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AcidenteVascular Cerebral
ANDRÉ DA ROCHA
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRALANDRÉ DA ROCHA
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
{prelúdio}
Agarrar_
_na identidade caída no chão, com a face circunspecta e pingada
pela chuva do peito, é o ajoelhar da consciência às circunstâncias.]
[As circunstâncias da consciência se ajoelhar, são o peito da chuva
pingada e circunspecta, na face do chão caído da identidade_
Acidente Vascular Cerebral
{lugar-comum}
Agarrar_
_no que resta da nossa entrega ao outro, tendo vivido esse sentimento
como se fosse a nossa salvação é, por si só, o início de uma viagem.
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
Ao gotejar teimoso do céu que o molha como tolo, junta-se o som
inócuo de peças de roupa a abrirem-se, asas, na queda, alando
em beleza lúgubre de m o tempo da suspensão. Os transeuntes
espantam-se, de risos boquiabertos, à medida que, peça por peça,recolhe a pele que o cobriria do embaraço dessa vergonha. Não da
que resulta da nudez da exposição, mas sim daquela que lhe pesa
no silêncio anuído e compreensivo do seu coração.
Os olhos do espírito selvagem e livre daqueles cabelos voltam aalvoraçar o parapeito, atirando algumas notas, tão sujas como o
pagamento deixado no amanhecer de um móvel de cabeceira, para
ajudar nas despesas de combustível. Perante a esmola cuspida da
paixão, gelam-se as suas veias.
Atira o regaço da roupa contra a frustração do banco. Demora o
segurar desse seu cartão de identidade, comparando a escala
de cinzentos que colora a sua fotograa com o ritmo da rua e a
ausência da janela. Senta-se ao volante da ignição. Olha para a
sua imagem no retrovisor. Vítrea, como o reexo da partida para lá
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
desse lugar-comum.
{viagem}
Quando começa a percorrer os quilómetros que o separam do
regresso a casa, a mecânica da condução resulta do choque daquele
estado de náusea. À distância a que está de si mesmo, o primeiro
oco de neve que cai no pára-brisas parece-lhe ser a garganta damontanha a engoli-lo em ironia.
O cuidado daquela lentidão acautelada pelo medo, daquela
concentração que dói o cansaço do sobrolho, daquela subida
esforçada do carro, assemelha-se aos últimos meses da sua relação.
Ferida de morte pela chantagem do m e por uma fragilidade moral
imensa, derrapara a cada curva e contracurva das personalidades,
ameaçando constantemente o abismo.
À medida que a estrada vê o negro do seu alcatrão cobrir-se por um
manto branco, começa a orientar-se pelos farolins de presença dos
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
carros que seguem à sua frente. A claridade típica dos nevões, uma
auréola luminosa de fotograa envelhecida pelos anos, desfoca-lhe a
visão. O som do vento a ecoar na penumbra dos túneis da montanha,
candeeiro após candeeiro, numa intermitência cor-de-laranja que oembala como se fosse um vagão de comboio, alterna com o disparo
desse fash que o cega de alvura.
Nesse compasso, a realidade rende-se à memória...
{margem}
Os olhos fechados ao (dis)correr da brisa ribeirinha, num abraço
afagado pelo calor do espelho de água do cais, abriram-se ao
arco-íris solar que desenhava o sorriso do olhar de uns cachos de
cabelo rebeldes a fazerem-lhe cócegas na face. Por todo o lado se
estendiam corpos a contemplar o delta desenhado pela silhueta da
urbe, no silêncio cantado pela bossa nova da guitarra da voz gingada
de um artista de rua.
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
Ela, aceitando-o na dúvida provável do que sentia. Ele, provavelmente,
duvidando do conceito generalista de eternidade. (Perpétua é a
intensidade com que se grava um momento, em nós. O resto é a
recordação a entregar-se às leis da mecânica.)O passeio das brincadeiras pueris e da conversa de carinhos
partilhados aumentava o espaço dessa distância entre o vagar da
ondulação que desagua na foz e o caudal das pessoas vivendo a
pressa das suas rotinas. Nesse tempo sem relógio, os seus cheirosatraíam-se sem explicação. Os corpos aproximavam-se, na métrica
dos tacões que calcorreavam a rua. Os olhos foram-se fechando,
até que o ritmo dos corações fosse uníssono com o eco dos outros,
ao longe.
Inspiração. Silêncio. Arritmia. Beijo! Tocou o sino da igreja, no vale...
Abriram-se os olhos. Ele abraçou. Ela fugiu. Abandonaram-se!
Olhou ainda para trás, o instante honesto de uma lágrima, antes de
ser apenas mais um sapateado de rotina na calçada. Ele viu os seus
braços apertarem-se na solidão do regaço e expi(r)ou a alma à dor.
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
Nesse instante, soube-a miragem. Soube-se, ele mesmo, margem.
{viagem}
... Ouve-se um troar a rasgar a noite, entretanto caída sobre a la
indiana, que lhe desperta a atenção hipnotizada pelo ritmo do relanti .
De entre a cortina de constantes rajadas oblíquas de neve, vê-se o
contorno de uma enorme massa negra em movimento. O coraçãoaperta-lhe a garganta do peito. O carro imediatamente anterior a si,
guina o volante do susto para lá da segurança do rodado e embate, a
travagem derrapada, no rail de protecção. Perante isso, o arregalar
dos seus olhos rma a direcção, enfrentando o encandeamento de
dois faróis... A sirene dessa traição fá-lo tremer, à passagem do
limpa-neves em contramão.
O batimento cardíaco vai regressando à normalidade, à medida que
a sua atenção se concentra no breu. Está perante um vortex de ocos
de neve que bombardeia a penumbra das luzes do seu carro e lhe
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
tolda a tomada de direcção. O cansaço de frontear a marcha da la,
pesa-lhe na vista e dói-lhe na fronte. Por um segundo, assegura-se
de si, no retrovisor.
{espelho}
Na subida da colina para lá do rio, pegou no telemóvel, esbaforindo
o amargo da rejeição sofrida:
– Está na hora de nos conhecermos!
Ao m de quinze minutos, estava perante uma rapariga de cabelos
compridos e olhos provocadores, sentada à porta de uma tasca, na
berma do passeio. A sua juventude recebeu-o com um sorriso de
lábios curvados que lhe mediu o avanço da gura... De cima a baixo.
Bebeu o último trago da cerveja e apresentou-se. O segundo dos
beijos do “olá” foi um toque quase imperceptível de cócegas no canto
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
dos lábios. Num plano fechado de proximidade, esses respirares do
galope enfrentaram os seus olhares, como dois cavalos livres.
Desceram a teia caótica de pequenas ruas, até desaguarem na
avenida principal, desenrolando um novelo de palavras que não eramais do que cio a balbuciar. Na rua dos turistas, correram um atrás
do outro, no crescendo do nervoso miudinho em gargalhadas. A
perseguição acabou com ele a agarrar-lhe a cintura. Deitou-lhe um
pouco de água no cabelo, num trejeito travesso. Ela, torceu o nariznum abrir de boca pasmada, como quem cala o insulto, perante a
insolência. Roubou-lhe a garrafa à mão, em repente que acabou
com um banho frio no lusco-fusco do Verão.
Os olhares brilharam o riso. Os dentes dela morderam o lábio. A
língua dele lambeu o seu, pronunciadamente. Aproximaram-se.
Pararam, verticais. A estática dos seus corpos a ameaçar o beijo,
era um desaforo para os homens-estátua que se maquilhavam de
fotograa, pelo adiante da rua. Como se os seus seres fossem as
polaridades de um íman, detiveram-se... Espelho.
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
{viagem}
Sente um ardor de sono nos olhos. Uma calma mortal remói-lheconstantemente o semblante, em ladainhas. Coça várias vezes a
cara. Sopra o ar em beicinho de lágrimas secas pela incredulidade.
Sobe-lhe o fel pelo peito. A lembrança da forma torta como se haviam
conhecido, fá-lo parecer incauto perante a antiguidade dos ditadospopulares, como se a paixão se prevenisse ou houvesse nela outra
estupidez que não a cegueira.
Apetece-lhe ouvir música. Quando dirige a atenção para a consola,
vê, no banco deserto ao seu lado, o espectro das feições dela. No
desvario, a janela é um ecrã onde se projectam as imagens do seu
sorriso e das suas expressões de felicidade a percutir o ritmo das
canções no tabliê. Sobre o volante coloca a mala dos cd e atenta
num título.
Ao som daquele tema tinham uivado em uníssono, com a cabeça fora
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
da janela, uma descida vertiginosa, na direcção de um rio. Lembra-se
de ter dançado, no seu embalo, a nudez que antecedeu o mergulho
e a emersão berrada em êxtase, como se o auge da felicidade fosse
o próprio sol e não o voo rasante de Ícaro. Abre a janela ao nevão e, de dentro da sua dor, grita... Até que a
rouquidão de uma garganta esforçada pela raiva, se tussa, esgotada.
{tango}
Cheiro a verniz empoeirado e elevador gradeado avariado há mais de
uma década__Escadas amplas de beijos em saia subida de encontro
à parede__Alça rasgada por sorrisos de ombros mordidos no agarrar
do cabelo do desejo__Chave a abrir a porta, na sofreguidão das
tentativas turvadas pela penumbra da clarabóia__Apartamento de
estantes vazias e chão repleto de objectos, caminhados aos chutos e
tropeções__O abrir da intimidade do seu quarto, coberto a padrões de
roupa e livros abandonados um pouco por todo o lado__O desaguar
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
da intensidade dessa busca no vislumbre da janela, aberta ao fundo
da cama, no entrar do sufoco enfeitiçado da noite.
A constância daquelas pequenas imagens captadas pelos sentidos,
quase como se fora um lme em stop motion, invadia-lhe o coração.Quando se deitaram seminus, sobre a cama, o som oco da madeira
de uma guitarra amparou-lhes a queda. Pegou-lhe. Sentou-se na
moldura da parede, com a Lua crescente a desenhar-lhe o desejo.
Tocou uns acordes e ela, sentando-se no canto oposto da cama, amastigar o prazer do fumo de um cigarro, trauteou-os.
Lá fora, os gatos miavam, nos telhados. Do outro lado da rua, ouviu-se
o som distante das pampas, saído da janela de uns cabelos grisalhos
e olhos de rugas tristes encobertas pela cortina da noite. Pegaram
na mão um do outro. Ela encostou a cabeça no seu ombro, quase
ronronando o percorrer do cabelo pelo peito, no conar do balanço.
As mãos desenharam o corpo um do outro, como pincéis, enquanto
os beijos se entrelaçavam com o esfregar dos cheiros das faces.
A posse agarrava-se... Puxando, chamando, mordendo o tesão...
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
Ele agarrou-lhe o cabelo e voltou-lhe a face para a janela. Ela
ondulou, tremendo. Colocou-lhe uma mão no colo, enquanto a outra
descia, lentamente, desde o pescoço até aos seios. Depois, abriu o
movimento, elevando-lhe os braços. Olhando o céu, os dois, voarama nudez de um tango.
{viagem}
Na lentidão da travessia do planalto, tenta distrair-se a contar as
indicações de saídas cortadas, de desvios forçados e sinalizações
luminosas que piscam a informação da intempérie. À medida que
os quilómetros passam, o cansaço aumenta e, perante o fechar
incontrolável dos olhos, procura uma estação de serviço onde possa
beber um café e comer qualquer coisa. A neblina densa e as pingas
pesadas da chuva substituem a neve.
O uxo do trânsito começa a regressar à normalidade, com alguns
condutores a arriscarem as ultrapassagens. A velocidade aumenta e
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
a tensão acumulada liberta-se com o tactear dos dedos no volante.
Vê o aviso de uma saída e desvia-se. Estaciona o carro em frente
a um café. Massaja a dor dos ombros. Mexe o pescoço para um e
outro lado. Depois coça o cansaço da face. Vê as olheiras negras aoretrovisor e puxa as pálpebras para baixo, avaliando a extensão do
raiado vermelho do lacrimejar.
Entra e pede um café e uma sanduíche. Senta-se na mesa, ao canto,
na solidão insípida do mastigar mecânico e demorado.
{jantar romântico}
Acordaram para o nal da tarde, num abraço de corpos. Olhando
para a cama, através da luz cansada do sol, a brancura dos lençóis
era opaca, perante o brilho do suor da pele. Havia mimos de dedos
a desenharem o contorno dos cabelos e ar soprado a acalmar o
alvoraçar da testa. Lá em baixo, o trânsito apitava a falta de paciência
da hora de ponta. A preguiça esticava as cãibras dos corpos aos risos.
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
O silêncio era um lugar de cumplicidade onde todas as entrelinhas
existiam enquanto comunhão.
Levantaram-se e foram até à banheira de uma casa de banho coberta
de ladrilhos desenhados a marcador, como se todas aquelas peçasfossem um post-it e a parede a estória resultante desse cruzar de
memórias. Tomaram duche juntos, banhando-se em carinho e beijos.
Saíram de mãos dadas para a cidade, já a noite coloria de candeeiros
as vielas do bairro. Subiram a encosta, entre convites de menus ecantares das casas de fado. Contaram os trocos dos bolsos e, na
falta de dinheiro, compraram dois hambúrgueres e cerveja, num café
perto do miradouro.
A vista do banco em que se sentaram era soberba. Estendia-se pelovale, em desníveis de luzes e prédios. O movimento do tráfego era
constante e a cidade parecia nunca dormir. De vez em quando, a
vida alertava-se com o ecoar de sirenes e, por um instante apenas, a
alma lembrava-se de que há um lugar de solidão na existência. Para
lá do rio, o Cristo-Rei abria os braços à ponte desse momento.
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
Ele fechou os olhos e inspirou, profundamente. No canto do jardim,
uma harpa loira, de cabelos entrançados por um vestido de veraneio,
era acompanhada por um violino de longas barbas trajadas de jaqueta
e cachimbo a espreitar através da lapela. A rapariga cantava emgaélico o enfeitiçar de um sussurro ventoso e o idoso ria a disposição
de diabrete.
Sentiu a cabeça dela auscultar-lhe o batimento do coração e, era
felicidade o que sentia, quando viu uma estrela rasgar os céus, nacadência de um desejo. Deu-lhe um beijo demorado e longo que
acordou de si mesmo com o fash de uma fotograa que alguém
captou. Riram-se e tiraram, das caixas de prêt-à-porter , o jantar
romântico.
{viagem}
Levanta-se, combalido. Deixa o tabuleiro no balcão. Ausente e
distraído, vai aos lavabos. Enquanto lava as mãos, baixa o olhar,
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
evitando a confrontação com o seu reexo. Esfrega vigorosamente a
face, na tentativa de que a vergonha escoe pelo ralo. Tenta agarrar o
uxo da água, como quem estanca o sangue de uma ferida. Salpica o
espelho. O retesar dos braços apoia-se sobre o mármore do lavatórioe ele vê a sua cara diluir-se, como o tempo que persiste na memória
de Dalí. Mima caretas perante a distorção do reexo e, no auge da
dor, puxa o couro ao cabelo e a barba à cara, em choro. Deixa-se
cair no chão da casa de banho. À medida que o corpo tomba, é oespelhar da luz que há nesse espaço que escorre pelo vidro...
{pôr-do-sol}
Acordou-a, servindo-lhe o pequeno-almoço na cama. Enquanto ela
bebia o sumo, embevecida, deixou-se car ao canto, sentado numa
pilha de roupa, a olhá-la e a dedilhar acordes na guitarra. Quando ela
terminou a refeição, estendeu-lhe uma coroa de ores. Malmequeres
brancos costurados entre si durante a noite, a fazerem-na soltar uma
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
lágrima de espanto. Depois pegou-lhe na mão e segredou-lhe que o
Verão acabava nesse dia. Queria celebrar o Equinócio.
Chegaram à praia, quando a maior parte dos banhistas fazia o
movimento inverso. Detiveram-se no passeio e olharam para o Sola descer no horizonte. Correram de mãos dadas na areia e deram
um mergulho refrescante na preia-mar do nal da tarde. Depois
estenderam-se no areal deserto. Quando o ocaso começou a colorir
de dourado a paisagem, ele agarrou no djembé que levara. A violência primitiva do seu corpo a percutir aquela pele; sugeriu-lhe que
colocasse a coroa de ores na cabeça. A sensualidade ondeava-lhe
o vestido de veraneio e o som ondulava-lhe o movimento do corpo.
Ele gingou o compasso, como se fosse a raiz do tronco esculpido doseu instrumento e, ela, em tribalismos intuídos, cultuou uma qualquer
deusa da feminilidade, despindo, no pincel do vento, cada uma das
peças da sua roupagem.
Os seus mamilos erectos de areia e arrepio de sal tocaram nas costas
dele. Voltou-se e beijou-a. O lusco-fusco embalou-lhes a entrega
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
dos corpos, até que a noite cobrisse, com o manto das estrelas, o
pôr-do-sol.
{viagem}
Limpa as lágrimas com as costas das mãos. Ergue-se a custo, na
vergonha de outra pessoa entrar nos lavabos. Afastando, de forma
brusca, a palavra de preocupação, dirige-se para o carro. Mete a chavena ignição e bate com a palma das mãos no tabliê, violentamente.
Volta a chorar raiva e incompreensão, mordendo a língua ao grito.
Cruza as mãos sobre o volante e deixa a testa repousar nelas.
Olha em redor. Por todo o lado se acumulam objectos que evocama presença dela. As toalhitas na consola. As beatas no cinzeiro. As
garrafas de tisanas amontoadas no chão. Os pauzinhos do chinês
que usava para comer enlatados nas viagens. O kit de primeiros
socorros que deixara sob o banco do pendura...
O arranque do carro abre o vidro ao frio da noite. Deixa que a
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
velocidade galopante da viagem espalhe, aos quatro ventos, cada
uma das recordações. Pelo retrovisor vai vendo a gravidade estilhaçar
esse rasto de encontro ao alcatrão da estrada.
{cavalgar}
Amanheceu a maresia. A preparação da faina era um reboliço sobre o
areal. Várias mulheres carregavam os barcos com redes. Os homens,esses, iam substituindo os toros na proa dos barcos, empurrando-lhes
o movimento em direcção à zona de rebentação.
Eles acordaram o bem-estar. Passearam, segurando os chinelos nas
mãos. O cansaço enterrava os pés nas dunas, enquanto o movimentodo corpo enfunava o rodopiar da roupa, como um cata-vento. Beberam
um café demorado, numa esplanada, ofuscados pelo prateado do
espelho de água que se estendia a bombordo das embarcações.
Levantaram-se remoinhos de pó, com a nortada. Ela riu imenso ao
ver passar um chapéu a voar a rebeldia dos cabelos idosos que o
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
perseguiam pelo areal.
– Anda. Vou mostrar-te uma coisa!
Levou-o até ao topo de um dos passadiços, assegurando-se de que
era rectilíneo. Depois explicou-lhe...
– Dá-me os teus braços. Eu guio-te porque vais estar de olhosfechados. Começamos a andar e depois damos saltinhos. Quando
te disser para andares mais depressa, saltas cada vez mais alto.
Olhou para ele, demoradamente. Esperou que deixasse de se rire se acalmasse. Olhou-lhe as dúvidas, até que o seu semblante
percebesse a solenidade do momento, e acrescentou, com uma voz
doce que lhe rmou o agarrar das mãos de encontro ao seu peito:
– Cona em mim!
É
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
Ele fechou os olhos e o vento empurrou-lhe as costas, a cooperar
com a brincadeira. Começaram a andar. Havia nele uma insegurança
gritante que parecia apalpar cada passada. Antes que tivesse tempode se habituar ao estado de cegueira, ela impeliu...
– Mais depressa.
... E os passos abriram a amplitude. Depois sentiu-a dar pequenos
saltinhos. Imitou-a no trote. A confusão emocional que sentia
causava-lhe um certo desconforto, mas recusou-se a abrir os olhos,
para não a desiludir. Os saltos eram cada vez mais pronunciados. Ovento soprava cada vez mais forte. O cabelo dela batia-lhe na face,
como se fosse uma crina, e ele mordeu os lábios a recordar o dia em
que se haviam conhecido. Às tantas, o coração gritou-lhe, de entre
a liberdade que há na conança:
| É
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
– Estou a cavalgar!
{viagem}
A descida da cadeia montanhosa dá descanso à idade do carro.
A estrada, apesar de molhada, parece ser uma pista de velocidade. A
constância da chuva, o nevoeiro tornado intermitente pelo alaranjado
dos quatro piscas e as fantasmagóricas informações luminosas asurgirem de entre o nevão, caram para trás. Mas nenhuma dessas
circunstâncias lhe alivia a pressão em que viaja.
O lapso entre a expressão completamente áspera das suas feições
e as emoções que devastam o seu sistema nervoso, em variaçõesimprevisíveis de humor, não coincide com a erupção constante de
memórias no seu espírito. Numa vigilância exaustiva do seu reexo
ao espelho, castra qualquer laivo de sensação ou arrependimento,
como se negasse, à estória vivida, a possibilidade de ter cometido
algum erro.
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ANDRÉ DA ROCHA | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
Na tona dos seus esgares, bóia a culpa, face à puricação da tristeza
pelo choro. Mói-o devagarinho, em movimentos circulares. Estreita-lhe
o redil moral. Ferroa-o com o seu veneno.
Avista, pela primeira vez, um sinal com a informação da distância quefalta percorrer até à sua cidade. No meio termo entre a consciência
do que ca para trás e do que terá ainda de enfrentar, ensaia um
sorriso, ao avistar um desvio de emergência que lhe oferece um
hipotético abrigo, face à inclinação vertiginosa dessa queda.
{cais}
_Uma voz de nuances metálicas, ecoou na estação, anunciandouma partida. Ouviu-se um apito demorado e um comboio seguiu a
sua marcha_
Estavam assustados, perante o desconhecido daquela despedida.
Enquanto ela foi ao guichê comprar o bilhete, ele carregou os sacos,
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA
arrastando as sapatilhas pelo chão, como quem pontapeia uma lata,
com as mãos nos bolsos da acomodação frustrada.
Quando ela voltou, com o sorriso a empunhar o bilhete que a levaria
através da Europa, durante três meses, para realizar um Interrail ,deparou-se com o desamparo triste daquela gura. Percebeu, no
seu coração, que estava a enfrentar o início de um processo de
distanciamento irreversível. Mantendo a calma, dissimulou a alegria.
Perante a felicidade dela, o seu coração sentiu-se atraiçoado naentrega. Várias vezes, ao longo do Outono, a alertara para aquele
desapego que iria experimentar, com medo de o perceber como
abandono.
Deram um beijo agridoce. De entrelinhas de m e de intensidadedas vivências partilhadas. Abraçaram-se, na demora do tempo que
não queria acabar.
_Uma voz de nuances metálicas, ecoou na estação, anunciando
uma partida. Ouviu-se um apito demorado e um comboio seguiu a
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sua marcha_
Ela partiu no seu embalo, chorando. Pela segunda vez, na sua vida,
ele cou a enar a mão nos bolsos do olhar baço, na indiferençado cais.
{viagem}
Chega a casa. Ao estacionar o carro, inspira profundamente,
agarrando o volante, com força. Abana-se para trás e para a frente,
ensaiando um grito mudo. Depois, devagar... expira. Conta de dez
até um e pega na roupa, aconchegando-a no colo. Ao entrar pela porta, atira o peso do regaço para um canto. As paredes
abatem-se sobre a sua solidão. As sombras dos espaços pesam-lhe
o silêncio. Deita-se na cama, com a barriga para cima e as mãos
cruzadas sob a nuca, a remoer a luz do tecto. Sem saber o que fazer
para que a dor passe ao lado do tempo, vai tomar um duche.
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A água quente massaja-lhe as cãibras do cansaço da condução. A
determinado momento, a cortina tépida lava o sal que lhe escorre
compulsivamente pela sua face. O choro, assim disfarçado, não
o envergonha. Ao m de largos minutos, desliga a torneira eembrulha-se numa toalha.
Perdido na neblina do vapor, limpa o espelho e vê-se, longe do
julgamento de valor ou da dicotomia que há entre a negação e a
aceitação... difuso, baço, (dis)torcido... na nudez da fragilidade.
_Sente uma violenta dor física no peito_
{postais}
Ao m de três dias, começou a receber postais. Pequenas fotograas
de locais por onde ela passara, notas repletas de recordações, textos
com as suas vivências, citações de autores de que ambos gostavam,
referências a letras das suas bandas preferidas... Sentia-se, naquele
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hábito, um cuidado a que não se conseguia car indiferente. Um
envelope por dia. Religiosamente.
Ao m da primeira semana, duvidou que esse gesto se prolongasse
por um mês. Passado esse tempo, já não conseguia disfarçar aexpectativa provocada pela espera do carteiro, na cadência daquela
abnegação. Por altura do último mês da viagem, ela conseguira
fazê-lo sentir que não tinha existido um único momento de ausência
daquilo que, no amor que há na entrega, signica “estar presente”.Por m, nas costas de uma fotograa que eles tinham tirado na
intimidade do quarto dela, leu:
– Vem ter comigo, meu amor... Estarei em minha casa, à tua espera,no dia seguinte a receberes esta fotograa, o último dos nossos
postais.
{viagem}
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Ela abre a porta do prédio e ouve-lhe os passos da respiração
esbaforida de quem sobe degraus, de par em par. No último lanço
ele detém-se. Estão um perante o outro, como se o tempo passado
desde o abraço dado na estação não tivesse existido. Quando osolhos brilham o consentimento do último passo que lhes anule a
distância, são os corações que se estão a permitir encontrar a paz
da felicidade, num beijo. Chama-o, no alvoroço do desejo.
Rasgam-se__arranham-se__mordem-se__lambem-se__despem-se__ murmuram-se__calam-se__choram-se__riem-se.
Deitam-se na cama, completamente despidos, a desenharem os
contornos do corpo um do outro, entre carícias. Ela faz-lhe juras
eternas, como quem segreda as palavras da alma. Ele torna-seprogressivamente distante. Assustada, tenta chamá-lo para o seu
colo. Afasta-a. Senta-se na beira da cama, voltando-lhe as costas,
como quem se prepara para partir...
– Eu traí-te!
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Perante o baque, ela tenta falar, mas o único discurso que lhe sai
do peito é um carpir demorado de gemidos. É um murmúrio de dor
remoída e convulsa que se abre, sobre as mãos que lhe escondema vergonha à cara, em catadupa de lágrimas.
_Sente uma violenta dor física no peito_
Ele sai, numa calma mortal, batendo a porta. Pára. Coloca a mão
na consciencialização do passado que encerra. Ainda duvida da
decisão tomada, por um instante. Depois, dá um passo na direcção
das escadas e inicia a viagem.
{acidente vascular cerebral}
[Agarrar a consciência do peito, é a chuva pingada das circunstâncias,no ajoelhar da face circunspecta, perante o chão da identidade caída.]
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ACIDENTE VASCULAR CEREBRALANDRÉ DA ROCHA
ILUSTRAÇÃO
FÁBIO VIEIRA | WHO
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