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nr, 6, sep. 2004 ISSN 1139-7365
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Ins Maria Andrade Marques
A Sereia, a Varina e o Governador de Macau INTERVENES ARTSTICAS E ESPAO PBLICO NOS BAIRROS DE CASAS
ECONMICAS DE LISBOA
Setembro de 2003
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BREVE INTRODUO O presente trabalho consiste no estudo de um programa de habitao social e dos seus
bairros, quanto natureza dos espaos pblicos e das intervenes artsticas que neles se
implantaram. O programa de habitao social em questo o Programa de Casas Econmicas
implementado em 1933, no quadro da consolidao do Estado Novo portugus.
Neste trabalho estudam-se os primeiros quinze anos da vida do programa, e os bairros ento
construdos, averiguando qual o tipo de espao pblico edificado e rastreando-se obras de arte
pblica nele existentes. O espao pblico nas tipologias presentes nestes bairros (rua,
alameda, praa), entendido como objecto de um planeamento intencional e estudado
especificamente como suporte das intervenes artsticas.
Apesar da presente investigao se debruar sobre a relao entre espao pblico e obras de
arte, a necessidade de um entendimento mais aprofundado do fenmeno em estudo implicou
priveligiar uma anlise ampla no que toca s circunstncias sociais e polticas que
enquadraram o surgimento do Programa de Casas Econmicas, bem como as polticas
urbanas na cidade de Lisboa, determinantes na construo dos vrios bairros.
Assim, so objectivos do presente trabalho: a compreenso dos condicionalismos
demogrficos que supostamente motivaram a implementao do Programa de Casas
Econmicas; o estudo aprofundado deste programa quanto sua evoluo e (in)eficcia na
resoluo da crise habitacional da poca; o entendimento das polticas urbanas e dos seus
tempos de actuao ao longo da vida do programa; o estudo do processo de construo dos
bairros de casas econmicas e das instituies nele intervenientes; o estudo das ideologias
que fundamentaram todo o processo e, naturalmente, o estudo dos seus espaos pblicos
existentes e das obras de arte neles implantadas.
Tomam-se como casos de estudo o Bairro do Alto da Serafina, o Bairro da Madre de Deus e o
Bairro da Encarnao, iniciados respectivamente em 1933, 1939 e 1940, analisando os seus
espaos pblicos e as intervenes artsticas que o povoam no momento presente, j que,
contrariamente ao processo de construo dos bairros que mais facilmente datvel, a
colocao de obras de arte nos espaos pblicos geralmente muito posterior construo do
bairro e ocorre esporadica e imprevisivelmente1.
feita ainda uma breve abordagem aos processos de apropriao simblica dos espaos dos
bairros por parte dos seus habitantes, nomeadamente nas fachadas das casas e nos jardins,
1 O espectro temporal da presente anlise estende-se assim desde o momento da implementao do Programa, em 1933, at aos nossos dias.
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que se entendeu serem de relevncia para o entendimento global do espao na sua dimenso
esttica e simblica.
METODOLOGIAS As metodologias usadas foram as metodologias Cer Polis, designadamente a vivncia directa e
observao do espao urbano, e o registo fotogrfico dos elementos em estudo, com vista
realizao de uma breve inventariao e construo de quadros espacio-temporais. A
recolha de informao verbal junto dos moradores dos bairros em estudo foi tambm usada.
Recorreu-se a metodologias tradicionais de investigao, como a pesquisa bibliogrfica de
fontes primrias (propaganda da poca e, principalmente, legislao) e secundrias (estudos
sobre habitao social) em bibliotecas e arquivos.
Uma das limitaes encontradas durante a realizao deste trabalho foi o encerramento
temporrio do Arquivo do Alto da Eira, onde se encontram os projectos e memrias descritivas
dos bairros em estudo.
SINOPSE DE CONTEDOS O primeiro captulo dedicado descrio do trabalho de inventrio realizado em equipa, no
mbito do desenvolvimento do Projecto Monere em Lisboa.
No segundo captulo estuda-se do ponto de vista poltico e social o Estado Novo portugus.
Este regime autoritrio enquadrado no contexto europeu, referindo-se algumas das suas
mais importantes linhas de aco, nomeadamente as polticas culturais e de obras pblicas.
No terceiro captulo, o subcaptulo 3.1 descreve o aumento dos nveis demogrficos da cidade
de Lisboa, e das suas reas limtrofes, relacionando-o, ainda que sumariamente, com fixao
das populaes na estrutura urbana.
No subcaptulo 3.2 pretende-se caracterizar a nova poltica urbana municipal, na cidade de
Lisboa, implementada pelo Estado Novo. Enunciam-se as mais importantes medidas tomadas
e refere-se como que estas contribuiram para o estabelecimento de uma poltica sistemtica
de habitao social, com o surgimento do Programa de Casas Econmicas de 1933.
O subcaptulo 3.3 dedicado ao esclarecimento dos moldes em que se props inicialmente e
se procurou levar a cabo o Programa de Casas Econmicas de 1933. Trata-se da viso inicial,
ideal e abstracta do programa, que se veria mais tarde contrariada por circunstncias sociais e
polticas.
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No subcaptulo 3.4 analisa-se a evoluo do programa sofrida at finais da dcada de 40, j
que, logo nos primeiros anos, se comea a verificar a insuficincia dos pressupostos iniciais
para colmatar as carncias de habitao, sendo criados, ao longo do tempo, dois novos
programas que lhe foram complementares. Dividiu-se este subcaptulo em trs partes, que
correspondem, aos momentos de viragem na evoluo do programa: e que tiveram incio em
1938; em 1943 e 1945.
O captulo 3.5 dedica-se ao estudo dos processos de construo dos bairros de casas
econmicas levando em conta a articulao entre os momentos de parcelamento, urbanizao
e edificao, que, na metotologia do Laboratrio de Urbanismo de Universidade Politcnica de
Barcelona, se considera responsvel pelo crescimento urbano da cidade. Refere-se
sinteticamente um modelo de edificao de bairros de casas econmicas como as excepes a
esse mesmo modelo.
No captulo 4 pretende-se abordar a questo dos espaos pblicos e das intervenes
artsticas em trs bairros de casas econmicas que se tomaram como casos de estudo. Estes
bairros so: o Bairro do Alto da Serafina iniciado em 1933, o Bairro da Madre de Deus iniciado
em 1939 e o Bairro da Encarnao iniciado em 1940.
No subcaptulo 4.1 faz-se uma descrio crtica da forma que adopta em planta o espao
pblico de cada um dos trs bairros em estudo e de alguns elementos que o povoam e um
comentrio comparativo final.
No subcaptulo 4.2 faz-se um breve inventrio descritivo das intervenes artsticas
encontradas nos trs bairros, e, novamente, um comentrio comparativo final.
No subcaptulo 4.3 fazem-se algumas consideraes sobre os processo de apropriao
simblica atravs de intervenes de carcter esttico e simblico nos espaos transitrios das
casas, espaos limite entre privado e pblico, feitas pelos prprios habitantes dos bairros.
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Justificao e limites do tema em estudo na presente investigao O perodo de realizao do inventrio e a intensa vivncia da cidade de Lisboa permitiu uma
importante tomada de conscincia relativamente ao espao pblico e s intervenes artsticas
que nele se encontram.
Por um lado, a experincia atenta dos vrios espaos pblicos permitiu observar como estes
influem na forma como as pessoas interagem, determinando as suas vivncias. Por outro, a
experincia da cidade possibilitou a apreenso das relaes existentes entre as intervenes
artsticas e os espaos pblicos que as alojam, e os processos institucionais que determinam a
sua escolha e implantao.
O acto de inventariar e relacionar a arte no espao da cidade revelou uma dimenso da
expresso artstica largamente descurada pelas disciplinas que tradicionalmente se dedicam
ao estudo do fenmeno artstico, como a Histria da Arte, e ao estudo do fenmeno urbano,
como a Histria do Urbanismo. A arte pblica, ao servio do poder vigente em cada momento,
funde-se na vida e nos espaos do quotidiano, nomeadamente nas reas residenciais.
A observao e vivncia da cidade despertou a curiosidade e o interesse por estas reas to
caractersticas, os bairros de habitao social. De uma forma geral, os bairros de habitao
social so imediatamente identificveis porque so espaos uniformizados e montonos, como
cenrios, pontuados, por vezes, por elementos escultricos.
Como se sabe, os programas de Habitao Social constituem casos especficos do mercado
habitacional e uma forma particular de fazer cidade. So programas geralmente controlados
pelos poderes pblicos, que visam dar resposta ao problema de habitao para os cidados
que no tm acesso aos meios normais de aquisio.
A construo dos bairros de Habitao Social resulta da procura de um compromisso entre
verbas despendidas e qualidade do espao edificado. Um projecto urbanstico oficial, dirigido a
um grupo social especfico, determina em grande medida, partida, todo o conjunto a edificar,
nomeadamente, a natureza dos seus espaos pblicos. Fica em aberto a colocao de obras
artsticas, situao que geralmente ocorre mais tarde.
Os valores estticos que orientam a concepo urbanstica e arquitectnica do bairro, e os
elementos artsticos e simblicos que pontuam o seu espao e quotidiano reflectem as
ideologias dos governos que os promovem. (Fig. 15,16,17)
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As polticas de habitao social em Lisboa afiguram-se como um enorme campo de estudo,
impossvel de abarcar no presente trabalho. Houve portanto a necessidade de estabelecer
critrios e de balizar o momento em anlise da histria da habitao social.
O presente estudo concerne especificamente os bairros construdos no mbito do Programa de
Casas Econmicas de 1933, no seu perodo inicial. Este foi o primeiro programa de habitao
social com uma aplicao sistemtica em Portugal O estudo que se leva a cabo sobre o
programa responde necessidade de entender a motivao, os pressupostos e os valores que
determinaram o seu espao pblico e as intervenes artsticas que neles se implantam.
O aprofundamento, ainda que breve, do tema revela que este campo de estudo - arte para
espaos pblicos de reas residenciais, e especificamente para bairros de habitao social
tem sido largamente negligenciado na investigao acadmica, pelo que creio poder contribuir
para o preenchimento desta lacuna terica.
A forma como me proponho desenvolver o tema est claramente influenciada pela abordagem
ampla das obras de arte usada na realizao do inventrio, visando uma leitura mais
abrangente e uma perspectiva interdisciplinar que considera factores histricos, urbansticos,
arquitectnicos e sociais.
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CONTEXTUALIZAO POLTICA E SOCIAL DO ESTADO NOVO
Portugal na Europa no incio do sculo XX e o surgimento dos regimes fascistas Portugal um pas perifrico no continente europeu. Nos anos 30 era um pas atrasado e
pobre, onde se estava em vias de estabelecer a ditadura de ndole fascista mais longa da
Europa.
O processo que conduziu instaurao deste regime autoritrio o Golpe Militar de 28 de
Maio de 1926, o estabelecimento de uma ditadura militar e a evoluo no sentido da sua
consolidao definitiva, consagrada com a Constituio de 1933- pode inserir-se na vaga de
reaces autoritrias, que despontavam em vrios pases europeus na mesma poca2.
Face ao estado de desgaste do sistema liberal, a opo por sistemas autoritrios tinha ganho
grande relevncia nos pases europeus mais perifricos, como Portugal, onde a economia era
frgil e o sistemas liberal ainda no se tinha consolidado para responder aos desafios da crise3.
Os defensores destes regimes recusavam todo o programa liberal: uma organizao poltica
assente na democracia, no sistema partidrio e parlamentar; rejeitavam um sistema econmico
assente no livre jogo das foras de mercado e opunham-se veementemente aos valores
ideolgicos do racionalismo e do positivismo que tinham orientado a burguesia optimista e
empreendedora do sculo XIX.
O perodo que sucedeu I Guerra Mundial e a Grande Depresso de 1929 favoreceram a
difuso rpida das ideologias fascistas ou fascizantes na Europa, enveredando portanto por
uma viso simultaneamente anti-liberal e anti-socialista do que deveria ser a nao. Os
movimentos fascistas caracterizavam-se por uma viso corporativista e totalitria, sujeitando os
interesses individuais e colectivos ao bem da nao, que era decidido e interpretado por um
chefe de Estado dotado de um poder quase absoluto de controlo e deciso.
O Estado Corporativo assentava teoricamente na recusa do indivduo isolado, e na valorizao
das instituies consideradas naturais, espontneas, na sociedade, onde o indivduo se devia
integrar. Estas instituies hierarquizavam-se face ao interesse da nao, sendo a famlia a
unidade mais pequena reconhecida pelo Estado. O topo desta hierarquia era ocupado pelo
Chefe de Estado4, que devia governar o pas segundo os interesses da nao.
As doutrinas fascistas acabaram por estabelecer-se como regimes de facto em vrios pases,
apresentando variaes de acordo com as especificidades de cada pas e com as vrias
alianas que se fizeram, matizando a doutrina inicial aos interesses de circunstncia e aos
grupos sociais a quem se procurava agradar.
2 Fernando Rosas em SERRO, Joel e A.H. De Oliveira Marques (dir.)(1990). Nova Histria de Portugal, vol XII, Fernando Rosas (coord.) (1992). Portugal e o Estado Novo (1930-1960), Editorial Presena, Lisboa, p 9 3 Fernando Rosas (1992), op.cit. p11 4 Em Portugal era ao Presidente do Conselho de Ministros a quem competia, na prtica, o governo da nao
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O fascismo em Portugal Em Portugal, pas pouco desenvolvido industrialmente, predominava um importante sector rural
e um florescente comrcio colonial
Seguindo um percurso semelhante ao de outros pases europeus tambm em Portugal se
assiste, aps um perodo de democracia parlamentar que tinha conduzido a uma situao de
crise econmica e de pobreza generalizada, ao estabelecimento de uma ditadura fascista.
Em 1926 d-se um golpe militar, liderado por Gomes da Costa. Este golpe militar no se tinha
ainda enquadrado numa doutrina ideolgica definida, respondendo antes a uma vontade de
ruptura com o governo anterior que era partilhada por vrias correntes polticas. Tratava-se de
uma fora heterognea, que agrupava vrias correntes polticas de orientaes vrias e que,
nos anos que se seguiram ao golpe de estado tentaram, cada uma delas por si, encaminhar o
futuro do pas.
Entre as vrias correntes que influiriam directa ou indirectamente no regime que se viria a
estabelecer devem destacar-se: a dos militares, republicanos conservadores; a da direita
fascista radical e a corrente em que se inseria Oliveira Salazar que tomaria mais tarde o
controlo do poder.
Os militares conservadores eram republicanos que viam no sistema democrtico e no
liberalismo econmico a melhor soluo para o futuro do pas, reconhecendo contudo as
incapacidades e limitaes da I Repblica e defendessem a necessidade de uma purga
ditatorial temporria para a extirpar dos males herdados da m gesto da primeira experincia
republicana.
Os adeptos da direita fascizante, entusiasmados com a ditadura de Benito Mussolini5,
advogavam a manuteno da ditadura militar como soluo duradoura, embora orientada no
sentido de um posterior regime autoritrio e corporativo.
A corrente em que se inseria Oliveira Salazar tambm se definia como um movimento de
recorte fascista, mas de feio conservadora e orientada por rigorosos princpios jurdicos e
valores morais de inspirao catlica.
Esta corrente visava a constitucionalizao do regime a breve trecho, manifestando um
verdadeiro horror desordem revolucionria e violncia desenfreada que seduzia os
movimentos fascistas radicais. Na prtica, como veremos, esta seria a corrente que levaria a
melhor, uma doutrina de compromisso, que incorporava as duas correntes rivais, buscando um
ponto de convergncia sem abdicar do essencial das suas premissas.
Enquanto desempenhava o cargo Ministro das Finanas, Salazar encetou o trabalho de
construo do corpo doutrinrio fundamental em que assentariam as grandes directrizes de
todo o programa poltico, econmico e constitucional do que viria a ser o Estado Novo.
A formao moral e jurdica de Salazar e dos seus apoiantes prximos e a poltica de alianas
com sectores rivais que se decide tomar foram alterando a ortodoxia fascista no que viria a ser
5 Fernando Rosas (1992), op.cit. p 88
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o Estado Novo portugus. Salazar leva avante a sua doutrina e acede ao cargo de Primeiro
Ministro em 1933 sendo Presidente da Repblica , scar Fragoso Carmona.
Com grande destreza semntica e retrica Salazar teve a habilidade de agregar no seio do seu
movimento elementos de vrias faces e de produzir, atravs de solues de compromisso
que no prejudicavam no essencial as suas convices, um corpo doutrinrio suficientemente
malevel que se manteria como o enunciado formal do Estado Novo durante muitos anos. Este
corpo doutrinrio apresentava grandes contradies internas inclusivamente no que respeita a
valores-chave do fascismo e do corporativismo6.
Em Portugal as elites detentoras do poder econmico no tardaram em apoiar esta doutrina em
que um Estado Forte, regulador e protector da produo nacional se regia em simultneo pela
moral e pela ordem afins aos seu gosto conservador.
Os anos 30 foram assim, em Portugal, uma dcada de relativa estabilidade. Com o lema
Ressurgimento e a promessa de renascimento da nao portuguesa, apelando a um forte
nacionalismo de carcter mstico quanto origem e misso civilizadora de Portugal no
mundo, o governo props-se cumprir um ambicioso programa em todas as reas da sociedade
que, como veremos, se estendia educao, cultura em geral e s obras pblicas.
Os anos 40 aproximam-se. Enquanto a Europa se convulsiona e inicia a 2 Guerra Mundial,
Portugal, na posio ambgua e conciliadora que Salazar to sabiamente encontrou, manteria,
aps hesitaes e algumas atitudes contraditrias, a neutralidade. Tambm a sua situao
perifrica na Europa contribuiu para o poupar devastao da guerra, embora os anos 40
tivessem trazido, necessariamente os efeitos da crise.
Mais uma vez no jogo de semntica e equilbrio de interesses jogava Salazar o futuro da
nao, procurando e encontrando solues de compromisso. No entanto, a velocidade que se
havia imprimido na primeira dcada de programas de reconstruo abrandaria
necessariamente nos anos 40, numa Europa em guerra.
6 Por exemplo, a Constituio de 1933 prev teoricamente a eleio da Assembleia da Repblica por sufrgio directo e universal nos moldes parlamentaristas da to odiada democracia e no pelo sufrgio orgnico apregoado pelo fascismo...
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O Ressurgimento Nacional O esprito de demarcao do regime recm constitudo em relao ao que havia sido feito nos
tempos da I Repblica bem explcito nos discursos da poca e no lema que acompanha os
primeiros anos de vigncia do Estado Novo: o Ressurgimento da Nao .
Este Ressurgimento, encarado como a tarefa titnica, mas necessria, e de que o governo se
incumbia, visava devolver ao pas a glria de outros tempos e aos portugueses o orgulho de
serem portugueses. O Ressurgimento da Nao traduziu-se num amplo programa de aco
que deveria abranger todos os sectores da vida nacional.
As intervenes planeadas e levadas a cabo nestes anos inserem-se numa nova imagem,
renovada e apelativa de Portugal. A par de medidas de peso na educao e na cultura,
tambm o pas enquanto territrio fsico foi alvo de interveno prioritria. Desenvolveram-se
esforos no sentido de dar s cidades e aos campos um aspecto digno e expurgado, tanto
quanto possvel, de sinais de desleixo e incria, em consonncia com a ideia de um Estado
simultneamente tradicionalista e moderno, e com preocupaes sociais.
Respondendo em parte a preocupaes de ordem social, e em parte a preocupaes de ordem
esttica, o governo encetou uma srie de medidas no sentido de intervir autoritariamente na
produo de habitao no seio das cidades mais importantes, com especial destaque para a
capital, Lisboa, eliminando os bairros da lata que nela ento proliferavam em virtude dos
grandes aumentos demogrficos devido chegada de populaes verificadas nas dcadas
antecedentes e que no paravam de ocorrer.
A interveno estatal na habitao traduzia-se na construo de bairros de habitao social
com o contributo, como veremos, no s do Estado, mas tambm de outras instituies como
as cmaras municipais das vrias cidades. De um ponto de vista mais amplo, escala
nacional, o objectivo era tambm o de controlar a deslocao de populaes, fixando-as nos
territrios e diminuindo a atraco que a capital exercia nas populaes de mais baixos
recursos. Fundia-se assim um programa cultural e de melhoramento da imagem do pas, num
programa social.
O ressurgimento era assim uma operao altamente esteticizada forjando uma nova imagem
nacional, criada com base em elementos precedentes da cultura e da tradio e promovida nas
realizaes posteriores.
As vrias instituies ento criadas no seio do Estado dentro do amplo programa de
reconstruo esttica e social da nao estavam interligadas e partilhavam responsabilidades e
incumbncias no quadro de um regime autoritrio que decidia globalmente aproveitando ao
milmetro os recursos disponveis, sujeitando-os em benefcio do suposto interesse nacional.
neste sentido que deve entender-se a poltica urbana e a poltica cultural, artstica e de
propaganda do regime naqueles anos, constitudas com todos os mecanismos legais e
institucionais que ento se criaram. tambm neste sentido que se pode explicar a marca que
impuseram definitivamente no territrio e no imaginrio dos portugueses, at aos nossos dias
em todas as cidades, vilas e aldeias, e em particular em Lisboa.
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A capital portuguesa devia representar ento, naquele regime totalitrio e colonialista, a cabea
do pas e do imprio.
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O PROBLEMA DA HABITAO CRESCIMENTO DEMOGRFICO E FIXAO DA POPULAO NA CIDADE DE LISBOA NAS DCADAS DE 30 E 40
O primeiro recenseamento de habitantes da cidade de Lisboa foi feito em 1864. Os
recenseamentos que lhe seguiram apontam para um crescimento demogrfico permanente da
cidade, embora nem sempre constante, com grandes aumentos da populao nos anos que
antecederam 1890 (o mais significativo, com um aumento de 32%), 1911, 1930 e 19407.
O aumento de populao verificado nos anos que antecederam o receseamento de 1890
corresponde significativamente a transformaes urbansticas importantes na cidade8,
7 FERREIRA, Vtor Matias (1987). A Cidade de Lisboa: de Capital do Imprio a Centro da Metrpole, col. Universidade Moderna, n 81, Publicaes Dom Quixote, Lisboa, p 90
Fig.18 Grfico comparado do crescimento demogrfico em Portugal e em Lisboa, de 1864 a 1950
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permitindo a expanso da cidade para Norte e contemporneo do surgimento e banalizao
dos primeiros transportes pblicos, os americanos.
As novas reas disponibilizadas pela expanso urbana a Norte, com o surgimento de novos
bairros e a vulgarizao dos meios de transporte pblicos criaram condies para uma grande
concentao de populao em Lisboa.
De facto, tal como refere Vtor Matias Ferreira9, de um modo geral, o crescimento demogrfico
da capital acompanhou paralelamente o aumento mdio da populao na nvel nacional, nas
suas quebras e nos seus picos mximos, embora seja sempre superior. (Fig18)
Tal como se verifica noutras cidades europeias sensivelmente na mesma altura, este aumento
populacional no resulta do aumento de nveis de natalidade dos naturais lisboetas, mas sim
das sucessivas vagas de migrantes internos.
O crescimento demogrfico de Lisboa um crescimento induzido pela chegada destas
populaes, grupos de pessoas que se deslocam geralmente do campo para a cidade em
busca de melhores condies de vida. Esta movimentao corresponde ideia generalizada
que se tem das grandes cidades como o local onde se se concentram as melhores
oportunidades e que a se obtm melhores ordenados. So, portanto os migrantes internos que
se vm instalar dentro dos limites administrativos da cidade os responsveis pelo grande
aumento populacional da cidade de Lisboa e no os saldos fisiolgicos da populao natural.
Tal como Vtor Matias Ferreira esclarece, no perodo compreendido entre 1890 e 1940 verifica-se uma predominncia da fixao destas populaes, no no centro histrico da cidade, nem
8 Nomeadamente a destruio do Passeio Pblico e a construo da Avenida da Liberdade. 9 FERREIRA, Vtor Matias (1987), op.cit., p 90
Fig. 19 Evoluo da Populao Residente no Concelho-1864 a 2001
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nos seus bairros mais antigos, mas sim nas freguesias perifricas, principalmente ao longo dos
eixos de expanso criados em finais do sculo XIX10.
Esta concentrao de populaes, ocupando sucessivamente o espao pr-existente da cidade
implicou, como natural, em algumas freguesias, uma mudana de usos do solo no caso de
espaos que ainda nem sequer estavam urbanizados e que passam a sofrer uma ocupao
intensiva de carcter residencial11 ou uma intensificao desses mesmos usos, quando a sua
caracterstica dominante j era a de serem espaos residenciais.
O aumento demogrfico e a sua fixao vai ocorrer, cada vez mais, no no centro, mas nas
reas limtrofes, num movimento centrfugo, primeiramente dentro dos limites administrativos
da cidade, depois, a partir (do final) da dcada de 40, naquilo que Vtor Matias Ferreira12
designa por rea de aglomerao da cidade.
A partir de 1940 inicia-se assim um processo inverso no que toca ao aumento demogrfico da
cidade. A populao residente dentro dos limites administrativos da cidade comea a diminuir,
em benefcio dos seus concelhos limtrofes, que passam a absorver os novos habitantes.
A importncia dos concelhos limtrofes da cidade de Lisboa Deve ser referido que em muitos destes concelhos se tinham tambm estabelecido, tal como
em Lisboa, desde finais do sculo XIX significativas vagas de migrantes internos originrios de
meios rurais, que almejavam viver na cidade, mas que acabavam por se fixar nestes territrios
devido existncia de desenvolvimento industrial e fbricas que facultavam postos de
trabalho13. Outros concelhos acabavam por ser tambm mais atractivos para outros grupos
sociais, porque ofereciam j desde finais sec. XIX cmodos e rpidos meios de transporte para
a capital como a linha de comboio14
O crescimento populacional mdio desta rea de aglomerao mantm-se assim proporcional
ao da cidade de Lisboa at finais da dcada de 4015 tendo sofrido, tal como todo o pas, a
importante quebra populacional, na dcada de 10, pelos efeitos de instabilidade que se
seguiram implantao da Repblica, pela morte de muitos combatentes da I Grande Guerra,
pela trgica epidemia de pneumnica que nos ltimos anos desta poca atingiu o pas com
grandes ndices de mortalidade.
Lisboa, pela sua fora de atraco induzia o crescimento demogrfico da sua rea envolvente
conhecendo ambas, assim, o estabelecimento em paralelo destas vagas de migrantes e um
aumento populacional em grande escala nos anos que medeiam entre 1890 e 1940. Assiste-se
a uma progressiva densificao populacional destes territrios.
10 Como a Avenida Almirante Reis e a Avenida da Repblica/Avenidas Novas. FERREIRA, Vtor Matias (1987). op.cit, p 95 11 Como o caso da freguesia de S.Sebastio da Pedreira, FERREIRA, Vtor Matias (1987), op.cit. p 98 12 FERREIRA, Vtor Matias (1987), op.cit., p 89 13 Como o caso da Barreiro 14 Como o caso do eixo Oeiras- Estoril- Cascais, onde se tinha inaugurado o comboio em 1889, FERREIRA, Vtor Matias (1987), op.cit.,102 15 FERREIRA, Vtor Matias (1987), op.cit., p 105
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A partir da dcada de 30 inicia-se em Lisboa um processo progressivo no sentido de comear a
restringir a fixao destas populaes dentro dos limites administrativos da cidade, remetendo-
se gradualmente, para a sua periferia16 . Embora a populao residente na rea de
aglomerao de Lisboa e at dentro dos limites administrativos do seu concelho continue a
crescer (Fig.19), a populao da cidade de Lisboa propriamente dita comea a diminuir a partir
da dcada de 40 (Fig.20).
Papel fundamental neste processo de desvio de populaes, ainda que direccionando-se a
grupos sociais especficos, para as periferias da cidade, desempenham as propostas de
planeamento e reordenamento urbano dos anos 30/40 da cidade de Lisboa17.
16 FERREIRA, Vtor Matias (1987), op.cit., p 108 17 FERREIRA, Vtor Matias (1987), op.cit., p 102
Fig.20 Grfico comparado da variao do crescimento demogrfico em Lisboa, e na sua rea de aglomerao, de 1900 a 1950
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POLTICA URBANA E O SURGIMENTO DE UMA POLTICA DE HABITAO SOCIAL.
A poltica urbana municipal dos primeiros anos do Estado Novo. De 1933 a 1938. O perodo de implantao e consolidao do Estado Novo, durante os primeiros anos da
dcada de 30 implicou tambm a implementao de uma poltica urbana em ruptura com o que
se praticava anteriormente. Esta nova poltica visava resolver os muitos problemas a nvel
urbano do pas, em geral, e da cidade, em particular que advinham da descoordenao ou da
descria dos regimes anteriores.
A nova poltica urbana instaurou-se mediante uma srie de procedimentos, como a criao de
novas instituies, o aprovar de novos diplomas legais e programas que tinham em vista o
estabelecimento definitivo de uma forma intervencionista de actuar no sentido de reconstruir o
pas, dotando-o das infra-estruturas necessrias para a sua modernizao.
Novas medidas fundamentais Por um lado, a implementao dos Programas de Melhoramentos Urbanos, Rurais, de gua e
de Saneamento, que iriam permitir a realizao de muitas obras em todo o pas18. Por outro, a
criao no seio do Ministrio das Obras Pblicas do Comissariado do Desemprego, que iria
proporcionar financiamento para as obras que viriam a ser executadas.
A importncia dos quatro programas, referidos em primeiro lugar, principalmente a do
Programa de Melhoramentos Urbanos, residia no facto de que estabeleciam os moldes em que
iria a assentar a colaborao tcnica e de financiamento, entre o Estado (atravs do Ministrio
das Obras Pblicas) e as autarquias no que toca a intervenes vrias a fazer nas cidades e
no campo, mas que em Lisboa, como veremos, assumiu grande significado.
No Ministrio das Obras Pblicas, tal como se referiu anteriormente, criado o Comissariado
do Desemprego, que geria o Fundo do Desemprego e que facultava os meios financeiros para
a realizao das obras destes programas19.
implementado o Programa de Casas Econmicas, em 24 de Setembro de 1932, com o
Decreto Lei n 23052, dando-se incio a uma poltica sistemtica de habitao social. Em 1934
promulga-se o Decreto Lei n23860, de 16/5, considerando as casas econmicas construdas
ao abrigo do Decreto Lei n23052, como melhoramentos urbanos. Este ajuste legal iria
permitir CML aplicar expropriaes sumrias, fazendo uso de legislao anterior20, bem como
obter a comparticipaes do Estado e do Fundo do Desemprego.
18 SILVA, Carlos Nunes (1994). Poltica Urbana em Lisboa, 1926-1974, col. Cidade de Lisboa, Livros Horizonte, Lisboa., p.100. Melhoramentos Rurais: Decreto-lei n 19502, de 20/3/1931, Melhoramentos Urbanos: Decreto-lei n 21697, de 19/9/1932 19 O distrito de Lisboa contaria com 20,3% das comparticipaes deste comissariado nos anos que medearam entre 1932 e 1947, que foram utilizados em diversas obras de urbanizao. SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 100 20 Decreto Lei n21697, de 19/9/1932 e Decreto Lei n25502, de 20/3/1931, que simplificavam processo de expropriao, Nunes Silva, Poltica Urbana em Lisboa 1926-1974, p 34
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A importncia de Duarte Pacheco enquanto Ministro das Obras Pblicas Duarte Pacheco foi uma figura central nesta nova poltica emergente, ocupando, durante os
primeiros anos do regime, o cargo de Ministro das Obras Pblicas. Sob a sua tutela
promoveram-se as medidas fundamentais que marcaram toda a actuao do regime em
matria de obras pblicas nestes primeiros anos e que se revelaram decisivas para o
estabelecimento da nova poltica urbana 21.
Alm da referida criao do Comissariado do Desemprego, outras linhas orientadoras foram o
estabelecimento de um regime legal de expropriaes que facilitava a aquisio dos terrenos
urbanos, estabelecida com a promulgao do Decreto Lei n 28797, a realizao de obras
pblicas de grande vulto22 e o desenvolvimento pioneiro de diversos trabalhos de planeamento
e urbanismo.
A realizao sistemtica de trabalhos de planeamento, que culminaria na realizao de
grandes Planos, como o Plano Geral de Urbanizao e Expanso de Lisboa e, mais tarde o
Plano Director de Lisboa, teve o seu momento inicial em 1932, quando se comeou a elaborar
um relatrio sobre problemas e necessidades da cidade, a nvel urbanstico, tarefa ento
confiada ao chefe da Repartio de Engenharia da Cmara Municipal de Lisboa23. Os
obstculos ao desenvolvimento deste trabalho que se pretendia exaustivo, eram vrios,
nomeadamente a inexistncia de uma planta actualizada da cidade naquele momento24.
O interesse colocado pelo Estado Novo no urbanismo, a importncia concedida a estes
estudos urbansticos e o reconhecimento da sua extrema necessidade revelado numa srie
de conferncias sobre problemas de urbanizao levadas a cabo em 1934. Tambm um
Estudo do Plano Geral de Melhoramentos da Cidade de Lisboa foi por esta altura elaborado
pelo Grupo de Amigos de Lisboa.
Os primeiros planos de urbanizao surgidos ento afirmaram-se como verdadeiros projectos
urbansticos que visavam a interveno global do Estado e da Cmara Municipal, quer no
processo de obteno e disponibilizao dos terrenos, quer nos processos de urbanizao.
Estes planos afastavam-se do modelo anterior (e, como veremos, no modelo subsequente)
baseado na concesso de licenas de obras a privados de acordo com a sua conformidade
com as disposies nele previstas25. Estes planos estavam em sintonia com a ideia de
coordenao de esforos e centralizao do poder acalentado pelo regime.
21 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit,, p 12 22 ibidem 23 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit,, p 13 24 ibidem 25 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 14
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De 1938 e 1943 Os anos ureos da nova poltica urbana e a importncia redobrada de Duarte Pacheco. O ano de 1938 constitui uma data chave na histria da poltica urbana da cidade de Lisboa,
pela concomitncia de uma srie de acontecimentos importantes: o empossamento de Duarte
Pacheco no cargo de Presidente da Cmara Municipal de Lisboa, cargo que acumulava com o
de Ministro das Obras Pblicas; a implementao da nova poltica municipal de urbanizao e
o incio do Regime dos Centenrios; e a contratao de tienne de Grer, para o cargo de
Urbanista-Conselheiro da Cmara Municipal de Lisboa 26.
O primeiro acontecimento referido trouxe um enorme impulso poltica urbana da Cmara
Municipal de Lisboa. Duarte Pacheco foi a figura-chave que soube promover e dar continuidade
aos projectos j existentes nessa instituio, em benefcio da cidade.
O facto de ser simultaneamente Ministro das Obras Pblicas permitia-lhe uma grande margem
de manobra para fazer transferncias de verbas do referido ministrio para a Cmara
Municipal, para a realizao das vrias intervenes que levou a cabo.
Segundo Nunes Silva27 o seu principal contributo foi esse poder de canalizao de verbas que
possibilitou a realizao de muitas intervenes. O mito que se criou em torno desta figura, e
que assenta na sua enorme capacidade de concretizao durante os anos em que acumulou
os dois cargos, justifica-se mais por esta maleabilidade e margem de manobra, que pela
novidade das concretizaes, que advinham ou de projectos anteriores existentes na Cmara,
ou de propostas feitas por tcnicos estrangeiros que para ela trabalharam.
Nova poltica de urbanizao camarria e o Regime dos Centenrios O segundo acontecimento importante referido acima foi a implementao de uma nova poltica
de exclusividade camarria dos trabalhos de urbanizao. Esta poltica s foi possvel aps a
simplificao dos processos de expropriao prevista no Decreto Lei n 28797, promulgado a 1
de Julho de 1938.
Esta nova modalidade de aco, e a referida coordenao entre a Cmara Municipal de Lisboa
e o Ministrio das Obras Pblicas, protagonizada por Duarte Pacheco permitiu por em prtica
um conjunto extremamente ambicioso de realizaes, que marcou indelevelmente a cidade de
Lisboa.
No discurso da Tomada de Posse de Duarte Pacheco como Presidente da Cmara Municipal
de Lisboa, foram proferidas, desde logo, as seguintes palavras28:
No domnio das grandes realizaes e da construo de edificaes citadinas, a Cmara deve trabalhar em sujeio a um Plano Geral de Urbanizao e Expanso, deve chamar a si tudo o que represente a execuo de obras de urbanizao e h-se promover o embelezamento das edificaes existentes e
26 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 14, 15 27 ibidem 28 Citado em, SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 102
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impor rigorosa fiscalizao das novas, em defesa do aspecto arquitectural da cidade.
J no discurso de tomada de posse se definiram as linhas do que em breve viria a ser o
Regime dos Centenrios. Este regime especial estabeleceu-se, no que toca a expropriaes,
pela promulgao do Decreto Lei n 28797, de 1 de Julho de 1938, e iria perdurar at 1948,
ano da promulgao da Lei n2030.
Esta legislao de 1938, consistiu numa simplificao do processo de expropriaes, e
perduraria portanto cerca de dez anos,mau grado os interesses da propriedade fundiria. Ao
longo desses anos a Cmara Municipal de Lisboa expropriou mais de um tero da superfcie da
cidade29.
A exclusividade dos trabalhos de urbanizao sob alada da Cmara Municipal de Lisboa,
outra vertente do Regime dos Centenrios, implicou grandes meios de financiamento e
reorganizaes institucionais de fundo. Estas permitiriam, por exemplo, por em prtica a
construo de variados bairros de casas econmicas e de casas desmontveis, novo programa
entretanto surgido.
Durante o perodo de vigncia do Regime dos Centenrios, continuou a conceder-se grande
importancia aos estudos de urbanizao. Na inexistncia de um plano geral j realizado,
desenvolviam-se intensamente trabalhos de planeamento, definindo-se as linhas de orientao
mais importantes. Estas orientaes eram seguidas pelas intervenes a realizar, concedendo-
se Cmara Municipal de Lisboa, a entidade a quem competia exclusivamente, como
acabmos de referir, a realizao dos trabalhos de urbanizao, os meios necessrios ao seu
desempenho.
O Regime dos Centenrios tinha, tal como o nome denuncia, por objectivo mais imediato, a
realizao dos melhoramentos pblicos para a realizao das Comemoraes do Duplo
Centenrio da Fundao da Nacionalidade e da Restaurao da Independncia, a realizar em
1940, mas cujos preparativos se iniciaram em 1938. A manifestao mais espectacular destas
comemoraes foi a realizao da Exposio do Mundo Portugus, que implicou um amplo
programa de restruturao da Praa do Imprio, que acolheu o evento, e que se fez
acompanhar de outras intervenes de grande escala, nomeadamente, o surto de construo
de bairros de casas econmicas para limpar a cidade dos bairros de barracas.
tienne de Grer, o PGUEL e o futuro PDL O terceiro acontecimento, a vinda de tienne de Grer, convidado por Duarte Pacheco para
ocupar o cargo de Urbanista-Conselheiro da Cmara Municipal de Lisboa, viria a ter uma
enorme influncia no desenvolvimento posterior da cidade e reflecte novamente a urgncia de
estudos de planeamento e a importncia que o regime lhes concedia.
29 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 41
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O trabalho que De Grer desenvolveu, em conjunto com os tcnicos municipais, constituu a
base do que viria a ser muito depois, o Plano Director da Cidade de Lisboa. Durante os
primeiros anos de realizao, este plano de grande alcance designou-se PGUEL - Plano Geral
de Urbanizao e Expanso de Lisboa30. Este plano implicou a realizao de estudos paralelos
a vrios nveis, bem como exaustivos levantamentos geogrficos, geolgicos, histricos, etc.
cuja realizao ficou entregue ao engenheiro civil Antnio Emdio Abrantes 31.
A realizao do PGUEL - Plano Geral de Urbanizao e Expanso de Lisboa, iniciada em
1938, pela mo de tienne de Grer foi demorada, pela falta de tcnicos especializados32, e
pela dimenso e complexidade da empresa, numa cidade que tinha crescido de forma catica
e sem outros estudos semelhantes que tivessem antecedido o que agora se pretendia levar por
diante.
O PGUEL - Plano Geral de Urbanizao e Expanso de Lisboa previa, entre outras coisas:
uma reaproximao da cidade em relao ao rio Tejo -j que o seu desenvolvimento
novecentista se tinha processado em direco a Norte; a coordenao das realizaes
municipais quanto a trabalhos de urbanizao, concentrando-os exclusivamente na
dependncia da Cmara Municipal de Lisboa, e impedindo a interveno de privados que at
ento tinha sido a soluo mais corrente, por falta de verbas no municpio-; bem como a
rejeio de um desenvolvimento sempre feito custa de solues de emergncia.
Este programa definiu as linhas de orientao no desenvolvimento da cidade, a que obedeciam
j as intervenes contemporneas da sua realizao. Assim, durante a realizao deste
programa iam sendo feitos no seio da Cmara Municipal de Lisboa vrios outros estudos de
pormenor ou de conjunto33 medida das necessidades relativamente s intervenes a
realizar.
No caso especfico da construo de bairros de habitao social, que se comeavam a
construir de forma sistemtica neste momento, havia o cuidado de escolher localizaes em
concordncia com as reas indicadas para o efeito, pelo PGUEL - Plano Geral de Urbanizao
e Expanso de Lisboa, para o que se realizavam seguidamente planos parcelares de
urbanizao. Estes planos de urbanizao eram feitos pelo Ministrio das Obras Pblicas em
colaborao com a Cmara Municipal de Lisboa34.
A partir de 1943. Em 1943 considerava-se j estarem preparadas as grandes linhas do PGUEL - Plano Geral de
Urbanizao e Expanso de Lisboa. Tambm estavam determinados os estudos de pormenor
complementares a realizar para a conveniente expanso da cidade. No entanto, a morte de
30Inicialmente tambm designado por Plano de Melhoramentos da Cidade 31 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 15 32 ibidem 33 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 16 34 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 16
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Duarte Pacheco e uma srie de alteraes sofridas na orientao camarria e estatal tinham
alterado as premissas dos primeiros anos de estudos e preparao do plano.
J no estava na ordem do dia a realizao de estudos urbanizao e de planeamento.
Rejeitou-se a realizao de novos estudos e planos parciais. Os proprietrios fundirios
pressionavam agora os decisores pblicos para o abandono das medidas autoritrias que
Duarte Pacheco tinha protagonizado e que no lhes era favorvel. Um dos primeiros resultados
foi a alterao definitiva do sistema de expropriaes do Regime dos Centenrios, que
vigorava desde 1938 implementada com a promulgao da Lei n 2018, de 24/7/1946 e com o
Decreto Lei n 35381, de 27/8/1946, que determinavam a retoma da fase judicial no processo
de expropriao.
Por outro lado, as dificuldades resultantes da crise que ento se vivia em consequncia da 2
Guerra Mundial obstaculizaram gradualmente o princpio de exclusividade camarria dos
processos de urbanizao to caro ao Regime dos Centenrios. Neste contexto, iniciou-se um
processo de liberalizao dos trabalhos de urbanizao35, incentivando a iniciativa privada a
participar, e controlando as suas intervenes atravs da concesso de licenciamentos,
mediante a sua conformidade com o plano. Deve ser referido que este plano j no
correspondia realidade.
A par de um menor rigor nos estudos de urbanizao e planeamento, aumentava a
necessidade de um controlo feito posteriori, baseado no referido licenciamento, ou no, das
propostas apresentadas. O PGUEL - Plano Geral de Urbanizao e Expanso de Lisboa no
seria aprovado. Nunes Silva avana com a justificao de que, se o tivesse sido, o PGUEL
dotaria de poderes demasiado amplos a Cmara Municipal de Lisboa, situao no desejada
pelo Governo36.
Em 1947, a Cmara Municipal de Lisboa volta a contratar tienne de Grer para a realizao
de um novo plano, em maior conformidade com a realidade vivida naquele momento. O
trabalho que tienne de Grer ento desenvolveu, baseou-se em grande parte no que tinha
sido definido pelo PGUEL, nomeadamente, no que dizia respeito rede viria, espaos verdes
e, significativamente, habitao social37.
No ano seguinte, 1948, este plano encontrava-se concludo e seria aprovado pela Cmara
Municipal de Lisboa, embora sem aprovao governamental. Este plano caracterizar-se-ia pelo
zonamento, dividindo o espao de acordo com os diferentes usos a albergar e estando as reas residenciais separadas quanto a nveis de rendimento38.
Todos os problemas inerentes da carncia habitacional eram encarados como algo que podia
ser resolvido pela interveno estatal, de modo paternalista39 prevendo a localizao dos
bairros de habitao social na proximidade das zonas industriais40.
35 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 16, 17 36 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 17 37 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 18 38 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 19 39 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 20
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O oramento de 48 veio anunciar um perodo de condicionamento econmico que leva apenas
a considerar a finalizao de bairros iniciados anteriormente, nenhum deles de casas
econmicas.
A promulgao da Lei n 2030, de 22/6/1948 abolia definitivamente o Regime dos
Centenrios. Esta lei previa alteraes a respeito de vrias questes relacionadas com a
habitao, nomeadamente a mudana na poltica de solos e no regime de expropriaes, mas
tambm em relao ao Programa de Casas de Renda Econmica. Surgia por esta altura um
outro programa de habitao social, o Programa de Casas de Renda Limitada e a possibilidade
de arrendamento
Nunes Silva conclui que transparece aqui uma nova estratgia estatal para solucionar o
problema da habitao, e que assentava na participao da iniciativa privada. O autor lana
inclusivamente a hiptese de que esta lei resultava da presso exercida pelos proprietrios
fundirios, promovendo a valorizao especulativa dos solos mais de acordo com os seus
interesses41.
40 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 19 41 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 51, 52
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O PROGRAMA DE CASAS ECONMICAS DE 1933
A intimidade da vida familiar reclama aconchego, pede isolamento, num palavra, a casa independente, a casa prpria, a nossa casa ... naturalmente mais econmica, mais estvel, mais bem constituda a famlia que se abriga sob o tecto prprio
Oliveira Salazar
O Programa de Casas Econmicas implementado em 1933 no era completamente novo
(Fig.21). As primeiras iniciativas de construo de bairros de casas unifamiliares para as
classes sociais com menos possibilidades econmicas tinham surgido na I Repblica, durante
a ditadura de Sidnio Pais. semelhana de outros pases europeus, nomeadamente da
Espanha42, tinha-se proposto legalmente pela primeira vez o modelo de casas unifamiliares
para as classes pobres. Era o Programa de Casas Econmicas de 1918, na sequncia da
aprovao do Decreto-Lei n 4137. Estes bairros podiam ser construdos por diversas
entidades embora, na prtica, o programa se tenha verificado ineficaz43.
Os anos da ditadura militar estabelecida em 1926 e que se prolongaram at 1932
corresponderam vigncia de um modelo liberal, no referente questo da habitao
convocando a iniciativa privada para a construo de habitao econmica. Retomou-se no
entanto a ideia das casas unifamiliares, que vinha, tal como vimos, do Programa de Casas
Econmicas de 1918.
42 Tal como se refere no prembulo do Decreto Lei n4137 de 1918 43 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 91
1914 1916 1918 1920 1922 1924 1926 1928 1930 1932 1934
O Decreto Lei n 4137, de 25/4 promove a construo de Casas Econmicas, em regra constitudos por casas isoladas unifamiliares.
O Decreto Lei n 16055, de 12/10 promove novamente a construo de grupos de casas por via de regra isoladas e para uma s famlia.
Estabelece-se o Programa de Casas Econmicas de 1933. Decreto Lei n 23052
Fig 21. O Programa de Casas Econmicas de 1933 e os seus antecedentes.
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Com a aprovao do Decreto-Lei n. 16055, de 22/10/1928, que assentava no modelo ingls44,
(numa verso muito simplificada modelo da cidade-jardim) previu-se a construo de novos
bairros de casas econmicas assentes no modelo da casa unifamiliar, isolada e com pequenas
zonas ajardinadas45. As habitaes, que se deviam produzir reduzindo ao mximo os custos de
construo, deviam ser ocupadas no regime de renda resolvel, com rendas baixas. Na
construo destes bairros intervinham a Cmara Municipal de Lisboa e o Estado, mas tambm,
significativamente, a iniciativa privada46, que seria muito beneficiada que construiu muito, mas
sem qualidade. Alguns dos bairros iniciados dentro deste programa de 1928 viriam a ser
assimilados ao Programa de Casas Econmicas de 193347
O Programa de Casas Econmicas de 1933 foi implementado num contexto muito diferente,
em que um Estado interventor e autoritrio impunha medidas vrias num amplo programa de
melhorias da imagem do pas48.
O Programa de Casas Econmicas de 1933 institudo pelo Decreto-Lei n 23052, foi a primeira
grande interveno do Estado no domnio da habitao social, embora se insira numa
sequncia de outras tentativas de estabelecimento de polticas de habitao social cuja
diferena principal era o facto de se levarem a cabo com grande interferncia da iniciativa
privada.
O Programa de Casas Econmicas de 1933 era totalmente controlado pelos poderes pblicos.
Acrescentam-se, pois, novos diplomas legislativos, em consonncia com os princpios do
corporativos do Estado Novo. Estas alteraes diziam essencialmente respeito, no mbito
legal, responsabilizao gradual e progressiva dos organismos corporativos em determinadas
incumbncias respeitantes produo deste tipo de habitao49.
Viviam-se anos de plena confiana e entusiasmo no regime recm estabelecido e na sua forma
aparentemente perfeita de gerir o pas. O Programa de Casas Econmicas de 1933 a
imagem viva, no domnio da habitao, do esprito destes primeiros anos, e corresponde
plenamente aos princpios consignados na Constituio Poltica.
Citando a Constituio Poltica de 1933, o topo da hierarquia legislativa, competia ao Estado:
44 Tal como se refere no prembulo do Decreto. 45 Tal como referem Miquel Domingo e Ferran Sagarra tambm em Espanha, durante as ditaduras, a influncia do modelo da cidade-jardim nos bairros de casas baratas, acabava por se concretizar numa verso bastante simplificada de casinhas unifamiliares com horta, que quase no tinha nada a ver com o modelo original. DOMINGO, Miquel, e Ferran Sagarra (1999). Les Cases Barates i el papel de lhabitatge popular a lurbanisme contemporani, OBN, Francesc, (coord.),Barcelona. Les Cases Barates, Ajuntament de Barcelona. Patronat municipal de lhabitatge, Barcelona, p 163, 164 46 O Programa de Casas Baratas implementado em Barcelona nos anos 20, parece assemelhar-se a este programa. 47 Como o Bairro do Alvito, construdo ao abrigo do Decreto-Lei n 16055, mas assimilado ao Programa de Casas Econmicas de 1933, correspondente ao Decreto-Lei n23052, em 1944. Em 1937 foi tambm baptizado Oliveira Salazar. 48 O Programa de Casas Econmicas implementado em 1933 acompanhou quase todo o tempo do regime, conhecendo distintos momentos e vendo reajustados os seus pressupostos algumas vezes, acabando por perder a exclusividade enquanto programa nico de habitao social extinguindo-se em 1972. 49 Como veremos, a transmisso total de poderes nunca chegaria a efectuar-se
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Zelar pela melhoria de condies das classes sociais mais desfavorecidas, obstando a que elas desam abaixo do mnimo de existncia humanamente suficiente (art. 6, n 3)
Favorecer a constituio de lares independentes e em condies de salubridade e a instituio do casal de famlia (art. 14, n 1)
A atribuio de uma casa prpria para os trabalhadores, o seu lar, era a forma que o Estado
tinha de proteger a instituio bsica da sociedade: a famlia, principalmente junto das
populaes de menores recursos, por quem se propunha zelar.
Por oposio situao catica em que se encontrava a este nvel, o pas e em particular a
capital e demarcando-se das polticas liberais e dos programas antecedentes, o Estado Novo,
implementava agora o Programa de Casas Econmicas.
O Estado Novo intervinha, tal como a propaganda da poca referia, onde a iniciativa privada
(incentivada a participar pelos outros governos) se tinha mostrado incapaz e sem resultados
prticos50. O discurso oficial, medida em que foram surgindo concretizaes, vincava a
disparidade dos gastos despendidos pelo regime republicano que o antecedeu, face sua
ineficcia prtica51, procedimentos que comparava com os seus, enaltecendo a sua poltica
economicamente social, liberta de idealismos inconsequentes e pelo seu estilo de trabalho
rigoroso, enrgico, honesto e competente52.
O objectivo (utpico) do Programa de Casas Econmicas era conceder, dentro de um
determinado espao de tempo, a propriedade plena de uma casa a todos os cidados sem
alojamento condigno do pas. Esta operao implicava uma gesto rigorosa dos custos
econmicos em proveito dos benefcios sociais, dentro da lgica corporativista, para o que
contribuu bastante a implementao de uma rgida poltica de expropriao de terrenos.
Este programa era encabeado por uma figura de grande importncia do regime: Duarte
Pacheco, ento Ministro das Obras Pblicas cuja sensibilidade e formao nele se reflectiram
largamente. A forma como se levou a cabo o programa veio reforar a necessidade, j antes
sentida, da realizao de um planeamento rigoroso e global da cidade, que paralelamente se desenvolvia no Ministrio das Obras Pblicas 53. Aos bairros de casas econmicas atribuu-se
um duplo papel ordenador:
Fisicamente, no territrio, com uma arquitectura racional e com espaos muito
ordenados, construdos de acordo com os referidos planos de urbanizao; e
50 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l., p.6 e 13 51 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l., p.9, 10, 11 52 BAPTISTA, Lus Vicente (1999). Cidade e Habitao Social, O Estado Novo e o Programa das Casas Econmicas em Lisboa, Celta Editores, Oeiras, p. 109 53 BAPTISTA, Lus Vicente (1999), p. 87
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Socialmente, agrupando populaes e construindo grupos sociais homogneos e afins,
e encorajando a sua convivncia, dentro de uma viso hierarquizada e esttica da
sociedade, em que no estava prevista qualquer mobilidade social54
A longo prazo criar-se-ia portanto, uma classe de pequenos proprietrios, cujo apego ao lar e
situao de beneficirios contribuiria no s para a preservao da instituio familiar
entidade acarinhada pelo Estado e pela Igreja mas tambm para a manuteno da ordem
social e da tradio catlica55.
Todo o programa se estruturava pois, impenetrvel a ventos de modernidade, em torno de
valores grados do regime, como a ordem tradicional e a famlia e operando um controlo social
extremamente rgido das populaes que dele beneficiaram56.
A casa unifamiliar com uma pequena horta, seguindo exemplo da cidade-jardim, era assim a
soluo eleita pelas autoridades. A moradia de famlia com quintal, nas palavras do discurso
oficial, opunha-se assim aos:
... grandes falanstrios, as colossais construes para habitao operria, com os seus restaurantes anexos e a sua mesa comum. Tudo isso serve para os encontros casuais da vida, para as populaes j semi-nmadas da alta civilizao actual; para o nosso feitio independente e em benefcio da nossa simplicidade morigerada, ns desejamos antes a casas pequena, independente, habitada em plena propriedade pela famlia.
Oliveira Salazar57
A motivao das populaes para a propriedade da sua casa devia proteger as famlias que
chegavam dos vcios degradantes da cidade, incentivando-as aos bons costumes, modelando
os seus hbitos, preservando ao mximo uma ideia de ruralidade que se manifestava no
aspecto exterior das edificaes e na configurao do no espao construdo, todos ao sabor
portugus58 .
Uma ruralidade forjada, com edifcios despojados pela exiguidade do oramento59 e em que os
bairros, no seu conjunto, apresentavam traados fechados como ilhas e com igrejas no meio, a
imitar aldeias60.
54 ibidem 55 BAPTISTA, Lus Vicente (1999), p. 114 56 Este controlo social operava-se de vrias formas. Alm de mecanismos de controlo espacial e psicolgicos, proporcionados pela prpria configurao arquitectnica e urbana dos bairros, existia efectivamente, um vigilante permanente em cada bairro, que podia e devia intervir na resoluo de problemas de que tivesse conhecimento, mesmo que no fosse convocado pelos supostos interessados, alm de vistorias regulares s casas. GROS, Marielle Christine (1982). O Alojamento Social sob o Fascismo, Ed. Afrontamento, Porto, p 124 57 Citado em CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l., p16 58 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l., p17 59 Tal como referem Nuno Teotnio Pereira e Jos Manuel Fernandes as casas econmicas dos primeiros tempos ainda no apresentavam os adereos de portuguesismo que apareceriam mais tarde noutros programas, PEREIRA, Nuno Teotnio e Jos Manuel Fernandes (1986). A arquitectura do Estado Novo 1926-1959, in O Estado Novo, Das Origens ao Fim da Autarcia, 1926-1959, Ed. Fragmentos, Lisboa p 332 60 PEREIRA, Nuno Teotnio e Jos Manuel Fernandes (1986). Op.cit, p 332
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A localizao dos bairros era cuidada. Escolhiam-se locais saudveis, arejados e higinicos,
adequando-se s possibilidades de expropriao e ocupando reas previstas pelo PGUEL, ou
outros planos de urbanizao em curso. Nos primeiros anos, apesar da morosidade das
expropriaes os terrenos disponibilizados localizavam-se geralmente nos ento limites da
cidade embora dentro da sua rea administrativa, e os bairros construram-se a Oeste e a
Leste o mais prximo possvel do centro urbano ou com transportes baratos. Resultava deste
conjunto de condicionantes o facto de estes bairros acabarem por se localizar longe de tudo,
segregados em relao ao resto da cidade.
A influncia das cidades-jardim, que se manteve em intervenes deste tipo at finais dos anos
4061 era evidente nos primeiros anos do Programa de Casas Econmicas, nomeadamente no
que dizia respeito ao modelo de casa unifamiliar, em bairros localizados na periferia da grande
cidade e de inspirao rural, que alojavam grupos sociais homogneos.
Embora se assemelhe bastante nestes aspectos, o caso portugus apresenta particularidades
que se prendem com o facto de se tratar de um pas pobre e pouco industrializado. Assim,
enquanto nos pases desenvolvidos as cidades-jardim serviam para albergar grupos sociais
reivindicativos e tidos como perigosos para os seus governos, em Portugal, os bairros
inspirados nas cidades jardim constituam uma atitude preventiva62, fidelizando os seguidores
do regime atravs de uma retribuio pblica: o acesso casa prpria.
Os destinatrios do Programa de Casas Econmicas de 1933 eram pois, e partida, tal como
o prprio discurso oficial indicava, os chefes de famlia bons trabalhadores, membros de
sindicatos nacionais e funcionrios pblicos
a) membros dos Sindicatos Nacionais, com mais de vinte e um e menos de quarenta
anos, no pleno gzo dos seus direitos civis;
b) funcionrios pblicos e operrios de quadros permanentes de servios do Estado ou
das Cmaras Municipais63
Depois de 1938, como veremos, tambm os membros das Instituies de Previdncia,
passaram a usufruir deste programa, porque estas passaram a investir nas casas econmicas.
Entendia-se ainda a necessidade de dividir este grupo alvo em subgrupos consoante a
totalidade dos seus rendimentos econmicos do agregado familiar e a sua dimenso. Todas as
casas eram dotadas dos quartos de dormir, uma pequena cozinha, uma sala comum e uma
casa de banho64.
Os primeiros bairros construdos dentro do Programa de Casas Econmicas de 1933 foram
projectados com duas categorias de casas: A e B65. Em cada categoria, atendendo ao nmero
61 BAPTISTA, Lus Vicente (1999), p. 123 62 BAPTISTA, Lus Vicente (1999), p. 124 63 Referido em CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l., p18 64 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l, p17 65 ibidem. Na classe A concorriam famlias cujo total de salrios no excedia os 20 escudos, e na classe B concorriam famlias cujo total de salrios no excedia os 45 escudos. Quanto aos tipos, o I correspondia a casas para casais sem filhos; o II correspondia a casas para casais com filhos pouco numerosos de um s sexo e o III correspondia a casas para casais com filhos dos dois sexos ou com filhos muito numerosos de um s sexo.
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de elementos do agregado familiar, havia casas de trs tipos, com numero crescente de
divises.
Desenvolve-se legislao no sentido de clarificar esta distino entre grupos e a forma como se
deviam distribuir espacialmente, j que as casas deviam agrupar-se por classes, em pequenos
bairros66.
A hierarquizao social devia portanto encontrar uma correspondncia no espao fsico do
bairro. Embora s raramente apaream vrias categorias num mesmo bairro, esto, como se
referiu, sempre separadas espacialmente por sectores. A legislao estabelecia percentagem
de classes em cada bairro67. No h portanto mistura de classes, as casas de diferentes
categorias situam-se em reas diferentes.
Instituies envolvidas e respectivas competncias no processo de construo dos bairros de casas econmicas de 1933. Como se referiu, no quadro de um regime autoritrio e centralizador, estruturado
corporativamente, em que o Estado detm um grande poder de aco que se criam as
instituies necessrias e se despoletam os mecanismos legais para a implantao deste
programa nico.
Embora se previsse a transferncia de responsabilidades para as instituies de previdncia,
este programa assentava inicialmente numa colaborao muito estreita entre Estado e
Cmaras Municipais, em geral, e em Lisboa, com a Cmara Municipal de Lisboa. Estes dois
organismos trabalhavam conjuntamente, partilhando tarefas e responsabilidades na construo
de cada bairro.
partida, em 1933, e segundo o determinado pelo Decreto-Lei n 23052 de 23 de Setembro de
1933, as responsabilidades do processo repartiam-se entre organismos do Estado, Cmaras
Municipais, corpos administrativos e organismos corporativos68.
No seio do Estado, o programa alicerava-se em duas instituies distintas: o MOP- Ministrio
das Obras Pblicas e o SCPS- Subsecretariado das Corporaes e Previdncia Social.
Ao MOP- Ministrio das Obras Pblicas, dizia respeito a superintendncia na construo das
casas econmicas, tendo sido criada na Direco Geral dos Edifcios e Monumentos
Nacionais, a Seco das Casas Econmicas. Ao SCPS- Subsecretariado das Corporaes e
Previdncia Social, competia a superintendncia na distribuio e atribuio das casas, sendo
criada no Instituto Nacional de Trabalho e Previdncia a Repartio das Casas Econmicas.
Instituu-se de igual modo o Fundo das Casas Econmicas destinado ao financiamento e
construo destas casas e que tinha como receitas as verbas destinadas pelo governo, as
comparticipaes das cmaras municipais, os donativos e a cobrana das prestaes das
casas j atribudas e os rendimentos dos ttulos.
66 ibidem 67 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 109 68 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l, p15
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Por efeito do decreto-lei de 1938 o departamento do MOP passa a designar-se como Servio
de Construo de Casas Econmicas e o departamento ligado ao Subsecretariado das
Corporaes e Previdncia Social passa a designar-se como Seco das Casas Econmicas.
Tal como refere a propaganda da poca, o ano de 1938 foi tambm o ano em que se deu a
primeira transferncia de responsabilidades para as instituies de previdncia (que afectou
principalmente o financiamento), embora o Estado sempre tenha controlado amplamente todo
o processo. Mais tarde, como veremos, o Estado tentaria tambm aliciar tambm a iniciativa
privada embora no tenha tido grandes resultados69.
Tal como refere Nunes Silva, Cmara Municipal de Lisboa, de um modo geral, competia a
aquisio (atravs de expropriaes) dos terrenos e a sua urbanizao e ao Estado, atravs
dos vrios organismos envolvidos nestes programas, dizia respeito a realizao (ou aquisio
por concurso ou no) dos projectos das casas econmicas (DGEMN) e o acompanhamento,
direco e orientao da construo subsequente (MOPC), bem como o financiamento (FCE
Fundo das Casas Econmicas) e distribuio (SCPS - Subsecretariado das Corporaes e
Previdncia Social) 70.
Tal como o mesmo autor refere71o processo pode detalhar-se da seguinte forma: a Cmara
Municipal de Lisboa adquiria os terrenos e urbanizava-os suportando apenas parte dos custos,
j que contava com a comparticipao de vrias instituies estatais, nomeadamente a
Repartio de Casas Econmicas do Instituto Nacional do Trabalho e Previdncia, que
contribua com uma determinada importncia por metro quadrado de solo urbanizado72 e o
Fundo do Desemprego da DGEMN, que participava nas despesas das ligaes elctricas e de
gua.
J relativamente construo das casas, os custos eram pagos pelo Estado, que seria
posteriormente reembolsado pelo pagamento de 20 ou 25 prestaes anuais. Os restantes
50% ficavam desde logo a cargo da Cmara Municipal de Lisboa, que pediria- se necessrio -
emprstimos Caixa Geral de Depsitos, que amortizaria ao longo de 20 ou 25 prestaes
anuais com juros variveis.
Quer o Estado, quer a Cmara Municipal de Lisboa acabavam por ser reembolsados pelos
moradores e futuros proprietrios atravs de prestaes mensais, cujo pagamento se iniciava
no primeiro dia de Janeiro do ano seguinte ao da concluso das casas73.
O Estado estava finalmente encarregue da distribuio das casas atravs do Instituto Nacional
do Trabalho e Previdncia74. Tal como informa a propaganda da poca, havia determinadas
percentagens de grupos profissionais especficos a respeitar em cada classe75.
69 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 110 70 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 111 71 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 108 72 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 107 73 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit, p 108 74 ibidem 75 Classe A: 75% para membros dos Sindicatos Nacionais, e restantes para funcionrios pblicos e operrios dos quadros permanentes dos servios do Estado ou das Cmaras Municipais; Classe B:
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Alm desta percentagem, a atribuio de casas a nvel familiar era feita segundo determinados
critrios, que eram os seguintes, por ordem de preferncia:
- a idade do adquirente;
- a composio familiar do adquirente;
- a totalidade dos salrios da famlia do adquirente;
- o seu comportamento moral
As casas eram assim ocupadas por moradores adquirentes seleccionados, mediante o
pagamento de prestaes mensais em regime de renda resolvel. Os moldes em que se
processava a distribuio das casas e a sua aquisio eram definidos pelo Ministrio das
Obras Pblicas Repartio de Casas Econmicas.
Estas prestaes mensais, em estreita relao com a categoria da casa a ocupar dependiam,
em parte, como se referiu, da capacidade econmica e do nmero de pessoas do agregado
familiar. Essas duas componentes definiam uma parcela (uma parte do total) constante a
pagar. As prestaes eram compostas tambm por outras parcelas variveis, que diziam
respeito ao pagamento obrigatrio de seguros vrios, com base na experincia de Teotnio
Pereira, a inovao portuguesa de que se orgulhava muito o regime. Estes seguros eram, por
exemplo, o seguro contra incndios, que garantia a reconstruo da casas na ocorrncia dessa
fatalidade; ou outros, como o seguro de vida, desemprego e doena, destinado a salvaguardar
o pagamento das prestaes nos prazos estipulados76.
Refere Marielle Gros que se no se realizasse o pagamento das prestaes nos oito primeiros
dias, e se essa falta no se justificasse com uma das situes previstas nos seguros obrigatrios, os ocupantes da casa eram imediatamente expulsos pela polcia, rescindindo-se o
contrato sem indemnizao alguma para o morador77.
A propaganda da poca salientava, no entanto o facto de as prestaes das casas econmicas
serem iguais s rendas de aluguer correntes na poca, nas casas construdas e arrendadas
pela iniciativa privada, apresentando as casas econmicas ainda a vantagem de o morador se
tornar proprietrio da sua prpria casa ao fim de alguns anos.
Tal como aponta Marielle Gros78 ao fim e ao cabo, a construo das casas no era
verdadeiramente subsidiada pelo Estado, pagando cada morador (e respectiva famlia) a quase
totalidade do custo da sua habitao ao longo de 20 anos de prestaes mensais, ou 5, se
pudessem amortizar a dvida nesse espao de tempo sem prejuzo das suas condies de
vida79. As vantagens para os moradores resumiam-se ao facto de serem de facto casas de
preos acessveis, porque eram construdas sem perspectivas de lucro e os custos do solo
eram relativamente baixos.
repartidas em partes iguais entre todos, CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l p20 76 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l p18 77 GROS, Marielle Christine (1982). O Alojamento Social sob o Fascismo, Ed. Afrontamento, Porto, pp. 124. 78 GROS, Marielle Christine (1982), op.cit., pp. 111 79 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l, p.19
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Todo o programa se estruturava no sentido de estabilizar grupos familiares, nem que fosse
fora. O morador-adquirente era obrigado a constituir, com a ocupao da habitao, um
Casal de Famlia (ideia acalentada desde havia muito e consagrada no Decreto Lei n 18551,
de 3/ 7/1930). Este Casal de Famlia seria normalmente uma famlia unida por laos de
matrimnio, com os filhos que fossem nascendo, mas tambm se admitia uma pessoa solteira
ou vuva, com menores a seu encargo. Em caso de divrcio (situao moralmente condenvel
na poca) ambos os cnjuges eram obrigados a partilhar a propriedade da casa80.
A casa econmica era, assim, pertena definitiva da famlia, era a garantia de herana.
Tratava-se de um bem indivisvel, inalienvel voluntria ou coercivamente e impenhorvel 81
No se previa nenhuma mobilidade social. A famlia ficava para sempre unida e presa sua
casa. A casa cristalizava a vida da famlia ocupante no momento da aquisio, deixando
transparecer uma viso extremamente esttica da sociedade. Os pobres e remediados s-lo-
iam para sempre.
A nica mobilidade considerada possvel pelo regime era a possibilidade do aumento do
numero de elementos da famlia por natalidade. Estava prevista a possibilidade de realizao
algumas modificaes nas moradias, nomeadamente a possibilidade de realizar ampliaes,
podendo pedir-se autorizao Repartio de Casas Econmicas e apoio Seco de Casas
Econmicas sob a forma de um emprstimo amortizvel mensalmente82.
A ampliao da moradia era o melhoramento material possvel para os habitantes dos bairros
de casas econmicas. Alm da ampliao propriamente dita, considerava-se ainda a
possibilidade de construir galinheiros, muros e arrecadaes nos quintais e significativamente,
a possibilidade de realizar obras deembelezamento nas fachadas e nos jardins 83.
Nestes anos inaugurais do Programa de Casas Econmicas, na ausncia da aplicao de uma
poltica de arte pblica propriamente dita nestes espaos residenciais para pobres, eram as
fachadas, os jardins e as hortas elementos limites entre espao pblico e privado que
assumiam a funo de pontuar estticamente o conjunto edificado e o quotidiando das
pessoas.
Estas intervenes, levadas a cabo, no por algum organismo pblico, mas pelas prprias
pessoas, constituam aquilo que de melhor podia desejar, de um ponto de vista esttico, este
grupo social esttico aos olhos do regime. A par da esttica das flores e das casas simples,
operava-se alm do mais, o revigoramento moral e a felicidade, que estas incutiam nos
cidados, tornando-os mais humanos e sociveis 84.
O esprito entusiasmado dos primeiros anos, servido por uma ampla margem de manobra por
parte do Estado, permitiu uma grande capacidade de concretizao desta poltica nica de
80 TRINDADE, Cachulo da (1951). Casas Econmicas, Casas de Renda Econmica, Casas de Renda Limitada, Casas para Famlias Pobres, Legislao Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, p 56 e seguintes 81 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l, p19 82 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l, p25 83 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l, p25 84 CASAS ECONMICAS, Edio do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, s.l, p26
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bairros de casas econmicas at meados da dcada de 40, quando a crise advinda do fim da
2 Guerra Mundial se comeou a fazer sentir.(Fig. 23,24)
Como se referiu, condicionalismos econmicos e sociais levariam, por um lado, a uma
inviabilizao da poltica de expropriaes at ento levada a cabo, por outro, tornaram
premente a urgncia de alojamento para grande parte da populao carenciada que no tinha
podido ser beneficiria do Programa de Casas Econmicas.
Como veremos, assistir-se-ia a uma flexibilizao desta poltica nica, desdobrando-se em
vrios programas novos e alguns j experimentados numa procura de equilbrio entre os
pressupostos iniciais do programa e a necessidade de agir face aos problemas reais e s
novas circunstncias.
O Programa de Casas Econmicas afirmou-se no entanto como o grande modelo de habitao
social do Estado Novo, inaugurando uma poltica sistemtica de interveno estatal na rea da
habitao e influenciando os programas que o sucederam.
Os vrios bairros de casas econmicas construdos at fins da dcada de 40 marcaram
definitivamente a cidade, funcionando no discurso oficial como exemplo mximo da capacidade
de aco do regime. (Fig.22, 23)
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Ajuda
Alto da Ajuda
Alto da Serafina
Arco do Cego
Alvito, ou Dr Oliveira Salazar
Calada dos Mestres
Caselas
Encarnao
Madre de Deus, ou do Alto dos
Toucinheiros
Terras do Forno
Fig.22 Bairros de casas econmicas distribudos at 1950, segundo Cachulo da Trindade
Alto da Ajuda
(primeira fase) 1933-1938
(ampliao) 1939-1940
Alto da Serafina 1933-1938
Calada dos Mestres
(primeira fase) 1940-1943
Caselas (1949-1950)
Encarnao 1940-1943
Madre de Deus 1939-1942
Terras do Forno 1933-1938
Fig.23 Anos em que se levou a efeito a construo dos bairros de casas econmicas
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EVOLUO DO PROGRAMA DE CASAS ECONMICAS DURANTE AS DCADAS DE 30 E 40
Podem considerar-se ao longo dos perodos em estudo alguns momentos-chave, em que se
tomou maior quantidade de decises de construo de bairros, bairros estes, por sua vez, que
apresentam tambm homogeneidade morfolgica nas grandes linhas de construo.
Tambm o surgimento de outros programas de habitao social revelador das mudanas
ocorridas.
De 1933 a 1938. Implementao do programa e primeiro momento de construo. Com a implementao do Programa de Casas Econmicas deu-se incio construo de trs
bairros: o bairro do Alto da Serafina, o bairro do Alto da Ajuda e o o bairro das Terras do Forno.
(Fig. 24, 25)
Alto da Ajuda Alto da Ajuda (ampliao) Alto da Serafina Calada dos Mestres Caselas Encarnao Madre de Deus Terras do Forno
1933 1935 1937 1939 1941 1943 1945 1947
Fig.24 Bairros projectados e construdos no mbito do Programa de Casas Econmicas de 1933
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Fig.25 Localizao dos bairros de Casas Econmicas iniciados em 1933. (1) Terras do Forno, (2) Alto da Ajuda e (3) Alto da Serafina
12
3
Grupo de Casas Econmicas do Alto da Ajuda8586 Este agrupamento de casas econmicas (Ver planta em anexo) foi construdo em duas fases,
tendo tido a primeira, iniciada logo em 1933, um carcter experimental. Nessa primeira fase
apenas se construram casas de classe A, que representariam depois de finalizado o bairros,
21% do total. Predominava o tipo II
(relativo ao numero de divises das
casas). o quarto maior bairro de casas
econmicas (sendo o maior o da
Encarnao), com uma rea aproximada
de7,8 ha87. Foi designado inicialmente por
Casas Econmicas dos Telheiros da
Ajuda (ocidental e oriental) e existem88
dois estudos distintos, uma para o lado
Oeste e outro para o lado Este. Previu-se
uma rea livre no centro, com um
pequeno jardim, a Sul embora depois, os
dois lados (ocidental e oriental)
apaream unidos.
Grupo de Casas Econmicas do Alto da Serafina A construo deste agrupamento de casas econmicas (Ver planta em anexo) tambm se
iniciou em 1933. Processou-se em duas fases, tendo a primeira um carcter experimental, e
predominando ento a realizao de casas de categoria A, e de tipo II. A primeira fase de
construo ocupou uma rea de cerca de 6,3 ha. Aps o incio dos trabalhos foi decidido
destruir Bairro da Liberdade, um miservel bairro de barracas prximo daquele local, e realojar
ali os seus habitantes,. O arquitecto Paulino Monts foi o responsvel pela elaborao do
plano, que seria apresentado Cmara Municipal de Lisboa em 1944. Este plano visava a
integrao do Aqueduto de forma adequada e, alm das habitaes econmicas, previa uma
zona destinada a equipamentos colectivos, bem como espaos pblicos. Ao que parece, este
projecto no foi concludo.
85 Enumerao dos bairros de casas econmicas distribudas at 1950 dada por Cachulo da Trindade. Nela figuravam tambm trs bairros que no se incluem no presente estudo porque no foram projectados no mbito do Programa de Casas Econmicas, sendo apenas nele includos depois. o caso do Arco do Cego, da Ajuda e do Alvito. Cachulo da Trindade ( 1951), op.cit. 86 Os anos em que se levou a efeito a construo dos bairros aparecem referidos em Bairros Econmicos I-Lisboa, uma publicao do MOPC, de Dezembro de 1942. 87 SILVA, Carlos Nunes (1994), op.cit,, p 119 88 ibidem
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Grupo de Casas Econmicas das Terras do Forno O agrupamento de casas econmicas das Terras do Forno (Ver planta em anexo) foi outro dos
bairros cuja construo teve incio em 1933. Foi projectado, logo partida, com duas as
categorias de casas, A e B, destinadas a populaes de diferentes nveis de rendimento,
previstas no Programa de Cas
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