cores do outono

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Copyright© Maria de Fátima de Barros Neves5863/1 – 100 – 96 – 2012

Índices para catálogo sistemático:

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

O conteúdo desta obra é de responsabilidade do(s) Autor(es),

proprietário(s) do Direito Autoral.

Neves, Maria de Fátima de BarrosCores do outono / Maria de Fátima de Barros

Neves. - - São Paulo : Scortecci, 2012.

ISBN 978-85-366-2431-0

1. Poesia brasileira I. Título.

11-12899 CDD-869.91

1. Poesia : Literatura brasileira 869.91

Scortecci EditoraCaixa Postal 11481 - São Paulo - SP - CEP 05422-970

Telefax: (11) 3032-1179 e (11) 3032-6501

www.scortecci.com.br

editora@scortecci.com.br

Livraria e Loja Virtual Asabeçawww.asabeca.com.br

GRUPO EDITORIAL SCORTECCI

A Cleonice Muniz:

terra-mãe,

luz do outono.

Verso da página – Branca

7

“Há uma cor que não vem nos dicionários.

É essa indefinível cor que têm todos os retratos,

os figurinos da última estação,

a voz das velhas damas,

os primeiros sapatos, certas tabuletas,

certas ruazinhas laterais:

– a cor do tempo...”

Mário Quintana

Verso da página – Branca

9

APRESENTAÇÃO

Jonatan Almeida1

Os poemas de Fátima revelam sua alma, seu espírito, suapersonalidade: pouca fala, muita essência; poucas palavras,muitas lacunas de significação relevante e um não dito eloquente.Assim a vejo em sua poesia. É como perceber o que alguém pen-sa ou diz através do “grito surdo de seu olhar”, que dispensapalavras e ruídos, mas que, por vezes, propicia dor mais intensae penetrante do que chicote que se dobra de punho de ferro.Nem sempre o não dito é menos gritante do que mil palavras.

Alguém com competência para o uso de prancha, papel,tinta e pincel, sem dúvida, traçaria matizes riquíssimos e ex-pressões indizíveis a partir da sugestividade que seus versosimprimem, porque cores, sons, climas e imagens se superpõem,volumosos, transpondo os limites que o texto concreto revela;da contrapartida econômica das palavras, parte para um cam-po polissêmico que extrapola a dimensão puramente psicoló-gica do signo linguístico, da palavra.

Querer compreender seus poemas apenas pelo signifi-cado dos vocábulos é encontrar expressão solitária, muitasvezes vazia, não vinga sentido, porque seus contextos sãonão raro imprevistos. A síntese verbal projeta infinitas su-gestões e sensibilidades, numa poética mais do projetar ouinsinuar, menos do anunciar. Seria algo semelhante à pelejaentre Davi e Golias, entre a “pouquidão” de versos e estro-fes, contra imensidões referenciais, tais como sóis, mares,

1 Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Colégio deAplicação / Centro de Educação – UFPE.

10

amores, campos e campinas, em extensão e em profundida-de, silêncios, saudades, solidões.

Como já foi dito, é uma poesia para ser significada nãoapenas dentro da linearidade do intelecto, mas contemplando asilhueta do invisível e o som da pausa, em fermata, para prolon-gar sentidos, evocar sensações, curtir espaços e ouvir silênciosmaviosos. Tinta, pincel e prancha como palavra, palavra comosilêncio e som, numa só dita, como se lê no poema “canção”.

Como se fosse o arco-íris e também a primavera, essapoética funde tintas, sons e palavra – campos vastos, defini-dos em breves espaços – a fim de compor e suster o universoricamente multiforme de Cores de Outono.

11

PREFÁCIO

Wellington Gomes2

Em Cores do Outono, a poesia de Maria de Fátima deBarros Neves move os nossos sentidos de maneira especial –o som é posto e estrategicamente usado como matéria primana sua arte de fazer versos. A sua textura poética revela sen-sações conjugadas entre sons e visões, sons e toques, sons echeiros, sons e gostos, estimulando a nossa imaginação.

Para os ouvidos e olhos bem atentos, na poesia “a fazen-da”, Fátima brinca com a sonoridade das palavras quando utili-za efeitos sibilantes, numa harmonia acústica entre termos –“seu / seus / ceia / seiva / roçado / cercado / santuário / cinza /sol / cerca / certeza” –, e num curto espaço poético transportaa nossa imaginação para os silvos e suspiros do campo. Numaoutra construção de versos, dentro de um momento imagísticopeculiar ao seu estilo, “assovia a canção” não de maneira con-vencional, mas com olhos que observam “novelos e sedas” tra-çados com um “suave pincel”.

Esta poetisa vai mais além, quer nos fazer sentir e obser-var a relação do sentido tátil com a gestualização sonora daspalavras. E na verdade, sentimos o “abarcar dos teus abraços”e “em teus braços”, “embarco” nos “barcos” como quem toca,na delicadeza de um instrumento, um “solo de solidão”. Difícilnão sentir a harmonização entre toques e sons na poesia destaarticuladora de imagens.

2 Doutor em Música, Compositor e Professor de Composição Musical naUFBA.

12

Mais abstrata ainda é a união entre o som e o cheiro, quan-do Fátima cria uma “paisagem” reinventando significados, fa-zendo com que sintamos cheiro mesmo com a ausência destetermo na “flor do silêncio” ou no “acalanto nas acácias emflor”, e nos leva a uma outra dimensão do sentir quando enfatiza“um cheiro de sol”. Tudo isso num ritmo acelerado como numaminiatura musical. Nesse instante, a estrutura da poesia de-pende da brevidade dos versos.

E como se não bastasse, sem muita complexidadeterminológica em seus versos, experimenta a simples utiliza-ção das rimas com o degustar das semifrases envolvidas pelo“calor da hortelã”, pelos “segredos de avelã” e “o amargo daromã”. E até “um gosto de azul” pode sentido na boca comonum “ritual” de cor e som. A leveza poética de Fátima até nosalimenta com estas estruturas tão bem organizadas.

Na obra desta poetisa, não há entroncamentos burocrá-ticos de palavras, de difícil musicalização, há sempre um cui-dado especial com a melodia das frases, bem como com osarremates fraseológicos esculpidos em cadências autênticas.A musicalidade de seus poemas vai muito além de uma tramapoética de significados textuais, diz muito de uma ternura pro-funda. No universo da fantasia, quando fala da “infância”, Fáti-ma canta uma “canção”, um “acalanto”, realiza um “solfejo deninho” e quando fala de “acorde”, propõe que termos musicaisvoem e pousem como pássaros na nossa imaginação.

SUMÁRIO

abraço .................................................................................. 17

acorde .................................................................................. 18

adágio .................................................................................. 19

água de cheiro...................................................................... 20

alto-mar ................................................................................ 21

anotações de viagem ........................................................... 22

assovio ................................................................................. 23

bem-te-vi .............................................................................. 24

cais do porto......................................................................... 25

o camponês .......................................................................... 26

canção .................................................................................. 27

chuvas de verão ................................................................... 28

colheita ................................................................................ 29

colheita de maçãs ................................................................ 30

colibri ................................................................................... 31

composição .......................................................................... 32

cores do outono.................................................................... 33

corte ..................................................................................... 34

definição .............................................................................. 35

desatino ............................................................................... 36

dia de chuva ......................................................................... 37

dia nublado .......................................................................... 38

encruzilhada ......................................................................... 39

enigma ................................................................................. 40

esboço .................................................................................. 41

estiagem .............................................................................. 42

estória .................................................................................. 43

a fazenda .............................................................................. 44

fim de noite .......................................................................... 45

fotografia ............................................................................. 46

gravura ................................................................................. 47

hiato ..................................................................................... 48

infância ................................................................................ 49

insônia .................................................................................. 50

jambeiro ............................................................................... 51

juazeiro ................................................................................. 52

lembrança ............................................................................ 53

loa ........................................................................................ 54

luz da noite ........................................................................... 55

madalena ............................................................................. 56

mar deserto .......................................................................... 57

mar do pacífico ..................................................................... 58

matinal ................................................................................. 59

memória ............................................................................... 60

motivo .................................................................................. 61

noturno ................................................................................. 62

outonal ................................................................................. 63

paisagem .............................................................................. 64

paisagem com coqueiro ....................................................... 65

paisagem com juazeiro......................................................... 66

palco..................................................................................... 67

o pássaro .............................................................................. 68

passarinho ............................................................................ 69

passeio ................................................................................. 70

ao piano ............................................................................... 71

poema brando ...................................................................... 72

pomar ................................................................................... 73

pouso.................................................................................... 74

prelúdio ................................................................................ 75

procissão .............................................................................. 76

quadro .................................................................................. 77

quietude ............................................................................... 78

recomeço .............................................................................. 79

refúgio .................................................................................. 80

remoinho .............................................................................. 81

o retirante ............................................................................ 82

retrato .................................................................................. 83

ritual ..................................................................................... 84

o sertanejo ........................................................................... 85

sertão ................................................................................... 86

sítio ...................................................................................... 87

tarde de inverno ................................................................... 88

a tecelã ................................................................................ 89

teia ....................................................................................... 90

tons de setembro ................................................................. 91

travessia ............................................................................... 92

Posfácio ................................................................................ 93

Verso da página – Branca

17

abraço

levevoa

o pássaro...

sonhoà toa

alcançá-lo...

brevesoa

o espaço...

18

acorde

sua vozcompõe o tempodas manhãs.

voa a brevepartiturado silêncio.

na alturado acorde,pousa grave.

sobre a pauta,a frase alva,o voo lento.

19

adágio

o maré terra de náufragos.as barcas, marcas de abandono.

o olharnavega em afagosas águas mornas do outono.

amardeságua em lagos,vagas no porto, enganos.

20

água de cheiro

“Respiro teu nome.

Sorte. Vida. Tempo.”

Cecília Meireles

havia teu cheiro,alento e alarde,em páginas e escritos...

porque era silêncioe fazia saudade.

lia tua voz e sorriso.teu cheiro na tardeem folhas e livros...

21

alto-mar

“Descobri tua origem, teu espaço,

pelas canções marinhas que semeias.”

Carlos Pena Filho

abarco teus abraços,alento o solem teus braços.

embarco,em preamar,nas chuvas de verão.

há barcos no mar,afagos de colo,solo de solidão.

22

anotações de viagem

nas terras do norte,semeio silêncio.

nos campos secos,o sol de estiagem.

moinhos de ventono cerco das serras.

em sentença de exílio,o mar azul-forte.

23

assovio

a cançãoem teu assovio

é um traço.fita de seda,fino pavio.

ave em pousono barco, poema.laço em fio,linha de novelo,

lã de bordado.

bico de penaem leve traçado.suave pincel,

risco em quadro,riacho.

24

bem-te-vi

pousa teu riso à toaem meu corpo-árvore.

sobrevoa meus braços,flor e fruto, em estio.

voa na manhã suave,de jambeiros floridos.

25

cais do porto

em teus olhos,a água do mar:ninho de peixes,rede de pássaros.

tempo fértilem solo raso:oceano ancoradoentre penhascos.

26

o camponês

nas mãos, a caça,o cultivo da terra.

da vida, o ofício:cada gesto e palavra.

ave da serra,em voo e emboscada.

no peito, o rochedo,raízes e entranhas.

sorte em revoada,sina castanha.

27

canção

nas folhas da acácia,o vento-pássarosemeia a manhãe o jardim.

vejo tua palavra,verde avelã,florir em silêncioe jasmim.

28

chuvas de verão

chove miúdo,nas cores pálidas do quintal.

tua voz outonalencharca os arbustos.

o som úmido dos pingosentre os galhos.

de súbito, um beija-flornas papoulas.

tua frase verde-musgo,a chuva entre as folhas.

29

colheita

juazeirode todos

os frutos,

no eitoda tarde,

colhoteu silêncio

rubro.

nas folhasdas horas,

te escuto.

semeiotua sombra

de amoras.

30

colheita de maçãs

“Cultivar o deserto

como um pomar às avessas...”

João Cabral

a brisa da manhãnos poros do poema,nas linhas da pele.

em silêncio de lã,o desejo do outono,a sentença breve.

o calor da hortelãnas hortas do sono,no horizonte da arte.

segredos de avelãem suave abandonona paisagem da frase.

o amargo da romã,o pássaro do sonhonos campos da tarde.

31

colibri

colho o azulde teu olhar,lago na manhã,quando as acáciastêm galhos em flore peixes e pássarosacordam sob o sol.

32

composição

“Onde não há jardim, as flores nascem de um

secreto investimento em formas improváveis.”

Drummond

na frase, o pássarovoa espinho, voa flor.

tua palavra furta-cortraça voo e ninho.

pasto que o ventolavra em redemoinho.

33

cores do outono

imagens do outono:sono de regaço,folhas amarelas.

tempo de pássarosem revoada,chão de aquarela.

a cor do sonhoem tuas mãos,a flor da espera.

34

corte

a chama,o sol,a sombra,o desvario.

a mulher,a marquise,a sortehoras a fio.

a noite,o norte,a dor,a cor do vazio.

o frio,a fome,a morte:fim do estio.

35

definição

tua vozé clave e clava.

travessiade foz em fora.

hora alva,ave em ventania.

36

desatino

“Le moment où je parle

est déjà loin de moi.”

Manuel Bandeira

no galope do tempo,voa longe o menino.

cheiro verde-canae o traço do destino.

passo frágil, laço lento:pés descalços, sol a pino.

37

dia de chuva

chuva fina,vultos silenciosospassam.ruídos,alguns carros.a solidãodobra esquinas.

38

dia nublado

manhã de janeiro:folhas quietas,com sono, no muro.

raízes e cercas,cheiro de outono,frio de orvalho e musgo.

um gato bocejanos galhos úmidos,o tempo espreita.

um pássaro se esquiva,a vida cochilano claro-escuro.

39

encruzilhada

no lago das horas,à sombra das frases.

largo, o tempo pousanos ramos das árvores.

passos e pássarosem espelho e imagem.

ruas em sossegode folhas e margens.

40

enigma

“O ritmo das águas,

o istmo do tempo.”

Hugo de Andrade

a chuva caimansamente...

uma bicicletapassa na rua...

a lua vai longe:quem a leva?

o pé de acácia acena:quem nos espera?

41

esboço

“(uma ave que voa,

um raio de sol)

um amor mineral...”

João Cabral

silêncio de pedras,olhar sobre gestos,sonho suspensoem solidão.

quem guardao pássaro e a vozem breve pousona palma da mão?

42

estiagem

tua ausênciade sertãoseca a paisagem.

bodes famintosno pasto,galhos desertos.

teu silêncio de solcobre de cactosas terras da tarde.

43

estória

voltar ao quintal,ao álbum de retratos,provar fruto e semente.

entre vielas e relatos,a vida no varal:solo ao sol poente.

44

a fazenda

a fazenda,seu diário:seus rituais,a ceia, a seiva,o roçado.

a campina,seu cercado:santuário.o cinza e o solaprisionados.

a mãe,seu rosário:seus retratos,a cerca, a certeza,o gado.

45

fim de noite

última cachaçano botequim da esquina.

a melodia abafada,o rumor do dia.

tilintam os coposna toalha cinza.

bêbados, prostitutas,garrafas vazias.

a madrugada a forafora gole e pinga.

46

fotografia

a lucidezdas manhãsem teu rosto.

mansidãode águias.

desafioàs ventaniasde agosto.

47

gravura

chovetua ausênciano fim da tarde.

aquietam-se os pássaros,o verde escurece nas árvores,tardam sol e mormaço.

chegaa chuva de tua saudade,a noite encharca de sombras o parque.

48

hiato

a casa é um espaçode ausências.

nas redes, nos passos,nenhuma palavra.

há quadros em branconas paredes

e gavetas encharcadasde silêncio.

no sótão, caixasde livros e frases.

calado, o tempotece suas grades.

49

infância

na rede, a menina:cantiga, acalanto.

preguiça de coloem linho branco.

solfejo de ninho,sereno, brando.

sossego de berço,bocejo, balanço.

50

insônia

a noiteé tua vigíliade mares dissonantese ritmos perdidos...

a noiteé tua amantecom ares de ilhae seios rijos...

a noiteé tua trilhaem barcos esquivose notas distantes...

51

jambeiro

nas chuvas de abril,ele criou raízes.

flores e frutasforam cor de carmim.

sua seiva fluiuem meu corpo.

colhi matizesde sombra e sol no jardim.

52

juazeiro

em teu rosto,a raizde cada sentença.

o corpo, terrapor um triz,o poema lavra.

na frase, o colo:matizde toda palavra.

teu solo, silêncioem giz,semente cálida.

53

lembrança

“E de repente as lembranças:

meu coração é inquieto pouso

de andorinhas.”

Maria do Carmo B. C. de Melo

em teus olhos,um gosto de infância,de filhós e alfenim.cor de madeirae mel de abelha.cheiro de terrae folhas secas.chuva fina,brisa no capim.o colégio de freiras,o gado mansona campina.brincadeira de roda,o balanço de cordasem carpina.

54

loa

o risode netunoecoa no mar...

e nas marésvão caravelasà toa...

e traz o ventovagasao convés...

e o riscosobre as velasno cais...

e faz um tempode naufrágioe revés...

55

luz da noite

“Silêncio de lençol

que cobre a noite pura”

Lêdo Ivo

a lua clarasobrea noite purasobrea vida baçasobrea sina durasobrea sorte rasasobrea cena escurasobrea rua vaga

56

madalena

a mulhera mulher suaa mulher sua sóa mulher sua sol a sola mulher e sua sombraa mulher e sua sombra sóa mulher só à sombra

57

mar deserto

silêncio de pedraem alto-mar,

ilha após ilha,faz naufragar.

calmariade praia deserta.

trilha sem nau,água sem porto.

rede e trégua,corpo sem mar.

58

mar do pacífico

“Onde nenhum caminho se traçara,

voamos.”

Rilke

na beira das ondas,de viés, os passos.

na areia, o marao rés dos laços.

na teia das algas,revés e pássaros.

59

matinal

um sol morno acordaos sons da manhã:um joão-de-barro,dois bem-te-vis.

contas de vidro,risco de artesã.motivo floralde vário matiz.

jarro de cristal,fina porcelana.renda branca,mãos de aprendiz.

na poltrona,bordados em lã,sonhos e nuvenspor um triz.

60

memória

guardo o tempoem cofres de vidro.

vultos espreitam-medo porta-retratos.

há cartas amareladasno silêncio das gavetas.

nas cristaleiras, o vinhoem cálices empoeirados.

61

motivo

traço um bordadomarroquinoa teu olhar castanho.

teço teu sorriso,linhas e pontos,em linho e crivo.

fio teu rostomediterrâneoem renda de bilro.

62

noturno

“Na penumbra outonal, não sei quem tece

As rendas do silêncio... Olha, anoitece!”

Florbela Espanca

à noite,desejo tuas palavrasquando sombras caminhamsilenciosas pela casa,e um cheiro de plantasatravessa paredes e frestas.

à noite,desejo tua vozquando o rumor da ruase esvai em redes e arestase uma brisa suavepousa sobre os arbustos.

63

outonal

sossego de quintal,cantiga de roda,recitada de cor.

tua frase pontual:pássaro da manhãao primeiro sol.

64

paisagem

a flordo silênciona sentença do outono.

a caríciados ramosem cada cor: palavra.

o calordas sombrasna frase alva do campo.

65

paisagem com coqueiro

a lua lustrahastes de fitas.

sobre o casebre,a noite morna

abre em lequeleve lembrança.

a brisa úmidaem finas tranças.

66

paisagem com juazeiro

flor, fruto e folhagementrelaço em teu tronco.

à margem do tempo,aragem e saudadepouso em teus ombros.

no mormaço da tarde,repouso em teus ramos.

67

palco

a solidãopercorre o poeta,acaricia-lhe as mãose as rugas.beija-lhe a testa,relê os poemasde neruda.

68

o pássaro

“No dia inumerável

os sonhos voam como pássaros.”

Lêdo Ivo

folhas em branco:o silêncio bordadono fio dos dias.

um passarinhofia o tempoem linhas e laços.

rendado de ramos:traço seu cantoem pano de linho.

69

passarinho

em calor e exílio,revoas alheioo corpo, ninho.

pousas teu cantode sonho e vidroem solo de linho.

cruzas a noite,folhas e livros,pássaro arredio.

70

passeio

o pássaro do silênciopousa alheio às horas.

à margem do lago,repousa em desejo.

colhe, no sossego,a cor da memória.

71

ao piano

a músicainunda a salaem etéreas e vagaslembranças.tocamos o sonho,suas vestes lúdicas,suas tranças.

72

poema brando

com as chuvas,faz um frio brandode xales e meias.

usamos luvase frases úmidassobre a manhã.

os dias trazemum tempo brancode silêncio e lã.

73

pomar

houve um tempo de silêncioquando eras outonoe as pitangas estavam em flor.

depois andamos ao pôr do solentre folhas, frases e mangas,no pomar furta-cor.

74

pouso

levemanhã

em bocejos...

sono, inverno,desejos em lã.

suave preguiça,terno abandono.

breveave

submissa...

75

prelúdio

descubro teu olharsobre a tarde.

silênciode céu absoluto.

terra de pássarosem voo absurdo.

sol de rubro alarde.

76

procissão

na beira das calçadas,meninos de paletó.senhores e charutossob chapéus de palha.cochichos de comadres,lenços de organdi.velas de pés de altar,mexericos, faixas de cetim.bolas de listas, balas,a palidez das beatas,pipocas, amendoim.vestidos de chita,véus de algodão,ruge e pó de arroz.missais, terços, fitascerrados em baúsdepois da procissão.

77

quadro

à beira do lago,um silêncio foscode cinza e refúgio.

todos os pássarosfogem da tardeverde-musgo.

um vento toscode crepúsculovarre as árvores.

78

quietude

são breves as manhãsem que nos acordam os pássaroscom seu canto grave e áspero.ficamos sob as cobertasenquanto as cores do diasurgem nas dobras da cortina.no jardim, o diálogo das avese os ruídos dos carros,que se aninham nas ruas,nessas horas úmidas,feitas de sons e neblina.

79

recomeço

revogo os sentidos:o quarto em silêncioalucinante.nenhum sonhonos bolsos dos vestidos.repasso a vida,os livros empoeiradosna estante.

80

refúgio

marulhode cascalhose verde musgo.

ramos sombriossobre as águas,de bruços.

um assovioentre os galhoscolhe o vento.

os dias passam:pássaros lentosà beira do rio.

81

remoinho

“Deixe que os sonhos venham

e nos visitem, como pássaros.”

Iris Murdoch

tão pertopousaquietoo pássaro.soa longe,aéreono cálicedo ninho.num ápice,pousa ao léu,etéreo,sozinho.nave à toa,asa em laço,voa hélice,moinho.tão alto,verte-se aveem regaço,arminho.

82

o retirante

um riacho a léguasem calor submerso.

nos rastros do olhar,o chão semiárido.

o torpor das pedrasnas linhas do verso.

em tua vida e sede,o verde dos cactos.

83

retrato

a cidade explodeno último canto das aves...

a necessidade do poetaé absurda.

seu canto preciso,interrompido,

decapitado...

as pedras transfiguradasna escuta...

mais uma vez no poetaa ilusão do ensaio,

mas a fala é quietae aprisionada

às árvores velhas do 13 de maio.

a cidade lhe caiperfeita e turva

no anonimato.

84

ritual

abro os cadeados da manhã:um gosto de azultinge vultos escassos...

desdobro grades de lã:um cheiro de solmolha gestos agasalhados...

85

o sertanejo

tua cor mais clarana paisagem:

o calor dos peixesno barreiro...

nuvens rasassobre os montes...

gado soltona pastagem...

a sombra mornado juazeiro...

a grama úmidada campina...

a naturezaem tuas linhas.

86

sertão

teu silêncio de seca:eito de gravetos,cor de avelã e partida.

feixe de textos,cercas e caatingano calor da manhã.

87

sítio

a casa:suas memórias,seus relatos.

sina e fitaem bordados...

a família:suas estórias,seus passos.

sino e sigilonos quadros...

o tempo:seu traçado,seus cristais.

cisma e silêncioemoldurados...

88

tarde de inverno

colho sua ausêncianas plantas encharcadas,no vento frio da varanda...

em agasalhos e meias,no claro-escuro da escada...

seu silêncio úmidoaninha-se em almofadas,boceja pelos cantos da casa...

89

a tecelã

desfio fio por fioo manuscritode teu silêncio em linho.

teço em palavraso pergaminhode tua linguagem casta.

no tear do tempo,alinhavo as linhasonde tua voz esgarça.

90

teia

“Hope is a thing with feathers

That perches in the soul...”

Emily Dickinson

dia após dia,resta-nos apenaso sonho furtivo.

como aprisioná-loem seu pouso etéreosobre as vagas do estio?

como segui-lo em seu voode pássaro-tempoem espaço fugidio?

91

tons de setembro

“Voici que naissent les lumières

Des paroles sur les collines

De ses yeux verts.”

Paul Eluard

tua voz morna sobre a tardetece a linguagem dos campos.

o verde raso dos montes,a sombra amena das árvores.

o vento em folhas e livros,a paisagem em abandono.

entre jambeiros floridos,pássaros de rimas ágeis.

no azul dos versos, o canto:setembro em sol e estiagem.

92

travessia

“longe somos nós

quando velejamos sonhos...”

Lúcio Lins

quieto, à sombra,teu olhar-imagem,barco sobre o rio.

apenas tua vozna outra margem,tão morna, tão branda.

93

POSFÁCIO

Peron Rios3

Nossa época é de aparente iconoclastia. Há os que de-sejam desfazer o triplo suporte do poema – ideia, música, ima-gem – e corroer o que lastreia a poesia, sem propor nada deinteressante em troca. Entretanto, supondo-se novos, refazemo que há cinquenta ou sessenta anos foi, efetivamente, revolu-cionário. Diluem, portanto, os mestres do passado.

Por outro lado, podemos falar de poetas como Fátima,cuja escrita vinga pela beleza que a imanta, por nos devolver apossibilidade de uma escuta poética do mundo e explorar aimaginação da matéria a partir do veio onírico, de arquétiposcomo a água. Isso sem recorrer a um regionalismo tacanho, aofetiche da cor local ou da temática telúrica. Em seu trânsitoParaíba-Pernambuco, ela se destaca como caminho possívelcontra o recesso da poesia.

Um dos méritos de seu livro de poemas, Cores do Outo-no, está na musicalidade, na consciência da motivação do sig-no. Ela compreende que, se o sentido que o fonema propõenão é imanente, da natureza da palavra (a linguagem não ade-re à coisa), tampouco é inteiramente arbitrário como supôsSaussure. Em comunhão com o corpo do texto, os sons suge-rem significados – assim já nos mostram os estudos de MauriceGrammont e de Wolfgang Köhler. Seu texto vai, portanto, nacontracorrente de muitos contemporâneos, cujos versosdissonam esquartejados. Tal labor da melodia verbal relembra

3 Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Colégio deAplicação / Centro de Educação – UFPE.

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inevitavelmente Cecília Meireles, quando, em meio a algunsexperimentalismos deletérios, recuperava a essência da poe-sia, para usar a feliz fórmula de Eliot.

Há no livro um uso singularizado da linguagem, seja nospoemas em ordem alfabética – à guisa de périplo verbal –,seja nos adjetivos deslocados e surpreendentes. No primeirocaso, Cores do Outono vai de “abraço” até “travessia”, títulosdos poemas que abrem e finalizam a obra, respectivamente.Longe de ser um voluntarismo gratuito, significam mais quan-do observamos em todo o livro a intenção de traçar um percur-so atemporal, com idas e vindas a poemas da juventude e damaturidade.

O adjetivo, por sua vez, é classe que, na gramática, orien-ta e especifica. Aqui, amplia e desnorteia. Expressões como“sorte rasa” e “frase verde-musgo” guardam, na aparente con-tradição semântica, o estranhamento – essencial a qualquerobra que pretenda ecoar.

Fluida, a escrita de Fátima traz sempre a esperança defixar grandezas: “o riso / de netuno / ecoa no mar.../ e nasmarés / vão caravelas / à toa... / e traz o vento / vagas / aoconvés...” Tudo posto, contudo, em letras minúsculas, comoquem falasse baixo e discreto. Ali, a palavra é sempre metáfo-ra, navegando para reencontrar sua origem, Ítaca simbólica.Função maior, aliás, da poesia: devolver a linguagem às suasfontes, já dizia Borges.

Em sua palavra aquática, a língua, em linhas e símbolos,escoa como rios. Daí expressões como fluência idiomática. Como tempo de uso, porém, o vocábulo racionalizou-se e perdeu aorigem figural. Com o título de seu primeiro livro, Discurso dasÁguas, Fátima repõe essa perda essencial do sentido.

Por tantas evidências, é preciso celebrar a poesia de Fá-tima, agora em Cores do Outono, em que novamente se revelaa paixão da forma, razão da arte – da literatura.

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