bernardes, josé augusto cardoso - revisões de gil vicente
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REVISOES
DE GIL VICENTE
JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES
SBD-FFLCH-USP
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DEDALUS • Acervo • FFLCH
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© Jose Augusto Cardoso Bernardes e Angelus Novus (2003)
Capa (maquetagem e grafismo): Francisco Romao
Impressao: G.C Graflca de Coimbra, Lda.
producao@graficadecoimbra.pt
ISBN: 972-8827-21-0
Dep6sito Legal: 204528/03
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3040-716 Coimbra
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Reservados todos os direitos de acordo com a legislarao em vigor
" I
1
MATRIZES E IDENTIDADE DO TEATRO DE GIL VICENTE
Em tempo de comemora0es, sente-se mais a falta de elementos unifkantes para perceber a obra de Gil Vicente. Faz-nos falra um rerrato, desde logo. Um retrato fisko como 0 que possuimos de Cam6es, por exemplo, mesmo contando com todas as incertezas que a esse respeito possa haver. Se tivessemos urn tosto, talvez Fosse possivel intuir nde a ener':' gia reguladora de uma obra tao vasta e tao diversa.
Nao ha urn rerrato fisico, mesmo aproximado e os problemas de identidade come<;:am aL Claro que possuimos outro tipo de aproxima<;:6es identitarias, de base cultural; mas, ate hoje, nenhuma ddas conseguiu suprir a ausencia de uma imagem que funcionasse como base de perscrutac;ao. Nao digo que atraves da fisionomia Fosse possivel derimir questoes biograficas essenciais: poderiamos alguma vez conduir atraves de um retrato, mesmo fiel, onde nasceu 0 dramaturgo? poderiamos determinar, a partir dessa base fragil e fortuita, qual a natureza e a origem da sua cultura? poderiamos apurar, olhando-lhe apenas para a expressao, se de foi ou nao realmente 0 ourives de D. Leonor de Lencastre, como quiseram alguns e nao quiseram outros? Esta claro que nao podiamos. Ainda assim, talvez algo em nos se pacificasse. As comemora<;:oes do 5. 0 centenario do lvlonologo do Vaqueiro teriam, pelo menos, um referente mais seguro e menos abstracto.
A falta de um retrato fisico, soma-se ainda a ausencia de elementos contextuais seguros. Pode evidentemente dizer-se que existe a obra, que e o mais importante e que a propria materialidade dos textos se devia bastar a si propria. Mas 0 argumento nao colhe inteiramente. Em termos de projecto dvico, comemorar uma obra naoe 0 mesmo do que celebrar uma figura tangivel. Para mais, a obra de Gil Vicente nao e "redonda"; nao e, tao-pouco, directamente confessional, como 0 sao as de Camoes, Bernar-
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dim Ribeiro ou Sa de Miranda, qualquer delas parecendo conduzir ao Eu da escrita. A circunstancia de se tratar de uma obra dramatica, acolhendo no seu plurivocalismo urn sem numero de tens6es, limita-nos imenso no acesso a subjectividade de quem a construiu; limita-nos mesmo na petcep~ao das grandes linhas de coerencia que sustentam os textos no plano estetico e ideologico. A propria condi~ao de "artista de corte", tantas vezes evocada em sentido redutor, nao se revela suficiente para subordinar a compreensao unilinear dos cerca de 50 autos reunidos na Copilaram. Visto na sua epoca e a luz das suas circunstancias,' 0 teatro vicentino traduz a confluencia de energias sociais e artfsticas que estao para alem de qualquer etiqueta sociomental, ocultando, na pratica, uma individualidade relativamente misteriosa.
E claro que podemos continuar a invocar a separa~ao comoda entre o autor e a obra. Mas esse argumento (ate ha poucos anos tido por concludente) perdeu tam bern hoje capacidade tranquilizadora. Em suma: urn retrato seria util para efeitos de consumo cultural e escolar; e talvez nao Fosse mesmo despiciendo para efeitos de percep~o crftica, uma vez que tambem at se tern feito sentir negativamente a sfndroma da pluralidade contraditoria, que ha tanto tempo vern afectando os esrudos vicentinos.
Na falta dessa referencia, as questoes tern que ser formuladas a outro nfvel. E sabido que 0 conhecimento acumulado em rda~ao a qualquer autor do passado resulta, em grande parte, de perguntas e respostas datadas. 0 caso de Gil Vicente, porem, deixa-nos a impressao de que a data de umas e outras esta por acrualizar ha muito tempo. E nao ha actualiza~ao possfvel sem se retomar a raiz do problema, reexaminando as pistas que, desde 0 inkio, vern configurando a aura daquele que e, porventura, 0
escritor mais singular de todo 0 nosso canone: singular, porque aparentemente l\iesligado de uma serie historico-literaria com predecessores e sucessores directos, no contexto portugues; singular ainda na extensao e diversidade dos modos, generos e registos estiHsticos que lhe andam associados.
Nessa revisita~o memorial, trata-se ainda de decifrar sinais: aqueles que 0 proprio Gil Vicente construiu no seu tempo (foram relativamente poucos os que chegaram ate nos); e, sobrerudo, os que outros tempos construiram e reconstruiram depois, num processo de apropria~ao de verdadeira caixa chinesa, ainda sem fun do solido e definitivo.
A forma mais segura de responder a esse desafio e - tern a pesquisa de fontes. Essa busca corresponde a urn programa de epoca nos esrudos literirios, em geral; mas em Gil Vicente e bern mais do que isso: do que se tratou sempre e do que se trata ainda e de suprir uma carencia
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de base, que se prende com a identificayao de uma figura sem coordenadas biogcificas e culturais minimamente precisas. Sem essa reconfigurayw de fundo e difkil inseri-Io na narrativa historico-liteciria; podera. ser mesmo custoso guardar-lhe urn Lugar no panteao das Letras, como se ve pela significativa reduyao do seu peso nos programas de Ponugues, recentemente verificada.
Mais do que cumprir urn simples preceito de investigayao epocalmente situado, saber de onde vern a ane de Gil Vicente converteu-se pois no sucedaneo de uma reconstituiyao identitaria. Alias, os estudos vicentinos tern estado, desde 0 principio, sob 0 efeito norteador dessa demanda; e continuam a esta-Io, justamente porque ainda se nao encontrou forma melhor de delimitar uma personalidade tao dens a que nao cabe num periodo literario ou numa estetica uniforme. Para prosseguir nessa indagayao e para se alcanyarem resultados Ilteis, e po is necessario saber exactamente onde estamos e como chegamos ate aqui. Como nasceu a imagem de Gil Vicente? Como evoluiu a percepyao da sua identidade estetica? Que preconceitos epocais e subjectivos se detectam nesse percurso de reconhecimento? Eis algumas das perguntas a que agora me proponho responder, com a consciencia de que qualquer tipo de pesquisa envolve 0 pesquisador em nfveis de maior ou menor suspeiyao. Em ultima analise, e ela que nos leva a renovar 0 ethose 0 objecto da propria investigayao. De tal forma que se pode dizer que, por dewis do biombo da pertinencia cientifica, qualquer estudioso se busca a si mesmo, atraves da verdade que the e consentida pelo nevoeiro do seu proprio tempo.
2. Tem-se estranhado que Gil Vicente nao tivesse sido objecto de mais menyoes directas por parte dos seus contemporaneos. Que nao tivesse figurado destacadamente no Cancioneiro Ceral, por exemplo. Mas esta estranheza atenua-se urn pouco se nos lembrarmos de que 0 tearro ocupava, no computo geral das artes, uma posiyao relativamente modesta (bern inferior a pintura e mesmo a outras formas de escrita, tidas por mais perenizantes). Ainda assim, a sua arte foi notada, desde logo, pel os dois principais quadrantes da cultura aulica: a tradiciona4 de extracyao iberica e a renovadora de feiyao humanista. Tenham-se em conta, para comeyar, os muito conhecidos testemunhos quinhentistas de Garcia e Andre de Resende, ambos contemporilneos de Gil Vicente. Urn e outro assinalam a novidade das invenyoes vicentinas em Portugal; mas, ao mesmo tempo, tentam descortinar-Ihe afinidades. Na famosa estrofe 186 da Miscelanea, nao deixou Garcia de Resende de salientar a inventi-
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vidade vicentina: "Ele f01 0 que inventou isto ca.", mas parece claro que o adverbio de lugar deve ser lido numa perspectiva de restric;:ao, que admite (ou consagra) a existencia dessas mesmas "invenc;:6es" nouttos lugares 1• De facto, segue-se imediatamente a formulac;:ao concessiva "posto que Juan del Encina 0 pastoril comec;:ou", evocando raizes bern concretas e funcionando como prevenc;:ao para urn registo estetico que poderia passar por original aos olhos de alguns espectadores lusitanos.
o eborense, por sua vez, descreve as festas celebradas em Bruxelas pdo embaixador portugues D. Pedro de Mascatenhas, em que se representa urn auto vicentino, para delas destacar, em primeiro lugar, a dupla qualidade de Gil enquanto autor et actor'(em clave plautiana, portanto); mas logo urn pouco mais a frente, lamenta, embora com notavel tolerancia, que 0 dramaturgo nao tenha escrito em Larim: "se nao escrevesse tudo em romanc;:o vulgar, servindo-se antes do idioma latino, teria ganho renome nao menor que 0 de Menandro na Grecia, ultrapassando inda a grac;:a maliciosa, 0 sal atico de Plauto, 0 romano, e a lepidez dos escritos de Terencio ... "2 Sou dos que tendem para pensar que esta apreciac;:ao, consagrada no Genethliacon, nao resulta do auto representado naquela circunstancia particular (fosse ou nao Fosse a Lusitania); antes encerra uma impressao global da obra vicentina que deveria corresponder, no limite, ao sentimento mais tolerante que 0 teatro de Gil Vicente poderia despertar no conceito dos humanistas.
Menos directa, mas nao menos importante e 0 eco da visao do auto perfilhada por outro italianizante; por Sa de Miranda, precisamente, no Prologo de Os Estrangeiros, comedia representada na Corte, em 1531, justamente quando a estrela de Vicente comec;:ava a empalidecer. E a propria comedia quem se apresenta, na tentativa de ser reconduzida a familiaridade do publico portugues. Evoca, para tanto, a sua ascendencia nobre e lembra os infortunios que the advieram da queda do Imperio romano:
1 De resto, as novas "inven¢es" de Gil Vicente surgem alinhadas, des de a estrofe anterior, com as grandes novidades europeias que entraram na Corte de D. Manuel. Sobre o assunto, veja-se Jorge Alves Osorio (1979-1980).
2 Sigo a criativa tradw;:ao proposta por C. M. de Vasconcellos, (Notas Vicentinas,
p. 10).
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"E assi como a sua queda foi grande, assi leva tudo consigo, ali me
perdi eu com muitas das boas artes, e af jouvemos longo tempo como enterradas"3
Mas logo surge a necessidade de uma demarca<;:ao vital:
"Ja sois no cabo e dizeis ora: nao mais, isto e auto! e desfazeis as carrancas"4
A versatilidade de assuntos e a coincidencia na lingua vulgar (" eu dos vossos versos tam bern vos fa<;:o gra<;:a") nao e suficiente para que se estabele<;:am confus6es: a comedia pretende situar-se do lado das "boas artes", agora tornadas a vida e os autos (os de Gil Vicente, subentende-se) constituiriam realizac;:6es "vulgares", nao compaginaveis com 0 requinte aulico, sem ascendencia nem desfgnios de nobreza.
* Parece existir, depois, na recepc;:io de Gil Vicente urn longo e estra
nho hiato. Nem os proprios autores da chamada "escola vicentina" incensam directamente 0 Mestre (muito provavelmente porque nao 0 reconhecern como tal). Mesmo em Espanha, os nexos de irriga<;:ao que se estendem pelo Barroco dentro nao chegam a encontrar expressao em termos de doutrina. Nascidos da Corte, os autos de Gil Vicente caem agora no dominio popular e parece bern sintomatica a escolha daqueles que chegam aos prelos, de forma avulsa, ao longo dos seculos XVII e XVIII 5.
Nao surpreende que, depois, no seculo XVIII, se renove a tentativa de colagem de Gil Vicente aos modelos classicos: na conclusao da comedia de Correia Gar<;:io intitulada Theatro Novo, (que constitui, aflnal, urn desenvolvido debate acerca dos diferentes caminhos que na altura -em 1766- se colocavam ao teatro portugues), diz Aprigio Fafes, a voz que, na pec;:a, mais defende a renova<;:ao a partir dos modelos nacionais:
3 Cf. Obras Completas de Francisco de Sa de Miranda, Texto nxado, notas e prefacio de Rodrigues Lapa, 1977,3" ed., p.vol. II, p.123-24
4 ib. 5 Braamcamp Freire apresenta uma listagem de edi;;:oes, nas suas pr6prias palavras
"seguramente nao com pI eta, mas certamente muito ampla": nela se con tam 68 casos, com largo predominio das farsas (Cf. p. 379 e ss.)
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lnda 0 fado nao quer, inda nao chega
A epoca feliz e suspirada De lanr,:ar do teatro alheias Musas De restaurar a cena portuguesa. Vos, Manes de Ferreira e de Miranda,
E tu, 6 Gil Vicente, a quem as Musas
Embalaram 0 berr,:o e te gravarao Na honrada campa 0 nome de Terencio Esperae, esperae, qu'inda vingados E soltos vos vereis do esquedmento" 6;
E tambem nao anda longe desta visao resgatante a nota que Diogo Barbosa de Machado exarou na Bibiiotheca Lusitana, uma vez que ela comec;a justamente corn a inserc;ao do autor nos quadros do c1assidsmo greco-latino:
"Gil Vicente illustre por nacimento, e muito mais illustre pdo espirito poetieo com que imitou, e ainda excedeo aos mayores Poetas, que venerou a Antiguidade"7,
para, um pouco mais a frente, encontrarmos 0 famoso eco do aplauso humanista de Erasmo de Roterdao
"Tao largamente se extendeo a fama do seu talento poetico, que sahindo do continente de Espanha estimulou a Erasmo Roteradamo, cele
bre Pilologo, a aprender a Lingua Porrugueza para penetrar as agudezas, que estava6 ocultas em as obras de Gil Vicente, e depois, que as leo, confessou
ingenuamente, que nenhum Poeta mais exactamente como eHe imitara 0
estilo de Plauto e Terencio."
Curiosamente, esta visao classicizante de Gil Vicente nao morreu de todo. Subsiste ainda ern J. Gomes Monteiro, por exemplo, autor do "Ensaio sobre a vida e os escriptos de Gil Vicente", que Figura na edic;ao de 18348. E, por muito estranho que possa parecer, subsiste mesmo nos
6 Cf, Obras Completas de Correia Gan;ao, Texto fixado, prefacio e noras de Antonio Jose Saraiva, Lisboa, Livraria Sa da Costa, 1958, vol. II (Prosas e Teatro), p.38-39.
7 Cf: Bibliotheca Lusitana, Coimbra, Atlamida, MCMLXVI, tomo II, p.383. 8 Embora amplo e invulgarmente ponderado na men<;ao de rontes, Gomes Mon
teiro nao resiste a conduir 0 seu estudo desta forma: "Assim lan<;ado 0 fundamento do
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nossos dias em determinadas simplifica<y6es da historia literaria que teimam na ideia redurora do "autor de transi<yao", simultaneamente medieval e renascentista, com a evoca<yao (muito for<yada) de marcas supostamente certificadoras de urn e de outro perfodo 9:
'* So com 0 Romantismo se inflecte 0 senti do da pesquisa, em ordem
a emergencia de uma nova identidade, agora menos peada por modelos e por regras. Lembra C. Michaelis de Vasconcelos que Gil Vicente nao foi totalmente desconhecido da erudi<yao internacional, mesmo ao longo do seculo XVIII, mas tudo 0 que pode registar-se sao alus6es muito furtivas (e nem sempre denunciadoras de conhecimento real) 10. So a edi<yao de Hamburgo 0 reconstitui na sua globalidade e 0 ja citado estudo prefacial de Gomes Monteiro revel a bern esta preocupa<yao de reconhecimento,
nosso theatro por urn engenho tao superior, estava aberta a estrada para que seus sucessores, corrigindo progressivamente os inevitaveis defeitos do seculo e da novidade, e aproveitando 0 muito que ahi havia approveitar, levantassem 0 edificio de urn Theatro nacional. E com effeito alguns apparecerao que seguirao as pizadas de Gil Vicente [ .. ,jTambem a eschola c1assica appareceo entao em Portugal representada por dous grandes poetas, Sa de Miranda e 0 Doutor Antonio Ferreira: mas estes com urn Iimitadissimo numero de produc<;5es, e alem disso demasiado preocupados da douta antiguidade, nao puderao exercer consideravd influencia sebre este ramo da litteratura. Oxala Gil Vicente tivesse apparecido depois de todos dies; seria dIe 0 reformador do nosso theatro, e verdadeiramente 0 nosso Plauto, (op. cit" p, XXXIV).
9 A Fonte da informa"ao retomada por Machado parece ser ja seiscenrista e pode rastrear-se em Manuel Faria e Sousa (EpItome de las historias portuguesas .. Part. 2, cap. 18). Manuel Severim de Faria, por sua vez, invoca tambem Gil Vicente, ao referir-se, no Didlogo da Lingua Portuguesa, it "brevidade, gra~ e decoro" do nosso idioma: "Nem e pera esquecer 0 louvor que se deve nas nossas farsas a Gil Vicente, 0 qual imitando as fabulas Atelanas, que incluiam em si as representa¢es que chamam Planipedias e Tabernarias, por serem dos lnfimos da Republica (de que tambem jaAristotdes, na sua Poetica, faz men.;.ao) compos algumas farsas com tao graciosa eloquencia que do nosso Joao de Barros e por isso mui louvado rna Gramdtica da Lingua PortuguesaJ", in Discursos Varios Politicos. Introdu"ao, actualiza~o e notas de Maria Leonor Soares Albergaria Vieira, Lisboa, INCM, 1999, p.93-94.
10 D. Carolina dedica exactamente a abertura das suas Notas Vicentinas, a lembrar que"Ja antes de Barreto Feio e Gomes Monteiro haverem tornado acessiveis as Obras Vicentinas ( ... ) varios investigadores forasteiros haviam chamado aten,,1io do mundo culto para 0 sugestivo e rico repertorio do mais fecundo e mais individual poeta comico primitivo da Peninsula" (c. op. cit., p. 1)
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mencionando abrangentemente, como fontes, a grande tradi<;:ao do teatro medieval europeu (frances e italiano, sobretudo).
Por outras vias, Garrett empreende uma busca semelhante, agora mais centrada na defini<;:ao de parametros biogrwcos e circunstanciais. Mais do que ninguem, ate entao, ele deve ter sentido a falta de urn retrato fisico de Gil Vicente, que Se pudesse depois afei<;:oar a urn cad.cter e a urn perfil artistico. Assim tinha sido com Camoes, por exemplo, rapidamente transformado, de proprio, em personagem, beneficiando de efeitos de canoniza<;:iio bern mais eficazes e abrangentes. Ao acalentar 0 projecto de refunda<;:iio do teatro nacional, apenas interessava a Garrett urn patrono estritamente portugues, nas suas matrizes e nas suas repercussoes. E certo que n' Urn Auto de Gil Vz"cente, nos aparece 0 dramaturgo em pessoa; mas, quando se esperava uma figura com biografia e com dilemas, a boa maneira romantica, surge-nos urn artista modesto e pouco consciente do seu valor, vivendo bern prosaicamente as ansiedades proprias do director de cena, em vesperas da representa<;:iio das Cortes de Jupiter. Trata-se, para mais, de uma personagem que vive da caracterizayiio alheia, empreendida pela filha Paula (aqui convertida em amante ignorada por outro poeta e em obscura auxiliar do pai na representayao e na propria composiyao das trovas) e, sobretudo, por Monsior Chatel, 0 saboiano que louva a arte de Gil Vicente mas sem esquecer as preconceituosas restri<;:oes proprias do quadrante em que se inseria:
" ... Verdadeiramente nao se imagina em Itilia, nem em Fran<;:a, como
os Portugueses estao adiantados nas Artes. 0 vosso Gil Vicente e um pro
dlgio: prodfgio natural e tambem pouco cultivado. Se de conhecesse os
clissicos; se, como 0 n05SO Ariosto, soubesse imitar Terencio e AristManes;
se aprendesse as regras de artd ...
Pero Sifio, 0 cantor portugues que com de dialoga, ainda contrapoe, adivinhando-se, no seu juizo, a convic<;:ao do proprio Garrett:
"Havia de ser um sensaborao insulso e insipido segundo a artel..." 11
Deste modo, 0 dramaturgo de Oitocentos nao se atreveu a fazer de Gil Vicente uma verdadeira personagem romantica: se quis colorir 0
enredo dramatico, teve que se socorrer de uma outra personagem liteciria,
11 CE. UmAuto de Gil Vicente, Mem Martins, Europa/America, 1995 (2.a ed.), p. 55
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sobre a qual corriam ja as mais fantasiosas hipoteses biograficas: 0 enigmatico Bernardim Ribeiro, aqui dado como desgracradamente apaixonado pela infanta D. Beatriz, a jovem infanta desposada, que parte para ltalia, a contragosto.
No momento ern que escreveu 0 auto, Garrett nao dispunha ainda de elementos para humanizar Gil Vicente. E foi no encal~o desses dados que se lan~ou toda urna gera~o posterior de estudiosos, completando os preceitos da canoniza~o que se encontravam ern falta. De facto, a erudi~o positivista fez do dramaturgo urn objecto central de pesquisa. A inten~ao e agora daramente patrimonialista, mas 0 ethos romantico continua bern vivo. Compreende-se assim que nenhum dos nomes verdadeiramente importantes da nossa Filo10gia tivesse ignorado este fi1ao cimeiro, so comparavel, em prestigio e em repercussao publica, ao que derivava do caso de Cam6es. Nenhum deles se distinguiu propriamente na prepara~ao de textos (embora D. Carolina tivesse acalentado 0 projecto de uma edi~ao crftica); os volumes de Hamburgo foram, de resto, reproduzidos em Paris, pouco depois (1843) e logo em Lisboa (1852); so na gera~ao seguinte, Joaquim Mendes dos Remedios haveria de aplicar-se a este nivel, consurnando uma edi~ao bastante cuidada, para a epoca, contendo notas, glossario e uma criteriosa antologia de excerto5 liricos (Coimbra, 1907-1914). A linha continuou a ser a da busca de uma identidade ptofunda atraves de uma dupla focagem: a da reconstitui~ao biogra.flca e contextual e a da detec~o de fontes.
A ansia de encontrar respostas para alguns enigmas (ern que se enredaram cruzadamenre nomes como Camilo Castelo Branco, Sanches de Baena e 0 Visconde de Ouguela, entre muitos ourros), chegou a conduzir literalmente a questao do retrato. No "Anteloquio" do seu Gil Vicente, Sanches de Baena, revela a eflgie do autor, encontrada na Biblioteca Nacional, colada "a folha d'um antigo livro de poesias, demonstrando ter sido cortado d' alguma obra publicada em hollandez, porque se divisam, por transparencia, phrases impressas no verso do mesmo retrato, pertencentes aquelle idioma" .12 Como foi 0 retrato de Gil Vicente parar a Holanda? A.fian~a 0 mesmo genealogista que "0 retrato [ ... J deveria ter sido levado por urn dos netos do poeta, visto que e ponto averiguado que Francisco de Aguiar Barreto e seu irmao Damiao de Aguiar Barreto [dois descendentes do poetaJ, antes de partirem para a India, estiveram por algum tempo na Flandres" .13
12 C£ Gil Vicente, Marinha Grande, Empreza Tipographica, 1894, p. 4 13 C£ ib.
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Ainda dentro do sal romantico, Camilo (logo seguido por Teofilo) haveria de desenterrar a hipotese de urn conflito estetico e pessoal entre Gil Vicente e urn dos seus filhos, Gil Vicente Fernandes, supostamente fon;:ado ao exilio, por fazer sombra ao pai, na arte dramatica ... 14
Por mais audaciosas ou aliciantes que estas conjecturas tenham sido (e algumas delas foram-no, de facto), nenhuma conseguiu urn impacto semelhante 11 tese desenvolvida por Anselmo Braamcamp Freire acerca da identidade entre 0 dramaturgo e um ourives do mesmo nome. Mesmo sem entrar na subsdncia do assunto, 0 minimo que se pode dizer e que as posi<;:6es de Braamcamp supriram uma grande lacuna no conhecimento do autor.l 5 0 conflito foi, ainda assim, bastante extenso, envolvendo como principais adversarios da tese Brito Rebelo, Antonio Maria de Freitas, Sanches de Baena, Camilo e Teofilo (embora este com constantes altera<;:6es de posi<;:ao 16); depois deles, porem, apenas Antonio Jose Saraiva viria a manter reservas fundas.17 0 caso e que ainda hoje se da como certo que D. Leonor teve ao seu servi<;:o urn e 56 um Gil Vicente, ao mesmo tempo "Trovador e Mestre da Balan<;:a". E, no entanto, se nos dermos ao
1"1 0 (muito debiI) fundamento da hip6tese resume-se a uma men"ao, nos Comentarios de Afonso de Albuquerque, de um Gil Vicente Fernandes "filho de Gil Vicente", na embaixada ao Hidalcao, encontrando eco em Manuel de Faria e Sousa (comentario ao 30
livro dos Sonetos de Cam6es, son. 31). Tambem Barbosa de Machado, que dedica uma memoria autonoma ao suposro filho de Gil Vicente, morto na fndia, a quem atribui a auroria da pe"a Dom Luiz de los Tttrcos afirma a dado passo: "Nao somente imitou mas excedeo a seu Pay na Poesia comica, de tal sone, que para nao Ihe diminuir a gloria que alcan"ara, fay causa de 0 mandar para a India onde mostrou em huma a"ao militar em que gloriosamente acabou a vida, que nao era menos insigne na espada, que na pena" (op. eit., p.384)
15 As posi<;:6es de Braamcamp, hoje reunidas na 2a edi.,ao (revista) do seu livro Gil Vicente, trovador mestre da balan(a, (Lisboa, 1944), comec;aram por ser expandidas no ]ornal do Commercio, de Lisboa, em Fevereiro de 1907, sob 0 pseudonimo de Silex, tomando depois a forma de comunica<;:ao a Academia das Ciencias, em Dezembre de 1912. Foram ainda depois objecto de publica<;ao na Revista de Hist6ria, nOs 21-26 (1917-18) e, mais tarde, na primeira versao do ja citado livre (Porto, 1919).
16 Para um historial detalhado cia polemica, veja-se a resenha de Queiros Veloso, de proprio urn adepto da tese da identidade, "Gil Vicente, poeta e ourives", in Gil Vicente. Vida e Obra, Serle de Conferencias realizadas na Academia das Ciencias de Lisboa, de 8 de Abril a 21 de ]unho de 1937, em comemora~o do N Cemenario da morte do fundador do teatro portugues, Lisboa, 1939, p. 341-369.
17 0 ultimo rexto que Saraiva dedicou ao assunto (intitulado "Quem era Gil Vicente?" foi publicado pda primeira vez em 1951, reaparecendo no volume Para a Historia da Cultura em Portugal (Mem Martins, EuropaiAmerica, 1971, 3a ed., pp. 293-308).
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trabalho de reconstituir os dados do problema, nao pode negar-se credito as reservas ja evocadas, com 16gica serena, sobretudo por Brito Rebelo e por Saraiva.
Mas nao e assim que normalmente se procede. A tese do "poeta lavrante" constitui, desde 0 infcio, uma res posta muito tentadora para uma longa busca identitaria. Se a obra de Gil Vicente era excepcional na sua diversidade e ate na sua excepcional teria de ser tambem a personalidade criadora que the corresponde. Estavamos, alias, em epoca do fetiche documental e a descoberta da nota manuscrita em letra do seculo XVI correspondia tambem a esse horizonte de apres;o.18 Com base numa prova desse calibre seda muito dificil infirmar a tese. Mas, sobretudo, fica-se com a impressao de que nao havia vontade de a beliscar, na sua oportunidade e adequaS;ao as necessidades de consumo institucional. A tese da identidade acentuava 0 genio vicentino, que passou a ser sistematicamente designado por "Mestre Gil", em potencial confusao com 0 hom6nimo que, no Cancioneiro Geral, participa nas ajudas do "Processo de Vasco Abul"19. E havia ainda outra vantagem importante: dando como certa a auto ria do ourives em relas;ao a cust6dia de Belem, 0 "trovador" surgia intimamente associado ao ciclo das Descobertas (a dita custodia fora lavrada no ouro das primeiras pareas de Quiloa, trazido por Vasco da Gama, na sua segunda viagem a India), conferindo-lhe assim 0 dire ito de brilhar na constelaS;ao mitica do nosso Quinhentismo. E nao hi duvida de que iS80 vida a constituir factor decisivo de canonizaS;ao dvica. Garrett escreveu pois Um Auto de Gil Vicente antes de todas estas conjecturas terem sido firmadas e, nessa medida, 0 seu esbos;o de rerrato nada po de aproveitar delas.
A par com a questao biogrifica (que, contudo, se nao resolveu totalmente com a tese do ourives), desenvolveu-se 0 problema das Fontes ou da chamada Cultura vicentina. A este respeito, D. Carolina (que ja se
18 No emaranhado de teses e contfa-teses em torno da questao abundam sintomaticamente as transcris:oes documentais ou mesmo a reprodus:ao diplomatica de assinaturas, notas e outro documentos. A notula manuscrita tida por probat6ria ("Gil Vicente trovador mestre da balans:;{') figura no alto do verso da folha 20 do livro 420, por cima do registo da carta regia de 4 de Fevereiro de 1513, nomeando Gil Vicente, 0 ourives da Rainha D. Leonor, Mestre da balan.,:a de Lis boa.
19 Sobre a identidade distinta de Mestre Gil, cirurgiao-mor do Duque D. Diogo e, mais tarde, de D. Manuel e de sua irma D. Leonor, veja-se a entrada que a tal respeiro figura no Dicionitio do Cancioneiro Geral recentemente publicado por Aida Fernanda Dias (p. 330).
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havia revelado grande entusiasta da origem e natureza folclorista das cantigas de amigo) sustentou a importancia determinante do substrata popular, tambem nos autos vicentinos e poucos se atreveram a contraria-Ia. Na decada de 40, Joaquim de Carvalho ainda se deixou impressionar por dois serm5es, imaginando urn Gil Vicente mais escolarizado do que convinha a tese anterior (talvez mesmo frequentador das Universidades de Salamanca ou de Paris) 20; mas logo 1. S. Revah se encarregou de repor a tese do criador genial, desligado de modelos cultos.21 Apesar do prestigio do Professor de Coimbra, cujas posi<;:5es costumavam fazer fe em outros dominios da historia da cultura ponuguesa, a imagem romantica de Gil Vicente nao foi, desta vez, significativamente beliscada e pode assim sobreviver a varios tipos de aproxima<;:ao 22:
De forma bern mais pontual, tem-se discutido as bases doutrinais de parte do seu teatro dito "religioso", no pressuposto de que 0 dramaturgo transp5e directamente para os autos algumas das tensoes morais e teo16gicas da Idade Media (os fundamentos da Salva<;:ao, a for<;:a da Gra<;:a, 0
governo da Igreja, a conduta dos clerigos, etc.). Por detris destas aproxima<;:5es subsistem duas atitudes essenciais: a que privilegia a imagem de urn Gil Vicente alinhado com uma qualquer vertente doutrinal (erasmismo, lullismo, franciscanismo, etc) e a que reitera a ideia de urn artista experimental, integrador de materiais diversos, acolhendo so muito diferidamente as posi<;:5es de teologos e doutrinadores politico-sociais. Nessa senda se acredita que a sua arte corresponderia a urn milagre de integra<;:ao composita, ainda em moldes formais elementares, mesmo toscos.23
20 Cf. "Os serm6es de Gil Vicente e a arte de pregar". 21 Cf. Les sermons de Gil Vicente: en marge d'un opuscule du Proftsseur Joaquim de
Carvalho. 22 Luciana Stegagno-Picchio e Paul por exemplo, insistiram no caracter
poligonal e dialogico das peyas do autor (em termos de lingua, de estilo e de generos); L Keates, na senda de Braamcamp, refonrou a ideia da sua vincula.;:ao a uma cultura de corte (tonica recentemente revista por Ugo Serani) a Corte de Avis, no perfodo aureo de afirma.;:ao de Portugal como potencia maritima.
Para uma resenha das principais dominantes da bibliografia vicentina, veja-se, neste mesmo volume, as estudos vicentinos: balanfo e perspectivas.
23 E esta, nomeadamente, a posi<;:io de urn vicentista especial mente influente como Eugenio Asensio: "Gil Vicente, con materiales viejos, ha sabido crear un teatro nuevo. Reminiscencias Iiterarias, simbolos religiosos, mitos poeticos, moldeados por su instimo escenico y su imaginacion plastica, han dado orfgen a formas inesperadas de Arte", in "Las Fuentes de las Barca! de Gil Vicente".
REVISOES DE GIL VICENTE 25
Na sequencia deste ultimo pressuposto, chegaram a evocar-se sinais de primitivismo tecnico-estrutural, como seriam a sintaxe do desfile (contraposta a supostamente mais avan91da intriga de base centrfpeta ou radial) ou a sistematica tipificayao das personagens, ainda no desconhecimento, portanto, das gran des figuras densas e dilematicas, a maneira de Shakespeare. 24
Descoberto e canonizado peIo Romantismo, 0 dramaturgo portugues teria assim de ser - e tern-no sido, sem contestayao de maior, urn artista romantico, avesso a regras, imune a influencias culturais sistematicas; como se isso nao bastasse, todavia, pediu-se-Ihe que Fosse ainda uma personagem romantica. Em meu juizo, e aqui que encaixa a tese central de Braamcamp, afectando 0 dramaturgo a mais uma profissao artistica de grande rigor e exigencia, submetendo-o a admirac;:ao de todos os que admiram 0 milagre do talento infuso e abrangente. E nao hi duvida de que foi esta a figura que 0 Estado Novo comemorou em 1937 (400 anos da sua morte) e em 1965 (500 anos do seu nascimento).
3. Passaram 500 anos sobre 0 Monologo do Vaqueiro e quase duzentos sobre a ediS;ao de Hamburgo. Nao adianta tentar afastar de Gil Vicente todos os cliches que se the foram colando. Urn autor da sua dimensao nao podera nunca vjver sem lugares-comuns, quaisquer que e!es sejam. Mas e legitimo perguntar, peIo menos: tal como foi fixado no dealbar do seculo XX, 0 retrato de Gil Vicente e ainda satisfatorio ou carece de alguns retoques? Mesmo sabendo que nao sera POSSlveI capta-Io, alguma vez, na fria objectividade de uma camara fotografica, acredito que seja possive! corrigir alguma coisa, no senti do de clarificar e de rejuvenescer uma imagem que hoje ten de para a mineralizas;ao, a fors;a de ser sempre vista pelos mesmos angulos. Nao havendo dados documentais novos que permitam uma reaprecias;ao da vida de Gil Vicente, 0 caminho tera que passar peIa investigas:ao de outras coordenadas contextuais mais latas.25 E e nesse quadro
24 Nos juiws de Saraiva, nomeadamente no capitulo que escreveu para a Historia da Cultura em Portugal (1959) e na "Introdu~o" 11 sua antologia do Teatro de Gil Vicente, por exemplo, colhem-se abundantes compara;;:6es desmerecedoras para Gil Vicente. Para uma visao menos preconceituosa, comparando os dois dramaturgos, com a ressalva das respectivas epocas, veja-se 0 excelente estudo de Helio Alves, "Vicente, Shakespeare e a arte do tempo no Auro da india", em numero recente da Revista Adagios.
25 A este respeito, destaco 0 muito desenvolvido trabalho de Ivo Carneiro de Sousa, recentemente publicado: D. Leonor (1485-1525). Poder; Misericordia. religiosidade e espiritualidade no Portugal do Renascimento, Lisboa, Fundao;:ao Calouste Gulbenkian, 2002.
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que se justifica revisitar a questao das matrizes. Nao tanto, desta vez, para acrescentar qualquer pista ao vasto rol ja inventariado. De resto, a este nivel, sera sempre possivel defender, atraves de urn levantamento indicial, que Gil Vicente conheceu "isto" ou "aquilo", no plano teologico, politico, dvico-convivial, pictorico, musical, etc. A minha proposta e agora urn pouco diferente e assenta em duas fases consecutivas: considero Util, em primeiro lugar, discutir a no<;:ao de Teatro na epoca de Gil Vicente, tentando delimitar as concep<;:oes perfilhadas por ele ao longo dos trinta e cinco an os da sua actividade. Estaremos depois em melhores condi<;:oes para efectuar urn trabalho de pondera<;:ao. Repito que nao se trata de discutir a existencia deste ou daquele elemento inspirador (e tantos foram ja objecto de men<;:ao). Do que se trata, agora, e apenas de avaliar 0 peso espedfico dos varios tip os de substrato, averiguando ate que ponto uma determinda Fonte e acidental ou essencial, directa ou remota, estruturante ou exornativa. Na impossibilidade de efectuar desde ja essa opera<;:ao, em toda a sua amplitude, limitar-me-ei a destacar alguns exemplos, de natureza diversa, na tentativa de ver em que medida e que eles podem contribuir para a afirma<;:ao de uma identidade diferente.
Olhemos pois para pe<;:as tao diferentes como Auto da Fe, Didlogo da Ressurrei~iio, Fadas, Pranto de Maria Parda, Rubena, Clerigo da Beira ou Templo de Apolo, consideradas no amplo diagrama cronologico em que se inscreve a cria<;:ao vicentina. Parece que nem todas se reportam a mesma ideia de teatro. Se Gil Vicente tivesse apenas escrito textos como 0 Auto da Fe, por exemplo, seria considerado urn emulo de Encina (timidamente inovador, em todo 0 caso); se tivesse apenas escrito pe<;:as no registo do Didlogo da Ressurrei~iio, 0 mais provavel era que the louvassemos 0 dominio do rualogo disputado, de base doutrinal e, em consequencia russo, a sua cota<;:ao nao estaria muito acima de alguns poetas cancioneiris ou de alguns "grands rhetoriqueurs". Atraves do Templo de Apolo reconheceriamos urn autor familiarizado com as tecnicas dos momos, talvez ja com ecos da "comedia a noticia", de Naharro" que depois, viria a seguir na Rubena, em estilo fantasiado. Imaginemos, por fim, que 0 dramaturgo tinha escrito apenas pe<;:as como Alma, Breve Sumdrio, india ou Ines Pereira: teriam ainda mais razao os que preferem urn autor essencialmente reconhedvel atraves das suas influencias francesas, nomeadamente dos grandes generos do teatro medieval que sao a farsa, a moralidade e 0 misterio.
o problema e que Gil Vicente nao se situa num unico quadrante. E e exactamente essa circunsrancia que suscita as questoes mais agudas de identidade. Aqueles que ate hoje as tentaram resolver nao conseguiram
REVIS0ES DE GIL \1CENTE 27
fugir aos estereotipos: 0 doutrinador moral, 0 proselito de causas sociais e politicas, 0 bufonesco engenhoso, 0 criador de idealidades, 0 lirico de timbre popular, 0 comico, 0 retratista da sociedade. Eis apenas algumas das imagens de marca que mais vezes se tern substituido ao rosto desconhecido de Gil Vicente. Nenhuma destas identidades e falsa; mas nenhuma recobre a globalidade da Copilar;am. Sao expedientes 6ptimos para figurar em manualS escolares que, aliis, nao consentem todos ao mesmo tempo. Mas, na pratica, e so esse 0 seu prestimo.
Como dizfamos acima, 0 problema requer a indexac;:ao a urn ourro aspecto essencial: 0 conceito de teatro. Neste dominio, impoe-se rever a coincidencia apressada entre a ideia iluminista e romantica, que e a de Garrett (e foi ainda a nossa, ate ha poucas decadas) e a concepc;:ao de teatro medieval que e a de Gil Vicente. E nao pode esquecer-se que esta ultima esta longe de ser homogenea, contemplando varias dimensoes entrelac;:adas: a disputa retorica, a cdebrac;:ao dvico-politica, a convivialidade aulica (na qual entram muitas outras artes), a exemplaridade moral, etc. etc. Nao hi duvida de que uma heterogeneidade deste tipo contribui para dificultar ainda mais 0 estabelecimento de uma identidade unilinear. Por isso (e 56 por isso) Gil Vicente constituiu uma referencia cultural e simb6lica para Garrett, num momento que se pretendia restaurador; mas, na medida em que nao the e reconhecida uma identidade firme, ja nao pode se-Io no plano artistico. Os modelos reais do autor de Frei Luis de Sousa tinham de ser outros; nao the poderiam servir os do seu antecessor quinhentista, justamente porque as concepc;:oes e as praticas do teatro se tinham entre tanto transformado, pela emergencia de urn espac;:o publico e de urn forte processo de convencionalizac;:ao do acto teatral. Assim, a arte vicentina como que constitui 0 ponto de chegada de muitos rios; mas, na sua natureza outonal, nao pode originar desenvolvimentos directos, pdo menos a uma distancia de 300 anos.26
16 Exisrem, no emanro, varias tentativas de demonstrat 0 contrario. Bouterwek, um dos redescobridores romanticos de Gil Vicente, compata superlativameme 0 dramaturgo portuguils a Moliere (apud. Gomes Monteiro, p. XIII); ja no seculo XX, Armando Mattins Janeira detectou curiosas afinidades entre a arte vicemina e 0 teatro disico japonc:s, nomeadamente com 0 rearro No. Fernando Mello lI,1oser, por sua VeL, insisre bastame na modernidade de Gil Vicente. mesmo em compata~o com 0 teatro elizabetiano (C£ os varios estudos de incidilnda vicentina que figuram na colectanea intitulada Discurso inacabado).
28 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERl'JARDES
4. Examinemos agora, urn pouco ao acaso, 0 papel caracterizador que costuma atribuir-se a alguns elementos, come<;:ando pel os que sao de natureza tematica: 0 nivelamento ontologico dos mottos, visivel nas Dan<;:as da Morte, cuja sugestao comparece nas Barcas, especificando, tambem no plano figurativo, uma matriz de natureza doutrinal; ou 0 motlvo da Sibila, que numa das pe<;:as marianas do autor serve para satirizar a presun<;:ao e exaltar, por contraste, a humildade da Virgem; 0 tema dos velhos ensandecidos por amores, presente em autos como 0 Velho da Horta, Triunfo do Inverno, Floresta de Enganos ou Auto da Festa, em registo farsesco (1.0 e 4.0 caso) ou comediografico (2.0 e 3. 0 ).
Observemos ainda, em paralelo, 0 que ocorre com outro tipo de marcas tematicas: a dualidade axiologica Bern/Mal ou a mecanica do Engano, s6 para citar dois dos casos mais impressivos. No primeiro conjunto de exemplos, registam-se coincidencias e interpenetra¢es importantes, mas nenhum deles detem potencialidades identificadoras. No segundo tipo de temas 0 caso e diferente: tanto a oposiyao bern/mal como 0 Engano constituem 0 centro caracterizador de dois generos dtamaticos persistentemente cultivados POt Gil Vicente: a moralidade e a farsa. Dos temas poderfamos agora passar a personagens tematizantes como 0 Escudeiro, a Alcoviteira, 0
Pastor e 0 Lavradot: em alguns casos, adstritos a detetminados generos; noutros (talvez na maio ria deles) ocupando uma posi<;:ao genologicamente transversal e nao verdadeiramente definit6ria.
Significa isto, em primeiro lugar, que os temas nao contribuem todos da mesma forma para a identidade dos autos em que se integtam; ou, por outras palavras, nem todos detem uma fun<;:ao verdadeiramente matricial e singularizante. Alguns tern mesmo urn caracter intersemi6tico, nao sendo sequer tipicos do fen6meno teatral ou literatio (0 amor, 0 desconcerto do mundo, a bondade da Natureza, a volubilidade feminina 0 a astllcia do vilao, para citar 56 alguns exemplos). Nessa medida, revela-se pouco pertinente ou ilus6rio invocar ocorrencias deste tipo - mesmo que sistematicas - para alcan<;:ar conclusoes identirarias. Pode urn leitor ocasional reter a imptessao de que 0 dramaturgo construiu todo 0 seu teatro sobre uma constela<;:ao fixa de temas. Inserido que esta na dinamica da escrita artfstica ocidental, porem, 0 teatro vicentino da guarida a urn lastro de assuntos de indole atfpica e praticamente acr6nica. A esse nlvel, por exemplo, nao deve sutpreender-nos sequet a presen<;:a (esparsa, em todo 0 caso) de motivos mitologicos da cultura greco-latina (vislveis nas Cortes de Jupiter e no Templo de Apolo, entre outros autos), uma vez que a sua natureza erratica e pontual nada tern de estruturante.
REVISOES DE GIL VICENTE 29
* Mais do que os temas, sao especialmente diferenciadoras as formas:
nao me refiro ja as tecnicas simples do monologo e do diaIogo, embora, mesmo a esse nivel, existam afinidades e dissemelhan~as que ganhariam com algum discernimento.27 Falo, sobretudo, das formas complexas codificadas em generos: a egloga dialogada, que e bern mais do que urn dialogo expandido; a farsa centrada no engano e no envolvimento realista, a moralidade apoiada no didactismo ale go rico, quase desprovido de ac~ao, o misterio que exp6e episodios biblicos, a comedia de recorte cavaleiresco, portadora de urn enredo que evolui de acordo com uma etica constante - sendo este, porventura, 0 genero em que a novidade vicentina mais se destaca.28
Salvo melhor opiniao, e no ambito genologico que as matrizes vicentinas melhor se detectam. E, por via delas, resultam tam bern mais claros os trayos de identidade estetica. Nem todas detem a mesma importancia e, por isso, e necessario levar por diante urn trabalho de ponderac,:ao que determine a importancia particular de cada uma dessas matrizes, de cada urn desses codigos.
o substrato pastoril de proveniencia iberica, por exemplo, necessita ainda de ser esdarecido a alguns niveis. Depois dos trabalhos de Young, Andrews e Surtz, M. L Resina Rodrigues mostrou bern a extensao e a profundidade da influencia dos pastores no teateo vicentino: sobretudo daqueles que se acercam do Presepio, levando a Virgem e ao Deus Menino o alor da sua simplicidade.29 Mas, para alem da dilucidayao historico-lite-
27 Eu proprio tentei uma primeira aproxima~o ao ass unto no meu Sdtira e Lirismo. Modelos de sfntese no teatro de Cit Vicente pp. 169 e 55.
De entre os estudiosos que mais tern valorizado a especiflcidade e a projec~o da comedia vicentina, destaca-se Stephen Reckert, que ao assunto dedicou inclusivamente urn estudo marcante intitulado: "Gil Vicente e genese da comedia espanhola".
29 C£ Richard A. Young, "Gil Vicente's castilian debut", Ronald E. Surrz, The Birth of a Theater. Dramatic convention in the Spanish Theater from juan del Encina to Lope de Vega, Madrid, Princeton University of Castalia, 1979 e M. Idalina Resina Rodrigues, "Dos salmanrin05 a Gil Vicente. as celebra,,6es do Natal", in Aetas do Congresso da Associaf'ao Hisplinica de Literatura Medieval, Lisboa, Edi,,6es Cosmos, 1991, VoL I, p. 107--135 (republicado em De Gil Vicente a Lope de Vega. Vozes cruzadas no teatro iberica, 1999, pp. 11-50).
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raria, existem hoje elementos que podem conduzir a algumas reconversoes de perspectiva.30
Nao pode ainda ser esquecida a frequencia com que os pastores ibericos aparecem incrustrados em outro tipo de formas, que nao aquelas de onde sao naturais: lembremo-nos de moralidades como Barca do Purgat6-rio, Feira, Mofina Mendes ou Sibila Cassandra. Mas este e ja outro domfnio: o das refen?ncias europeias que, embora notadas desde ha muito, continuam subvalorizadas na apreciaS;ao que e feita destas materias, urn pouco como se se tern esse ainda que a sua evidencias;ao pudesse afectar a visao genialista e basicamente romantica que alguns persistem em manter.31
Nesse sentido se poderia dizer que a verdadeira identidade artistica do autor resulta essencialmente da conjugayao entre estas duas matrizes fundacionais (a iberica e a transpirenaica), frutificando depois em vadas direcs;oes, de forma mais ou menos peculiar, mas sem desvios de real significado.
Reconduzida a estas duas grandes linhas de ascendencia, a obra vicentina constitui a assodas;ao fecunda entre varios pIanos de representas;ao: a retorica do lirismo e da narrativa, tomada como base literaria de urn novo trabalho dramattirgico, por urn lado; a performance da cena, por outro, que 0 leva a extrair do verbo outras possibilidades de acs;ao e movimento.Trata-se de urn autor irredutivd a qualquer uma das suas bases de inspiras;ao: nem 0 lirismo cancioneiril e a sua deriva enciniana, nem a materia de cavalaria, nem a civilidade aulica transcrita nos momos, nem sequer a grande tradis;ao do teatro medieval eutopeu, considerado em toda a sua amplitude genologica sao suficientes para 0 identificar. A obra de Gil Vicente constitui 0 resultado de uma nova confluencia e, nessa medida, nao pode comparar-se a nenhuma produs;ao dramattirgica coeva ou anterior.
Estamos, de resto, no tempo em que 0 Teatro se define por alargamento e incorporaS;ao de materiais esteticos diversos. Situamo-nos mesmo, porventura, num momenta tinico da historia literaria iberica em
30 Depois do trabalho pioneiro de Mia Gerhardt, cirnentou-se a ideia de urna separac;:1io estanque entre os pastores do presepio e os que procedem da tradic;:ao greco-latina. Sendo certo que em Gil Vicente predorninam os do prirneiro tipo, haveria talvez que deslindar os diferentes figurinos que 0 integram e ainda os nexos existentes entre des.
Urn contributo de enquadramento para este desiderato foi mais recentemenre desenvolvido por Alfredo Hermenegildo em fuegos dramtiticos de fa !()Cura ftstiva. Pastores, simples, bobos y graciosos del teatro cltisico espafio!, Barcelona, Oro Viejo, 1995.
31 Ocupei-me ja desenvolvidamenre da imporclncia da tradic;:ao do teatro medieval frances na Primeita Parte do meu Stitira e Lirismo no Teatro de Gil Vicente (pp. 126 e 55.).
REVISOES DE GIL VICENTE 31
que se tocam inclusivamente as noc;:6es de Cancioneiro, enquanto produ<;:ao unipessoal e a ideia de teatro sincrc:.'tico, definido em termos de poligenese, cerzido por urn conjunto de tonicas esteticas e ideologicas.
E ja essa a leitura que pode fazer-se do Cancionero de Juan del Encina (nao tanto com as obras de Fernandez, menos articuladas entre si) e parece sintomatico que ainda hoje se discuta se devemos encarar 0 clerigo de Salamanca como inovador (e, por exemplo, a tese central de Lopez Morales ou de Andrews 32) ou se 0 devemos antes apreciar como alguem que se limitou a amalgamar restos de uma tradic;:ao polimorfa, apenas com a diferenc;:a de os integrar nos rituais que celeb ram 0 Poder. Com Gil Vicente, nao ha duvida de que 0 processo f01 bern mais longe. E foi-o, sobretudo, porque nele intervieram formas ja definidas sob 0 ponto de vista teatral. Nesa medida, mais do que uma possibilidade entre outras, a leitura global e integrativa da Copilaram parece assumir-se como a atitude hermeneutica mais razoavel, dela devendo depois derivar diferentes aproximac;:6es a cada auto ou a cada conjunto de autos.
Em resumo: a identidade estetica do dramaturgo portugues revela-se excepcionalmente densa: porque nao se compagina com nenhuma das matrizes em que se apoia; mas tambem porque nao teve sequencia directa, tornando-se assim muito rnais dificil qualquer tentativa de reconheci~ mento essencial. Os ecos da sua arte sao esparzidos, sectoriais, dela retomando apenas aspectos de pormenor. Nenhum outro autor iberico repro~ duzira uma identidade tao complexa; nenhum outro deixara de ver nele uma referenda consumada, impossivel de reconstituir ou desenvolver. E por essa rmo, em ultima analise que no universo da nossa cultura literiria, Gil Vicente se assemelha a uma especie de meteoro algo ins6lito, sem antecipac;:ao nem rasto directo.
Conclusiio
Esgotada a identidade romantica de Gil Vicente (que logrou sobreviver dutante largas decadas, ancorando-se no lastro nacionalista comum ao republicanismo e ao Estado Novo) e exauridos tambem os usos anacronicos que a escola democratica veio a fazer da figura e da obra de Gil
32 Cf, J. Richard Andrews, Juan del Encina: Prometeu.r in Search of Prestige, Berkeley, University of California Press, 1959 e Humberro Uipez Morales, Tradicion y creacion en los origenes del teatro castelkmo, Madrid, Ediciones Alcala, 1968.
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Vicente (taxativamente reduzido a urn critico da expansao e do colonialismo e a urn interprete tardio da carnavalidade popular), e tempo de erigir outras marcas identitarias que possam adequar-se melhor ao nosso tempo e ao encontro hermeneutico que a partir dele nos e consentido. E, na falta de outros elementos, e ainda pela via das matrizes que tal objectivo melhor se pode consoli dar.
Desde 0 seculo XX, algum caminho se percorreu na prospec<rio de fontes; foram nomeadamente retomados e desenvolvidos alguns esfon;:os no sentido de discriminar entre 0 que e realmente fundante e 0 que e lateral nestes dominios. E se alguma conclusao pode fazer-se ressaltar deste percurso e justamente a de que Gil Vicente, tendo embora raizes bern vincadas na Peninsula (como se vern reconhecendo desde Garcia de Resende) e urn auror de exrrae<;:ao europeia, inscrevendo-se numa tradi~ao ja perfeitamente consrituida e amadurecida. Enquanto suplemento de identidade, porem, 0 europeismo nao representa apenas mais uma vertente que possa aditar-se a outras, num plano de simples extensao. Pelo contrario: a considera~ao deste tipo de matrizes (agora essencialmente morfologicas) implica que se considere uma nova correla¢o cultural e retorico-literaria. Nessa medida, bern pode dizer-se que esta ideia constitui urn ponto de partida e nao tanto urn ponto de chegada.
Admitir a importancia das grandes formas do teatro medieval europeu na configura~ao das pe~as vicentinas significa ainda abrir 0 caminho para averiguar 0 processo de adequa~ao das proprias pe~as aos publicos a quem se dirigiam, entrando em linha de conta, designadamente com uma ideia dinamica e tensional de Corte e superando, de vez, 0 pteconceito determinista segundo 0 qual Gil Vicente foi essencialmente urn instrumento docil dos designios regios. Nessa linha, hayed. que estudar os processos atraves dos quais 0 tearro vicentino comb ina as duas grandes matrizes: uma de cunho mais cortesao (a iberica) e outra de cunho mais urbano ou comunal (a francesa), de modo a ser acolhido e reconhecido nos palacios de D. Manuel e D. Joao III. Esrabelecidas e ponderadas as matrizes, e enfim necessario rerirar delas uma nova identidade, porventura mais densa e complexa e decerto mais alinhada com as grandes tendencias da arte europeia do tempo. Mas, chegados a este piano, torna-se imprescindive! superar 0 quadro estritamente portugues em que 0 problema rem sido considerado, implementando aproxima~oes comparatistas a varios niveis: em termos retorico-lited.rios mas tam bern em termos de semiose tearral, conferindo centralidade aquele que e hoje, porventura, 0 caminho menos percorrido dos estudos vicentinos.
REVISGES DE GIL V1CEKTE 33
Por muito atraente e honesto que possa parecer, porem, este programa de trabalho nao pode iludir uma questao de fundo: servir-nos-a urn Gil Vicente assim renovado? Havera real vantagem em que este retrato venha a substituir aquelourro que 0 Romantismo forjou e que tern servido ate agora, para figurar em manuais ou mesmo para redigir artigos de encidopedias generalistas? Podera Gil Vicente resistir a este aparente processo de dessacralizat;ao de uma imagem que comet;ou a impor-se logo no seu seculo, se acentuou fortemente com 0 Romantismo e com a erudit;ao positivista, logrando resistir a todas as tentativas de relativizat;ao e alargamento? Poderemos nos viver sem 0 miro inaugural do Vaqueiro que naquela noite de 7 de Junho de 1502, fort;ou as ponas da camara regia para protagonizar 0 milagre de uma "ane nova"? Poderemos prescindir da ideia do Gil (sem "ceitil") que fazia os "aytos a EI-Rey" a partir de materiais muito dispersos que congregava depois milagrosamente em formas incipientes, a revelia de modelos e de regras (para pena de uns e para jubilo de ourros)?
Perguntemos ainda, por outro lado: a que novas identidades nos podera conduzir a visao de urn Gil Vicente mais entaizado e mais culto do que se supunha? Sera alguma vez possivel e vantajoso, por exemplo, inscreve-lo na vasta e complexa serie do teatro medieval, sobretudo no que medeia entre os seculos XIII e XVI, em resultado directo da afirmat;ao do espat;o convivial que, na Europa, vai da prat;a comunal aos sal6es paladanos? Eis as perguntas que nesta ocasiao se devem colocar aos investigadores mais inconformados, aqueles que continuam a pensar que, mesmo depois de uma bibliografia critica tao copiosa, 0 rosto de Gil Vicente permanece por revelar na sua autenticidade mais funda. Parecem quest6es mais do que oportunas, no preciso momenta em que comemoramos uma data que e artlstica mais do que biografica. E quando, tambem por via dessa circunstanda, se torna necessario encontrar novas formas de discernimento e divulgat;ao para uma figura e uma obra que constituem, em si mesmas, pedras angulares das nossas matrizes e da nossa identidade colec!iva: ela propria portuguesa, iberica e europeia.
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OS ESTUDOS VlCENTINOS BALAN<;O E PERSPECTIVAS
Se exceptuarmos 0 invulgar estrelato que corresponde a Camoes e a yoga relatiyamente recente de Pessoa, poucos autores portugueses tedio exercido mais inHuencia e inspirado mais estudos do que Gil Vicente. Estao ja razoavelmente inventariados os factores (intrfnsecos e extrfnsecos) que explicam a fortuna - ainda assim desigual- de alguns desses "escritores majores". Mas nao em Gil Vicente. Perguntemos po is: Que motivos terao contribuido para que venha sobressaindo desta forma 0 artista da Rainha D. Leonor? Habituados a esta centralidade, quase nunca nos ocorrem formulayoes deste tipo. E, no entanto, para alem dos pressupostos dvicos e ideologicos envolvidos, essa indaga<;:ao pode, desde logo, conduzir-nos a explica<;:oes interessantes (se nao mesmo decisiyas) a respeito do Huxo e das orienta<;:oes dos proprios estudos vicentinos. Ate porque raramente os dois pIanos deixam de intersectar-se. Vejamos pois, sumariamente, que respostas podem encontrar-se para estas questoes.
Coloco em primeiro lugar um factor de ordem estetica: precisamente o que decorre da relativa extensao e variedade do corpus vicentino. Sao quase cinquenta pe<;:as, recobrindo os grandes generos do teatto medieval eutopeu, e esta circunstancia, que nunca poderia ser ignorada, constitui, por si so, um rarfssimo valor patrimonial, que abrange a Lingua (captada numa impressionante multiplicidade de niveis e registos) e as formas artisticas moldadas a partir dela e a partir de uma tradi<;:ao de base peninsular e extra-peninsular, que induia 0 Lirismo, a Narratiya e as formas dialogadas em gera!, sem falar nas imimeras praticas nao discursivas tipicas da convivialidade palaciana; vern depois outra condicionante que, embora sendo de natureza dvica e politica, se revel a igualmente poderosa: refirome ao estatuto de dramaturgo quinhentista, que Gil Vicente partilha com relativamente poucos escritores de LIngua Portuguesa e que se ve refor<;:ada
154 JOSE AUGUSTO CARDOSO BERNARDES
com a aura de testemunha viva desse "memorial eterno da portugalidade" que e 0 seculo XVI; lembre-se, por fim, a absoluta excepcionalidade da Copilaram no panorama da cria<;:ao teatral portuguesa, em termos de qualidade (e ate de quantidade), considerando nao apenas 0 seculo de Quinhentos, mas todos os que ate hoje se the seguiram. Em fun<;:ao dessa excepcionalidade, pode afirmar-se que, para alem dos seus meritos pr6-prios, a escrita de Gil Vicente vale tambem pelo seu desacompanhamento. o mesmo e dizer que, contrastando com os silencios que a precedem e se lhe seguem na hist6ria do teatro portugues, a obra em causa assume urn valor algo paradoxal, conjugando uma relativa raridade com a incidencia num tempo muito particular.
A prime ira vista, sao estas as razoes principais que fazem de Gil Vicente urn autor incontornivel da Literatura e da Cultura Portuguesas, ao mesmo tempo que the garantem urn lugar muito especial no nosso imaginirio colectivo, enquanto critico dos desconcertos de uma epoca onde, como em nenhuma ourra, se entrela<;:am sem cessar as nossas Grandezas e Miserias.
E sao tambem estas as razoes que explicam 0 grande caudal bibliografico que tern inspirado. S6 nos vinte anos que medeiam entre 1975 e 1995, puderam recensear-se 620 contriburos, contando edi<;:oes, tradu<;:oes e estudos gerais ou localizados.23 A este numero hi ainda que somar os trabalhos publicados desde 95 para ca 24: tomando por base apenas 0 ritmo medio das duas ultimas decadas, chegamos a apreciivel media de trinta e cinco trabalhos por ano.
No ambito de urn Congresso comemorativo de 500 anos de Lingua Portuguesa no Brasil, pareceu-me justificavel delinear uma visao esquemitica dos estudos vicentinos tal como eles se configuram hoje, tentando depois cap tar algumas das tendencias que se desenham num futuro pr6-ximo, em fun<;:ao das muitas tarefas que permanecem por cumprir. A escolha de tal assunto radica evidentemente no meu pr6prio interesse; mas tenho esperan<;:a de que a minha op<;:ao possa ser tolerada no temario desta Reuniao cientifica. Nao hi duvida de que os auros de Gil Vicente con-
23 Esta contabilidade exacta Figura na Bibliografia vicentina que tern vindo a ser publicada por Constantine C. Stathatos e que conta ja tres volumes.
24 Em finais de 2001, Stathatos publicou a mais recente actualiza~ao da sua Bibliografia, incidindo, desta vez, sobre os 6 anos que medeiam entre 1995 e 2000. Nela se dao conta de 64 trabalhos de natureza crftica (Livros, monografias , teses e panfletos) e 32 artigos integrados em revistas.
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substanciam uma das mais completas e diversificadas realizas:oes esteticas da Lingua Portuguesa de sempre. E nessa perspectiva (mesmo lateral) que aqui gostosamente me assodo a celebra<;:io da Lingua materna de Gil Vicente que, por insondavel fortuna, e ainda a nossa.
2. Como e sabido, a perceps:ao moderna da obra de Gil Vicente deve-se, em Portugal, ao Romantismo. Ha boas razoes para acreditar que tenha sido Almeida Garrett a recomendar a Barreto Feio e Gomes Monteiro (dois judeus de origem portuguesa, radicados em Hamburgo) a reimpressao da Copilaram, 0 que estes fizeram a partir de urn exemplar da 1 a
edis:ao que se encontrava na Biblioteca da Universidade de Gottingen. E foi a partir deste acontecimento (1834) que Gil Vicente se tornou conhecido e estudado por uma pleidade de fil610gos dos finais do seculo passado e prindpios deste, de onde e justo destacar Carolina Michaelis de Vasconcelos e Anselmo Braamcamp Freire.25
Apesar dos esfon;os de contextualizas:ao que foram sendo feitos, a mitologia romantica (que, peIo menos em Portugal conviveu e se prolongou, sem litfgios de maior, no positivismo filo16gico) depressa se apropriou da FIgura de Gil Vicente, transformando-o designadamente numa encarnas:ao da vox populi, especie de genio sem suporte nem explicas:ao racionais (como se sabe, na teogonia romantica, os genios distinguem-se exactamente por nao necessitarem de urn suporte hist6rico).
Tao forte viria a revelar-se esse processo de lendarizas:ao (abrangendo outras figuras literarias do seculo XXI) que acabou por exceder, em muito, os limites cronol6gicos do pr6prio Romantismo. Nem os trabalhos de Ant6nio Jose Saraiva que, urn tanto incompreendidamente, em finais de 30, coloca a obra vicentina na senda de uma vasta e rica tradis:ao europeia, conseguiram obstar ao velho preconceito romantico de que Gil Vicente representa uma especie de meteoro desacompanhado no firmamento idiomatico e cultural da Peninsula.
Grande parte do esfors:o de nomes cimeiros do vicentismo como Paul Teyssier, Luciana Stegagno-Picchio, Stephen Reckert, Cleonice Berardinelli ou Thomas E Hart (para s6 dtar quatro nomes, cujo labor vern desde, pelo menos, a decada de sessenta do seculo XX) pode ainda ser lido como uma tentativa de desromantizar 0 dramaturgo portugues. Mas sem grande sucesso, nesse plano. A avaliar pelo que se ve ainda hoje
25 Para uma resenha dos estudos vicencinos, do seculo XIX aos nossos dias, veja-se o meu Sdtira e Lirismo, pp. 10 e s.
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escrito, condui-se que nao se pode ainda prescindir totalmente desse logotipo, ate porque -reconhe<;:amo-Io - ele se enquadra exemplarmente no nosso esquema mftico de pensar e de sentir. A semdhan<;:a do que sucede com Cam6es e, num plano diferente, tambem com Bernardim Ribeiro, Sa de Miranda e Antonio Ferreira, Gil Vicente integra urn conjunto canonico diverso e bern organizado directamente reportado ao seculo XVI e ao que ele evoca de ilus6es de grandeza colectiva.
3. Olhando para 0 fndice de nomes com que se encerra 0 ja citado volume da Bibliografia de Stathatos e destacando de entre des os que sao responsaveis pel os contriburos de maior relevo, verifica-se, em primeiro lugar, que 0 inventario dos vicentistas incontornaveis vai aumentando a born ritmo e, ao lado dos consagrados nos anos 60 e 70, tornou-se ja obrigat6rio referir nomes como Maria Idalina Resina Rodrigues, Joao Nuno Al<;:ada, Maria Luisa Tobar, Armando LOpez Castro, Manuel Calderon, Stanislav Zimic e 0 proprio Constantine C. Stathatos.
Como nao poderia deixar de ser, por entre os dtulos mais recentes, detectam-se muitas dupIica<;:6es de perspectiva e de resultados obtidos; mas tambem se veem alguns movimentos de renova<;:ao numa area que, alias, durante muito anos, permaneceu sequestrada pela historia Iiteraria (em sentido estrito), quase imune, portanto, aos ventos novos que vieram fecundar as metodologias dos estudos literirios e teatrais.
Continua a predominar, quantitativamente, a tendencia para 0
estudo isolado de urn so auto, correspondendo, muitas vezes, a incurs6es esporidicas e de folego menor de estudiosos nao reincidentes; mas sao ji em numero significativo os estudos transversais que abrangem os autos ou pelo menos alguns conjuntos de pe<;:as, delimitados em termos cronologicos, tem:hicos ou genologicos: a farsa, a comedia, a representa<;:ao da MuIher, do Natal, do Arnor, a projec<;:ao cenico-teatral dos textos, etc. Ainda nurna linha estruturante e global, a Urica vicentina, cuja importancia foi desde sempre intuida, vern merecendo uma aten<;:ao crescente, consubstanciada em edi<;:6es anto16gicas, que nao deixam de surpreender quem tern dos autos urn conhecimento mais rarefeito e em estudos de solida fundamenta<;:ao que religam Gil Vicente a grande tradi<;:1io da Urica iberica de Quatrocentos, nas formas enos temas, ao mesmo tempo que se busca 0 significado global da Urica enquanto correlato dialectico de outras formas de expressao (Y. Reckert e, na sua senda, Calderon e Lopez Castro). Mal conhecido e pouco valorizado durante decadas, 0 lirismo peninsular de Quatrocentos tern vindo, nos ultimos anos, a ser objecto, no seu
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todo, de interesse crescente, em termos de edicrao e exegese crftica. Uma das causas dessa prolongada obscuridade prende-se, alias, com a ideia, tambem ela preconceituosa, de que se trata de uma realidade epigonal e nao precursora. Ao inves de Bernardim, Miranda e Camoes, poetas que fecundaram sucessivas geracr6es de vindouros, nomes como Garcia de Resende, Alvaro de Brito ou Anrique da Mota passam por ser poetas de epoca, no que a designacrao envolve de limitadamente circunstancial. Mas, ainda assim, a escrita desses poetas nao pode ser objecto de urn so angulo de avaliacrao. Trata-se, desde logo, de uma escrita performativa e foi justamente essa dimensao que a tornou vizinha do primeiro teatro peninsular. Poetas e dramaturgos foram tambem, indistintamente, Juan del Encina e Lucas Fernandez, por exemplo. E foi-o ainda Gil Vicente, em proporcr6es muito semelhantes (embora em nlveis de qualidade muito superiores).
4. Perante sinais tao positivos, apetece pensar que os estudos vicentinos se encontram a caminho do lugar que lhes compete por direito proprio no ambito da historia literaria e cultural (portuguesa e peninsular, pelo menos). Mas convem nao embarcar em contentamentos de suficiencia, uma vez que as lacunas sao ainda numerosas e de grande monta. Sem pretensoes de exaustividade, anotemos apenas cinco: as edicr6es; a Lingua; as matrizes esteticas; as coordenadas contextuais e os sentidos.
4.1. Urn dos sinais que melhor reflecte 0 grau de desenvolvimento de uma determinada area dos estudos literarios e, como se sabe, 0 grau de fiabilidade que merecem os textos diponiveis. E, para 0 caso de Gil Vicente, o minimo que se pode dizer e que ele esta ainda longe de ser satisfatorio. Continuam timidos os passos dados para se chegar a uma edicrao critica. Em 1965 (ano em que se comemorou 0 4.° centenario do nascimento do autor) chegou a ser constituida, para 0 efeito, uma ampla Comissao Nacional. Passadas mais de tres decadas, os dedos de uma so mao chegam para contar as edicr6es que podem redamar-se de crfticas (e creio que, das que existem, nenhuma veio a beneficiar desse impulso comemoracionista). Em comrapartida, cresceu bastante 0 numero de edicroes didacticas, embora de urn numero de autos cada vez mais restrito, acompanhando, por razoes de mercado, a substancial reducrao do canone vicentino nos programas de Portugues dos Ensinos Basico e Secundario. Sao em suporte escrito e tambem ja em suporte informatico, mas repetem, por sistema, os erros de leitura, tao fuvorecidos, como se sabe, pelas deficiencias da propria editio princeps. De resto, mais do que com a fiabilidade dos textos
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apresentados, OS cuidados sao postos em estrategias mais ou menos inventivas, tentando apresentar de Gil Vicente imagens ficeis, divertidas e, sobretudo, anacronizantes. Sao as consequencias normais da presen<;:a de Gil Vicente na Escola de massas, onde aparece reduzido a meia-duzia de chavoes, que oscilam sobretudo em fun<;:ao das conjunturas dvico-politicas e em resultado do capricho (muitas vezes insondivel) dos autores de programas e manuais. 26
Mais inaceitivel do que a escassez de edi<;:oes criticas e, ainda, a penuria de edi<;:oes globais fidedignas. No mercado portugues encontram-se hoje a edi<;:ao da Lello & Irmao (que se limita a reproduzir, em aparato de luxo, a que Mendes dos Remedios preparou em 1907 para a colec<;:ao Subsidios para a Historia da Literatura Portuguesa); encontra-se ainda a edi<;:ao de Costa Pimpao que, apesar da sua melhor qualidade cientifica, e "artistica", 0 que significa dizer que e ainda mais cara, alem de pouco pritica, pelas suas invulgares dimensoes. A edi<;:ao dos clissicos Si da Costa (preparada por Marques Braga, hi cerca de 60 anos) cumpriu razoavelmente a sua missao na Escola portuguesa ao longo de trinta anos mas ji s6 se encontra em alfarrabistas; ate a que Maria Leonor Buescu preparou para a Imprensa Nacional, hi 20 anos (com normaliza<;:ao de texto), e que tern alimentado 0 mercado universitirio nos ultimos anos, se encontra ji fora da vista dos potenciais compradores.
Hi muito pouco tempo e ainda sob efeito de uma outra celebra<;:ao (os 500 anos do Monologo do Vaqueiro, celebrados em 2002) apareceu uma nova edi<;:ao das Obras de Gil Vicente, com fixa<;:ao de texto em 2 volumes, mais dois contendo a reprodu<;:ao em fac-simile da Copilafiio de 1586 e dos folhetos quinhentistas ate hoje identificados e ainda outro com Notas, Glossirio, Bibliografia e virios indices. 0 empreendimento dirigido por Jose Camoes, resultou directamente da edi<;:ao de urn CD Rom, publicado apenas urn ana antes, e constitui, sem qualquer duvida, uma iniciativa muito louvivel, nao s6 pela li<;:ao melhorada que agora se propoe do texto vicentino, mas tambem porque proporciona ao lei tor curioso (e mesmo ao investigador) materiais de muito dificil acesso, comodamente reunidos e editados. Isto nao significa, porem, que tenha deixado de haver lugar para outro tipo de edi<;:oes parcel ares ou integrais, destinadas a urn publico ainda mais vasto, com introdu<;:oes criticas a cada auto ou a cada conjunto
26 Sobre a presens:a de Gil Vicente na Escola veja-se 0 estudo que encerra 0 presente volume.
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de autos, bibliografias selectivas e, sobretudo, as notas explicativa em pe de pagina, em quantidade suficiente para tomar os textos verdadeiramente acessiveis. De forma ainda mais clara: nota-se a falta de uma edi<;:ao que pudesse coresponder ao modelo dos Classicos Sa da Costa, revisto e actualizado em fun<;:ao dos progressos entre tanto alcan<;:ados nos estudos vicentinos e em fun<;:ao dos destinatarios reais e potenciais do nosso tempo e dos tempos mais pr6ximos. Em si mesma, a falta e muito significativa. Tratase de urn trabalho moroso e dificil de empreender, requerendo 0 empenhamento de uma verdadeira equip a que, para alem de especialistas em critica textual e em hist6ria da lingua, deveria ainda contar com pessoas familiarizadas com as formas e os sentidos do teatro medieval, em geral e da obra de Gil Vicente, muito em particular. E logo por aqui se avalia a dificuldade em congregar as vontades, as competencias e os meios necessirios para levar avante esse cometimento.27
Tambem 0 panorama das tradu<;:6es esta longe de ser excelente. Para alem das Barcas, do Auto da Alma e da Sibila Cassandra (pe<;:as muito traduzidas para quase todas as linguas europeias na primeira metade do seculo XX) tem-se verificado uma natural curiosidade pelos autos que
27 Tao dificil como congregar uma equipa com este perfil, mesmo reduzida ao essencial, e convencer (e manter convencidas) as entidades publicas da propria utilidade da iniciativa. A esse propos ito, 0 autor destas linhas teve uma experiencia elucidativa, justamente enquanto coodenador de urn projecto de ediyao integral da obra vicentina. 0 objectivo da equipa, constituida sem qualquer apoio de ordem economica ou institucional, era estabelecer uma edi<;:iio fiavel, anotada e comentada, decalcando, com a necessaria actualizayao de perspectiva e de metodo, 0 modelo de Marques Braga. Obtido pela editora 0 apoio flllanceiro para os custos de ediyao (no ambito do projecto "Clissicos da Lingua Portuguesa"), encetou-se 0 trabalho, necessariarnente demorado e requerendo, a cada passo, momentos de aferiyao concertada. Ia ja muito adiantada a preparayao do Livro IV (0 das farsas) quando, invocando 0 facto de entretanto ter surgido, na Imprensa Nacional, uma nova ediyao das Obras Completas, 0 Instituto Portugues do Livro e das Bibliotecas, enquanto entidade patrocinadora, comunica a editora proponente a decisao de cessar 0
apoio antes acordado. Pouco tempo antes tinham vindo a publico algumas opini6es de destacados intelectuais, atacando a politica de apoios do referido Instituto e dando como exemplo 0 facto de, em sua opiniao, ser superflua a existencia de duas ediy6es integrais da obra do nosso maior drarnaturgo. E de nada valeu argumentar com a diferenya dos projectos em questao; de nada valeu sequer invocar a grandeza de Gil Vicente, que os membros da equipa pensavarn ser suficiente para legitimar duas ediy6es integrais.
Refira-se, por fim, que tudo isto aconteceu a beira de se celebrarem os 500 anos do Monologo do Vaqueiro.
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reflectem as circunstancias da Expansao, inspirando urn mimero razoavel de versoes, nomeadamente em Lingua Inglesa. Men<;:ao muito positiva, a este respeito, merecem as tradu<;:oes francesas coordenadas por Paul Teyssier, que come<;:aram a vir a lume, sob a chancela das Editions de la Chandeigne, ja na decada de 70.28 Mas se a este excelente exemplo quisessemos contrapor urn fenomeno de sinal contrario, nao seria dificil: bastaria aludir as edi<;:oes do teatro exclusivamente castelhano de Gil Vicente (feitas por espanhois e publicadas em Espanha) e a outras feitas em Portugal, sistematicamentemente expurgadas dos autos em castelhano ou ate dos textos bilingues.
Enquanto este estado de coisas subsistir, e bern provavel que Gil Vicente continue ausente das historias do teatro europeu. Em Italia, em Fran<;:a ou nos paaises anglo-saxonicos, 0 dramaturgo portugues constitui ainda uma escandalosa ausencia, sendo objecto, quando muito, de referencias fugazes e quase sempre deturpadas. E isto apesar de, em teoria, se ter tornado impossive! a reconstitui<;:ao dos grandes generos do teatro medieval, a revelia do seu legado. Nao pode aceitar-se, por exemplo, a identifica<;:ao acritica de Gil Vicente com Encina e Fernandez, sistematicamente agrupados (os tres) nas Historias do Teatro Espanhol, no rol dos "primitivos" ou dos "precursores".
As insuficiencias de base verificadas nestes dois pIanos nao po de obviamente deixar de condicionar a produ<;:ao critica, uma vez que da{ resultam dificuldades naturais no acesso aos textos. Deste modo, a necessidade de conjugar esfor<;:os para ultrapassar este estado de coisas, num sentido duplo e convergente impoe-se com naturalidade, enquanto plano de trabalho a implementar em regime de estreita colabora<;:ao e apoio interinstitucional.
a) elaborar uma edi<;:ao integral de Gil Vicente, com notas de caracter filologico e historico-cultural, de modo a cumprir urn designio bern simples: 0 de tornar acessivel, na sua globalidade, um corpus auroral absoluramente tinico na historia da cultura portuguesa. Para tanto, torna-se necessario estabe!ecer criterios de anota<;:ao, que deverao ir desde 0 escla-
28 A iniciaciva comou, no inicio, com a coordena<;iio muito activa de Paul Teyssier e prossegue, ao que sabemos, sob a egide de alguns dos seus discipulos na Universidade francesa, de que e JUSto destacar Anne Marie Quint e Olinda Kleiman. Para uma resenha do projecto e dos criterios em que assenta, veja-se a entrevista de Anne Marie Quint, conduzida por Christine Zurbach, in Adagio, 34/35 (Setembro de 2002/Janeiro de 2003), pp. 137-141.
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recimento vocabular localizado e cotextual, ate ao comentario estetico e ideo16gico.29
b) depois - ou paralelamente? - deve levar-se por diante a tao almejada edi~ao cdtica, ainda mais trabalhosa, mas, ainda assim, perfeitamente exequfvel (sobretudo, em face dos progress os assinalaveis que a edi~ao Cam6es consagrou a este nive1) e, sobretudo, amplamente justificada em face dos beneHcios que promete.
4.2. Na posse destes do is elementos de trabalho seria, sem duvida, muito mais fkil deitar ombros a tarefas de outra indole, enfrentando problemas que desde ha muito se encontram suspensos. Era preciso voltar a questao da Lingua, em primeiro lugar. Sobre este assunto, Paul Teyssier disse praticamente a primeira e a ultima palavra. Mas disse-a em 1959. Na mesma perspectiva ou adoptando outros enfoques, imp6e-se retomar o estudo da Langue vicentina, em correla~ao com os varios registos do discurso literario e nao-literario da mesma epoca, nos dominios idiomaticos do Castelhano e do Portugues, atraves de cruzamentos que os recursos informaticos vieram entre tanto facilitar enormemente. Penso sobretudo na questiio do Lexico, onde, depois de Teyssier, os caminhos se encontram bern desbravados; e tenho muito concretamente em vista os trabalhos que se desenvolveram ja a prop6sito de obras em castelhano contemporaneas de Gil Vicente, como e 0 caso da Celestina. Mas seria igualmente muito bern recebido urn inventario dos t6picos enunciativos ou da prodigiosa gama de situa~6es de diaIogo dramatico registadas ao longo dos autos.
De facto, para ahSm de outras vantagens, 0 estudo da morfologia do diaIogo permitiria estabelecer, de forma mais rigorosa, 0 complexo de matrizes a que se reporra a obra vicentina e surpreender a grande versatilidade estetica que a assinala.
29 De entre os numerissimos exemplos que poderiam destacar-se no panorama editorial espanho! (ficando-nos assim por urn espac;:o bern proximo), cinjo-me apenas a uma recente edi\;lio da CeieJtina, preparada por uma equipa que integra nomes como Francisco ]. Lobera, Gillermo Seres, Paloma Diaz-Mas, Carlos Mota, Inigo Ruiz Arzilluz e Francisco Rico, com varios Estudos, Aparato Critico, Notas, Bibliografias e indices que se estendem por quase urn milhar de paginas.
Sao muito variados as motivos para pensar que um conjunto como as Barca,', par exemplo, hi muito que requer uma atenc;:ao deste tipo.
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4.3. Julgo tam bern necessario reexaminar a questao das matrizes da arte vicentina. Concebido durante muito tempo como uma ave ins6lita nos Ct~Us rarefeitos da dramaturgia portuguesa, Gil Vicente permanece ainda escassamente integrado na tradic;:ao peninsular e europeia, em geral, tanto em termos de ascendencia como em termos de projecc;:ao. Questoes como ados generos teatrais ou ados pr6prios esquemas de encenac;:ao muito terao a ganhar com este trabalho de insen;:ao que liberte a obra vicentina das fronteiras polfticas e ate idiomaticas a que tern estado confinada. Neste plano particular, e claro que os estudos vicentinos muito tern a ganhar com o grande incremento de publicac;:6es de textos dramaturgicos, ineditos ou reajustados em bases filol6gicas mais seguras, que se vern fazendo no espac;:o frances e espanhol e bern assim dos estudos acerca do teatro tardomedieval (nomeadamente 0 de expressao francesa); como podem beneficiar significativamente com os novos quadros de leitura abertos pela semiologia do texto dramitico, concebido, nao ji como objecto linear e passivo, mas como objecto poligonal e transversalmente codificado.
4.4. Outro aspecto que carece de atenc;:ao reforc;:ada prende-se com as coordenadas contextuais que balizam a produc;:ao e a recepc;:ao dos textos vicentinos. Superados hi muito os limites e os excessos do contextualismo determinista que marcou os estudos literirios ate a primeira metade deste seculo e preservada a especificidade do fen6meno estetico, estao abertos os caminhos para que se aproveite mais e melhor 0 contributo das disciplinas historiogrificas (Historia da Arte, das Mentalidades, dos pIanos Institucional e Politico). Paralelamente ao enraizamento estetico, torna-se indispensivel esclarecer melhor os pararnetros da convivialidade cortesa em Portugal, no primeiro terc;:o do seculo XVI, ajustando, para ji, a leitura dos autos ao que de novo se tern vindo a publicar sobre estas materias. Nos anos mais recentes, tern surgido contributos importantes, nomeadamente no que se ref ere a figura da Rainha D. Leonor de Lencastre e as linhas de espiritualidade que the sao pr6ximas e cuja repercussao no teatro vicentino merece atenc;:ao demorada. A este prop6sito, dispomos hoje de um solido e muito desenvolvido trabalho de investigac;:iio consagrado a D. Leonor, aos seus desfgnios e aos efeitos da sua acc;:ao, da autoria de Ivo Carneiro de Sousa. Nesse trabalho se adaram com nova e abundante documentac;:ao e com sentido cdtico muito prudente algumas das suposic;:oes que ate aqui circulavam sem bases suficientes: a prop6sito da Misericordia e de tudo 0
que ela envolve enquanto prindpio fundamentador da acc;:ao leonorina, das principais orientac;:6es da sua religiosidade, das condic;:oes em que se
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constituiu e evoluiu a casa e a corte da esposa de D. Joao II, etc. De vez em quando, Carneiro de Sousa faz men~ao do teatro de Gil Vicente, tentando nomeadamente vincula-Io ao quadro edificante que resulta destas circunstancias. Mas sao insuficientes os nexos estabelecidos e, por vezes, ainda frageis as condusoes extraidas.3° Doravante, porem, os vicentistas nao poderao prescindir deste valioslssimo acervo de informa~ao no ac1aramento dos parametros contextuais em que se moveu 0 dramaturgo.31
De forma mais lata, tambem e preciso reconhecer que se tern progredido no conhecimento do seculo XVI, em geral, em termos sociopoliticos e mentais, abrindo caminhos para a aferi~ao da importincia que em Gil Vicente detem a tradi~ao popular, seja ela vista como urn deposito cultural que os palacios nao exc1ulam, seja ela entendida como uma op~ao estetica consequente. De facto, des de Carolina M. de Vasconcelos e Teofilo Braga que se intuiu e valorizou a imporrancia do substrato foldorico no teatro de Gil Vicente. Colocada nestes termos, porem, (raramente se tern ido mais longe), a questao e vaga, necessitando muito de aprofundamento e de realinhamento de perspectiva, it luz do muito que entretanto se avan~ou nestes domlnios.
o aprofundamento desta linha de investiga~ao nao deixa de implicar riscos importantes. Durante muitos anos, 0 teatro vicentino foi assumido como ponto de partida para aceder it compreensao do seculo XVI, funcionando, nessa medida, como fonte quase irreservada da maioria dos historiadores; e tambem chegado 0 momenta de os historiadores enriquecerem os estudos vicentinos com conhecimentos hauridos em Fontes diferentes. So asim sera possive! discriminar aquilo que em Gil Vicente e manifestamente testemunhal, aferir 0 grau da transforma~ao estetica que a partir da! se operou e derimir, enfim, com senso hermeneutico, ve!has questoes dos estudos vicentinos como sejam 0 realismo, a sdtira ou 0
comico, indexado as figuras e as situa~oes da epoca.
30 Refiro, por exemplo, a leitura do Auto da Alma no pressuposro de que a pes;a se integra no quadro mais vasto do teatro de MisericOrdia. Partindo da informas;ao didasclliea (mais do que duvidosa, alias) de que a pes;a foi representada em 1508, Carneiro de Sousa situa-a eoneretamente no termo de uma proeissao de Miseric6rdia, realizada em quinta-feira de endoens;as (ef. op. cit., pp. 409 e 55.).
31 Num dos Anexos, 0 autor estabeleee novas aproxima¢es a casa, eapela e aos dreulos sociais e religiosos de D. Leonor, identifieando 178 individualidades de algum modo relacionados eom a rainha. No que toea a Gil Vicente, porem, nao regista novidades, subscrevendo, na prariea, as interpretaS;6es de Braamcamp Freire, nomeadamente no que toea a tese da idemidade entre 0 dramaturgo e 0 ourives (C£ pp. 856-857).
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E tempo, tambem, de os estudos vicentinos beneficiarem da reconversao de perspectivas que algumas correntes mais recentes trouxeram para os estudos literarios e para os estudos teatrais. Refiro-me, em primeiro lugar, ao "New Historicism" ou Poetica Cultural, corrente que se afirmou nas Universidades anglo-sax6nicas ao longo dos anos 80 e 90, tendo justamente como centro a dramaturgia do Renascimento, em geral e a obra de de William Shakespeare, em particular.
No caso vertente, tratar-se-ia, antes de tudo, de assumir que a obra de Gil Vicente corresponde a textualiza<;:ao de uma determinada realidade (irrecuperavel em si mesma, como todaas as realidades do passado), havendo todo 0 interesse em proceder a estudos integrativos de alcance mais vasto, tendo em considerayao OlltroS processos textuais literarios e nao lited.rios. Aproximar, sob esse angulo, os autos vicentinos de textos teol6gicos, cronisticos, jurfdicos, tratadisticos ou promover a sua compara<;:ao com ourros tipos de dircurso ardstico produzidos a partir dos diferentes focos de Poder nao seria, em alguns casos, coisa inedita. Mas seria realmente novo transformar esse trabalho em projecto de investiga<;:ao sistematico, perseguindo desta vez, nao a utopia da leitura totalizante e definitiva (era esse 0 projecto Ultimo do velho historicismo filol6gico) mas 0
adaramento progressivo e sempre condicionado dos circuitos de energia cultural que envolvem a Cultura da epoca de Gil Vicente.
Na medida em que pressup6e uma aproxima<;:ao a zonas mais obscuras ou menos "centrais", uma orienta<;:ao deste tipo poderia tambem contribuir para instaurar novos focos de interesse, em ordem a urna outra visao dos textos e dos contextos em apre<;:o, que fosse, ao mesmo tempo, mais culta sob 0 ponto de vista teorico e menos preconceituosa, sob 0
ponto de vista ideol6gico.
No ambito das novas orienta<;:6es, refiro ainda, 0 P6s-colonialismo que, no caso de Gil Vicente como em outros exemplos da Literatura do seculo XVI, detem urn assinahivel potencial de reconversao.32 Ha sobre-
32 Ao longo do presente volume, rive oportunidade de deli near algumas pistas de trabalho que poderao resultar da aplica<;:lio a Gil Vicente de outros quadros metodol6gicos (v. sobretudo, '~A.s Partes d'A..Iem ... "), registando sobretudo as que se inscrevem no quadro do New Historicism e do P6s-Colonialismo.
Como termo de comparar;:ao, evoque-se uma receme temativa de let Cam6es sob a egide do pos-colonialismo, corporizada em numero monografico de uma revista universitaria americana consagrada a assumos portugueses:Portuguese Litera~y and Cultural Studies, 9 (2002), subordinado ao titulo "Post-Imperial Cam6es". Embora em alguns estudos, pre-
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tudo que ter em conta, a este prop6sito, que as primeiras leituras de Gil Vicente foram cunhadas sob a egide de fortes preconceitos coloniais e que a sua repercussao no sistema de ensino foi particularmente marcante ao longo de muitas decadas. Uma revisao pas-colonial da obra vicentina passaria assim, em primeiro lugar, pela desconstrw;:ao dos principais preconceitos de leitura, de cankter polltico e ideolagico que vern assinalando a investiga<;:ao e 0 consumo escolar do autor; passaria, depois, eventualmente, por uma maior valoriza<;:ao das componentes esteticas em presen<;:a.
4.5. Efecruadas estas opera<;:oes previas, sera altura de aprofundar os sentidos da obra vicentina, concebida na~ apenas como aglomerado de pe<;:as, mas como macrotexto, ou seja, como totalidade organica apoiada em linhas de coerencia tematica e ideol6gica. Existe verdadeiramente urn ideario vicentino? Como se projecta de atraves do jogo teatral? Quais as componentes esteticas que the dao corpo? Que tipos de correla<;:ao se estabelecem entre elas? Levando estas questoes ainda mais fundo, poderemos perguntar: participa ou nao Gil Vicente do movimento identitirio que atravessa a cultura portuguesa do seculo XVI? Se respondermos afirmativamente a esta pergunta, teremos em seguida que enfrentar outro desafio: aferir a densidade dessa participa<;:ao, usual mente confinada aos drculos e correntes do Humanismo.
Poderao parecer demasiado gerais estas perguntas. E, no entanto, se nao erro, sao elas que hoje melhor ilustram as expectativas actuais dos devotos vicentistas. Daqueles que estudam os textos e daqudes que, pura e simplesmente, mantem com eles uma rela<;:ao de curiosidade fruitiva e indagante.
Independentemente das respostas que possam vir a encontrar-se para estas questoes, talvez se possa reconhecer, desde ji, a utilidade da sua simples formula<;:ao. Quanto mais nao seja, porque da se revela suscepdvel de abalar alguns cliches, que vern circulando desde hi muito, com transito demasiado ficil.
Como era inevitavel, 0 lugar central que Gil Vicente ocupa no canone portugues contribuiu para uma mineraliza<;:ao excessiva do conhecimento que sobre de tern sido divulgado. A esse respeito, alias, parece
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pondere largamente a tonica reactiva e iconoclasta (a evitar, tanto quanto possfvel), e indesmentivel que a reconversao de perspectiva se traduz, em alguns casos, em evidentes aquisi<;:oes de conhecimento e, sobretudo, na relativiza<;:ao de urn saber iedologicamente marcado, que se vinha repetindo sem 0 necessirio exame critico.
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bern sintomatico que 0 autor das Barcas nao tenha sido objecto de atenyao por parte dos gran des ensaistas portugueses, que tanto contribuiram para legitimar novas aproximayoes a outros autores do ca.none (nem Sergio, nem Lourenyo, nem Aguiar e Silva, por exemplo, the tocaram de forma consistente).
Costuma dizer-se, alias, que essa e a "defesa" dos classicos e e tambern, sem duvida, 0 segredo do seu sucesso num determinado modelo de Escola. Resta saber, porem, se essa situayao se compadece com a Escola que todos afirmamos querer construir: activa e nao dormente, criativa, transformativa e nao redutoramente patrimonialista. Como, alias, e inaceitavd que esta visao pobre possa ser trans posta para drculos de maior exigencia intelectual, como a propria Universidade, afinal tambem visivelmente constrangida quando se trata de lidar com nomes decisivos do nosso canone literario e cultural.
No passado dia 7 de Junho de 2002 completaram-se 500 anos desde que Gil Vicente, disfaryado de rustico saiagues irrompeu na camara da rainha parturiente para pronunciar 0 famoso "Pardiez" fundador do teatro lusitano. Talvez seja ainda cedo para conduir se essa circunstancia foi ou nao devidamente assinalada no plano dvico-cultural. 0 impacto imediato nao foi grande, mas pode ser que 0 impulso das comemorayoes se projecte num futuro proximo, de forma a suprir peIo menos algumas das lacunas que aqui apontei.
Em outras ocasioes hao-de fazer-se ourros balanyos dos estudos vicentinos para apontar ourros designios, suscitados pelo aparecimento de novos dados e pela emergencia de novas expectativas. E verdade que, como disse halo Calvino, urn dassico e "aqude que nunca acaba de dizer 0 que tern para dizer". E plenamente 0 caso de Gil Vicente: ouvi-Io e inquiri-Io cada vez mais e de angulos diferentes e urn exerdcio cultural dos mais promissores. E nao hi duvidas de que de esta mais do que preparado para essa prova.
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