anistia Às violaÇÕes dos direitos humanos: um … · ... e o exército de libertação ......
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ANISTIA ÀS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS: UM ESTUDO
COMPARADO ENTRE A GUERRILHA DO ARAGUAIA E AS FORÇAS
ARMADAS REVOLUCIONÁRIAS DA COLÔMBIA
RESUMO: Este artigo procura identificar o possível posicionamento da Corte
Interamericana de Direitos Humanos ("CIDH") em relação aos crimes perpetrados no
conflito entre o Estado Colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
- FARC. Em particular, procura-se identificar o entendimento da CIDH sobre as
hipóteses em que os crimes destes conflitos poderiam, ou não, ser anistiados. Neste
intuito, procedeu-se a um a análise comparada dos termos do Pacto de Havana – o
Acordo de Paz entre o Estado e o grupo guerrilheiro – e o posicionamento adotado pela
Corte por ocasião do julgamento do Caso da Guerrilha do Araguaia, ocorrida no Brasil.
INTRODUÇÃO
Apesar da Guerra Fria ter supostamente terminado com a queda da União Soviética
em 1991, as batalhas na América Latina continuam até hoje por meio das "Guerrilhas".
Tratam-se de movimentos paramilitares apoiados pelos soviéticos que tinham,
originalmente, o objetivo de promover uma revolução nos moldes de Cuba nos países
latinos.
Na maioria dos casos, estas guerrilhas foram derrotadas antes do esfacelamento
soviético, como, por exemplo, a Guerrilha do Araguaia no Brasil. Contudo, as
guerrilhas colombianas – como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
("FARC") e o Exército de Libertação Nacional ("ELN") – permanecem ativas até hoje e
desenvolveram uma rede de sequestros, narcotráfico, entre outras atividades criminosas.
Em Fevereiro/2012, o governo do Presidente Juan Manoel Santos Calderón
("Presidente Santos") começou negociações preliminares com os líderes das FARC no
intuito de estabelecer uma mesa de negociações que pusesse fim ao conflito. Nesta fase,
se estabeleceu 5 (cinco) eixos temáticos em torno dos quais as negociações seriam
conduzidas: (i) Reforma Agrária; (ii) Participação Política; (iii) Drogas; (iv)
Indenização das Vítimas; e (v) Encerramento das Hostilidades1.
1O governo colombiano disponibilizou um website com todos os documentos pertinentes às negociações,
inclusive desta fase preliminar: https://www.mesadeconversaciones.com.co. Acesso em 29/03/2017.
Em 18 de Outubro de 2012, a Mesa de Negociação foi estabelecida em
Oslo/Noruega, tendo Noruega e Cuba como fiadores das negociações, enquanto Chile e
Venezuela atuavam como observadores. Nesta fase – que perdurou até Agosto/2016 –
não houve cessar fogo e as hostilidades continuaram normalmente, seguindo o princípio
de que "nada está acordado até que tudo esteja acordado". A sociedade civil teve
oportunidade de se manifestar neste período e o governo afirma ter recebido 66.098
sugestões para o acordo até Junho/20162.
Em 24 de Agosto de 2016, o Estado Colombiano e as FARC celebraram o "Pacto
de Havana", acordo através do qual punham fim às hostilidades. Contudo, relata-se que
desde 2015 já havia um cessar fogo de facto entre as partes3. Nesta mesma
oportunidade, foi anunciado que se realizaria um plebiscito no dia 02 de Outubro de
2016 para que a povo colombiano validasse o acordo celebrado4.
O anúncio sobre o Pacto foi recebido com júbilo pela comunidade internacional. O
Departamento de Estado dos Estados Unidos da América – EUA emitiu uma nota
dizendo que apoia o processo de paz conduzido pelo Estado Colombiano5. Por sua vez,
a União Europeia retirou as FARC da sua lista de organizações terroristas em virtude da
celebração do acordo6. O Secretário Geral da União das Nações Sulamericanas –
UNASUL emitiu nota celebrando este "histórico acontecimento" o qual consolida a
América do Sul como "uma zona de paz"7.
2Além do website contendo os documentos referentes às negociações, há também um website contendo os
termos do acordo de paz final e o status de sua implementação: http://www.acuerdodepaz.gov.co/. Acesso
em 29/03/2017. 3Conforme foi divulgado por http://www.amnestyusa.org/news/press-releases/colombia-agreement-on-a-
bilateral-ceasefire-and-cessation-of-hostilities-is-an-historic-step-forward. No entanto, a Anisitia
Internacional teria observado que – apesar das mortes em conflito terem reduzido – continuavam a
ocorrer execuções extrajudiciais de líderes comunitários e povos indígenas. Acesso em 29/03/2017. 4As pesquisas de boca de urna indicavam uma vitória folgada do "SIM" ao Acordo de Paz no plebiscito
em todas as classes sociais: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/10/colombia-vota-em-plebiscito-
que-definira-entre-a-paz-e-o-conflito-20161002121006295393.html. Acesso em 29/03/2017. 5A nota destaca que o Governo dos EUA oferece suporte ao Governo Colombiano para os programas de
restituição de terras; indenização de vítimas do conflito e populações vulneráveis; desenvolvimento da
economia rural; reintegração de ex-combatentes; proteção aos direitos humanos e cidadãos em situação de
vulnerabilidade (ativistas dos direitos humanos, por exemplo); e preservação ambiental:
https://www.state.gov/r/pa/ei/bgn/35754.htm. Acesso em 29/03/2017. 6A União Europeia incluiu as FARC em sua "Lista de Pessoas, Organizações e Entidades envolvidas em
Atos de Terrorismo" em Junho/2002. A inclusão nesta lista proibia qualquer cidadão, empresa ou
entidade europeia de oferecer quaisquer recursos às FARC, bem como congelaria quaisquer patrimônios
que a guerrilha pudesse ter em território europeu. Mais informações em
http://www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2016/09/27-colombia-eu-suspends-farc/. Acesso
em 29/03/2017. 7Na mesma oportunidade, o Secretário Geral informou que compareceria pessoalmente à cerimônia de
assinatura do Acordo de Paz que ocorreria em Cartagena: http://www.unasursg.org/en/node/953. Acesso
em 29/03/2017.
Diante de tão maciço apoio, qual não foi a surpresa geral quando o povo
colombiano rejeitou o Pacto de Havana no plebiscito realizado no dia 02 de Outubro de
2016. Por uma margem de cerca de 54 mil eleitores – numa votação em que apenas 37%
do eleitorado compareceu – o "não" ao acordo venceu8.
Álvaro Uribe – ex-presidente da Colômbia e maior articulador da campanha do
"não" para o plebiscito – publicou uma carta escrita de próprio punho esclarecendo os
motivos que o levaram a rejeitar o acordo9.
Segundo Uribe, as FARC foram responsáveis pelo estupro de 6.800 mulheres10
e
pelo recrutamento como soldados de 11.700 crianças, sem mencionar os 200 mil
hectares que estariam empregando para o cultivo de drogas ilícitas, aliados aos
deslocamentos forçado da população, sequestros e assassinatos de opositores causados
ao longo de mais de cinco décadas.
O Pacto de Havana seria muito leniente com estes crimes cometidos pelos
guerrilheiros ao (i) limitar sua condenação em 5 a 8 anos de reclusão, caso colaborem
com a elucidação sobre a verdade do conflito; (ii) conceder redução de pena em troca de
serviços comunitários, como o desarmamento de minas e a construção de infraestrutura;
(iii) proibir a extradição dos guerrilheiros por crimes cometidos no exterior, como o
tráfico internacional de drogas; e (iv) determinar que os crimes de guerra fossem
julgados exclusivamente por um "Tribunal de Paz" ad-hoc, constituído de comum
acordo entre o Governo e as FARC.
Uribe concorda em anistiar os "guerrilheiros rasos", mas considera que colocar os
líderes das FARC no Congresso Nacional – por meio da conversão da guerrilha em
partido político11
– ao invés da cadeia seria "uma violação das leis internas e dos
compromissos internacionais assumidos pela Colômbia". Segundo o ex-presidente, os
líderes das FARC deveriam ser julgados por graves violações aos direitos humanos e
não escondeu sua intenção de levar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos
("CIDH"), caso o assunto não seja julgado nacionalmente.
8O resultado foi tido como uma surpresa até mesmo pelos or ganizadores da campanha do "NÃO", os
quais previam a vitória do "SIM":http://www.bbc.com/news/world-latin-america-37537252. Acesso em
29/03/2017. 9A Carta foi publicada na íntegra em http://www.infobae.com/america/america-latina/2016/09/26/el-
manuscrito-de-alvaro-uribe-sobre-el-acuerdo-de-paz-con-las-farc/. Acesso em 30/03/2017. 10
Uribe menciona ainda que – na eventualidade das mulheres estupradas engravidarem – os guerrilheiros
as obrigavam a abortar. 11
Pelo Acordo de Paz, as FARC deixariam as armas para se tornarem um partido político e teriam direito
até mesmo a alguns assentos temporários no Senado e na Câmara dos Deputados por, pelo menos, duas
legislaturas (total de 8 anos).
Andrés Pastrana – presidente da Colômbia de 1998 a 2002 e rival político de Uribe
– concorda com seu antigo adversário e acrescenta que os Acordos de Paz seriam, na
verdade, "a rendição do Estado Colombiano às FARC". Pastrana acredita que as FARC
podem até acabar enquanto guerrilha, mas seguiria ativa como cartel de drogas, pois a
versão original do acordo celebrado não exigiu expressamente que os guerrilheiros
entregassem o modus operandi do tráfico internacional de drogas, tampouco seus
associados em outros países12
.
Reforçam as acusações de Uribe e Pastrana o discurso de Rodrigo Londoño – o
líder das FARC conhecido como "Timotchenko" – ter declarado à uma rede de televisão
cubana durante as negociações de paz em Havana que não pediria "perdão às vítimas",
pois "não se arrepende"13
.
Por sua vez, Luciano Marin Arango – o vice-líder das FARC conhecido como Iván
Marquéz – afirmou em entrevista que as FARC não teriam dinheiro algum para ressarcir
suas vítimas14
. Contrariando essa declaração, analistas econômicos estimaram que a
guerrilha ainda tivesse em 2012 algo em torno de US$ 10.5 bilhões, decorrentes do
tráfico internacional de drogas, além da arrecadação obtida por extorsões, sequestros e
minério ilegal15
.
Por estas razões, o pedido de desculpas apresentado às vítimas pelas FARC16
e a
declaração de que entregariam a totalidade de seu patrimônio para indenizá-las17
soaram
12
O Acordo de Paz em sua versão original previa apenas o compromisso das FARC não mais se
envolverem em atividades relacionadas ao tráfico de drogas. A crítica de Pastrana é que – se as FARC
não entregarem seus associados e o modus operandi da produção e distribuição das drogas – haveria um
vácuo de poder que poderia ser facilmente preenchido por elementos dissidentes das FARC ou ainda por
guerrilhas menores como a ELN: http://www.abc.es/internacional/abci-andres-pastrana-farc-acaban-
como-guerrilla-pero-siguen-como-cartel-201609110220_noticia.html . Acesso em 30/03/2017. 13
Na mesma oportunidade, o Timotchenko declarou que a guerrilha teria desistido de atentar contra a vida
do Presidente Santos para privilegiar as negociações de paz. Alega que a ordem de suspender o atentado
partiu do ex-líder das FARC Alfonso Cano, morto em 2011 por uma operação do Exército Colombiano.
A íntegra da entrevista concedida está disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-
noticias/efe/2015/09/30/farc-afirmam-que-desistiram-de-atentado-contra-presidente-para-buscar-a-
paz.htm. Acesso em 30/03/2017. 14
A entrevista foi concedida à BBC em Havana. Na mesma oportunidade, o nº 2 das FARC também
desconversou quando indagado sobre pedir perdão às vítimas:
http://www.bbc.com/mundo/noticias/2015/12/151216_farc_colombia_conflicto_ivan_marquez. Acesso
em 30/03/2017. 15
A estimativa é do The Economist, que apontou também a possibilidade desse dinheiro – ou parte dele –
aparecer após a celebração do Acordo de Paz. Contudo, destacam ser virtualmente impossível identificar
a totalidade do patrimônio da guerrilha, em virtude da sofisticação do esquema e da pluralidade de
agentes envolvidos. Chegam a cogitar que nem mesmo as lideranças das FARC saibam o número
absoluto de sua arrecadação, em virtude dos desvios do dinheiro feitos por seus próprios soldados:
http://www.economist.com/news/americas/21697008-government-may-never-get-its-hands-guerrillas-ill-
gotten-gains-unfunny-money. Acesso em 30/03/2017. 16
O pedido foi feito em 26 de Setembro de 2016, apenas uma semana antes do plebiscito para validar o
acordo: http://www.elpais.com.uy/mundo/jefe-farc-pide-perdon-todas.html. Acesso em 30/03/2017.
pouco convincentes, ainda mais considerando o fato de que foram feitas apenas às
vésperas do plebiscito.
Apesar do resultado negativo do plebiscito, o Presidente Santos levou adiante as
negociações com as FARC e celebrou um segundo acordo com a guerrilha – que seria
menos leniente que o primeiro – no dia 24 de Novembro de 2016. Desta vez, declarou
que o acordo seria validado pelo Congresso e não por plebiscito.
As principais alterações no tocante ao julgamento dos crimes de guerra das FARC
foram: (i) a obrigação expressa das FARC declarem e entregarem todo o seu patrimônio
para indenização das vítimas; (ii) a obrigação dos guerrilheiros oferecerem informações
exaustivas sobre qualquer envolvimento que possam ter tido com o tráfico de drogas; e
(iii) um limite de 10 anos para a conclusão das atividades do Tribunal de Paz18
.
O Centro Democrático – partido fundado e liderado por Álvaro Uribe – se retirou
do Congresso em protesto no momento da votação por considerar que as mudanças
seriam meramente "cosméticas" revoltando-se – mais uma vez – quanto ao limite de 8
anos de reclusão para os guerrilheiros que colaborarem com a verdade, bem como
quanto ao ingresso dos líderes das FARC na política partidária19
.
Por outro lado, houve quem – mesmo tendo críticas à versão final do Pacto de
Havana – o endossou por considerar que, para se alcançar a paz, seria preciso "engolir
sapos". Foi o caso da ex-refém das FARC e atual senadora colombiana Ingrid
Betancourt. Apesar de, pessoalmente, ainda se esforçar por perdoar seus sequestradores,
acredita que seja preciso deixar o passado para trás20
. Do mesmo modo, o guerrilheiro
"Gérman" declarou que deseja apenas ir para a cidade e começar seu próprio negócio de
fisioterapia21
, entre outros exemplos.
Sendo assim, é razoável deduzir que o povo colombiano está divido sobre o
processo de paz instaurado entre o Governo e os guerrilheiros, sendo o principal foco da
17
As FARC declaram que entregariam seus bens junto com as armas no momento do desarmamento.
Contudo, as FARC negaram que tivessem patrimônio no exterior ou em contas secretas:
http://www.semana.com/nacion/articulo/farc-declaracion-de-bienes/496337. Acesso em 30/03/2017. 18
Outras alterações incluem não conceder status constitucional ao Pacto de Havana e alterações nos
dispositivos que teriam "ofendido valores familiares":
http://www.acuerdodepaz.gov.co/acuerdos/acuerdo-final. Acesso em 30/03/2017. 19
As FARC teriam respondido às colocações de Uribe de que a possibilidade de participação política seria
"cláusula pétrea" para a celebração do Pacto de Havana: http://noticias.caracoltv.com/acuerdo-
final/camara-de-representantes-refrendo-acuerdo-de-paz-con-las-farc. Acesso em 30/03/2017. 20
A íntegra da declaração de Ingrid Betancourt está disponível em
http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37213092 . Acesso em 30/03/2017. 21
Segundo a entrevista do The Guardian, um bom número dos combatentes das FARC deseja poder ter
uma vida normal: https://www.theguardian.com/world/2017/feb/03/farc-colombia-peace-deal-transition-
normal-life . Acesso em 30/03/2017.
discórdia o difícil equilíbrio entre a anistia tolerável e a justiça necessária para com os
crimes perpetrados ao longo de mais de 50 anos de conflito.
De modo a contribuir para o avanço desta discussão, este artigo se propõe a analisar
o Pacto de Havana à luz da jurisprudência consolidada da CIDH, de modo a discernir
como se posicionaria – ou se posicionará – este tribunal na hipótese de o caso ser levado
à sua alçada.
Neste intuito, emprega-se como referência principal os entendimentos estabelecidos
pela CIDH no julgamento Júlia Gomes Lund e outros vs. República Federativa do
Brasil, ou, simplesmente, "Caso da Guerrilha do Araguaia". Esta opção se justifica pela
origem comum do movimento guerrilheiro brasileiro e das FARC no contexto da
Guerra Fria, bem como a similaridade dos crimes.
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: ENTRE A ANISTIA TOLERÁVEL E A JUSTIÇA
NECESSÁRIA
Em tempos de transição política, é comum que os Estados concedam anistia aos
crimes cometidos no regime anterior, como forma de restaurar a paz e reinserir os
combatentes na sociedade. É uma prática milenar, orginalmente associada com o perdão
divino, que procurava restabelecer a ordem e coibir a vingança.
São raros os tratados que versam sobre anistia, provavelmente em virtude da
resistência dos estados em cederem parte de sua soberania neste aspecto22
. O Protocolo
II da Convenção de Genebra de 194923
é uma das raras exceções ao prever em seu art.
6.524
que, cessadas as hostilidades, as autoridades no poder procurarão conceder a
anistia mais ampla possível às pessoas que tenham tomado parte no conflito.
Contudo, o direito internacional do último século, particularmente após a 2ª Guerra
Mundial, vem se consolidando no sentido de que certos crimes ofendem a humanidade
como um todo, de modo que um estado por si só não poderia perdoá-los. Tais crimes
22
MELO, Carolina de Campos. Nada além da verdade? A consolidação do direito à verdade e seu
exercício por comissões e tribunais. Tese de doutorado defendida perante o Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr. Antonio Celso Alves
Pereira. Rio de Janeiro, 2012, p. 116. 23
O Protocolo II Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo à Proteção das
Vítimas dos Conflitos Armados Não Internacionais pode ser consultado na íntegra em:
http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dih-prot-II-conv-genebra-
12-08-1949.html. Acesso em 30/03/2017. 24
Art. 6.5. Quando da cessação das hostilidades, as autoridades no poder procurarão conceder a mais
ampla amnistia às pessoas que tiverem tomado parte no conflito armado ou que tiverem estado privadas
de liberdade por motivos relacionados com o conflito armado, quer estejam internadas, quer detidas.
são considerados como graves violações dos direitos humanos ou crimes de lesa-
humanidade e são considerados imprescritíveis, sendo responsabilidade dos estados
investigar e condenar os autores.
Neste cenário, destacam-se os tratados que foram celebrados para conceituar e
combater estas infrações: (i) Tratado para Prevenção e Punição dos Crimes de
Genocídio de 194825
("Tratado contra Crimes de Genocídio"); (ii) Convenção contra a
Tortura e Outros Tratamentos Desumanos ou Cruéis de 198426
("Convenção contra a
Tortura"); (iii) Convenção para a Proteção de Todas as Pessoas de Desaparecimento
Forçado de 200627
("Convenção contra o Desaparecimento Forçado").
Primeiramente, o Tratado contra Crimes de Genocídio prevê em seu art. 228
que
genocídio é o ato cometido com a intenção de destruir no todo ou em parte um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso. Os arts. 5 e 629
do mesmo Tratado obrigam os
estados contratantes a tomarem as medidas legislativas e judiciais necessárias para que
os culpados de tais crimes recebam as "sanções penais eficazes aplicáveis". Neste
sentido, nenhum estado signatário poderia se evadir de investigar e julgar tais crimes.
Em segundo lugar, a Convenção contra a Tortura prevê em seu art. 1.130
que tortura
é todo ato que tenha intenção de causar a um ser humano sofrimentos agudos, físicos ou
25
A íntegra em português do tratado pode ser consultada no sítio da Câmara dos Deputados do Brasil:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-30822-6-maio-1952-339476-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 30/03/2017. 26
A íntegra em português do tratado pode ser consultada no sítio da Presidência da República Federativa
do Brasil: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0040.htm. Acesso em 30/03/2017. 27
A íntegra em português do tratado pode ser consultada no sítio da Presidência da República Federativa
do Brasil: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8767.htm. Acesso em
30/03/2017. 28
Art. 2. Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a
intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional. étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição
física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. 29
Art. 5. As Partes Contratantes assumem o compromisso de tomar, de acordo com suas respectivas
constituições as medidas legislativas necessárias a assegurar as aplicações das disposições da presente
Convenção, e, sobretudo a estabelecer sanções penais eficazes aplicáveis às pessoas culpadas de
genocídio ou de qualquer dos outros atos enumerados no Artigo III.
Art. 6. As pessoas acusadas de genocídio ou qualquer dos outros atos enumerados no Artigo III serão
julgadas pelos tribunais competentes do Estado em cujo território foi o ato cometido ou pela Corte Penal
Internacional competente com relação às Partes Contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição. 30
Art. 1.1. Para os fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou
sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela
ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira
pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras
pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou
sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas,
mentais, com o objetivo de extrair dele uma confissão ou informação; castiga-lo;
intimidá-lo; ou coagi-lo. Em complemento, o art. 231
obriga os estados signatários a
tomar todas as medidas administrativas, legislativas e judiciárias necessárias para coibir
a prática de tortura em todo o território sob sua jurisdição. Assim como no Tratado de
Genocídio, nenhum signatário poderia tolerar a prática de tortura em seu território.
Em terceiro lugar, a Convenção contra o Desaparecimento Forçado define o seu
objeto no art. 232
como sendo a prisão, detenção, sequestro ou outra forma de privação
da liberdade que seja perpetrada por agentes do estado – ou por grupos que contem com
sua aquiescência – seguida da recusa em admitir a privação da liberdade ou a ocultação
do paradeiro da pessoa desaparecida. Por sua vez, na mesma linha dos tratados
anteriores, o art. 333
obriga o estado signatário a tomar as providências cabíveis para
investigar e levar à justiça quaisquer grupos que pratiquem o desaparecimento forçado
em seu território.
Estes tratados vão consolidando parâmetros para os crimes que não poderiam – em
hipótese alguma – ser anistiados, ainda que sob o pretexto de promover a paz. Parte-se
da premissa de que tolerar a impunidade apenas contribuiria para gerar mais conflitos
no futuro, frustrando o objetivo de uma paz duradoura e estável.
Endossando o entendimento destes tratados, o Secretário Geral das Nações Unidas
salientou em seu Relatório ao Conselho de Segurança no ano de 2011 que os acordos de
paz sancionados pelo órgão jamais poderiam prometer anistiar crimes de genocídio, de
guerra, lesa-humanidade ou infrações graves aos direitos humanos34
.
ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as
dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a
tais sanções ou delas decorram. 31
Art. 2.1. Cada Estado Parte tomará medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de
outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição.
Art. 2.2. Em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais tais como ameaça ou estado de
guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública como justificação para tortura.
Art. 2.3. A ordem de um funcionário superior ou de uma autoridade pública não poderá ser invocada
como justificação para a tortura. 32
Art. 2. Para os efeitos desta Convenção, entende-se por “desaparecimento forçado” a prisão, a detenção,
o seqüestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado
ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a
subseqüente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da
pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei. 33
Art. 3. Cada Estado Parte adotará as medidas apropriadas para investigar os atos definidos no Artigo 2,
cometidos por pessoas ou grupos de pessoas que atuem sem a autorização, o apoio ou a aquiescência do
Estado, e levar os responsáveis à justiça. 34
A íntegra do Relatório em inglês está disponível no sítio do Conselho de Segurança:
http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-
CF6E4FF96FF9%7D/ROL%20S2011%20634.pdf. Acesso em 30/03/2017.
No mesmo sentido, a Comissão de Direitos Humanos da ONU defendeu que exigir
a responsabilização dos autores de violações graves contra os direitos humanos é um
dos elementos essenciais para reparação das vítimas, bem como garantir um sistema de
justiça justo e equitativo35
.
Em âmbito regional, a CIDH – além do julgamento da Guerrilha do Araguaia –
manifestou em processos envolvendo Argentina, Chile, El Salvador, Haiti, Peru e
Uruguai a incompatibilidade das leis de anistia com as graves violações dos direitos
humanos36
.
Sendo assim, embora a anistia permanece um instituto de discricionariedade do
estado, está se consolidando no cenário internacional uma categoria de infrações aos
direitos humanos que se posiciona para além da autoridade do estado anistiar. Para
melhor compreender esta realidade, será feita uma análise comparada entre o
julgamento do caso da Guerrilha do Araguaia e o atual Acordo de Paz com as FARC,
para então se abordar os tópicos que poderiam motivar a intervenção da CIDH no Pacto
de Havana.
A – A Guerrilha do Araguaia
O Pacto de Havana37
tem suas similaridades com a Lei nº 6.683/1979 do Brasil38
("Lei de Anistia"): ambas se inserem em um cenário de "justiça de transição" em que
partes em conflito procuram renunciar às armas para resolver suas divergências através
do diálogo político. De modo a viabilizar esse processo de mudança e evitar
ressentimentos, tanto o Pacto quanto a Lei de Anistia previam o "perdão" ou a "não
punibilidade" pelos crimes cometidos no tempo do conflito.
Ocorre que a Lei de Anistia do Brasil foi julgada incompatível com a Convenção
Americana de Direitos Humanos39
pela CIDH no julgamento Júlia Gomes Lund e
35
A íntegra do Relatório em inglês está disponível no sítio do Conselho de Direitos Humanos da ONU:
http://www2.ohchr.org/english/ohchrreport2011/web_version/ohchr_report2011_web/allegati/10_Impunit
y.pdf. Acesso em 30/03/2017. 36
As sentenças podem ser consultadas em espanhol no link: http://www.corteidh.or.cr/. Acesso em
30/03/2017. 37
A íntegra do Pacto de Havana pode ser consultado em: http://www.acuerdodepaz.gov.co/. Acesso em
30/03/2017. 38
A íntegra da Lei de Anistia brasileira pode ser consultada em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. Acesso em 30/03/2017. 39
A íntegra da Convenção Americana de Direitos Humanos pode ser consultada em português em:
https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em 30/03/2017.
outros vs. República Federativa do Brasil40
. Segundo a Corte Interamericana, a Lei
brasileira (i) teria impedido a investigação e sanção de graves violações dos direitos
humanos; (ii) teria violado as garantias judiciais das vítimas e seus parentes; e (iii) o
direito do povo de acesso à verdade e liberdade de expressão.
Como o próprio Governo Brasileiro explicou em sua argumentação nos autos, a Lei
da Anistia foi promulgada no princípio do processo de redemocratização do país após a
instauração da ditadura militar em 1964. O objetivo da lei era de que os exilados pelo
regime militar pudessem retornar ao Brasil ou saírem da clandestinidade em segurança,
bem como assegurar que os agentes públicos não fossem perseguidos por algo que
pudessem ter feito durante o regime de exceção.
Inserido no período militar estava o episódio conhecido como "Guerrilha do
Araguaia". Tratava-se de um movimento guerrilheiro integrado por membros do Partido
Comunista do Brasil que pretendiam fazer uma revolução armada nos moldes de Cuba.
Segundo a investigação promovida perante a CIDH, o governo militar teria massacrado
os guerrilheiros – que contavam aproximadamente 70 (setenta) combatentes – e então
ocultado todos os fatos relacionados, bem como destruído as evidências do ocorrido.
Em sua sentença, a CIDH decidiu que a Lei de Anistia brasileira não poderia
continuar sendo um empecilho para que se procedesse a uma investigação detalhada
sobre o ocorrido com o objetivo de identificar a verdade dos fatos, bem como
responsabilizar os culpados, pois se tratavam de graves violações aos direitos humanos.
Não apenas teriam os guerrilheiros sido massacrados, como também teria sido negado
aos parentes o direito de enterrá-los ou mesmo informações sobre o paradeiro de seus
restos mortais por mais de 20 (vinte) anos.
Importante frisar que este precedente consolidou o "Direito à Verdade" que vinha
sendo construído pela Corte em julgamentos semelhantes. Trata-se do direito de um
povo conhecer a sua própria história, como forma de evitar que tragédias se repitam41
.
B – O Pacto de Havana
40
A íntegra da sentença condenatória foi publicada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República do Brasil: http://www.sdh.gov.br/assuntos/atuacao-internacional/sentencas-da-corte-
interamericana/sentenca-araguaia-24.11.10-1. Acesso em 30/03/2017. 41
A Resolução 9/11 do Conselho de Direitos Humanos da ONU vai no mesmo sentido de reconhecer um
"Direito à Verdade" que deve ser considerado na justiça de transição
http://ap.ohchr.org/documents/E/HRC/resolutions/A_HRC_RES_9_11.pdf. Acesso em 30/03/2017.
Apesar de possuir similaridades com a Guerrilha do Araguaia, o caso das FARC
também possui notórias diferenças.
Em primeiro lugar, trata-se de um conflito em andamento, enquanto o caso do
Araguaia era um conflito já encerrado quando se promoveu a Lei de Anistia.
Em segundo lugar, o Araguaia teria vitimado algo em torno de 70 pessoas,
enquanto o confronto com as FARC já vitimou mais de 200 mil pessoas, além de incluir
acusações de estupro, recrutamento de crianças soldados, tráfico internacional de
drogas, sequestros e extorsão.
Em terceiro lugar, no caso do Araguaia apenas os militares estavam sendo julgados,
pois nenhuma acusação foi dirigida aos guerrilheiros. No caso da Colômbia, tanto os
militares quanto os guerrilheiros são acusados.
Em relação às acusações, as FARC admitem terem tido participação em genocídios,
mas alegam que o Governo Colombiano também teria parte da responsabilidade42
.
Por sua vez, a Human Rights Watch apresenta supostas testemunhas de que os
guerrilheiros teriam praticado tortura e execução sumária de prisioneiros, bem como
obrigado menores a realizarem os crimes43
.
Como se não fosse o suficiente, a guerrilha pode estar envolvida no
desaparecimento forçado de 92 mil pessoas ao longo dos mais de 50 anos de conflito44
.
A ocorrência dos crimes e o envolvimento das FARC em boa parte deles são
praticamente incontroversos. Resta analisar se o tratamento que está sendo dado no
Pacto de Havana satisfaz as exigências dos tratados internacionais assumidos pela
Colômbia ou se a CIDH e outros tribunais internacionais teriam margem para intervir.
Neste cenário, é preciso considerar dois aspectos do Pacto de Havana: (i) o Tribunal
ad-hoc de paz; e (ii) os benefícios oferecidos para os rebeldes entregarem as armas.
O Tribunal de Paz terá os seus juízes escolhidos de comum acordo entre o Governo
Colombiano e a guerrilha, tendo a atribuição de julgar todos os crimes cometidos ao
longo do conflito. Sua jurisdição será superior à jurisdição dos tribunais ordinários do
42
A declaração foi feita em 20 de Agosto de 2013, enquanto o processo de negociação de paz avançava:
http://www.genocidewatch.org/images/Colombia_2013_08_20_FARC_shares_blame_for_bloodshed.pdf.
Acesso em 30/03/2017. 43
No sítio da ONG é possível ler o testemunho de crianças ex-guerrilheiras relatando suas experiências
com as FARC e grupos paramilitares: https://www.hrw.org/reports/2003/colombia0903/14.htm. Acesso
em 30/03/2017. 44
A estimativa é da Cruz Vermelha Internacional. A instituição declarou ter esperança de que, com o
Acordo de Paz, seja possível esclarecer pelo menos parte destes desaparecimentos:
http://www.reuters.com/article/us-foundation-colombia-missing-idUSKBN0GT22520140829. Acesso em
30/03/2017.
país e terá preferência de julgamento até mesmo para revisar casos já sentenciados por
outros tribunais e negar extradições para tribunais estrangeiros. Esta justiça especial
deveria cumprir sua função no prazo de 10 anos contados a partir da instauração dos
trabalhos.
Caso os acusados colaborem com o Tribunal de Paz confessando tudo o fizeram no
conflito, poderão pegar de 5 a 8 anos de reclusão. Caso não colaborem e venham a ser
condenados, poderão pegar de 15 a 20 anos de reclusão, perdendo todos os demais
benefícios do Pacto de Havana.
Seriam ainda concedidos benefícios de redução de pena na eventualidade do
acusado colaborar com missões comunitárias como o desarmamento de minas terrestres
e a construção de infraestrutura nas zonas rurais.
Afastar a jurisdição ordinária das cortes colombianas e a aplicação de seu código
penal já foi uma medida muito polêmica em relação ao Acordo de Paz. A CIDH
considerou que os militares não teriam isenção para participar da Comissão da Verdade
no Brasil, e o mesmo princípio poderia ser aplicado ao caso colombiano, pois se está
concedendo aos acusados a autoridade de nomearem seus próprios juízes.
Entretanto, a parte mais controversa reside nos benefícios a serem concedidos aos
guerrilheiros por ocasião do desarmamento45
.
Primeiramente, seria concedido uma emissora de televisão para que as FARC
promovam – financiadas pelo Governo Colombiano – sua plataforma política em rede
nacional. Ato contínuo, teriam acesso ao fundo partidário e condições especiais para
concorrerem nas duas próximas legislaturas. Gozariam, ainda, de segurança especial,
por correrem risco de vida pelos atos de guerrilha.
Por sua vez, os guerrilheiros poderão se beneficiar tanto do programa de reforma
agrária quanto pelo patrocínio de 2 milhões de pesos colombianos que o Governo
oferecerá a todos que desejarem abrir seu próprio negócio, além dos cursos técnicos e
de qualificação profissional que todos receberiam. Acrescente-se, ainda, um auxílio
mensal para cada guerrilheiro pelo prazo de 2 anos.
Alguns críticos alegaram que isto seria premiar a guerrilha com o dinheiro dos
trabalhadores honestos. O Governo retrucou que era necessário oferecer um bom
45
Os benefícios financeiros oferecidos aos guerrilheiros e o partido político que iriam formar foram muito
atacados tanto por Uribe quanto por Pastrana, ambos partilhando o entendimento de que se estaria usando
o dinheiro do contribuinte para premiar "criminosos de guerra".
incentivo financeiro para que os guerrilheiros desistissem do lucrativo negócio do
tráfico internacional de drogas46
.
Deste modo, não se trata apenas de analisar se os guerrilheiros estariam sendo
adequadamente investigados e sancionados por seus crimes, mas sim do quanto eles
poderiam estar sendo beneficiados financeiramente às custas do contribuinte. Trata-se
de uma situação ímpar na experiência internacional.
C – A CIDH e a possível revisão do Pacto de Havana
Apesar dos pontos controversos do Pacto de Havana, há razões para crer que ele
não venha a ser revisado pela CIDH.
Primeiramente, há uma aparente falta de interesse da comunidade internacional em
revogar ou revisar tal Pacto. O acordo foi assinado em uma cerimônia pública com a
presença de líderes internacionais, incluindo o atual Secretário Geral da ONU. Houve
cartas de apoio da UNASUL e da própria OEA, sem mencionar que a própria CIDH se
fez presente para acompanhar o processo de paz47
.
Em segundo lugar, o Pacto de Havana em si teve a cautela de incluir em seu texto
diversas previsões cuja ausência a CIDH poderia questionar.
Por exemplo, no Caso do Araguaia discutiu-se muito o direito à verdade sobre o
ocorrido e o dever do Estado de investigar e punir os culpados pelas violações graves
aos direitos humanos, dentre os quais se incluíam sequestro e homicídio, crimes
também atribuídos às FARC.
Tendo isto em mente, o Pacto previu expressamente o dever dos guerrilheiros
colaborarem com os Tribunais de Paz – que serão constituídos exclusivamente para
apurar os crimes ocorridos ao longo do conflito – sob pena de não se beneficiarem do
Pacto. Ademais, será constituída uma Comissão da Verdade – nos moldes feitos pelo
governo brasileiro – para catalogar e divulgar as histórias do tempo do conflito.
De fato, em seu auge as FARC contaram com cerca de 20 mil soldados.
Considerando que a população carcerária da Colômbia está atualmente em torno de 140
46
Muitos colombianos afirmaram que "o preço para a paz era muito alto" e exigiam uma penalidade maior
para os guerrilheiros: http://www.cbc.ca/news/world/many-colombians-say-price-too-high-for-peace-
deal-with-farc-1.3750741. Acesso em 30/03/2017. 47
Dentre outros convidados ilustres, estiveram presentes à cerimônia de assinatura do Acordo de Paz o
Secretário Geral das Nações Unidas Ban Ki Mon, o Secretário de Estado dos EUA John Kerry e o
Presidente de Cuba Fidel Castro: http://www.bbc.com/news/world-latin-america-37477202. Acesso em
30/03/2017.
mil, seria um aumento de quase 15% no número de presos se todos eles fossem
encarcerados48
. Seria provavelmente impraticável para o Governo Colombiano proceder
assim, de modo que algum grau de anistia será preciso conceder aos guerrilheiros rasos.
A polêmica principal reside no tratamento dispensado aos líderes das FARC, que
são os mais prováveis de serem acusados de graves violações contra os direitos
humanos e, ao mesmo tempo, os mais prováveis de se lançarem candidatos pelo partido
político a ser constituído.
Não apenas esses líderes se beneficiariam da confissão perante o Tribunal de Paz,
como poderiam ocupar cargos no Estado. A primeira versão do Pacto – que foi retirada
posteriormente – inclusive previa que as FARC teriam direito imediato a 5 assentos no
Parlamento colombiano. Frise-se que um dos principais panfletos da campanha do "não"
ao acordo com as FARC continha o slogan "se quiser ver Timotchenko presidente,
votem sim no plebiscito"49
.
Os guerrilheiros descreveram que a possibilidade de se converterem em partido
político – assim como a participação política de seus líderes – eram cláusulas
"inegociáveis" do acordo, sem as quais não haveria paz. É este o ponto que Álvaro
Uribe e seus partidários mais discordam.
Uribe ressalta – e a jurisprudência da CIDH também – que uma condenação amena
seria praticamente uma anistia diante da gravidade dos crimes cometidos, ainda mais
considerando que a reclusão poderia ser relaxada para as obrigações do cargo eletivo
que os acusados assumiriam.
Há ainda a indisposição que a opinião pública colombiana teve com as FARC,
quando apenas às vésperas do plebiscito concordaram em entregar a totalidade do seu
patrimônio para ressarcir suas vítimas.
Essa omissão da verdade gerou uma dúvida razoável no eleitorado colombiano
sobre o compromisso dos membros das FARC confessarem a totalidade de seus crimes
diante do Tribunais de Paz. Some-se ao fato o lento desarmamento da guerrilha, que só
começou após a aprovação do Pacto pelo Congresso e segue vagaroso50
. Suspeita-se que
48
Tanto a oposição de Uribe quanto a administração de Santos foram acusados de fazer "terror psicológico
na campanha do plebiscito: http://calle2.com/quais-os-cenarios-possiveis-apos-rejeicao-ao-acordo-de-
paz/. Acesso em 30/03/2017. 49
De acordo com números fornecidos por Uribe: http://www.infobae.com/america/america-
latina/2016/09/26/el-manuscrito-de-alvaro-uribe-sobre-el-acuerdo-de-paz-con-las-farc/. Acesso em
30/03/2017. 50
Originalmente, esperava-se que o desarmamento começasse ainda em 2016. Por atrasos no
cronomgrama, começo apenas em 01 de Março de 2017: http://g1.globo.com/mundo/noticia/colombia-
um bom número dos guerrilheiros das FARC não aceite o indulto e opte por se unir às
guerrilhas menores ou ao crime organizado das cidades.
Ademais, é controverso permitir que ocupem o cenário político pessoas que possam
ter cometidos crimes tão graves quanto estupro e genocídio. É provável que as vítimas
se ofendam com esta situação e, até mesmo, calem-se por medo de represálias. Afinal,
seus algozes agora seriam parte do governo.
A nova versão do Pacto deixa em termos vagos como as FARC indenizariam suas
numerosas vítimas. Na verdade, boa parte do acordado implica gastos do Estado, como
a Reforma Agrária, a presença de serviços públicos em áreas rurais, o financiamento
dos Tribunais de Paz, entre outros. O único compromisso mais expressivo por parte das
FARC é a deposição das armas.
No Caso do Araguaia, a CIDH condenou o Estado brasileiro a compensar as
vítimas e seus parentes exatamente por não terem punido seus agentes quando podia e
devia ter feito. Dependendo do desenrolar dos fatos, há indícios de que o caso
colombiano pode seguir pelo mesmo caminho.
CONCLUSÃO
A guerrilha na Colômbia é o conflito armado mais antigo e duradouro das
Américas. Poder encerrá-lo, sem dúvida, será um grande mérito das partes envolvidas.
A questão é o grau de leniência que pode ser permitido para assegurar, de fato, a paz.
Há ainda outras guerrilhas em atividade na Colômbia, então os conflitos
continuarão. Possivelmente, exigirão o mesmo tratamento que as FARC para deporem
as armas, o que pode gerar ainda mais revolta na população civil.
Também não há como prever o desempenho político do partido a ser constituído
pela guerrilha. Se tiverem uma votação alta, questionarão se não houve coação dos
eleitores. Afinal, trata-se de um ex-grupo armado que manteve o controle de seu
território por décadas através do uso da força. Se, por outro lado, sua votação for baixa,
o público irá se questionar se a leniência concedida não teria sido um preço alto demais.
Afinal, por que cedemos tanto a quem tinha tão pouca representatividade?
Independentemente do resultado, é muito provável que o caso seja levado à Corte
Interamericana de Direitos Humanos. As FARC têm um número muito grande de
confirma-que-processo-de-desarmamento-das-farc-comeca-nesta-quarta-feira.ghtml . Acesso em
30/03/2017.
vítimas, todas aptas e legítimas para acionarem a Corte contra a leniência concedida aos
seus algozes. Não apenas dentro da Colômbia, mas também no exterior.
Resta observar o desenrolar dos fatos para determinar se haverá elementos
distintivos o suficiente no Pacto de Havana para que não tenha o mesmo destino das leis
de anistia.
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União Europeia em relação às FARC - http://www.consilium.europa.eu/en/press/press-
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