alguns aspectos da semiótica da cultura de iuri lótman
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA
ALGUNS ASPECTOS DA SEMITICA DA CULTURA
DE IRI LTMAN
Ekaterina Vlkova Amrico
So Paulo
2012
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA
ALGUNS ASPECTOS DA SEMITICA DA CULTURA
DE IRI LTMAN
Ekaterina Vlkova Amrico
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Literatura e Cultura Russa do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Letras.
Orientador: Professora Dra. Aurora
Fornoni Bernardini
Pesquisa financiada pela CAPES
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
VLKOVA AMRICO, Ekaterina. Iri Ltman e a semitica da cultura / Ekaterina Vlkova Amrico; Orientadora Aurora Fornoni Bernardini. -- So Paulo, 2012. Tese (Doutorado Programa de Ps-graduao em Literatura e Cultura Russa. rea de Concentrao: Literatura e cultura russa Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo).
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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FOLHA DE APROVAO
Ekaterina Vlkova Amrico
Iri Ltman e a semitica da cultura
.
Tese apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor. rea de Concentrao: Literatura e Cultura Russa.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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AGRADECIMENTOS
Professora Aurora Bernardini pela orientao, pelas valiosas indicaes bibliogrficas, pela pacincia com a imperfeio dos meus conhecimentos da lngua portuguesa e pelo carinho. Aos Professores Elena Vssina e Bruno Barretto Gomide, participaram da minha banca de qualificao, pelo incentivo e pelas sugestes que enriqueceram tanto o presente trabalho. Ao professor Serguei Neklidov, da Universidade Estatal de Humanidades de Moscou, pelas preciosas informaes e pelos materiais referentes a Escola Semitica de Trtu-Moscou. Aos meus pais Guenrikh Vlkov e Galina Verjkhvskaia que despertaram em mim a paixo pela leitura e aprendizagem (assisti pela primeira vez aos programas de Iri Ltman sobre a cultura russa na companhia do meu pai e ganhei da minha me o romance O nome da rosa, como presente pelo meu 12 aniversrio) e que sempre trataram tudo o que faziam com perfeio e dedicao exemplares. minha famlia: ao meu marido Edelcio Amrico pelas leituras, sugestes e muita confiana e aos meus filhos Sofia, Aleksandr e Ksenia pela pacincia com a "mame trabalhando". s minhas queridas amigas Ceclia Rosas, Denise Regina de Sales, Graziela Schneider Urso, Mrcia Orsoni Chagas Kondratiuk e Paula Costa Vaz de Almeida pela ajuda na reviso das tradues e pelas crticas e sugestes oportunas.
CAPES pela concesso da bolsa de doutorado e pelo apoio financeiro para a realizao desta pesquisa.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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RESUMO
VLKOVA AMRICO, E. Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman. 2012. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.
O presente trabalho tem por objetivo a anlise da evoluo da semitica da
cultura na obra de estudioso da cultura e literatura, crtico e filsofo russo Iri Ltman
por meio de tradues e dos comentrios concernentes aos seus ensaios, escritos em
diferentes pocas e dedicados aos principais conceitos da semitica da cultura, tais
como o fenmeno da cultura e os seus processos dinmicos, o fenmeno da arte, o
problema do texto, a memria cultural e a semiosfera.
A obra de Ltman enquanto semioticista inseparvel do contexto histrico dos
estudos da literatura, lingustica, semitica, cultura tanto na Rssia, quanto no Ocidente.
Entre os seus precursores russos esto os escritores e os filsofos do sculo XIX e, no
sculo XX, os simbolistas, os futuristas e os formalistas. A essncia da semitica da
cultura lotmaniana comeou a se formar no mbito da Escola Semitica de Trtu-
Moscou e com a base na tradio dos estudos lingusticos, j nos trabalhos posteriores
ela adquiriu um carter mais filosfico, ao lidar com a imprevisibilidade dos processos
culturais universais. Definimos ainda os pontos de coerncia entre as ideias de Ltman e
a obra dos estruturalistas e ps-estruturalistas franceses, alm de Mikhail Bakhtin e
Umberto Eco.
Palavras-chave: Iri Ltman semitica da cultura Escola Semirica de Trtu-
Moscou sistemas modelizantes secundrios - texto semiosfera - Mikhail Bakhtin
Umberto Eco O nome da Rosa literatura russa
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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ABSTRACT
VLKOVA AMRICO, E. Some aspects of Yuri Lotman's semiotics of culture. 2012. Thesis (Ph.D.) - Faculty of Philosophy and Humanities, University of So Paulo, Sao Paulo, 2012.
The present work aims at analyzing the development of semiotics of culture in
the work of Russian culture and literature scholar, critic and philosopher Yuri Lotman
through translation and commentary of his essays, written at different periods and
dedicated to the core concepts of semiotics of culture, such as culture phenomenon and
its dynamic processes, the phenomenon of art, the problem of the text, the cultural
memory and semiosphere.
Lotman`s work as a semiotician is inseparable from the historical context of the
literature, linguistics, semiotics and culture studies both in Russia and the West. Among
his precursors are Russian writers and philosophers of the nineteenth and twentieth-
century, the symbolists, futurists and formalists. The essence of Lotman`s semiotics of
culture began to form in the Tartu-Moscow Semiotic School on the basis of language
studies tradition, though in later works he developed a more philosophical approach,
dealing with the unpredictability of universal cultural processes. Further, we point out
the connection between Lotman's ideas and work of French structuralists and
poststructuralists, Mikhail Bakhtin and Umberto Eco.
Keywords: Yuri Lotman - semiotics of culture - TartuMoscow Semiotic School
secondary modelling systems - text - semiosphere - Mikhail Bakhtin - Umberto Eco -
The Name of the Rose - Russian literature
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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SUMRIO:
1. Introduo.......................................................................................................p.10
1. Delimitao do tema...................................................................................p.10
2. Estrutura da tese..........................................................................................p.13
3. Principais fontes.........................................................................................p.17
2. Captulo I. Iri Ltman: entre biografia e obra...............................................p.25
1. Iri Ltman e um modelo exemplar...........................................................p.26
2. A formao.................................................................................................p.33
3. Trtu............................................................................................................p.40
3.1 A escola de Trtu-Moscou....................................................................p.54
3.2 A obra de Ltman nos anos 1970-1990...............................................p.89
3. Captulo II. O universo de Iri Ltman.........................................................p.104
1. Da histria semitica.............................................................................p.104
2. A semitica da cultura no contexto terico..............................................p.111
3. Da semitica filosofia............................................................................p.134
4. Captulo III. Tradues ................................................................................p.150
Apresentao dos textos escolhidos...............................................................p.150
1. No limiar do imprevisvel. A ltima entrevista de
Iri Ltman..............................................................................................p.153
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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2. Propostas em relao ao programa da IV Escola de vero sobre os
Sistemas Secundrios de modelao........................................................p.166
3. O problema do texto..................................................................................p.169
4. O problema da traduo potica.................................................................p.188
5. A cultura como intelecto coletivo e os problemas da
Inteligncia artificial..................................................................................p.194
6. O fenmeno da arte.....................................................................................p.213
7. O fenmeno da cultura................................................................................p.227
8. A semitica da cultura e o conceito de texto..............................................p.248
9. Sobre a dinmica da cultura........................................................................p.255
10. A sada do labirinto...................................................................................p.280
5. Consideraes finais.....................................................................................p.309
6. Bibliografia....................................................................................................p.316
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INTRODUO
1. Delimitao do tema
O objetivo da presente tese de doutorado apresentar a contribuio do
semioticista russo Iri Ltman como a de um dos fundadores da semitica da cultura do
sculo XX. Alm de filsofo ele foi terico e crtico literrio, criador de um sistema
inovador da anlise tipolgica e sistemtica da cultura e literatura russas. Nossa
apresentao constar de dados biobibliogrficos de Ltman, bem como de uma sntese
das principais ideias que constam dos ensaios aqui traduzidos, que julgamos como
estando entre os mais representativos de seus estudos semiticos.
Atualmente, a obra de Iri Ltman obteve reconhecimento mundial,
particularmente na rea dos estudos semiticos e serve como referncia para muitos
outros pesquisadores. O interesse por seus trabalhos vem crescendo a partir dos anos
sessenta do sculo XX, marcados pelo surgimento da Escola Semitica Russa, tambm
chamada de Escola Semitica de Trtu-Moscou. Nesse sentido, Iri Ltman, por ser seu
fundador e lder, pode ser considerado um dos representantes mais notveis da
semitica russa. No Brasil, os estudos semiticos de Ltman tambm so divulgados e
conhecidos no meio acadmico, sendo que algumas das suas obras foram traduzidas
para o portugus. No entanto, grande parte da sua herana bibiogrfica ainda no foi
vertida para o nosso idioma e, portanto, os estudiosos brasileiros so obrigados a
recorrer s tradues em outras lnguas.
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Devido impossibilidade de abarcar toda a obra de Iri Ltman que conta com
mais de oitocentos ensaios crticos, com uma grande variedade de assuntos e temas
abordados, preferimos focalizar alguns trabalhos de Ltman dedicados especificamente
sua viso da semitica da cultura. Os ensaios traduzidos pertencem a diferentes
pocas, abrangendo o perodo de 1964 a 1992, e, portanto, oferecem uma oportunidade
de observar a evoluo das ideias centrais dessas obras do autor.
Alm do grande volume de obras publicadas, outra dificuldade que encontramos
no processo de elaborao da tese foi a tarefa de definir a essncia terica da obra de
Ltman. As suas formulaes metodolgicas fazem parte de inmeros ensaios, o que
nos levou a considerar necessrio o estudo prvio de toda a sua obra antes da extrao
dos postulados tericos e da definio dos textos a serem traduzidos.
A anlise do sistema metodolgico do semioticista russo seria incompleta sem a
descrio do contexto cientfico de seu surgimento, bem como sem a sua comparao
com as ideias dos outros estudiosos da semitica e da cultura, como, por exemplo,
Mikhail Bakhtin ou Umberto Eco.
Acreditamos que os ensaios traduzidos possam interessar no apenas aos
estudiosos da cultura russa, mas a um meio acadmico muito mais amplo, por
descreverem processos culturais universais. Com base nos ensaios traduzidos e outros
trabalhos de Ltman relacionados semitica da cultura, analisaremos os conceitos
essenciais da sua contribuio enquanto semioticista, que se destaca pela profunda
confluncia de vrias disciplinas, tais como estudos literrios, histricos, lingusticos,
semiticos e filosficos. Alm das cincias humanas, em sua obra percebe-se uma
considervel influncia da rea das cincias exatas, entre elas, por exemplo, a
matemtica e a biologia.
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O conhecimento da obra de Iri Ltman e do seu ncleo terico e conceitual
indispensvel para os estudos na rea das cincias humanas, pois suas descobertas
enriquecem a anlise da semitica da cultura com novos conceitos e paradigmas.
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2. Estrutura da tese
Inicialmente, o projeto de pesquisa que constituiu a presente Tese era intitulado
Literatura russa do sculo XIX atravs da obra de Iri Ltman e visava a anlise e a
traduo da obra de Ltman dedicada a esse assunto. Porm, durante o exame de
qualificao que teve lugar em 2011, foi tomada a deciso, por sugesto da banca, de
mudar o tema e a direo da pesquisa para o estudo da semitica da cultura na obra de
Iri Ltman em geral, por ser um assunto que tocaria no apenas os interessados na
cultura e literatura russas, mas um meio acadmico mais amplo.
A Tese consiste nos seguintes captulos:
Captulo I. Iri Ltman: entre biografia e obra.
Trata-se de uma anlise biobibliogrfica da obra de Iri Ltman por meio da
qual possvel definir quatro momentos cronolgicos de sua vida que tiveram um
grande impacto na sua obra:
1. A formao universitria (1939-1950). Nesse perodo, Ltman recebeu a
herana da literatura russa e da tradio dos estudos literrios: da escola
histrica e comparativa do final do sculo XIX - incio do sculo XX, do
formalismo russo e do estruturalismo.
2. A atuao como professor de literatura russa na universidade de Trtu (1954-
1993). Muitos dos temas abordados na obra de Ltman surgiram no processo de
preparao das aulas e discusso com os alunos.
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3. A atuao na qualidade de organizador e um dos membros principais da Escola
Semitica de Trtu-Moscou (1960-1980). De um lado, houve a influncia da
escola e do mtodo estrutural-semitico nos estudos de Ltman e de outro,
manifesta-se o carter independente e nico da sua obra.
4. Aps o fim das atividades da Escola de Trtu-Moscou em meados dos anos
1980, a obra de Ltman volta-se cada vez mais s questes filosficas e
histricas, responsveis pelo desenvolvimento da cultura.
Captulo II. O universo de Iri Ltman.
Nesse captulo encontram-se observaes gerais acerca do mtodo do estudo
semitico da cultura aplicado por Ltman, das suas principais caractersticas e origens,
da ampliao constante dos conceitos principais ao longo de sua obra enquanto
semioticista.
A obra de Ltman revela a viso da histria da cultura como um processo nico
que obedece a certas leis. Nesse sentido, o seu mtodo de estudo pode ser chamado de
histrico, isto : os processos culturais concretos so compreendidos como parte da
histria universal da humanidade e no podem ser analisados fora desse contexto.
Outro trao importante, tanto da metodologia de Ltman, como tambm de toda
sua obra o movimento de constante expanso e ampliao: ele usa um detalhe
pequeno, uma obra literria ou um autor concreto como uma chave para analisar uma
poca, uma corrente literria ou at mesmo a cultura como um todo.
Alm disso, o mtodo de Ltman costuma ser chamado de paradoxal por
questionar aquilo que parecia bvio para as geraes anteriores e interessar-se por
assuntos e personalidades pouco estudados ou at mesmo esquecidos.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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A sua semitica da cultura pode ser chamada ainda antropocntrica por colocar a
personalidade humana no centro de todos os processos culturais.
A partir da comparao com a obra dos seus precursores e contemporneos,
entre eles os formalistas russos, os estruturalistas franceses, Mikhail Bakhtin e Umberto
Eco, definimos como sendo os principais conceitos da semitica da cultura lotmaniana a
noo do texto lingustico, literrio e cultural e o mbito em que esses textos coexistem:
a esfera dos sentidos, a semiosfera.
praticamente impossvel definir em uma palavra a rea dos estudos de
Ltman: seria ele um crtico literrio? Um historiador da literatura e da cultura? Um
filsofo? Como veremos, se trata de uma viso universal que abrange vrias reas do
conhecimento humano. Dessa forma, outro diferencial da obra de Ltman a ser
considerado o seu carter interdisciplinar.
Captulo III. Tradues
Nesse captulo, apresentamos as tradues de oito ensaios, escritos em pocas
diferentes e, portanto, testemunhas da evoluo do seu paradigma terico. Entre
inmeros trabalhos de Ltman escolhemos aqueles que concentram em grau maior as
ideias do autor acerca da semitica da cultura. J os prprios ttulos dos artigos
sinalizam a complexidade dos assuntos abordados: "O problema do texto", "O
fenmeno da cultura", "A semitica da cultura e o problema do texto", "A dinmica da
cultura" e assim por diante.
A traduo para a lngua portuguesa acompanhada por comentrios com breves
informaes sobre personalidades, lugares ou correntes literrias e culturais, integrantes
dos textos de Ltman.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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Observaremos ainda que a traduo desses ensaios poder conter algumas
imperfeies estilsticas devido s dificuldades da verso do russo para o portugus, este
idioma no sendo o nativo da tradutora.
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4. Principais fontes
Em lngua russa, existe um grande volume de obras de Iri Ltman publicadas,
tanto em livros isolados, quanto em coletneas de vrios autores, como tambm em
peridicos russos e soviticos. Entre essas edies, destaca-se a coletnea lanada pela
editora Iskusstvo de So Petersburgo que serviu como base principal para a
elaborao do presente trabalho, assim como para seleo dos textos de autoria de Iri
Ltman a serem traduzidos:
1. LTMAN, Iu. A educao da alma ( ). So Petersburgo,
Isstustvo-SPB, 2003.
2. LTMAN, Iu. M. Pchkin (). So Petersturgo, Isskustvo-SPB, 2003.
3. LTMAN, Iu. M. Histria e tipologia da cultura russa (
). So Petersburgo, Isskustvo-SPB, 2002.
4. LTMAN, Iu. M. Semiosfera (). So Petersburgo, Isskustvo-SPB,
2000.
5. LTMAN, Iu. M. Sobre a literatura russa ( ). So
Petersburgo, Isskustvo-SPB, 1997.
6. LTMAN, Iu. M. Karamzin (). So Petersturgo, Isskustvo-SPB,
1994.
7. LTMAN, Iu. M. Sobre a poesia e os poetas (O ). So
Petersburgo, Isskustvo-SPB, 1996.
8. LTMAN, Iu. M. Conversas sobre a cultura russa (
). So Petersburgo, Isskustvo-SPB, 1994.
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As principais fontes da presente tese de doutorado podem ser divididas nos
seguintes componentes:
I. Obras de Iri Ltman em russo.
A esse bloco pertencem todos os textos de autoria de Iri Ltman referentes
semitica da cultura, bem como literatura e cultura russas. Entre estes trabalhos que
permitem definir a sua metodologia, alguns foram escolhidos para a traduo por serem
considerados os mais representativos.
Entre as fontes disponveis na internet, em primeiro lugar citaremos o site
www.ruthenia.ru criado pela Editora Reunida de Humanidades de Moscou (Editora
OGI) e pelo Departamento de Literatura Russa da Universidade de Trtu. Alm de
inmeros materiais bibliogrficos, informaes sobre os eventos acadmicos e rumos da
pesquisa moderna na rea das cincias humanas, bem como pginas dedicadas a obra
dos estudiosos de literatura e cultura, em 2004 dentro do site foi criada a pgina pessoal
de Iri Ltman: Lotmaniana Tartuensia. Ela consiste nas seguintes partes: Obras com
os artigos, ensaios e monografias de Iri Ltman; Biografia, formada tanto pelas obras
dedicadas a Iri Ltman, quanto por seus ensaios autobiogrficos; Fotos, Desenhos com
os materiais de autoria de Ltman, todos inditos e a lista das obras de Ltman
disponveis na internet.
II. Obras de Iri Ltman j traduzidas para a lngua portuguesa, no Brasil ou em
Portugal, entre elas:
1. LOTMAN, Iri. A estrutura do texto artstico [traduo de MARIA DO
CARMO VIEIRA RAPOSO E ALBERTO RAPOSO], Lisboa: Editorial
Estampa, 1978.
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Esse livro de Iri Ltman foi traduzido tambm no Brasil por Jasna Paravich
Sarhan, 1978, como parte de sua dissertao de mestrado, sob a orientao de
Boris Schnaiderman. O livro fundamental para a definio do conceito central
para a obra de Iri Ltman: o texto, sendo que o texto focado nesse livro
pertence esfera da literatura.
2. LOTMAN, Iri. "Sobre o problema da tipologia da cultura" [Traduo de
Aurora Fornoni Bernardini, Boris Shnaiderman e Lucy Seki]. //
SCHNAIDERMAN, Boris (org.). Semitica Russa. So Paulo: Ed. Perspectiva,
1979.
3. LTMAN, I. USPNSKI, B. Ensaios de semitica sovitica (trad. V. NAVAS E
S.T. DE MENEZES). Lisboa. Horizonte,1971.
4. LOTMAN, Iri. Esttica e semitica do cinema, Lisboa: Estampa, 1978.
5. LOTMAN, Iri. Ensaios de semitica sovitica. Coleo: Horizonte
universitrio. [Traduo de: Victoria NAVAS E SALVATO E TELES DE
MENEZES], Lisboa: Horizonte, 1981.
6. LOTMAN, Iri. "O smbolo no sistema da cultura". // Tipologia do simbolismo
nas culturas russa e ocidental. [Org. de Arlete Cavaliere, Elena Vssina e No
Silva]. So Paulo, Humanitas, 2005. P. 47-62.
III. Biografia de Iri Ltman. Aqui, sem dvida, se destacam os trabalhos de Bors
Egrov, amigo de Ltman e seu colega na Universidade de Trtu.
EGROV, B.F. "A personalidade e a obra de Iu.M. Ltman" ("
. . ") // LTMAN, Iu. M. Pchkin. So Petersburgo, 1995. P. 5-20.
___________ "Vida e obra de Iri Ltman" (" ").
Moscou, NLO, 1999.
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O livro Vida e obra de Iri Ltman recebeu crticas por idealizao excessiva da
imagem do pesquisador e por tratar sua obra como um testamento irrevogvel. Essas
crticas foram expressas no ensaio de Ie. Grnyi e I. Plschikov intitulado Ltman em
memrias de um contemporneo (" "). //
http://www.zhurnal.ru/staff/gorny/texts/egorov_lotman.html.
III. Trabalhos dedicados contribuio de Iri Ltman como crtico literrio, professor
e semioticista.
a) Obras publicadas em portugus, entre as quais se destaca o ensaio de Jerusa Pires
Ferreira sob o ttulo Cultura memria. // Revista USP, So Paulo, No 24,
dezembro/fevereiro 1994/95. P. 115-120.
b) Obras publicadas em russo:
As principais fontes para a anlise da metodologia de Ltman que ser
apresentada no presente trabalho so trs coletneas pstumas de Ltman, a primeira
das quais saiu em 1995: Coletnea Lotmaniana ( ). Moscou,
"ITS-Garant", 1995.
Outras fontes importantes so o ensaio do terico literrio e membro da Escola
de Trtu-Moscou Mikhail Gasprov Iu. M.Ltman: cincia e ideologia (". .
: "). // LTMAN, Iu. Sobre os poetas e a poesia (
). So Petersburgo, 1996. P. 9-17; e os trabalhos da aluna de Iri Ltman,
Liubov Kisselova, entre os quais esto: Iu. M. Ltman como interlocutor: a
comunicao como educao (".. :
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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) // LTMAN, Iu. A educao da alma ( ). So
Petersburgo, Isstustvo-SPB, 2003. P. 598-611.
KISSELIOVA, L. "A atividade acadmica de Iu. M. Ltman na Universidade de Trtu"
(" . . ") //
Slavica Tergestina IV: A herana de Iu. M. Ltman: o presente e o futuro (
. . : ). Trieste, 1996. P. 919.
_____________ "Iu.M. Ltman como chefe do departamento de literatura russa" (".
. "). // 220 anos de filologia
russa e eslava em Trtu (200 - ) // Slavica
Tartuensia V. Trtu, 2003. P. 336349.
Alm disso, utilizamos os ensaios de I. V Kondakov Iu. M. Ltman como um
culturlogo. No epicentro da grande estrutura" (". . (
))". // Iu. M. Ltman. Moscou, ROSSPEN, 2009. P.
221-239, bem como de I. A Tchernov Ensaio de introduo ao sistema de Iu. M.
Ltman" (" .." // LTMAN, Iu. M. Sobre a
literatura russa ( ). So Petersburgo, 1997. P. 5-15.
c) Obras publicadas em outros idiomas.
Para uma viso completa da obra de Ltman e da sua significao e repercusso
mundial consideramos relevante utilizar algumas fontes em outros idiomas, tais como
os seguintes trabalhos:
STEINER, Lina. Toward an Ideal Universal Community: Lotman's Revisiting of the
Enlightenment and Romanticism. // Comparative Literature Studies, Volume 40,
Number 1, 2003.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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KRISTEVA, J. EVANS, M. N. "On Yuri Lotman". // PMLA, Vol.109, No.3 (May,
1994). P. 375-376.
DELTCHEVA, R. VLASOV, E. "Lotmans Culture and Explosion: A shift in the
paradigm of the semiotics of culture". // Slavic and East European Journal. Vol. 40,
No1 (Spring 1996). P. 148-152.
U. "Introduction". // LOTMAN, Y. Universe of the Mind: A semiotic Theory of
Culture. London; New York, 1990.
HUTCHINGS, S. C. "Semiotics and the History of Culture (In Honor of Jurij Lotman)".
// Slavic review, Vol. 51 No. 2. (Summer, 1992). P.374-375.
AMCOLA J. De la forma a la informacn: Bajtn e Lotman en el debate com el
formalismo ruso. Rosrio, Beatriz Viterbo, 1997.
ANDREWS, E. Conversations with Lotman: Cultural Semiotics in Language,
Literature and Cognition. Toronto, University of Toronto Press, 2003.
3. Eventos e trabalhos dedicados s tendncias e escolas, que influenciaram a evoluo
dos estudos de Iri Ltman.
a) Em primeiro lugar, podemos destacar o evento que se deu recentemente, em
novembro de 2011, na Universidade de So Paulo e foi dedicado especialmente ao
fenmeno da Escola Semitica de Trtu-Moscou e os seus resultados para o futuro das
cincias humanas: Seminrio Acadmico Internacional - Semitica russa: a Escola de
Trtu-Moscou. O Seminrio contou com a participao dos convidados internacionais:
Prof. Dr. Serguei Neklidov (Universidades Estatal de Humanidades / Moscou) e Prof.
Dr. Roman Timntchik (Universidade Hebraica de Jerusalm). No decorrer do
seminrio, Serguei Neklidov apresentou uma palestra sobre O inicio da Escola de
Semitica Trtu-Moscou e os estudos estruturais da cultura popular e Poesia de rua,
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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poesia na rua; Roman Timntchik desenvolveu o tema de Signos e coisas nos conceitos
da Escola de Semitica Trtu-Moscou e Anna Akhmtova: poesia destino?; Jerusa
Pires Ferreira (PUC / SP) apresentou materiais sobre Iri Lotman e os estudos
semiticos no Brasil e Aurora Bernardini (USP) discursou a respeito da publicao da
obra de Ltman e dos semioticistas de Trtu no Brasil e na Amrica Latina. Alm das
informaes importantes apresentadas no seminrio e a evidncia de que os avanos da
Escola Semitica de Trtu-Moscou tiveram uma grande influncia nos estudos
contemporneos em todas as reas de cincias humanas, Serguei Neklidov cedeu-nos
vrios materiais (documentos e fotografias) que foram includos na presente Tese.
Citaremos ainda algumas obras publicadas em portugus sobre a Escola
Semitica Russa e os seus precursores:
Em primeiro lugar, destacaremos a coletnea organizada por Boris
Schnaiderman com o ttulo de Semitica russa (So Paulo, Perspectiva, 1979) que
reuniu os ensaios dos principais representantes da Escola Semitica de Trtu-Moscou.
A coletnea conta com a introduo da autoria de Boris Schaniderman "Semitica na
U.R.S.S. Uma busca dos "elos perdidos" que revela o contexto em que a obra dos
semioticistas russos foi recebida no Brasil nos anos 1970.
No livro de Irene Machado Escola de Semitica A Experincia de Trtu-
Moscou para o estudo da Cultura (Ateli Editorial, 2003) encontramos a anlise
detalhada dos conceitos tericos apresentados pela Escola de Trtu-Moscou.
Destacaremos algumas obras dedicadas ao formalismo russo que teve um papel
significativo no desenvolvimento das ideias de Ltman:
O livro de Krystyna Pomorska Formalismo e futurismo (So Paulo, Perspectiva,
1972) nos d uma ideia bastante completa de todos os perodos de existncia do
formalismo russo. J o ensaio de Aurora Bernardini Formalismo russo: uma
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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revisitao // Literatura e sociedade 5, Revista do DTLLC-FFLCH-USP, 2002, bem
como de Tzvetan Tdorov "A herana metodolgica do formalismo" // As estruturas
narrativas. Perspectiva, So Paulo, 2006. P. 27-52 mostram o rumo que as ideias
formalistas tomaram nas dcadas posteriores.
b) Obras publicadas em russo.
Dentre os livros dedicados ao formalismo russo e publicados na prpria Rssia
podemos mencionar a obra abrangente de P. N. Medvidev (do crculo de M. M.
Bakhtin) O mtodo formal nos estudos literrios // So Paulo, Contexto, 2012.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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CAPITULO I
Iri Ltman: entre biografia e obra.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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1. Iri Ltman e um modelo exemplar
Atualmente o nome de Iri Mikhilovitch Ltman (1922-1993) conhecido no
mundo todo e suas obras so traduzidas para muitas lnguas estrangeiras. A rea de sua
atuao foi to ampla que impossvel definir em uma palavra qual teria sido sua
ocupao principal: semioticista, estudioso da literatura e cultura, historiador? Na
verdade, o seu mtodo de estudo das questes literrias e culturais representa uma
miscigenao de todas essas disciplinas, ou ento sua interao, o dilogo entre elas. A
interdisciplinaridade o trao mais importante no s da obra de Iri Ltman, mas
tambm da poca na qual esteve inserida a sua criao.
No por acaso que diferentes autores aproximavam Ltman de Leonardo da
Vinci1, Mikhail Lomonssov2 e Einstein3. A comparao com Albert Einstein se baseia
inicialmente na semelhana visual, embora ela possa ser estendida para a esfera da
atividade mental: assim como Einstein foi um "gnio da fsica, Ltman o era das
Cincias Humanas, ou, para ser mais preciso, da Semitica".4 Assim, nos ensaios
crticos dedicados a obra de Ltman ele chamado constantemente de "cientista".
Ltman sempre tratou os estudos literrios e a semitica como uma cincia. J as
comparaes com Leonardo da Vinci e Mikhail Lomonssov (1711-1765) de fato
parecem ser extremamente interessantes e frutferas por nos remeterem Renascena
europeia e russa.
1 TCHERNOV, Igor. "Ensaio introdutrio ao sistema de Iu. M. Ltman" (" .."). // Ltman, Iu.M. Sobre a literatura russa ( ). So Petersburgo, 1997. P. 5. 2 MACHADO, Irene. Escola de Semitica A Experincia de Trtu-Moscou para o estudo da Cultura. Ateli Editorial, 2003, p. 23. 3 PIRES FERREIRA, J. "Cultura memria". // Revista USP, So Paulo (24), dezembro/fevereiro 1994/95. P. 115. 4 Idem.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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O papel de Lomonssov para a fundao e o desenvolvimento das cincias na
Rssia foi essencial. Ele instituiu, na Rssia, a maioria das cincias presentes
atualmente, entre elas: qumica, fsica, astronomia, geologia, geografia e, claro, os
princpios da linguagem literria russa. Essa versatilidade surpreendente de
Lomonssov como cientista faz jus sua comparao com Ltman. Se no sculo XVIII
existisse a expresso "interdisciplinaridade", certamente tal expresso seria aplicada a
Lomonssov.
Sem a contribuio de Lomonssov no seriam possveis os avanos nas
cincias humanas e exatas na Rssia ao longo do sculo XVIII; j sem as reformas de
Pedro, o Grande, provavelmente, Lomonssov no teria possibilidade de revelar o seu
gnio, de fazer a sua peregrinao de pescador a acadmico e cientista. Foi o enxerto da
educao europeia, feito por Pedro, que tornou possvel o surgimento do Iluminismo
Russo e de Mikhail Lomonssov como um dos seus maiores representantes.
O aparecimento do "elemento europeu" na cultura russa a fez olhar para si
mesma e questionar suas razes e seu futuro. Desde ento, a sociedade russa nunca mais
foi to unida e unnime como antes. A camada superior que viajava para o exterior e j
no sculo seguinte, o XIX, falava o francs melhor que o russo, se afastou
definitivamente das classes inferiores. O Iluminismo, como um dos resultados das
reformas de Pedro e da consequente introduo do elemento "alheio" na cultura russa,
trouxe consigo duas ideias conflitantes: a viso da histria como progresso (do estado
precrio ao desenvolvimento superior) e como regresso (do estado "natural"
civilizao destruidora). As duas tendncias se refletiram na etapa posterior do
Iluminismo, o Romantismo, em forma de conflito entre o homem e a natureza, a
sociedade "civilizada" e tribos "selvagens" como, por exemplo, os dos ciganos. Essa
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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questo foi analisada por Iri Ltman em seu ensaio "Sobre a literatura russa do perodo
clssico". 5
A dicotomia se encarnou, em meados do sculo XIX, em discusso entre os
ocidentalistas, que consideravam que a Rssia devesse cada vez mais se igualar aos
moldes europeus, e os eslavfilos, que defendiam a ideia da volta s origens do povo
russo e do caminho independente da Rssia, diferente dos pases europeus. Obviamente,
essa definio bastante simplificada, porm a anlise mais detalhada desse fenmeno
histrico-cultural um tema muito amplo e complexo que requer um estudo especfico.
Observaremos apenas que o embate entre os ocidentalistas e eslavfilos foi um dos
fatores que predestinou o desenvolvimento posterior no somente da literatura, como
tambm da crtica literria russa. Dessa forma, possvel afirmar que o Iluminismo
russo gerou toda a trajetria percorrida pela cultura russa nos sculos XIX e XX, e, foi a
partir desse perodo que Iri Ltman iniciou os seus estudos de literatura russa. Ltman,
como herdeiro de toda a tradio cultural e literria russa, tambm pode ser chamado de
Homem Iluminista.
O Iluminismo no apenas predestinou o desenvolvimento da literatura e crtica
literria russa, como tambm contribuiu significativamente para a formao de outro
fenmeno cultural de grande importncia: a intelliguntsia6. O contemporneo e
conterrneo de Ltman, estudioso da cultura russa e acadmico de Leningrado Dmitri
Likhatchiov (1906-1999), afirmava que "o fenmeno da intelliguntsia na Rssia ,
antes de tudo, a independncia do pensamento em combinao com educao
5 LTMAN, Iu. "Sobre a literatura russa do perodo clssico" (" "). // LTMAN, Iu. Sobre a literatura russa. ( ). So Petersburgo, Isskustvo-SPB, 1997, p. 594-604. 6 Intelliguntsia: termo criado pelo jornalista P. D. Boborkin em 1860 como definio dos intelectuais russos, porm, posteriormente esse conceito passou a ser usado no sentido mais restrito: aqueles intelectuais que servem como modelo de conduta moral para toda a sociedade.
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europeia".7 Um dos traos mais marcantes da intelliguntsia pode ser definido como a
busca da correlao entre a literatura e a vida, a anlise da interao dessas duas
dimenses e da maneira como uma exerce influncia sobre a outra. Foi sob esse prisma
que Ltman estudou a obra do historiador, escritor e poeta iluminista russo Nikolai
Karamzn (1766 - 1826) ao qual dedicou vrios ensaios que, j aps sua morte, foram
reunidos em um volume.8 Ao analisar a obra e a vida de Karamzn, Ltman destaca o
seu desejo de construir a vida, a imagem e a conduta conforme certo modelo ideal.
Curiosamente, a vida e os estudos do prprio Ltman tambm podem ser analisados a
partir desse desejo:
Trata-se de uma construo intencional e consequente da sua prpria
imagem, de uma orientao criao da vida, bem como da
modelao da sua conduta de acordo com certos modelos pr-
escolhidos. No por acaso que justamente nesses termos Ltman
descreveu o caminho artstico de muitas figuras importantes na cultura
russa, particularmente, de Karamzn e Pchkin.9
De fato, a ideia de viver a vida como se fosse uma obra literria no uma
novidade para a cultura russa. Alm de Karamzn e Pchkin, citados acima, podemos
lembrar tambm do poeta e escritor russo Mikhail Lrmontov (1814-1841), cuja vida,
repleta de conflitos e duelos, lembra o seu prprio romance O heri do nosso tempo
(1840). No incio do sculo XX, o conceito de criao da vida (jiznetvrtchetvo)
tronou-se fundamental para os simbolistas russos, na filosofia dos quais a realidade
7 LIKHATCHIV, D. "Sobre a intelliguntsia russa" (" "). // http://www.gumer.info/bibliotek_Buks/Culture/Article/_Lihachev_RussIntel.php 8 LTMAN, Iu.M. Karamzn. So Petersburbo, Isksstvo, 1997. 9 GRNYI, Ie., PLSCHIKOV, I. "Ltman em memrias de um contemporneo" (" "). // http://www.zhurnal.ru/staff/gorny/texts/egorov_lotman.html
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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adquire caractersticas de um texto artstico. 10 Por outro lado, a orientao para um
modelo ideal de conduta um trao essencial da intelliguntsia russa11, e nesse sentido
Iri Ltman um representante digno:
Ltman no era apenas conhecedor e propagador da cultura da
nobreza russa como tambm, claro, um portador dessa cultura,
talvez ele tenha sido um dos ltimos em termos de esprito e conduta
aristocratas do nosso pas.12
Em 1988, cedendo aos pedidos de sua esposa, Zara Mints (1927-1990), Ltman
concordou em ditar suas memrias, porm, por falta de tempo, s comeou a dit-las
efetivamente em 1992, ou seja, um ano antes de sua morte. Elas foram publicadas sob o
ttulo No-memrias (-) na primeira Coletnea de Ltman lanada em
1995. 13 Baseamos o presente captulo nessas memrias e na biografia, escrita pelo
amigo e colega de Ltman, Boris Egrov, e publicada em 1999 sob o ttulo Vida e obra
de Iu. M. Ltman. 14 O livro de Egrov tornou-se um best-seller o que comprova o
crescente interesse pela figura do pesquisador. Porm, essa biografia tambm recebeu
crticas como, por exemplo, a resenha Ltman em memrias de um contemporneo. 15
Os autores acusam o bigrafo de idealizar demasiadamente a imagem e a obra de
10 MINTS, Z.G. "O conceito de texto e a esttica simbolista" (" "). // http://www.ruthenia.ru/mints/papers/poniatie.html 11 KOLISNIKOVA, A. V. A criao da vida como o meio de existncia da intelliguintsia. ( ). Tese de doutorado. Novossibirsk, NGASU, 2003. 12 USPINSKI, V. "Os passeios com Ltman e a modelao secundria". (" "). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem/vl_usp95.html 13 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // Coletnea de Ltman, I . ( . I). Moscou, 1995. P. 553. 14 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman" (" )", Moscou, NLO, 1999. 15 GRNYI, Ie., PLSCHIKOV, I. "Ltman em memrias de um contemporneo" (" "). // http://www.zhurnal.ru/staff/gorny/texts/egorov_lotman.html
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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Ltman e observam que a biografia, escrita por Egrov, lembra a descrio de vida de
um Santo:
A infncia de Ltman e at mesmo toda a sua vida, so modelados por
Egrov de acordo com um cnone hagiogrfico. Desde os primeiros
anos, Ltman vive apenas com seus interesses espirituais: leitura
incessante, xadrez, exerccios musicais, idas a teatros e ao Hermitage
onde uma vez [Ltman] foi detido: um funcionrio achou estranho
que um menino estivesse parado h meia-hora diante da Madalena
penitente de Ticiano. Todas essas diversas paixes foram, no final,
sacrificadas em detrimento de uma: a cincia. O culto da Cincia o
anlogo direto ao culto a Deus nas obras hagiogrficas. Indiretamente
isso explica tambm o atesmo consequente de Ltman: em sua vida, a
Cincia tomou o lugar de Deus. 16
Os autores acusam os crticos em geral de criarem o culto de Ltman, de o
idealizarem e no perceberem as falhas e imprecises de suas concluses. No entanto, a
idealizao e a beatificao dos poetas e escritores um trao nacional russo que foi
destacado pelo estudioso da literatura e cultura russa Aleksandr Pntchenko (1937 -
2002):
O poeta (independente do fato se ele escreve em versos ou em prosa)
um eterno problema russo. Em lugar algum torturam tanto os poetas
enquanto esto vivos e veneram tanto aps sua morte, como na
Rssia.17
Nesse artigo Pntchenko, em primeiro lugar, se refere ao destino de Aleksandr
Pchkin cuja morte no duelo tornou-se pretexto para sua santificao. Durante o
16 Idem. 17 PNTCHENKO, A. "O poeta russo ou a santidade secular como um problema religioso e cultural" (" , - "). // Zvezd, 2002, No 9.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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Seminrio Acadmico Internacional dedicado literatura e crtica russa, realizado na
Universidade de So Paulo em 2011, o crtico literrio Mikhail Sverdlov afirmou que o
mesmo fenmeno pode ser observado em relao a Bakhtin e sua obra. Dessa forma,
parece que lidamos com uma tendncia de fato presente na cultura russa. Vejamos a
partir dos fatos biogrficos e bibliogrficos quais so as razes da "venerao" por
Ltman.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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2. A formao
Iri Ltman nasceu em 1922 em uma famlia de intelectuais petersburguses de
origem judaica. Na escola ele no se interessava tanto pela lngua e literatura, como pela
entomologia, sobre a qual escreveu em No-memrias:
O misterioso e assustador mundo dos insetos que me atrai at agora
causa em mim uma estranha sensao: acho que justamente os insetos,
com sua evoluo extremamente lenta e surpreendente fora de
sobrevivncia sero os ltimos a povoar o nosso planeta. Eles, sem
dvida, so dotados de um mundo inteligente, porm, ele para sempre
permanecer fechado para ns.18
Em sua ltima entrevista, cuja traduo parte integrante do nosso trabalho,
Ltman tambm comenta sobre essa paixo no realizada:
Em minha vida houve um perodo em que eu pretendia ser no um
fillogo, mas um entomlogo. Eu sei pouco sobre esta rea, no a
entendo muito bem, mas acredito tratar-se de uma esfera que deve ser
traduzida por meio de frmulas mais adequadas nossa compreenso,
e, se isso for possvel, pelo visto, no acontecer em um futuro
acessvel.19
Na mesma entrevista, ele ainda fez uma comparao com a orientao para
coletividade prpria dos seres humanos e dos insetos, ou seja, os conhecimentos
entomolgicos tambm lhe serviam como base e material para a anlise da cultura
humana.
18 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 19 LTMAN, Iu. "No limiar do imprevisvel" (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/ECCE/INTERLOT.HTM
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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O curioso que esse interesse pela entomologia um trao relativamente
comum entre os escritores russos: podemos lembrar-nos de Lev Tolsti que criava
abelhas em Isnaia Poliana e usava as suas observaes entomolgicas para a descrio
dos processos sociais, como no caso de Guerra e paz, ao comparar a Moscou
abandonada por seus habitantes com uma colmeia sem a rainha. Vladmir Nabkov
levou o interesse pelos insetos to a srio que, embora sendo autodidata, descobriu vinte
novas espcies de borboletas e escreveu dezoito artigos cientficos sobre o assunto,
sendo que elas tornaram-se tambm o objeto de sua descrio, por exemplo, no romance
A ddiva (). Em 1993 a comparao entre a vida dos seres humanos e a dos insetos
foi retomada no romance A vida dos insetos de Vktor Pelvin20 que representa uma
alegoria da sociedade russa dos anos 1990.
Ltman concluiu a escola com o diploma vermelho, ou seja, com notas
excelentes. Provavelmente, o fato de sua irm mais velha, Ldia Ltman (1917-2011),
estudar na Faculdade de Filologia da Universidade de Leningrado tenha contribudo
para a sua escolha: em passar do interesse pela entomologia para o da filologia. Ltman
se tornou estudante da mesma faculdade em 1939. Naquela poca, a Universidade
concentrava os maiores nomes das cincias humanas na Rssia: o curso de introduo
aos estudos literrios era ministrado pelo historiador da literatura, crtico e escritor
Grigori Gukvski (1902-1950) que se dedicava principalmente aos estudos da literatura
russa dos sculos XVIII XIX, nos quais destacava o paralelismo entre o esquema
tradicional literrio classicismo romantismo realismo e a trade estado
personalidade povo. Os estudos do folclore na Universidade eram lecionados por
Mark Azadvski (1888-1954), autor de uma obra volumosa Histria da folclorstica
20 PELVIN, V. A vida dos insetos ( ). Moscou, EKSMO, 2007.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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russa ( ), publicada entre 1958 1963 e Vladmir
Propp (1895-1970). Em No-memrias Ltman destaca o seu interesse pelo folclore:
No primeiro ano eu me interessei pelo folclore: frequentava as aulas
complementares de Mark Konstantnovitch Azadvski e tive um
comparecimento muito oportuno no seminrio de Vladmir
Ikovlevitch Propp. (Propp apresentava apenas os seminrios, j
Azadvski lecionava: ambas as aulas eram extremamente
interessantes).21
Alis, o primeiro trabalho anual, escrito por Ltman na Universidade, foi
elaborado justamente sob a orientao de Propp. Foi ento que teve incio o carter
interdisciplinar e verstil dos estudos lotmanianos. A Universidade de Leningrado teve
um papel importantssimo em sua formao como estudioso da cultura e da literatura.
Um dos mais profundos crticos da obra de Ltman, Igor Tchernov, descreve esse
ambiente universitrio da seguinte forma:
Os seus professores eram aqueles que representam o orgulho e a glria
da cincia nacional: N. I. Mordvtchenko22, G. A. Gukvski, M. K.
Azadvski, V. Ia. Propp, B. V. Tomachvski23 e B. M. Eichenbaum24.
Justamente durante seus seminrios e aulas formou-se a sua
personalidade como pesquisador e como pessoa. Se acrescentar essa
lista os nomes de V. M. Jirmnski25, Iu. N. Tyninov26, L. V.
Pumpinski27 e O. M. Freidenberg28 aos quais Iu. M. Ltman
21 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 22 Mordvtchenko, Nikolai (1904-1951). Estudioso e professor da literatura russa na Universidade de Leningrado. 23 Tomachvski, Boris (1890-1957). Historiador da literatura russa e escritor, professor da literatura russa na Universidade de Leningrado. Um dos representantes do formalismo. 24 Eichenbaum, Boris (1886-1959). Crtico literrio e professor da literatura russa na Universidade de Leningrado, um dos tericos do mtodo formal. 25 Jirmnski, Vktor (1891-1971). Estudioso da literatura, um dos tericos do mtodo formal. 26 Tyninov, Iri (1894-1971). Escritor e dramaturgo, um dos tericos da escola formal. 27 Pumpinski, Lev (1891-1940). Historiador da literatura e msica russa.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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considerava como seus professores a distncia, ficar claro que a
escola era admirvel. Nem antes nem depois nenhuma universidade da
Europa pode se orgulhar de uma pliade semelhante de especialistas
de primeira classe que simultaneamente lecionavam na mesma
universidade. O prprio ambiente vivificante de Leningrado
representava aquele caldo cultural que gerou vrios grandes estudiosos
modernos.29
Em outubro de 1940, aps concluir o primeiro ano na universidade, Ltman foi
recrutado para servir no exrcito sovitico. Por ter iniciado o servio militar um ano
antes da Rssia entrar na Segunda Guerra Mundial, ele teve mais tempo de preparao
para os combates do que os jovens que foram para o front logo aps a concluso da
escola. Ltman participou da guerra durante todos os quatro anos e, junto com o
Exrcito Sovitico, se deslocou at Berlim. Mesmo durante a guerra Ltman no deixou
de estudar: ele aprendia o francs. Alm disso, a experincia militar tornou-se
enriquecedora em certo sentido, para ele: as particularidades da linguagem militar 30 e
os exemplos dessa rea serviam para explicar os processos culturais e semiticos:
[...] suponhamos que voc tenha um canho que atira em um alvo que
voc no v. O alvo est atrs da montanha. Tem uma montanha na
sua frente, e no d para enxergar coisa alguma. O que fazer? Ento,
voc faz coisas simples. Coloca um posto de observao bem
esquerda e outro bem direita e os liga atravs de um rdio. Um olha
sob um ngulo, outro sob outro, e voc v o que est atrs da
montanha. Ou seja, mudando seu ponto de vista, voc o amplia. A
diferena de posies fornece um certo avano rumo verdade.31
28 Freidenberg, Olga (1890-1955). Estudiosa da literatura, cultura e folclore. 29 THCERNOV, Igor. "Ensaio introdutrio ao sistema de Iu. M. Ltman" (" .."). // Ltman, Iu.M. Sobre a literatura russa ( ). So Petersburgo, 1997. P. 6. 30 Idem. 31 "No limiar do imprevisvel" (" "). A ltima entrevista de Iri Ltman. // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/ECCE/INTERLOT.HTM
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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Quando, em 1945, a guerra acabou, Ltman continuou seus estudos na
Universidade de Leningrado. Ele lembra, como com uma voracidade de um alcolatra
me dediquei aos estudos 32, demonstrando um interesse especial pelos cursos e
palestras do professor Nikolai Mordvtchenko, ao qual posteriormente dedicou um
artigo.33 Nele, Ltman destaca as ligaes de hereditariedade entre as pesquisas de
Mordvtchenko e os fundadores do formalismo russo Boris Eichenbaum e Iri
Tyninov. A descrio do mtodo de pesquisa cientfica, adotado por Mordvtchenko,
pode ser aplicada aos trabalhos do prprio Ltman:
A dupla perspectiva, a anlise da obra literria, de um lado como um
monumento histrico, e de outro, como uma obra de arte, um texto de
natureza especial, permitia ver os fatos literrios naquela dupla
combinao de historicismo e organizao interna que, na etapa
cientfica moderna, representa uma das condies obrigatrias de
anlise.34
A partir das aulas e conversas com Mordvtchenko, Ltman interessou-se pela
literatura e cultura russa do final do sculo XVIII e do sculo XIX. No jornal
Mensageiro da Universidade de Leningrado35 Ltman publicou o seu primeiro artigo
dedicado aos manuscritos de um dos dezembristas36 encontrados por ele. Como
continuao dos estudos relacionados a essa poca, ainda na Universidade, Ltman
32 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 33 LTMAN, Iu. "Nikolai Ivnovitch Mordvtchenko. Notas sobre a individualidade artstica do cientista." (" . "). // A educao da alma ( ). So Petersburgo, 2003. P. 6873. 34 Idem. P. 68. 35 Mensageiro da Universidade de Leningrado ( ), 1949, No 7. 36 Dezembristas : participantes do movimento oposicionista da nobreza russa que organizava sociedades secretas e, em dezembro de 1825, fez uma tentativa de revolta que veio a fracassar.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
38
publicou um artigo37 Da histria da luta scio-literria nos anos 80 do sculo XVIII. A.
N. Radschev38 e A. M. Kutzov39 na coletnea da Universidade de Leningrado
chamada Radschev. De acordo com o seu bigrafo B. Egrov, j nesses primeiros
trabalhos podem ser notados traos caractersticos de toda a obra de Ltman:
J nos trabalhos de Iri Mkilovitch como estudante, em seu
contedo e mtodo, refletiu-se a peculiaridade do seu pensamento
artstico. Antes de tudo, para ele, aluno de N. I. Mordvtchenko, so
caractersticos a sistematicidade, a variedade de assuntos abordados e
a contextualidade: o fenmeno literrio analisado com uma ampla
base social e histrica.40
Nos ltimos anos na Universidade, Ltman conheceu a sua futura esposa, Zara
Mints, tambm estudante da Faculdade de Filologia O primeiro encontro foi bastante
cmico e no predizia em nada a futura unio feliz de dois grandes pesquisadores:
Certa vez, depois da aula, vieram Zara Grigrievna com Vika
Kaminskaia e Zara Grigrievna me props decorar o salo para uma
conferncia cientfica prxima dedicada a Maiakvski, desenhando,
em particularidade, o seu retrato. Eu economizava todo o tempo para
os estudos cientficos, aos quais me dedicava com uma paixo de um
alcolatra procura de uma garrafa. Participar desse tipo de eventos
estava longe de fazer parte dos meus planos. Gaguejando muito [...] eu
expliquei a Zara Grigrievna que desenhava s por dinheiro. O seu
entusiasmo de komsomol 41 foi abalado por tamanho cinismo e ela, ao
37 LTMAN, Iu. Da histria da luta scio-literria nos anos 80 do sculo XVIII. A. N. Radschev e A. M. Kutzov" (" - 80- . XVIII . . . . . "). // Radschev (), Universidade de Leningrado, 1950. 38 Aleksandr Radschev (1749-1802): escritor, filsofo e poeta, um dos principais representantes de Iluminismo russo. 39 Aleksandr Kutzov (1748-1790): mstico e maom russo, amigo de N. Karamzn. 40 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman" (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/LOTMAN/_EGOROV_1.HTM 41 Komsomol: organizao juvenil do Partido Comunista da Unio Sovitica.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
39
se afastar de mim com lgrimas nos olhos, pronunciou em voz alta:
Canalha bigodudo! Assim foi a nossa primeira declarao.42
Porm, apesar do primeiro encontro perturbado, o casamento dos dois
estudiosos foi feliz. Eles tiverem trs filhos e trabalharam a vida inteira lado ao lado na
Universidade de Trtu. Esse trabalho ser o assunto do prximo subcaptulo.
42 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
40
3. Trtu
No mesmo ano, em 1950, Ltman finalizou, com excelncia, seus estudos na
Universidade de Leningrado. Esse tipo de diploma juntamente com as condecoraes
recebidas durante a Guerra deveriam lhe abrir vrios caminhos de trabalho, na qualidade
de professor, nas melhores universidades soviticas.
Porm, os ltimos anos do governo de Stlin foram marcados pela assim
chamada luta contra os cosmopolitas. Era uma campanha ideolgica realizada entre
1948 1953 e voltada contra aquela parte da inteliguntsia que era vista como
simpatizante ao modelo capitalista ocidental. Em 1948, quando Israel estabeleceu as
relaes diplomticas com Estados Unidos, os judeus soviticos passaram a ser
acusados de falta de lealdade com a Unio Sovitica e at de contribuirem para a
espionagem norte-americana.
As perseguies eram direcionadas principalmente contra os intelectuais judeus.
No incio de 1948, o jornal Literatrnaia gazita chamou de "cosmopolitas" os
defensores do mtodo comparativo nos estudos literrios:
O cosmopolita, rindo maldosamente, tenta a "descobrir", a todo custo,
um ou outro "paralelo", um ou outro sinal de semelhana entre a
cultura russa e a do Ocidente. No esforo infame de provar que a
cultura do povo russo foi "emprestada" do Ocidente revela-se toda a
misria desses falsos estudiosos da cultura, sem ptria, cuja essncia
interior uma mistura de lacaio Smerdiakov de Os irmos Karamzov
com o lacaio Icha de O jardim das cerejeiras, apaixonados por "tudo
o estrangeiro".43
43 "Leituras histricas. Sobre os cosmopolitas sem ptria" (" . "). // O tema do dia ( ) de 5 de fevereiro de 2004, http://www.temadnya.ru/spravka/05feb2004/3630.html
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
41
Como resultado da campanha, em fevereiro de 1949, os mais importantes e
mundialmente conhecidos crticos literrios soviticos, todos judeus, foram acusados de
imporem as tendncias antirrussas. Entre eles estavam: Boris Eichenbaum, Vktor
Jirmnski, Mark Azadvski e Grigri Gukvski, ou seja, professores e precursores de
Iri Ltman. Todos eles perderam emprego; j Gukvski foi preso e morreu sem sair em
liberdade.
A famlia de Ltman tambm era de origem judaica e, considerando a gravidade
da situao, ele se viu obrigado a procurar uma instituio longe do centro poltico e das
principais cidades da Unio Sovitica. Eis como o prprio Ltman se lembra desse
momento:
Para mim restavam duas possibilidades: continuar a procura de
trabalho em Leningrado e bater em portas fechadas, ou deixar isso e,
ao lanar todas as cartas na mesa, comear um jogo totalmente novo.
Escolhi o segundo. 44
Essa segunda opo foi a pequena e agradvel cidade de Trtu,45 localizada na
Estnia. A escolha dessa cidade, que naquela poca tinha cerca de 70.000 habitantes,
poderia parecer um tanto estranha e at infeliz, se no considerarmos trs fatores
relevantes.
O primeiro deles, como fora mencionado previamente, era a impossibilidade de
Ltman poder lecionar nas maiores universidades soviticos em virtude de sua origem.
Em segundo lugar, na Unio Sovitica, as repblicas blticas no representavam
apenas partes perifricas de um enorme imprio, mas, de certa forma, simbolizavam a
cultura Ocidental, o prprio Ocidente, a Europa. Isso se deve ao fato que Estnia,
44 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 45 Anteriormente Trtu foi chamada em almo de Dorpat ou Drpt e em russo Irev ou Derpt. A cidade foi fundada por prncipe russo Iaroslav Mdryi (cerca de 978 - 1054) em 1030.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
42
Letnia e Litunia terem sido as ltimas a se juntarem Unio Sovitica. Por isso elas
conservaram certo "esprito" europeu e passaram a representar o exterior dentro do
pas. Alm disso, a maioria dos soviticos no podia visitar livremente os pases da
Europa capitalista, e a viagem para os pases blticos praticamente se transformava em
uma chance nica de conhecer a Europa. Isso sem contar que, longe do centro poltico,
o controle era menos rgido e, portanto, havia certa liberdade de expresso e criao.
Trtu nos anos 1960. (Foto do arquivo pessoal de Professor Sergui Neklidov).
Em terceiro lugar, a Universidade de Trtu, onde Ltman logo passou a lecionar,
possua uma longa histria: ela foi fundada antes das principais Universidades da
Rssia, em 1632 (um sculo antes da fundao da primeira Universidade russa, em
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
43
Moscou, no ano de 1755). Alm disso, o bigrafo B. Egrov, apesar de chamar a
escolha de Ltman de mero acaso, logo em seguida lembra-se das antigas relaes
histricas e culturais que ligavam a Rssia e a Estnia.
Dessa forma, Iri Mikhilovitch foi para Estnia por mero acaso,
porm, necessrio considerar que o atraiu no apenas a fama da
cidade universitria e a ausncia, quase total, de antissemitismo
oficial, como tambm as antigas relaes histrico-culturais de
Petersburgo com a Estnia: pois muitos escritores e polticos russos do
incio do sculo XIX, inclusive os dezembristas, foram ligados,
biograficamente e por meio da sua obra, com a Estnia.46
J o prprio Ltman descreveu sua partida para a Estnia da seguinte forma:
Vestido com o terno preto do meu pai, um pouco reformado, o nico
festivo, eu fui para Trtu, onde permaneci pelo resto de minha
vida.47
Foi assim que ele passou a lecionar no Instituto de Ensino (
) de Trtu, segunda cidade estoniana mais importante depois de Tallinn.
Paralelamente s aulas no Instituto de Ensino, Ltman lecionava na Universidade de
Trtu, qual foi convidado como professor permanente em 1954.
Ainda em 1952, apenas dois anos aps ter concludo seu curso na Universidade,
Ltman voltou para Leningrado para defender a tese de doutorado.
A tese, de fato, foi escrita ainda nos anos estudantis e, logo aps o
trmino da Universidade, a apresentei para a defesa (parece que isso
foi visto como um atrevimento, mas juro que foi pura inocncia).48
46 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman". (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/LOTMAN/_EGOROV_1.HTM 47 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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O seu tema eram as relaes artsticas entre Aleksandr Radschev, cuja vida e
obra ele j havia analisado anteriormente, e Nikolai Karamzn que se tornou centro dos
seus estudos posteriores. Em 1958, Ltman escreveu o artigo Radschev e Mably49. A
partir de ento comeou o seu interesse pelas ligaes culturais entre a Rssia e os
pases da Europa Ocidental. Mencionaremos apenas alguns dos seus trabalhos
dedicados a esse tema: Novos materiais referentes ao incio do contato da literatura
russa com Schiller (
), que tambm foi publicado em 1958, Rousseau e a cultura russa do
sculo XVIII ( XVIII ) de 1967, Sobre o problema
de Dante e Pchkin ( ") de 1980, entre outros.
Alm das relaes interculturais, Ltman interessou-se seriamente pela figura de
Nikolai Karamzn, que, juntamente com Aleksandr Radschev, considerado um dos
representantes mais notveis de Iluminismo russo. Em 1957 Ltman publicou o
primeiro trabalho dedicado exclusivamente obra do historiador e filsofo russo: A
evoluo da concepo de mundo de Karamzn (
(17891803)). Todos os trabalhos dedicados a Karamzn foram reunidos,
j aps a morte de Ltman, em uma coletnea intitulada Karamzn. 50
Hoje difcil compreender a coragem do pesquisador que se interessou por essa
figura que caiu em desgraa na poca sovitica por ser considerado um escritor
monarquista e reacionrio. Ainda no sculo anterior Aleksandr Pchkin via a obra
principal de Karamzin, a Histria do Estado Russo (
) de uma maneira bem parecida com a crtica sovitica:
48 Idem. 49 Gabriel Bonnot de Mably (1709-1785): abade e filsofo-iluminista francs. 50 LTMAN, Iu. Karamzn. So Petersburgo, Isksstvo, 1997.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
45
Em sua Histria, a elegncia e a simplicidade
Mostram-nos, sem parcialidade,
A necessidade de monarquismo
E as maravilhas do chicote.51
,
, ,
. 52
(1918)
B. Egrov tambm destaca o significado central das obras dedicadas ao
Karamzin entre a herana de Ltman como estudioso da cultura russa dos sculos
XVIII-XIX:
O conjunto de trabalhos de Ltman sobre Karamzn um dos mais
significativos entre o seu legado. A reviso das opinies unilaterais
anteriores sobre Karamzn, a revelao dos elementos republicanos
e utpicos na viso do mundo do jovem viajante russo, a descoberta
virtuosa das datas reais, e no ficcionais e camufladas, da estadia de
Karamzn em Paris durante a Revoluo Francesa, a anlise da
complexa combinao de monarquismo e liberalismo peculiar nas
ltimas obras de Karamzn, o carter cientfico-artstico da Histria do
estado russo: essa a lista somente das principais descobertas do
pesquisador.53
De volta a Trtu, Ltman retomou todas as atividades acadmicas com muita
intensidade. Passados muitos anos, ele se lembrava daqueles primeiros anos na Estnia,
em que ele se sentiu literalmente estranho e estrangeiro (pois l, alm do idioma oficial
da Unio Sovitica, o russo, falava-se ainda o estoniano) como de uma poca muito
51 Traduo nossa. 52 Os estudiosos da literatura russa ainda no chegaram ao acordo em relao questo se Pchkin realmente era o autor dessa epigrama. 53 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman". (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/LOTMAN/_EGOROV_1.HTM
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
46
feliz que o ajudou na elaborao de novos conceitos sobre a literatura e cultura em
geral:
A falta de conhecimento do idioma e do ambiente, bem como a
imprudente ingenuidade que me acompanhou durante toda a vida, no
me permitiram enxergar o carter trgico daquelas condies as quais
nos deparamos. Eu, sinceramente, via a situao como um idlio: o
trabalho com os estudantes me trazia um enorme prazer, a boa
biblioteca permitia, de forma enrgica, avanar nos captulos da tese,
que em geral j fora escrita, a amizade com o crculo dos jovens
estudiosos de literatura, que nessa poca residiam em Trtu: tudo isso
criava em mim uma sensao de ininterrupta felicidade. Quatro ou
seis horas de aulas por dia no me cansavam, e eu, literalmente, sentia
as asas crescerem quando de repente descobria que, ao lecionar, era
capaz de chegar s ideias absolutamente novas e que, no final das
aulas, estavam se formando conceitos novos, at ento desconhecidos
por mim.54
Em outro trecho de suas No-memrias, depois de descrever como ele, Zara
Mints e o filho pequeno viviam em um quarto com baratas, Ltman concluiu:
Porm, a nossa vida era muito feliz: trabalhvamos muito,
escrevamos muito e sempre nos encontrvamos em um crculo
pequeno, mas muito estreito e amigvel. Eu mudei para a
Universidade de vez, enquanto Zara Grigrievna trabalhava no
Instituto dos professores.55
Toda a sua vida foi ligada Universidade: de 1960 a 1977 Ltman foi o chefe
do Departamento de Literatura Russa at a sua transferncia para o Departamento de
54 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 55 Idem.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
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Literatura Estrangeira, fato ocorrido em 1977. Essa transferncia refletiu a preocupao
do governo com as pesquisas de Ltman voltadas semitica, oriunda do Ocidente, que
podiam ser perigosas para o estado. O prprio Ltman ironizava que apenas "o exlio de
Soljentsyn56 no Ocidente capaz de explicar porque um professor de literatura russa
trabalha no Departamento de Literatura Estrangeira". 57 Porm, mesmo sendo professor
de outro departamento, Ltman continuou a lecionar no Departamento de Literatura e
Lngua Russa.
Apesar da inconveniente transferncia, Ltman tinha liberdade relativa para
trabalhar e pesquisar na Universidade de Trtu. Esse fato em muito se deve ao esforo
do reitor da Universidade Fidor Klement (1903-1973), entre os anos 1950-60:
Ele [...] de forma nica, combinava em si o partidrio funcionrio
sovitico (era membro do Comit Central do Partido Comunista da
Estnia e deputado do Conselho Superior da Unio Sovitica) e
sincero marxista, com um homem da cincia, complacente aos jovens
pesquisadores. 58
Graas a ele o Departamento de Literatura Russa da Universidade passa a
publicar anualmente (desde 1958) a coletnea Trabalhos sobre a filologia russa e
eslava ( ) que fazia parte da srie Notas
cientficas ( ). Ltman destaca a importncia dessa edio para o
desenvolvimento contnuo dos estudos eslavos na Unio Sovitica:
56 Soljentsyn, Aleksandr (1918-2008). Romancista, dramaturgo e historiador russoque escrevia sobre os campos de trabalhos forados na Unio Sovitica e por essa razo fora expulso do pas, em 1974. 57 KISSELIVA, L. N. Iu.M. "Ltman como chefe do departamento de literatura russa" (". . "). // http://www.ruthenia.ru/lotman/txt/kiseleva03a.html. 58 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
48
Quando chegamos Trtu, As Notas cientficas praticamente no
eram publicadas. [...] O primeiro congresso dos eslavistas na Unio
Sovitica tornou-se o pretexto graas ao qual conseguimos a
permisso de Klement para publicar um volume inteiro. Era a primeira
edio dos Trabalhos sobre a filologia russa e eslava, foi assim que
chamamos a nova srie. Paralelamente consegui publicar uma
monografia dedicada vida e obra de Kaissrov59. [...] Assim
comearam as edies sobre os estudos eslavos em Trtu.60
As Notas cientficas transformaram-se em uma das principais edies da
Universidade de Trtu. Publicada anualmente desde 1958, a srie, at o presente
momento, consiste em 26 volumes com 289 trabalhos de 108 autores. A partir de 1964
passou a ser publicada igualmente outra srie Trabalhos sobre os sistemas sgnicos
( ), que expressava as opinies da escola Semitica de
Trtu, liderada por Iri Ltman.
59 Kaissrov, Andrei (1782-1813): poeta, crtico e historiador da literatura cuja obra foi praticamente esquecida pelas geraes posteriores e foi reapresentada por Iu. Ltman que tinha interesse especial em resgatar os autores esquecidos. 60 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
49
2a edio dos Trabalhos sobre os sistemas sgnicos (1965) os Materiais do simpsio sovitico sobre os sistemas modelizantes secundrios (1974), elaborados na base da ltima, V, Escola de vero. (Fotos do
arquivo pessoal de Serguei Neklidov).
At hoje foram preparadas 23 edies dessa srie. Alm disso, tambm em 1964,
a esposa de Iu. Ltman, Zara Mints, passou a publicar a Coletnea de Blok (
) dedicado aos estudos do simbolismo russo.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
50
Iri Ltman e sua esposa Zara Mints (foto do site: ruthenia.ru)
Essa coletnea inclui nove volumes com 117 artigos provenientes de 88 autores:
A edio do primeiro volume das Notas foi motivada pelo congresso
dos estudos eslavos, entretanto, posteriormente (e aqui preciso
agradecer ao reitor Klement), conseguimos conquistar o direito de fato
edio anual do volume completo dos Trabalhos sobre a filologia
russa e eslava, sendo que a sua edio foi realizada em um volume
significativamente ampliado. Dentro de algum tempo conseguimos
ainda a permisso para a criao de mais uma srie independente:
srie de trabalhos semiticos, que se tornou um dos principais feitos
de nossas vidas: de Egrov, Zara Grigrievna e da minha...61
Essa intensidade de trabalhos cientficos, caracterstica em geral para toda a vida
de Iri Ltman que at os ltimos anos lecionava de seis a oito horas todos os dias,
possui tambm outra razo:
61 Idem.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
51
Zara Grigrievna, Boris Fidorovitch [Egrov E. V.] e eu
combinamos o seguinte princpio: cada volume era visto como ltimo.
De fato, sempre partimos da possibilidade de destruio total e
trmino da edio. Da, de um lado, a intensidade dos trabalhos e do
outro, s vezes, alterao de boas partes da composio: tivemos que
inserir em um artigo aquilo que, em condies normais, poderia ser
transformado em uma publicao separada. 62
Esse medo de uma repentina proibio de publicar, por parte do governo
sovitico, explica tambm o carter resumido de alguns ensaios dos participantes dessas
coletneas: eles preferiam publicar os seus trabalhos mesmo que em forma de teses a
acrescentar material complementar, exemplos e explicaes mais detalhadas a correr o
risco de no poder v-los impressos. Essa brevidade observa-se, por exemplo, no ensaio
de Zara Mints "O conceito de texto e a esttica simbolista"63 ou, ento nas fundamentais
"Teses para uma anlise semitica da cultura" 64, escritas por Ltman em coautoria
Viatcheslav Ivnov65, Aleksandr Piatigrski66, Vladimir Toporov67 e Bors Uspinski68,
sobre as quais refletiremos adiante.
Na coletnea, Ltman publicou alguns dos seus trabalhos dedicados literatura
do perodo pr-dezembrista que posteriormente foram reunidos em sua tese de livre-
docncia Os caminhos de desenvolvimento da literatura russa do perodo pr-
dezembrista ( )
62 Idem. 63 MINTS, Zara. "O conceito de texto e a esttica simbolista" (" "). // MINTS, Z.G. Blok e o simbolismo russo: Obras selecionadas em 3 volumes ( : : 3 ). Volume 3. So Petersburgo, Iskusstvo, 2004, p. 97102. 64 "Teses para uma anlise semitica da cultura". // MACHADO, Irene. Escola de Semitica A Experincia de Trtu-Moscou para o estudo da cultura. Ateli Editorial, 2003, p. 99-132. 65 Ivnov, Viatcheslav Vsivolodovitch (1929). Linguista, um dos participantes notveis da Escola semitica de Trtu-Moscou. 66 Piatigrski, Aleksandr (1929-2009). Fillogo e filsofo russo, estudioso da cultura oriental, um dos fundadores da Escola semitica de Trtu-Moscou. 67 Toporov, Vladimir (1928-2005). Especialista em literatura, cultura e linguistica, um dos fundadores da Escola semitica de Trtu-Moscou. 68 Uspinski, Boris (1937). Crtico literrio e linguista, um dos fundadores da Escola semitica de Trtu-Moscou.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
52
defendida na Universidade de Leningrado, em 1961. Para a preparao dessa tese,
Ltman teve que estudar, alm das obras literrias desse perodo, dez arquivos de
Moscou e Leningrado, bem como todas as revistas de 1800-1815. O principal tema da
tese a influncia do pensamento sociopoltico e da filosofia na literatura, j que nessa
poca a literatura ainda no era completamente independente.
O Departamento de Literatura Russa da Universidade de Trtu era, nos anos
1960, extremamente ativo e produtivo e tinha, entre os membros, o seu criador, Bors
Egrov e os professores Iri Ltman, Zara Mints e Igor Tchernov. Os principais rumos
de pesquisa eram a anlise do texto potico, bem como o estudo dos diferentes modelos
culturais.
Alm dos estudos de literatura russa, nesse perodo Ltman se interessa cada vez
mais pelos conceitos do estruturalismo em geral e pela nova cincia formada com a base
neles: a semitica. Na mesma poca, Ltman se aproximou dos linguistas e estudiosos
de literatura de Moscou: em dezembro de 1962 na capital sovitica, teve lugar o
Simpsio de estudo estrutural dos sistemas sgnicos que tocava nos mais variados
assuntos, como semitica da linguagem e arte, mitologia e semitica do ritual. Do
simpsio participaram Piotr Bogatyriov69, Viatcheslav Ivnov, Vladimir Toporov,
ndrei Zalizniak70, entre outros. Para o Simpsio, foi lanada uma pequena coletnea
com teses dos pesquisadores moscovitas e resumo das suas apresentaes.
O livrinho [...] caiu nas mos de I. M. Ltman (que, apesar de no ter
participado do Simpsio, de forma independente chegou aos mesmos
69 Bogatyriov, Piotr (1893-1971). Estudioso de folclore e etnografia. 70 Zaliznik, Andrei (1935). Linguista, um dos participantes da Escola semitica de Trtu-Moscou.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
53
problemas). Ele se interessou muito pelo folheto e, quando veio a
Moscou, sugeriu colaborar na base da Universidade de Trtu.71
Esse foi o incio de uma longa parceria cientfica que depois foi chamada de
Escola Semitica de Trtu-Moscou.
71 USPINSKI, B. A. "O problema de gnese da escola semitica de Trtu-Moscou". (" - "). // Iu. M. Ltman e Escola semitica de Ttru-Moscou ( - ). Volume II. Moscou, 1994, p. 275.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
54
3.1. A Escola de Trtu-Moscou
No faz parte do objetivo desse captulo uma descrio completa e detalhada dos
conceitos da Escola Semitica de Trtu-Moscou, bem como da contribuio de cada
uma dos seus participantes, pois isso j foi realizado em vrias obras dedicadas ao
assunto e, inclusive, no Brasil, no livro de Irene Machado Escola de Semitica A
Experincia de Trtu-Moscou para o estudo da Cultura.72 Ao falar de Escola semitica
russa, necessrio observar que, apesar de ser fundada e liderada por Iri Ltman, ela
contou com a participao de muitos autores importantes, tais como: Vladmir Toporov,
Bors Uspinski, Viatcheslav Ivnov, Eleazar Meletnski e Serguei Neklidov, entre
outros. Trata-se, portanto, de uma interao constante entre especialistas em diferentes
reas, como lingustica, estudos literrios, folclorstica, culturologia e at mesmo
cincias exatas (como, por exemplo, a contribuio de Vladmir Uspinski, matemtico
e linguista). No entanto, nos deteremos apenas aos aspectos especficos tocantes a Iri
Ltman e formao da sua viso de semitica da cultura que ocorreu justamente nesse
perodo.
Como de conhecimento geral, os anos 1960 foram marcados por um
desenvolvimento intenso (s vezes tambm chamado de "superao") do estruturalismo
que, de rea estritamente lingustica, passou para as cincias humanas em geral. Ltman
desenvolvia o estruturalismo na rea dos estudos literrios. Em seu artigo de 1963
Sobre a separao do conceito de estrutura na lingustica e nos estudos literrios 73,
ele observou:
72 MACHADO, Irene. Escola de Semitica A Experincia de Trtu-Moscou para o estudo da Cultura. Ateli Editorial, 2003. 73 LTMAN, Iu. Sobre a separao do conceito de estrutura na lingustica e nos estudos literrios (" "). // Questes de lingustica ( ), 1963, No 3.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
55
Existe [...] uma peculiaridade: o linguista trabalha com o plano de
expresso de modo formal, enquanto que o estudioso da literatura
descobre, por meio da expresso, as esferas do contedo (o gnero
gramatical, feminino ou masculino, em certas imagens pode possuir
um contexto de contedo) [...] etc 74.
De acordo com Igor Tchernov, essa foi a primeira tentativa de colocar a
filologia na mesma linha das assim chamadas cincias exatas75.
O livro de Ltman Curso de potica estrutural76, publicado em 1964, representa
uma contribuio expanso do estruturalismo.
Iri Ltman com a primeira edio do seu livro Curso de potica estrutural, de 1964. (Foto do arquivo pessoal de Serguei Neklidov).
74 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman" (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/LOTMAN/_EGOROV_1.HTM 75 TCHERNV I.A. "Ensaio introdutrio ao sistema de Iu. M. Ltman" (" .."). // Ltman, Iu.M. Sobre a literatura russa ( ). So Petersburgo, 1997. P. 7. 76 LTMAN, Iu. Curso de potica estrutural. Edio 1. Introduo, a teoria da poesia. ( . 1. , ). Trtu, 1964.
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Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman
56
De acordo com estudioso da literatura e membro da escola semitica de Trtu-
Moscou, Mikhail Gasprov77 (1935-2005), esse livro serviu como base para as obras
posteriores de Ltman, tais como A estrutura do texto artstico de 1970 e A anlise do
texto potico de 197278.
Segundo Gasprov, em todos esses livros Ltman emprega o mtodo
materialista, prprio ao marxismo79. Essa afirmao pode parecer estranha considerando
o fato de que Ltman praticamente pertencia dissidncia sovitica, opondo-se,
portanto, poltica oficial da Unio Sovitica que, por sua vez, se baseava justamente
no marxismo. Na verdade, Ltman, assim como outros dissidentes, inclusive Mikhail
Gasprov, sentia que havia uma discrepncia entre o mtodo marxista e a sua ideologia:
Os estudos literrios soviticos se baseavam no marxismo. No
marxismo, conviviam o mtodo e a ideologia. O mtodo do marxismo
era o materialismo histrico e dialtico. O materialismo representava
um axioma: a existncia determina a conscincia, inclusive do
portador da cultura, o poeta e o leitor. Historicismo significava que
cultura era uma consequncia dos fenmenos socioeconmicos de seu
tempo. Dialtica significava que o desenvolvimento da cultura, assim
como de todos os processos mundiais, se realiza como resultado da
luta das suas contradies internas. J a ideologia ensinava algo
diferente. A histria acabaria e comearia a eternidade de uma
sociedade ideal sem classes [...]. Todas as contradies internas j
teriam exercido o seu papel e sobrariam apenas as externas, entre os
fenmenos bons e ruins: portanto tornava-se necessrio dividir os
fenmenos culturais em bons e ruins e tentar fazer com que os
primeiros sejam bons em todos os aspectos e vice-versa. A verdade
77 GASPROV, M. "Iu. M. Ltman: a cincia e a ideologia" (". . : "). // GASPROV, M. Obras selecionadas. Volume 2. Moscou,
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