agreste newton moreno
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AAAAA greste (Malva-Rosa)
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AAAAA g rg rg rg rg re s t e e s t e e s t e e s t e e s t e ( M a l v a - R o s a )( M a l v a - R o s a )( M a l v a - R o s a )( M a l v a - R o s a )( M a l v a - R o s a )
NNNNN ewton Moreno
A
Newton Moreno é dramaturgo e pesquisador, mestre em artes cênicas pelo ECA-USP.
idéia deste texto é servir como exercício denarrativa para um ator-contador(atriz).
O narrador pode assumir todas as ou-tras personagens, viúva, o padre, o delegado,ou as vozes dos moradores.Ou dispor de outro(s) ator(es) que
cria(m) uma partitura física para determinadosmomentos da estória. Da união destas duas lin-guagens – a oralidade e a dança-teatro; verbo emovimento – será feito o espetáculo.
Um(a) narrador(a).Velho(a) contador(a) de estórias. Daqueles
que reúnem um grupo ao redor da fogueira ouembaixo de uma árvore com uma viola/sanfona,pontua suas histórias com as músicas e acordes quesaem de seu instrumento. Ele(a) recebe o público,dá o clima de cada passagem do texto, pausas, en-fim, é o grande condutor da cena.
CONTADOR(A)Ele andava muito para encontrá-la. Mas quandose viam, ficavam, no mínimo, a cinco metrosde distância. Nem um centímetro a mais ou amenos. Exatos cinco metros. Sempre. Uma cer-ca os separava.
Ela sorria de um lado, ele, do outro.
Ele deixava uma flor na cerca, ela ia bus-car. Ela deixava seu perfume na cerca, ele iabuscar.
Eram tímidos como caramujo. Preca-viam-se. Se chegassem muito perto, Deus sabeo que aconteceria. Tinha alguma coisa no amordeles que não devia acontecer. Mas aconteceu.
Por meses, anos. Eles e a cerca.Ele deixava um beijo na madeira do cer-
cado, ela colhia.Foram se estreitando. Chocando sua in-
timidade. Confiavam um no outro, que nem aterra na chuva.
Ele deixava sangue no arame da cerca, elaia enxugá-lo.
Às vezes, podia demorar um mês para seencontrar. Ela deixava um pedaço de chita dovestido, ele amarrava na enxada. Era lavrador noNordeste do país. Reino de areia e de sede. Erahonesto. Forte. De pele marcada. Não dá parasaber a idade. Eram como rochas velhas secan-do na espera. Sua cultura era o sol. Sua famíliaera o sol.
Ele deixava cuia. Ela colocava cuscuz. Elecomia, sorrindo. Ele devolvia a cuia e ela ia bus-car e... descobriram um furo na cerca!!!
Música. Os atores que representam o casalestudam o buraco, cada um do seu lado. Tempo.
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CONTADOR(A)Incertos. Fingiram não vê-lo. Era um buracoenorme como o sertão. Fingiram por uma se-mana. Duas. Um mês. A dúvida.
Mas o buraco crescia, como querendo seexibir. Amostrado. A cada vez que voltavam, es-tava maior.
E eles de butuca no furo. Parecia um açu-de, tentando-os com sua água escura, escura, corde enigma.
Se ele tocasse nela? Se ela aceitasse ele?Às vez, é preciso muita coragem para dar
um passo.Tempo. Ação dos atores estudando o buraco.
CONTADOR(A)Naquela manhã, ela foi sozinha. Firmou-se fren-te ao buraco. Tomou coragem e cruzou. Acal-mou-se aos poucos. Respirou, deu um passo,dois. Parecia um astronauta movimentando-sepela primeira vez na Lua. O ar é o mesmo. OSol é o mesmo. O coração era outro. Uma cri-ança brincando onde não devia. Trelosa. O queela não sabia, era que ele estava lá. Olhando-aboquiaberto detrás do arbusto. Ela dançava,grunhia, sujava-se de terra.
Ele sorria.Quando se perceberam, paralisaram. Mas
muito, muito tempo. Ele ultrapassou o limitedos 5 metros, aos poucos. Alcançou o hálito ner-voso dela. Talvez 45 centímetros. Atravessaram!
Música. Poeira subindo.
CONTADOR(A)Correram. De tanta euforia e medo. Levantan-do uma nuvem de poeira por onde passavam.Uma nuvem como há muito o Nordeste nãovia.
Fugiram para longe.Pensaram: chegariam no mar de tanto
passo.Chegariam, se tivessem corrido esse tan-
to de chão pro outro lado.Avexaram-se no passo com medo de mu-
dar de idéia. O medo deu pressa. As lágrimasdela tentavam marcar no chão um caminho de
volta. Num determinado ponto, deram-se asmãos e tranquilizaram-se.
Perfuraram o Brasil mais fundo. Desmon-taram dos pés no meio da seca. E pensaram quenão devia existir um lugar mais árido que aque-le. Mas o Nordeste surpreende a gente. Vai tersempre uma rês mais murcha e um filho maismoribundo. O peito arfava de contentamento epavor. Era como se inspirassem alegria e expiras-sem receio. Uma pausa de um silêncio pesado.
Desviavam olhares, cabisbaixos. Não que-riam mostrar a dúvida passeando dentro dosseus olhos. Pior: não queriam ver nos olhos dooutro a dúvida.
Voltar? Mesmo se quisessem, não sabe-riam como. As pegadas úmidas já nem existiam;foram sorvidas com força por aquela terra sau-dosa da água.
Deitaram os corpos na sombra de ummandacaru. Na margem do que fora um riacho.O sol já lhes roubara o senso, o tino.
Algo morno crescia na alma. Era um va-por no forno, no berço, na fôrma do novo afe-to. Estavam à beira de um desmaio. A razão jáse afogava com o sol a pino quando uma mu-lher se desenhava ao longe feito miragem. Veiolenta, feito a justiça. Aproximou-se.
Falava com eles, mas eles não ouviamuma só palavra. Em lugar das palavras, só con-seguiam escutar os sons das águas. Da sua bocatudo soava gotas de chuva, barreiros cheios, açu-de vazando, água da calha. Os sons dela eramtodos molhados. Ela falava como um rio, aquo-sa. Foi essa mulher quem os salvou.
Levou ao povoado e tratou de acomodá-los.
Apearam neste arraial. Um pouco de jabá,sombra e água barrenta e recobraram o prumo.
Lá, eles plantaram a vida.Música pára. O texto segue com a poeira
ainda alta.Construíram um casebre.Cercaram com arame, mas para se pren-
der por dentro.Não queriam conhecer os outros, antes de
saberem de si.
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Até então, nada das coisas que se permi-tem marido e mulher. A carne é um compro-misso mais definitivo. Passou esta cerca, o gadoé marcado.
E a noite chegou mais clara que o dia. Eos olhos não se prendiam num abraço de jeitomaneira. Mas os dois foram se descobrindo aospoucos.
Ela começou pelo seu rosto. Os cabelosdele. Escuros, cabeleira cabocla de filho de ín-dio brabo. Farto e espesso. Devia de pesar namão. Devia de quebrar pente fraco.
Ele fazia o percurso inverso. Pôs os olhonos cambito da moça. Umas canela fina, masbronzeada, que lhe agradaram os sentido.
E assim se seguiu a malevolente investiga-ção: ela descendo os olhos, ele subindo a vista.
Ela admirava era a dentição dele. Perfeiti-nha. Os dentes que faltavam em cima, ele tinhaembaixo; e vice-versa. De modo que quando elesorria, os dentes se encaixavam num sorriso deum fileira só, mas sem buraco. Mas sorria boni-to ele!
Uma semana depois, eles se tocaram. An-tes disso, só as mãos no meio da correria.
Ouvia-se uma pele rachando na outra,acostumando-se um ao outro, deixando o tem-po passar. Um dia, ela se escondeu embaixo dolençol; ele apagou o candeeiro. Por anos, estefoi o sinal, o código. Sumir-se embaixo do len-çol. Cobrir a luz com o escuro. E ele apagoumuito aquele pavio.
Como marido e mulher, viveram por vin-te e dois anos.
Até hoje.Música cessa. Poeira baixa. Homem deita-
do, mulher a seu lado.Velhinhas entoam incelenças.
CONTADOR(A)Morto, ainda vestido para o trabalho, ele dor-mia sob a mesa da sala. Uns candeeiros velavamo corpo, resguardando sua imagem.
As vizinhas foram adentrando. Vinhamfazer quarto pro morto. Já cantavam em suascasas e traziam seus cantos no suspiro da noite.
Todas empregavam as melhores palavras de umparco vocabulário para defini-lo.
VOZES“Da mais alta estima”, “Pareia de Anjo”, “Ele-gante como Jesus”, “Íntegro como uma rocha”.
CONTADOR(A)Era o mais elaborado do seu idioma. O restoera oração e cântico.
Uma vizinha sentenciou triste:
VE1Ele desapareceu a ela.
CONTADOR(A)Eram um casal benquisto. Discreto. Pouco fes-tivos. Trabalhadores. Sem filhos. Nem seus no-mes eram conhecidos. Seu Zé, Dona Maria,chamavam eles. (Pausa)
Quieta. A noite parecia uma pergunta di-fícil. Armava um bote/arataca.
(Pausa)A sala povoou de mosquito e de mulher.
Nunca tão farta. Nem de um, nem de outro.Os homens explodiam seus sentimentos emrojões. Segredavam às estrelas saudades e esti-ma. Desenhavam lágrimas de luz no céu.
O padre estava a caminho para a extre-ma-unção. Amuada e com fome, a viúva remen-dava o terno puído para o enterro. O que deve-ria vesti-lo no casamento. Alguém lhe trouxeum pedaço de cuscuz com leite. Estacionouagulha e linha e comeu. Construiu uma figuratriste. Do nada, irrompeu numa careta grotescae chorou. É muito triste uma mulher comendoe chorando. Ainda mais viúva. Comeu até a úl-tima gota. Levantou-se e caminhou até Jesus.Beijou o quadro na altura do coração. A velaapagou-se, só se via a luz no coração de Cristo.Deus!! Jogaria terra sob o morto. Murmuran-do, pedia força para fazê-lo.
Um cortejo entornou na cama o corpo.Cabisbaixos, retiraram-se. O silêncio. Um silên-cio que esfriava o sangue e que parecia nuncamais ir embora.
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VE1Quer vesti-lo, fia?
VE2Ou quer que nóis ajude?
VIÚVANão. Pode trocá.
CONTADOR(A)Um minuto depois, deixou escapar...
VIÚVANunca que vi Etevaldo nu.
CONTADOR(A)Revelou. Como se nem ela mesma quisesse ou-vir aquela confissão.
VIÚVAFechava os olhos quando ele me machucava.
CONTADOR(A)À noite. No breu. Através do lençol. Desconhe-cia aquele corpo, mas amava-o. Confessou, roxade vergonha. E era a primeira vez que ela falavacom alguém mais que duas sentenças.
VIÚVASe for pra eu trocá, vou ter que apagar o cande-eiro. Aí vai dar uma trabalheira da gota serena.
CONTADOR(A)Pediu que ficassem. Virou de costas e instru-mentalizou-as com o terno. Recolhida. Comose houvesse alguma indecência em ver o maridonu. As velhinhas vestideira começaram a descas-cá-lo com técnica e indisfarçável contentamento.
VE2Quanta virtude, meu amor.VE1Mas quem viu já conhece...VE2...Quem nunca viu não sabe o que é.
VE 1 e 2“Veste esta mortalhaQuem mandô foi Deus;Quem mandô vestirFoi a mãe de Deus.
Amarre este cordãoQuem mandô foi Deus;Quem mandou marráFoi a mãe de Deus
Calça essa meiaQuem mandô foi Deus;Quem mandô vestirFoi a mãe de Deus
Calça esse sapatoQuem mandô foi Deus;Quem mandô calçáFoi a mãe de Deus
Bota no caixão (ou rede)Quem mandô foi Deus;Quem mandô Botá...
VE1 (interrompendo o canto)Oxente, cadê?.
CONTADOR(A)A viúva já tinha entregue o paletó.
VE1Maria de Deus, cadê a trouxa?
CONTADOR(A)Assustou-se a velha.
VE!Faz tempo que eu num vejo um, mas isso aquinão é peru.VE2Não se avexe não. Espie melhor. Procure direito.
CONTADOR(A)De costas, a viúva se perguntava ...
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VIÚVAQue trouxa?VE2Deve de tá escondido. Às vez tem que ajudarpro bichinho florescer.VE1Mulé, ou eu perdi a vista de vez ou a piroca deleé do tamanho de um cabelo de sapo.VE2Deixe eu lhe ajudar ...VE1Menina, cadê a bilola?VE2...a bilunga?VE1...a bimba?VE2....o ganso?VE1....a macaca?VE2....a peia?VE1...o maranhão?VE1...a manjuba?VE2....a macaxeira?VE1....a pomba?VE2....o pororó?VE1o quiri? Olhe ali.VE2Não, não tá.VE1Creio em Deus Pai todo Poderoso..VE2Olhe a teta.VE1Menino, isso parece uma quiricaVE2Creio em Deus Pai, mulher. É um tabaco.VE1É mulher. É mulher.
CONTADOR(A)Disse e saíram correndo casa afora.
AS VELHASO marido dela é fêmea!!
VIÚVAPosso me virar?
CONTADOR(A)Súbito, uma multidão fez fila na porta do quar-to. Uma mulher despida sob a cama e outra decostas olhando o retrato de Jesus.
A viúva não entendia nada. Não enten-dia a morte. Não entendia homem. Naquelemomento, só entendia a perda. Incrédulos, al-guns faziam o sinal da cruz, outros se pendura-vam na janela para procurar atentos pelo peru.Já havia quem tomasse partido dela.
VOZ1“Foi enganada a coitadinha. A sem-vergonhailudiu a bichinha.”
CONTADOR(A)Outros mais radicais:
VOZ2“Elas vieram foi fugida para sujar nosso lugarcom essa mundiça.”
CONTADOR(A)Facções se formavam e a notícia galopava.
Nisso, o padre chegou e foi direto cobriro defunto, ou melhor, a defunta. Expulsou atodos. Trancou-se mais ela. Ressuscitou um can-deeiro. Tomou coragem várias vezes para falaralgo. Ponderado, começou:
PADREMinha filha, você dormiu com uma mulher.
VIÚVANão, seu padre, eu dormi com Etevaldo. E nun-ca que gostei. Sabia que num devia.
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PADRECreio em Deus Pai.VIÚVAÉ por isso que o senhor tá brabo?PADRENão.VIÚVADormimo junto porque ele gostava. Mas ele mejurou casamento. Se o senhor quiser, eu me casocom ele morto mesmo. O vestido tá aqui guar-dado.PADRENão é ele, mocinha. É ela.VIÚVAÉ Etevaldo! Benza ele, benza.PADRENunca!VIÚVABenza, padre, ele é devoto de Santo Antônio.Temente a Deus. Queria até casar na Igreja.PADREVou rezar por você.VIÚVAPor mim, não, padre. Reze por ele. Ajude ele amorrer.PADRENão posso. Morreu em pecado escuro.VIÚVADê descanso a sua alma.PADRETenho que chamar o bispo na capital.VIÚVAAbençoe o sono dele.PADRENão posso! Todo mundo sabe que eu a vi semroupa.VIÚVA (chorando e corrigindo)Etevaldo...PADREEtevaldo. Eles sabem que eu sei que ele é mulé.Pelo menos se tivesse me chamado antes, nósteríamos feito de outro jeito. Ninguém tomariaconhecimento, minha filha. Já enterrei genteque nem você e ela... Etevaldo. Gente que mor-reu fazendo menos barulho.(Pausa) Você o ama?
VIÚVANum sei o que é isso não. Eu queria ir mais ele.PADREQue Deus lhe abençoe. (Abre a porta aos gritos)Herege! Herege!!
CONTADOR(A)Estatelada no chão, viu o padre sair da casa.Levantou-se a custo. A casa estava vazia agora.Escura. Agarrou-se ao candeeiro. Cobriu seumarido. Sem investigar-lhe a nudez. Incomo-dou-a estar só. Queria cantar para ouvir alguém.Não sabia se Jesus estava com ela ou não. TinhaDeus como uma certeza, mas às vezes achavaque Deus podia aparecer, tomar um café, enro-lar um fumo. Ficar mais íntimo. Gritos rodea-vam a casa.
VOZES“Belzebu!”.
CONTADOR(A)O delegado apeou na porta dela.
VOZES“Filhas do Demo!”
CONTADOR (A)Disparou uns três tiros pro alto para tanger ogado revolto.
VOZES“Mulesta da peste!”
CONTADOR (A)Mugiram contrafeitos, mas desmilinguiram-separa dentro das moitas. Entrou chutando a por-ta. Arrastava-se e trazia uma nuvem de muriço-ca/mosquito em torno do seu cheiro. Sentou-sede frente para a viúva. Nem olhou o defunto.
DELEGADOA senhora provocou uma desordem arretada nosarredores. Sabe quem eu sou? Num me conhe-ce, não? Pois eu sou o delegado. Vim a mandodo Coronel Heráclito, conhece? Conhece, sim.
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Trabalhou nas terra dele. Foi ele quem lhe deusustento.
Disseram que a senhora nunca que pegoubucho.
Uns até desconfiavam, mas acharam quea gala de seu marido era rala. Coronel num gos-tou de saber de sua historinha, não.
Mandou vim ver de perto essa sem-vergonhice. A senhora deve de saber que ama-nhã findando o enterro, a senhora vai presa. Issoquer dizer depois que a senhora arranjar um lu-gar para enterrar seu macho.
(ri ).Ele mandou dizer que nas terra dele não
se enterra. Vocês são que nem as quenga, as ra-pariga, as catráias, as sapuringa, que são tudoenterrada longe, no eito, nas brenha esquecida.
Nas terra dele só esterco bom. E vocês fe-dem a adubo estragado.
Vai ter que arranjar outro chão para enfi-ar esse corpo. Se enterro nesta terra, erva dani-nha nasce.
(olhando o caixão)Menino, não é que ele é mulher mesmo?
Mas é feio feito um macho. E tu ainda tratoubem dessa mulé. Tá gorda que nem filho de la-drão quando o pai tá solto. E tu num sabia quecoronel num gosta dessa esfregação de fêmea comfêmea. Sua saboeira safada. Amanhã, na cadeia,a senhora vai conhecer macho para nunca maisse confundir.
E para gente num se confundir, para todomundo saber qual é a tua raça, coronel quer lhemarcar a cara, como deve se ser feito com todasas vacas do rebanho. (Sai o delegado)
CONTADOR(A)Ela se sentia um prato de comida estragada.Uma carniça. Um penico. Um escarro. Umadoença. Um pus. Um cancro. Uma gota. Suja,suja, imunda. E não entendia porque. Não ti-nha cabeça para entendimentos.
Se pudesse falaria no ouvido de Deus.Cantou sua fé com devoção sincera, o que dáno mesmo. Olhe, Música e Deus ninguém vê.
Fé ninguém toca, nem se mede. Mas juro: acon-tecia livre cada centímetro de Jesus, na voz dela.
Tempo de seu canto. Cena parada. Conta-dor a acompanha com instrumento.
CONTADOR(A)Lembrou da dor e do alívio. A única imagemera a da mãe. Que fechava feridas com um so-pro e ervas. Lembrou quando sangrou de chicoda primeira vez. Ela gritava: “Mãe, tô vazandosangue”. E a mãe dizia: “É assim mesmo, fia.Crescer dói, de vez em quando”. Era a imagemde ninho que precisava para dar-lhe forças. Eparecia ter o rosto da mãe desenhado na paredeinterna da pálpebra. Sua mãe cuidando da prole.Morrendo de fome, mas alimentando a cria.Sabia que ela cortaria uma mão se lhes faltassecarne pra comer. Amor? o que seria isso? Dore alívio? Quando dava de chover, sua mãe pu-nha os filhos tudo na chuva para aguar. Paracrescer rápido. E só saíam de lá quando a chuvaminguasse.
Queria estar com a mãe, queria ter ido nolugar dela quando morreu. Assim como troca-ria de lugar com Etevaldo agora.
(Pausa)Foi só delegado sair latindo pelo caatin-
ga, e os gritos voltaram. Um grupo velou a ma-drugada inteira com impropérios, xingamentos,escárnios, maldições, pragas. Criaram um ódio.
Desenterraram a pior parte deles.Desenterraram as piores palavras da língua.Nem bem a madrugada se punha, tran-
caram portas e janelas da casa delas. Enver-gonhavam-se delas. Queriam apagá-las de suasmemórias. Cercaram a casa. Enterravam-nasvivas.
Não se sabe quem foi, quantos eram.Nem quem acendeu o primeiro fósforo. Come-çaram a incendiar o casebre.
Mal sabiam que, dentro, a viúva agrade-cia a benção de morrer com Etevaldo.
Temia muito mais viver sem ele, por cer-to. Tinha cantado bonito, Deus tinha lhe ouvi-do afinal. O fogo já empenava as paredes.
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Mesmo assim, a viúva acendeu o cande-eiro. Viu-se por inteiro pela primeira vez. Des-cobriu então o que era mulher. Pôs-se ao ladode Etevaldo.
Beijou-o. Na boca. O que nunca tinhafeito. Abriu-lhe os olhos no meio do beijo, en-quanto o fogo ganhava a casa inteira.
(Pausa)O dia amanhecia e as fagulhas resistiram
queimando por dias. Cinzas. Silêncio. As fagu-lhas, em suspenso, como um eco, pairavam, so-bre lavouras, varais e gerações.
F IMF IMF IMF IMF IM
ApêndiceApêndiceApêndiceApêndiceApêndice
CONTADOR
“Uma lavadeira,um beija-fulô.
Lavava os paninhosDe Nosso Sinhô.
Quanto mais lavavaMais sangue corria,
Nossa senhora choravaE o judeu sorria...”
Cruel, a natureza éDá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedidaDá o amor na desmedida.
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