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DOM HÉLDER CAMARA, UM OLHAR SOBRE A CIDADE; RECIFE, CIDADELA NA LUTA PELO DESENVOLVIMENTO
Murilo de Avelar Alchorne
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DOM HÉLDER CAMARA, UM OLHAR SOBRE A CIDADE; RECIFE, CIDADELA NA LUTA PELO DESENVOLVIMENTO
Murilo de Avelar Alchorne graduando em bacharelado em História pela UFPE
I. Introdu ção
No dia 11 de abril de 1964, Dom Hélder de Pessoa Camara chegou ao Recife
às 15:20, no Aeroporto dos Guararapes. Anfitriões esperavam-no; autoridades civis,
militares e eclesiásticas.1
Nascido em sete de fevereiro de 1909, em Fortaleza, Ceará, fez-se Bispo em
1952 passando a presidir a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) e a
ocupar o cargo de Bispo Auxiliar de Dom Jaime Câmara, no Rio de Janeiro. Por
divergências Dom Hélder foi transferido da sua Diocese. Inicialmente ocuparia o
posto em São Luís, no Maranhão. No entanto, o Papa Paulo VI resolve o transferir
para a Arquidiocese de Olinda e Recife, por ocasião da morte do Arcebispo Dom
Carlos Coelho. Mas não só.
No dia seguinte, pronunciava no seu discurso de posse;
“(...) a providência divina me trouxe pela mão para Olinda e Recife: o Papa Paulo VI,
profundo conhecedor da situação da América Latina e do Brasil, resolveu que
deveria ser ocupado, sem perda de tempo, este posto-chave do nordeste brasileiro
(...) é uma graça divina descobrir os sinais dos tempos, estar à altura dos
acontecimentos, corresponder de cheio aos planos de Deus.”
Quando Dom Hélder fala-nos da graça que é estar à altura dos tempos,
quando ele fala que Recife é o posto chave do Nordeste, e esse, da América Latina,
é com um programa específico e temporário que ele atua, em conexão com algumas
máquinas de imaginário já em funcionamento na cidade;
“Já repararam como o Nordeste se transformou em tema nacional e centro das
atenções internacionais? Quase sempre, porém, dentro e fora do país, são
distorcidas as imagens que apresentam de nós. O Nordeste não aceita a
1 DIÁRIO DE PERNAMBUCO. 10-4-1964.
3
profissionalização da miséria e não pode, e não deve aceitar ser tido como a região
mais explosiva, por excelência, da América Latina.”
Não podemos tomar a unidade física do texto do “Discurso de Posse” como
sendo homogêneo, reto, ele é uma série específica que aqui e alí mudam de rota, de
intercessores, o que é proferido não atinge a todos, nem com o mesmo
agenciamento: quando fala da não aceitação do Nordeste como a área mais
explosiva da América Latina, atua com um grupo específico que participa dos
mecanismos, aparelhos, usinas, maquinários de significação.
Principalmente os eclesiásticos e militares. Desde a década de 1950, a Igreja
Católica brasileira chamavam atenção para o Nordeste como objeto de uma prática
pastoral mais contundente que afastasse os camponeses da sedução do discurso
ateu comunista, das facções chinesas e soviéticas infiltradas na área.2 Tais perigos
começam a ser acentuados, principalmente, após a Revolução Cubana de 1959. Os
conflitos sociais surgidos na zona da mata canavieira pernambucana, que
proporcionaram a formação de grupos organizados de trabalhadores da cana, como
no caso das Ligas Camponesas, são inseridos na lógica dicotômica da oposição de
modos de produção (capitalista x socialista) da Guerra Fria, o que podemos ver em
várias reportagens, que vão de 1961 a 1964, da imprensa estadunidense acerca do
Nordeste brasileiro, jornais e revistas, como o The New York Times, Chicago
Tribune, Newsweek, veiculavam informações geralmente colocando Pernambuco –
Recife, Cabo de Santo Agostinho, Vitória de Santo Antão - como um centro de
fomento de uma revolução socialista camponesa, nos moldes cubanos.
Essa mensagem tem dois objetivos específicos, dialogar com a lógica
dicotomizada da Guerra Fria que fora interiorizada por esses dois grupos sociais
como sendo a estrutura de funcionamento social global e, depois, uma crítica às
condições de aceitação dessa visão de mundo, que se fundamentam na inserção do
Brasil, através do projeto político da elite que integra os poderes institucionais de
governo, no caso os Ministros Militares, a superação do subdesenvolvimento,
através da inserção na ordem capitalista.
2 Ver a Pastoral “Conosco, sem nós, ou contra nós, se fará a Reforma Agrária”, realizada em 1950, pelo bispo de Campanha, Minas Gerais, Dom Engelk. Para a documentação das diretrizes tomadas pela pastoral ver a coletânea de CARLI, Gileno Dé. A Igreja e a Reforma Agrária. Edição do Autor. 1984.
4
A Dom Hélder Câmara, e a dezessete prelados metropolitas do Nordeste, que
realizaram uma reunião no Convento do Carmo, em Olinda, no dia 13 de abril de
1964, o comunismo também aparecia como um perigo a ser afastado:
“A angustia do momento presente se acentua, ainda, pelo fato de se tentar a
substituição dessa ordem anti-humana por soluções marxistas não menos
desumanizantes, pois atentam contra os direitos fundamentais da pessoa humana
(...)”3
Mas tal angústia só pode ser pensada em relação à própria ordem assimilada
como visão de mundo dos grupos aos quais se dirigem:
“Nossa ordem é, ainda, viciada pela pesada carga de uma tradição capitalista que
dominou o ocidente nos séculos passados. È uma ordem de coisas na qual o poder
econômico, o dinheiro, ainda detém a última instância das decisões econômicas,
políticas e sociais.”4
A disputa que se inicia entre Dom Hélder, os militares, e alguns setores
eclesiásticos, era em torno da alternativa a ser dada a via “comunista”. Enquanto os
dois últimos grupos viam o comunismo como o maior perigo a ser eliminado,
funcionando dentro da lógica do capitalismo do pós II Guerra, o Arcebispo de Olinda
e Recife pensa em como eliminar o comunismo reelaborando a sintaxe, a lógica, de
sua criação e funcionamento, ou seja, a própria percepção da ordem na qual
estavam inseridos:
“Qualquer dessas atitudes importaria em abandonar o ponto capital: a recuperação
do homem oprimido, sua inserção numa sociedade de acordo com a perspectiva
evangélica que defenda seus direitos inalienáveis e o ponha a serviço da
comunidade, ao mesmo tempo que o faça responsável pela construção de sua
própria história, chamando-o, também, a construção do reino de Deus.”5
As mensagens lançadas por Dom Hélder no seu discurso de posse, assim
como a Declaração do dia 13 de abril, instaurava já um devir histórico, ou uma série
nova em novas séries, que se diga; seguindo um movimento que colocará a
possibilidade de funcionamento, de sucesso, da Revolução militar no nordeste do
Brasil, e em Pernambuco, particularmente, em função de um novo grupo; os pobres.
Aqui não devemos entendê-los como uma massa homogênea, mas como um 3 DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Bispos lançam declaração ao país.14-4-1964 4 Idem. 5 DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Bispos lançam declaração ao país.14-4-1964
5
conjunto de pontos que adquirem uma auto-temporalização conforme assumem o
papel principal nesta ou naquela forma histórica. Também deve-se ter em mente que
essas formas só existem por um momento, no conflito que se redobra entre a Igreja
Católica, Dom Hélder Câmara, os dirigentes militares e alguns indivíduos da
população recifense ativos em movimentos organizados durante o período de 1964-
1966, e que somente existem nessa tensão.
Se escolhemos tal cronologia e espaço é porque se mostram férteis em
registros e dinâmica. Como veremos, nesse período as relações entre Estado e
Igreja, e especialmente entre o Regime Militar e Dom Hélder Câmara, se mostram
fluidos, uns e outros são coagidos, se defendem, se atacam, confirmam seus
espaços e funções na sociedade. No entanto essa dinâmica se dá na reduplicação
de uma disputa em torno da pobreza, essa se dando a partir de novas instituições
imaginárias do pobre. Para tal deveremos por em foco duas coisas, primeiro
selecionar algumas dessas imagens, e seus cosmos, difundidos no Recife e, depois,
quais os trabalhos logicizantes, operados por Dom Hélder sobre elas, que permitem
gerar os conflitos com o Regime.
II. Um olhar sobre a cidade.
Nos anos 1960 era comum escutar-se um trocadilho com o nome da capital
pernambucana, a Veneza Brasileira propagandeada por Agamenon Magalhães,
durante o Estado Novo, cede lugar a Venérea Brasileira, Resífilis, capital do
subdesenvolvimento na América Latina. Veremos, no início da década de 1960 o
surgimento da sensação de perigo que a pobreza traz para um grupo social que era
privilegiado pelo status quo, que passa a ser sentida por parte daqueles que
disputam, com os pobres, e nos pobres, o direcionamento político do Recife e de
Pernambuco.
No Recife, podemos apontar algumas séries que produzem alterações;
mutações geográficas, mas essa como a mudança na constituição de uma
população, à medida que, ela mesma, produz mecanismos de se apreender, ou
perceber. Podemos indicar, então, um complexo específico, heterotópico.
Recife registrava, em suas estatísticas, os piores números de mortandade
infantil e desnutrição, ao mesmo tempo que havia um grande afluxo migratório do
6
sertão e da zona da mata para a capital, provocado pela seca de 1958. Muitos
passam a ocupar as áreas de alagados e mangues, ilhas começavam a aparecer
para a cidade;
Rasas na altura da água
Vê-se brotar outras ilhas:
Ilhas ainda sem nome,
Ilhas ainda não de todo paridas.
Ilha Joana Bezerra,
Do Leite, do Retiro, do Maruim:
O touro da maré
A estas já não precisa cobrir.6
trabalhadores e pequenos proprietários, que, ao vender suas posses, migravam para
a capital pernambucana, em busca de melhores condições de trabalho e de vida. No
mesmo ano surge Brasília Teimosa, no Bairro do Pina; não longe dalí, a Ilha de
Deus no rio Tijipió, atrás das casas construídas pela Liga Social Contra o Mocambo7,
na Imbiribeira, e através desse mesmo complexo de águas da bacia do Pina, o
Coque, na ilha Joana Bezerra, que, em 1962, já contava com 20.000 pessoas, como
narra o visitante norte-americano Joseph A. Page, vivendo em “diminutos casebres
de madeira , com tetos de telhas ou cobertos de papelão”8
O problema da fome, já medicalizado pela Nutrição, passa a ser um problema
de bem-estar social, mas este é produzido, sobretudo baseado na sensação de
medo, apreensão, angústia. Podemos dizer que as condições de vida dessa
população, a pobreza, e, especificamente a fome, serão colocadas como um
problema social que repercute fisiologicamente, e, uma vez desta forma,
“naturalmente” torna-se um problema político, já que os “pobres esfomeados”
tornam-se suscetíveis de serem seduzidos por algum grupo político, como os, então
atuantes, comunistas.
6 MELO NETO, João Cabral de. O Rio, In: Morte e Vida Severina e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2000. 7 A Liga foi criada na interventoria de Agamenon Magalhães, para tal ver GOMINHO, Zélia O., Veneza Americana X Mucambópolis. Recife: CEPE. 8 PAGE, Joseph A. A Revolução que Nunca Houve, o nordeste do Brasil, 1955-1964. Rio de Janeiro: Record. 1972.
7
Essas alterações também eram adjuntas a alterações na percepção de alguns
recifenses, não só a geografia da cidade se constituía como lugar de batalha, mas
também os corpos, os órgãos, também o eram;
O homem magro
Vai pela rua
A roupa puída
No cabide de osso
A vida seca
O sonho seco
O homem magro por fora,
Magérrimo por dentro
Em condição de esqueleto
Vai pela rua caquética
Com seu medo osteológico9
A “magritude” de Mauro Mota é um canal, que seleciona e captura o corpo
como lugar dos embates. O medo é a composição do homem magro, é não
ontológico, mas osteológico. O corpo é relacionado a um determinado complexo de
acoplamentos de máquinas de imaginário, que o organiza. Organizar é criar um
organismo, pontos fixos, que mantêm correspondência entre si, com lugares e
funções “naturais”.
A percepção de Dom Hélder do Recife como cidadela na luta pelo
subdesenvolvimento se faz através da negação da “profissionalização da miséria”
não por uma dialética com o desenvolvimento, mas por mediações, por negações da
própria missão e do lugar que a Igreja, instituição da qual faz parte – e da qual
recebe as doutrinas -, ocupa na sociedade. Essas negações só podem ser
entendidas pelas mediações, pelos mecanismos de acoplamento, entendendo, que,
esses, não são dados, não são “juntas” pré-fabricadas que ligam canais, nem os
compostos/compósitos, da relação são, também, dados prontos. Ambos se
conformam, se modulam, nos seus próprios domínios, quebrando a sintaxe “natural”
do “organismo”. 9 MOTA, Mauro. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio/FUNDARPE. 1982.
8
III. Dup licações; lutas em “ Recife, cidadela na luta pelo desenvolvimento” .
A imagem de Pernambuco e de Recife como capital do subdesenvolvimento,
utilizada por Dom Hélder como um espaço para se quebrar a lógica da leitura
capitalista de mundo, negando-a, ao chamar atenção para a urdidura da região
como uma distorção, é potencializada como uma reduplicação da distorção,
colocando o prelado como um deturpador da situação; não há subdesenvolvimento.
No entanto, se esse não existe, é, agora, para aqueles que antes diziam
haver, e aos quais Dom Hélder dizia não haver, sendo o subdesenvolvimento, fruto
da propaganda de grupos em uma conjuntura social e política. Esta reviravolta se
faz no momento em que o Bispo inicia uma série de programas, através de
organizações comunitárias, ou em apresentações em rádios e televisão. Em 29 de
novembro de 1964 Hélder prepara uma apresentação para uma rede de televisão
local no intuito de esclarecer o que era o Concílio Vaticano II, que no início do ano
seguinte realizaria sua segunda sessão. A certa altura defendia a maior proximidade
entre o Papa, os Bispos, e o povo. A lógica para tal era urdida através de elementos
da vida cotidiana, mais especificamente os que fundavam a ordem econômica e a
própria situação daqueles ao qual o Concílio tentava criar mecanismos de
aproximação, os pobres;
“é bom que o Bispo entre nas filas e escute o povo (...) na dura hora em que a carne
está a 1400 cruzeiros, e o feijão marchando para os 500 cruzeiros”
A forma da alocução foi tida como subversiva, anti-revolucionária, pelos
militares da Sétima Região, do IV Exército. Aqui vemos o confronto pelo
delineamento de sentidos plurais que a cada momento se tornam outros, mas que
aqui se estrutura em dois, um, didático, no momento em que Dom Hélder pretende
debater em público o Concílio, mas também crítico, tanto em relação a conjuntura
sócio econômica como as práticas de um grupo de bispos e do Papa frente aos fiéis
denotando um afastamento entre os dois. A proposta de Hélder é a composição do
sentido e sua potencialização através da didática. Através da percepção dos
dirigentes locais do Exército e do governo, a logicização do discurso de Dom Hélder,
9
recaindo na crítica econômica da alta dos preços significava a acusação de que o
Regime não cumprira com as suas promessas, e que, assim, é anti-revolucionária.
Esses pontos que se formam adquirem uma temporalidade conforme, ou
proporcional, sua potencialidade de criação de um “cosmos”, ou seja, a capacidade
de engendrar conexões entre formas de percepção, revezando sempre dois
movimentos, um; a intecionalidade em que se atua no mundo, e a distância entre
este e a interiorização segundo o aparelho perceptivo que é forjado pela sucessão
desse complexo; a afecção ou experiência. Essas duas só são possíveis conforme
uma outra proporção, formado pelo tempo entre a percepção e a afecção. Só a
pluralidade na qual o indivíduo é inserido, a sociedade, só nessa relação particular é
que podemos entender como surgem novos territórios.
Em 6 de junho de 1965 Dom Hélder recebeu o representante do Vaticano
Dom Antônio Saromé, no seu discurso, afirma que era uma iniqüidade pregar Deus
e a religião a um povo faminto.
A imprensa captura a assertiva de Dom Hélder como a afirmação de um
propósito que foge de suas responsabilidades como religioso, e que a nega, não só
explicitamente, segundo esta visão, mas mais silenciosamente quando serve de
signo aos poucos revelado de tal propósito escuso, o de se utilizar politicamente da
Igreja para atingir objetivos políticos, mas não qualquer um, não o revolucionário,
mas os daqueles países em que se usa a ditadura. Aqui, podemos lembrar da lógica
do subdesenvolvimento utilizada por Dom Hélder um ano atrás, e como a lógica,
agora, torna-se outra quando capturada e relogicizada pela imprensa:
“também não se justifica que Dom Hélder preconize a inclusão do Brasil no Terceiro
Mundo e a adoção de métodos postos em prática nos países que compõem, todos
eles totalitários”10
A mesma lógica utilizada por Hélder , no seu discurso de posse, é agora
posta de encontro com o próprio, desvalidando o seu discurso:
“Dom Hélder Câmara apresentou ao enviado do Vaticano um quadro muito
incompleto e muito imparcial das dificuldades com que luta o Nordeste, sem
mencionar, sequer, os porquês dessa situação (...) já que não tem o direito, por mais
10 JORNAL DO COMMERCIO, Mais político que sacerdote Hélder parece – 7/5/1965.
10
que sejam suas convicções totalitárias, de ignorar a realidade sobre o chamado
terceiro mundo ”11
O prelado terá agora que se confrontar. Torna-se reterritorializado, agora, o
espaço, o Nordeste, o terceiro mundo, o subdesenvolvimento. A pobreza, passa a
ser uma realidade a ser descoberta e realmente solapada pelos verdadeiros
revolucionários, pelos benfeitores representantes da boa política.
A pobreza como disputa de sentidos na sociedade recifense, e de diferentes
níveis de poder e devir, entre Dom Hélder e os representantes locais do poder
militar, ganha mais uma configuração com as enchentes em junho, provocadas pelo
transbordamento do rio Capibaribe. Foi anunciada por todas as rádios e televisões,
no dia 9 de setembro de 1965, “a guerra contra a miséria, através de uma campanha
denominada Operação Esperança”. Aqui o discurso econômico crítico que fora
percebido como subversivo pelo comando militar local, por ocasião da palestra
televisionada onde Dom Hélder explicava o Concílio Vaticano II, onde se ressaltou
uma lógica de denúncia de preços altos, nesse momento será um campo onde se
propõe a atuação harmônica entre Dom Hélder e os militares através da cooperação
das várias esferas em um esforço comum;
“um plano de erradicação da miséria e promoção humana nos alagados recifenses,
onde vive, em mocambos, grande parte da população (...) partindo de uma análise
dos problemas econômicos e sociais, (...) o movimento integra o trabalho de todos os
setores – governo federal, estadual, municipal, clero, (...)”12
Harmonizou-se, temporariamente, também, a construção do nordeste em um
sentido comum de pobreza, como sendo uma região caracterizada por tal:
“(...) Recife, que é a metrópole da pobreza no Nordeste, ao mesmo tempo, que é o
centro das riquezas da região.”13
Em 24 de março de 1966, na Folha de São Paulo, é publicado um artigo de
autoria do arcebispo de Olinda e Recife, onde delineia alguns dos pontos citados,
tendo como sentido que “a fome dos povos famintos não é só de alimentos”,
afirmando que ninguém ignora os dados sobre a fome, que, a partir de 1959, se
acentua um desequilíbrio entre a produção de alimentos e o crescimento
11 Ibidem. 12 JORNAL DO COMMERCIO, Dom Hélder vai iniciar guerra contra miséria com Operação Esperança, 8/9/1965. 13 Ibidem.
11
demográfico, o que contribui para a formação de um “cinturão da fome”, composto
por África, Oriente Médio, Sudeste asiático, e América Latina.
Há uma profunda relação entre fome e desenvolvimento. Embora a relação
entre a superprodução de alguns em detrimento da escassez de outros deva ser
pensada, no intuito de uma melhor distribuição dos alimentos produzidos no planeta
- não se deve identificar nutrição com desenvolvimento, mas sim, “vencer a fome
pelo desenvolvimento”.
Aqui a mútua apropriação dos discursos que urdem a região nordeste,
Pernambuco e Recife, particularmente, como regiões explosivas, por sua pobreza, é
retomado por Dom Hélder no intuito de pensar a crítica feita pela imprensa, em maio
de 1965, onde não se aceita o Brasil entre os países do chamado terceiro mundo.
Agora o Arcebispo capturará a relação pela qual o próprio Regime Militar se utilizou
para justificar a Revolução; promover as áreas de pobreza para se evitar a explosão
de revoltas comunistas, e a própria forma de se inserir na lógica capitalista do pós II
Guerra. Essa inserção só poderia ser feita compulsoriamente, à medida que se torna
alvo de investimentos de capital internacional, através de serviços, tecnologias e
recursos humanos na forma de tecnocratas que racionalizem tais investimentos.
A ajuda internacional não se constitui, como Hélder sente o mundo, em uma
solução para a fome e a pobreza, porque, essas, são questões de justiça, de paz.
Assim como estabelece, através da Mater et Magistra de João XXIII,
“tentação de aproveitar essa operação técnico-financeira, a fim de obter vantagem
política com espírito de domínio”.
Quando do Concílio Vaticano II, Hélder apresenta a Constituição sobre a
presença da Igreja no Mundo como registro da consolidação de uma nova postura
diante dos pobres, “é preciso chegar até a revisão, em profundidade, da política
internacional do comércio”. Onde se criam dois problemas eto-econômicos: um de
âmbito nacional, “rever o ângulo das relações entre países desenvolvidos e
subdesenvolvidos”14, o impasse entre os dois mundos se dá pela incapacidade do
primeiro mundo se por no ângulo dos países subdesenvolvidos, o que impele, então,
a necessidade da descoberta de um modelo próprio para superar tal posição, onde o
14 JORNAL DO COMMERCIO, 15/12/1966.
12
pobre também é uma construção interna do Brasil, que o interioriza e o percebe
seguindo os elementos dispostos pela lógica da ajuda internacional;
“Infelizmente, egoísmo não é monopólio de país desenvolvido (...) permanece, dentro
dos países subdesenvolvidos, o colonialismo interno, que permite enriquecimento
fácil à custa de massas mantidas em situação infra-humana.”15
O olhar estrangeiro era percebido com extrema cautela e questionamento
ético, e põe em questão a postura de Barbara Ward, dela diz; “é curioso como, em
pleno mundo desenvolvido há, de vez em quando, quem nos entenda”, mas,
estabelece, como se dá o agenciamento do entendimento de Barbara, através da
reflexão da distância entre as experiências como elementos constitutivos da
memória e percepção, de acordo com as situações distintas de progresso material e
tecnológico. Questiona, então:
“que vivência têm, de subdesenvolvimento, autores nascidos e criados em plena
abundância. Ao ouvirem falar em massas em nível infra-humano como esperar que
raciocinem não em termos de inferioridade de racial, incapacidade física, da
preguiça, o que os leva, na melhor das hipóteses, a programas de ajuda?”16
No entanto, tal questionamento se faz frente a impossibilidade de se fixar a
exterioridade e a interioridade quanto ao posicionamento ético, que não se confunde
com nacionalidade mas ressalta o intercâmbio e a ao mesmo tempo a autonomia e a
dependência de cada percepção, cada consciência da pobreza, em um meio
altamente fluido, onde nenhuma das concepções pode reduzir a outra ao seu
domínio embora a cada momento elas possam ser capturadas e postas em
evidência fazendo com que as outras aparentem estar relegadas.
IV. Conclusão.
Ao perceber de forma diferente o pobre, Dom Hélder também o fabrica, torna-
o um espaço de disputa, para ele deve-se reordenar, também, suas significações no
imaginário social, o que passa por uma revisão da reprodução dos ângulos de
relações entre os dois mundos, desenvolvido e subdesenvolvido, e no interior do
segundo.
15 JORNAL DO COMMERCIO, 24/3/1966. 16 JORNAL DO COMMERCIO, 15/12/1966.
13
Prestemos atenção a esses dois pontos, eles atuam sobre uma outra
intensidade e velocidade, se redobra, contorce, penetra outra máquina, que ainda
sendo sua é de outro. Esse registro em relação com outros, nos permite pensar
como Dom Hélder se posicionava diante de suas próprias atitudes, e assim diante
das dos outros – já que esse só existe com tais - uma conexão entre o seu modo de
memorar e sua percepção, a constante alteração de sua visão de mundo de acordo
com o compartilhamento de experiências no trajeto de sua vida cotidiana.
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