação com isolados arranjos conceituais ou em termos estéticos e
sem qualquer consistência intrínseca, tem que acabar, pois o mais importante é
provar, empiricamente, como estão se processando os estimuladores criminais,
quer sejam de ordem biológica, mesológica ou exógena. Muito mais importante
para essa aferição não é dispor de uma multiplicidade de teorias, que funcionam,muitas vezes, sem qualquer canal de comunicação, mas, sim, a adoção de uma
teoria mestra, que não ignorando o mosaico de teorias que lhe deram nascimento
e o multifacetado aspecto do fenômeno criminal, dê especial atenção aos dados
empíricos que deverá controlar; já que a resposta final a qualquer questão teórica
está nos dados empíricos bem controlados, no exame vertente, venham eles de
uma concepção biológica, sociológica ou de outra ordem. A natureza desses
dados empíricos só será bem definida quando perquirida por uma só teoria, quelhe reconheça a origem múltipla, mas correlacionada. De se admitir, que uma só
teorias bem desenvolvida e acompanhada por extensas investigações e pesquisas
empíricas direcionadas para todas as variáveis possíveis, oferece mais esperança
e segurança de progresso, que uma diversificação de teorias, praticamente
estanques entre si, a redundarem em resultados pobremente expostos e
precariamente relacionados no que diz respeito aos dados empíricos."105
Somente uma abordagem multi e interdisciplinar sob um estilo dialético
pode levar a resultados mais seguros no campo da Criminologia que, tratando de
um tema complexo, não pode ser submetida a modelos simplistas, redutores e
herméticos. Essa é a constatação de Morin ao enfocar a natureza do
conhecimento moderno:
105 Criminologia integrada, p. 617 - 618.
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"O conhecimento pertinente deve enfrentar a complexidade. 'Complexus'
significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos
diferentes são inseparáveis constitutivos de um todo (como o econômico, o
político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido
interdependente, interativo e inter - retroativo entre o objeto de conhecimento e
seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a
complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Os desenvolvimentos
próprios a nossa era planetária nos confrontam cada vez mais e de maneira cada
vez mais inelutável com os desafios da complexidade".106
Aquilo que o autor em referência chama de "espírito redutor", ou seja, a
redução do conhecimento complexo a um de seus elementos, considerado o mais
importante, somente conduziria à incompreensão com resultados éticos e práticosdesastrosos.107
Na relação entre os paradigmas etiológico e crítico da Criminologia essa
assertiva leva a uma postura de não exclusão mútua e sim de complementaridade.
Joe Tennyson Velo aponta esse caminho ao expor que "os criminólogos
críticos mais sensatos, dos quais talvez Alessandro Baratta seja o principal
representante, não rejeitam completamente a pertinência de uma etiologia na
Criminologia, mas defendem uma Criminologia científica duplamentecomprometida:
a) com as causas dos processos de criminalização, ou seja, que desenvolva
questionamentos acerca do porquê alguns comportamentos são selecionados pelo
sistema penal (criminalização primária) e outros não, bem como por que algumas
personalidades são selecionadas e outras não (criminalização secundária), pois a
base do raciocínio é de que não existem diferenças essenciais entre
personalidades, todos os seres humanos são iguais da perspectiva interna, com
inclinações, desejos e energias psíquicas de igual performance;
b) com a realidade de comportamentos socialmente danosos e de situações
conflituais ou problemáticos, e neste aspecto não descartam a importância dos
106 Edgar MORIN, Os sete saberes necessários à educação do futuro, p. 38.107 Ibid., p. 98.
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conflitos psicológicos serem determinantes para algumas formas de criminalidade,
abrindo espaço e atenção a estudos de psicologia ou psicopatologia." 108
Uma ciência criminológica ciente de seu papel social e da complexidade de
seus problemas e respostas ensejará um "novo modelo integrado de ciência
penal", consciente de sua íntima relação com as ciências sociais. Isso jamais
importará numa subestimação do jurista como um mero "técnico da sociedade".
Na verdade, este será alçado a uma nova "dignidade científica", será um cientista
e não singelo técnico, "na medida em que, finalmente, se tornará um cientista
social e sustentará com a ciência sua obra de técnico. O caminho é longo, a meta
é distante, os pressupostos implicam, entre outros, uma radical revisão dos
métodos de formação do jurista, da qual, para sermos otimistas, se vislumbra só oprincípio".109
Realmente os desafios da Criminologia e da Ciência Penal em geral são
ingentes, especialmente considerando a heterogeneidade e complexidade
reinantes no mundo atual, extremamente fértil na produção dos mais variados
conflitos individuais e sociais. Porém, as dificuldades não devem paralisar o
pesquisador, e sim tornarem-se fatores de incentivo para o seguimento de suas
investigações. Neste sentido é oportuno encerrar esta exposição com os versosdo literato pátrio Mário Quintana, denominados "Das Utopias":
"Se as coisas são inatingíveis...ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!"110
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
108 Criminologia Analítica, p. 74 - 75.109 Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal , p. 156.110 Antologia Poética, p. 36.
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