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. · ciclo de
I EBATES ·.· do teatro
CASA RA DE
EDITORA INÚBIA
literatura dia 19 de maio de 1975
antonio houaiaa coordenador
Estão presentes nesta mesa, numa ordem alfabética, Affonso Romano de Santanna, Antônio Callado e Antônio · Cândido; e numa ordem analfabética, Antônio Houaiss, que SQU eu. Presente está também Alceu Amoroso Lima. Ele não veio fisicamente, mas em espírito, e numa mensagem que irei ler a vocês. Creio que seria quase desnecessário fazer apresentação des membros desta mesa. À minha extrema direita, sem alusão, está dos mais intensos militantes da prática literária do Brasil de hoje, Antônio Callado . Eu não preciso ressaltar a sua experiência nos três aspectos fundamentais que têm caracterizado a sua atividade: o grande jornalista, sobretudo o grande repórter que tem sido, e esperamos que continue a ser, o grande dramaturgo e o grande romancista. A meiadireita, também sem alusão, está o professor Antônio Cândido que é, sem favor, e creio que nenhum crítico aqui presente se ofenderá, o patriarca, no bom sentido da palavra, que é muito jovem, da çrítica literária no Brasil. De formação sociológica e literária profundamente intensa, ele veio dar um pouco de prestígio a esta me~a. vindo especialmente de São ' Paulo. Por isso mesmo a nossa gratidão deve ser muito grande para quem vive assoberbado de tanto trabalho e tantas obrigações. Eu agradeço pessoalmente a ·presença dele porque fui o intérprete do desejo do grupo organizador e vi da sua parte a maior boa vontade para aqui
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ma.
Alceu Amoroso Lima não comparecer e as razões são bll.lltllll""• tes para que nós ele . não pôde comparecer por·a•• de hábito, há 80 anos, diz ele, me antes das 10 horas; em setriiiJl.ol•
do lugar, de hábito, a partir dos anos, feitos há algum tempo, tem evitado participar de mc:sas·r~~• dondas, que o cansam. Mas, está com um esplêndido viço tal, e nesse ponto ele é juvenil vez mais, ele teve tempo mandar-nos uma mensagem. Fa mens.agem é tão oportuna que pretendo lê-la como inicial dos nossos debates, após que darei a palavra, pela ordem, AffQnso Romano de Santanna, tônio Callado e Antônio C Eis o que nos manda dizer n•\-l• .Amoroso Lima:
alceu amoroso lima
"A situação cultural de um é a resultante de um elemento jetivo e de um elemento objetivo. Como as palavras indicam, o eJe. menta subjetivo é a criadora e pessoal dos espíritos. elemento objetivo é o conjunto
antOnio houalss
circunstâncias sociais, passadas e presentes, que foram a estrutura exterior e situacional para o desenv"olvimento daquela atividade pessoal, criadora e livre.
Qual a situação cultural brasileira, no momento, em relação a essa dupla exigência? Quanto ao elemento subjetivo, a situação parece ser boa, ou mesmo excelente. Estamos no início do último quartel do século XX. Durante os três primeiros, a atividade cultural do país, quanto ao seu elemento subjetivo, foi das mais fecundas, tanto em quantidade como em qualidade. De 1900 a 1975, se processou uma revolução cultural que tomou, tomo é notório, o nome de modérnismo. A principal característica de nossa independência literária, que o romantismo tinha iniciado, e que o modernismo completou com suas características ocoromânticas, baseadas acima de
affonso romano de santanna
tudo na liberdade estilística e no nacionalismo temático. De Graça Aranha em 1902 a Guimarães Rosa em 1964, o pré-modernismo,
'o modernismo e o pós-modernismo representaram uma revolução cultural que ficará como um marco indelével na história cultural do país, pois o que ocorreu com a literatura operou-se igualmente nas artes plásticas e ·musicais, de Alberto Nepomuceno a Villa-Lobos e de Eliseu Visconti a Portinari. Tudo indica que essa vitalidade criadora continua intacta, mais do que isso: encontra-se, nesse momento em que se abre o último quartel do século XX, num estado de impaciência e de agitação, voltada para o século XXI. Na linha do movimento revolucionário .universal, que está em franco processo em toda parte, entre nós com sinais de vitalidade e hostilidade, semelhantes aos de 1922, quando se ini-
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ciou a fase mais renovadora e inovadora dessa onda intelectual. Isso quanto ao elemento subjetivo.
Quanto ao aspecto objetivo e estrutural, nenhum óbice se opôs, durante esse longo período, a esse desenvolvimento, pelo contrário: mesmo antes do movimento político-social de 1930, que levou o país de uma estrutura individualista, baseada na Constituição de 1891, a uma estrutura socializante a partir da crescente industrialização, da promulgação das leis trabalhistas e da Constituição de 1934, as estruturas ambientes se mantiveram em consonância com esse movimento intelectual, voltado para a frente e de tipo inovador ou mesmo revolucionário. O elemento subjetivo da cultura nacional e o elemento objetivo desenvolveram-se, então, não só de modo paralelo, mas interdependentes e com finalidades análogas. Ora, no momento atual o quadro é inteiramente outro. Enquanto o elemento subjetivo da cultura brasileira contemporânea se agita, a estrutura social, tanto política quanto econômica, se fecha, se retrai, se defende, se tranca, pela hipertrofia da autoridade, tolhendo constantemente aquele. surto criador que é, como sempre, baseado no espírito de liberdade. Estão, pois, caminhando os dois elementos da cultura nacional em direções opostas em vez de convergirem na mesma direção. Uma interpretação restritiva da segurança nacional hipertrofiou a função estatal de tal maneira que há mais de um decênio fizeram da censura ao pensamento e à expressão uma condição do desenvolvimento nacional e até
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mesmo a base do novo regime. Com isso se criou o conflito constante entre o elemento subjetivo e o elemento objetivo da cultura. Enquando, durante os três quartéis anteriores do nosso século, o elemento pessoal e criador da cultural e o elemento estrutural e ambiental do regime caminhavam, por assim dizer, no mesmo sentido, hoje se divorciaram, como está na moda. O subjetivo continuou para a frente mas o objetivo e estrutural se colocou na defensiva, em uma atitude, ou de franca hostilidade ao espírito de liberdade criadora, através do aparelho policial e da censura prévia, ou então numa posição de reserva e de atemorização, de advertência e de censura indireta, que se torna talvez ainda mais nociva que uma franca hostilidade. A fraqueza cultural brasileira, portanto, deste começo do fim do século XX, não é uma falta de talentos ou de aspirações, é uma crise provocada pelo autoritarismo político e censorial que se choca de modo ostensivo ou de modo simulado com a riqueza dos talentos e a impaciência criadora, especialmente das novas gerações. Esse choque violento entre o espírito dinâmico da mentalidade atual brasiteira e o espírito estático e reacionário das estruturas político-sociais, por obra e desgraça de uma constante censura do pensamento e da expressão, está ameaçando a cultura nacional de uma estagnação ou de um retrocesso, que serão ambos a maior decepção das novas gerações e a própria vergonha da nossa história intelectual". Antonio Houaiss - · Essas foram as palavras de Alceu Amoroso Lima.
Vou jogar no fogo, de imediato, o meu querido Affonso Romano qe Santanna. Eu gostaria somente que, para desanuviar o ambiente, nós fizéssemos uma pequenina diferenciação entre a linguagem escrita, que foi lida com certa ênfase, talvez demasiada, e que deu um tom assim um pouco venerável demais ao ambiente, e a palavra falada, que deve ser um pouco mais solta e despretensiosa. Espero que você não fique contrareito com o tom oratório inicial, viu. Afonso?
affonso romano
Inicialmente, gostaria de dizer que tenho acompanhado esses encontros, tenho vindo a alguns, e entre os comentários, as discussões paralelas e às vezes algumas queixas, fica me p~recendo que algumas pessoas estariam buscando aqui uma espécie de nova verdade; uma vez que os apóstolos estão juntos, espera-se um Pentecostes, uma Epifania, uma revelação ou um sentido da vida para cada um. No que me diz respeito, acho que dificilmente poderia trazer, se é que alguém espera isso, a palavra nova, mas gostaria apenas de trazer as minhas perguntas, as minhas indagações e começar a conviver com as indagações de vocês, porque estou convencido de que nós não ~espondemos nada, mas apenas trocamos de questões ao longo dos anos. Isto posto, gostaria de dizer que o que eu pretendo apresentar girará em torno dos seguintes tópicos:
1) A poesia brasileira, ou a poesia brasileira feita entre 1956 e 1968, que constitui o que poderíamos chamar de uma segunda Semana de Arte
Moderna. Esse seria o primeiro tópico.
2) O segundo tópico diz respeito às relações entre a poesia e a música popular e de que maneira a música popular, num determinado momento, assumiu um espaço que a poesia, por uma série de impedimentos, não podia assumir.
3) E, em terceiro lugar, consider1;lções sobre como a crítica literária brasileira neste século passou por um processo de especialização crescente, que, começando com a boemia do fim do século passado, acabou altamente especializada dentro da universidade, através dessas diversas formas estruturalistas que temos hoje e de como a universidade passa a ser o foco gerador da crítica e pode num futuro muito breve, ser também um foco de criação.
Começando da primeira observação, eu darei alguns dados, pois não sei se todos acompanharam com certa atenção o desenvolvimento da poesia brasileira de 1956 · para cá: em 1956, iniciou-se um movimento chamado concretismo, o qual é o mais conhecido desses movimentos de vanguarda, o mais divulgado, graças à atuação insistente, catequética, dos irmãos Cam- , pos (Augusto e Haroldo) e Décio Pignatari; em 1959 surge o neoconcretismo que, como o concretismo, se expôs, se tornou conhecido através do "Suplemento Dominical" do Jornal do Brasil; em 1957, dentro desse mesmo panorama de busca de colocações para uma poesia de vanguarda, .surge em Minas um grupo chamado Tendência; em 1962, surge no Rio, como conseqüência de uma série de atividadeo;
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dentro das universidades, uma coleção de poemas intitulada Violão de Rua que, segundo sua ótica, é também uma proposta de vanguarda politica; em 1962, surge outro movimento chamado Práxis, que tem Mário Chamie como lider; em 1967 surge o poema-processo e em 1968 o tropicalismo. De 1968 para cá, talvez - se pudéssemos fazer uma pesquisa e uma análise - teríamos um tipo de literatura que já foi chamada, e eu gosto de chamar também, de lixeratura, a literatura do lixo, numa crítica à poluição cultural, social etc. Pois bem, esses sete ou oito instantes, entre 1956 e 1968, tecem entre si um sistema coerente, eles têm forças de atração e repulsão, e numa análise mais detida talvez se pudesse começar a demonstrar a minha proposta inicial, de que esse vanguardismo, ou essa vanguarda, é algo semelhante a uma Semana de Arte Moderna. Essa proposta teórica espanta à primeira vista, mas não espantaria muito se todos nós pensássemos que a Semana de Arte Moderna não aconteceu em 1922, no mês de fevereiro de 22: quanto ·mais tempo passou mais a semana foi se realizando, a tal ponto que em cada decênio, a cada conjunto maior de anos, a semana se dilatava e ganhava sentido. Assim, como todos os fatos históricos, que na verdade acontecem a posteriori. Uma interpretação crítica desses movimentos de vanguarda, então, poderia nos levar a interpretá-los como um sucedâneo do. concretismo e uma tentativa de saída do que vagamente se chama de Geração de 45. A caracterização de cada um desses movimentos levaria um tempo bem
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maior mas, sumariamente, eu diria que o concretismo propõe a ato-mização, a destruição não só do verso, como foi feito em 22, mas o esfacelamento da palavra,· e a letra, em sua liberdade, chega a ser não mais a letra do alfabeto, pura e simples, mas um artificio semiótico, semiológico, para comunicar uma · mensagem determinada. O concretismo certamente passou por diversas fases; essas fases não estão catalogadas, são coisas recentes, os críticos teriam que estudar isso a fundo. Mas de qualquer maneira existe um concretismo inicial, ortodoxo, no qual se procurava explorar a palavra, ainda palavra, a letra ao máximo, o sentido semântico da letra e da palavra. Mas ele iria para uma outra tentativa, ·posterior, que era de dar um sentido político a esses sinais gráficos. ~ o que se tentou chamar e se chamou, na ocasião, de "salto da onça", o pulo da onça. rsso foi uma tese exposta por Décio Pignatari, com que o concretisrno tentava sair do impasse em que havia caído, ou seja, fazer uma poesia altamente sofisticada e alienada da realidade e da comunicação de massas. Então tenta uma poesia ainda altamente sofisticada, na segunda fase, mas· participante. ~ pulo-da-onça, mas, segundo alguns críticos, a onça caiu num despenhadeiro, caiu no vazio. Haveria uma outra fase dessa poesia, onde ela teria derivado radicalmente para a semiótica total e a letra teria sido abandonada. E uma outra fase, que eu colocaria aqui sumariamente, apenas numa tentativa de configurar para vocês: haveria um esforço de aliança dos concretistas com a música po-
pular brasileira, principalmente através da atuação de alguns compositores. Ou seja, o bloqueio, dentro da série literária, dentro da poesia literária, levou os concretistas a procurarem soluções, saidas de emergência, um espaço que fosse dado. A música popular, num certo instante, foi essa saida de emergência. O neoconcretismo - eu soube agora que, felizmente, existem algumas pessoas no Rio financiando uma pesquisa sobre o neoconcretismo. Acho isso importante porque no pais em geral, e até no exterior, a idéia que se tem da vanguarda braslleira nos últimos 15 anos é apenas do concretismo, quando tivemos esse leque imenso que eu mostrei a vocês, de pelo menos sete ou oito movimentos. O neoconcretismo é algo um tanto ou quanto dificil de explicar, porque ele não se realizou efetivamente. Como movimento de cisão, implicava uma série de colocações pessoais, às vezes, entre o grupo do Rio e de São Paulo, mas de uma maneira grosseira, geral, o neoconcretismo queria uma poesia mais subjetiva, voltada para o humanismo, e denunciava a frieza das colocações concretistas. O grupo neoconcreto era chefiado por Ferreira Gullar, Reinaldo Jardim, Roberto Pontual, Lygia Clark e outros que se opunham, por conseqüência, aos irmãos Campos, Pignatari e outros, de São Paulo. De.ve-se esperar o levantamento que se está fazendo, para se ter uma visão geral desse movimento. Mas, de qualquer maneira, é um movimento que se realizou mais na busca da integração da poesia com as artes plásticas, o poema para ser
acionado pelo leitor, para ser construido como se fosse uma escultura manuseável.
Em Minas, em 1957, esse movimento chamado Tendência começa, principalmente através da poesia de Afonso Ávila, a procurar uma solução para a poesia brasileira entre João Cabral de Mello Neto e o concretismo, ou seja, não está apaixonada pelas soluções visuais, prende-se ainda à solução da palavra e busca uma solução que transmita preocupações sociais, de participação politica na vida nacional. Em 1962, aparece uma coisa estranha e rica, e não estudada, ignorada da maioria, chamada Violão de Rua. Como foi um texto marginalizado na época em que apareceu, porque as vanguardas estavam em pleno vapor, e quem não fizesse os seus jogos verbais com muita sutileza e fizesse apenas poesia conteudística era logo lançado às penas do inferno - essa poesia, . por razões políticas e de política literária também, sofreu uma censura, que é estética, fora as outras. Pois bem, esse movimento Violão de Rua é a meu ver um ponto importante na evolução e no encontro da música popular brasileira com a poesia da série literária. Foi o primeiro momento em que a poesia e a música se encontram totalmente, onde não há diferença entre o texto da música popular e o texto da poesia literária. f: um movimento eclético que reúne desde os modernistas, tipo Cassiano Ricardo, até ·um Joaquim Cardoso, e passa pelos poetas de 45 e experimentalistas de 1956. A preocupação central é uma certa mensagem política. Em 1962, surge em S. Pau-
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lo a revista Práxis, que é de alguma maneira uma dissidência do concretismo e que propõe também uma manipulação lúdica das palavras, dentro de um artificio que lembra muito as colocações do labirinto barroco. O poema pode ser lido de trás para frente, de frente para trás, e é uma poesia de forte conteúdo social. Em 1967 surge o poema-processo que leva à radicalização total a visualização: a palavra some do poema, ficando apenas os sinais.
O tropicalismo parece ser, desses todos, o mais rico, o que mais cresce com o tempo, porque nele se deu a junção da música popular, da TV e da poesia. Ou seja, Caetano Veloso se encontra com Oswald de Andrade, com os concretos e outros. Glauber Rocha, no cinema, José Gelso no teatro, e outros mais. O tropicalismo passa a ser então uma critica, um exercício da paródia, dentro da literatura, na música e na vida politica brasileira. Esse tropicalismo, na verdade uma espécie de carnaval, de camavalização, de critica geral, de euforia, é sucedido por um período, o da lixeratura, que seria uma espécie de underground brasileiro. E a relação entre tropicalismo e lixeratura seria a mesma relação entre Carnaval e Quaresma. ~ bem possível que estejamos nessa quaresma esperando a saída dentro de um rito ou mito de eterno retorno.
O que eu queria dizer, depois de pintar esses movimentos, é que, segundo minha ótica, eles cumpriram um ciclo, e que agora a poesia brasileira terá que sair, dar um pulo. Essa etapa foi vencida, a etapa da fundação, da instauração, da
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discussão, e há sinais de que a formação de uma linguagem que coa· dune ou explore antiteses de todos esses movimentos possa se formar. De alguma maneira, isso já se concretizou através de alguns movimentos como a Expoesia I, realizada na PUC, que reuniu mais de 400 poetas e mais de 3 mil pessoas de todas as tendências de todos os movimentos, e a Expoesia II, patrocinada pelo Jaime Lerner, de saudosa memória, em Curitiba, a Expoesia lll, realizada em Friburgo, e Poemação, realizada ano passado no Museu de Arte Moderna, no Rio, e em 73, num espaço curto, foi realizado no Jornal do Brasil o chamado Jornal de Poesia, o qual eu tive a obrigação de dirigir dentro do possível. Essa prática das Expoesias, do jornal etc. me leva a ver que a poesia brasileira tende a formular uma linguagem que já não é mais sectária, nem partidista, como era até então. E aqui surge um outro ponto que eu gostaria fosse o mais importante do'que es· tou dizendo: é que as vanguardas, como algo necessário dentro do desenvolvimento da poesia brasileira, realizaram, infelizmente, o mesmo esquema, o mesmo jogo que se realiza em outras áreas, como a politica: ou seja, realizou-se, graças a essas vanguardas, a chamada luta pelo poder (literário), e a luta pelo poder literário é exatamente a mes~ ma luta pelo poder em qualquer área, em qualquer lugar, em qualquer situação. Se .estivéssemos todos maduros para fazer uma psicanálise da literatura brasileira teriamos muito a aprender nesse período, que de alguma maneira reproduz coisas havidas no modernis-
mo, e outros instantes da própria literatura. Ou seja, até que ponto a vanguarda, que é essa coisa nova, revolucionária, necessária, não reproduz esses elementos, tais como a luta pelo poder, e que devem ser mostrados e exibidos porque, na minha opinião, antes de tratarmos ou julgarmos metonimicamente toda a culpa na censura oficial, que éxiste, e ~ como já dizia Chico Buarque e o . próprio Caetano, acentuando que não podemos debitar tudo à censura - deveremos observar os processos de censura interna dentro da literatura. Então, nós nos furtamos a ver o processo de censura interna entre os grupos, as revistas, e transferimos o problema todo a uma política que não poderemos nunca atingir plenamente com maturidade se não exercermos antes a liberdade dentro da democracia estética e literária.
O outro . ponto diz respeito às relações entre a música popular c a poesia. Eu diria que do modernismo para cá há dois movimentos na relação entre a poesia literária e a música popular brasileira: ou seja, num certo momento existe a equivalência entre um poema na 'série literária e um texto em música; depois, num instante mais amadurecído, ao invés da equivalência temos realmente a identidade. Num trabalho que tento desenvolver num livro ligeiro, tento mostrar a semelhança de comportamento entre os versos de Noel Rosa e os modernistas brasileiros, depois entre o comportamento de Ari Barroso, como ufanista, e certos versos de Cassiano Ricardo, outro ufanista na série literária; há uma certa relação também entre o
tango, o bolero, o samba-canção e outras músicas de "fossa;' e a chamada geração de 45; há uma relação entre o concretismo, vanguarda de 56, e a bossa-nova. Mas até aqui há uma equivalência: a série literária e a música popular brasileira são comparadas, mas cada qual no seu caminho. A partir ·de Violão de Rua, com o show "Opinião", depois "Arena Canta Zumbi", "Tiradentes" etc., vários shows e discos nesta linha, a poesia encontra-se com a música, graças a um idêntico coeficiente, ou um mínimo múltipló comum de interesses. f: a partir, então, de Violão de Rua, que se encontram poesia e música. Suc'ede depois o tropicalismo em 67, que é. um encontro mais sofisticado ainda porque os autores já manipulam um acervo de informações, um acervo cultural mais sofisticado. Depois do tropicalismo, poderíamos nos referir ainda à própria lixeratura - essa literatura do underground brasileiro - como algo muito interessante que está acontecendo na literatura brasileira e os críticos oficiais não sabem, porque não querem: os antigos suplementos literários que acabaram (só existem hoje, na verdade, dois: um em Minas, financiado pelo próprio governo estadual, o Suplemento Literário de Minas Gerais, e o outro, de O Correio do Povo, de Porto Alegre, e os suplementos literários antigos, quando cada jornal tinha por volta de oito páginas semanais dedicadas à literatura) foram substituídos recent~mente, devido à crise do papel e outras crises, pelas revistinhas mimeografadas de underground, vendidas em butiques e teatros. Então,
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o suplemento, que estava instalado dentro do órgão oficial da cultura passa a ser agora marginalizado, assume a sua marginalidade, e a revistinha mimeografada é o suplemento de uma geração que se marginaliza ou foi marginalizada. Bem, esses são os dois momentos que poderiam ser estudados mais a fundo em outra oportunidade, o da equivalência e o da identidade. Claro que isso implica uma série de outras coisas. O encontro da poesia com a música é um fenômeno universal, em primeiro lugar: quando John Lennon escreve seus dois livros de desenhos e texto~. ele não está escrevendo gratuitamente, mas exercendo uma certa cultura, ou seja, começando por parodiar James Joyce. Então a ligação entre o cantor pop e Joyce, ligando os extremos, é algo que em termos brasileiros aconteceu, na medida em que Caetano e Gil, através dos concretistas, chegaram também ao conhecimento de certos inventores da poesia. Uma outra razão que eu veria para a passagem às mãos da música popular de tanta força era uma certa necessidade de aglutinação e liderança a partir de 1964, devido à orfandade em que ficaram as massas. E há uma outra coisa que acho importante: é que os poetas compositores, os músicos, não tinham as caraminholas dos poetas da série literária e tiraram a poesia vanguardista da prisão de ventre em que ela se meteu com seus rigores formais, sem os compromissos e teorizações muito sofisticados; realizaram na prática aquilo que os poetas literários gostariam de ter realizado. E sobre isso eu diria, sin-
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tetizando, que a essa altura já não se trata de dizer ou procurar saber o que os poetas da música popular brasileira aprenderam dentro da
, série literária, mas, sim, saber aquilo que os poetas da série literárili deveriam ter aprendido com os compositores e os músicos.
Finalmente, o último item prende-se à posição da universidade nesse complexo, ou seja, hoje se fala muito de estruturalismo, muita gente é contra ou a favor, mas a maioria não sabe o que é isso. E não sabe porque o estruturalismo é uma coisa que se tem que estudar para saber, e não simplesmente dar .opinião. Em certo sentido é um pouco mais complicado do que o que ocorreu com a geração anterior, das décadas de 50 e 40 a respeito do existencialismo. O existencialismo era um pouco mais assimilável, era mais fácil, bastando para isso um pouco de consciência. Com as palavras consciência, história, ontologia etc., na mesa do bar, a conversa ficava altamente sofisticada. O estruturalismo - não vem ao caso se somos contra ou a favor, mesmo porque não há apenas um, mas vários estruturalismos, e até mesmo os pós e o pós-pós-estruturalismo, e até para a critica, digamos no Brasil, que é o nosso caso, uma sofisticação às vezes perigosa, uma sofisticação que forçou uma cisão entre o público leitor de crítica e o estudante e a crítica, e entre o estudante e o professor de literatura. E comum hoje um leitor médio ler um texto de· análise e não entender nada; em primeiro lugar, ele não tem que entender esse tipo de análise, como eu não tenho que enten-
der um tratado de medicina nem de astronomia, quer dizer, a crítica tende cada vez mais a se tornar uma especialidade e criar níveis possíveis. Há uma critica de jornal, que é outra coisa, e assim por diante. Mas o que para mim é importante nessa ótica que enfoca a universidade no meio qa problemática da cultura brasileira atual é que ela não só ajudou essa especialização, mas está se esforçando hoje para trazer para dentro de si a própria criação, a própria criatividade, ao invés de ficar pura e simplesmente nas verberações teóricas. Assim, quando vocês encontram um Osman Lins dando aulas na Faculdade de Filosofia, a Nélida Piiion, que está presente e já deu aula em faculdade federal, através de um workshopping, ensinando os alunos a escrever e discutindo a construção da própria obra, quando um Autran Dourado, que deu em 73 um curso na PUC sobre sua própria obra, quando um Ciro dos Anjos, que deu durante vários anos um curso na Universidade de Brasília sobre criação literária -quer dizer, quando esses escritores voltam para a universidade para começar a realizar essa integração entre a crítica e a criação -, parece que a universidade brasileira está amadurecendo e estamos entrando em uma nova fase. Seria, já que se copia tanto o modelo americano, pelo menos copiar as coisas melhores. O que há na universidade americana é o escritor visitante, o artista visitante, o poeta residente etc. Assim, haveria efetivamente uma interação entre a criação e a crítica. Antônio Houaiss- Eu suspeito que vamos ter um pouco de pendulari-
dade porque agora não é tanto um teórico mas um prático que vai falar, e eu tenho certeza de .que ele vai falar um pouco de sua própria angústia, perante nós todos. Tem a palavra Antônio Callado.
ant6nio callado
Para dar" um depoimento, em termos gerais, sobre a literatura brasileira de ficção, eu diria que o romance esbarra agora, como em épocas anteriores, com a censura, mas que no fundo o obstáculo maior para o seu cultivo liga-se à própria evolução política e econômica do país. A primeira condição para o pleno desenvolvimento de um romance rtacional é que um grupo substancial de escritores possa dedicar tempo integral a escrever livros, e a primeira condição • para que isso seja possível é que existam leitores, os quais, comprando os livros, remunerem o escritor. Não há política de prêmios literários ou outros incentivos do mesmo tipo que substitua o incentivo do poder aquisitivó de uma massa de leitores subsidiando os autores. Esta é a verdadeira ligação, o grande nexo entre · os que trabalham para transformar em ficção, em símbolo, a realidade material e mental de um país, e aqueles que absorvem essa ficção. O prêmio, útil até onde vai, tem seu aspecto de sucedâneo, de falsi- · ficação do outro estímulo que é vital. Ele constitui, talvez inconscientemente, um dos instrumentos com que se mantém no Bra-sil os dois Brasis: um, vasto, ignorado e desassistido; e um outro,
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pequeno e cioso de seus privilégios. Est_e último pode, oficial e privadamente, pagar àqueles que o servem e que o divertem. O Brasil me parece um grande país com vocação para país pequeno. Tem muita terra, mas desde o primeiro século e até hoje só admitiu nela um pequeno número de pessoas. Nunca se conformou, mesmo depois de abolir, tão tardiamente, a escravidão negra, em abrir suas terras para formar a grande classe média rural que daria envergadura e substância ao grande país. Copiamos muita coisa dos EUA, como lembrava Afonso há pouco, inclusive bobagens, mas não imitamos até hoje o largo gesto de Jefferson entregando as terras do oeste àqueles que as conquistassem. Não há semana em que os jornais brasileiros não noticiem conflitos de terras no Brasil, e não. apenas na Rondônia e no Acre, que estão sendo abertos agora, mas no próprio Paraná e até no litoral paulista. Todos os dias vemos os grileiros avançando nas terras que os pequenos proprietários cultivam, depois de registrá-las no INCRA. A barreira erguida contra uma ampla distribuição de terras no Brasil foi sempre, e continua sendo, de meter medo. E não faltam economistas para provar que o minifúndio é pior que o latifúndio, que as cooperativas funcionam mal entre nós etc. Só as grandes empresas agropastoris, argumentam, podem fazer render um país grande como o Brasil. Com isso naturalmente servem ao Brasil pequeno, de eleitorado pequeno, de catálogos telefônicos pequenos, de Who's Who microscópicos e, no que nos
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concerne aqui, com muito pouca .gente para ler romances. A manifestação mais extraordinária da consistência, da coerência secular do Brasil pequeno é provavelmente a que se cinge a esse problema fundamental da posse da terra. Tanto assim que esse Brasil pequeno conseguiu o milagre de confinar sistematicamente, a uma espécie de curral de bandidos e de místicos, todos aqueles que se revoltam em nome da posse da terra. Desmascarar esse truque histórico foi a tese de um livro de imensa importância na historiografia brasileíra, Cangaceiros e Fanáticos, de Rui Facó. Não pensem que estou me afastando do tema da literatura brasileira. Um dos maiores livros dessa literatura não é propriamente ficção, mas constitui o Pico da Neblina, o ponto mais alto do barroco literário entre nós, e se chama Os Sertões. Este livro relata, fundamentalmente, a luta pela posse da terra, apresenta essa luta transfigurada, dramatizada. Euclides da Cunha, e nisso agiu como verdadeiro e angustiado artista, fez primeiro seu tra· balho de repórter sobre Canudos para O Estado de S. Paulo, mas depois a si mesmo perguntou o que significava toda aquela sangueira, e o extraordinário espetáculo de lançar o exército nacional em sucessivas expedições contra aquilo tão pobre que ele mesmo chamou de Tróia de Taipa. E então lembrou que a primeira aparição pública de Antônio Conselheiro fora contra um imposto que gravava terras e acompanhou sua transformação para religioso e místico. O Consolheiro acabou querendo lotes de
antônio callado
terras no Céu; no chão do Brasil não arranjava, não. De Canudos, que acabou em 1897, a agitação pela terra apareceu tanto no Contestado em Santa Catarina, de 1912· a 1915, mais ou menos, como no Juazeiro do Padre Cícero, em 1913. Movimentos desse tipo, em zonas miseráveis do país, a princípio criam esperança, criam emprego, criam até esmolas, por isso atrai toda espécie de gente de áreas extensas do interior, e acabam por originar uma coletividade, com seu nível cultural baixo e seu instinto religioso acentuado. Os líderes dessas comunidades, como disse e repete Facó em todo o seu livro, acabam nos livros de história do Brasil como bandidos e fanáticos, e são descritos como uma combustão espontânea, enjoativa, de sujeira e crendice. No entanto, graças ao gênio de Euclides, o país nunca mais esqueceu o que lhe custou · des_truir Canudos, e mesmo sem Euclides sabemos que millhares de soldados foram mobilizados para
antOnio cândido
sufocar a revolta do Contestado e a de Juazeiro. A luta de Juazeiro teve seu epílogo num episódio extraordinário da luta pela terra no Brasil, no fim do decênio de 1930. O chamado Beato, José Lourenço, tinha terra no Caldeirão que o Padre Cícero lhe dera, terra ruim, mas que Beato e seus camponeses transformaram numa próspera república lavradora. Desmantelado o Caldeirão pelas tropas da F orça Pública do Cearà - pois temia-se que Beato se transformasse num novo Antônio Conselheiro - saíram José Lourenço e seu pequeno povo e foram se instalar em outro sítio da Chapada do Araripe. Quando no dia 10 de maió de 1937 a F orça Pública voltou para desmantelar a segunda cidade de José Lourenço, os policiais foram sumariamente. trucidados. O então ministro da Guerra, o general Eurico Dutra, resolveu que não haveria nenhum prolongado Canudos naquela altura do século. Seguiram para o local tropas sedia-
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tàs em Fortaleza e até mesmo· aviões que tudo arrasaram. O quadro assim é que, depois de uma Abolição que foi a última no mundo e que se arrastou mediante leis protelatórias de 1831 a 1888, não partiu o Brasil para um programa intensivo, nem de distribuição de cultura nem de distribuição de terra. O Brasil grande havia resolvido que muita terra e muita letra devia ficar para pouca gente. Para o grande número eram coisas dispensáveis coisas que se podem cortar das despesas, supérfluas, como, digamos, um abat-jour lilás ...
Eu me detive um pouco em relembrar esses episódios porque eles naturalmente não são fruto da decisão de alguma espécie de imutável grupo de homens maus instalados no poder. Representam, antes, um estado de coisas que nos envolvem a todos nós. Eu não acho que escritores devam ser necessariamente engajados, quando escrevem, mas devem sê-lo como cidadãos, Escritores e todos os demais membros da classe pensante que, queira ou não queira, goste ou não goste, beneficia-se da injustiça que tem dominado a história do país, ou pelo menos não sofre muito com ela. E os escritores devem preocupar-se mais ainda com uma situação que lhes cerceia o público e não lhes concede o tempo integral de criação. Afinal, somos poucos no mundo inteiro os que escrevemos e lemos o português, e o que se observa no Brasil é que casas de favelados freqUentemente têm o seu televisor, mas dificilmente conterão um livro. Uma literatura não se faz com fatalismo e partindo-se do princípio de que os gênios sem-
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pre se manifestarão, quaisquer que sejam as condições de um país e de uma cultura. Os grandes e ricos períodos de literatura, em qualquer lugar, em qualquer época, apresentam o mesmo quadro de uma sólida produção literária em todos os níveis. Em volta dos quatro gregos de cujos nomes todos nos lembramos em matéria de teatro havia mais de uma centena de autores teatrais contemporâneos em Atenas : Com o analfabetismo e o pauperismo vedando · a literatura, o Brasil menor, e com a censura dificultando o acesso aos livros e às artes mesmo na área do Brasil das elites, reduz-se a muito pouco o espaço criador no país. A luta pela ampliação desse espaço, de tanto tempo que dura, com tão poucos frutos , pode parecer improfícua e inútil, mas é a única luta que temos, nos livros ou fora deles. Antônio Houaiss - O meu organograma está funcionando bem, de modo que passo a palavra agora ao professor Antônio Cândido, dando-lhe os minutos de que quiser dispor.
ant6nio cândido
Eu começaria de uma distinção feita por Antônio Callado, porque essa distinção me parece muito importante para nós compreendermos a literatura e o escritor no Brasil. Eu distinguiria no mesmo homem o escritor e o intelectual, distinguiria o homem que só tem compromissos com sua própria criação, que é o escritor, e dentro dele mesmo o homem que tem compromissos com a sua so-
ciedade, que é o intelectual. Os nossos românticos, por exemplo, foram escritores profundamente intelectuais, porque estavam empenhados, antes de mais nada, em criar a literatura adequada àquilo que eles entendiam como a fisionomia própria da sua nação, da nação que estav_a surgindo . No momento em que nós vivemos - momento que eu gostaria de caracterizar, mas que foi tão bem caracterizado por Alceu Amoroso Lima nas palavras iniciais, palavras essas que estão enraizadas naquela situação hist~ rica tão bem definida por Antônio Callado -, eu diria diretamente que os graves problemas brasileiros são em grande parte da coexistência, dentro dele, do escritor propriamente dito e do intelectual, isto é, do escritor que, para realizar a sua missão, a sua vocação profunda, cria livremente - possibilidade de criação que foi definida no Brasil pelos modernistas: criar livremente. Por outro lado, esse escritor sente a necessidade quase imperiosa de participar culturalmente, de testemunhar sobre o seu país, dadas as circunstâncias extremamente dificeis para a vida da inteligência que nós vivemos neste momento, graças ao regime caracterizado porAlceu Amoroso Lima. Como é que se apresenta a literatura brasileira neste contexto? Antes de mim, falou um poeta que é também um teórico da literatura, falou depois um romancista, que é homem de profunda penetração crítica, e eu não posso falar, como os que me precederam, na qualidade de criador; posso falar apenas como crítico. Procurarei, então, de uma maneira mais geral, de uma
maneira mais abstrata, definir quais são as características, a meu ver, fundamentais, dessa conjuntura literária que coloca um desafio para o intelectual e traçar as condições de trabalho para o escritor. Nós vivemos -este é o traço mais importante de nosso tempo -numa atmosfera de vanguarda e temos um pouco a idéia de que a literatura só tem sentido quando for de vanguarda. Isto é ao mesmo tempo uma contingência do nosso tempo e um grave perigo para a literatura, porque se ela não for de vanguarda não subsiste no nosso tempo, e se não deixar de ser de vanguarda ela não constrói . A vanguarda, por definição, é algo provisório, e em nosso tempo, não só no Brasil como no mundo, há uma tendência para transformar o provisório em permanente . Não depende da vontade das pessoas, são as condições do nosso tempo. Então o que há de mais importante, de mais estimulante para um crítico, é essa espécie de literatura condenada à vanguarda. Affonso Romano de Santanna enumerou num reduzido número de anos uma grande quantidade de tendências poéticas, e é pelo mesmo que nós sentimos que nenhuma dessas tendências tem a força, o relevo ou a capacidade de duração que tiveram tendências poéticas anteriores. Já estamos na fase da vanguarda devorada pela vanguarda. Então essa tendência, que eu diria ser ao mesmo tempo glória e pena da literatura de nosso tempo - não estou censurando ou louvando, mas apenas constatando -, manifesta-se na literatura do nosso tempo por algumas ca-
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racteristicas que procurarei destacar, pedindo desculpas aos senhores por fazê-lo um tanto professoralmente. Não sou propriamente um patriarca, como disse Antônio Houaiss, porque me falta, infelizmente, um pouco de an'os para isso. Não sou propriamente um patriarca mas sou professor há trinta e tantos anos, de maneira que tenho o vicio do oficio.
Então, com o vicio classificatório do professor, imagino que os senhores me perguntem: Quais as características fundamentais dessa literatura sobre a qual falaram Affonso Romano de Santanna e Antônio Callado? Eu, então, tendo a minha resposta já pronta, como todos os professores, concordo imediatamente e passo a responder como se estivesse descobrindo na .hora, claro, como todo professor faz. A minha intenção, ao destacar esses quatro ou cinco traços que me parecem importantes, é tentar mostrar os nexos sociais que eles podem ter. De modo que farei uma caracterização inicialmente formal, mas procurarei imediata- ---. mente ligá-la aos aspectos sociais. ~claro que essa caracterização formal será feita num nível de relativa banalidade, porque todo esquema de aula é esquema de banalidade. A primeira característica que eu
_veria na literatura de nosso tempo, no Brasil e em outros lugares, é o que se poderia chamar a supressão ou ocultamento dos nexos sintáticos, quer dizer, a passagem de um discurso continuo para um discurso descontínuo. Depois veremos isso mais detalhadamente. Em segundo lugar, sobretudo na poesia, a busca de uma ordem espaço-
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temporal não linear, em vez de ordem temporal linear, a narrativa que segue do princípio, meio e fim, A para Z, substituída por uma ordem que altera esses nexos, e que parece sair do tempo para se projetar no espaço. Em terceiro lugar, um dos fenômenos mais curiosos do nosso tempo, porque esse mexe realmente com os hábitos mentais mais profundos da nossa civilização: a substit-uição da metáfora pela, paronomásia. Isto é, nos tínhamos uma literatura dominada pela imagem, pela analogia -"tu és bela como a rosa" -, e agora temos uma literatura dominada cada vez mais pela paronomásia, ou seja, por aquela figura que junta palavras pela sonoridade muito parecida, mas de significado diferente. Então, quando Murilo Mendes diz, por exemplo, "as têmporas da maça, as têmporas da hortelã, as têmporas da romã, as têmporas do tempo, o tempo temporã", ele está fazendo uma série de páronomásias. Em quarto lugar, eu chamaria atenção para o cultivo intensivo da ambigüidade natural do discurso. Todos sabemos. que a nossa linguagem é ambígua, a literatura é ambigüidade natural do discurso, em que se procura diminuir essa ambigüidade. O nosso tempo é, ao contrário, um tempo que procura aumentar, reforçar ao máximo as ambigüidades naturais do discurso. Finalmente, em quinto lugar, pensando mais na ficção, nós vivemos um tempo de ficção não imitativa, ou mesmo deliberadamente antiimitativa, a 1 ficção não mimética ou deliberadamente antimimética, inclusive com uma exploração cada vez maior da pa-
ródia, exploração que se vem acentuando cada vez mais.
Affonso Romano . de Santanna mencionou a lixeratura, que pode-se dizer, é literatura feita com sucata cultural. Penso, por exemplo, no livro Me segura que eu vou dar um troço, de Wally Salomão, ou no livro de Gramiro de Matos, o Urubu Rei, que são uma tentativa deliberada de romper com os nexos miméticos. Esses fenômenos que estou descrevendo sempre existiram, desde
. que a literatura existe eles existem, mas o que acontece e que nos impressiona no nosso tempo é que não só isso tem sido hipertrofiado, mas tem-se concentrado em uma massa. e. a. combinação desses traços que dá aspectos tão característicos à literatura do nosso tempo, quer dizer, a convergência, a prática sistemática desses traços que são normais, são comuns na literatura. Não teremos tempo, evidentemente, para desenvolver esses cinco tópicos. Entretanto, falando um pouquinho mais de cada um, eu diria que essa ocultação dos nexos sintáticos, essa descontinuidade do discurso, é devida a uma tendência crescente para a fragmentação . Essa tendência para a fragmentação surgiu com o romantismo. Nós nos lembramos das antologias românticas onde a poesia tem estrofes separadas por pontos. Geralmente, quando se põem pontos separando uma estrofe da outra é porque o autor da antologia fez um certo corte, e aquilo é para marcar o corte. Os românticos não usavam isso pensando na edição de texto, e sim para dar justamente a idéia de que um texto está separado do outro, de que se trata de
' fragmentos. Aquela idéia tradicional de que o discurso é uma coisa unida, fechada, completa em si, começa a ser rompida pelo romantismo, e isto "se manifestou através da edição das obras de André Chenier, porque, como essas obras foram em grande parte conhecidas por esboços e fragmentos, os editores reuniram esses esboços e fragmentos , já que havia poucas poesias completas. Então os poetas sentiram a importância do fragmento, e de como um fragmento podia constituir a poesia. Mas é claro que isso não bastava, não é por um acidente histórico de edição critica que vai surgir uma tendência tão arraigada como essa. É porque o romantismo manifestara um tipo de personalidade - abrir a porta de um ·mundo que é o nosso - onde nós mergulhariamos cada vez mais no discurso descontínuo, no fragmento e numa espécie de perda do senso de totalidade. Essa perda do senso da totalidade, que é nítida na nossa sociedade, que causa tanta angústia a todos nós e que no discurso literário está traduzido, entre ·outras coisas, por esta tendência à fragmentação e que vem a dar na ruptura dos nexos sintáticos normais. Mais ou tão curioso quanto isso é a ruptura da ordem linear baseada no tempo. Nós estamos numa fase de desconfiança com o signo verbal. Isso ficou claro . na exposição do Affonso. Há correntes poéticas no Brasil atualmente que buscam a poesia exatamente através do signo não verbal, do limite até a própria imagem visual, entrando na poesia. Essa renúncia à palavra - que é uma caracteristica do nosso tempo, que em São Paulo
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conhecemos através das experiências de Décio Pignatari, que vieram dar no poema-processo e outras tentativas - significa praticamente a supressão da·palavra, sua substituição por uma imagem puramente visual.
Está claro que esta desconfiança em face do signo verbal, essa busca de signos não verbais, está ligada ao impacto dos novos meios visuais, está ligada a uma certa abertura para outras escritas, pelas escritas figurativas, que são características do nosso tempo e que provavelmente significam a expressão de um novo ritmo de civilização . Estamos também no limiar desse novo ritmo de civilização, e é extremamente curioso nós também constatarmos que isso não é fruto do arbítrio, isso não é fruto de um capricho, isso tem uma motivação cultural muito profunda, é como se a visão verbal do mundo cedesse lugar a uma visão que tende a outros signos, inclusive a abstrações. A combinação dessas duas tendências, ·ou seja, a tendência à fragmentação, a tendência para o ocultamento dos nexos sintáticos, ligada a essa busca de uma outra ordem que não seja a ordem temporal tradicional baseada na palavra, marca um traço muito característico do nosso tempo que é o que nós poderíamos chamar de obsessão combinatória. No nosso tempo, a literatura tem uma tendência para se apresentar como realmente uma construção mental. A velha idéia que era o que de mais importante havia na poesia, de poesia como algo dado por uma força obscura, isso foi totalmente suprimido. Essa busca de nexos
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puramente lógicos, que é uma das manifestações do cor.cretismo, construído~ pela vontade por meio da análise combinatória, é característica do nosso tempo. Nós poderíamos pensar no significado que isso pode ter,ou seja, nas vantagens e perigos culturais que isso acarreta.
A lógica se dirige aos elementos conhecidos, a lógica só opera sobre elementos conhecidos, portanto elementos de um mundo bem limitado. Qualquer atitude criadora que se limita aos elementos conhecidos de um mundo delimitado de certa maneira pode reduzir a invenção e pode cercear a fantasia criadora, em benefício dessa visão combinatória, porque a lógica, repito, dirige-se àquilo que é conhecido, enquanto a intuição, a fantasia, a imaginação é que são os grandes caminhos para o desconhecido. Uma poesia combinatória e racional seria uma poesia sem invenção real? É um problema que já Trotski levantava em 1923, quando de suas críticas aos formalistas russos. Essa substituição da metáfora pela paronomásia significa uma crise da visão analógica. Alguém já disse que a civilização ocidental se baseia sobre a noção de analogia, e a literatura do Ocidente se baseia na metáfora, porque há outras civilizações que não cultivam a metáfora - como é o caso, por exemplo, da poesia japonesa, chinesa, que não desenvolvem a metáfora como a poesia ocidental. A visão analógica está na base da metáfora - "tu és uma rosa", "o crepúsculo parecia um incêndio" -, é a visão analógica. Essa visão analógica pressupõe uma visão referencial: eu refiro o
meu discurso, a minha palavra ao mundo, porque o discurso toma o mundo como arsenal das comparações. Agora, nessa era industrial em que vivemos, quando criamos objetos sem parar (e parece que o homem tem a capacidade de fazer concorrência à natureza), a ânsia de criar novos objetos afasta o homem das formas naturais, e vai-se criando então um mundo paralelo, um mundo autônomo, que é uma espécie de duplicação do mundo natural. E no domínio da .palavra literária eu tenho então a tendência para criar também os mundos paralelos através, por exemplo, da associação sonora, que é o caso da paronomásia. criar mundos que fossem suficientes em si mesmos.
Quanto ao cultivo da ambigüidade natural do disc~rso, podemos dizer que o cultivo dessa ambigüidade se opõe a toda tradição clássica que recebemos, porque embora, como eu disse; todo discurso seja ambíguo, o esforço do escritor clássico é no sentido de destruir essa am bigUidade, ~ transformar o discurso numa coisa tão clara, tão única, que conhecemos a expressão dos manuais de estilo: "qualquer outra palavra no lugar daquela seria impossível". Para cada coisa, uma só palavra que esgota aquele objeto. No mundo em que vivemos, nós parecemos ter medo dos sentidos únicos, nós evitamos a delimitação mutiladora do mundo, evitamos uma definição muito marcada a respeito do mundo. Daí, um mundo em que a obsessão da ' polissem ia, a o-bsessão do que alguns chamam de pluri-significado, a obsessão da ambigüi-
dade, que levou a esse conceito de obra aberta. Também nós sabemos que toda obra é aberta, mas tratase de fazer uma obra que seja predominantemente aberta - a obra que seja sobretudo aberta. As obras que se ordenam segundo uma abertura nos parecein, hoje, mais legítimas do que as obras que se fecham numa intenção de significado único. De modo que aquilo que, para a literatura clássica, era a aberração, para nós passou a ser a própria condição da criação. Este movimento é um movimento crescente desde o modernismo e que adquiriu uma importância extraordinária no nosso tempo, com a criação dos sentidos possíveis, dos sentidos desmontáveis, como em Cortázar, e a invasão da ficção pelo insólito, como em Guimarães Rosa, como em Murilo Rubião, como tantos outros da ficção corrente, e na poesia as tendências às quais o Affonso fez referência.
Para terminar: o problema da dissolução da narrativa realista pressupõe todos esses itens arrolados até agora. A mesma crise de superação do mundo referencial em favor de produtos que se bastam a si mesmos ocorre na ficção. Isso está ligado a um fato marcante nos nossos dias, que parece relacionado ao fato também marcante no terreno. social atual, que é a completa transformação das hierarquias sociais. O nosso tempo é de uma recomposição total das hierarquias tradicionais, com a força que a luta de classes assumiu, com a substituição da posição das classes e as tensões nesse sentido. Na· literatura é o problema da transformação dos gêneros lite-
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rários; houve uma perda de pos1çao dos gêneros, uma fusão de gêneros, como decorrência dos elementos colocados em contextos que são alternativos, são paralelos ao mul)do existente, ou seja: no limite nós temos a antimimese. Para terminar, lembraria esse movimento chamado "contracultura" e gostaria de formular a seguinte pergunta: seria possível nos contentarmos com essa literatura que nos atrai tanto, esse tipo de poesia que foi descrito aqui, esse tipo de romance não-mimético, esse tipo de descontinuidade e fragmentação? Isto af é uma coisa que corresponde exatamente às nossas necessidades e nós queremos isso? N 6s aceitamos isso, sem dúvida nenhuma, mas ao mesmo tempo eu chamaria a atenção de vocês para um caso muito curioso, que é a invasão da nossa literatura pelo gênero das memórias. Tudo aquilo que n6s colocamos fora do romance ou do conto estâ sendo recuperado nos livros de memórias. O sucesso de um livro como Baú de Ossos, de Pedro Nava, que é um livro de alta
debate Pergunta- Gostaria de saber o motivo da ausência de escritoras à mesa. Hoaalss - Pode crer que não houve "porco chauvinismo .. nenhum da minha parte. Foi uma mera circunstância que me permitiu, primeiro, um nome que eu reputava essencial e estou -satisfeito disso; segundo, procurei um criador; terceiro, um jovem e experimentado professor. Havia possibilidade de um veterano do pensa-
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qualidade literária, dâ a impressão de que os leitores vão procurar -esse pequeno público leitor de que fala Antônio Callado, que procura em livros de memórias - aquela espc> cie de caminho para o mundo referencial que a literatura lhes está negando. Nós temos a tentativa da Idade do Serrote, de M urilo Mendes, que é autobiografia caminhando não para o romance, mas para a poesia. Tanto num sentido quanto noutro, nós temos uma espécie de teimosia do mundo referencial, temos uma espécie de permanência desse desejo de ver a literatura representando o mundo em que vivemos. Então, eu não tiro conclusões, que não decido, não julgo. Eu apenas apresento aos senhores esse panorama.
Antônjo Houaiss - Não sei se vocês estão satisfeitos com essa primeira fase do painel. Eu, pessoalmente, estou satisfeitfssimo. Deveríamos ter agora 10 minutos para receber as questões formuladas pelo auditório, e logo em seguida prosseguiremos com os nossos trabalhos.
mento brasileiro, mas realmente não havia espaço para mais. De maneira que eu aceito a critica. Eu poderia ter pedido à Nélida Pinon para estar aqui e tenho certeza de que seria magnífica a presença dela. Poderia ter muitas mulheres altamente representativas, mas realmente não houve discriminação de sexo, porque não pensei em sexo. ao formar a mesa. Creio que essa é uma razão bastante. Inclusive porque a problemática da mu-
lher, dentro da literatura brasileira, não é tão diferente ·da problemática do homem: é uma problemática comum. Não falemos de Academia Brasileira de Letras, porque isso nada tem a ver com literatura, está claro. Então, não houve discriminação, foi um acidente simplesmente ... Era minha intenção ordenar as perguntas de forma mais ou menos seqüente, mas ao cabo das lO primeiras vejo que terão que ser formuladas mesmo de maneira salteada, picadinha, e que cada um intervirá de acordo com o apelo que lhe for feito . Pergunta - Gostaria que o senhor desse sua opinião sobre as causas da identidade, no momento atual, da literatura, da poesia, com a música popular. Noutros termos, elabore mais a matéria que você tão brilhantemente expôs. Affonso - Realmente a idéia matriz tem que ser melhor desenvolvida, mais pensada. Ela me surgiu quando escrevia um livro sobre música popular e poesia moderna brasileira. A idéia básica é de que até recentemente havia uma separação entre literatura e música popular. Essa separação me parece ser muito semelhante à separação de gêneros e outras separações e classificações sociais de nossas comunidades. A tendência à mixagem, à mistura, à massificação, a uma mensagem que se interpenetre em todos os sentidos, teria levado a essa intercorrência da poesia chamada erudita ou literária com a poesia popular. Mas entre os diversos fatores há um especificamente brasileiro: é que, a partir da década de 50, um público universitário de classe média começou a produzir
maciçamente música popular, através da bossa-nova, e depois intensificou-se o processo do que nos EUA se chama drop out, .:. os cai-fora da universidade, como Chico Buarque, Caetano, Gil e outros. São indivíduos, portanto, com uma certa sofisticação que se dirigem para a música popular misturando, adaptando um background, uma certa cultura que eles têm, à chamada música popular. Quer dizer: haveria um problema social que é essa classe média de estudantes e depois um cruzamento geral dos gêneros literários, inclusive gêneros populares e gêneros eruditos. Essa idéia de gênero é tão importante que se pode fazer até uma blague que não deixa de ser verdadeira: a mistura dos gêneros levou também a outros níveis, ou seja, à androginia, que é outro tipo de mistura de gêneros ... Houaiss - Há duas perguntas dirigidas · a Antônio Cândido: a primeira, ressalto que não está assinada, e tem o fato curioso de não ter caracterização, na letra, do sexo de quem a mandou: "Qual o autor brasileiro preferido? Te adorei". Mas para o prof. Antônio Cândido, que responderá a essa adoração como quiser, a pergunta principal é a seguinte: "O problema da necessidade de um mundo referencial em literatura não reflete um problema maior de filosofia do próprio questionamento do ser humano em que ele se desvencilhou de uma série de valores sem, contudo, encontrar outros?
Antônio Cândido - Eu diria que, sem dúvida nenhuma, o problema da necessidade de um mundo referencial em literatura... f:
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claro que a relação do momento de literatura extremamente referencial e mesmo reprodutiva, como o naturalismo, pressupunha uma visão do mundo baseada numa certa filosofia que pressupunha a integridade do objeto, certo tipo de relação sujeito/ objeto. Depois que houve a relativização do conhecimento científico, o princípio de determinação, tudo isso está ligado diretamente a essa questão. Sobre a primeira pergunta, sobre o meu autor brasileiro preferido, eu não saberia responder; aliás, se soubesse não responderia porque sou mineiro. Pergunta - Traçado o paralelo, com perfeição, entre o Brasil grande e o Brasil pequeno, qual a possibilidade de o escritor, como cabeça pensante, liderar e preparar uma mudança social, colaborar na aceleração do processo da revolução brasileira? O romance rural seria a primeira opção? A ida dos intelectuais para o campo a fim de se dedicarem integralmente à sua obra? Callado - A ida dos intelectuais para o campo, até que eu acho simpática. Eu, por exemplo, gostaria muito da idéia. Agora, quanto a esse romance rural, não; não acho que seja o caminho; quem quiser fazer romance rural que o faça, e pode fazer muitíssimo bem, inclusive dentro mesmo das características modernas tão
· bem descritas aqui pelo Antônio Cândido. Mas eu não acho que isso é o importante. O importante é que o escritor, como inlectual, participe, que ele não se isole, ainda que ele queira, por temperamento, por decisão, fazer
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uma obra inteiramente desligada de uma mensagem social direta. Isso é de somenos importância. O importante é que ele tenha presença e não se furte às manifestações. Realmente, eu não posso imaginar que alguém aprove exatamente o meio como nós temos evoluído como país. Acho que o escritor, quando pensar assim, dev_e dizê-lo, e acho, inclusive, que ele deve pensar dessa maneira. Houaiss - A próxima pergunta é dirigida à mesa e pede o favor, se possível, de se ler mais uma vez a mensagem de Alceu Amoroso Lima. Não irei lê-la pelo simples fato de que a minha esperança é de que essa mensagem, dentro de alguns poucos dias, venha a ser publicada na coluna regular de Alceu Amoroso Lima no Jornal do Brasil. Prefiro que vocês a leiam impressa do que a ouvirem de novo, porque creio que poderão pensar um pouco mais tendo o texto à disposição de vocês. Pergunta - Gostaria que você explicasse as razões pelas quais o Ciclo de Debates atrai tanta assistência e tão poucas questões. É que todo mundo anseia apenas porrespostas? Affonso- Não sei se entendi a pergunta. Tem muita questão aqui. Porque atrai tanta assistência, é óbvio: há uma certa comoção, uma certa saudade, um certo banzo da companhia .. . Pergunta - O senhor situou a tendência da literatura num curto período do tempo. Como ocorreu essa evolução nos dois últimos séculos? Dentro dessa visão global a essência literária não foi purificada? A colocação feita daquela for-
ma não coloca a presente análise numa posição imediatista? Antônio Cândido - Sem dúvida nenhuma existe uma visão muito imediatista. Deu para perceber, inclusive, o seguinte: destaquei aspectos que são, vamos dizer, os mais contundentes do nosso tempo. Deixei de mencionar que, ao lado dessa tendência, continua a haver, por exemplo, no Brasil, produção literária ligada a uma visão ortodoxa, ou uma visão mais clássica, de alto nível. Eu me restringi aos aspectos daquele pressuposto de vanguarda, do qual falei previamente. Ficou de fato imediatista. Também é verdade o que diz aqui a pergunta, que nesse processo de,depuração, que veio ao longo desses dois séculos, houve depuração lírica, por exemplo: uma concentração de todos os gêneros num campo cada vez menor, cada vez mais específico, cada vez mais depurado, que levou até o fim dos gêneros. São os problemas da pureza. Quanto a fazer o retrospecto dos dois séculos, evidentemente não é possível. Pergunta- No Brasil de hoje, vivese uma situação em que os literatos se defrontam não apenas com palavras, mas também com atos que em certos momentos os tolhem, como escritores e como cidadãos. Qual a opção ou opções? Existem? Qual, se no quadro político nacional a participação está reduzida a duas legendas partidárias, Arena e MDB? Callado - Para começo de conversa, acho que tanto Arena como MDB podem eles próprios tratar de uma expansão de dentro para fora, que lhes aumentem a co-
municabilidade. Agora, no momento, realmente não há opções fora desse bipartidarismo, mas pelo menos já há. a consciência de que o bipartidarismo não está funcionando bem. I: uma conquista pelo menos de conscientização do problema. E se realmente a nossa distensão interna caminhar melhor que a da URSS e dos EUA, por exemplo, acho possível que dos próprios partidos possam sair rebentos novos que venham alterar essa situação. Mas no momento não vejo, de fora, como isso possa ser possível, para falar com franqueza. Houaiss- Há uma entrevista recente, saída em O Estado de S. Paulo, de Afonso Arinos de Mello Franco, de certo modo tocando nessas questões. Eu gostaria apenas de referir um fato que me parece muito relevante de toda a sua entrevista, em aditamento ao que acaba de dizer Antônio Callado. Essa referência num cotejo entre os dois partidos legalmente existentes no país alude a um fato público e notório que foi o quase inesperado avanço de um deles. E ele diz taxativamente: "Não foi o MDB que fez o eleitorado, foi o eleitorado que fez o
.MDB". Pensem nessa questão, leiam a entrevista e compreenderão que há aí um certo sentido de possibilidade. Pergunta - Você poderia dissecar um pouquinho mais o movimento tropicalista? · Affonso - A idéia básica do tropicalismo, em ligeiras tintas, é de que o artista brasileiro deve assumir as contradições de seu país, as contradições dos trópicos, e assumir essas contradições implica em ter uma
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visão crítica sobre a trad)ção e sobre o presente nacional. Para: exemplificar: quando Caetano Ve- 1
loso faz Tropicália. que todos vocês conhecem, na verdade o texto é uma espécie de rapsódia, é uma montagem de elementos pertencentes a faixas diversas da cultura brasileira. Nessa letra entram Carmem Miranda, Iracema (de Alencar), Roberto Carlos, iê-iê-iê, os Beatles, enfim, uma súmula cultural crítica da situação onde vive o brasileiro médio e implicitamente o cantor médio brasileiro. Agora, isso é coordenado dentro de uma certa visão política que estilisticamente é permitida pela paródia, ou seja, ele se apropria de te~tos existentes na literatura e na música, inverte o sentido desses textos, para criticar uma ·determinada realidade. De maneira que, quando em artes plásticas também começa a haver uma crítica assimilativa, o chamado kitch, da pintura de parede, das andorinhas, -dos colibris, dos pingüins na geladeira etc., isso é uma tentativa de incorporar a Zona Norte, o chamado mau gosto, ao mesmo âmbito estético. Quer dizer: é na verdade, é um esforço de maioridade crítica. Em vez de continuarmos diante das belezas gregas ou das belezas estatuídas no Brasil, assimilar aquele mundo que Nélson assimilou tão bem, e Dalton Trevisan também assimilou tão bem, nos subúrbios de Curitiba. Seria um assunto muito longo, mas essas duas canções servem bem para mostrar isso, uma de Caetano V eloso e outra de Torquato e Gil, chamada Geléia Geral. Pergunta - Há algum critério cientificamente válido que nos possibi-
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lite afirmar que um livrinho de bolso da Bruguera, um livrinho popu· lar, popularesco, não é uma obra de arte e que Quincas Borba o é? Antônio Cândido - Ressalto o fato de que, por ser uma coleção popular, não significa que não contenha obras que sejam de arte. Agora, partindo do pressuposto que se trata da oposição entre um livro de pouca valia e o Quincas Borba, o único critério que se poderia propor como cientificamente válido seriam as análises estruturais adequadas, não estruturalistas. Porque análise estrutural adequada mostraria a coerência do discurso, e um livro estruturado de acord~ com uma certa coerêl)cia é um livro artisticamente ·, vá,lido, e um livro que não seja estruturado de acordo com uma certa coerência não é um livro artisticamente válido. Pergunta - Você poderia expor com mais detalhes o papel do Mobral (ou a política educacional do govern-o) de não identificar a literatura ao nosso povo, que é o grande Brasil? Callado - O Mobral, em si, evidentemente, é uma iniciativa merecedora de elogios. Num pais com tantos analfabetos, diminuir essa carga de adultos não alfabetizados é um programa legal. Só há um problema com o Mobral: é que ele por definição deve durar pouco no tempo, isto é, alfabetizar os adultos e extinguir-se a si mesmo. Para isso é preciso que haja a contrapartida de unia oferta muito grande de educação no nível infantil. Do contrário, nós vamos eternizar o Mobral e esperar que as crianças cresçam sem saber ler para depois atendê-las no Mobral. Agora, se
houver essa contrapartida, está certo. De qualquer forma, eu gostaria de saber a data de extinção do Mobral. Isso é fácil de calcular, pela fáixa de idade etc. Quanto a segunda parte, não será exatamente que o governo não queira · difundir a literatura entre o povo. É que realmente a oferta de literatura encontra esse universo muito pequeno, e portanto reduzido, num país que admite ainda a existência de 30% de analfabetos. Há uns 30% que, digamos, chegarão a ler jornal, mas não chegarão a fazer parte de um universo cultural mais denso. É um pouco o papel da literatura ir forçando essas margens restritas e de qualquer maneira lutar, como eu disse antes, para que o Mobral funcione bem e rapidamente, e que as crianças aprendam ·a ler em tempo e hora. Pergunta - Por que a invasão das correntes estruturalistas na universidade, principalmente na área da crítica literária? Será um escapismo alienante e cômodo da parte dos professores, a fim de evitar comprometimento com as correntes críticas mais engajadas com o social e o político? Affonso- A pergunta é boa porque nos possibilita fazer uma observação pequena mas que creio fundamental. Já se repetiu muito que não existe estruturalismo, e sim estruturalismos diversos. Além disso, a idéia de que estruturalismo é simplesmente, puramente, algo reacionário, formalista, é uma idéia de quem tem pouca informação no campo. Existem diversos teóricos que trabalham dentro do estruturalismo que adotam linhas sociais e políticas bastante agressivas. O que
diferencia o estruturalismo do nãoestruturalismo, da crítica social, não é que um é alienado e o outro social, não é nada disso. São instrumentos para operacionalizar o texto. Há um certo instrumento para desmontar o texto, reconstruir seu simulacro e outras palavras que tais. Portanto, a pergunta é bem intencionada, mas reflete um certo equívoco geral e não uma verdade. Eu mesmo tenho um livro de análise estrutural de romances brasileiros e não sou estruturalista, e esse livro faz, na verdade, um apanhado da · ideologia da escrita do romance no Brasil. O estrutura~ lismo, nesse sentido, com todos os seus defeitos, tem muito mais instrumentos para se fazer-a crítica da ideologia do que qualquer outra corrente. É uma corrente que ensina, dá instrumentos para se ler o inconsciente da obra, a enunciação, a sua camada profunda, que nos possibilita ver a ideologia oculta atrás de certos textos. Nós às vezes pensamos que um texto é muito pra frente, muito revolucionário, e uma decomposição de seus elementos vai demonstrar exatamente o avesso. Mas o oculto nem sempre é
·visto pelo leitor médio. Pergunta - Gostaria que você relacionasse melhor a chamada obra aberta e a ambigüdade como valor criativo com o nosso tempo e as suas características . Antônio Cândido - Acho difícil responder a essa pergunta porque é todo o problema que se tem que abrir. Eu apenas lembraria de novo o que já disse nas palavras que pronunciei: que a questão da obra aberta é uma questão que está ligada à contingência da crise dos gê-
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neros. Portanto, significa o fim de uma visão do mundo, significa o fim da certeza, o fim da possibilidade de se atingir a uma visão unívoca; a própria pergunta já contém a resposta, ao relacionar a obra aberta com as características de nosso tempo, que é essa imensa transição, a busca de novas certezas . A teoria da obra aberta é uma teoria que, sob certos aspectos, reflete as perplexidades de nosso tempo. A pergunta é muito interessante; mas é tão geral que a gente só pode responder assim de um modo um tanto banal, dentro dessa generalidade toda. Pergunta - l) Qual a mensagem final de Quarup? 2) Você o relacionaria com o problema que você colocou de posse da terra? 3) Qual a sua intenção ao fazer de um padre o -.,ersonagem central do livro? Callado - Para começar pelo fim, como já disse certa ocasião o Pasquim, os padres são hoje as únicas pessoas que realmente querem se casar, as únicas pessoas que estão procurando rumos que de certa forma já foram palmilhados
e acho, brincadeiras à parte, que trazem para o processo geral de um país, sobretudo um país como o Brasil, uma carga muito importante que é exatamente uma educação tal como eles a receberam e de uma fé que eles freqüentemente conservam e talvez até aumentem no contato com uma realidade mais bruta, mais direta, com menos proteção. Quando à mensagem de Quarup a gente sempre prefere que os leitores escolham de certa forma alguma coisa que os impressionou
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mais. O livro é divididÕ em várias partes e tem, portanto, aspectos variados da realidade brasileira. Quanto a segunda pergunta, certamente existe ali um problema de posse da terra num sentido de que, como eu disse na minha explanação inicial, isso é a coisa mais injusta que existe num Brasil tão cheio de injustiças. De maneira que ela é injusta mesmo e está presente no fundo do livro como leit-motiv, uma força fundamental. Pergunta - Como alunos de faculdades de letras pediríamos aos membros da mesa, que são pessoas representativas da cultura literária brasileira, que 'Usassem sua influência para que fosse incluído no currículo de graduação em letras uma cadeira de criação literária. Nós absorvemos muita teoria. Callado - Acho a proposta corretíssima porque, exatamente como vimos aqui, pelas exposições de Affonso e do Cândido, há hoje um grande sopro de novidades na literatura, e uma força criadora muito importante mas que também. comunica · üma perplexidade bastante grande. São teorias novas, meios de ver o homem bastante distintos e que evidentemente se complicam pela filosofia, pela sociologia, quer dizer, são estruturas mentais, artefatos quase, de uma certa forma, e que requerem um ensino. Acho a idéia corretíssima, sobretudo numa fase assim criadora mas .um tanto perplexa como a nossa e sobretudo num país como o nosso. Cândido - Eu deixaria um pouco de lado a questão só para tocar num aspecto lateral: a idéia de um
curso de criação literária é sempre uma idéia interessante, muito viva. Há um desabafo, dizendo que há teoria demais, e isso eu acho realmente uma das coisas mais graves que · estão acontecendo nas faculdades de letras do nosso tempo. Falo de maneira insuspeita porque sou exatamen(e professor de teoria literária e tenho constatado com um certo pavor que todas as cadeiras de literatura estão se transformando em cadeiras de teoria literária. ·Literatura inglesa, francesa, portuguesa, estão se transformando pouco a pouco em cadeiras <;te teoria literária. Tenho constatado nos questionários que passo aos meus alunos e nas entrevistas que faço, que existem alunos já de pós-graduação extremamente habilitados a falar de toda a Europa, de J úlia Kristeva, dos teóricos em moda, mas que não leram Dostoievski, não leram Tolstoi, não leram Victor Hugo, não leram Racine, e isso é gravíssimo. Nas faculdades está havendo uma tendência à substituição dos textos literários por textos de teoria literária. Isso é extremamente grave. É preciso que se alerte enquanto é tempo, porque senão vai haver um desvirtuamento do ensino da literatura. Teoria literária é feita para ensinar a literatura, e não a literatura para ser 'absorvida pela teoria literária. Nesse sentido, o resultado principal é que está havendo uma tendência para um extremo pedantismo intelectual, com essa invasão de teoria literária. Isso é muito grave porque o estudante perde contato com a realidade viva que é a literatura, para ficar com a reflexão sobre a literatura. Eu gostaria de observar ape-
nas o seguinte: é que muitas disciplinas universitárias são disciplinas que levam a um ·contato direto do estudante com a realidade - é o caso da sociologia, é o caso da botânica, da zoologia -, enquanto que a literatura leva a um contato que já é indireto: o estudante não é levado ao contato com realidade mas ao contato com textos literários que por sua vez provêm da realidade. De maneira que estabelecer entre a realidade e a literatura uma nova mediação, que é a teoria literária, é fundamental para os estudos teóricos, mas é perigoso para a sobrevivência da literatura na universidade. Houaiss - Creio que laboraremos fundamentalmente em torno das mesmas idéias. Em principio, sinto que estou em total concordância com a idéia de uma cadeira de criação literária. Mas eu apreciaria uma cadeira de leitura de literatura, e que constaria do seguinte: exatamente na seqUência de idéias do professor Antônio Cândido, acho que as teorias estão absorvendo tempo demasiado, com prejuízo do tempo que deveria set dedic'ado à leitura comparativa e critica dos próprios textos. Eu não compreendo que uma pessoa possa entender o quanto de inovação haja num texto moderno sem conhecer textos antigos, do mesmo modo que não compreendo que se possa reputar uma obra melhor ou pior sem ler essas obras. De maneira que as direções que estão sendo dadas muitas vezes permitem que as pessoas se pronunciem sobre livros que ttão leram, sobre correntes literárias de que nunca tomaram conhecimento, a não ser através das descrições teóricas, e isso é um
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grande mal. Mas a criação literária presume uma terceira etapa. Admito que a universidade possa inclusive engajar em mais bem dotados a fim de que eles produzam literatura produzam literatura de certo modo sob estímulos como sé faz hoje em dia com a pintura, que não é ensinada canonicamente, mas pode permitir uma certa direção crítica, isso também seria possível. Em outros termos, a:cho que a reconcerção do ensino de literatura tem que ser refeita inteiramente a fim de que os percen-· tuais dados para a teoria, para a leitura e para o forjamento de literatura, fossem divididos um pouco mais fecundamente, de maneira que o conhecimento de literatura, que já é uma forma de conhecimento indireto, não fosse em terceira instância indireto. Que pelo menos se exigisse do aluno a leitura de uma amostra ampla de obras r~almente produzidas. Affonso - Eu acho também a pergunta muito oportuna, ·concordo de urna maneira geral com as ponderações anteriores e gostaria de adicionar o seguinte: no ano passado, nós realizamos na PUC um encontro nacional de professores de literatura, e um dos problemas levantados e depois aparecido na recomendação final é que exatamente as faculdades de letras começassem a criar os cursos de criação literária. A idéia vinha disso tudo que foi falado aqui, de um descompasso que há entre viver a literatura. e ler sobre literatura. Quer dizer, o artista plástico nos cursos de arte pinta, ele faz a coisa, e o estudante de letras não faz, ele lê sobre aquilo que pensa que conhece. Eu
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tenho uma experiência nesse sentido. Tive a felicidade de passar nove meses nos EUA, num laboratório que era assim: os alunos - havia uma parte internacional e uma parte doméstica - aprendiam, faziam um curso para escritor, que pode ser criticado de certo ponto de vista, mas tinha o mérito de dar uma série de instrumentos que o indivíduo às vezes leva 10, 20 anos para aprender, quebrando a cara, e se ele se mete estudando metodicamente com quem tem mais experiência, poderá avançar mais rápido. E no final dos cursos, ao invés de ter que ler a teoria toda de fulano, analisar livros de beltrano, o indivíduo poderia fazer um livro de poemas, um livro de contos, ou um romance como conclusão, como a tese de seu curso. Eu acho isso algo importante. Houaiss- Acho que devo rematar essa questão que foi tão bem formulada dizendo que, se órgãos de publicidade quiserem consignar o fato - espero a concordância da mesa -, a mesa concorda em que, em princípio, a criação da cadeira de criação literária nos cursos universitários seria, com as características àqui estabelecidas, uma coisa extremamente louvável. Pergunta - O prof. Antônio Cândido falou da expansão da teoria dentro das faculdades de letras. Isso não ' estaria levando a guerrilhas teóricas internas entre os professores? Affonso - A pergunta é pertinente e maliciosa. EU: diria que de certo há realmente algumas guerrilhas teóricas que se estabelecem no mesmo plano daquilo que eu chamei de luta pelo literário. Essas pessoas
que lutam por impor certas teorias na verdade gostariam de ser senadores, presidentes, coisas assim. Quer dizer, na literatura se repete a mesma coisa. Pergunta- Todo favelado tem sua TV mas não tem sequer um livro . Você concorda que é por causa da TV que estão sendo muito vendido os livros Gabriela Cravo e Canela e Helena?
Callado - Eu não estava fazendo nenhuma restrição à TV. Pelo contrário, acho que, ela pode desempenhar um papel importante, e o fato que eu mencionei de que quase todas as casas de favelados têm TV e nenhuma quase tem li~ vro é o fato de que a TV realmente atende de uma forma direta a uma sociedade onde existem tantas pessoas que não sabem ler ou que apenas sabem ler. E que a TV venda livros, como está escrito aí, não só é verdade como também é excelente, não há menor dúvida a respeito. O que eu tinha exatamente a dizer, neste nível, é que o livro está perdendo terreno porque não há uma série de reformas que voltem para ele diretamente - sem intermediação da TV -, ou seja, pessoas chegam à idade de pensar sobre si mesmas e sobre o país em que vivem. Este na minha opinião, o ponto fundamental. As iniciativas de TV que levam à venda de livros certamente não levam à venda de livros eritre as pessoas que não sabem ler.
Houaiss- Vou aproveitar o Callado para uma .questão que é a ele pertinente: quando você escreveu Quarup respondia a uma necessidade de escritor ou de cidadão?
Callado - Espero que aos dois. Eu não gosto de dissociá-los, e eu escrevi um livro que, de certa forma, o cidadão também teria de escrever. De modo que eu aí reclamo a minha unificação diante do livro. Per,gunta- Onde está o nexo social, em termos de Brasil, que o senhor mencionou mas não explicou? Faltou também explicar o compromisso do intelectual e do escritor. Cândido - Quanto ao nexo social, eu não disse que ia fazer um nexo entre aquelas idéias e o Brasil. Falei do nexo daquelas características com o quadro social. Foi quando me referi, por exemplo, à questão da ligação da fragmentação com a crise da civilização. Estava . falando em termos gerais, não propriamente do Brasil. De modo que eu penso que em termos do Brasil só são características da literatura brasileira que estão manifestando condições de crise por que o mundo está passando. Foi o que eu procurei mostrar rapidamente. Agora, o compromisso entre o intelectual e o escritor, esse eu realmente não expliquei, mas não estava no meu projeto. Eu teria muito prazer em fazê-lo, é um tema de que eu gosto muito. Pessoalmente, parto dessa dicotomia acho que existe o intelectual e existe o escritor. Alguns são mais intelectuais, são escritores muito respeitados mais como intelectuais. Há outros que são muito bons escritores e maus intelectuais, e há outros ainda que reúnem as duas coisas: são excelentes escritores e intelectuais, como é o caso de Antônio Callado, cuja obra é modelo sob esse ponto de vista do empenho. Pessoalmente acho que o ideal
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seria que o escritor fosse consciertte da sua posição de intelectual, e no momento atual o intelectual só tem uma posição, que é se opor; para mim, o intelectual é sinônimo de oposição. Dentro da sociedade em que nós vivemos, na medida em que o escritor assume a consciência de que é também intelectual ele se opõe. Ainda que ele não se oponha na mensagem estética especifica da sua obra, ele se opõe enquanto intelectual. As vezes ele se opõe unidamente, ou esquizofrenicamente, mas ele deve se opor. Para citar outro Antônio, esse imenso, que é o Antônio Gramsci: ele fàlava da literatura caligráfica que, no fundo, chegava à literatura que ele chamava ecolálica, ou seja, a literaturà que fala seín dizer nada. Para Gramsci ·não havia necessidade de uma determinada obra trazer uma mensagem imposta, explícita, mas era muito · bom que, como necessidade da estrutura artística da obra, houvesse urna mensagem clara e definida. Acho que esse é o ideal. Pergunta - Gostaria que qualquer um da mesa abordasse o problema do escritor brasileiro diante do mercado de trabalho.
Houaiss - No caso concreto do mercado de trabalho brasileiro para o escritor - eu alargaria um pouco o campo e colocaria aqui o intelectual que vive da capacidade de redigir. ~esse especificamente o problema, porque se eu colocasse o intelectual na sua amplitude eu teria que incluir toda uma série de outras profissões cujo problema, inclusive, no mercado de trabalho, me parece diferente. Então eu vou colocar o problema do indivíduo
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que quer viver da sua capacidade es· critora. Ele se gradua, então, desde, digamos, um redator de empresa jornalística, ou de obras colegiadas, até um editor, no sentido latino do termo, isto é, responsável por um rumo colegiado de trabalho. Nas condições presentes, há três camadas pelo menos que eu vejo perfeitamente características e todas elas saturadas de mão-deÓbra. Por que essa saturação? A resposta é mais ou menos óbvia: é porque realmente o mercado da obra escrita no Brasil é extremamente restrito. Quando nós pensamos em termos de uma população de 110 milhões de habitantes, com 70 milhões teoricamente alfabetizados, dos quais 40 milhões estão fora do circuito econômico, reduzindo portanto a 30 milhões de brasileiros - e eu penso que a média de livros vendidos no Brasil per capita não chega a cinco, durante um ano, e lembro por exemplo, para comparação, que na Finlândia. se os dados da UNESCO são reais, se consomem 400 livros anualmente por habitante, dando uma relação de 800 para 1 - os senhores poderão facilmente compreender que o mercado de trabalho intelectual do escritor no Brasil é extremamente restrito. As faculdades de letras têm gerado um número não pequeno de escritores potenciais e, quando não, de operários do livro. Então o quadro não é fácil. Concretamente, na minha experiência de pessoa procurada nos últimos cinco anos, eu tive pelo menos um depoimento que eu faço
· com toda a tristeza, 40 ou 50 originais sobre os quais pediram que eu me pronunciasse. E não tenho dú·
vida em afirmar que desses 50 originais pelo menos 20 mereciam publicação. Isto inclusive cria uma enorme dificuldade em estabelecer os critérios sob os quais os livros são editados no Brasil-o que alargaria o âmbito do mercado de trabalho. Até agora o árbitro é exclusivamente o editor no sentido brasileiro. Em certos casos, ele tem um corpo de consultores para decidir sobre as obras a serem publicadas. Evidentemente, excluem-se destes casos os escritores consagrados, mas corremos o risco de ficar sempre nos escritores consagrados. Quem ainda não era e já o é deve se lembrar da luta que ·teve para conseguir o acesso à publicação. Esse quadro não está melhorando de modo nenhum no Brasil, e na conjuntura presente eu nem enfoco apenas circunstânciàs sensoriais ou políticas; enfoco em quadro geral a situação do livro no mundo inteiro. Todos estão a par do encarecimento brutal que sofreu o livro em toda parte. Todos estão a par do fato de que no Brasil há um tal círculo vicioso formado que eu não vejo, a não ser sob a forma de simpó'sio, a possibilidade de uma resposta imediata para o problema. Refiro-me no início a três camadas de trabalhos intelectuais que correspondem a três camadas do mercado de livro. Há os livros, no Brasil, que buscam o espectro largo de leitores: esses livros são, no seu conjunto, extremamente necessários porque até agora, não sei se notaram, nós falamos de literatura excluindo ainda que implicitamente a realidade de que, sob um nome de literatura, nós poderíamos pôr rubricas muito mais
amplas. do que as que foram aqui consideradas.
Eu, pessoalmente, com licença dos presentes, não sou de modo algum daqueles que fazem crítica a certos escritores de relativo grande bom êxito, entre nós, que fazem uma literatura mais acessível. Estou me referindo especificamente, por exemplo, a José Mauro deVasconcelos~ que eu acho um escritor de extrema valia e de extrema consonância com o largo espectro de leitores brasileiros. Prefiro a existência de leitores desses livros à inexistência de leitores. Ele deve corresponder a uma necessidade viva de nosso meio, e o êxito dele não é produto de mera propaganda. Se nós subirmos mais o nível, veremos então que os títulos diminuem de tal maneira que há edito- · ras que conseguiram tornar viável a produção de livros na base de três mil exemplares, o que é, fora da ordem da poesia, um contrasenso, porque realmente o investimento social que um livro pede é tal que não se justificaria a sua publicação com três mil exemplares. Sei de uma editora em São Paulo · que está tentando editorações de no mínimo 30 mil exemplares, obtendo qualidade muito boa, por um preço extremamente razoável, guardadas as proporções. São essas tentativas que talvez melhorem o mercado de. trabalho intelectual brasileiro na indústria do livro, na criação, inclusive do livro, mas ao momento ;tinda é extremamente inglório. Num outro nível, existem editoras que dão uma larga margem de trabalho, mas espasmodicamente. São aquelas que produzem livros de porta a porta,
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livros que são vendidos de porta em porta. Esses livros geralmente têm êxito material quase que garantido, a priori. Raros são aqueles casos em que há um malogro, desde que haja uma organização empresarial bem feita . Mas a produção desses livros, em geral livros colegiados, coletivos, enciclopédias, obras de vários tomos, essa tem, como eu disse, um engajamento no mercado de trabalho espasmódico. Durante a produção engaJam um número não pequeno de trabalhadores intelectuais, e tão pronto se arremata a produção os mesmos são desengajados. O quadro é o que Antônio Callado delineou em poucas palavras, mas de um modo muito claro. Nós estamos com uma pobreza de leitura espantosa neste país, e inclusive porque não criamos a tradição da leitura. Antes de criá-la. fomos invadidos por sucedâneos - e isso seria outro ponto - em que algo de literatura aparece sob uma forma sucedânea, através de outros veículos. Na TV há literatura. Eu não estou omitindo uma verdade, não: no rádio há literatura. Então, essas formas que são mais acessíveis estão impedindo a criação daquilo que historicamente devia ter sido estabelecido antes: o hábito da leitura. Creio que essas considerações é que tornam o quadro brasileiro tão terrível que a pergunta é essa: teremos alguma vez leitores de literatura? Será que, como muita gente diz, a literatura já era? Ou eventualmente há um vício estrutural porque, eu presumo, pelo menos; nós não podemos sobreviver sem literatura e o quadro não é favorável ao seu florescimento? Notem
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bem que inclusive o fenômeno da criação vanguardista, que tem tantos méritos a favor de si, tem extremos de méritos, por outro lado, - porque, na medida em que a vanguarda é o ponto de referência de qualidade, mas é iniciatica no sentido de que exige que os indivíduos, para cederem à vanguarda, tenham feito um curso prévio de literatura de outros tipos -, na medida em que isso ocorre, nós 'estamos preferentemente oferecendo produtos de vanguarda, estamos afastando eventualmente através desses produtos a potencialização de leitores que iriam chegar iniciados a ela. Então esse é o quadro sobre o qual eu posso falar com um certo constrangimento. com certa tristeza, e não vejo ainda como vê-lo abrir-se. Uma das condições necessárias · é efetivamente o barateamento do papel, a fim de que haja editoração em número muito maior, para que o livro pudesse baratear-se e eventualmente aliciar um número maior de leitores, que ludibriados pelo barateamento acabassem gostando de ler literatura. Isto é um empreendimento que eu só vejo possível através de um subsídio altamente generoso da parte do Estado . Pergunta - Como o desenvolvimento social, e portanto literário, do Brasil é diferente do resto da América Latina, talvez não caibam comparações. No entanto, a literatura hispano-americana tem no Brasil uma penetração tão grande ou maior que a própria brasileira, e a solução encontrada pelos vizinhos para ter tempo integral para escrever foi justamente universalizar-se, exilando.:se tem-
porariamente ou não. Entre Paris e Nova Y ork encontramos Cortázar, Scorza, Puig e muitos outros. No Brasil, se ficar o bicho come mas se correr, será que pega? Como os escritores brasileiros têm resistido? Será que, saindo do Brasil os escritores, sua literatura deixaria de ser brasileira? Houaiss- Eventualmente está convidando Callado a que saia do país? Callado - Acho correto isso de que a literatura hispano-americana tenha validez no Brasil, e considero excelente. Inclusive porque não é umá literatura diferente da nossa. Por exemplo, a popularidade no Brasil de Cem Anos de Solidão decorre de que todo mundo conhece Macondo que, certamente, não está na Colômbia, está em qualquer parte da América Latina. Existe sem a menor dúvida um imenso terreno comum entre nós. O lamentável é que se conhece tão pouco, que haja um intercâmbio tão pequeno, mesmo porque a lite~atura hispano-americana, como a brasileira também, está dando tudo em matéria de romance. Temos a vanguarda, temos os livros de sólida tradição e grande beleza, como Cem Anos de Solidão, temos a prosa realmente perturbadora de Borges, com sua capacidade infinita de invenção, tudo isso é um enriquecimento também da literatura brasileira e acho o "fenômeno correto. Quanto às viagens, acho que o escritor latino-americano é especialmente viajeiro. No momento há vários; quase todos os latino-americanos que a gente possa lembrar de momento estão fora de seus proses, mas os brasileiros também viajam bastante. Re-
parem que o escritor latino americano primeiro acha horrível seu país e quer ir para Paris, Londres ou Nova York. Numa segunda etapa, eles voltam ao país de origem e com uma tal sofreguidão que em geral se embrenham pelos matos, vão conhecer até os índios de seus países. Isto é uma dicotomia curiosa. É o caso de Alejo Carpentier, é o caso de Garcia Márquez relembrando a Colômbia dele no exterior, de Cortázar. Eles vão aprofundando uma lembrança .depois de tentarem escapar dos seus países visitando civilizações já prontas, já feitas, com literaturas sedutoras, modelos atraentíssimos. Voltam depois ao seu país de origem para pesquisar essas origens até sob a forma de um instrumento musical misterioso, como foi o caso de Carpentier com Os Passos Perdidos. Então há uma unidade até de comportamento, me parece, entre os escritores americanos, e isso explica em grande parte a vaga atual do romance latino-americano de um modo geral no mundo, quer dizer, pelo menos dois argentinos conhecidíssimos e o colombiano Garcia Márquez - aliás, é curioso notar que, nesse processo de divulgação da literatura latino-americano, aparecem até escritores espanhóis que, parece, entram mais no esquema de América Latina. Há um processo de troca que me parece nãosó intenso como benéfico. Pergunta - O que está faltando para que a literatura brasileira atinja um respeito e uma repercussão realmente mundiais? Seria por que o Brasil ainda não alcançou uma posição econômica invejável? Até que ponto o progresso técnico,
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científico e econômico-social faz com que uma língua se imponha mais ou menos profundamente e em conseqüência sua literatura se torne mais ou menos conhecida? Existe essa relação país-língua importante/literatura importante? Affonso - A pergunta é ótima. Acho que a última frase é a própri~ resposta: existe uma relação entre o poder e a palavra, bu melhor, existe uma relação entre o poder e a escrita. Não é à toa que nas tribos obviamente primitivas o escriba era o indivíduo que mais tinha poder. Como não havia muitos escribas, era ele quem sabia da lei, era ele quem no final das contas legislava e aconselhava o rei. E na história dos povos a gente nota que alguns reis perceberam que poderiam assumir esse papel do enviado por Deus e do escriba, que é o que porta a lei. Assurbanípal, por exemplo, foi um deles. Ele passou a ditar as próprias leis além de ser o enviado de Deus. Existe um poema de Borges muito interessante em que ele diz que lá pelos anos tantos, na China, os imperadores tal e tal decidiram que a História iria
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começar com eles, e mandaram queimar todos os livros. Então existe uma relação entre a escrita e o poder. Quem determina que se escreva a História é quem tem o poder. E obviamente nós absorvemos a literatura americana, a francesa e outras por uma relação de força e background econômico. Claro que temos às vezes um livro extraviado do Oriente Médio, de um país exótico, mas isso não constitui a regra. Poder econômico significa poder literário. Houaiss- Eu vou ousar fazer uma tentativa de balanço desta noite. Tenho certeza de que muita gente sairá frustrada porque esperava respostas professorais e não houve respostas professorais, porque esse é um campo em que se fazem perguntas muito mais do que se dão respostas. Creio, porém, que as perguntas que nós nos formulamos reciprocamente farão com que pensemos um pouco mais sobre quão transcendente é, para nossa viabilidade de povo e de nação, a literatura, e procuremos divulgá-la um pouco mais entre os nossos semelhantes.
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