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AINDA (E ENQUANTO FOR PRECISO) SOBRE O PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DA PROPORCIONALIDADE
WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO
Professor Titular de Direito Processual Constitucional e Livre-Docente em Filosofia do Direito (Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Ceará). Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld,
Alemanha.
Sumário: 1. Significado atual do Princípio da Proporcionalidade na Filosofia do Direito. 2.
Origem da idéia de proporcionalidade. 3. A proporcionalidade em um ordenamento jurídico
de regras, princípios e procedimento. 4. A elevação do Princípio da Proporcionalidade ao
nível constitucional pelo Tribunal Federal Constitucional alemão. 5. Desconhecimento do
Princípio da Proporcionalidade na tradição publicista latina. 6. Reconhecimento do
Princípio da Proporcionalidade no Direito Brasileiro.
1. A acolhida extremamente favorável e a aplicação generalizada que
tem merecido o princípio da proporcionalidade, na Alemanha, e, a partir de lá, nos mais
diversos países, pode ser entendida como resultado de um ambiente preparado pelas
discussões jus-filosóficas de após a II Grande Guerra. Os horrores do regime nacional-
socialista, praticados geralmente em obediência a determinações legais, levou a que se
pusesse em evidência a dimensão valorativa do direito, bem como a que se buscasse em
outras fontes que não apenas aquela legislativa, os critérios para sua correta aplicação. Por
outro lado, o positivismo em suas diversas manifestações trouxe para o pensamento jurídico
uma contribuição definitiva, ao preconizar a sua formulação dentro dos padrões rigorosos e
racionais da ciência. Os estudos de metodologia jurídica têm por isso ocupado um lugar
central na filosofia do direito contemporâneo, em busca de como explicar o fenômeno
jurídico sem abdicar de sua dimensão valorativa, nem cair no subjetivismo irracionalista
que se costuma apontar como conseqüência do desrespeito da neutralidade axiológica.
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Surgem, então, manifestações diversas no sentido de que o direito
deve ser tratado de acordo com cânones de uma racionalidade específica, não-cartesiana, o
que trás consigo a revalorização de disciplinas pré-modernas, dedicadas ao estudo da
argumentação, como a Retórica e, especialmente, a Tópica, com VIEHWEG (1964, 1991),
enquanto uma outra tendência se ocupa em explorar as possibilidades do pensamento
analítico e axiomático para desenvolver uma lógica própria do discurso normativo. Este
movimento renovador das concepções jurídica, ao qual aderimos entusiasticamente desde a
publicação da obra intitulada “Ensaios de Teoria Constitucional” (1989), refundida na
“Teoria Processual da Constituição” (2002), tem perpassado todos os ramos do Direito,
embora se situe no âmbito constitucional o seu epicentro irradiador.
Os valores jurídicos perdem a sua conotação subjetiva e pessoal na
medida em que se expressam em normas, dentro de um ordenamento objetivo, passíveis de
serem harmonizadas em um sistema coerente que, apesar de abstrato, volta-se para a
resolução dos problemas práticos da vida jurídica. O sistema normativo, portanto, não é
mais concebido como um conjunto fechado de regras, que, para cada fato, apresentaria a
conseqüência jurídica decorrente, mas sim, como um sistema aberto, para dar conta das
peculiaridades de cada caso concreto. Isso significa uma abertura para, em certas hipóteses,
tomar decisões sobre problemas jurídicos lançando mão de recursos outros, que não o das
proposições normativas (Rechtssätze), com seu esquema limitado ao estabelecimento de
uma relação vinculativa entre uma hipótese legal (Tatbestand) e sua conseqüência
(Rechtsfolge), como são os princípios fundamentais (Rechtsgrundsätze) e as máximas
universais de justiça (topoi), os quais apesar de terem uma carga valorativa muito maior são
dotados da necessária existência objetiva e independente da vontade individual .
A idéia de proporcionalidade revela-se não só a um importante - o
mais importante, como em seguida proporemos - princípio jurídico fundamental, mas
também um verdadeiro topos argumentativo, ao expressar um pensamento aceito como
correto, por justo e razoável, de um modo geral – logo, de comprovada utilidade no
equacionamento de questões práticas, não só do direito em seus diversos ramos, como
também em outras disciplinas, sempre que se tratar da descoberta do meio mais adequado
para atingir determinado objetivo.
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2. É natural que se tente localizar a fonte do pensamento encerrado
no princípio da proporcionalidade na matriz noética de nossa civilização, a Grécia antiga,
onde já se encontra expressa a idéia de que o Direito é algo que deve se revestir de uma
utilidade (synpheron) para os indivíduos reunidos em comunidade, em cujo bem-estar ele
tem a sua ultima ratio. Também entre os juristas romanos era corriqueira a justificação do
Direito pela sua utilidade, havendo ULPIANO definido o Ius privatum como ius quod ad
singularum utilitatem spectat (D 1, 1, § 2), sendo comum em sua época fundamentar
intervenções administrativas ou por meio de leis no patrimônio particular com o topos da
utilitas publica. WIEACKER (1979) registra o evolver dessa forma de compreensão
instrumental e utilitária do Direito até assumir uma prevalência absoluta nos últimos cem
anos. Indícios significativos fornecem a utilitarismo de BENTHAM, sem dúvida a doutrina
mais influente no direito anglo-saxão, e o pensamento teleológico da fase tardia em
JHERING, da qual é representativa a obra Zweck im Recht (“Finalidade no Direito” - há
trad. bras., publicada em Salvador, Ba., sob o título “A Evolução do Direito”), onde tem sua
origem a chamada "jurisprudência dos interesses", cujo ulterior desenvolvimento resulta na
"jurisprudência das valorações", portadora do paradigma metodológico atualmente
predominante na ciência jurídica alemã, que bem se pode considerar a mais avançada na
"Família" do Civil Law.
Saindo do terreno especificamente jurídico para adentrar a área
contígua da moral, tem-se que, para os antigos gregos a idéia retora de seu comportamento
era aquela de proporcionalidade, de equilíbrio harmônico, expressa pelas noções de métron,
o padrão do justo, belo e bom, e de hybris, a extravagância dessa medida, fonte de
sofrimento. Na ética aristotélica tem-se a formalização dessas noções do senso comum
helênico na idéia de "justiça distributiva", que impõe a divisão de encargos e recompensas
como decorrência da posição ocupada pelo sujeito na comunidade, seu status, bem como
por serviços (ou desserviços) que tenha prestado. Através do estoicismo se dá a introdução
desse ideário grego na mentalidade jurídica romana, merecendo uma formula ao exemplar
no célebre ius suum cuique tribuere, de ULPIANO (D. 1, 1, 1 § 1). Já no antigo direito
romano, contudo, pode-se identificar manifestações do princípio de proporcionalidade nas
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regras empregadas pelo pretor para computar em seu quanti interest as parcelas de débito,
obrigações de fazer, delito privado ou indenização acarretadas por um mesmo infrator.
Por fim, não se pode esquecer a idéia de proporcionalidade da reação
a uma agressão sofrida, expressa na iustitia vindicativa talionica, regra comum nos tempos
primitivos e ainda hoje sobrevivente nos casos em que se admite a chamada auto-tutela, o
desforço pessoal para se proteger de uma ofensa à integridade física ou ao patrimônio.
A conclusão a que se chega nessa breve reconstituição histórica,
tentativa de focalizar a idéia de proporção nos arquétipos do pensamento jurídico ocidental,
é a de que essa praticamente se confunde com a própria idéia dó "direito", o aequum, o
khanón, a regula, materializada simbolicamente no equilibrium da balança que porta
Thémis. Não é à toa, portanto, que em diversas tentativas de captar a essência do Direito se
encontre, expressa ou latente, a noção de proporcionalidade, como na famosa definição de
DANTE, "ius est realis ac personalis homini ad hominem proportio", ou no ius est ars boni
et aequm do Digesto.
3. Considerando a atual tendência da filosofia e teoria do direito para
se ocupar dos procedimentos de interpretação, aplicação e produção do seu objeto é fácil
constatar a posição destacada que se destina a ocupar nessa conjuntura reflexões sobre o
tema de que agora nos ocupamos.
Uma característica marcante do pensamento jurídico contemporâneo,
que se faz notar em autores como JOSEF ESSER (1964), RONALD DWORKIN (1977,
1978, 1985), ROBERT ALEXY (1985) e, entre nós, PAULO BONAVIDES (1993),
repousa precisamente na ênfase dada ao emprego de princípios jurídicos, positivados no
ordenamento jurídico, quer explicitamente - em geral, na constituição -, quer através de
normas onde se manifestam claramente, para o tratamento dos problemas jurídicos. Com
isso, dá-se por superado o legalismo do positivismo normativista, para o qual as normas do
direito positivo se reduziriam ao que hoje se chama "regras" (rules, Regeln) na teoria
jurídica anglo-saxônica e germânica, isto é, normas que permitem realizar uma subsunção
dos fatos por elas regulados (Sachverhalte), atribuindo a sanção cabível. Princípios, por sua
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vez, se encontram em um nível superior de abstração, sendo igualmente hierarquicamente
superiores, dentro da compreensão do ordenamento jurídico como uma “pirâmide
normativa" (Stufenbau), e se eles não permitem uma subsunção direta de fatos, isso se dá
indiretamente, colocando regras sob o seu "raio de abrangência”. Ao contrário dessas
também, se verifica que os princípios podem se contradizer, sem que isso faça qualquer um
deles perder a sua validade jurídica e ser derrogado. É exatamente numa situação em que há
conflito entre princípios, ou entre eles e regras, que o princípio da proporcionalidade (em
sentido estrito ou próprio) mostra sua grande significação pois pode ser usado como critério
para solucionar da melhor forma o conflito, otimizando a medida em que se acata um e
desatende o outro. Esse papel lhe cai muito bem pela circunstância de se tratar de um
princípio extremamente formal e, a diferença dos demais, não haver um outro que seja o
seu oposto em vigor, em um ordenamento jurídico digno desse nome.
As regras trazem a descrição de estados-de-coisa formado por um
fato ou uma espécie (a fattispecie a que se referem os italianos) deles, enquanto nos
princípios há uma referência direta a valores. Daí se dizer que as regras se fundamentam
nos princípios, os quais não fundamentariam diretamente nenhuma ação, dependendo para
isso da intermediação de uma (ou mais) regra(s) concretizadora(s). Princípios, portanto, têm
um grau incomensuravelmente mais alto de generalidade (referente à classe de indivíduos à
que a norma se aplica) e abstração (referente à espécie de fato a que a norma se aplica) do
que a mais geral e abstrata das regras. Por isso, também, poder-se dizer com maior
facilidade, diante de um acontecimento, ao qual uma regra se reporta, se essa regra foi
observada ou se foi infringida, e, nesse caso, como se poderia ter evitado sua violação. Já os
princípios são “determinações de otimização” (Optimierungsgebote), na expressão de
ROBERT ALEXY (1985, p. 75 e s.), que se cumpre na medida das possibilidades, fáticas e
jurídicas, que se oferecem concretamente.
E, finalmente, enquanto o conflito de regras resulta em uma
antinomia, a ser resolvida pela perda de validade de uma das regras em conflito, ainda que
em um determinado caso concreto, deixando-se de cumpri-la para cumprir a outra, que se
entende ser a correta, as colisões entre princípios resultam apenas em que se privilegie o
acatamento de um, sem que isso implique no desrespeito completo do outro. Já na hipótese
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de choque entre regra e princípio, é curial que esse deva prevalecer, embora aí, na verdade,
ele prevalece, em determinada situação concreta, sobre o princípio em que a regra se baseia
- a rigor, portanto, não há colisão direta entre regra(s) e princípio(s).
O traço distintivo entre regras e princípios, por último referido,
aponta para uma característica desses que é de se destacar: sua relatividade. Não há
princípio do qual se possa pretender seja acatado de forma absoluta, em toda e qualquer
hipótese, pois uma tal obediência unilateral e irrestrita a uma determinada pauta valorativa -
digamos, individual - termina por infringir uma outra - por exemplo, coletiva. Daí se dizer
que há uma necessidade lógica e, até, axiológica, de se postular um “princípio de
proporcionalidade” para que se possa respeitar normas, como os princípios, tendentes a
colidir, quando se opera concretamente com o Direito (cf. ALEXY, ob. cit., p. 100, 143 e s.,
passim; WILLIS S. GUERRA FILHO, 1989, p. 47, 69 e s., passim).
Da mesma forma como em sede de teoria do direito os doutrinadores
pátrios apenas começaram a se tornarem cientes da importância dos princípios jurídicos,
antes referida, também aos poucos é que estudiosos do direito constitucional e demais
ramos do direito vão se dando conta da necessidade, intrínseca ao bom funcionamento de
um Estado Democrático de Direito, de se reconhecer e empregar o princípio da
proporcionalidade, a Grundsatz der Verhältnismäßigkeit, também chamada de
"mandamento da proibição de excesso" (Übermaßverbot) - sem que deixe de haver
sinonímia entre o princípio da proporcionalidade em sentido estrito e a proibição de
excesso “de ação”, por implicar o princípio também em uma “proibição de (excesso) de
omissão” (Untermaverbot)..
Daí termos acima referido a esse princípio como "princípio dos
princípios", verdadeiro principium ordenador do direito. A circunstância de ele não estar
previsto expressamente na Constituição de nosso País não impede que o reconheçamos em
vigor também aqui, invocando o disposto no § 2o. do art. 5o.: "Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados etc.". Aqui cabe indagar se o princípio da proporcionalidade corresponderia a
um direito ou garantia fundamental, podendo a mesma questão ser colocada em face do
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princípio da isonomia. Ambos os princípios, aliás, acham-se estreitamente associados, sendo
possível, inclusive, que se entenda a proporcionalidade como incrustada na isonomia, pois
como se encontra assente em nossa doutrina, com grande autoridade, o princípio da
isonomia traduz a idéia aristotélica - ou, antes "pitagórica", como prefere DEL VECCHIO -
de "igualdade proporcional", própria da "justiça distributiva", "geométrica", que se
acrescente àquela "comutativa", "aritmética", meramente formal - aqui, igualdade de bens;
ali, igualdade de relações.
Inicialmente, vale sublinhar, com DWORKIN (1985), que conduzir
uma argumentação utilizando princípios necessariamente resulta na tentativa de estabelecer
algum direito fundamental, envolvido na questão, já que, segundo ele, "principles are
proposition that describe rights", pelo que se diferenciariam de outro importante standard
argumentativo, aquele que invoca políticas públicas (policies), que seriam "propositions that
describes goals". Tal distinção se afigura superada pela concepção corrente na doutrina
alemã dos direitos fundamentais como dotados de uma dupla dimensionalidade: aquela
subjetiva, individual, a que tradicionalmente a eles vem associada, e uma outra, objetiva, que
expressa valores almejados por toda a comunidade política. Essa última, no dizer de
VIEIRA DE ANDRADE (1987), "aparece contraposta aos direitos (interesses) individuais,
relativizando-os, revelando e definindo os seus limites", podendo, então, ser entendida,
como "estrutura produtora de efeitos jurídicos" que "em vez de comprimir, reforça agora a
imperatividade dos `direitos' individuais e alarga sua influência no ordenamento jurídico e
na vida da sociedade".
O reconhecimento dessa "dupla dimensionalidade" ou "duplo caráter"
(Doppelcharakter - HESSE, 1995) dos direitos fundamentais resulta da percepção da tarefa
básica a ser cumprida por uma comunidade política, que seria a harmonização dos interesses
de seus membros, individualmente considerados, com aqueles interesses de toda a
comunidade, ou de parte dela, donde se ter a possibilidade de individualizar três ordens
distintas desse interesses: interesses individuais, interesses coletivos (ou "supraindividuais",
onde se incluem os chamados "interesses difusos") e interesses gerais ou públicos. Note-se
que apenas a harmonização das três ordens de interesses possibilita o melhor atendimento
dos interesses situados em cada uma, já que o excessivo privilegiamento dos interesses
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situados em alguma delas, em detrimento daqueles situados nas demais, termina, no fundo,
sendo um desserviço para a consagração desses mesmos interesses, que se pretendia
satisfazer mais que aos outros. Para que se tenha a exata noção disso, basta ter em mente a
circunstância de que interesses coletivos, na verdade, são o somatório de interesses
individuais, assim como interesses públicos são o somatório de interesses individuais e
coletivos, não se podendo, realmente, satisfazer interesses públicos, sem que, ipso facto,
interesses individuais e coletivos sejam contemplados.
Assim é que se torna admissível e, mesmo, necessária a atribuição de
competência ao Estado para, tutelando primordialmente o interesse público, fazer o devido
balizamento da esfera até aonde vão interesses particulares e comunitários, para o que,
inevitavelmente, restringirá direitos fundamentais, para com isso assegurar a maior eficácia
deles próprios, visto não poderem todos, concretamente, serem atendidos absoluta e
plenamente. É nessa dimensão, objetiva, que aparecem princípios como o da isonomia e
proporcionalidade, engrenagens essenciais do mecanismo político-constitucional de
acomodação dos diversos interesses em jogo, em dada sociedade, e, logo, indispensáveis
para garantir a preservação de direitos fundamentais, donde se incluírem na categoria,
equiparável, das "garantias fundamentais".
Com LARENZ (1990), pode-se, então, dizer que, com base na
isonomia em sentido estrito, enquanto afirmação da igualdade formal de todos perante a lei,
se atribui direitos civis e políticos, enquanto a distribuição dos deveres e ônus correlatos
deve se dar obedecendo a "igualdade relativa ou proporcionalidade". O mesmo autor,
contudo, destaca que há um sentido próprio, em que pode se falar de um princípio de
proporcionalidade como distinto do princípio da igualdade, enquanto "proibição de
excesso", como referíamos mais atrás. Nessa sua acepção própria, tal como o concebemos,
o princípio da proporcionalidade aparece como mais importante do que aquele da isonomia,
embora sejam ambos pressupostos da existência mesma, jurídico-positiva, de direitos
fundamentais, pois enquanto esse último determina, abstratamente, a extensão a todos
desses direitos, é aquele que permite, concretamente, a distribuição compatível dos
mesmos.
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Do exposto até aqui, espera-se ter ficado suficientemente evidenciada
a íntima conexão entre o princípio da proporcionalidade e a concepção, antes esboçada, do
ordenamento jurídico como formado por princípios e regras, princípios esses que se pode
converter em direitos fundamentais. Como assevera R. ALEXY (1985), atribuir o caráter de
princípio a normas jurídicas implica logicamente no reconhecimento daquele princípio
maior, e vice-versa. É ele que permite fazer o "sopesamento" (Abwägung, balancing) dos
princípios e direitos fundamentais, bem como dos interesses e bens jurídicos em que se
expressam, quando se encontram em estado de contradição, solucionando-a de forma que
maximize o respeito a todos os envolvidos no conflito. O princípio em tela, portanto,
começa por ser uma exigência cognitiva, de elaboração racional do direito - e aqui vale
lembrar a sinonímia e origem comum, na matemática, dos termos "razão" (lat. ratio) e
"proporção" (lat. proportio) -, o que explica a circunstância de ele figurar entre os cânones
metodológicos da chamada "interpretação constitucional", aquela a que se deve recorrer
quando o emprego da hermenêutica jurídica tradicional não oferece um resultado
constitucionalmente satisfatório.
Para bem atinar no alcance do princípio da proporcionalidade faz-se
necessário referir o seu conteúdo - e ele, à diferença dos princípios que se situam em seu
mesmo nível, de mais alta abstração, não é tão-somente formal, revelando-se apenas no
momento em que se há de decidir sobre a constitucionalidade de alguma situação jurídica
ou coisas do gênero. Esse seu aspecto material, inclusive, já fez com que se referisse a ele
como uma proposição jurídica à qual, como ocorre com normas que são regras, se pode
subsumir fatos jurídicos diretamente.
O princípio da proporcionalidade, entendido como um mandamento
de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental, em situação de conflito com
outro(s), na medida do jurídico e faticamente possível, tem um conteúdo que se reparte em
três "princípios parciais" (Teilgrundsätze): "princípio da proporcionalidade em sentido
estrito" ou "máxima do sopesamento" (Abwägungsgebot), "princípio da adequação" e
"princípio da exigibilidade" ou "máxima do meio mais suave" (Gebot des mildesten
Mittels). O "princípio da proporcionalidade em sentido estrito" determina que se estabeleça
uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio
9
empregado, que seja juridicamente a melhor possível. Isso significa, acima de tudo, que
não se fira o "conteúdo essencial" (Wesensgehalt) de direito fundamental, com o
desrespeito intolerável da dignidade humana, bem como que, mesmo em havendo
desvantagens para, digamos, o interesse de pessoas, individual ou coletivamente
consideradas, acarretadas pela disposição normativa em apreço, as vantagens que traz para
interesses de outra ordem superam aquelas desvantagens.
Os subprincípios da adequação e da exigibilidade, por seu turno,
determinam que, dentro do faticamente possível, o meio escolhido se preste para atingir o
fim estabelecido, mostrando-se, assim, "adequado". Além disso, esse meio deve se mostrar
"exigível", o que significa não haver outro, igualmente eficaz, e menos danoso a direitos
fundamentais. Sobre essa distinção, vale referir a formulação lapidar do Tribunal
Constitucional alemão: "O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível,
para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado, quando com seu auxílio se pode
promover o resultado desejado; ele é exigível, quando o legislador não poderia ter
escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de
uma limitação menos perceptível a direito fundamental" (Entscheidungen der
Bundesverfassungsgericht, 1971, p. 316).
As demais manifestações do princípio da proporcionalidade (em
sentido amplo), por sua vez, já apresentam um grau bem maior de concreção, especialmente
aquele referente à "adequação" (Geeignetheit), sendo isso o que talvez leva a que se possa
subsumir a eles fatos diretamente; como não ocorre com nenhum outro princípio - pense-se,
por exemplo, em um caso de abuso de poder. Essa peculiaridade o torna isento à critica que
se faz ao uso de princípios no raciocínio jurídico, de que assim o direito é visto de uma
perspectiva deformante, "de cima para baixo", quando as leis é que fornecem o ponto de
vista adequado e normal, "de baixo para cima": o "mandamento" ou "máxima da
proporcionalidade", ao mesmo tempo em que ocupa o posto mais alto na escala dos
princípios, por ser o mais abstrato deles, e que resolve o problema de sua contraposição,
contempla igualmente a possibilidade de "descer" à base da pirâmide normativa,
informando a produção daquelas normas individuais que são as sentenças e as medidas
administrativas. Por tudo isso, bem como pela intima relação que guarda com a "essência"
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ou "idéia do direito" (Rechtsidee) - como já acentuou, entre outros, KARL LARENZ
(1990) -, é que se vê nessa máxima expressão da norma fundamental (Grundnorm), na qual
KELSEN (1960) baseou toda a sua importante teoria jurídica, mas nunca conseguiu definir
de uma forma que o satisfizesse, até considerá-la, na última manifestação sobre o assunto,
uma "ficção" (KELSEN, 1986). A convicção sobre o acerto do que se vem de preconizar
aumenta ainda mais quando se considera a influência da proporcionalidade em diversas
matérias jurídicas, como se fará a seguir.
4. O estabelecimento do princípio da proporcionalidade ao nível
constitucional, com a função de intermediar o relacionamento entre as duas matérias mais
importantes a serem disciplinadas em uma constituição, como são aquelas referentes aos
direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e ao ordenamento dos poderes estatais, já
implica em aceitar a aplicação generalizada do princípio nos vários ramos do direito.
Apesar de o Tribunal Constitucional Federal alemão, o Bundesverfassungsgericht, em sua
praxe decisória ter se mostrado coerente com essa tese, por ele esposada, sempre tem
havido muita relutância por parte da doutrina quando se trata da introdução do princípio
fora do seu campo já tradicional de atuação, o direito administrativo e constitucional.
Acontece que a proporcionalidade pode ser considerada como
constitutiva e, logo imanente, em relação a setores inteiros do direito. Um exemplo típico é
fornecido pelo Direito Penal, levando em conta que toda pena fere direitos individuais e só
se justifica a sua previsão para atender reclamos de bem-estar da comunidade. O mesmo
raciocínio pode ser transposto para o Direito Processual Penal, envolvido com a
problemática da aplicação da pena. O Bundesverfassungsgericht se manifestou em diversas
oportunidades sobre a adequação da imposição de uma pena em certos casos individuais,
apreciando o uso correto da discricionariedade pelo juiz, ao estabelecer a gravidade do
delito e a culpa do autor. Já o Direito Processual Penal foi considerado por aquela Corte
como "Direito Constitucional aplicado", o que exige dos juízes o respeito da
proporcionalidade ao aplicarem as medidas coativas de acordo com o ordenamento
processual penal, havendo mesmo diversos artigos de onde esse princípio estaria implícito.
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Os inúmeros estudos feitos nas últimas duas décadas sobre a estreita
relação que há entre "processo" e "constituição" permitem estender a qualificação do
Bundesverfassungsgericht, “Direito Constitucional aplicado", a todos os ramos do Direito
Processual, de modo a tornar inquestionável o emprego do princípio de proporcionalidade
em toda a dimensão não-material do Direito. No Direito Processual, aliás, é conhecida a
extrema importância dos princípios que lhe são próprios na sua estruturação, podendo-se
em vários deles identificar manifestações da proporcionalidade, sendo ela também que
fundamentaria a opção pelo predomínio ora de um deles, ora do seu oposto, nos diversos
procedimentos. Não se esqueça, finalmente, que a relação mesma entre direito material e
processual é de "meio-e-fim", trazendo consigo a marca da proporcionalidade: um
processo, por exemplo, não pode ser sobrecarregado com um excesso de formalismo, pois
assim torna-se um fim em si mesmo, entravando a aplicação do direito, ao invés de servi-la,
muito embora seja incontestável a necessidade de se obedecer a certas formalidades para
garantir o regular desenvolver do procedimento e, com isso, conferir maior segurança de
que a ordem jurídica será observada.
5. Nos países latinos, a preocupação central da doutrina
administrativista com o equilíbrio entre legalidade e discricionariedade no exercício da
função administrativa, impulsiona em sentido diverso daquele da tradição germânica,
ficando o pensamento da proporcionalidade disfarçado por trás do fenômeno do "desvio de
poder" (détournement du pouvoir). Na França, contudo, se deve à jurisprudência
administrativa, e não àquela constitucional, uma "teoria das liberdades públicas definidas",
para proteger direitos fundamentais contra limitações pelo abuso do poder discricionário no
âmbito da qual foram desenvolvidas "regras" no sentido da proporcionalidade, como são a
"règle du libre chox des moyens" (= adequação), a "règle de la nécessité” (= exigibilidade)
e a "règle de la proportionnalité" (= proporcionalidade em sentido estrito). Na Itália, apesar
da ausência por assim dizer "institucionalizada" do conceito da proporcionalidade, observa-
se, na doutrina administrativista uma proximidade com as diretrizes alemãs, pois se toca na
questão das proporcionalidadas em seu tríplice aspecto, ao referir a "proporzionalità",
"necessità" e "idoneità del provvedimento”.
12
A Constituição Portuguesa, de 1974, que em seu art. 18o., dispondo
sobre a "força jurídica" dos preceitos constitucionais consagradores de direitos
fundamentais - de modo equiparável ao que é feito, em nossa Constituição, nos dois
parágrafos do art. 5o. -, estabelece, no inc. II, expressis verbis: "A lei só pode restringir os
direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo
as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos".
Essa norma, notadamente em sua segunda parte, enuncia a essência e
destinação do princípio da proporcionalidade: preservar os direitos fundamentais. O
princípio, assim, coincide com a essência e destinação mesma de uma Constituição que, tal
como hoje se concebe, pretenda desempenhar o papel que lhe está reservado na ordem
jurídica de um Estado de Direito Democrático.
6. No Brasil, o princípio da proporcionalidade ainda não mereceu o
devido acatamento no Direito Constitucional, ou mesmo no Direito Administrativo,
seguindo a tradição latina e a orientação positivista, que se vem de referir. No momento em
que passou a vigorar entre nós uma nova Constituição, deu-se oportunidade excelente para
se reconhecer a vigência do princípio da proporcionalidade, vindo ao encontro dos
reclamos da sociedade brasileira por uma ordem sócio-política eqüitativa. Infelizmente,
nesse passo, não trilhamos o caminho seguido por constituintes de outros países, que
cumpriram sua função já na fase atual do constitucionalismo, a qual se pode considerar
iniciada no segundo pós-guerra. Isso porque não há previsão expressa, em nossa
Constituição, do princípio em tela. A ausência de uma referência explícita ao princípio no
texto da nova Carta não representa nenhum obstáculo ao reconhecimento de sua existência
positiva, pois ao qualificá-lo como "norma fundamental" se lhe atribui o caráter ubíquo de
norma a um só tempo "posta" (positivada) e "pressuposta" (na concepção instauradora da
base constitucional sobre a qual repousa o ordenamento jurídico como um todo). Por isso,
haveria mesmo uma incompatibilidade sua com uma prescrição na forma de uma
proposição normativa, pois como já foi referido, trata-se de um princípio denominado
"aberto" por LARENZ (1995), em contraposição àqueles formulados normativamente
(rechtssatzförmige Prinzipien).
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Em conseqüência desse posicionamento, não se mostra necessário,
nem mesmo correto, procurar derivar o princípio de proporcionalidade de um outro
qualquer, como o do Estado de direito, ou dos direitos fundamentais, para lhe atribuir
caráter constitucional. Aí haveria, na verdade, um enfoque distorcido da questão, pois a
opção do legislador constituinte brasileiro por um "Estado Democrático de Direito" (Art.
1°), com objetivos que na prática se conflitam (Art. 3°), bem como pela consagração de um
elenco amplíssimo de direitos fundamentais (Art. 5°), co-implica na adoção de um
princípio regulador dos conflitos na aplicação dos demais, e, ao mesmo tempo, voltado para
a proteção daqueles direitos.
A questão que assim se coloca de como melhor fundamentar a
inscrição de um princípio de proporcionalidade no plano constitucional, se, deduzindo-o da
opção por um Estado de direito ou, então, dos sacrossantos direitos fundamentais, assume
relevância mais doutrinária, já que na prática, como demonstra a reiterada jurisprudência do
Tribunal Constitucional alemão, não resta dúvida quanto à sua inserção na "base” do
ordenamento jurídico, como se pode referir de maneira figurada à constituição. Além disso,
nosso princípio aparece relacionado àquele que se pode considerar o problema principal a
ser resolvido com a adoção de um regime constitucional pelo Estado, nomeadamente o do
relacionamento entre ele, a comunidade a ele submetida e os indivíduos que a compõem, a
ser regulado de forma eqüitativamente vantajosa para todas as partes. Para que o Estado,
em sua atividade, atenda aos interesses da maioria, respeitando os direitos individuais
fundamentais, se faz necessário não só a existência de normas para pautar essa atividade e
que, em certos casos, nem mesmo a vontade de uma maioria pode derrogar (Estado de
direito), como também há de se reconhecer e lançar mão de um princípio regulativo para
ponderar até que ponto se vai dar preferência ao todo ou às partes (Princípio da
Proporcionalidade), o que também não pode ir além de um certo limite, para não retirar o
mínimo necessário a uma existência humana digna de ser chamada assim. E nesse contexto
se pode referir a uma outra “ubiqüidade” do princípio em tela, na media em que permite a
subsunção a ele da situação de conflito entre outros princípios e direitos fundamentais.
14
Dessa circunstância, decorrente de ter seu conteúdo formado por
subprincípios, passível de subsumirem fato e questões jurídicas, não se pode, contudo, vir a
considerar o princípio da proporcionalidade mera regra, ao invés de verdadeiro princípio,
como já se chegou a afirmar entre nós (VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, 2002, p. 26 ss.
Irretorquível, por outro lado, neste trabalho, é a distinção entre os princípios da
proporcionalidade e razoabilidade, a qual constitui seu objeto central), supostamente com
apoio em ALEXY (1985, p. 100) – o qual, por seu turno, neste aspecto, se ampara em lição
do professor de Direito Constitucional na Universidade de Heidelberg, HAVERKATE
(1983) -, pois não poderia ser uma regra o princípio que é a própria expressão da
peculiaridade maior deste último tipo de norma em relação à primeira, o tipo mais comum
de normas jurídicas, peculiaridade esta que RONALD DWORKIN (1978, p. 26 ss.) refere
como a “dimensão de peso” (dimension of weight) dos princípios, e ALEXY como a
ponderação (Abwägung) – justamente o que se contrapõe à subsunção nas regras. Além
disso, o conteúdo de uma regra é a descrição (e previsão) de um fato, acompanhada da
prescrição de sua conseqüência jurídica, e não outra regra. E também, caso a norma que
consagra o princípio da proporcionalidade não fosse verdadeiramente um princípio, mas
sim uma regra, não poderíamos considerá-la inerente ao regime e princípios adotados na
Constituição brasileira de 1988, deduzindo-a do sistema constitucional vigente aqui, como
em várias outras nações, da idéia de Estado democrático de Direito, posto que não há regra
jurídica que seja implícita, mas tão-somente os direitos (e garantias) fundamentais,
consagrados em princípios igualmente fundamentais – ou, mesmo, “fundantes” –, a
exemplo deste princípio de proporcionalidade, objeto da presente exposição. Em apoio de
nossos posicionamentos veio, por exemplo, FRANCISCO FERNANDES DE ARAÚJO
(2002).
Supondo agora que o princípio aqui abordado venha a merecer o
devido reconhecimento de sua valia em nosso País, cabe desde já tomar em consideração o
problema de sua tendência ao que se chama na doutrina alemã de Oberdehnung, "super-
expansão", para designar um exagero ao empregá-lo, que levaria a um "relaxamento" na
aplicação da lei (nesse sentido, v.g., HIRSCHBERG, 1981). Para prevenir que isso
aconteça, nada melhor do que atribuir "reflexividade" ao princípio, de modo que só se
possa aplicá-lo mediante um exame da "adequação", "exigibilidade" e "proporcionalidade"
15
de fazê-lo. Com isso, pode-se reservar a utilização dele para o momento oportuno e
necessário, quando for essa a providência mais de acordo com a finalidade última do
ordenamento jurídico: o maior beneficio possível da comunidade com o mínimo sacrifício
necessário de seus membros individualmente.
Trata-se, portanto, de um "caminho do meio", uma via mais discreta,
que se oferece como alternativa aos projetos grandiosos, com suas promessas de terem a
fórmula de resolução de todos os problemas. Diante da complexidade do mundo
(pós)moderno, as soluções melhores só aparecem quando se procura colocar as opiniões
divergentes em comunicação, partindo de um consenso em torno da possibilidade de se
chegar a um entendimento mútuo. Para isso, contudo, não se pode já partir de idéias
preconcebidas, que se deve impor aos outros. O melhor a fazer é deixar que a solução se
mostre, pragmaticamente, na situação comunicativa; e de antemão se pode refletir sobre o
procedimento a ser adotado, para chegar a soluções que harmonizem os interesses privados,
individuais e coletivos, bem como aqueles gerais, públicos, com base em um princípio de
proporcionalidade.
Ainda com relação ao modo de aplicar corretamente o princípio da
proporcionalidade, para encerrar essa ligeira apresentação dele, vale ressaltar que, assim
como ele pressupõe a existência de valores estabelecidos positivamente em normas do
ordenamento jurídico, especialmente aquelas com a natureza de um princípio fundamental,
também requer um procedimento decisório, a fim de permitir a necessária ponderação em
face dos fatos e hipóteses a serem considerados. Tal procedimento deve ser estruturado - e
também institucionalizado - de uma forma tal que garanta a maior racionalidade e
objetividade possíveis da decisão, para atender ao imperativo de realização de justiça que é
imanente ao princípio com o qual nos ocupamos.
A vinculação entre o princípio da proporcionalidade e o processo vem sendo
considerada de tal ordem que, com grande autoridade, entre nós, tanto em sede doutrinária
como jurisprudencial, é comum ter-se o princípio como incrustado naquele donde se
assentariam as diversas garantias processuais, de índole constitucional, a saber, o princípio
do devido processo legal. Em sede jurisprudencial, é o entendimento firmado pelo Min.
16
MOREIRA ALVES (cf. GILMAR FERREIRA MENDES, 2000, p. 871). Na doutrina, e
com referências jurisprudenciais, é o que sustenta ROBERTO ROSAS (2001, p. 11 ss.)
Dissentimos, contudo, em ponto fundamental, a saber, quando se identifica os princípios da
proporcionalidade e razoabilidade, reconduzindo a ambos ao aspecto substancial do devido
processo legal, quando só este último é que, a rigor, assim poderia ser enquadrado, não o
primeiro, que é garantia fundamental, com natureza processual. Sobre a distinção, na qual
desde há muito insistimos, consulte-se, v.g., RAPHAEL SOFIATI DE QUEIROZ (2000, p.
30), HELENILSON CUNHA PONTES (2000, p. 87 ss., passim), CARLA PINHEIRO
(2001, p. 148 ss.), VALESCHKA SILVA E BRAGA (2002).
Descabida, portanto, como pretende LUÍS ROBERTO BARROSO
(1996, p. 204), é a “fungibilidade” entre os princípios da razoabilidade, que é uma vedação
de que se perpetre absurdos com o direito, e o da proporcionalidade, que é uma exigência
de racionalidade, pressupondo já a razoabilidade. Como bem salienta CHARLES
PERELMAN (1984, p. 15), há diversas soluções possíveis, para determinado problema
jurídico, que são razoáveis, donde o caráter negativo que apontamos ao princípio da
razoabilidade, por ser antes um princípio de irrazoabilidade: “il y a une limite a cette
tolérance (de diversas soluções possíveis, bem entendido), et c´est le déraisonnable qui n
´est pas acceptable”. A solução a ser oferecida pela aplicação do princípio (positivo) da
proporcionalidade, por certo, não se incluiria dentre aquelas tidas como irrazoáveis, por
“inadmissible dans une communauté à un moment donné” (id. ib.), mas dentre as diversas
soluções possíveis haver-se-á de encontrar aquela que é racionalmente proporcional, por ser
além de necessária e exigível, a que melhor promove os direitos (garantias e princípios
constitucionais) fundamentais em seu conjunto, evitando a violação de seu núcleo essencial
intangível, pelo respeito à dignidade humana – o trabalho com a proporcionalidade começa
quando termina aquele com base na aplicação do princípio da razoabilidade.
Vale mencionar, no contexto dessa discussão, a circunstância da idéia
subjacente ao princípio da proporcionalidade animar também um dos cânones
metodológicos da chamada “interpretação constitucional”, aquela a que se deve recorrer
quando o emprego da hermenêutica jurídica tradicional não oferece um resultado
constitucionalmente satisfatório: o da “concordância prática”. Não se confunda, porém, o
17
princípio constitucional da proporcionalidade, que é norma jurídica consagradora de um
direito (rectius: garantia) fundamental - portanto, é uma prescrição -, com um cânone da
nova hermenêutica constitucional, que não atua sobre a vontade, mas sim sobre o intelecto
do intérprete do Direito, nos quadros de um Estado Democrático. Aqui, novamente, é
discordante a posição adotada por BARROSO (id. ib.) e também, na literatura alemã, de
certa forma, DIETER MEDICUS, “Der Grundsatz der Verhaltnismäigkeit im
Privatrecht”, in: Archiv für die Civilistische Praxis, n. 192, 1992, pp. 53 s., quando
considera o princípio da proporcionalidade um meio de interpretar a Constituição, similar
ao método teleológico, não devendo ser considerado constitucional como são apenas os
direitos fundamentais compreendidos à luz deste princípio – como se fosse fácil ou,
mesmo, possível distinguir um direito ou uma norma jurídica da compreensão que de
ambos se tem. A resultados similares leva a proposta de HUMBERTO BERGMANN
ÁVILA (1999, p. 151 ss.), de que se considere a proporcionalidade um dever derivado de
um postulado, que o mesmo A. apresenta, corretamente, como uma condição de
possibilidade do conhecimento de determinado objeto – então, fica nos devendo o A. uma
explicação de como se poderia afirmar um dever, sem que o mesmo decorra de uma norma
ou corresponda a um direito, mas sim advenha da adoção, condicional, de um postulado ou
critério. Uma tal posição, que lamentavelmente vem ganhando ampla aceitação entre nós,
só vem a enfraquecer o sentido eminentemente prático e de importância máxima ao qual
está destinado ao princípio da proporcionalidade, de incidir, direta e necessariamente, em
situações, muitas vezes já objeto de um processo judicial, para bem resolvê-las, em atenção
ao fundamento mesmo do Estado Democrático de Direito, constituídos pelos direitos (e
garantias), por isso mesmo mais adequadamente denominados fundamentais.
Especial atenção merece, portanto, o problema do estabelecimento de
formas de participação suficientemente intensiva e extensa de representantes dos mais
diversos pontos de vista a respeito da questão a ser decidida – em geral, no âmbito de ações
constitucionais.
Isso significa, então, que o procedimento com as garantias do
“devido processo legal” (due process of law), i. e., do amplo debate, da publicidade, da
igualdade das partes etc., se torna instrumento do exercício não só da função jurisdicional,
18
como tem sido até agora, mas sim das demais funções do Estado também, donde se falar
em “jurisdicionalização” dos processos legislativo e administrativo (CAPPELLETTI, 1993,
p. 77) e “procedimentalização” (Prozeduralizierung – WIETHÖLTER, 1982) ou, mesmo,
“judicialização” do próprio ordenamento jurídico como um todo (SEGADO, 1995, p. 158).
Esse é um fenômeno próprio do Direito na sociedade em seu atual estágio evolutivamente
mais avançado, em direção à sua mundialização, que ainda está a merecer a devida atenção,
extraindo conseqüências para uma re-orientação do pensamento jurídico, no sentido de uma
maior preocupação com o “caminho” de realização do Direito, com o processo de sua
concretização, já que a previsão abstrata de como resolver situações inusitadas e da
complexidade daquelas que se apresentam a nós contemporaneamente, em normas com o
caráter de regras de Direito material, se mostra bastante deficiente.
Ocorre, então, que em geral os interesse coletivos, conquanto
respaldados em normas de nível constitucional, não o são por leis regulamentadoras dos
direitos, fundamentais, delas advindos, e não é por isso que se vai admitir o seu desrespeito.
Caberá, assim, ao Judiciário suprir a ausência completa e os defeitos da produção
legislativa, no sentido da realização dos chamados "Direitos fundamentais de terceira
geração", ou "direitos de solidariedade", precisamente os direitos sociais, econômicos e
culturais, relativos à preservação do meio ambiente, das peculiaridades culturais de
minorias, étnicas ou "éticas" etc. Vê-se, portanto, como efetivamente se pode sustentar a
tese de que o Judiciário deve assumir, na atualidade, a posição mais destacada, dentre os
demais Poderes estatais, na produção normativa.
As decisões a respeito de problemas envolvendo conflitos sociais
sobre interesses coletivos da natureza daqueles acima mencionados não só encontram uma
regulamentação insuficiente, como também, por sua novidade, não seria de se ver aí algo de
muito inconveniente, pois é melhor mesmo que eles sejam inicialmente tratados e
resolvidos no âmbito de procedimentos judiciais. Esses procedimentos devem ser
estruturados de forma a permitir a mais ampla participação de "sujeitos coletivos", com a
integração do maior número possível de pontos de vista sobre a questão a ser decidida,
havendo ainda de se prever a possibilidade de a decisão se tornar, a um só tempo,
19
vinculante para casos futuros semelhantes e passível de ser modificada, diante da
experiência adquirida em sua aplicação.
Procedimentos instaurados por ações coletivas, como a ação popular
e a ação civil pública, funcionam como verdadeiros instrumentos processuais de
participação política, que permitem aos cidadãos o exercício da cidadania ativa, isto é,
permitem uma participação pluralística dos representantes dos mais diversos segmentos da
sociedade, com a interpretação que lhes é peculiar, inclusive do texto constitucional,
formando o que o constitucionalista alemão PETER HÄBERLE (1975, p. 297 ss.) chamou
de "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição".
A Constituição de 1988, em seu art. 5º, inc. LXXI, criou instituto
para combater a ineficácia e violação de normas que consagram direitos e princípios
fundamentais, em virtude da omissão do Poder Público em regulamentá-las devidamente.
Esse novo instrumento é o mandado de injunção, posto à disposição dos cidadãos
individual e pessoalmente, para defesa do seu estado jurídico-político (status libertatis,
status civitatis etc.) e de direitos públicos subjetivos seus, decorrentes daquelas normas.
Instituto similar, novidade também em nosso ordenamento jurídico, é a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão (art. 103, 2º), ação civil pública de que se pode valer
órgãos do Estado e entidades como a OAB, com o fito de resguardar a ordem jurídica
objetiva de idêntico malefício. Entendemos que o mandado de injunção há de ser
compreendido em estreita correlação com esse outro instituto, havendo ambos de ser
entendidos reportando-se àqueles que o antecederam, em nosso ordenamento jurídico, e dos
quais seriam desdobramentos, quais sejam, o mandado de segurança e a ação direta
declaração de inconstitucionalidade, onde aos mandados, de segurança e injunção, caberia a
defesa de direitos fundamentais dos indivíduos contra ato ou omissão agressiva do Poder
Público, evitando que tais direitos se reduzam a meros programas ou proposições teóricas
desprovidas de eficácia, e às ações declaratórias de inconstitucionalidade - assim como à de
constitucionalidade, criada posteriormente - o escopo primordial de tutela dos princípios
basilares da própria ordem constitucional objetiva. Já à Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (CF, art. 102, 1º) estaria destinada esta dupla função, caso não tivesse
sofrido distorções em seu processo de regulamentação – em “descumprimento a preceito
20
fundamental” (cf. WILLIS S. GUERRA FILHO, 2005, p. 215 ss.). Esperemos que nossa
jurisdição constitucional finalmente comece a agir de molde a corrigir tais distorções,
manejando devidamente, em última instância, o princípio constitucional da
proporcionalidade.
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