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A Reescrita da História da África Negra
Mariana Gino1
“A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do
saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no
homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a
conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram,
assim como o baobá já existe em potencial em sua semente”.
Tierno Bokar. In _ Bâ, Amadou Hampatê. O menino Fula, 2013
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar, em perspectiva comparada, o
discurso histórico dos historiadores e intelectuais do movimento de reescrita da História
Africanas década de 1960, em busca de reescrita da história da África negra, em contrapondo
a historiografia europeia atrelada à compreensão hegeliana, de que um povo sem história é um
povo sem memória, que atendia apenas aos interesses de um só sistema – o colonialismo
europeu – que se utilizando da política de assimilação tentava de inúmeras formas destruir as
tradições culturais de suas colônias africanas.
Palavras-chaves: Historiografia africana- reescrita da historia africana- História da África
Negras
Abstract: The present work aims to analyze, in a comparative perspective, the historical
discourse of the historians and intellectuals of the rewriting movement of African History in
the 1960s, in search of a rewriting of the history of black Africa, in opposition to European
historiography linked to the Hegelian understanding, that a people without history is a people
without memory, that only served the interests of a single system - European colonialism -
that, using the politics of assimilation, tried in countless ways to destroy the cultural traditions
of its African colonies.
Keywords: African historiography- rewritten from African history- History of Black Africa
1 Teóloga (CES/JF), Historiadora (UFRJ), Esp. Em Ciência da Religião, Mestranda em História Comparada pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da Associação de Pesquisadores Negros (ABPN),
Coordenadora da Coordenadoria de Religiões Tradicionais Africanas, Afro-brasileira, Racismo e Intolerância
Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ); Membro dos grupos de pesquisas ÁFRIKAS (UFJF) e Religião de
Modernidade (PUC-MINAS). Pesquisadora no Laboratório de História das Experiências Religiosa
(LHER/UFRJ).
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Um brevíssimo panorama sobre a formação da historiografia africana
A África é um continente rico e diverso, mas é visto, com frequência, como um espaço
homogêneo e associado à pobreza, não só nas representações nos livros didáticos, mas também
na imagética social. Na Europa, esse imaginário serviu para justificar a dominação colonial do
continente entre o fim do século XVIII e o terceiro quarto do século XX. Influenciadas por
Hegel, a visão sobre o continente africano foi apenas conhecida no Ocidente por meio do como
a inexistência do fato histórico antes da colonização europeia no continente, tendo os africanos
permanecidos em estado de barbaria, selvageria e infantilidade até o ‘encontro’ com os
colonizadores europeus.
Assim, Hegel2 salienta que,
No tiene interés histórico próprio, sino el que los hombres vivea ali em la barbaria e el salvajismo,
sin, suministrar ningún ingrediente a la civilizacíon. Pot micho que retrocedamos em la historia,
hallaremos que Africa estpa siempre cerrada ao contacto co ekresto del mundo; es um Eldorado
recigido en si mismi, es el pais niño envuelto em la negrura de la noche, allende la luz de la historia
conscuente.
Na obra, Lecciones sobre la Filosofia da Historia Universal, ao fazer a comparação
entre a evolução histórica das sociedades europeia em face ás africanas, Hegel dividiu e
qualificou a África, em três partes distintas, a setentrional espanhola, o Egito e a África
meridional, ou ‘ propriamente dita’, aquela que fica ao sul do deserto do Saara descrita como
quase desconhecida. Na interpretação hegeliana, a África subsaariana, ou África Negra3, é em si
exótica.
Primitiva, dominada pelo caos geográfico e impenetrável, o que a faz sem autonomia
para construir suas próprias histórias, por viver seus habitantes em estado de completa
selvageria. Segundo o mesmo esteio de Hegel, Kant, em sua obra Geografia Física (1802),
refere-se aos africanos ao sul do Saara como ‘homens que cheiravam mal e tem a pele negra por
maldição divina.
Para tentar desvincular o continente africano de uma imagem pejorativa, no decorrer dos
anos de 1960 os historiadores e intelectuais africanos ligados ao movimento historiográfico de
2 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Revista de Iccdente:
Madri, 1953, p.187. 3 Rebatendo as interpretações fracionadas sobre o continente e, que em grande medita tende à não positivar as
culturas e histórias das sociedades abaixo do Saara, Elikia M’ Bokolo em sua obra África Negra: História e
Civilizações (2011: 13) problematiza que a noção de África Negra que,s outrora era vista como um espaço
dissociável geograficamente do continente. Para Bokolo, “obras consagradas a África Negra fracionam a matéria
histórica em grande períodos, distinguindo no interior deles grandes conjuntos geográficos, onde se articulam, ou
até , considerações sobre as unidades políticas – étnicas, Estados tradicionais e contemporâneo – ou sobre,
correndo o risco de dar a África a imagem de um continente fragmentado cuja singularidade assentaria
precisamente na junção harmoniosa ou explosiva de particularidades ou particularismo. BOKILO, Elikia. África
Negra: História e Civilizações. Salvador: EDUFB; São Paulo: Casa das áfricas, 2011.
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reescrita da História da África, empregando o argumento “a África também tem história” 4
perpetraram ferrenhas críticas ao processo de ocidentalização da história do chamado
continente negro.
Nas palavras de Ki-Zerbo 5,
Não se trata aqui de construir uma história-revanche, que relançaria a história colonialista como um
bumerangue contra seus autores, mas de mudar a perspectiva e ressuscitar imagens “esquecidas” ou
perdidas. Torna-se necessário retornar à ciência, a fim de que seja possível criar em todos uma
consciência autêntica. É preciso reconstruir o cenário verdadeiro. É tempo de modificar o discurso.
A finalidade destes historiadores intelectuais, era desvincular a história do continente
africano da concepção epistemológica frutificada pelo hegelianismo, que entendia que um
povo sem escrita é um povo sem passado, sem história e, igualmente sem cultura, uma
interpretação simplista e reducionista da complexidade efetiva da historiografia do continente
africano6.
Segundo o tradicionalista malinês Amadou Hampâté Bâ7 – um dos precursores do
movimento historiográficos da década de 1960 – este tipo de pensamento é limitado e
equivocado, pois toma como cultura apenas aquilo que encontramos evidências, ou seja, a
escrita registrada sobre um suporte físico, conforme os padrões ocidentais de produção do
conhecimento. Deste modo, a intelectualidade africana entendia que advém daí, desta
concepção pejorativa, a necessidade de escrever a História dos povos da África, longe do
binômio colonizador-colonizado, afastando-se o mais possível da historiografia colonial.
Para evidenciar uma historiografia diferenciada e desvinculada do ranço metodológico
europeu, a corrente historiográfica africana dos anos de 1960 se contrastava em relação ao
movimento da intelectualidade, que surgiu na África subsaariana, no decorrer da segunda
metade do século XIX, que assumiu o discurso “ser como os do centro [europeus] ou ser eles
mesmos [africanos]” 8.
Tal movimento, que passou a ser entendido como pan-africanista, cujo precursor foi o
afro-americano Alexander Crummell, não conseguiu dar conta ou mostrar algo totalmente
novo em relação à desconstrução da imagem que colocava o indivíduo africano como
4 KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I, Lisboa: Publicações Europa-América. 2002.
5 Considerado como o pai da historiografia africana em descolonização, Joseph Ki-Zerbo, de Burkina Faso, foi
um dos pais da historiografia africana moderna. Ele foi um dos responsáveis pela arquitetação a publicação dos
oito volumes da História Geral da África. 6 LOPES, Carlos. “A pirâmide invertida – historiografia africana feita por africanos”. In: Actas do colóquio
Construção e ensino da história da África. Lisboa: Linopazas, 1995. p. 21. 7 BÂ, Amadou. Hampâté Tradição Viva. In: História Geral da África: Metodologia e Pré-História da África. Vol.
I. Brasília: Unesco, 2010, p. 167-212. 8 DEVÉS-VALDÉS, Eduardo. O Pensamento Africano Sul-Saariano. Conexões e paralelos com o
pensamento Latino-Amercano e o Asiático (um Esquema). São Paulo: Clacso - EDUCAM, Septiembre de
2008, p. 23.
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selvagem e sem história. O movimento iniciado em meados do século XIX, embebecido por
uma historiografia europeia, não conseguiu dar passos muito longos a ponto de desenvolve/
propor uma metodologia de análise histórica voltada exclusivamente para a perspectiva
africana, haja vista que muitos dos intelectuais9envolvidos nesta investigação cultural da
história africana adentravam o continente africano com o objetivo especifico ligado à
evangelização.
Formados sobre as culturas anglófonas ou francófonas, traziam consigo o mesmo
discurso e entendimento que o colonizador europeu tinha a respeito das sociedades negras
africanas. Assim, ficava claro que o objetivo principal da intelectualidade africana e afro-
americana do século XIX não era mostrar o continente negro a partir do ponto de vista dos
africanos, embora, tal movimento, tenha servido de modelo para as historiografias posteriores.
Diferindo da historiografia do século XIX, o movimento historiográfico africano dos
anos de 1960, intitulado por Carlos Lopes de “Pirâmide Invertida” 10
, propõem uma análise da
história africana voltada para o método da oralidade, que se contrapunha a concepção de
historiográfica europeia sobre o que vem a ser a história.
Lopes11
salienta que,
Desde de sua gênese, o Africanismo estabeleceu os parâmetros dos seus motivos e objetivos. Ao fazê-
lo, promove igualmente uma gnose acabaçando por se confundir com o discurso Africano sobre o
outrem através de ideologias de alteridades com a negritude, personalidade negra, filosofia Africana e
outras, todas com uma influência determinante no evoluir da história Africana.
A imparidade historiográfica africana está ligada ao apego mnemônico e a oralidade
como elemento legítimo e válido para se pensar a história, pois é através desta, centrada
também na ancestralidade, coletividade do grupo e na identidade, que o indivíduo africano é
constituído e construído socialmente.
Numa sociedade onde a palavra é o veículo de construção histórica, as maiores obras
históricas são tradições, estabelecidas através da introjeção do griot dentro do seio
9Quando falamos intelectuais africanos, estamos nos referindo a todos os profissionais que contribuíram para a
escrita da coleção dos volumes História Geral da África (HGA). 10
Carlos Lopes (1995) intitula o movimento historiográfico africano, dos anos de 1960, de Pirâmide Invertida,
devido a ousadia destes intelectuais em propor uma história escrita a partir da visão do africano colocando em
evidência suas relações socais, contribuições na resistência ao colonialismo e no conceito de iniciativa local
distanciando da visão da historiografia europeia (LOPES, 1995, p. 26). 11
LOPES, 1995, p21
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comunitário ou da “família”12
, possibilitando a relação social do Ser africano com o mundo.
Nas palavras de Hampâté Bâ13
.
O termo Griot, de origem francesa, recobre uma série de funções no contexto da sociedade africana.
Numa sociedade em que os conhecimentos eram tradicionalmente transmitidos pela palavra – de
forma oral – o griot tinha uma posição de destaque, pois lhe cabia transmitir a tradição histórica: era o
cronista, o genealogista, o arauto, aquele que dominava a palavra (...) o griot ou dieli está próximo do
doma, o grande conhecedor das coisas. É uma autêntica biblioteca pública, tal como o chamou.
O griot, ligado a uma dupla função social, nas palavras de Barry, “rompe o silêncio do
esquecimento e exalta a glória da tradição” africana. Segue Barry14
.
Durante milênios, antes que o fio da escrita internamente e todos os lados costurasse o mundo negro a
si mesmo os griôs, por meio da voz e dos instrumentos que imaginavam foram os demiurgos que
construíram esse mundo, e suas únicas testemunhas. Eles o exaltaram, encheram de dignidade, de
peso, dizem, o elevaram acima de si, suspensos nos campos de batalha, preservado na glória e na
tradição
Deste modo, a construção da história africana é inseparável da tradição mnemônica
ligada à ancestralidade e a oralidade. E, nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito
dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimento de
toda espécie. Assim, a escrita é centrada sobre um tempo cronológico e a cronologia não é
algo basilar para construir a história das tradições africanas.
Para tentar traçar os parâmetros sobre a escrita da história oral na África em voga, esta
pesquisa terá como foco principal a análise da metodologia proposta pela historiografia
africana que se baseia nas fontes orais. Para tal cometimento a mesma terá como marco
histórico os anos de 1960 e um marco teórico centrado nos seguintes autores africanos (fontes
primárias): o tradicionalista malinês Amadou Hampâté Bá, os historiadores Joseph Ki-Zerbo
de Burkina Faso, o nigeriano Boubou Hama e o senegalês Boubacar Barry.
Obviamente os intelectuais do continente africano não conseguiram abarcar uma
análise sistematizada sobre mais de três milhões de anos de história do continente africano,
mas tal iniciativa foi de fundamental importância, pois era preciso evitar uma singularização
demasiada da África e também um alinhamento excessivo a norma estrangeira propondo
assim, uma escrita da história africana a partir da valorização da oralidade e de seu método.
12
Segundo Amadou Hampâté Bá (2003, p. 23), diferente da concepção europeia sobre família, na África
tradicional, o indivíduo é inseparável de sua linhagem, que continua a viver através dele e da qual ele é apenas
um prolongamento. 13
BÂ, Amadou. Hampâté Tradição Viva. In: História Geral da África: Metodologia e Pré-História da África.
Vol. I. Brasília: Unesco, 2010, p. 195). 14
BARRY, Boubacar. Senegâmbia: O desafio da História Regional. Amsterdan/Rio de Janeiro:
SEPHIS/CEAA, 2000, p. 5.
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Em primeiro plano é necessário considerar as propostas epistemológicas dos
historiadores e africanos em função da valorização do ponto de vista da historiografia africana
sobre sua história oral Não obstante, nosso trabalho estará em busca uma brevíssima análise
teórica-metodológica proposto pela intelectualidade africana nos anos de 1960, no tange a
consciência histórica e reflexão das sociedades africanas.
Deste modo, a pesquisa a ser desenvolvida irá analisar a proposta da Escrita da
História Oral Africana, desenvolvida através movimento historiográfico dos anos de 1960,
compreendida a partir da oralidade como fonte legítima de conhecimento e sabedoria. Dessa
maneira, no que diz respeito ao Movimento historiográfico africano, esta possibilidade
interpretativa nos fornece subsídios necessários e precisos na observação dos processos que
constituem as formações dos mesmos, considerando o quanto da experiência de opressão, da
articulação tradicional e do histórico comum de preconceito intelectual.
Para o historiador Carlos Lopes, embora as interpretações desqualificativas sobre a
África estejam aparentemente ultrapassadas, no imaginário coletivo ocidental a mesma
continua a ser apreciada por clichês, e ligada à inexistência de fatos históricos..
O Movimento de reescrita da história oral africana, em meados do século XX, foi
igualmente um capital simbólico político e cultural para o reconhecimento do patrimônio
cultural africano e brasileiro, evidenciando os fatores que contribuíram para uma ideia de
unidade do continente atrelado a memória e a história. Assim, o movimento de reescrita da
história africana não se trata de “construir uma história revanche, que relançaria a história
colonialista como um bumerangue contra seus autores, mas de mudar as perspectivas e
ressuscitar imagens esquecidas ou perdidas”. Aliada as questões, serão indispensáveis é
essencial atentar para as questões relacionadas à memória, postuladas por Michel Pollak 15
.
Desse modo a proposta de um método comparativo, entres os autores africanos,
alicerçado nas postulações de Marc Bloch16
ou seja, a observação simultânea de dois grupos
inseridos em um mesmo tempo e espaço, visa garantir um melhor aproveitamento dos dados
investigados.
Mas há uma outra aplicação do processo de comparação: estudar paralelamente sociedades a um
tempo vizinhas e contemporâneas, incessantemente influenciadas umas pelas outras, cujo
desenvolvimento está submetido, precisamente por causa de sua proximidade e do seu sincronismo,
ação das mesmas grandes causas e que remontam, pelo menos em parte, a uma origem comum.
15
POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.
3, p. 3-15, 1989. 16
BLOCH, M. Para uma História Comparada das Sociedades Européias in: História e Historiadores. Lisboa:
Teorema, 1998. p. 122-123
160
Embora haja um número significativo de pesquisas abordando a questão
afrodescendente nas instituições superiores de ensino, é muito reduzido – ainda – o número de
estudos, no Brasil, voltados especificamente para a questão Africana, principalmente algo que
recaia especificamente sobre a escrita de sua história oral. Haja vista que historiografia
ocidental dominante, tende a, realizar uma análise unilateral sobre a história, priorizando
muito mais o documento escrito exposto sobre um suporte físico do que a tradição oral, não
dando voz a esta história.
Nas palavras de Vansina17
,
O historiador deve, portanto aprender a trabalhar mais lentamente, refletir, para
embrenhar-se numa representação coletiva, já que o corpus da tradição é a memória
coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma. Muitos estudiosos africanos,
como Amadou Hampate‑Ba ou Boubou Hama muito eloquentemente têm expressado
esse mesmo raciocínio. O historiador deve iniciar‑se, primeiramente, nos modos de
pensar da sociedade oral, antes de interpretar suas tradições.
Para Barry, com o processo de rupturas sociais, a história do continente negro deixa de
ser transmitida e acaba caindo no esquecimento tendendo assim a engomar a história dos
regimes dominantes. Para o nigeriano Boubou Hama (2010), a consciência histórica é um
reflexo de cada sociedade, no caso do continente africano é preciso ressaltar que esta evolução
positiva de sua história e método da mesma não teria sido possível sem o processo de
libertação da África do jugo colonial.
Para o historiador, Boubcar Barry18
Mas nós temos hoje a sensação de que esses historiadores privilegiaram as fontes escritas, cujas
informações foram simplesmente corrigidas ou confirmadas pelas tradições orais. Os historiadores, na
maior parte dos casos, não analisaram suficientemente a lógica interna dessas fontes orais elas
próprias como um outro discurso histórico que teria sido transmitido com o objetivo bastante preciso
de contar a História.
O discurso de poder produzido pelos historiadores europeus, sobre possível falta de
produto material19
histórico da África Negra, lhes conferem confiabilidade e legitimidade
dentro e fora dos espaços acadêmicos, sobretudo ao que diz respeitos aos métodos e as fontes.
Assim como construções das histórias dos movimentos populares, a construção História da
África Negra era um grande desafio para a geração de historiadores da década 1960, centrada
17
VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: História Geral da África: Metodologia e Pré-História da
África. Vol. I. Brasília: Unesco, 2010, p. 139. 18
Boubacar Barry, foi um dos grandes historiadores africanos da segunda geração da Escola de Dacar (Senegal),
junto com outros historiadores de Adijan, Camaraões e, principalmente, do Zaire, criou a primeira Associação
Panafricana de Historiadores (1972). O objetivo da Associação era promover as descolonizações intelectuais
acadêmicas sobre a História da África, tendo como pano de fundo a “tomada de consciência nacional para
realização da unidade africana”, tal como propunha os historiadores, africanos, como Mohamed Sahli e Ki-
Zerbo. Suas primeiras discussões apareceram na revista Afrika Zamani (1975). 19
Aqui identificado como todas as produções, escrito tal como as formas europeias, sobre um suporte físico.
161
na ideia de contrapor boa parte da história do passado europeu sobre o continente que eram
escritas a partir dos documentos oficiais produzidos pelos governos coloniais – a história das
principais decisões e acontecimentos políticos europeus em África.
Sobre os Estudos Africanos em prol de historiografia africana
A crítica sobre as produções acadêmicas historiográficas europeias sobre a África,
desenvolvida pelos historiadores africanos, teve um amplo apoio de intelectuais ligados as
mais diversas às áreas dos saberes africanos. Pois não só visavam desconstruir o modo
pejorativo que os historiadores europeus concebem a África, mas também construir debates
sobre o que vem a ser os Estudos Africanos fora do continente.
Sobre Estudos Africanos, “estamos a referir-nos não apenas a uma disciplina, mas a
todo um leque de disciplinas cujo o objeto de estudo é África”, tais como a história, filosofia,
antropologia, sociologia, linguística e política africanas, interligadas de uma forma indireta
por meio de suas metodologias e teorias abarcadas em uma instituição acadêmica, fora da
África.
Sobre essa perspectiva, o imperativo África é visto e estudado com um objeto e não,
necessariamente, como uma tradição intelectual acadêmica construía e feita por africanos.
Desde modo, as produções historiografia sobre África é compreendida como um discurso
histórico de África e não, essencialmente, produção historiográfica africana. Portanto, não
podemos concluir que as produções historiográficas sobre África contribuíram, de alguma
forma, para construção de uma tradição historiográfica africana.
Para ilustrar essa compreensão, Hountondji20
nos apresenta a seguinte ideia,
Imaginemos um grupo de acadêmicos africanos que estudem japonês, por exemplo, ou Inglês, Alemão
ou Português. Deles não se dirá que estão a contribuir para o desenvolvimento de tradição de pesquisa
linguística em África, mas sim que estão a produzir uma linguística japonesa, inglesa, alemã ou
portuguesa.
Normalmente, os autores têm como premissa que os africanos não tinham consciência
da suas próprias história, e que apenas que as análises exteriores, ocidentais, poderiam traçar
as verdadeiros reconstruções e interpretações de suas histórias. As críticas sobre as produções
ocidentais sobre África, na década de 1960, estabeleceu uma distinção intelectual e acadêmica
entre historiadores africanistas e historiadores africanos, com implicações concisas sobre
conceito e metodologia da história africana.
20
HOUNTOUDJI, Paulin. Conhecimento de África, conhecimentos de africanos: duas perspectivas sobre os
estudos africanos. In_ SATOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs). Epistemologias do Sul. –
São Paulo: Cortez, 2010, p.133.
162
Assim, muitos historiadores ocidentais ao descrever, ou analisar os fatos históricos das
sociedades africanas, deixaram de poder serem vistos como pertencentes à história africana,
uma vez que o sentido de pertencimento à tradição acadêmica era demarcado pela etno-
história africana. Destarte, tal perspectiva não tem por objetivo excluir todas as produções
africanistas ocidentais europeias ou classificação entre a boa e má historiografia, pois foram
os lações históricos entre a historiografia africanista e africana que, de um acerta forma,
estimularam os questionamentos sobre as metodologias, conceitos e escritas sobre África.
Deste modo, identificar e traçar as contradições nos debates internos e produções
passaram a dar ardores a história africana. Entretanto Hountondji, salienta que mesmo com
todo o êxito das produções africanas, na década de 1960, elas careciam de uma investigação
voltada mais para o público africano do que responder aos anseios europeus. Assim, na visão
do autor, o que deveria ser preconizado nas publicações e produções acadêmicas africanas
seria: A escrita na língua locas e no do colonizador; voltar-se prioritariamente para o público
que fala a língua do escritor, trabalhar temas que possam trazer alguns ‘beneficio’ para as
comunidades linguísticas e, debater questões possam vir do interior, das comunidades, para o
exterior, público estrangeiro.
Para Hountondji21
o uso exclusivo de línguas europeias como veículo de expressão
cientifica reforça a alienação” acadêmica. Mesmo plausível e propícia, a tese expressa por
Hounondji nos possibilita mergulhar no universo das construções intelectuais dos historiados
africanos da década de 1960, que até então estavam embutidos sobre as perspectivas
historiográficas europeias, havia vista que grande parte da intelectualidade africana, deste
período, foi formada sobre as asas intelectuais das instituições europeus. De tal modo, a
crítica elaborada pela corrente historiográfica africana, do século XX, é feita a partir de uma
perspectiva vertical investida.
Os anseios nacioêntricos, também, expresso nas ideias de Paulin Hountondji, só ganho
forças na terceira geração de escritores africanos do século XXI., cujas as bases foram
erguidas a partir das tradições acadêmicas africanas do século anterior. Assim, os usos das
línguas europeias como meios de expressões e comunicações das produções africanas podem
ser interpretados como algo integrante na luta pela liberdade intelectual, construída por uma
geração tradicionalmente crítica à forma das dominações intelectuais.
No Brasil, em meados do século XX, assim como em boa parte dos países cujas as
instituições acadêmicas abrigavam centros de Estudos Africanos, o estudo sobre a História da
21
Idem 19, p.140.
163
África não estava totalmente desvinculado dos anseios acadêmicos norte americanos22
e
europeus, ou seja uma visão exterior sobre o continente. Mesmo as produções sobre África
escrita e analisada por historiadores afro-brasileiro não fugia dessa perspectiva.
Deste modo, os trabalhos acadêmicos produzidos pelos historiadores ‘afro-brasileiros’
podem ser considerados como eixo interpretativo externo da História da África, apoiada sobre
algumas ilusões indenitárias em relação a um passo “comum” dentro e fora dos núcleos de
estudos africanos. Institucionalmente, “os primeiros Centros de Estudos Africanos foram
criados no Brasil no apogeu nacionalista e desenvolvimentista”.
Em 1959, o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), sediado na Universidade
Federal da Bahia, em 1965, o Centro de Estudos Africanos (CEA), sediado na Universidade
de São Paulo e, em 1973, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), sediado na , ligado à
Universidade Cândido Mendes. Assim, a proliferação dos estudos africanos no Brasil,
sobretudo após a promulgação da Lei 10.639/03 – que obriga o ensino da História Africana e
História e Culturas Afro-brasileiras em todos os centros de ensinos. Em perspectiva
comparada, as similitudes e contradições Estudos africanos e a Escrita Africana, ressaltando
os risco de uma história única que não levam em consideração as especificidades regionais,
nacionais, culturais e transatlânticas entre o continente africano e o Brasil.
Brevíssimas Considerações
Este trabalho faz parte das analises, em construção, sobre a reescrita da história
africana no século XXI e seus impactos nas comunidades afro-brasileiras. Ele é apenas um
dos ganchos de perspectivas para as construções de uma epistemologia voltada para as
hermenêuticas ‘africanas’ em face aos processos de descolonização e independias dos países
do continente africano. A busca por uma história desvinculada dos pressupostos eurocêntricos
passou a ser a linha de construção dos novos Estados, sobre tudo abaixo da linha do Saara, e
ainda hoje se mantem atual e passível de investigações. Ressaltamos que este trabalho não
está de tudo acabado e, sempre estará aberto para receber críticas e sugestões.
22
Segundo Amina Mama (2010: 606) “A maior parte do que é recebido como conhecimento acerca de África é
produzido no Ocidente. Mais concretamente, os estudos africanos sediados nos EUA dominam a produção do
Conhecimento sobre África”.
164
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