becker 23

Post on 13-Nov-2015

2 Views

Category:

Documents

1 Downloads

Preview:

Click to see full reader

DESCRIPTION

texto para metodologia

TRANSCRIPT

  • v.16, n.2, abr.-jun. 2009, p.573-576 573

    Escapando das armadilhas dos mtodos

    Escapando das armadilhas dos mtodos

    Escaping the traps of methods

    Ana Paula Alves RibeiroPesquisadora no Ncleo de Pesquisa das Violncias/

    Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiroanapalvesribeiro@gmail.com

    Em momento no qual a interdisciplinaridade est em evidnciae a prtica da pesquisa se torna intenso dilogo entre os vriosmtodos oferecidos pelas mais diversas escolas, Segredos e truques dapesquisa vem corroborar a importncia dos instrumentos tericos disposio dos cientistas sociais.

    Escrito por Howard S. Becker, professor em So Francisco,Califrnia, lanado em 1998 nos Estados Unidos e publicado noBrasil por Jorge Zahar Editor, o livro apresenta linguagem clara,acessvel ao pblico no s das cincias sociais, mas tambm dereas afins, como sade. Alguns dos livros anteriores de Becker aquieditados Uma teoria da ao coletiva (1977), Mtodos de pesquisa emcincias sociais (1994) e Outsiders (1966) so bastante utilizados emcursos de graduao e ps-graduao, tendo-se tornado refernciapara vrios autores das cincias sociais brasileiras. A familiaridadedo autor com outras culturas, como a nossa, por exemplo, e com

    outras reas msica, etnomusicologia, matemtica e neurologia so algumas delas nosfaz pensar alm de nosso prprio universo de anlise.

    Segredos e truques da pesquisa livro generoso, pois Becker o transforma em longo dilogocom seus pares e sua linhagem. Seus mtodos e tcnicas de pesquisa no so apenas os seus;incluem os de seus professores, dos professores de seus professores, de seus colegas e alunos.Trata-se tambm do resultado de pesquisas realizadas ao longo de sua carreira, da relaoestabelecida com seus entrevistados e do compromisso com seus objetos de pesquisa.

    O propsito declarado do livro ajudar as pessoas a compreenderem como se faz otrabalho cotidiano de pesquisa em cincias sociais, como lidar com os problemas queincomodam estudantes e jovens pesquisadores quando se ocupam de aprender um ofcioprofissional estranho: pensar sobre os dados que colhem, escolher os lugares aonde vocolher seus dados e as pessoas que observam ou entrevistam (p.7). A tarefa difcil, masBecker se prope a faz-la e faz bem. Ao estabelecer a linha narrativa na primeira pessoa,trazendo exemplos de seu cotidiano profissional, (re)apresentando-nos autores, ele nosaproxima de seus pares de ambos os domnios, teoria e metodologia, o que os torna nossospares (e parceiros) tambm.

    Becker, Howard S.Segredos e truques dapesquisa. Rio deJaneiro: Jorge Zahar,2007. 296 p. (ColeoNova Biblioteca deCincias Sociais).

  • 574 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Ana Paula Alves Ribeiro

    O cuidado em deixar o texto palatvel demonstra a preocupao, alis explicitada, deum mestre cuja bagagem comporta anos de sala de aula. O pertencimento a sua culturano condio sine qua non para compreender seus exemplos, representaes e conceitos.As diferenas nacionais aqui so um problema na anlise da pesquisa, mas no para oentendimento do texto. Questes relativas s diferentes realidades apresentadas so aplicveisaos problemas de pesquisa de outros contextos. Vrios dos casos trazidos, por exemplo, sereferem s diferenas culturais na rea da sade, isto , como a clnica mdica ou a pesquisanessa rea podem ser influenciadas em grande parte pela questo cultural. Diferenas tnicas,locais de residncia, idade, sexo, entre outras variveis, fazem parte tanto da realidadeamericana como da nossa. Podemos, portanto, nos beneficiar de exemplos referentes aanlises feitas em universo diferente do nosso como problemas e obstculos dos antro-plogos americanos na pesquisa com populao que, a rigor, extremamente diferente danossa para pensar nosso prprio universo, ou objeto, ou referencial.

    Seu primeiro captulo, Truques, tambm maneira de introduzir um livro originalsobre mtodos de pesquisa, reconhecendo simultaneamente a importncia de autores epesquisas anteriores ou contemporneas s suas e sobretudo acessveis. No se trata demanual com receita de pesquisa, mas de dilogo permanente com o leitor, o que ajuda aestabelecer caminhos alternativos para antigos problemas.

    Cada seo do livro aborda uma conveno cientfica, o que permite, segundo o autor,estender o pensamento alm da reviso da literatura.

    No segundo captulo, Representaes, a preocupao de Becker se encontra nas imagensque criamos de nossos objetos, antes de iniciar de fato a pesquisa. Ele trabalha com a ideiade que temos basicamente dois tipos de representaes, as substantivas e as cientficas. Nasrepresentaes substantivas, o senso comum, ou seja, nossa viso de mundo e as imagensque dele fazemos no dia-a-dia precisam ser trabalhadas cientificamente. Essas representaessubstantivas podem ser esteretipos, recobertos de certeza e arrogncia, que no nos deixamcriar, acolher ou pensar novas representaes mais adequadas a nosso objeto. Quanto srepresentaes cientficas, referem-se s configuraes conceituais e representaes parti-lhadas pelo grupo profissional do qual fazemos parte, o dos cientistas sociais, armadilhasdas quais nos livramos pela mera clareza de que essas questes existem, e nos livramos maisconfortavelmente se estivermos munidos de truques para lidar com elas. O que pode parecerbvio talvez no seja to bvio assim. Os truques indicados, como o da hiptese nula utilizado para formalizar nosso pensamento , o de pensar a sociedade como mquina oucomo organismo, e tambm aqueles decorrentes do dilogo com as narrativas construdaspelos entrevistados, ainda so extremamente teis. Posto que trabalho com minha visode mundo e com a viso de mundo de meu grupo profissional, estou razoavelmente aptoa pensar o problema do meu objeto de pesquisa com a minha construo de esteretipose juzos de valor cientificamente controlados.

    Alguns casos trazidos por Becker so recorrentes em pesquisas qualitativas e se referem substituio do por que pelo como. Perguntar a um entrevistado resistente como ele seenvolveu com alguma atividade ilegal, por exemplo, permite-lhe mais liberdade de estruturarsua prpria narrativa e, a ns, entender melhor a trajetria ou o processo que o levou a seenvolver na atividade. Quando perguntamos por que demonstramos de alguma forma

  • v.16, n.2, abr.-jun. 2009, p.573-576 575

    Escapando das armadilhas dos mtodos

    nossos juzos de valor e esteretipos, podendo ficar subentendido, por exemplo, que oacusamos de se ter envolvido em tal atividade.

    O que est em jogo nesse captulo so nossas consideraes, nossos dilemas e nossasdvidas na estruturao do objeto de pesquisa. Como, ento, ter clareza de que nosomos aquelas pessoas e no vivemos nas circunstncias delas (p.33) e manter, ao mesmotempo, nossa autoridade de pesquisador (tentando controlar nossos esteretipos e imagenspreestabelecidas sobre o outro)? No questo como, alis, as demais apresentadas nolivro de fcil resoluo. Cada trajetria de pesquisador e cada pesquisa daro tomdiferenciado ao caminho a seguir ou ao truque a empregar.

    Isso tambm ocorre em relao amostragem, abordada no terceiro captulo e percebidapelo pesquisador a partir de seus objetivos e do que quer entender em seu trabalho. Aamostragem perpassa tanto a pesquisa qualitativa quanto a quantitativa e a que mescla osdois tipos, e diz respeito seleo dos casos a serem estudados dentro de determinadouniverso. Ela precisa ser necessariamente representativa e evitar tendncias, mesmo quandono utiliza procedimentos estatsticos. As variveis com as quais trabalhamos devem tervalor tanto na amostra como na populao estudada. Os mtodos qualitativos tm, nessetipo de anlise, uma grande interao com os mtodos quantitativos, assim como umarelao profcua com nossas prprias representaes. Com relao amostragem, o racio-cnio deve ser: se a descrio total no existe, ento como fazer as escolhas do que deveentrar na pesquisa? Como determinar o que excluir? Os truques serviro para responder aparte dessas perguntas. So os mais diversos, mas podem ser resumidos a afastar certasgeneralizaes e duvidar. Duvidar da hierarquia da credibilidade, duvidar de que nadaacontece em nosso trabalho de campo, duvidar de que todo mundo sabe de tudo, assimcomo dos dados trazidos por terceiros, no coletados por ns, e assumir o risco e asdeficincias de utilizar informaes que no foram observadas diretamente para nossospropsitos.

    Conceitos, o quarto captulo, recomenda pensar como usar dados para criar idiasmais complexa que nos ajudaro a encontrar outros problemas que merecem ser estudados(p.146) e apresenta alguns casos representativos da diversidade dos conceitos. Citado porBecker, Blumer observa que no possvel haver cincia sem conceitos (p.146). Eles soguias que nos ajudaro a olhar, procurar e reconhecer algo quando encontramos. apartir dessa premissa que Becker apresenta sua maneira preferida de desenvolver conceitos,estabelecendo dilogo contnuo com os dados empricos. Alguns cientistas constroemmodelos tpicos ideais, outros podem desenvolver seus conceitos manipulando ideias bsicas.O dilogo com os dados empricos profcuo, uma vez que cada caso trar uma surpresaou um resultado diferenciado, dependendo da maneira como o dilogo foi estabelecido eo conceito, definido.

    A partir de dados empricos e dos resultados de pesquisas, Becker aponta como osconceitos podem ser construdos na forma de processo, e apresenta dois casos para ilustraras afirmaes de que os conceitos podem ser generalizaes empricas e so relacionais. Nosegmento Generalizaes empricas ele pergunta, a partir de pesquisa de Marisa Aliceasobre migrantes porto-riquenhos nos Estados Unidos, se pode definir o local de residnciade uma pessoa: trata-se do lugar em que se recebe correspondncia, dorme-se, se pode ser

  • 576 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Ana Paula Alves Ribeiro

    encontrado, guardam-se as roupas? A pergunta do censo de 1960 era ambgua com relaoa esses aspectos. Alicea aponta que os migrantes viajam a Porto Rico com frequncia esempre voltam a Nova York ou Chicago. Isso significa, para a autora e para Becker, que ageneralizao pode ser verdadeira ou no, positiva ou no, j que boa parte das pessoasmantinha, na realidade, duas bases de residncia entre as quais transitava com regularidade.

    Os conceitos so relacionais, posto que inseridos nos diferentes contextos. Crianasnegras e hispnicas so rotuladas com retardo fronteirio durante a fase escolar, mas oretardo fronteirio superado quando esses alunos saem da escola.

    Como, ento, possvel trabalhar com uma variedade de fenmenos, com umadiversidade de casos, sem colher mais e mais dados? Em Lgica, o quinto captulo, Beckerrecomenda lidar com a massa de dados empricos de forma a que o resultado aponte umadireo. A partir de mtodos especficos das cincias sociais, ele discute a produo databela de verdade, isto , a classificao cruzada de variveis qualitativas. Os mtodosescolhidos foram anlise do espao de propriedades (AEP), anlise comparativa qualitativa(ACQ) e induo analtica (IA). O que eles tm em comum, e esse um truque, a tentativade extrair categorias, ideias, independentemente de seu valor.

    Como proposta de concluso, Coda uma forma potico-musical de se despedir dosleitores. Refere-se s concluses em msica e em poesia. At o final, interdisciplinar quali-dade que nem ope nem hierarquiza as cincias e ainda as traz como colaboradoras noprocesso de pesquisa acadmica.

    Frequente no livro a sinalizao de que o bvio no to evidente e que o insistenterefazer de perguntas pode trazer respostas no esperadas, o que positivo para a pesquisacomo um todo. Fica a impresso de que Segredos e truques, por no ser um manual, mas simuma possibilidade de caminho a seguir, deixa margem para diversos tipos de leitura, depen-dendo da experincia profissional e do tipo de pesquisa em questo.

    Ao dialogar com sua linhagem e seus pares, Howard Becker nos insere em prazerosacaa ao tesouro e nos faz um grande convite: abandonar nossas certezas, juzos e nossaprpria f, e embarcar numa oportunidade nica de perceber nossos avanos e retrocessosno campo que resolvemos estudar e no qual decidimos trabalhar e atuar.

    REFERNCIAS

    BECKER, Howard S.Mtodos de pesquisa em cincias sociais. 2.ed.So Paulo: Hucitec. 1994.

    BECKER, Howard S.Uma teoria da ao coletiva. 1.ed. Rio de Janeiro:Zahar Editores. 1977.

    BECKER, Howard S.Outsiders, studies in the sociology of deviance.New York: The Free Press. 1966.

    Tt

top related