a performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples
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1
Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes
Departamento de Artes Cênicas
A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou
da ação simples
Relatório Científico Final
Orientando
Graduando em Artes Cênicas
Lucas Freitas Peixoto Paz
Orientação
Professor Doutor
Antônio Carlos de Araújo Silva
Campo de Pesquisa
Projeto de estudo e pesquisa da área de Artes Cênicas
Pesquisa Específica
Projeto de estudo e pesquisa sobre a arte da performance investigada em espaços públicos
Projeto de Pesquisa sob amparo FAPESP a Iniciação Científica
São Paulo
2012
2
SUMÁRIO
RESUMO 3
RESUMO EXPANDIDO 4
INTRODUÇÃO 7
1 DA REFLEXÃO TEÓRICA ENTRE ARTE, MÍNIMO GESTO, AÇÃO SIMPLES E COTIDIANO 13
1.1 TROPEÇANDO COM LATÊNCIAS ARTÍSTICAS NO DIA-A-DIA 13 1.2 REPENSANDO O ESPAÇO URBANO COMO TRÂNSITO DE RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS 16 1.3 A ARTE INSERIDA NO FLUXO: “VALOR DE USO” OU “VALOR DE TROCA”? 25 1.4 ROTINA: PEQUENOS RITUAIS DO DIA-A-DIA 36
2 A PERFORMANCE EM ESPAÇOS PÚBLICOS A PARTIR DO MÍNIMO GESTO OU DA AÇÃO SIMPLES COMO LINGUAGEM ARTÍSTICA 39
2.1 DEFINIÇÃO TENTATIVA DE TERMOS 39 2.2 DOS PROCEDIMENTOS PRÁTICOS UTILIZADOS 49 2.3 ARTISTA-EXPOENTE DO MÍNIMO GESTO E DA AÇÃO SIMPLES: A PERFORMANCE DE FLÁVIO DE CARVALHO NO MODERNISMO BRASILEIRO 61 2.4 EXPERIMENTOS PRÁTICOS 86 2.3.1 EXPERIMENTO I: VIA PÚBLICA- TÚNEL PAPA JOÃO PAULO II 89 2.3.2 EXPERIMENTO II: PATRIMÔNIO PÚBLICO, MONUMENTO HISTÓRICO – THEATRO MVNICIPAL 113 2.3.3 EXPERIMENTO III: INSTITUIÇÃO PÚBLICA - CEPEUSP 151 2.3.4 OUTROS EXPERIMENTOS PRÁTICOS SOBRE O MÍNIMO GESTO E A AÇÃO SIMPLES EM ESPAÇOS
PÚBLICOS 165
PARTICIPAÇÕES EM CONGRESSOS E SIMPÓSIOS 180
CONSIDERAÇÕES FINAIS 200
REFERÊNCIAS 205
ANEXOS 209
OBSERVAÇÃO IMERSIVA E PROTOCOLO OBSERVACIONAL 209 ENTREVISTAS COM PROFISSIONAIS E PARTICIPANTES DOS EXPERIMENTOS PRÁTICOS 245 ENQUETES REALIZADAS COM PÚBLICO DO EXPERIMENTO III: INSTITUIÇÃO PÚBLICA-CEPEUSP 325 REGISTROS FOTOGRÁFICOS DOS TRÊS EXPERIMENTOS PRINCIPAIS DA PESQUISA 341 CONCEITUAÇÃO DE AÇÃO E GESTO POR PAVIS EM DICIONÁRIO DE TEATRO 425 ARTIGOS REFERENCIAIS 432
3
RESUMO
Este é um estudo qualitativo acerca da crescente privatização e desincorporação do
espaço público, suscitando em seguida a possibilidade de se repensar a construção e
manutenção deste através de um viés artístico, para além de questões exploradas pelo
urbanismo. Neste caso, explorando a performance através de ações simples e mínimos gestos
no espaço público, como forma potente de estabelecer trocas intersubjetivas em espaços do
cotidiano de fluxo constante.
4
RESUMO EXPANDIDO
O projeto de pesquisa intitulado A performance em espaços públicos a partir do mínimo
gesto ou da ação simples tem caráter qualitativo. Foi realizado um estudo acerca da crescente
privatização e desincorporação do espaço público suscitando em seguida a possibilidade de se
repensar a construção e manutenção do mesmo através de um viés artístico, para além de
questões exploradas pelo urbanismo.
O estudo explorou a relação teórica e prática entre performance, mínimo gesto ou ação
simples e espaços públicos, observando de maneira imersiva1 as diversificadas dinâmicas
sociais características de três espaços públicos da cidade de São Paulo -Túnel Papa João
Paulo II2, Teatro Municipal3 e CEPEUSP4, atentando para os diferentes graus do caráter
público que se estabelece em cada um deles.
Essa relação foi construída com artistas e cidadãos (passantes e habitantes de vias,
monumentos e instituições), através do desenvolvimento de ações artístico-performáticas que
se fundem ao cotidiano por uma expressividade sutil. Se não encaradas como um ruído quase
invisível, é possível perceber que carregavam um efeito em potencial de estranhamento da
realidade na relação intersubjetiva estabelecida entre performers e cidadãos, ao trabalhar
sobre aspectos como duração, repetição e dilatação extra-cotidiana das ações simples e dos
mínimos gestos no tempo e no espaço.
Foram realizadas entrevistas com cidadãos e artistas, dentre os quais: a professora
doutora Helena Bastos, do Departamento de Artes Cênicas da USP, com pesquisa sobre a
escuta corporal e a sutileza dos movimentos na dança contemporânea; o professor doutor e
ator pesquisador do LUME, Renato Ferracini, com pesquisa em curso sobre micropercepção;
o grupo OPOVOEMPÉ, com pesquisa em intervenções urbanas, teatro e performances através
de uma linguagem que explora o mínimo de elementos e ações. Realizamos também
entrevistas e observações dos participantes e espaços envolvidos no estudo, descrições
detalhadas das dinâmicas sócio-espaciais e dos procedimentos utilizados, e análises das
práticas realizadas.
1 Como o fazem as correntes etnográficas contemporâneas, buscando se inserir e se relacionar com o contexto observado ao invés de uma observação distanciada. 2 Via pública. 3 Monumento histórico e patrimônio público. 4 Instituição desportiva vinculada a USP
5
Como procedimentos e métodos de criação para as práticas artísticas utilizamos: escrita
em fluxo de pensamento, roteirização, “práticas cruas” 5 , entrevistas, assistir filmes,
espetáculos, exposições e ler livros relacionados aos nossos temas, inscrição e escritura
corporal no espaço, procedimentos de dança, programa de ação, improvisação e vivências.
Para coleta e análise de dados estabelecemos quatro filtros: observação imersiva,
autoria, silêncio, ação.
Aqui foi relevante debruçar-se sobre algumas obras do artista Flávio de Carvalho, para
em seguida analisá-las comparativamente às práticas realizadas, e mapeá-las através de um
fluxograma com critérios adotados para a divisão e os agrupamentos, de acordo com os
aspectos relevantes à investigação proposta: relação espaço-temporal estabelecida no espaço
público (data, lugar, observação imersiva, inscrição e escritura corporal, duração, repetição,
ritmo, energia), relação intersubjetiva proposta entre performer e cidadãos (performatividade,
presença, “valor de troca”), trabalho sobre o mínimo (gestos, ações, elementos e signos).
Como promover com mais recorrência experiências artísticas nos espaços públicos que
apontem para um “valor de troca” que esteja pautado não numa relação econômica, mas
social, filosófica, intersubjetiva? Este é o ponto central de nossa investigação. Como o
mínimo e o simples no campo da arte podem atravessar a complexidade, a extravagância e o
excesso da vida urbana espetacularizada? A hipótese com a qual trabalhamos para responder a
este questionamento foi a de investir sobre aspectos que denominamos como contra-fluxos do
espaço público urbano: invisibilidade, dilatação, silêncio, sugestão simbólica através do corpo
e dos elementos utilizados, ações cotidianas que deslocadas de seu contexto original revelam
sua potência artística.
Através do próprio fazer artístico nos experimentos práticos realizados, efêmero diante
da rotina dos espaços públicos em questão, a provocação reflexiva que lançamos é: Como
re-incorporar a cidade? Quais as possíveis maneiras de habitar o espaço público de modo a
ultrapassar as relações instrumental e funcional que lhe são próprias para construir relações
sociais, encontros, trocas de experiências?
O material resultante desta pesquisa com lente teórica investigativa pautada na área de
conhecimento das artes cênicas e performativas, tangencia algumas noções de arquitetura e
urbanismo e da antropologia, ao se debruçar sobre os ritmos, as formas de apropriação dos
espaços, as relações sociais e culturais estabelecidas entre os passantes, habitantes, usuários e
trabalhadores próprios destes mesmos espaços.
5Ações a serem realizadas sem ensaio prévio.
6
Palavras-chave: Performance; mínimo gesto; ação simples; Investigação artística de
espaços públicos; Inscrição e Escritura corporal no espaço; Espaço urbano; Entre-lugares;
Relação efêmera com espectadores; Repetição.
7
INTRODUÇÃO
“Entre”
“Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com
a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização” (DELEUZE e
GUATTARI, 1997, p. 51-53, apud FERRACINI, 2010, p.19; JACQUES & JEUDY,
2006, p.122).
“Do lugar onde estou já fui embora” (BARROS, 2010, p. 348).
Na condição de viajante, de nômade é que me vejo. Ser em mutação a cada segundo.
Ser que busca no outro, no desconhecido, no devir a si mesmo.
É assim que após sucessivos “partires” e “adeuses” retorno a cada vez a mim, habito o
“entre”, constante trânsito “entre” lá e cá. Assim foram, ficaram em meu corpo-cidade,
Fortaleza, Europa, Argentina, Austrália, Campinas, Bertioga, universos inteiros que me
passeiam o ser corpográfico6, o qual habita por ora este “país” São Paulo.
Nesta travessia de cada dia, ao ancorar por aqui haveria de descobrir um possível campo de
jogo para a arte (vida) que me permite renaScER em mim e no outro, a performance.
É descobrindo o trabalho de grupos e artistas como Marina Abramovic, Flávio de
Carvalho e La fura dels Baus - os quais se lançam com dedicação e consciência dos riscos que
correm para problematizar questões e propor novas possibilidades de existência - que me
desafio enquanto artista a sair do lugar comum o qual já reconheço em mim e no trabalho
artístico que realizei ao longo de 18 anos, para experimentar este “entre-lugar” que a
performance me instiga a compartilhar, de experiências com outras pessoas de maneira não
necessariamente mais direta, mas mais próxima entre seres.
Antecedentes
Ao analisar esta minha trajetória eu diria que a performance já estava presente no meu
primeiro trabalho artístico no teatro. Aos meus seis anos (1995) eu ERA o Power Ranger
Azul, minha imaginação me assegurava que sim. Para minha certeza de criança não vestia um
personagem, esta era senão uma de minhas tantas facetas, simplesmente agia. E não para
minha surpresa, no meu primeiro espetáculo7 éramos convidados pela diretora a ser quem
6 Ambos os termos, tanto corpo-cidade, como corpográfico são de autoria de Paola Berenstein Jacques (2006) 7No Teatro Baú da Fantasia do Colégio Cooperativo de Fortaleza, chamado “É tempo de ouvir histórias”, sob direção de Socorro Machado.
8
éramos em cena, estes eram nossos “papéis”, contando diversas histórias que passeavam pelo
nosso imaginário, não sem nosso próprio texto autoral por ela adaptado e por nós decorado.
Esta ocasião lembra-me um pouco “Pirlimpsiquice” de Guimarães Rosa, em que brincar de
ser já é simplesmente ser, reinventar-se a cada segundo em relação com estes outros que
habitam dentro e fora de mim. Eu, Power Ranger Azul na vida real, ia como eu mesmo para o
faz de conta da peça de teatro, não havia como ser diferente de VIDA. “sua imaginação que
cria o que quer” (Stefan Brecht, The Theatre of Visions, p. 222 apud GALIZIA, 1986, p.18).
Durante alguns anos o irmão de minha amiga, que assistiu a peça também tinha esta certeza
que eu era o Power Ranger Azul. Onde morava esta certeza? Simples imaginação da criança?
Acreditamos que mora na performatividade, de não separar ser e agir, mora na ação, esta
metamorfose ambulante, eu ERA o Power Ranger Azul.
Outra ocasião que hoje identifico a performance entrando em minha vida, antes que a
chamasse por algum outro nome que não a própria vida em cena (em ação, em relação), foi
um exercício cênico proposto pelo professor Joca Andrade, da disciplina Interpretação do
Curso de Artes Dramáticas da UFC (Universidade Federal do Ceará) em 2007.
Seguindo o programa proposto, dentre uma seleção de frases escolhidas pelo
professor, uma seria sorteada ao acaso para cada ator. Fui sorteado com a frase: “O Calvário
do Inocente que habita em mim”, e apresentei as seguintes respostas ao exercício8:
>Explosão de ideias sobre o tema: A devassidão, o desespero por abandonar o velho e se deparar com o novo: nu, cru, sem invólucros. Enterrar-se no desenterro da carne. Arrancar as raízes. A redoma de vidro quebrada. Mumificação, aprisionamento, sufocamento, incapacidade, tentativa de se inocentar, invalidez. Trapos atados à boca, ao sexo, às mãos, aos pés, apela para que tirem o trapo da boca, para que ele fale, está de cabeça para baixo. Creio em Deus Pai sem o “amém” (“amém” significa “que assim seja”). Posição fixa de desconforto com pernas apontando para frente e braços abertos lateralmente em cima de “altar de isopor” passando instabilidade e tortura. Olhar fixo chamando, implorando socorro. >Compreensão da frase: A partir da mesma pude identificar duas leituras: *o sofrimento, a morte, o expurgo ao inocente que habitava nele, o esquecimento ou a superação de um passado em que ele se arrependeu por ter sido bom, inocente, “bobo” demais, o início de uma nova fase. * Leitura da qual me apropriei e explorei: alguém sendo duramente julgado por suas atitudes, por seu comportamento, por suas crenças, por seu ser. Sendo apontado negativamente. E ele tenta com a última de suas energias, com toda a sua força provar que ele não tem que provar nada, que ele é para ser feliz do jeito que ele é, sem ter de satisfazer a vontade alheia, numa posição de total fraqueza e
8 Quem vos falava àquela época era um garoto de 18 anos de família cearense de classe média.
9
quase de submissão, mas resistindo à entrega, ele deseja não ser julgado, quer provar sua inocência. >Concepção cênica definitiva: Um homem com vestes brancas que cobrem o sexo e papel higiênico cobrindo a boca encontra-se desacordado e de cabeça para baixo apoiado pela cabeça e braços sobre um pedaço de isopor (da realização da “cena” eu fiquei somente com a cabeça apoiando o resto do corpo, com os braços abertos em cruz, punhos cerrados e pernas na vertical, crucificado de cabeça para baixo, referência bíblica). Abre os olhos vagarosamente e se depara com um ambiente estranho cheio de pessoas, quase como um “rei dos tolos” exposto em praça pública. Depois de começar a compreender a situação ele tenta erguer-se pelos braços (ainda de cabeça para baixo apoiado sobre a cabeça e contra a parede, necessidade que só se revelou quando do evento, pois o programa não havia sido testado ou ensaiado antes), mas seu corpo fraco e mutilado não permite. Após inúmeras tentativas e acessos de fúria, ao bater (com as mãos) no chão seguidas vezes (tão somente na tentativa de erguer-se pelos braços, sem sucesso), suas pernas vão descendo lentamente em posição fetal enquanto ele recita o “Credo”(de maneira acelerada até perder o fôlego, condição só definida durante o fazer e não previamente) engasgando em “donde há de vir a ...” sem conseguir dizer a palavra “julgar”, por fim cai e quando pensam que está “morto” ele volta e diz um amém sofrido e outro enfático, forte, quase demoníaco. >Sensações despertadas no ator: Achei uma experiência super válida e diferente do habitual.
Se àquela época a experiência afigurou-se para mim como diferente do habitual, uma
pulsão de vida, de presença em cena que jamais havia experienciado, hoje vejo o quão intenso
dados de performatividade se faziam presentes: forte sensação de autoria, alterações
psicofísicas reais -olhos vermelhos pela posição do corpo, desequilíbrio, alteração da
modulação vocal pela posição corporal, fraqueza na sustentação muscular ao progredir da
posição vertical para fetal-, senti-me “presente”, “verdadeiro”, eu mesmo em situação.
Pois, em ambiente acadêmico desde 2008, ao longo de quatro anos de curso, filtrando
e analisando a trajetória percorrida retroativamente, já experimentando praticamente algumas
das inquietações ao longo desses anos, selecionamos áreas de interesse despertadas por
matérias da grade curricular:
i) em Cenografia e Indumentária II- ao ler publicações e entrar em contato com o trabalho de
Marina Abramovic e Tehching Hsieh, estabelecer um interesse pela performance e uma busca
pelo “mínimo” (sempre tendi a uma grande profusão e justaposição simbólica de elementos,
queria experimentar uma outra possibilidade de ainda trabalhar com símbolos, mas de
maneira sintética, condensada, “concentrada”);
ii) História do Teatro III- ao pesquisar a trajetória artística de Flávio de Carvalho e catalogar
algumas de suas experiências performáticas;
iii) História do Teatro IV- ao realizar minha primeira performance em espaço público (uma
sala de aula da USP) a partir do mínimo gesto ou da ação simples: Tese X Antítese, como
parte de um seminário sobre Marina Abramovic, performance e ensino na universidade;
10
iv) Direção II (que seguia o módulo Espaço: do espaço teatral, ao espaço não-convencional,
à intervenção urbana)- ao realizar intervenções urbanas no centro de São Paulo, estudar e
trabalhar com textos de Gertrude Stein de maneira performática em espaços públicos diversos
e realizar entrevistas com Luis Paëtow, artista estudioso da autora. É nesta mesma matéria que
o título da pesquisa tem origem.
Após realizar na Universidade Estadual de São Paulo, na Universidade Estadual de
Campinas, em algumas cidades do Brasil e da Europa alguns experimentos práticos em
consonância com essa pesquisa, finalmente inicio o trabalho de sistematização e
desenvolvimento de conceitos e os apresento sob a forma de um seminário para a aula de
Teoria II, de onde tiro a conclusão de que o tema merece ser investigado mais a fundo
gerando uma teoria mais consistente e que possa vir a interessar outros artistas e
pesquisadores. Encontro aí a motivação necessária para acreditar na potência e
enriquecimento deste estudo para a literatura, e buscar um projeto de iniciação científica em
que possa aprofundar pensamentos e questionamentos, sob orientação de Antônio Araújo.
A tentativa aqui é a de esquematizar, estabelecer parâmetros e teorizar sobre uma
pesquisa empírica, determinada pela práxis, apoiando-se em literatura existente e em
fenômenos sociais identificados ao longo do processo, por exemplo, as formas de utilização
dos espaços públicos e formas de relação estabelecidas entre as pessoas nesses mesmos
espaços.
Creio que a performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação
simples também dialoga com outros grupos e artistas, por exemplo, algumas performances de
Marina Abramovic, as intervenções urbanas do grupo OPOVOEMPÉ e do teatro de invasão
de André Carreira, as micro-ações de Renato Ferracini, as proposições de re-habitar o espaço
urbano de Paola Berenstein Jacques, os experimentos radicais de Tehching Hsieh.
O leitor percorrerá um trajeto de leitura ao longo de dois capítulos em que o primeiro
capítulo apresenta o embasamento teórico, histórico e o contexto prático que dão origem ao
nosso recorte de pesquisa. São os motivadores, os gatilhos de pesquisa que ajudaram a
construir um raciocínio e estabelecer este objeto de estudo a partir dos seguintes vetores:
performance, o mínimo e espaço público. Este capítulo discutirá em quatro tópicos sobre: arte
presente no cotidiano, construção histórica do espaço público urbano, valor e função da arte,
rotina cotidiana composta de ações simples como processo mítico identitário.
Já o segundo capítulo dedica-se a uma reflexão sobre a prática e como parametrizá-la
como possível linguagem artística. Para tanto definiremos os termos com os quais estamos
trabalhando, compartilhamos os procedimentos utilizados para criação artística e análise
11
criativa, entrecruzamos nossa linguagem com o trabalho de Flávio de Carvalho e refletimos
sobre os experimentos realizados.
Seguindo adiante, o leitor testemunhará a relevância da participação em congressos e
simpósios para uma verticalização da pesquisa, sucedida por nossas constatações e
apontamentos após a realização do estudo proposto. Há a chance de aproximar-se do objeto
de estudo de maneira mais intensa através dos produtos gerados pela pesquisa: os protocolos
observacionais tanto do pesquisador quanto de participantes convidados, entrevistas
realizadas com artistas contemporâneos, enquetes com público dos experimentos, registro
audiovisual e fontes referenciais que direcionaram a visão do pesquisador.
12
1 DA REFLEXÃO TEÓRICA ENTRE ARTE, MÍNIMO
GESTO, AÇÃO SIMPLES E COTIDIANO
“Um homem escala uma montanha porque ela ali está. Um artista faz uma obra de arte
porque ela ali não está” (Carl Andre, Minimal Art)
13
1 DA REFLEXÃO TEÓRICA ENTRE ARTE, MÍNIMO GESTO, AÇÃO SIMPLES E COTIDIANO
1.1 Tropeçando com latências artísticas no dia-a-dia
Perceber a latência artística presente no espaço público urbano tanto quanto nas ações
cotidianas que ele abriga foi fator determinante para o estabelecimento da pesquisa proposta.
Uma vez que percebemos, por uma ótica sensibilizada para arte, que a arte, mesmo
que “invisivelmente”, já se dê no espaço público através de ações cotidianas realizadas por
“pessoas comuns” (capturadas pelo olhar do artista-pesquisador), por que não fazer do espaço
público o próprio lugar para se estar? Para que a arte se configure, nasça, seja criada em
“comuna”9?
É assim que resolvemos, pelo menos por ora, abandonar as “caixas pretas e brancas”
(edifícios teatrais e galerias) para fazer e buscar arte nos espaços comuns de convívio social,
as ruas, os espaços públicos, a malha urbana.
A investigação processual, o ensaio em si já se constitui enquanto ato artístico,
ambiente forjado dentro do espaço público para o possível estabelecimento de relações
intersubjetivas, encontros. Logo, uma das primeiras medidas tomadas para desenvolver nossa
investigação é a saída da sala de ensaio, desse enclausuramento criativo. Carregamos esse
nosso artista para a vida por entender que somos atuadores, performers, artistas-
pesquisadores, não só das 8:00h-18h de segunda a sexta, ou de 18:00h-23:00h de sexta a
domingo, mas diariamente, o tempo todo, pela ótica que enxergamos o mundo, da mesma
maneira que o médico o faz, ou o executivo, o padre, o voluntário social- “ensaio in
progress”. Então aqui os ensaios, a criação se constituem sim enquanto atuação artística.
Como é criar sob interferência do mundo, de tudo que nos cerca- pessoas, animais, clima,
geografia?- E como interferir nele, quer ensaiando, quer trocando com os outros esse material
desenvolvido a partir do ensaio? Até que ponto o ambiente externo atrapalha ou favorece?
Essas foram algumas das questões levantadas sob as novas condições de trabalho combinadas.
É a partir deste pôr-se no mundo, e parar para observar mais os eventos e
acontecimentos cotidianos que nos cercam, que começamos a capturar ações simples e
mínimos gestos cotidianos ricos em valor simbólico e com potencial valor artístico (uma vez
que destacados do frenético fluxo citadino feito de velocidade, excessos, absurdos e
9 Na idade Média, cidade emancipada que passou a governar-se. Ou poder revolucionário instalado em Paris, em 1871.
14
esquecimentos), e trabalhá-los em novo contexto, a partir de uma proposição artística que
escolhe ao mesmo tempo isolá-lo - enquanto evento estranhado da realidade - e inseri-lo num
todo, neste limiar entre visível e invisível - o que se escolhe dispender ou não atenção num
contexto que chama para um trânsito eterno sem direito a paradas.
Algumas imagens fortes que se impregnaram em nossa mente logo no início da
investigação e que servem como exemplo para tangenciar o que tem nos interessado capturar
do cotidiano, são as seguintes:
Um dia, ao transitar de carro, saindo da universidade, vejo um homem sentado em um
banco de cimento próximo a agências bancárias, de olhos fechados, e uma mulher que trafega
com suas mãos no entorno de todo seu corpo, mas sem tocá-lo, como se o estivesse
purificando, limpando-o de algum “mal”, renovando-o.
Outro exemplo é o de uma mulher que retirava um a um os objetos de sua bolsa,
agachada ao asfalto no meio de uma rua sem trânsito. Buscava algo, que não conseguia achar
de maneira nenhuma, revirava a bolsa inteira repetidas vezes, determinada a achar o tal molho
de chaves do carro.
Um grupo de pessoas reunidas em círculo dançando a noite no canteiro central de uma
via asfaltada.
Um jovem que deita-se num banco lendo um livro em frente a uma livraria recém-
reformada (a qual recebeu ares de nova e moderna), e já tão logo, após três meses de sua
reabertura, recém-interditada por tempo indeterminado para reformas outras no mesmo
prédio.
Enquanto artista perseguimos a seguinte inquietação: por que a arte se distanciou ou
deixou de fazer parte de nossas vidas de maneira cotidiana?
Os simples exemplos supracitados, para nós inusitados, despertaram nosso olhar para
uma fabulação ou estranhamento da ocorrência daqueles eventos em lugares públicos. Os
mesmos nos instigaram a uma motivação artística que poderia servir de provocação à nossa
inquietação:
Como trabalhar determinadas imagens cotidianas simples ou mínimas a partir de sua
potência simbólica latente, até elevá-las ao plano do absurdo ou não convencional,
conferindo-lhe uma “esquisitice”, despertando curiosidade e possível reflexão?
Identificamos que aqueles exemplos “banais” que nos sensibilizaram no cotidiano
estavam imbuídos de duas características:
Pareciam estar descontextualizados, ou fora de seu contexto original ou apropriado.
Afiguravam-se para nós como atividades a serem realizadas em espaços outros, de repente de
15
natureza privada, ações com caráter “reservado” e não de compartilhamento com outros
(cúmplices, vouyers), e que supostamente não se “encaixavam” em ambiente público por não
terem como finalidade a priori serem vistas, ou mesmo por “atrapalhar” o fluxo comum a
esses espaços, criando ruídos no cotidiano.
Ou ainda, o evento “colava-se” ao ambiente de maneira contrastante (alguém que
simplesmente escolhe ler em frente a uma livraria interditada), de maneira a revelar
contradições entre as formas de relações sabidamente impostas ou esperadas e as formas de
relações de fato instauradas naquele presente, naqueles lugares. O evento, a ação em si, trazia
um quê de pertencimento e não-pertencimento àquele ambiente, absorvendo e construindo
novas características junto com o espaço em que se dava, abrindo o campo para repensar
novas possibilidades de apropriação desses espaços públicos em questão.
Tínhamos então os elementos necessários para dar início às nossas pulsões de pesquisa
artística:
Compartilhar experiências entre pessoas através da arte
Arte presente no cotidiano das pessoas, arte na rua
Ações simples e mínimos gestos colhidos do cotidiano transformando-se em atos
artístico-performáticos a partir de modificações espaço-temporais em suas características
originais, explorando com veemência o plano simbólico-sensorial.
Para versar sobre a vontade em fricção com a realidade (Inscrição e escritura corporal
no espaço - apreensão e autoria, termos que desenvolveremos no tópico dos procedimentos
práticos utilizados) primeiramente faz-se necessário refletir historicamente sobre as
possiblidades de relação travadas no espaço público.
16
1.2 Repensando o espaço urbano como trânsito de relações intersubjetivas
"Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar" (Zygmunt Bauman)
Entendemos ou constatamos o espaço urbano10, até os dias de hoje, como trânsito
majoritária e imprescindivelmente de capital11, de moeda de troca, com valor econômico
agregado.
Quando o foco de exploração passa a ser não só de dominação de território, mas de
exploração de seus recursos particulares para troca com outros povos, e assim a criação de
novas demandas e necessidades, aí está o advento das polis como entendemos hoje.
Globalização é uma ideia antiga, basta tomar como exemplo as trocas mercantis já adventícias
do gigantesco império romano desde o séc. V a.C., que movimentavam mercadorias - e não
deixavam de estabelecer uma forte ponte cultural - entre várias partes do globo (África,
Europa e Ásia), as feiras e rotas comerciais insurgentes a partir das Cruzadas na Idade Média
(séc. XI-XIII), ou mesmo o Mercantilismo (séc. XV-XVIII) em que as potências do “velho
mundo” exploravam os recursos de suas colônias espalhadas pelo globo, numa competição
por acúmulo de ouro e prata.
Desta maneira, dando um salto para a atualidade, as antigas embarcações e feiras
foram substituídas por aviões, correios, ambulantes contrabandistas, motoboys e comércio
virtual. Hoje a noção de cidade como já constatava Roy Ascott em 1994, se expande do
universo real para o virtual. Arquitetura, transações, cibercepção e telepresença, todos: partes
de um novo mundo que se abre num campo impalpável e parcialmente visível virtual, de
paredes, janelas e nuvens invisíveis.
Como o objetivo maior em jogo é a circulação em detrimento da permanência, o fluxo
jamais interrompido de capital (esta abstração ainda dominante das relações, mas cada vez
mais invisível), a espetacularização em favorecimento da lógica da mercadoria saltou do
plano do “real” para o virtual como estratégia de aceleramento dos processos de transporte e
comunicação. Somos regidos por um bombardeamento imagético e nos encontramos mesmo
num momento de crise entre linguagem, pensamento e vida.
10 Como se configura desde o período de transição entre as classes feudais e os burgos a partir do séc. XI, com a ascensão da classe burguesa no séc. XVIII, ou mesmo desde o escambo entre as primeiras civilizações até VII a.C. (com as trocas de cevada, gado, sal e outros produtos tomados como moeda). 11A palavra capital, que designa patrimônio ou cidade-sede de um Estado, vem do latim capita (cabeça - de gado).
17
Nossa cibercepção 12 nos impulsiona a receber, absorver um mundo pautado por
imagens, referências das mais diversas partes do globo e fragmentos de informações, e
planificá-los indistintamente, substituí-los, torná-los resíduos de memória.
Teixeira Coelho em seu livro “O que é ação cultural?” enfatiza que uma época a qual
não consegue distinguir as coisas, diferenciar algo do seu contrário, é uma época de completa
barbárie. Passamos por esse processo de relativização, de livre associação, de novas conexões
jamais dantes imaginadas. Os livros são um algo a ser esquecido, as enciclopédias que o
digam! Já decretaram seu estado de falência. A rapidez da informação e da busca de
referências permite novas, falsas verdades a cada segundo, bem argumentadas inclusive.
Se antes a “construção de conhecimento” ou a busca e desenvolvimento de
determinado assunto era algo demorado, difícil e restrito, hoje em dia podemos conversar e
tirar dúvidas ao vivo a respeito de qualquer assunto de qualquer parte do globo, o
“conhecimento é acessível a todos!”, mas a construção de pensamento é que pode ser bastante
discutida, e essa sim pode ainda ser considerada limitada, em atraso no acompanhar o ritmo
do que se entende por conhecimento hoje.
Ainda temos bastante dificuldade em desenvolver um raciocínio fragmentado, de
associações que se desenvolvem em rizomas, em redes. Expressamo-nos majoritariamente de
maneira classicista, academicista, com início, meio e fim bastante determinados. Da esquerda
para direita, sem pausas ou cortes repentinos. É mesmo de se estranhar que apesar de tudo,
nossos aparelhos de educação, nossas mentes, nossos prédios não se adaptaram de todo a essa
nova percepção do mundo, onde a espetacularização dos meios sociais torna a possibilidade
de experiência cada vez mais rara e preenche nossas vidas de momentos liminóides13, falsos
instantes eternos, doses pontuais de expurgo anestésico.
Vivemos um choque de futuro e passado nas estruturas e desconhecemos o agora-
sempre atemporal (termo de Hakim Bey). “Escavamos em busca de mundos perdidos”.
(BEY, 2003, p. 6). Seguimos no fluxo das ondas deste mar urbano, caos controlado,
hipnotizados, destituídos do aqui-agora. Onde tudo escorre, tudo se dissolve e se confunde14.
Nesse sentido, de pensar o poder do capital na fundação e organização de cidades e na
relativização de valores e conhecimento num processo de dominação de massas, é necessário 12 A qual seria a possibilidade de ampliação da consciência para além de uma capacidade genética, mas agora altamente influenciada pelos aparatos tecnológicos que se tornam extensões de nossos corpos e relações ligados em rede. 13 TURNER,2005. Termo desenvolvido por Turner em contraste com situações sociais de liminaridade, as quais se caracterizam por processo de crise, ruptura e transformação. O liminóide seria uma falsa experiência de liminaridade. 14 Para aprofundar nessas questões: liminaridade, modernidade líquida, relativização de valores sociais e de mercado sugerimos: Turner, 1974, 2005; Debord, 1997 ; Bauman, 2001; Coelho, 2001; Bey, 2003; Fortes, 2006.
18
ter ciência que a estruturação das cidades tal qual a vivenciamos hoje é reminiscência e
reflexo da nova ideia de urbanismo que surgia à época do modernismo francês no fim do séc.
XIX e início do séc. XX.
Ao pensar no usufruto dos espaços públicos atualmente não podemos esquecer
exemplos históricos como o processo de urbanização instaurado em Paris em 1860 pelo então
prefeito Barão Haussman, com sua “visão pinturesca e estética”15 de modo a criar perspectiva
e mise-en-scènes na paisagem urbana da cidade-luz.
A cidade nesta época ainda carregava aspectos bastante medievais abrigando guetos e
vielas, e quarteirões insalubres. Sob suas novas condições de industrialização e ascensão da
classe burguesa, passa por um processo radical de redesenho urbano, o qual primava pela
harmonização, organização e funcionalidade. O objetivo era criar um só monumento em que
todas as partes se articulavam.
É assim que Haussman dirige várias demolições em todo o perímetro urbano com dois
focos: insalubridade e circulação - velocidade no sistema de transportes e informações.
Imperava uma lógica racional que atendesse aos diferentes fluxos. Assim Paris passa a ser
uma cidade com vias alargadas e bem iluminadas interligadas por praças, parques e jardins
que atendiam à classe burguesa. Os operários do centro foram expulsos para as regiões
periféricas da cidade, favorecendo um processo geográfico de marginalização e segregação
social, parte da higienização.
Essa nova conformação, com largos boulevards de cruzamento, de ligação norte-sul,
leste-oeste e os periféricos que delimitavam o espaço urbano - por onde entravam as
mercadorias necessárias à cidade, permitia um fluxo mais eficiente de mercadorias, visava
garantir a segurança nacional contra ataques externos e controle de insurreições populares
internas, e promover a higiene com uma reforma no sistema de saneamento.
Os novos edifícios, monumentos, cafés e boulevards, nesse processo de
embelezamento da cidade, acabaram por privatizar de certa forma o espaço público urbano
em favor de uma patrimonialização pública da história e da arte a serviço de uma classe
burguesa em ascensão.
Em resumo a finalidade principal da “Haussmanização” era abrir grandes passagens
para garantir a ordem capital.
Já no final do século XIX, “apesar dos ímpetos saneadores, foi patente a tendência de
preservação das malhas urbanas representativas dos tempos passados. Tal inclinação deveu-se
15 GUIMARAENS, 2010, p.16.
19
não apenas às resistências conservadoras à industrialização crescente e aos movimentos
progressistas, mas também à expansão e difusão da história da arte, da arqueologia e da
etnografia”. (GUIMARAENS, 2010, p.5)
Segundo GUIMARAENS (2010, p.8) “as ideias e as contradições dos processos de
destruição das cidades pré-industriais e da configuração funcionalista do urbanismo moderno,
a partir de 1860 e até meados do século XX, resultaram da “batalha” entre história e
historicidade. Ou, em outras palavras, entre a inércia e o dinamismo”. Entre museificação
(“fazer” a história) e musealização (garantir a historicidade das coisas e dos lugares).
Haverá então um processo um tanto contraditório nesse século XX entre construir
“cidades funcionais” que priorizam a modernidade (dinamismo, originalidade e novidade), e
defender patrimônios históricos em nome de um processo de identificação social e
preservação histórica, que em tese serviria para uma promoção cultural e garantia da
“coletividade”. Uma vez que nesse campo de conhecimento reconhece-se “a importância da
dimensão física na constituição do espaço social” (GUIMARAENS, 2010, p.3).
Uma proposta revolucionária da Carta de Atenas é que toda a propriedade de todo o
solo urbano da cidade pertenceria à municipalidade, sendo, portanto pública.
Em 1933 a Carta de Atenas é então redigida por Le Corbusier como um manifesto
urbanístico resultante da reunião de arquitetos e urbanistas no IV Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna.
Diagnosticando a estruturação de trinta e três cidades estes, majoritariamente
europeus, propõem-se a chegar à configuração ideal de cidade que atenderia
internacionalmente a qualquer país.
Ainda bastante contaminados dos princípios de harmonia e funcionalidade de
Haussman, eles discutem sobre patrimônio público e a construção de uma “cidade funcional”.
Pensada como organismo ela priorizaria o bem-estar e a natureza a partir da separação das
áreas de habitação, trabalho e lazer, substituindo as áreas de adensamento tradicionais pela
Cidade Jardim, edifícios em áreas verdes pouco densas. Buscava unir racionalidade urbana e
beleza.
Contudo, este documento determinante na urbanização de cidades de todo o globo,
inclusive do plano-piloto da Brasília de Lúcio Costa, apresenta consideráveis fragilidades
que se refletem ainda hoje na desincorporação do espaço urbano em favor de uma
espetacularização, rápida decodificação de símbolos de ordem e constante fluxo: grande
dependência de veículos, relativização da construção memorial e identitária do coletivo,
por uma seleção arbitrária do que permanece e do que é apagado da História (em se
20
tratando de patrimônio públicos), poucas possibilidades para os pedestres transitarem e
maior expansão urbana. A modernidade é um caos organizado.
Em princípio o raciocínio daqueles urbanistas visava a uma valorização da História e
da Arte como patrimônios culturais sociais, garantidos através das áreas de lazer, mas o que
vemos é um processo de embelezamento do cenário urbano dando lugar ao aparecimento cada
vez mais recorrente de “não-lugares”16 , “entre-lugares”17 ou “noplaceness”18, todos estes
lugares que não permitem a permanência, a construção social, identitária ou memorial, ou a
incorporação. Verdadeiros buracos, “fantasmas”, vazios que à primeira vista não convidam a
fruição.
Nosso desafio enquanto artistas-pesquisadores (e centro de fervoroso debate
atualmente: “Onde está nosso solo comum quando o espaço que ocupamos não se soma a um
lugar que possamos definir?”19) é como burlar ou reverter as estruturas que condicionam
nosso pensamento, para a construção constante de novas fruições e relações com o espaço
público, desafio este que os urbanistas também se impõem a partir dos preceitos e reanálises
na Nova Carta de Atenas (2003), configurando novas perspectivas que enfocam o cidadão
como protagonista da construção e desenvolvimento da malha urbana.
Não se trata de simplesmente ir contra-fluxo, contudo descobrir no fluxo, formas de
resistência, de desmecanização das relações, de instauração de debates públicos acerca do que
queremos enquanto sociedade. Como nós artistas podemos fazer isso? Cresce cada vez mais
as tentativas de diálogo direto entre arte, artistas, cidadãos e cidade, basta observar as
programações de espetáculos e exposições contemporâneos.
Flávio de Carvalho, justamente no início do século XX, já nos dava algumas pistas, já
buscava alternativas visionárias e provocativas. Realizava estudos e projetos arquitetônicos,
como as casas antropomórficas. Vários projetos arquitetônicos que repensavam a cidade como
organismo, como corpo humano, organizada de maneira concêntrica em diversos anéis, do
núcleo para as margens, com um fluxo entre passagens que priorizava e respeitava em graus
de importância o bem social em primeiro lugar, para além das questões do fluxo de capital.
Projetos arquitetônicos já em si performáticos, todos recusados nos diversos concursos
públicos municipais, estaduais e federais dos quais participou, inclusive da construção de
Brasília.
16 termo de Marc Augé. 17 termo que utilizo para lugares de passagem, lugares que ligam pontos da cidade, de não permanência. 18 “nenhum lugar”, termo recente utilizado por Atlanta Art Now um coletivo de artistas de Atlanta, in CULLUM, 2011. 19 Tradução minha de trecho da capa traseira de Noplaceness, CULLUM, 2011.
21
Se há esse desejo de intervir no espaço público, há, enquanto artistas, que conhecer e
estudar bastante uma determinada realidade para ver seus diferentes aspectos, incongruências,
dialéticas, harmonizações e trabalhá-los de maneira a suscitar questões no público, assim
como Brecht propunha, revelando plurifocalmente as contradições. Realizar uma etnografia
urbana20 buscando compreender as múltiplas relações de ver e ser visto, agir e receber,
perceber onde se está e o que se faz, para assim pensar em uma experiência vivida por
indivíduos de maneira coletiva, com a atuação de todos.
Ainda refletindo sobre: a força dos símbolos urbanos figurados pela arquitetura sobre
a construção do ser social (e vice-versa), o espaço urbano vinculado a uma construção de
mercado, e possíveis formas de ruptura das relações impostas já absorvidas, gostaríamos de
partilhar os pensamentos de estudiosos de períodos diferentes, Roy Ascott (texto de 1994),
Paola Berenstein Jacques, Fabiana Britto (2006) e Walter Benjamin (escritos organizados em
2006 na coleção Passagens).
Roy Ascott em “Arquitetura da Cibercepção” conclui que uma nova percepção
humana do mundo exige nova arquitetura sem maquiagem, sem espetacularização, sem
representação:
Talvez o desafio mais radical às velhas ideias arquitetônicas advenha das consequências da tele-presença, do self disseminado. Enquanto a identidade humana está ela mesma sofrendo transformações, e enquanto a mente colaborativa e a consciência conectada estão substituindo a mente unitária e a consciência solitária da velha ordem de pensamento ocidental, a arquitetura tem de buscar novas estratégias se quiser trazer ideias úteis sobre viver e interagir no mundo. A tele-presença é o território do self distribuído, de encontros remotos no ciberespaço, de um viver online. (ASCOTT, 2002, p. 37, grifo nosso).
A arquitetura contemporânea e o shopping se tornaram mais ou menos a mesma coisa. A arquitetura, ao virar as costas para a necessidade de respostas radicais às realidades do tele-self e da presença distribuída, é pouco mais do que um carrinho de compras, com uma grande quantidade de pacotes embalados, dando voltas pelas zonas estéreis de uma cultura de shopping center. Cada construção é um produto petrificado e embalado, cada componente é mandado pelo correio e escolhido a partir de um catálogo. O código do “tenha um bom dia” da prática da construção pôs a conciliação com a tradição na frente da colaboração com o futuro. Mas a necessidade de uma arquitetura de interfaces e de nós não desaparecerá. Viveremos cada vez mais em dois mundos, o real e o virtual, e em muitas realidades, tanto culturais quanto espirituais, independentemente da indiferença dos designers urbanos. (ASCOTT, 2002, p. 37, grifo nosso).
20 No nosso caso através do procedimento de Observação Imersiva.
22
Apesar de concordar em parte com suas colocações feitas há dezoito anos atrás,
enquanto Ascott defende um novo pensamento arquitetônico, em tom quase messiânico, para
esses seres humanos ciberceptivos da “nova era”, penso que a modernização, em constante
“evolução” desde aquele período até agora, como se apresenta em nosso cotidiano, só
reforçou ainda mais uma estrutura urbana espetacularizada que impede a instauração de
relações intersubjetivas - foi feita para ser vista, não vivida -, ao invés de a cidade caminhar
para “ser transparente em suas estruturas, objetivos e sistemas de operação em todos os níveis.
Sua infra-estrutura e sua arquitetura[...]‘inteligentes’ e inteligíveis publicamente,
compreendendo sistemas que reajam a nós.” (ASCOTT, 2002, p. 35).
Sim, vemos hoje grandes castelos de vidro, aparentemente convidativos e
transparentes em seu fins, mas que sob a incidência da luz do sol, espelham-se um a um em
reflexos infinitos da cidade num movimento alucinante, alienante, gerando corpos-reflexos,
escondendo por trás de si as paredes de concreto sustentadas pelos “anões corcundas
invisíveis” (BENJAMIN, 1987), os quais na quebra de um dos espelhos, rapidamente eles os
substituem por outros.
Já Paola Berenstein, arquiteta, e Fabiana Britto, dançarina, tendo como palavras-chave
coreografia, cartografia, corpo-cidade, deriva, errância, experiência, desenvolvem o conceito
de “corpografias urbanas” para propor estratégias de reincorporar o espaço urbano já
espetacularizado, camuflado, maquiado, desincorporado, vitrine, que esconde veias-entre-
lugares, que funciona como cenário cheio de não-lugares, de obrigação à passagem, não
permanência, essa arquitetura do não-lugar de ‘praças sem bancos’.
Como nós, viciados a um ritmo invisível, imposto e já intrínseco, voltarmos a viver,
nos por em relação mais ativa, redescobrir e recosturar esses elementos do espaço urbano, até
retornar ou criar novas estruturas para experienciá-lo (as pessoas, os fluxos e as coisas) mais
efetivamente numa relação de pertencimento, descobrir novos pontos de vista que não
estamos acostumados.
Walter Benjamin (2006, p. 560) aí nos inspira com o trecho [P 2, 2] •Antigüidade• do
arquivo P de Passagens, que reflete bem sobre essas ideias. De não deixar o cotidiano te
esmagar, te sufocar, mesmo num ambiente que se pressupõe de “conforto e descanso” que é o
lar, revelando que os “gonzos estão fora dos eixos”, e que podemos nos deixar arrebatar pelo
desconhecido numa relação de descoberta, apropriação, prazer, risco, dor, numa reinvenção
de si mesmo e desse corpo que abriga tantas cidades: “Quem quiser saber o quanto estamos
nos sentindo em casa nas vísceras, deve deixar a vertigem levá-lo pelas ruas, cuja escuridão
tanto se assemelha ao colo de uma prostituta”.
23
Acreditamos que a cidade, a metrópole, como um todo, em sua macroestrutura,
representa estratégias estruturais para circulação de capital da maneira mais eficiente.
O trabalho do performer neste caso de investigação compreende de sobremaneira
realizar o que chamamos de laboratórios ou vivências - verdadeiros estudos etnográficos,
imersões em determinados universos, experiências com dada matéria de estudo antropológico
- para atuação em uma realidade específica de maneiras: extremada, vista sob lente de
aumento, retratista, transformada em outra matéria, simbolista.
Assim, buscando esse desafio da arte através do mínimo ou do simples no espaço
público, como desestabilizar o cotidiano urbano, deslocar o fluxo comum, repensar as
relações sociais (mesmo algumas da ordem do privado) em ambientes públicos, nas ruas?
A fim de entender as subsequentes restrições de uso que o espaço público vem
sofrendo ao longo da história, mais especificamente envolvendo a malha urbana de São Paulo
e a possibilidade de uso artístico destes espaços, é que optamos por explorar a arte aplicada
em naturezas distintas do que se classifica como “público” numa cidade.
Dessa maneira, analisar em sua complexidade, através da proposição de ações
artístico-performáticas, os conflitos pertinentes a cada um desses espaços, que representam
em suas particularidades distintos caracteres públicos. Conflitos estes consequentes da
tentativa de permanência e instauração de relações intersubjetivas através da arte em espaços
a princípio destinados a este fim, de convívio social, mas os quais revelam contradições, no
momento em que suas limitações de usufruto saltam, pelo próprio fazer artístico, pelo próprio
agir nesses espaços públicos.
Tendo como base os estudos bibliográficos realizados apontando alguns
denominadores comuns do que constituiria o espaço público urbano, a estratégia tática para
apalpar concretamente o que antes se dava num plano das ideias, a qual estipulamos para fins
de pesquisa, foi a exploração de três noções de espacialidade que compreenderiam em maior
abrangência esta nomenclatura, “espaço público”: i) uma via pública; ii) um patrimônio
público; iii) uma instituição pública.
Atribuindo a cada um deles um experimento prático pautado num processo
metodológico de inscrição e escritura corporal no espaço, utilizando procedimentos que
trabalhavam com observação imersiva, silêncio, ação e autoria.
Como referência que reforça nossas crenças, buscas e indagações anexamos aqui um
breve artigo, que trata, entre outros assuntos, da interdisciplinaridade, da troca entre áreas de
conhecimento como possibilidade de constante repensar e refazer social:
24
Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada QUARTA-FEIRA, 28 DE NOVEMBRO DE 2012 Para urbanistas, artistas inspiram direito à cidade DE SÃO PAULO Ações culturais que ocupam o espaço público são sempre bem-vindas, defende o diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, Valter Caldana. "Hoje, a cidade faz cada vez mais parte do nosso cotidiano. Deixaremos de viver em casa para viver mais tempo na rua. O século 21 é o século do espaço público", defende o urbanista. A retomada de áreas degradadas não é um fenômeno exclusivo de São Paulo. Processos similares ocorreram em toda a Europa. "Mas não com as dimensões trágicas da cracolândia", diz ele. O urbanista considera que situações em Nova York nos anos 1980 se assemelham mais ao que houve aqui. "E os movimentos culturais foram atuantes lá também", diz. A degradação do espaço urbano acontece por deficiência do uso, explica Caldana. "Se há apenas um tipo de uso [só escritórios, por exemplo], esse lugar passa a ter problemas." O urbanista aprova a criação de um polo cultural na região da Luz pelo Estado, mas aponta que equipamentos como a Sala São Paulo e a Pinacoteca carecem de um projeto de integração. "Falta um elemento ali, que é o uso do espaço público. Eu vou à Sala São Paulo, mas saio dali e vou embora, não fico no bairro", explica. FESTAS Segundo Ermínia Maricato, urbanista da FAU-USP, ações culturais podem incluir a realização de festas, como as que o núcleo Voodoohop tem produzido na avenida São João e no Minhocão. Maricato lembra que "estamos em um momento em que o espaço tornou-se mercadoria". "Cada metro hoje é disputado", diz. "A arte tem a capacidade de lembrar que temos direito à cidade", diz. (GF)21
O artigo nos chama atenção por enfatizar o dado de que vivemos cada vez mais nas
ruas e que o espaço público precisa ser visto pelos urbanistas e governantes não como
mercadoria sob especulação, mas como o principal espaço de atuação social. O artista aparece
aqui como figura que chacoalha as certezas e acomodações, e através de intervenções
artísticas tem a possibilidade de alertar e mesmo transformar não-lugares, áreas degradadas
em áreas de permanência por meio de um fazer sociocultural. O urbanista aqui apela para arte
como meio de devolver a cidade aos cidadãos. E não seria isso que estamos buscando? Arte
mais presente no cotidiano das pessoas, pessoas mais integradas aos espaço públicos, mais
trocas intersubjetivas de ordem sociocultural se dando na malha pública urbana.
21Para urbanistas, artistas inspiram direito à cidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 nov. 2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/80454-para-urbanistas-artistas-inspiram-direito-a-cidade.shtml>. Acesso em: 29/11/2012.
25
1.3 A arte inserida no fluxo: “Valor de uso” ou “valor de troca”?
Como discutir questões e elaborar proposições que digam respeito ao público de
maneira mais próxima, de modo a aguçar veementemente os sentidos, um pensamento através
do corpo, dos corpos em diálogo direto, na tentativa mesmo de tornar estas experiências
coletivas?
Uma possibilidade seria através de jogos e imagens que envolvessem das mais
variadas formas a visão, os sons, o tato e um “novo sentido”: Risco, comprometer-se física e
eticamente com aquilo que se presencia, assiste, participa.
Apostamos na Arte como potente disparadora desses processos de relação
intersubjetiva no espaço público em que o fim não esteja focado numa troca econômica.
A arte, cujo radical seria ou a artesania ou o artifício de transformar, de entender a
realidade, existe desde a existência do ser humano e desde então nasce e se caracteriza como
algo público. É o que nos separa de outros seres, é o que nos torna humanos, é a criação, é a
possibilidade de criação, de trocar ideias, sentimentos e sensações com as pessoas, uma troca
entre sujeitos, entre seres que agem, uma troca intersubjetiva.
Matteo Bonfitto, em seu livro o Ator-Compositor dirá que nós temos três formas de
perceber o mundo, de apreender o mundo. Seria pelo intelecto, pelo afecto e pelo percepto.
Essas três formas de apreensão ou expressão do mundo passariam pelo campo da arte. Logo,
não estaríamos falando da construção de pensamento, de uma criação, de um relacionar-se
com o meio apenas através de um raciocínio lógico (do pensamento traduzido em número ou
em palavra), mas através desse não-dito, desse indizível, que é por onde a arte também
transita. Um autor para nós mestre dos indizíveis seria Manoel de Barros, ou o pintor Van
Gogh, eles conseguem manifestar em nós essa ligação neuronal de não-ditos que a arte toca.
Há esse lugar que Denis Guénoun no texto “A exibição das palavras: uma ideia
(política) do teatro” se referirá especificamente sobre o teatro22, mas acreditamos também que
se estende para qualquer campo da arte. É o fato de ela ser em princípio um lugar político de
debate, de fórum, de discussão, de fomentar discussão, de provocação, de busca de
entendimento, pela troca, pela fricção de pensamentos, portanto é pública, tem esse caráter
público imbricado.
22 “O teatro é, portanto, uma atividade intrinsecamente política. Não em razão do que aí é mostrado ou debatido - embora tudo esteja ligado - mas, de maneira mais originária, antes de qualquer conteúdo, pelo fato, pela natureza da reunião que se estabelece”. (Denis Guénoun, A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro, 2003, p.15).
26
O homem faz, manifesta-se, seja numa roda de fogo, num quadro ou num espetáculo
para alguém, para uma alteridade, para esse outro que existe. A arte engloba todos os meios
de pôr-se no mundo, participar da vida pública, posto que o ser humano carrega em sua
natureza essa característica relacional de perceber, inteligir e afetar-se pelo meio.
O homem tem essa “estranha” necessidade de “estranhar” as coisas que o rodeiam
para que assim possa explicar-se a si mesmo. Desconhecer-conhecer-reconhecer-criar
(processo espiralado de aprendizagem). O que é o conhecimento senão o compartilhamento
de ideias convencionadas para determinado meio? O ser humano descobre e se reinventa em
relação a cada segundo.
Quer seja dos desenhos rupestres, rituais de caça, lavoura e fertilidade da pedra
lascada (período paleolítico), à pedra polida (período neolítico), ao helenismo (culto e
acúmulo do que é considerado belo e grandioso), à democracia grega, às dionisíacas (grandes
assembleias públicas para discutir os rumos da cidade, da polis: as pessoas criticavam,
escarniavam, satirizavam o próprio fazer social ali, naquele momento do evento artístico, em
assembleia pública), ao teatro elisabetano (em que apesar de segregados em setores de
diferente valor monetário, todas as classes sociais se reuniam num mesmo edifício teatral,
alimentavam-se, discutiam e, novamente, criticavam em torno do fazer teatral diante de seus
olhos), ou à commedia dell’arte (que levava às feiras e praças públicas os modelos, conflitos e
tipos sócio-políticos do âmbito do público e do privado para serem postos à prova pelo riso -
reflexivo ou expurgador - de aprovação, desaprovação, identificação ou distanciamento das
situações retratadas em cena a céu aberto). É dessa maneira que acreditamos também nesse
poder da arte que acompanha e constrói civilizações ao longo dos séculos.
Ao nos reportarmos a esses diversos períodos ao longo da história, nos perguntamos:
O que é que está acontecendo com a arte? E com (a formação das) as pessoas? Esta forte
ligação à qual nos referimos entre arte e cotidiano está cada vez mais, em nosso entender, se
distanciando, não é algo costumeiro em se tratando de maiorias, não parece ser este natural
constituinte do ser social contemporâneo. Aparece, dependendo de civilização a civilização
contemporâneas, como mero detalhe dentre tantas outras “necessidades” humanas. É algo que
de certa maneira parece não fazer mais tão parte como outrora já fizera, algo que não “está”,
que tem de ser procurado.
Entrevistei profissionais tanto da área da dança, quanto do teatro e da intervenção
urbana. Uma descoberta que fiz ao entrevistar um deles, Renato Ferracini, me alargou a
compreensão do que seria espaço público. Porque a partir de meu entendimento sobre o
estudado estipulei três categorias de espaço público a serem analisadas: uma via, um
27
patrimônio público e uma instituição. E nesta entrevista o referido pesquisador23 me trouxe a
compreensão do corpo como espaço público. Se a princípio penso no espaço diretamente,
uma configuração espacial na cidade, ele retorna ao primeiro ambiente constituinte do ser
humano, ao primeiro ambiente constituinte da arte, o que gera tudo, que seria o próprio corpo.
Então que espaço público é esse que estamos falando?
O que me provoca e motiva o desafio ao longo da pesquisa é perceber este curioso
distanciamento das pessoas tanto da arte quanto do próprio espaço público. Se a arquitetura
enquanto área de conhecimento começa a se modificar e essa noção de estruturação da cidade
se modifica por conseguinte: alargar vias para que as coisas fluam, as vielas e espaços de
criação e convívio vão sendo suprimidos para dar espaço a uma dinâmica, a uma velocidade,
a um tráfego constante, a uma segurança nacional, pois os governantes e estruturadores das
cidades começam a se preocupar com os ataques de guerra e ter um planejamento urbano
específico. Então tanto a arte quanto o espaço público vão sendo suprimidos da nossa vida de
alguma maneira. Damos o velho exemplo sobre as “praças sem bancos”, praças que não são
mais habitadas.
Só temos direito a circular no espaço público. Assim aquele objetivo primeiro da arte
de troca intersubjetiva ou que seria o objetivo social, da arte e destes espaços, de troca entre
as pessoas, um espaço de debate, um espaço de fricção de ideias já não acontece mais, pois a
arquitetura simplesmente não permite que eles aconteçam: nos deparamos a todo momento
com obstáculos, placas, caixas. A arquitetura vai perdendo sua justificativa primeira que é
sócio-espacial, para ganhar um caráter simbólico, de símbolos que indicam o fluir, o
atravessar, o passar.
Arte e espaço público estão cada vez mais desincorporados dos seres humanos por um
voraz modus operandi mercadológico imposto à vida, o qual nos incute “nossas necessidades”
de maneira tão veloz que não nos sobra tempo nem de pensar sobre elas.
A partir deste levantamento, identifico no campo da performance um lugar de
tentativa enquanto artista-pesquisador de que a arte (vida) esteja mais presente na vida das
pessoas de maneira mais “descompromissada”, mais próxima, mais “casual”, mais cotidiana,
que ela esteja ali acontecendo tanto quanto o trabalho, quanto o fluir, quanto uma atividade
que se desempenha normalmente nesse espaço público. Pois acredito que a arte não está, não
deveria estar limitada aos artistas, ou para os artistas, como vem acontecendo.
23Renato Ferracini é ator do grupo LUME de teatro, sediado em Campinas.
28
Assumindo enquanto artista-pesquisador o viés de exprimir um ponto de vista talvez
bastante pessoal, unilateral e generalizante o que identificamos a partir de nossas observações
é: a maioria das salas de espetáculos e programações artísticas são preenchidas e frequentadas
por quem já faz arte. Há muitos programas artísticos de caráter e acessibilidade públicos que
atendem um público já especializado, ou estão esvaziados por motivo de falta de informação
ou “desinteresse” - de onde brota esse “desinteresse”? - , ou o fim social se sobressai ao fim
de formação artística. As salas de espetáculo frequentadas por um público composto em sua
maioria de “não artistas” geralmente têm valores comerciais que restringem a acessibilidade e
a temática recai sobre sexo, melodrama ou humor em que o público vai não necessariamente
para se repensar através da troca que se dá, mas para “aliviar-se” do dia-a-dia, para “não
pensar em nada”.
A presente pesquisa defende a partir de seu recorte que a arte poderia ser feita por
qualquer um em gestos simples ou ações simples.
Neste sentido o Grotowski falará dessa “consciência” do performer que não estaria
encarnando um personagem, mas seria uma pessoa com uma questão que está lançando-a para
outras a fim de suscitar debate, construção, reafirmação ou reanálise de ideias. Ele coloca a
imagem, a metáfora do pássaro que bica e do pássaro que observa. Como você ao mesmo
tempo que propõe uma ação, tem consciência daquela ação? Como você consegue se
perceber com o entorno e dialogar com esse entorno? Não se valer de um roteiro que está
externo a você e que você simplesmente executa, você é senhor da sua criação também. “O
Performer, com maiúscula, é o homem de ação. Não é o homem que faz o papel do outro. É o
dançante, o sacerdote, o guerreiro: está fora dos gêneros estéticos. […] Pode compreender
apenas se faz. Faz ou não faz. O conhecimento é um problema de fazer.”24 Esta citação não
me deixa esquecer o texto de Schechner, Between Theater & Anthropology, que apresenta
vários pontos de contato, quando associa a figura do performer a toda e qualquer atividade
cultural e religiosa pautada na realização de ações que se repetem ao longo de gerações. O
que fazemos, que histórias nos contamos para lembrar a nós mesmos, sociedade, quem
somos?
“Nunca se produziu tanto pensamento, tantas teses em arte, mas para quê? Para
quem?”25 Arte para qualquer parte? Qual é o valor da arte?
Elaboramos a seguinte pergunta aos participantes deste processo investigativo (atores,
não-atores, performers, diretores e dançarinos), a qual nos interessa compartilhar: a Arte seria
24 Jerzy Grotowski. El Performer. Revista Máscara, n. 11-12, p. 78. 25 Fala de Sérgio de Carvalho em mesa redonda na V ABRACE, USP, 2009.
29
ou visaria uma “troca” de experiência? O “valor de troca” da arte é social ou econômico?
Qual a diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”? Transcrevemos aqui alguns trechos
das entrevistas realizadas relativas a essas questões:
Renato Ferracini (Professor Doutor e ator do LUME)
R – Eu não vejo como nenhuma das duas coisas. Eu vejo seu valor como valor sensível.
Também não é troca de experiências. Ela deve gerar um campo de experiências onde os
encontros possam acontecer nesse lugar, e aí pode-se trocar afetos, percepções, sensibilidades.
Há compartilhamento de sensibilidades, uma partilha de sensibilidades. É difícil falar da arte
em geral. Algumas manifestações artísticas têm como objetivo – mais potente, a meu ver –
esse compartilhamento de outras formas de ver, de tocar, de sentir o mundo. Claro que isso é
transformado em valor de venda, como nosso espetáculo (Os Bem Intencionados) coloca.
Todo mundo precisa de patrocínio, vender espetáculo, um SESC que compre...mas comprar o
quê? Justamente, a nossa crítica engloba tudo isso. O que está em questão é: essa obra de arte
potencializa afetos, encontros? Pra mim só pode ser chamado arte se houver e se conseguir
efetuar esse tipo de encontro aumentativo de potência. Eu não vejo como troca de experiência,
não é a experiência do artista que está sendo trocada com o público, nem o contrário. Nesse
campo você aumenta a potência criativa de todo mundo que está dentro. Lugar de
criatividade. O público tem que criar junto com você. E também não vejo a arte só como lugar
de crítica, esta vem no bojo dessa relação, é quase uma consequência natural. A partir da
criação desse espaço você gera outras maneiras sensíveis de ver o mundo, e para isso precisa-
se gerar uma resistência ao modelo estabelecido de sensibilidade. Então naturalmente a
relação crítica vem, ela é consequência e não objetivo, apesar que sempre presente se a arte se
efetua de fato. Qualquer compartilhar de sensibilidades hoje é um ato absolutamente de
resistência política, mas a resistência política vem como consequência do partilhar a
sensibilidade.
L – Às vezes vemos trabalhos de artes visuais que classificamos como “pura forma”, algo que
não nos toca de maneira nenhuma, então me pergunto onde está a crítica...
R – Para mim, se eu faço arte consequentemente faço crítica, mas eu não busco a crítica na
arte. Para mim o objetivo é compartilhar sensibilidades, para isso é preciso resistir a uma
sensibilidade dada a priori, e isso é um ato político, um ato de resistência. Quando você
conscientemente quer ser crítico, geralmente o espetáculo sai ruim. Você começa a adentrar
as fórmulas de crítica, começa a contrapor um modelo a outro modelo.
L – Porque dessa maneira se impede aquela multiplicidade da qual falávamos ontem.
30
R – Exatamente. Modelo contra modelo cria outro modelo que vai se tornar hegemônico
como esse. A revolução russa foi isso. Criou um modelo hegemônico em contrapartida a outro
modelo. Até que ponto isso é interessante, eu me pergunto. Meyerhold foi assassinado pelo
regime dito democrático. Até que ponto não temos que criticar todos os modelos? Se você faz
arte você está fora de todos os modelos, compondo com todos eles. Hoje você só faz arte com
patrocínio, Petrobras, SESC, universidade, e todos eles fazem parte dos modelos
hegemônicos. Ou você compõe com isso, fissura isso, e através disso você faz, ou eu não sei
como seria possível para fazer de outro jeito. Senão é só discurso, ideologia vazia. E
concomitantemente consome-se Coca-Cola, em seu Volkswagen, vai à Blockbuster, aluga um
filme hollywoodiano, compra vinho de grandes potências europeias, numa taça Nadir
Figueiredo. E assim o mundo caminha.
L- Na conversa do bar.
R- Sobre quão nós devemos ser resistentes a tudo isso. A arte busca outra coisa, senão é muito
hipócrita.
Helena Bastos (Professora Doutora e dançarina do MUSICANOAR)
H- Aí você já está indo para uma linha de economia cultural, não é? Economia criativa. Eu
reconheço a arte como produção de conhecimento, é como eu entendo. Hoje em dia, no
contexto das políticas públicas, estamos começando a discutir, a arte tem determinadas
particularidades. Penso que é importante esses editais de fomento, logicamente eles acabam
dando visibilidade a determinados pensamentos e sobrevivência a determinados pensamentos
criativos. Por outro lado começa a haver uma onda inversa desses grupos que acabam sendo
fomentados, por exemplo, eu atualmente sou uma fomentada, digamos assim. De gerar
também... Esse circuito vai se fortalecendo, você começa a ver que há um certo rodízio, uma
hora você está dentro, outra hora você está fora. Os grupos começam a ficar reféns desses
jogos do editais. Estão aparecendo outros tipos de problema, não estou falando que sou contra
as leis de incentivo, mas temos que pensar também esses outros lugares da arte. Há um grupo
que estou fazendo assessoria em Ribeirão Preto e a princípio meu combinado com eles era de
ir aos sábados. Ele ganharam proAc e, quando comecei, a diretora mudou para segunda-feira.
Eu perguntei por que e ela alegou que era o dia de descanso deles. Tudo bem, também somos
trabalhadores, mas essa relação na hora que entra conceitos de bens materiais... é um campo
que precisamos discutir, porque eu vejo nesse momento muitas incoerências também. Vejo
avanços, por exemplo, eu mesma não consigo produzir se não houver um respaldo
31
econômico, mas sou de uma geração que vendia meu carro para pagar as coisas, a geração
“quebra pedra”.
Vejo pessoas saindo da universidade falando já da “minha pesquisa”. Agora depois de trinta
anos que estou começando a entender a minha pesquisa. Sua geração, sinto que tem um
discurso bastante potente, mas percebo também ser um discurso muito desencarnado. Uma
coisa é o que você fala, tem aquela potência, mas eu quero perceber esta potência também no
corpo.26
L- Você estava falando do gerar conhecimento também no fazer, não é?
H- Senão vira retórica. Ou este grupo de Ribeirão é super legal e todos os bailarinos vieram
de condições difíceis. Gerados desse âmbito do social, há um lugar muito precioso no trabalho
que se está fazendo nessa companhia. Ao mesmo tempo me choco, pois pegam as leis
trabalhistas, não sei se estou sendo incoerente, mas se você é um artista... é um outro jeito que
eu produzo, que eu penso a ideia de trabalho. Temos que garantir esse chão, mas não posso
me colocar igual a um metalúrgico, e não estou fazendo uma questão de valoração. Mas a arte
em si, se tem (deveria ter) algo de atravessamentos, rupturas, então (a partir do exposto)
começa a ser uma arte muito conivente com as regras do sistema.
L-Que para acontecer tem que ser sempre mediada por uma condição...
H- É.
L- Se não tiver fomento, “não rola”.
H-Exatamente. Mas também tem uma série de questões que, por exemplo, eu até estou lendo
uma tese. Dança é tida como o 4o lugar dentro das perspectivas de programas de cultura.
Deixa eu até ver para não falar bobagem:
“São poucos que sabem que se trata de um campo em expansão. No Brasil, teve no primeiro
panorama estudado em 2006, quando o IBGE apurou que as famílias gastam 4,4% do seu
orçamento em cultura”. Cultura é o 4o lugar
L- É o quarto lugar dos gastos numa família?
H- Isso. É um ambiente, e não sabemos disso...
L- Você sabe quais os 1o ,2o 3o ?
26 Posterior crítica reflexiva minha enquanto artista-pesquisador que passou pela experiência do bacharelado em artes cênicas na universidade: isso se deve à produção e pensamento em arte como vem sendo disseminado e construído em ambiente acadêmico, ao qual estamos o tempo todo sendo convidados, a definir nosso discurso, nosso campo de ideias, muitas vezes antes de se lançar a uma investigação prática. Por outro lado percebe-se ao longo desses anos que os alunos universitários aspirantes a artistas quando interpelados pelos professores não apresentam questões consistentes ou fortes pulsões, não mostram consciência das problematizações incorporadas em seu fazer.
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H- Olha: “Habitação, alimentação, e transporte” quer dizer a saúde vem depois da cultura.
Isso é um dado do IBGE, está vendo?27 Já estamos em 2012, mas não é tão longe assim. A
dança, se não me engano nessa questão da cultura, não sei se é a primeira...tenho que ler mais.
L-Qual é essa tese?
H- Da Dora Alice Leão “Uma fábrica de mentiras: A incomunicação da economia da dança”.
Essas suas perguntas convergem bastante com as questões de sustentabilidade, de divulgação
da cultura, de formação de público. Isso tudo gera um ambiente. Eu sinto que hoje as leis de
incentivo acabam demarcando um panorama que vai mapear os que estão dentro. E os que
estão fora?
Cristiane Zuan Esteves (jornalista formada e Diretora do OPOVOEMPÉ)
C – No mundo ideal o ato artístico deveria acontecer sem trocas econômicas e no âmbito do
homem com o homem. Nosso trabalho no mercado jamais se sustentaria, teríamos que cobrar
caro para sustentar contra-regra, é uma mobilização muito grande. A arte acontece na
experiência do outro. O valor social dela é uma consequência, penso. Se a arte tenta somente
ser social ela não chega no cerne, pois está muito mais próxima da filosofia, da religião. É no
âmbito do inefável, do indizível. Então às vezes tem ações sociais que se valem de
procedimentos artísticos, por exemplo trabalhar uma coisa educativa de arte com crianças,
elas vão desenvolver um potencial artístico na relação com o mundo. Porém a arte tem esse
poder e não somente o trabalho social. É muito difícil fazer as coisas assim, você tem que
fazer as pessoas se perguntarem e se colocarem em movimento. Já o âmbito econômico é
onde precisamos ganhar dinheiro para sobreviver, comprar livros, pagar os outros. Mas nosso
trabalho não visa isso, sempre fizemos com muito pouco dinheiro. Quando ganhamos o
fomento isso significava muita responsabilidade mas também muita liberdade. Não
precisávamos fazer um espetáculo que desse bilheteria. Eu sou a favor de que ações não-
comerciais sejam apoiadas pelo poder público.
27 Posterior reflexão minha enquanto artista-pesquisador diante do dado: mas o que significa de fato a saúde vir depois da cultura? Pensando em gastos a nível familiar, as condições de saúde estão melhores se comparadas a outras épocas? Pessoas prescindindo menos de gastos com saúde ou não? Por que razões a cultura se enquadra antes da saúde com relação aos gastos familiares e o que está sendo tomado como ‘cultura’ na avaliação estatística?
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Ana Luiza Leão (atriz do OPOVOEMPÉ)
A – Eu tenho uma imagem aqui. Essa obra de arte gera algo para quem vê. A arte toca o ser
objetivamente no profundo do ser, esse conceito é o da arte objetiva, do Peter Brook. E em
que medida eu também não alimento isso, além disso me alimentar. Eu não saberia dizer em
que proporção se dá a troca. E eu não vejo a arte financeiramente, isso é um jeito que ela está
sendo trabalhada hoje. Há outros jeitos. Quando eu falo de moeda, por exemplo, que para
mim é energia. E se você guarda o dinheiro a energia para de circular. O consumo está num
lugar muito raso, a posse é “excessivamente importante”. Achei a definição de espetáculo
aqui, é olhar atentamente. Você precisa de um tempo para se dedicar àquilo. Quando
propomos para o público em uma de nossas intervenções, Parada para respirar, pôr o pé na
grama, a pessoa sai diferente daquela experiência.
E tem muitas pessoas que não dão abertura pra nós.
L – Elas estão esperando o espetáculo social (merchandising), talvez. Virou como o ‘compro
ouro’ para as pessoas.
A – É, e realmente eles não falam com o rapaz que compra ouro. Mas eu não saberia por onde
pensar valor de uso e valor de troca. Por princípio a arte só existe se alguém olha. A troca
existe, com tempos diferentes. Às vezes eu assisto uma peça que foi escrita há mil anos atrás.
Também há a troca como energia. Dentro do tempo não há nada parado. A princípio a troca é
social mas também se insere no econômico, é inerente. É social, é político e também é
necessariamente econômico. E dentro disso você vê os valores, que são questionáveis.
Depende de como julgamos os valores hoje. É difícil porque penso em manifestações mais
ancestrais, como dança, pintura, teatro. As pessoas precisam de coisas que as reflitam, que as
façam questionar. Eu não conseguiria pensar num teatro comercial hoje.
Otávio Oscar (formado em direção teatral)
O – A arte é como engenharia ou ciência, pode ser usada para diversos objetivos, como a
bomba atômica, ela foi idealizada para outros fins que não o que vimos acontecer. Ela foi
idealizada para criar energia. A arte também, pode ser altruísta, provocar, melhorar, por outro
lado também pode ser usada para vender ideias, para fixar pontos de vista, e até mesmo para
fazer as pessoas se acomodarem. Eu penso no teatro do Padre Anchieta, que era feito para
catequizar os índios.
L – O que seria da publicidade sem a arte?
O – É. Só o ‘beba Coca-Cola’ não seria suficiente. A novela também, tem sua estética
consolidada, e faz com que você esqueça a realidade ao seu redor. E a arte pode ter um valor
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de troca, pode ser usada para produzir, potencializar, e o valor de uso depende dos objetivos
que se tem. Hoje está muito associado ao valor e econômico. Então se você não gera lucro
com a arte, fica difícil fazer mais arte. Você é menos valorizado. Essa dimensão da arte
provocadora, por contextos sociais, está em baixa. O sistema produtivo determina esse valor.
Hoje a arte mais voltada para o lucro está mais triunfante. A arte consumível. Não se entende
como experiência, sim como produto. E a mídia também constrói isso. A maioria dos
performers do mundo são marginais, mas pensando-se na Marina Abramovic, o trabalho dela
gera muito lucro, fala-se muito dela. Tem grande valor de troca. Para um museu isso é
interessante, atrai mais pessoas. Mas para mim o maior potencial é o provocativo, mesmo.
Thais Lucena e Vanderson de Sousa (graduanda em relações públicas, atriz, não-dançarina/
formado em biologia, mestrando em biologia, graduando em ciências sociais, não-dançarino)
T – Tudo é uma troca, a arte visa a troca de experiência, sim. Isso constrói as pessoas e as
pessoas constroem a arte.
V – Se você faz uma peça, tem um valor de uso, pode ser o lazer. Para você, que trabalhou, é
um valor de troca. Mas o público te dá de volta em troca? Uma platéia com cem e com uma
pessoa é a mesma coisa?
T – Sim, o público responde, corresponde, dá calor. E é muito diferente a relação entre as
duas platéias, até o calor muda.
V – Se a peça só tem valor de uso para a plateia, não há valor de troca. Se é indiferente para o
artista.
T – Acho difícil que não aconteça troca. A presença ou ausência das pessoas tem significado.
V – No contexto de hoje sempre tem a troca cultural e econômica. Mesmo que não seja com o
público, você precisa ganhar dinheiro. A economia é a base da execução. Realmente, quando
as pessoas já visam o lucro desde o início, o valor é econômico.
T – Se a pessoa só trabalha com isso ela precisa se preocupar com o dinheiro, claro.
V – A peça ‘Trair e Coçar’, por exemplo. Não deixa de ser arte, mas eles visam a bilheteria. É
diferente da cia. de teatro que atua na zona leste.
T – Mas também não é um problema querer crescer e ganhar dinheiro.
V – Não é, mas é diferente.
L – E a diferença entre valor de troca e de uso?
V – Cada objeto tem valor de uso e o valor de troca é a relação entre todos os valores de uso.
Um quadro do Picasso hoje, no começo talvez só tivesse valor de uso para quem conhecia e
sabia sobre, e hoje tem um valor de troca altíssimo.
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T – O valor de uso talvez seja mais sobre o que a arte pode transformar na vida das pessoas, e
isso se estabelece pela troca.
V – Quando uma pessoa se dispõe a ficar duas horas vendo uma peça, é o valor de uso.
T – Mas é inacessível para o público, porque não se sabe direito como se vai usar aquilo.
V – Sim, como ler um livro, é um trabalho de decodificação.
Patrícia Bispo (graduanda em artes cênicas)
P – Tem trabalhos que têm valor de troca muito mais econômico.
L – Qual a diferença entre valor de uso e valor de troca?
P – O valor de troca está mais ligado ao valor econômico e o valor de uso a outras questões,
como o que se espera da arte, no sentido de que se possa apreender algo de um trabalho. Acho
que a arte deveria estar dentro do valor de uso. Quando fazemos arte não é só pra nós mesmos
e não necessariamente para vender.
L – E você acha que a arte busca essa troca de alguma coisa?
P – Depende de quem faz, mas no geral, sim.
Após esses diversificados pontos de vista, muito mais do que concluir ou responder a
essa pergunta, instiga-me a busca. Que caminho (e que escolhas ao longo do caminho)
traçarei enquanto artista diante do reconhecimento histórico dos fluxos nos quais estamos
inseridos, para viabilizar questões prementes apontadas em nossa sociedade (e reconhecidas
em outras tempos e outras sociedades), captadas por meus percepto, afecto e intelecto, e
traduzidas esteticamente a uma experiência intersubjetiva com outrem, instigando estes outros
percepto, afecto e intelecto particulares e passíveis de transformação em via dupla.
Foram apontados o valor da arte enquanto campo de sensibilidade e potencialização
criativa, enquanto produtora de conhecimento, enquanto ofício passível de reconhecimento
econômico ou financiamento público ou privado (mecenato), enquanto campo cognitivo de
atribuição de sentido, enquanto campo antropológico necessário do que não tem explicação,
enquanto produto gerador de lucros, enquanto campo próximo à filosofia e à religião,
enquanto campo de ligação e troca de energia entre os homens, campo de experiências.
Nesse caldeirão criativo, aponta-se um solo fértil sobre o qual atuar. Ainda estamos
falando de trocas sensíveis entre seres humanos.
36
1.4 Rotina: pequenos rituais do dia-a-dia
Refletindo sobre o distanciamento entre arte e cidade, salta a mente as palavras mito,
rito e rotina. O ser humano é um ser altamente ritual, cria seus pequenos rituais diários, para
se reconhecer, ter identidade. Sabe quem é pelo que faz (e se faz, faz em relação a um
ambiente de convívio, o que envolve ancestralidade e mito), pelo que pensa que é e pelo que
os outros pensam que é. Este é um processo de negação: eu sei o que sou, muito mais por
criar consciência do que não sou, e essa consciência só se torna possível pelo ambiente, pelo
outro, pela noção intrínseca ao ser humano de alteridade. A partir do momento que me
percebo distinto do outro por certos aspectos, é que formo minha própria identidade.
Recentemente ouve-se: “a sociedade contemporânea do séculos XXI é uma sociedade
fragmentada, sem mitos” “Os homens de hoje vivem numa sociedade em que impera uma
relativização de valores, amoralidade, a pulverização dos mitos”.
Discordamos dessas colocações quando defendem de maneira generalizada e
generalizante que o ser humano não é mais regido por mitos. Seria simplório pensar que os
mitos, tais quais foram concebidos para explicar e lembrar ao homem quem ele é, se mantêm
intransponíveis e determinam puramente a existência humana, como simplório seria acreditar
na morte dos mitos. As sociedades se transformam e os mitos sofrem alterações, estão
passíveis a transformações, rupturas ou novas criações de acordo com as questões sociais que
configuram particularmente cada povo e cada época.
Mas relacionar-se com o ambiente e com o outro é parte da natureza humana, logo,
seres em constante mutação, estaremos sempre forjando novas regras de convívio e formas de
permanência.
O que seria então a rotina senão a estruturação de pequenos ritos diários? É assim que
identificamos a cultura de um povo, ou de uma classe, ou de um indivíduo, a partir do
reconhecimento da particularidade de seus costumes, hábitos, eventos, ações, repetições. O
ser humano é um ser de repetição.
À luz da compreensão que Marina Abramovic nos traz, nossa rotina ou as alterações
em nossa rotina, as mais simples ações diárias é que determinam nossa cultura, nosso modo
de se comportar, nossa troca intersubjetiva, é o que criamos para justificar nossa existência.
Reconhecer essas repetições do dia-a-dia e torná-las evidentes de maneira artística
através de um jogo entre visível e invisível no espaço público é uma possibilidade de
chacoalhar percepções acostumadas ou viciadas a um determinado comportamento, e de
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repente, interromper por instantes um fluxo já conhecido para que se pense sobre sua própria
condição dentro deste fluxo.
Se os mitos revelam para uma sociedade seus valores éticos, morais e
comportamentais, se cada grupo social opera sob certa rotina específica: regras, vestimentas e
se imbui de determinados símbolos para reconhecer-se, criar identidade num todo, citamos
algumas formas de ritualizar o dia-a-dia, que partem do fazer de alguns artistas:
Marina Abramovic com sua crença de que o que move o mundo e as relações nele
estabelecidas é um constante fluxo e administração de energias, propõe a implantação de
cristais rituais na arquitetura dos cômodos das casas ou em lugares públicos estratégicos para
que as pessoas, a partir da aproximação de seus chacras a eles, revitalizem-se, reequilibrem-se
energeticamente, criando assim uma nova possibilidade de jogo incorporada à rotina diária
das pessoas.
Vestimenta ritual- convencionei para o meu fazer artístico em trabalhos de
performance, no que concernem as questões levantadas por essa pesquisa (trabalhar a partir
do mínimo ou do simples explorando seus caracteres simbólicos), utilizar sempre uma mesma
vestimenta que por si só (de maneira visível ou invisível, subliminar) revela uma forte questão
provocadora, o grande espetáculo no qual estamos socialmente inseridos, seria esta minha
camiseta verde com o escrito: “Grand Theater” (Grande Teatro), utilizada na maioria de
minhas performances. Outro exemplo disso seriam as roupas e chapéus pontiagudos
monocolores que variam de cor para cada dia da semana, que Marina também institui como
possibilidade ritual dentro da rotina diária, ou ainda o “new look” de Flávio de Carvalho
sempre utilizado por Zé Celso em suas apresentações.
É o cotidiano com valor simbólico. Como pescar do cotidiano estes símbolos e torná-
los arte?
BAPTISTA vem a nos dar suporte em nossa exploração ao reforçar a ideia de que
rotina, ritual e cultura estão intimamente ligados:
Entende-se cultura como cotidiano vivido onde estão presentes as manifestações artístico-culturais, os modos de vida e as marcas que essas pessoas deixam no espaço, no processo de produção e reprodução da vida.(BAPTISTA, 2011, p.5)
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CAPÍTULO2: A PERFORMANCE EM ESPAÇOS
PÚBLICOS A PARTIR DO MÍNIMO GESTO OU DA
AÇÃO SIMPLES COMO LINGUAGEM ARTÍSTICA
“A inércia é meu ato principal” (Manoel de Barros, Livro sobre Nada)
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2 A PERFORMANCE EM ESPAÇOS PÚBLICOS A PARTIR DO MÍNIMO GESTO OU DA AÇÃO SIMPLES COMO LINGUAGEM ARTÍSTICA
2.1 Definição tentativa de termos
“Não gosto de palavra acostumada”. “Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção”. “Tudo que não invento é falso” (BARROS, 2010, p.345)
Para este tópico buscamos um cerceamento teórico pautado na bibliografia lida, no
significado direto dos termos utilizados como encontrados no dicionário Aurélio da língua
portuguesa, nos conceitos confrontados com pontos de vista de alguns contemporâneos,
estudantes e profissionais da área do teatro, da intervenção urbana, da dança e da arquitetura
através de entrevistas e a partir da própria experiência e repertório do artista-pesquisador
enquanto proponente dos termos a serem definidos.
Nos propomos a definir os termos mínimo gesto e ação simples como enriquecimento
da literatura no campo das artes cênicas, como mais uma contribuição vocabular para
pesquisas de outros artistas e interessados nesta vertente dentro da performance, que já é
possível de ser identificada pelo artista-pesquisador antes da origem deste estudo em
específico, mas que encontra aqui espaço de organização, definição, desenvolvimento e
manifestação.
Termos como performance, espaço público, entre-lugar são termos que já
encontraram ambiente mais favorável à discussão ao longo dos últimos anos e são uma base
teórica deveras importante para nossa investigação, portanto também são motivo de debate e
cerceamento a partir de uma construção coletiva colhida desses variados olhares de artistas
contemporâneos (pois nos interessa de sobremaneira não só o conhecimento que colhemos
dos livros, mas essa investigação de uma bibliografia brasileira, viva, e próxima de
praticantes e pensadores da arte atualmente em ação neste cenário da arte pública em São
Paulo), para consultá-los leia as entrevistas em anexo.
Antes de partirmos para as definições de ação, simples, mínimo e gesto compartilho
com o leitor frases de outros autores sobre dois importantes aspectos da linguagem artística
que desenvolvo: performance, por Marina Abramovic, e Duração e Tempo, por Newton e
Bérgson, que me fazem a cada dia relembrar os motivos e objetivos pelos quais continuar
minha pesquisa artística.
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Performance:
Na minha opinião performance é uma construção física e mental feita na frente do público na qual o artista entra e perform. Pra mim performance sem o público não existe, sentir-se bem é um dever, mas não pode ser o dever da arte porque arte não é uma farmácia, no meu trabalho estou interessada em estabelecer uma relação entre meu corpo e o corpo do planeta. Vamos inundar a terra com arte. (ABRAMOVIC, 2002, grifo nosso)
Nesta breve fala Marina consegue traduzir de maneira essencial a relação entre
performance, papel da arte, vida e alteridade. Performar é viver por intermédio da arte uma
troca de experiências que nutre e transforma retroativamente os corpos envolvidos através dos
fluxos de energias compartilhadas. Esta construção através da arte visa senão estabelecer
relações intersubjetivas.
Duração e Tempo:
Newton nos Principia “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, em si mesmo e por sua própria natureza, decorre uniformemente sem relação a algo exterior, e com outro nome é chamado de Duração”. Bérgson, em L’Évolution Créatrice: “o universo dura. Quanto mais nos aprofundarmos sobre a natureza do tempo, melhor compreenderemos que duração significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo”. Doravante essas duas dimensões se articulam em vez de se excluírem. O tempo hoje reencontrado é também o tempo que não fala mais da solidão, mas sim da aliança do homem com a natureza que ele descreve. (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, apud BASTOS, 2006, p.117, grifo nosso)
A noção de tempo e duração carregam em si uma ambivalência complementar de
concretude e abstração construindo o que chamamos de realidade. Este dito tempo passa, ao
mesmo tempo, independente e co-dependente de nós, pois transformação é ação no tempo.
Independente porque a matemática que inventamos para quantificar o mover do universo
existe independente de nós, e co-dependente pois é justamente a partir de nossas invenções,
imaginações, criações e relações estabelecidas em ação que existe moção e transformação.
Pensando nos movimentos do mundo, acreditamos que performar sobre ações simples
e mínimos gestos sob uma duração extra-cotidiana é uma das possíveis invenções que
possibilitaria resgatar essas relações intersubjetivas no espaço público, rompendo fluxos
viciados e aflorando possíveis formas de humanidade latentes ou adormecidas pelo cotidiano.
Passaremos às definições como trazidas por Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira:
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Ação:
[Lat. actione] sf. Ato ou efeito de agir, atuar; atuação, ato. 2. Manifestação de uma força, uma energia, um agente. 3. Maneira como um corpo, um agente, atua sobre outro. 4. Capacidade de agir. 5. Comportamento, procedimento. 6. Ocorrência, acontecimento. 7.Econ. Título de propriedade, negociável, representativo duma fração do capital, numa sociedade anônima. 8.E.Ling. Expressão de processo ou atividade 9.Jur. Faculdade ou exercício do direito de invocar o poder jurisdicional do Estado para fazer valer um direito que se julga ter. (FERREIRA, 2010, p.8)
Curioso perceber que o campo de significação da palavra ‘ação’ envolve o plano do
movimento do tempo, do espaço, da propriedade, espaço privativamente habitado ou de
posse, e o direito jurídico sobre algo ou alguém. Ação pressupõe imprescindivelmente
relação.
Simples:
[Lat. simplice.] adj2g2n. 1. Que não é duplo ou desdobrado em partes. 2. Não constituído de partes ou substâncias diferentes. 3. Sem ornatos; singelo. 4 sem complexidade ou dificuldade; singelo. 5. Sem luxo ou aparato; singelo. 6. Mero. 7. Único, só 8. Simplório (FERREIRA, 2010, p.700)
O simples para nós encontra maior adequação em nosso recorte quando pensamos em
algo único, uno, sem desdobramentos na execução, algo repetitivo, cíclico, delegando às
leituras de outrem a possibilidade de desdobramentos. Simples para nós definitivamente não
se emparelha com simplório. A palavra mais recorrente aqui foi singelo ou singeleza e nos
remete a sutileza, delicadeza, suavidade, pequeno, economia, mínimo.
Mínimo:
[Lat. minimu] adj. 1. Superl. de pequeno; que é o menor, ou que tem quantidade, valor ou grau muito baixos. 2. Que não é maior ou superior (em grau quantidade, valor) a nenhum outro de um grupo; menor ou inferior a todos os demais. 3. Que é o menor possível ou admitido (em tamanho, valor, etc.) (...)sm. 5. Pequeno na porção, quantidade, valor ou tamanho.6. Aquilo que é menor ou inferior que os demais. (FERREIRA, 2010, p.507)
A relação de significado que nos interessa para ‘mínimo’ aproximar-se-ia de nossa
compreensão desdobrada sobre singeleza, que por sua vez conecta-se ao ‘simples’. O mínimo
gesto seria o menor gesto possível de acordo com o contexto, mais especificamente, de acordo
com as necessidades identificadas de transformação da “movência” do contexto. Já um gesto
mínimo seria um gesto de valor ou grau muito baixos. A compreensão que buscamos não
aproxima-se, contudo, em nada com a noção de inferioridade. O ditado aqui pareceria por
demais óbvio, mas cabível perfeitamente como desafio em toda essa nossa busca: “Menos é
mais”.
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Gesto:
Gesto1 [Lat. gestu] sm. Movimento do corpo, esp. da cabeça e dos braços, para exprimir ideias ou sentimentos, ou para realçar a expressão. Gesto2 [Fr. Geste, do lat. gestu.] sm. Ação, ato (ger., brilhante). (FERREIRA, 2010, p.378)
Sob a legitimidade de Ferreira gesto se trataria de um movimento necessariamente
expressivo, portanto estabelecido a partir de uma relação com o ambiente, ou propriamente
ação, sendo bastante cabível pensar a proximidade conceitual e prática entre mínimo gesto e
ação simples em nosso estudo. Veremos adiante, porém, sutis diferenças no entendimento
entre cada um destes conceitos.
Já Pavis fará uma detalhada categorização e sufixação das distintas maneiras de se
compreender e praticar os termos ‘ação’ e ‘gesto’ no teatro. Colocamos nos Anexos os trechos
que mais nos chamaram atenção e destacamos aqui o que mais se aproxima com o que
desenvolvemos:
AÇÕES Ao contrário das ações teatrais, simbólicas e representadas do comportamento humano, as ações de artistas de performance ou de body art, como de Otto MÜHL ou de Hermann NITSCH, do grupo Fura dels Baus ou do circo Archaos são ações literais, reais, muitas vezes violentas, rituais e catárticas: elas dizem respeito à pessoa do ator e recusam a simulação da mimese teatral [...]. As ações ao recusarem a teatralidade e o signo, estão em busca de um modelo ritual da ação eficaz, da intensidade, visando extrair do corpo do performer, e depois, do espectador, um campo de energias e de intensidade, uma vibração e um abalo físicos próximos daqueles que exigia Artaud ao reivindicar uma “cultura em ação que se torna em nós como que um novo órgão, uma espécie de segunda respiração”. (PAVIS, 2007, p. 2-7) ACONTECIMENTO Constituir uma presença humana entregue ao olhar do público. Relação viva entre ator e espectador é que constitui a base da troca. Algumas formas atuais de teatro (o happening, a festa popular, o teatro invisível de BOAL, 1977) a performance buscam a versão mais pura da realidade ligada ao acontecimento: o espetáculo inventa a si mesmo negando todo projeto e toda simbólica. (PAVIS, 2007, p. 2-7) GESTO b. O gesto como produção [...]gestualidade do ator (ao menos numa forma experimental de interpretação e de improvisação) como produtora de signo Grotowski recusa-se a separar pensamento e atividade corporal, intenção e realização, ideia e ilustração. Produção-decifração de ideogramas: “novos ideogramas devem ser constantemente pesquisados e sua composição parecerá imediata e espontânea. O ponto de partida dessas formas gestuais é a estimulação e a descoberta em si mesmo de reações humanas primitivas. O resultado final disso é uma forma viva que possui sua própria lógica” (Grotowski) [...] fonte e finalidade do trabalho do ator. Impossível descrevê-lo em termos de sentimento ou mesmo de posições-poses (Meierhold) significativas. Hieróglifo= Signo icônico, tanto objeto simbolizado como o símbolo.
43
1. Rumo a uma tipologia e a um código gestual a. Tipologia O gesto pode [...] recusar a imitação, a repetição e a racionalização discursiva. [...] hieróglifo a ser decifrado “o ator, diz Grotowski, não deve mais usar seu organismo para ilustrar um movimento da alma; ele deve realizar esse movimento com seu organismo” [...] ideogramas corporais , segundo Artaud “uma nova linguagem física à base de signos e não mais de palavras” tudo assume valor de signo e os gestos, qualquer que sejam a categoria a que pertençam entram na categoria estética b. Problemas de uma formalização dos gestos [...] difícil uma decupagem em unidades gestuais. A ausência de movimento não é critério suficiente para delimitar o início ou o fim do gesto. Toda descrição verbal do gesto do ator perde muito das qualidades específicas dos movimentos e das atitudes; decupa o corpo de conformidade com unidades semânticas linguísticas quando se deveria exatamente estudar o corpo segundo suas próprias unidades ou leis- se é que existem Gestualidade teatral como hieróglifo do corpo humano e do corpo social. (PAVIS, 2007, p.184-187).
De todos o trechos selecionados o que gostaríamos de enfatizar é que nossa pesquisa
artística sobre o mínimo gesto e a ação simples em espaços públicos interessa-se numa
investigação do corpo que preze por ações e gestos reais com valor simbólico os quais
estabeleçam um acontecimento, um ambiente de troca de sensações, energias e pensamentos
no espaço público.
Ao trabalhar com o mínimo e o simples como linguagem não se pretende determinar
ações e gestos através de decupagem como estruturas elementares fechadas. O corpo a cada
instante se redescobre e se reinventa em jogo com o ambiente, é, portanto, um produtor de
signos.
Os artistas entrevistados apesar de pertencerem a áreas diferentes dentro das artes
(teatro, performance, dança e intervenção urbana) trabalham diretamente com o corpo e
curiosamente apresentaram similitudes entre seus diversos depoimentos.
Segundo Ana Leão e Helena Bastos a definição de termos como ‘mínimo gesto’ e
‘ação simples’ exigiria necessariamente descobrir suas diferenças e particularidades pela
prática, pela investigação corporal, pela experiência, ao que concordo, uma vez que essa
pesquisa nasce de uma pulsão de descobertas empíricas advindas da experimentação prática
ao longo de meus anos na academia. Mas arriscam que o ‘mínimo gesto’ pode ser refletido
partindo essencialmente da pulsação do coração como motivação originadora de todo o resto
dos sistemas que movem o mundo, inclusive da organização social. Ainda com relação a esses
micro-movimentos sutis Helena pensará na metáfora do ‘fremir de asas de borboleta’. Esta
metáfora assemelha-se à colocação de Cristiane Esteves ao refletir sobre ‘o mínimo gesto
capaz de (mover)’ e nos remete à frase “um rufar de asas de borboleta num extremo do globo
é capaz de gerar um furacão em seu extremo oposto”.
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Renato Ferracini e Ana Leão entrariam em concordância quando associam o mínimo
gesto a uma percepção e trabalho internos, um trabalho micro-muscular, uma micropercepção.
Já encontram divergência quando Ana e Helena associam o mínimo gesto a um trabalho com
partitura corporal e escalas, e Renato acredita que o mínimo gesto não se trataria de uma
divisão do gesto em escalas, mas numa condensação que é o próprio todo. Não se trataria
portanto de uma relação metonímica da parte representando o todo.
Ainda pensando em quantificação o mínimo gesto teria na visão de Thaís Lucena,
Vanderson de Sousa e Helena Bastos uma relação com amplitude espacial. Já para Renato
Ferracini o mínimo gesto seria um gesto condensado não se tratando portanto de analisá-lo
por um viés de escalas, unidades básicas ou estruturas elementares, como o fazemos com a
gramática. O mínimo gesto para Renato Ferracini, reforçamos pois acreditamos que se
assemelha mais com o que desenvolvemos ou desejamos, não é a parte pelo todo, é o todo
condensado, como almejavam os minimalistas, capturar a essência. Cristiane Esteves, por sua
vez, fará uma ressalva no mínimo interessante de ser considerada: o mínimo gesto capaz de
transformar ou mover, dependendo do contexto, talvez não seja necessariamente pequeno, ou
invisível, ou sutil. Assim como a ação simples, o mínimo gesto, nesse âmbito da performance
em espaços públicos, só se daria em relação. Portanto “o mínimo gesto capaz de” depende do
contexto.
Partindo para a compreensão que os entrevistados construíram sobre ‘ação simples’
esta, segundo Cristiane Esteves, Ana Leão, Otávio Oscar e Patrícia Bispo, poderia ser
identificada em meio à “dança do cotidiano”, estaria relacionada a essa constante
orquestração de fluxos na paisagem urbana. Realmente a visão que apresentam é também o
que me motiva quando busco capturar arte dentro do cotidiano e revelá-la através do agir
essas ações simples identificadas na malha pública urbana.
Portanto, concordando com Thaís Lucena, Ana Leão e Cristiane Esteves, a ação
simples entendida no campo da performance não necessita de psicologização ou
demonstração de intenções, trata-se de agir com presença, preenchendo cada instante,
consciente de ser-estar, uma ação que existe por si, acredita no seu poder de ação, de
transformação. Seria uma ação física realizada com pequenos músculos, para Otávio Oscar,
Renato Ferracini e Ana Leão.
Otávio Oscar e Helena Bastos defendem que o ‘mínimo gesto’ e a ‘ação simples’ estão
fortemente atrelados a uma ideia de recorte, restrição, redução, a enxugar aparatos e recursos
(o que para mim se assemelharia a economia, essencialização, ou a tradução estética mais
apropriada para determinada questão através da ótica do mínimo e do simples). São gestos ou
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ações pontuais e repetitivos – numa longa duração (estabelecendo aí uma relação direta com
o minimalismo e também com uma característica que foi identificada, amplamente copiada e
rotulada do trabalho de Pina Bausch no Tanztheater Wuppertal).
Cristiane Esteves e Otávio ressaltarão que um mesmo gesto ou ação mudam
dependendo do contexto sociocultural, e valendo-se deste conhecimento, acreditam, em
acordo com Ana Leão, que o mínimo gesto e ação simples se apresentam como forte
possibilidade de ampliar, acentuar, revelar o espaço público e suas contradições.
Pensando na fricção entre performance, espaço público e minimalismo dois desafios
que se apresentam é ter consciência de que pensar ou agir o simples já é em si algo
extremamente complexo (Renato Ferracini, Helena Bastos, Vanderson de Sousa e Thais
Lucena), posto que o simples é síntese, condensação (Renato Ferracini e Helena Bastos).
Em se tratando de sua realização, do ponto de vista da investigação corporal do
performer, o que importa é o que me move na experiência, na ação, é a presença, é a questão
que impulsiona a ação, é o grau de urgência da ação segundo Ana Leão e Helena Bastos. Pois
“A Arte” aí já não é domínio do performer, mas está no olhar de quem vê, na forma de se
relacionar, perceber e associar as coisas, de acordo com os pensamentos de Ana Leão, Otávio
Oscar, Cris Esteves e Patrícia Bispo.
Após essa sondagem de possíveis significados e conceituação para os termos que
estamos utilizando como parâmetros de criação sugerimos, em consonância com nossa
prática, o que sejam ‘mínimo gesto’ e ‘ação simples’:
Para nós o gesto pode ser cotidiano: social (ex. aperto de mão)- particular, específico,
ou geral, universal; de necessidade biológica (ex. coçar nariz)- consciente ou inconsciente,
voluntário ou involuntário. Como também expressivo: revela emoção, sentimento, interjeição.
A ação é um mover com determinado propósito, é relacional.
Debatendo sobre os termos de pesquisa foi comum aos entrevistados pensar em
decupagem, síntese restrição, condensação, redução, mas acredito que a estrutura elementar
da linguagem, as palavras, a gramática, só responde até certo ponto o que se descobre em
relação, em experiência, em empirismo, portanto o indizível e mesmo o “invisível” está em
jogo nessa tentativa de definição. Pois “decupagem” por exemplo parece não contemplar de
maneira apropriada o solo de investigação que queremos pisar.
O ‘mínimo gesto’ é um gesto condensado, uma síntese, um gesto de fato necessário
para exteriorizar uma ideia ou símbolo, essencial para comunicar, trocar, mover.
O mínimo gesto seria então considerado sutil ao provocar uma interferência mínima,
invisível diante do fluxo?
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Como as gentilezas trata-se aqui de uma percepção aguda das sutilezas, uma abertura
para escutar e se transformar. O mínimo que na verdade é o máximo de percepção, atenção,
relação com o meio, síntese, condensação, invisível, tirar os excessos, acreditar no poder do
mínimo gesto em si mesmo, a necessidade de troca. Um gesto motivado pelo externo, pela
relação com o meio, mas que parte de uma necessidade trabalhada muito internamente e de
como seria a forma mais simples ou essencial de expor essa necessidade, essa urgência, essa
questão.
Performar mínimos gestos e ações simples a partir de um propósito claro, de uma
urgência e instaurando presença, através da construção de uma percepção aguçada pela
relação constante com o espaço, significa fazer escolhas a todo instante e relembrar-se a todo
instante de qual é a questão que move o performer naquele presente contínuo. Por
conseguinte aqui não seria apropriado pensar em demonstração, exibição, simulação da
intenção ou psicologismo.
As questões que se faz em relação a certa problemática identificada na realidade de
determinado espaço público hão de ser consideravelmente complexas, de difícil resolução,
dialéticas, apresentar contradições: as “respostas” ou provocações artísticas do performer
proponente, pelo contrário. Este há de buscar para elas, as questões, uma formalização
estética (proposição de fruição, provocação ou “resposta”) de natureza simples, mas a ser lida,
desvendada, jogada, decifrada, articulada, dialogada, construída em camadas pela relação com
outrem.
A ‘ação simples’ está mais ligada a ações cotidianas que adquirem status ou
significado novo pelo deslocamento contextual ou acentuação. Externamente trata-se de uma
ação visivelmente simples, sem revelar complexidade ou virtuosidade para se dar, mas o
invisível: o grau de atenção, a presença, a pulsação interna, os micro-músculos, o que
preenche a ação, pode revelar uma grande complexidade combinatória de fatores. Por
exemplo, correr é simples, mas se deslocarmos essa ação simples para outro contexto: correr
atravessando um túnel de carros (como no caso de uma das proposições artístico-
performáticas do Experimento I) envolve uma complexidade de atenção em que a ação é
simples, mas engloba e ativa refinados mínimos gestos para que externamente ela venha à
tona imbuída de sua “simplicidade” e com as devidas organicidade e apropriação construída
em relação com o espaço.
A ação simples também não seria uma ação minimalista, se esta for entendida a partir
de uma amplitude de ocupação espacial. Exemplificamos: No Experimento III havia ações
simples como correr em repetidos ciclos distâncias de 50m ou pular de uma altura de 10 m. O
47
ato em si é simples, se considerado pelo viés dos fatores visíveis e concretos, trata-se de
mover as pernas em sucessão, ou dar um passo à frente, mas sua amplitude espacial é grande
(como os grupos musculares partícipes também), envolve um grande deslocamento espacial,
tem grande impacto na ocupação do espaço. Por sua vez tocar piano com “destreza”, por
exemplo, já não se trata de uma ação simples, envolve uma combinação sensório-motora e
neuromuscular de ativação da musculatura fina, de alta precisão e coordenação motora no
tempo e no espaço. Aqui tratar-se-ia, portanto, levando em consideração escalas espaciais, de
movimentos mínimos, pequenos espacialmente, mas de altíssimo grau de complexidade, não
se tratando de uma ação simples ou cotidiana, de acordo com a forma que entendemos e
recortamos para fins de pesquisa. Logo o que define a ação simples não é a amplitude de sua
ocupação espacial, mas o seu grau de “cotidianidade” ou o que se afigura visivelmente como
simples, aparentemente “sem virtuose”.
O mínimo gesto por princípio já apresentaria características que habitam mais o
campo simbólico, estetizado, que envolvem grande complexidade de micro-movimentos, mais
internos do que visíveis aparentemente, para se dar.
Em excluindo do recorte feito gestos involuntários, o gesto de maneira geral (e aqui o
mínimo gesto, filtrado por um campo estético e artístico, convergindo bastante com a ideia de
hieróglifo ou ideograma, da forma como Grotowski e Artaud defendiam28) estaria sempre
ligado a um campo relacional de decodificação, algo a ser decifrado ou reinventado por um
repertório de outrem: social, cultural, sensível, perceptivo, afetivo ou intelectual.
O material para mim é brincar de combinar, a partir do repertório pessoal de cada
um, de suas vivências e histórias de vida, os próprios símbolos e ações simbólicas. Ações
simples são ações cotidianas que pelo deslocamento do contexto ganham caráter simbólico. O
mínimo gesto diz respeito a uma decodificação de um gesto cotidiano ou estetizado, que
significa por sua mera repetição ao longo de uma duração prolongada, dilatando a noção
espaço- temporal cotidiana.
O Mínimo gesto é um pequeno gesto, gesto que corre risco da invisibilidade, gesto
sutil, gesto condensado, mínimo gesto capaz de mover, transformar; menor gesto possível de
acordo com o contexto. Pode ser cotidiano ou expressivo, e social.
Em síntese as ações simples e os mínimos gestos são ações e gestos únicos (não se
desdobram em outros) que viram símbolos, geram multiplicidade de significação pela duração
e pela repetição ao longo da duração. A repetição por sua vez pode gerar justaposição,
28 ver p.47,48 deste trabalho
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acúmulo ou destruição de elementos físicos e significados. A questão mora no corpo de quem
faz, a fabulação mora no corpo de quem vê/sente e ambas se transformam pela relação
intersubjetiva.
A ação simples ou o mínimo gesto nos espaços públicos são pontuais em sua
execução, mas é possível fazer um ponto se desdobrar infinitesimalmente no espaço num
presente contínuo de instantes eternos, de “agoras”, de “aquis”. Este ponto, este ponto, este
ponto, este ponto, este ponto repetido e único a cada vez, abre infinitos campos de
significação. Uma única ação que por ventura pode vir a ser uma ação única, repetidas vezes
até mudar(-se) (de cor). Trata-se de algo que ‘está acontecendo’ (não acontece simplesmente)
com energia extra-cotidiana, inserido nos fluxos da realidade cotidiana, está sempre em devir,
como uma paisagem que sofre constantes alterações de ordem micro ou macroscópica,
transformações mais ou menos perceptíveis, mas todas componentes do que se chama ‘real’.
“Tudo que não invento é falso” (BARROS, 2010, p.345), “sua imaginação que cria o que
quer” (BRECHT, The Theatre of Visions, p.222, apud GALIZIA, 1986, p.18). Dois artistas
que parecem traduzir na prática esta nossa compreensão sobre “sonhar acordado”, paisagem,
presente contínuo, devir, dilatação extra-cotidiana, pensamento em fluxo, ações simples e
repetição são Gertrude Stein e Bob Wilson.
49
2.2 Dos procedimentos práticos utilizados
“A simplicidade da forma não é necessariamente simplicidade de experiência” (Robert Morris)
Este tópico é fundamental para o entendimento de como ocorre praticamente a
aplicação das ideias e hipóteses levantadas teoricamente, fundamentadas em leituras e
experiências práticas anteriores. É aqui também o solo fértil de experimentação que ora
confirmará nossas hipóteses, ora nos fará redirecionar os caminhos utilizados em direção às
nossas buscas. É através dos procedimentos utilizados que podemos compartilhar os métodos
de criação que alimentaram os diferentes processos criativos e de pesquisa desenvolvidos ao
longo do projeto.
No início do projeto de pesquisa já contávamos com alguns procedimentos
experimentados em práticas anteriores relacionadas ao mesmo tema de pesquisa, dos quais
acreditávamos lançar mão como métodos de criação. Eram estes o Viewpoints, Escrita em
Fluxo de Pensamento, Roteirização, “Práticas cruas”.
O Viewpoints foi um método de criação bastante simples e revelador que vivenciei ao
longo do segundo semestre de 2009 com a orientação de Miriam Rinaldi em Interpretação II
do bacharelado de artes cênicas da USP. A inventora destes procedimentos de criação é Anne
Boggard, profissional da área da dança que se tornou também diretora de teatro em Nova
Iorque. Ele consiste basicamente na relação concreta entre corpo tempo e espaço(premissas
dadas da vida-teatro). Reúne uma série de exercícios simples para liberar o campo criativo e
relacional de quem age, tornando-o mais consciente de sua própria criação e buscando uma
construção criativa que se dá em fluxo de maneira a trabalhar a presença e a percepção. O
tempo inteiro chamando o corpo à desmecanização e a relacionar-se incessantemente com o
espaço e o tempo em que se insere, num processo de redescoberta e atenção para os detalhes.
Para isso há a subdivisão de alguns elementos: topografia, forma, arquitetura, cor,
distância, duração, repetição, velocidade, resposta kinestésica, dentre outros. Como a
composição em coro de desenhos geométricos no espaço (linha, diagonal, círculo, quadrado,
losango) e o exercício de raias (cada ator transitando em uma raia em composição rítmico-
espacial com os outros atores trabalha com ações extremamente simples como andar, correr,
pular, deitar). Estes são alguns exercícios utilizados do Viewpoints que destaquei, pois através
de escolhas ao longo da experiência que vivi, percebi uma relação muito potente, simples e
concreta entre criação e vida. Era como lançar questões do artista no espaço através do corpo
sem necessitar do intermédio de um personagem, ou de psicologização, apenas do corpo em
50
ação, em relação com o meio, despertando e-moção, simplesmente através da variação
rítmica e gestual de moção. Me parecia a preparação ideal para um performer. É do
viewpoints que surgirão para mim as noções de ação simples, inscrição e escritura corporal
no espaço, por sua vez de autoria, a importância da repetição e da dilatação do tempo.
O Viewpoints orientou fortemente de maneira aplicada as experiências práticas
anteriores relativas a este mesmo tema que constam nos anexos de pesquisa. Já nos três
experimentos propriamente ditos aqui investigados ele entra de maneira mais indireta, mais
pelas noções despertadas e filtradas deste repertório anterior.
Assim como as relações do corpo se dão em fluxo com o meio que se insere, julguei
fundamental que o pensamento através da linguagem verbal também se manifestasse dessa
forma para alimentar a criação com menos filtros entre pensar e agir, com o mínimo possível
de intervalos entre o pensamento e a palavra.
Bastante influenciado por Gertrude Stein, Bob Wilson e Luiz Paëtow, refletindo sobre
o presente contínuo, preenchido de sucessivos “agoras” de modo a criar uma paisagem que
constante e fluidamente se move, se modifica, pensando sobre a invenção da realidade e
como esta não passa de imaginação (imagem em ação), daquilo que nós mesmos criamos e
assumimos como real. É desta maneira que adoto como procedimento inicial de qualquer
processo de investigação a Escrita em Fluxo de Pensamento (processo de escrita bastante
utilizado por Gertrude em seus textos pílula misteriosos).
Este procedimento é bastante revelador de fato do pensamento em presente contínuo
do performer, revela seu ser e estar atuais (presente, futuro e passado juntos) e muito me
interessam como: disparadores da criação, norteadores da investigação, registro de processo
ou mesmo dramaturgia, contendo uma forte noção de autoria, pois é daí que saltam as
questões mais prementes de cada um ou do que cada um é, quer. Consiste a partir de palavra,
frase, questão ou tema livre lançado registrar tudo no papel durante tempo determinado com
menor intervalo possível entre o pensamento e seu registro no papel. Este procedimento foi
utilizado na fase inicial de todos os três experimentos práticos.
A Roteirização apresenta duas vertentes ou a de criar uma estrutura composicional
para agir sobre (programa de ação, “trabalho pensado” ou resposta cênica) ou a de organizar a
criação advinda diretamente do corpo em relação ao espaço (pelo processo de dança pessoal,
improvisação, vivência, inscrição e escritura corporal, resultados colhidos dos programas de
ação e “trabalhos pensados” ou resposta cênica) numa estrutura posterior. Trata-se de roteiros
de ação mais detalhados ou menos detalhados dependendo da performance/evento em
questão. Nos experimentos 1 e 2 a roteirização se dá a priori, no experimento 3 ela vem a
51
posteriori. Mais um procedimento utilizado que reforça a noção de autoria, uma vez que parte
tanto do diretor quanto dos performers.
Práticas Cruas: Trabalhamos com a ideia de que a ação se dá em devir. Por mais que
algumas ações exijam preparação e treino psicofísico elas são “cruas”, nunca estão prontas,
finalizadas ou completamente assimiladas, sempre haverá um espaço para sua crueza, por
mais simples que sejam, e este é o objetivo aqui. “Desaprender oito horas por dia ensina os
princípios.” (BARROS, 2010, p. 345). Práticas que só estão idealizadas no papel, sem ensaio
prévio, mas sob grande apropriação de ideias, e que acontecem como evento original, só se
concretizam a partir do momento de sua realização. Até o seu oposto: a ação (ou o conjunto
de ações) mais meticulosamente treinada e sob tal domínio do performer que permite a
possibilidade de uma surpresa perceptiva tanto do próprio performer como do público, a partir
dessa noção de repetição e de relação intersubjetiva.
Já especificamente para este estudo a ser realizado estipulamos a priori e em processo
procedimentos e métodos de criação até então inaugurais para nós na específica relação com o
tema de pesquisa proposto. A saber: Entrevistas, Pesquisa de campo (assistir filmes,
espetáculos, palestras, exposições, eventos, e ler livros relacionados), Observação Imersiva,
Inscrição e Escritura Corporal, Dança Pessoal (silêncio, ação, observação e autoria),
“trabalhos pensados” ou respostas cênicas, programa de ação, improvisação, vivências,
repetição exaustiva.
Entrevistas: Como a pesquisa se propõe a construir pensamento, e levantar
questionamentos a partir de uma multiplicidade de pontos de vista históricos, sociais e
culturais, julgamos de relevância ímpar contar com a contribuição de profissionais
contemporâneos de cada uma das áreas das artes cênicas (teatro, dança e performance) que se
alinham a nosso ver por algum quesito particular às questões apresentadas por nosso projeto.
Entrevistamos também os participantes de cada um dos experimentos e inclusive alguns
passantes dos espaços públicos abordados.
O formato da entrevista se deu de maneira presencial contando com um protocolo de
entrevista geral, que apresentava variações com algumas perguntas específicas mais
direcionadas à área ou pesquisa particular de cada entrevistado. Cada entrevista foi gravada
em áudio com capturas parciais em vídeo.
Acreditamos ser esta uma forma muito instigante e potente de construir conhecimento
a partir de “bibliografia viva”. Foi um procedimento muito importante para a definição
tentativa de termos e fricção de ideias ora convergentes, ora divergentes sobre determinado
52
assunto tratado. A única entrevista que não conseguimos realizar dentre as programadas foi
com Marcelo Maia, arquiteto, autor de Práticas Sensíveis sobre o espaço comum. Marcelo
reside em Belo Horizonte e atualmente dedica-se ao doutorado. Ainda assim após a conclusão
desta fase inicial de pesquisa, fica-nos o desafio de colher entrevistas com advogados e
arquitetos a respeito do usufruto do espaço público, matéria que enriquece e alarga nossos
meios.
Além da bibliografia indicada compartilhamos com os participantes de Moacir: Filhos
da Dor algumas fontes que complementaram nossos estudos dentre livros, artigos, filmes,
espetáculos, vídeos exposições e eventos, compondo nossa Pesquisa de Campo:
i) Livros:
i.1) Iracema - José de Alencar.
i.2) Os processos criativos de Robert Wilson - Luiz Roberto Galizia.
i.3) O povo brasileiro - Darcy Ribeiro.
i.4) A inconstância da alma selvagem - Eduardo Viveros de Castro.
ii) Artigos: Shakespeare na selva - Laura Bohannan.
iii) Espetáculos:
iii.1) Duas memórias - Cia. Damas em trânsito e os bucaneiros.
iii.2) Peças - Luiz Paëtow.
iii.3) Abracadabra - Luiz Paëtow.
iii.4) A última gravação de Krapp - Bob Wilson.
iii.5) Marulho, o caminho do rio – Redimunho.
iii.6) Lugar do outro - Cia. Damas em trânsito e os bucaneiros.
iii.7) O Grande espírito da intimidade - Andreah Dorim.
iii.8) Bom Retiro 958 metros - Teatro da Vertigem.
iii.9) Noturnos - Fiandeiros de Teatro.
iii.10) Lulu - Bob Wilson e Berliner Ensemble.
iii.11) O farol, uma contemplação da velocidade – OPOVOEMPÉ.
iii.12) O Espelho, uma contemplação da vida e da finitude – OPOVOEMPÉ.
iii.13) A festa, compartilhar um agora – OPOVOEMPÉ.
iii.14) Aqui dentro, aqui fora – OPOVOEMPÉ.
iii.15) Macbeth - Bob Wilson.
iv) Filmes:
iv.1) O povo brasileiro.
iv.2) A última tempestade.
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iv.3) Iracema, uma transa amazônica.
iv.5) Pina.
iv.6) Apocalypto.
iv.7) Absolut Wilson.
v) Vídeos: Yvonne Rainer Trio A.
vi) Exposições: Harald Schultz – Olhar Antropológico- Caixa Cultural.
vii) Eventos:
vii.1) Visita à reserva indígena Rio Silveiras.
vii.2) Visita ao laboratório de abelhas do instituto de biologia da USP.
vii.3) 12o Festival Nacional da Cultura Indígena em Bertioga.
vii.4) III Seminário de Pesquisa da ECA (com destaque para A interação entre
natureza e ciência na arte contemporânea de Hugo Fortes).
vii.5) Patrimônios Culturais e Povos Indígenas - Caixa Cultural - palestra de Luís
Donisete Benzi Grupioni.
vii.6) Semana do meio ambiente Rio+20, Instituto de Biologia da USP.
vii.7) Rio+20 e Cúpula dos Povos.
Inscrição e escritura corporal no espaço: Aqui estão dois dos mais importantes
conceitos de trabalho, que envolvem diálogo, apropriação e intervenção no espaço. Em se
tratando de espaço público, o desafio nos parece ainda maior e provocante, diante de tamanho
grau de exposição e possibilidade de troca com o ambiente. Considera-se aqui corpo e espaço
público ambos folhas em branco e canetas, ambiente de jogo, de devir, quanto mais desertos,
mais povoados (FERRACINI, 2010).
Estes dois termos encontram contiguidade com: a teoria do corpo mídia e do corpo
ecológico (Mark Johnson e George Leicov, citados por BASTOS, 2006), a própria relação
entre corpo e ambiente desenvolvida por BASTOS (2006), são fruto do meu treinamento em
Viewpoints com Mirian Rinaldi na ECA-USP (2009), do módulo de Espaço que tive com
meu orientador Antônio Araújo: espaço teatral, espaço não convencional, intervenção urbana,
na matéria de Direção II na ECA-USP (2010) e de Técnicas Corpóreas: Dança, com Verônica
Fabrini na UNICAMP (2010), onde mais importante que agir e impor no espaço uma
dinâmica é primeiro ter consciência de que nenhum espaço é neutro e todo espaço abriga uma
latência de jogo e passa por constantes transformações de uso (Schechner em O Futuro do
Ritual e Milton Santos). Como é então absorver as dinâmicas do espaço público, onde o tão
buscado ‘público’ do artista já trafega, para trazer a ele indagações sensíveis (Cristiane
54
Esteves em entrevista anexa), outras formas de sensibilidade (Renato Ferracini em entrevista
anexa)?
Identificamos um processo de criação bastante semelhante com o grupo
OPOVOEMPÉ em suas intervenções urbanas quando decidimos primeiro nos inscrever no
espaço (observando e absorvendo os fluxos), para depois escrever (desenhar com o corpo,
propor uma intervenção artística no local que revele algo premente ou inusitado nele).
A inscrição corporal no espaço busca através de uma série de procedimentos
adentrar, conhecer, descobrir um “espaço novo” dentro dos espaços explorados, quer sejam
familiares ou desconhecidos ao performer. Como se colocar de maneira porosa e capturar
através da percepção ampliada do corpo inteiro os diferentes aspectos que compõem um certo
espaço? Há possibilidades de se capturar as relações políticas e socioculturais, a arquitetura,
os fluxos, a memória, a história, a geografia, as leis, a demografia, depende dos
procedimentos de pesquisa utilizados. Cada experimento apresentará uma necessidade diversa
do outro. Aqui nos experimentos I e II utilizamos a observação imersiva como procedimento
(com a escrita em fluxo de pensamento, observações dos participantes e espaços envolvidos
no estudo, descrições das dinâmicas sócio-espaciais, entrevista, visita monitorada ao espaço,
foto e filmagem). No experimento III colhemos autorizações para pesquisar durante 7 meses
ininterruptos no espaço (mesmo no período de fechamento ao público), com frequência de
três vezes por semana e oito horas por dia, utilizamos a observação imersiva (observações dos
participantes e espaços envolvidos no estudo, descrições das dinâmicas sócio-espaciais,
entrevista, foto, filmagem), a dança pessoal (silêncio, ação e observação), vivências,
improvisação.
Já a escritura corporal no espaço busca por meio de outra série de procedimentos
atuar, agir, apropriar-se corporalmente do espaço, em diálogo constante com ele, desenhando,
desafiando-se e desafiando com o corpo as dinâmicas presentes impostas, costumeiras,
involuntárias e inusitadas. Como instaurar relações das mais diversas ordens, inclusive
intersubjetivas, no espaço público através de uma ação simples ou um mínimo gesto, de uma
proposição artístico-performática que diga respeito a uma questão coletiva e não a ilhas
flutuantes, que não se torne uma apropriação privativa e individualizante deste mesmo espaço,
que compartilhe fruições e fluxos? No experimentos I e II trabalhamos com a noção de
autoria (só possível neste caso após processo de inscrição corporal no espaço), roteirização
(programa de ação e prática crua) e relação intersubjetiva, quando favorável. No experimento
III trabalhamos com a dança pessoal (silêncio, ação, observação e autoria), “trabalhos
pensados” ou respostas cênicas, improvisação, vivências, repetição exaustiva, ensaios, treinos
55
físicos e aulas, ocupação de área reservada a luz, som, cenário e figurino, temporada com
doze apresentações.
Observação Imersiva: Propõe a ser um método de observação tanto do pesquisador
quanto dos participantes de modo a inserir-se de fato no contexto do espaço público
explorado, habitar, permanecer, vivenciar aquele entre-lugar (espaço efêmero, de passagem,
que liga pontos, feito para se permanecer momentaneamente). Uma observação não
distanciada, mas pelo contrário, que busca cada vez mais apropriar-se das dinâmicas
características de cada lugar. Essa observação envolve uma longa duração que permita que
esta experiência ocorra de fato e se possa absorver os fluxos e relações instaurados.
Aqui nos valemos de descrições das relações sócio-espaciais realizadas através do
método de escrita em fluxo de pensamento, buscando uma captura da maior quantidade de
detalhes possíveis, visita monitorada ao Theatro Mvnicipal e museu do Theatro Mvnicipal,
fotos, filmagens, entrevistas aos passantes, habitantes e usuários dos espaços envolvidos,
dança pessoal. O experimento I dedicou dois dias à observação imersiva: cinco horas
realizada no 1o dia pelo pesquisador e duas horas realizada no 2o dia pelo participante ao túnel
Papa João Paulo II, o experimento II dedicou quatro dias de observação imersiva sendo onze
horas de observação realizada pelo pesquisador e duas horas e meia de observação realizada
pelos outros participantes. O experimento III dedicava principalmente através da dança
pessoal a primeira hora de ensaio com especial enfoque à observação imersiva, agregada ao
silêncio e à ação por parte dos participantes. E ao pesquisador e proponente das atividades um
constante estado de observação imersiva que durava as oito horas de ensaio. Procedimento
levado ao cabo de sete meses de processo.
Dança Pessoal: Procedimento principal adotado como preparação artístico-corpórea
dos participantes-performers no experimento III no CEPEUSP. Como nenhum dos dois
apresentava formação técnica em dança e por buscarmos desenvolver uma dança de ações
simples e mínimos gestos colhidos do cotidiano ou descobertos em ação pela própria
dinâmica particular de cada corpo, resolvemos investir neste procedimento.
Todo início de ensaio criativo se dava por uma hora de dança pessoal, 30 minutos fora
d’água, 30 minutos dentro d’água, em que o participante-performer com sua fonte sonora
própria (dias de silêncio absoluto, ou dias com mp3 e fone de ouvido) redescobria o seu
próprio corpo e suas possibilidades de moção, o tempo todo em relação com o espaço público
que temporariamente habitava e cada vez mais ao longo do processo se apropriava.
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Por sua vez a cada ensaio isolávamos uma parte do corpo a ser trabalhada nesta
investigação29 e daí realizávamos a cada dia um processo decorrente de criar um vocabulário
de ações e gestos para cada parte do corpo30. Criamos um vocabulário corporal a partir da
manifestação da dança particular de cada um daqueles corpos em relação ao espaço e não
necessariamente atrelados a uma técnica específica, mas a uma técnica forjada em ação que
dava sustentação à manutenção, adaptação e lapidação das ações e gestos criados “in
progress”. Era uma “dança simples” em que não se tinha enfoque no virtuosismo, mas
buscava-se sim uma precisão e limpeza da ações.
A dança pessoal usava três palavras como norteadoras diretas para os participantes-
performers desta investigação corpórea no espaço: silêncio, observação imersiva, ação,
portanto ela enquadra-se tanto nas noções de inscrição como de escritura corporal no espaço.
Palavras estas que eram lembradas e acompanhavam também os performers a cada dia de
apresentação do espetáculo resultante do processo, MoAciR: Filhos da Dor. A autoria
obviamente está intrinsecamente ligada a este procedimento de descoberta das manifestações
espaciais internas e externas do corpo, e a como o corpo lança questões, problematiza o
espaço.
Observação Imersiva- dedicado simplesmente a habitar aquele lugar. No tentar
entender quais são esses fluxos, o que é que se permite, quais são as formas de atuar, de agir
nesse espaço. A observação imersiva insere-se no contexto da Inscrição Corporal no Espaço,
muito mais receber daquele lugar.
Autoria- aqui pelo contrário, a partir dessa absorção dos fluxos começar a ver que
possibilidades existem para a arte naquele lugar. Como se começa a dialogar com as pessoas,
de novo fomentar um lugar de troca, de diálogo, de fricção de ideias de maneira estetizada, a
partir de uma questão lançada, insere-se no contexto da Escritura Corporal no Espaço.
Silêncio- espaço necessário para que algo aconteça. Estado de atenção, foco e
concentração no que se vive no presente contínuo explorado e não em outros fatos externos
àquela experiência que se dá aqui-agora em determinado contexto.
Ação- Estaria de maneira mais simples no campo do fazer, do desenvolver algo, se
envolver com algo corporalmente, a ação mora também na “inação” (“inércia”,
“imobilidade”).
29 O corpo inteiro, as mãos, os braços, os ombros, a cabeça, a coluna, a bacia, as pernas, os joelhos, os pés, o corpo inteiro. 30 Três ações ou gestos dentro d’água e três ações ou gestos fora d’água.
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Estas quatros palavras também serviram ao pesquisador enquanto filtro na coleta de
dados.
Programa de ação: Roteiro estrutural em desenhos, esquemas e/ou palavras das ações
que se desdobrarão no espaço. Esta nomenclatura aplica-se mais devidamente aos
experimentos I e II, pois a determinação desta estrutura sem ensaio prévio, estabelece os
passos e elementos (objetos, adereços, ações e gestos) das performances. Entendemos que o
experimentos III trabalhou com roteiros de ações que ora estruturados com ações que
surgiram em ensaio, ora imaginado com ações inéditas a serem exploradas, vinham tanto da
direção quanto dos performers e compunham uma complexidade maior no encadeamento, na
riqueza de detalhes, na quantidade e na duração das ações e gestos. Já os programas de ação
são estruturas sintéticas, breves descritivos para as performances. Tanto os programas de
ação, quanto os roteiros de ação compõem o procedimento de roteirização das práticas cruas,
improvisação, vivências, dança pessoal, trabalhos pensados ou respostas cênicas. Há aqui uma
forte presença autoral.
Trabalhos Pensados ou Respostas Cênicas: Duas nomenclaturas utilizadas para um
mesmo procedimento. Este termo, trabalho pensado, surgiu como alternativa retraduzida de
um termo que se usa em teatro: workshop. Numa tradução nossa indevida, ao invés de
trabalho-work + compra(do)-shop, preferimos pensar em trabalho pensado. Que seria uma
composição cênica ou de ações, uma estruturação cênica ou de ações, ou uma cena, ação
dirigida pelo próprio participante-performer em resposta a uma frase, provocação ou questão
lançada pela direção. Diferencia-se da improvisação, da vivência, da dança pessoal, pois
envolve um tempo fora de ensaio, uma estruturação racional e corporal de elementos
utilizados (som, objetos, cenário, luz, figurino, ações, textos e inclusive pode pressupor a
presença de outros performers) a ser compartilhada com os outros participantes e
declaradamente envolve uma exposição de um pensamento o mais íntimo, pulsante e autoral.
No processo do experimento III MoAciR: Filhos da Dor. Lançávamos uma provocação ou
questão a cada semana e os participantes-performers tinham o intervalo de uma semana para
compor e apresentar suas respostas cênicas (como denominamos o trabalhos pensados neste
processo em específico, tendo como referência também os procedimentos e termos utilizados
por Pina Bausch). Cada pergunta lançada correspondia a uma parte ou ato do espetáculo
performático que criamos, totalizando em nove perguntas.
Improvisação: A improvisação é um procedimento de trabalho utilizado logo na fase
inicial de criação e investigação de movimentos no corpo para MoAciR: Filhos da Dor.
Procedimento de livre exploração do corpo em relação a si mesmo e aos outros corpos e
58
elementos do espaço. Lemos e colhemos todas as ações dos personagens presentes em
Iracema. E em seguida os atores passaram por uma fase de ensaios dedicado a improvisar
sobre a narração da obra. Eu lia os capítulos em voz alta enquanto eles exploravam a área das
duas piscinas utilizadas do CEPEUSP (olímpica e de saltos) com as ações físicas dos
personagens. Houve também improvisação sobre roteiros de ações que eu propunha e uma
improvisação com a narração do prólogo, alguns objetos e figurinos que deu origem ao
primeiro ato do espetáculo.
Vivências: Também conhecidas no teatro como laboratórios, as vivências propõem
experiências que envolvem certo grau de risco, acaso, dificuldade e contato com algo novo ou
distante em ambiente externo ou nos próprios lugares de ação, ensaio. A própria observação
imersiva pode ser entendida como uma vivência à medida que inserir-se numa nova realidade
por tempo prolongado requer um constante diálogo, negociação e adaptação dos corpos com
os outros corpos e elementos de cada espaço. Extensas horas num túnel de carros no vale do
Anhangabaú, no perímetro do Theatro Mvnicipal convivendo de fato com moradores de rua e
passantes, no CEPEUSP convivendo de fato com usuários, salva-vidas, técnicos de
manutenção, portaria e direção, e todas as dinâmicas próprias a cada um desses lugares abrem
novas compreensões e aprendizados nos corpos e mentes dos envolvidos. Além destes
assistimos filmes, peças, palestras e exposições juntos. Visitamos uma reserva indígena,
fizemos vivências na praia de Barra do Una (caminhar de olhos fechados por dez minutos,
“ver com os ouvidos” por quinze minutos, “ouvir com os olhos” por quinze minutos, ser
enterrado vivo em enterro ritual por duas horas, caminhar de um ponto a outro em uma hora,
desvestir-se em quinze minutos, deixar o corpo ser dançado pelas ondas do mar: dança
através de uma força externa por uma hora), participamos do 12o Festival Nacional da
Cultura Indígena, da semana do meio ambiente e da Rio+20. Em outra vivência os atores
tiveram de colocar numa mala e “afogar” ou presentear os objetos que lhe eram mais caros e
que constituíam em seu íntimo tudo o que os performers precisavam para serem quem eram
naquela época. No caso dos experimentos I e II atravessar um túnel de carros sucessivamente
por uma hora e deitar no chão em frente ao Mvnicipal por três horas e meia também foram
fortes vivências.
Estes foram exemplos ao longo de cada um dos experimentos. As vivencias
constituem grande desafio, grande envolvimento físico, emocional e mental concretos, reais.
A repetição exaustiva é um procedimento de grande potência criativa na medida em
que desperta um intenso trabalho psicofísico sobre tempo, espaço e energia. Está fortemente
ligado em nosso caso a dilatação extra-cotidiana do tempo, invisibilidade e velocidade, para
59
que o detalhe seja revelado: se por um lado pode estabelecer uma relação efêmera, por outro
permite tempo e espaço para apreciação das minúcias, dos “esquecidos”, das sutilezas, para
que relações se instaurem e de fato aconteçam. Daí uma mesma ação ou gesto explorado em
processo de repetição ganha redes de significação, transforma-se, adapta-se em relação a
tempo, espaço e energia, redesenha-se, amplia-se ou reduz-se, condensa-se ao essencial, ao
mínimo (máximo) necessário para mover(-se). Este procedimento é fortemente utilizado nos
três experimentos presentes neste relatório, tanto nas criações, nas vivências, nos exercícios,
como nas performances e apresentações.
Ensaio: A noção de “ensaio” só aparecerá no experimento III mesmo assim agregando
a ideia de que os ensaios já constituem-se como ato artístico uma vez que interferem
diretamente nos uso e nas relações inserindo-se e alterando o espaço público. Os ensaios
dividiram-se em ensaio físico (uma vez por semana) e ensaios artísticos (duas vezes por
semana). Os ensaios físicos eram treinamentos físicos estruturados para conferirem resistência
ao corpo dos performers que estariam expostos no espetáculo a ambiente aquático por duas
horas e meia de duração. Tratou-se de fato de uma construção e adaptação física. Os treinos
eram estruturados com exercícios de natação, deep running, pólo aquático e salto em
trampolim. Tivemos orientação e auxílio em horários extras com aulas de professores de pólo
aquático, deep running e salto em trampolim. Os ensaios físicos tinham cinco horas e meia de
duração. Os ensaios artísticos dedicavam-se à criação e tinham nove horas no sábado e seis
horas no domingo. Iniciávamos com a dança pessoal e depois nos dedicávamos ou à
improvisação, ou às respostas cênicas, ou à vivências e testes de ações, ou ao treino repetitivo
de roteiros de ações e lapidação de partes. Há dois meses de estreia só “passadões” gerais do
espetáculo e testes noturnos de luz e som. É importante frisar que os ensaios não foram
interrompidos, tivemos duas semanas de recesso. Como para nós arte não é outra coisa senão
vida, ensaiamos sob todas as condições climáticas de frio, vento, chuva e sol, com muitos ou
nenhum outro usuário, sempre acompanhado de funcionários do CEPEUSP e salva-vidas. Da
mesma forma os experimentos I e II se deram sob “condições adversas” de barulho excessivo,
chuva e sol intenso.
Temporada: O experimento I durou dois dias, com um dia dedicado a performance
pública, o experimento II, quatro dias, com dois dias dedicados a performance pública, o
experimento III oito meses, com um mês dedicado a doze apresentações públicas, todos
gratuitos.
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2.3 Artista-Expoente do mínimo gesto e da ação simples: A performance de Flávio de Carvalho no modernismo brasileiro
Escolhemos Flávio de Carvalho, para um estudo de caso de suas performances, como
artista potencializador e exemplo convergente com nossas aspirações e crenças artísticas. Este
artista é figura de importância singular e paradigmática para nosso percurso de pesquisador na
área artística. Sabia como ninguém explorar a potência do mínimo e do simples como forma
de intervenção no espaço público. Flávio de fato nos serve como referência modelar que nos
inspirou através de sua práxis a estabelecer a compreensão sobre o recorte de pesquisa aqui
apresentado. Fazemos aqui um panorama de seus trabalhos com caráter artístico imbricado
para em seguida classificar algumas de suas performances numa tabela comparativa com os
parâmetros para modo de criação e realização que estabelecemos para nossos experimentos.
Flávio Rezende de Carvalho (1899-1973), oriundo de família tradicional do Vale do
Paraíba fluminense e educado em sistema de internato desde a infância até o período
universitário em Paris e Londres (tendo cursado Engenharia e Belas-Artes), retornou às
origens bem a tempo de ser um dos importantes “escritores” da História do modernismo
brasileiro.
A escolha por este artista foi tamanho interesse investigativo em uma figura singular
no cenário brasileiro como um todo, ainda pouco conhecida das maiorias, e especificamente
por agregar duplamente em sua trajetória características que convergem coincidentemente
com os interesses principais deste estudo.
Flávio demonstrava não só forte interesse, mas seu próprio ofício também concernia
diretamente à cidade e ao espaço público, arquiteto e edificador que era. Este interesse no
público transborda revelando um potente campo de exploração da performance a partir do
simples e do mínimo. Apesar de o próprio artista não ter nomeado suas ações de
performáticas (mas experiências, o que para nós já aponta bastante significância) ou não
necessariamente ter escolhido conscientemente recortá-las pelo viés do simples ou do
mínimo, percebemos, ao realizar a análise de algumas de suas experiências, certas
recorrências características capazes de agregar em valoroso exemplo ao que exploramos e
desenvolvemos em nossa pesquisa.
O que mais nos impressiona: não lembrar de sequer ter esse nome citado em aulas de
História ou Literatura, e a partir das pesquisas descobrir que, de fato, Flávio marcou época
com grandes feitos e uma história de vida no mínimo curiosa.
62
Flávio conheceu os surrealistas parisienses e ajudou através de suas deambulações
urbanas na circulação dessas ideias no Brasil, porém ficou mais conhecido por suas pinturas e
obras arquitetônicas do que por suas errâncias e performances.
O jovem Flávio (diferente do que tenderíamos a pensar sobre ele baseados nos seus
feitos em terras brasileiras) não deixará de ser envolvido por uma certa tradição empírica e
racionalista, principalmente frequentando um curso de edificadores, “construtores do
concreto”.
Porém a Europa dos anos 20 lhe servirá de farta inspiração, especialmente na
vanguarda expressionista.
Ao lado das técnicas de construção de formas materiais no espaço, ele buscava os
meios de exprimir sua apreensão subjetiva do mundo. Emergirá daí o artista domador de
espaços e comedor de emoções (referência direta ao título do livro e filme inacabado de J.
Toledo e obviamente à tão popularizada ideia de deglutição antropofágica divulgada pelo
movimento modernista brasileiro).
Interessam-lhe a psicanálise e a psicologia de massas, multidões, fundamentos do
Flávio experimentalista, pesquisador da fé e dos comportamentos coletivos.
A arte aparece-lhe como expressão de tais pesquisas, através do desenho, do teatro
e da literatura. À psicanálise soma-se o interesse pela música atonal, pelo teatro de vanguarda
e pela dança moderna.
Sua atenção volta-se para a antropologia de Frazer e Malinowski, estudando ritos
mágicos e a vida sexual de diferentes povos. Um estilo às vezes pragmático vai restar como
seu tempero britânico. Porém seu lado de artista, Dionísio, falará mais alto do que seu lado de
engenheiro, Apolo.
Poderá ser entendido como um verdadeiro subversor das representações
tradicionais e da ordem cotidiana. Em oposição à concretude, buscará uma diluição das
formas, o abstracionismo ligado à retomada do espaço geométrico.
Com o status de engenheiro e com uma bomba futurista na cabeça ele desembarca em
Santos em 1923, instalando-se em São Paulo recém-saída do susto modernista.
As vanguardas (Expressionismo-1905-25; Futurismo-1909-Itália/Anos30-Rússia;
Dadaísmo- 1915-23; Surrealismo- 1924) que passaram por sucessões lógicas compreensíveis
no contexto europeu (ciência, indústria, desenvolvimentismo, I Guerra Mundial, crise do
progresso positivo) vieram importadas ao Brasil por artistas estrangeiros (como Lasar Segall)
ou artistas brasileiros financiados por mecenas.
63
O termo escolhido para englobar tudo antropofagicamente e vomitar-retomar “a cara
do Brasil”, foi Modernismo. Com mais ênfase em umas e menos em outras vanguardas.
Um “banho de Modernidade” contra a acanhada pré-metrópole de São Paulo.
Para nossa abordagem sobre os trabalhos de Flávio de Carvalho é importante saber
que atuou como arquiteto, engenheiro civil, decorador, empresário, escultor, cenógrafo,
figurinista, iluminador, artista plástico, jornalista, radialista, escritor, dramaturgo, estudioso da
moda, ator performático, dotado de ousadia futurista, de arte expressionista, abstrata e
surrealista, crítico da moral (pautada no cristianismo) e dos “bons costumes” provincianos,
crente no progresso, na mudança, na eficiência e funcionalidade (certamente bem
influenciado pelo contexto do modernismo europeu) como indutores da felicidade.
Durante toda sua carreira, quer participando de concursos públicos para projetos
arquitetônicos e monumentos, quer inaugurando exposições e fundando clubes (Clube dos
Artistas Modernos - CAM), quer realizando peças e performances, sempre teve o dom de
chamar a atenção de três grandes instituições: a imprensa, a polícia e a igreja.
Poderíamos escrever páginas e mais páginas sobre as grandes aventuras desse idealista
utópico do mundo, desse humanista determinista que teoriza a relação existencial entre “Casa,
Homem e Paisagem” (como o homem influi no meio e como o espaço ao longo dos anos está
carregado de formas, linhas e cores que comunicam sua relação com a ancestralidade através
do inconsciente).
Mas por ora escolhemos nos deter a fazer um registro suas experiências teatrais e
performáticas.
Flávio, com a apresentação de seu projeto “Eficácia”, foi considerado o primeiro
arquiteto modernista brasileiro, sendo esta manifestação pioneira num quadro de ruptura que
se estabelecia no modo de entender a arquitetura no Brasil. Poderíamos também render-lhe o
título de primeiro performer brasileiro?
Uma coisa é certa, Flávio seria pioneiro em diversos segmentos a se desenvolverem no
Brasil, seja no campo teórico-científico, seja no campo artístico.
O conceito de performance art começa a surgir e a maturar como ideia a partir dos
anos 60-70. De fato terá suas origens plantadas a partir das vanguardas européias, a destacar o
surrealismo e o dadaísmo (uma das vanguardas mais radicais que já dá vazão sim ao
happening e à performance, ou a experimentos performáticos). Portanto, as ações de Flávio, a
partir dos anos 30, podem sim hoje em dia ser entendidas como performances, “arte de ação”,
embora naquele período essa nomenclatura ainda não fosse usual.
64
A arte performática é entendida e apontada por Lehmann (2007) e Féral (2009) como
uma “arte conceitual” ao propor uma experiência real (levando em conta tempo, espaço e
corpo), uma “produção de presença” que não deve ser compreendida a partir dos registros da
interpretação hermenêutica, da mimese ou da representação.
Na performance, a princípio, da forma como foi concebida (se é que se pode falar em
‘forma’ ou modelo a ser seguido), ou na ideologia em que está fundada, não há personagem,
não há narração, há uma recusa da catarse. Não se trata aqui da encarnação de um
personagem, mas da vividez, da presença provocante do homem.
Segundo Lehmann (2007, p. 224-225) o performer oferece à contemplação sua
presença, pairando nos campos da não-atuação e da atuação simples 31 . A não-atuação
corresponderia a “uma presença na qual o ator não faz nada para reforçar a informação
transmitida por sua atividade”. Já a atuação simples ocorre quando há uma “participação
emocional clara, uma vontade de comunicar[...] com declarações que procedem, que não são
ficções.”
“O corpo do performer não é usado somente como sujeito do manuseio, mas
também como objeto, como material significante, não há distanciamento estético”
(LEHMANN, 2007, p.228)32, sua presença é seu material estético primordial, nas visões do
artista e do público.
A relação se dá através do olhar, o que se olha e por que se olha, há a intensidade de
uma comunicação ‘face a face’, há a imediatidade de toda uma experiência compartilhada por
artista e público.
O procedimento em si com o público apresenta mais valor do que uma possível obra
“objetivamente” apreciável. O processo que se dá em ação, na troca, é mais importante do
que a ideia de obra acabada. Não se fala, portanto, em ensaios. O artista não está protegido de
qualquer reação do espectador, aliás todo o valor da experiência depende dos próprios
participantes, pautando-se não por critérios prévios, mas por seu êxito na comunicação. E aí
o público tem poder decisivo sobre isso, sendo a efemeridade e o subjetivismo fatores
determinantes dessa arte. Arte que mexe com questões éticas do espectador (quando ele
através de suas escolhas legitima certas ações) e o faz interrogar-se sobre sua própria prática
de espectador.
31Não-atuação e atuação simples são termos de Michael Kirby, utilizados por Lehmann.32Lembramos da ideia de gesto: ideograma hieroglífico de Grotowski, em que o próprio corpo simboliza e é o objeto simbolizado através do gesto
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De acordo com Lehmann (2007, p. 229) O performer do teatro não quer transformar a
si mesmo, mas transformar uma situação e talvez o público. A transformação e o efeito da
catarse permanecem virtuais, voluntários e futuros, há aqui a ideia da possibilidade de
repetição de momentos únicos; já o ideal da arte performática é um processo real, que se
propõe único e de autotransformação, que impõe emoções e acontece aqui e agora.
Féral com sua polêmica problematização acerca da performance (Que ainda resta da
performance?) julga ter havido um total corrompimento do que se tinha por performance. Não
existe mais o valor transgressor pelo qual ela surgiu. Adquiriu alguns valores do modernismo.
Aquilo que a seu ver não dava para ser um evento repetido, recusando-se a ideia de
guardar memória, hoje em dia já é registrado por fotos e vídeos e é inúmeras vezes repetido.
Os artistas já carregam suas performances de sentido, personagens e discursos, limando e
escondendo do espectador as aberturas para um processo. Está em voga o individualismo e o
narcisismo contemporâneo.
Apontamentos de Lehmann que me chamam particularmente a atenção e permitem um
diálogo com a prática de Flávio de Carvalho:
“Torna-se impossível até mesmo definir performance – por exemplo, o limite a partir do qual haveria meramente um comportamento exibicionista e extravagante. O último recurso não pode ser outro senão a compreensão do próprio artista: a performance é aquilo anunciado por aqueles que a apresentam.” (2007, p.227) “[...]destacar de modo geral o aspecto ritual ou quase ritual nas formas teatrais e na performance. [...] o recurso aos elementos arcaicos, a reflexão sobre os limites dos comportamentos codificados pela civilização e a adaptação de formas de comportamento cerimoniais se tornaram objetivamente produtivos do ponto de vista artístico e, ao mesmo tempo, sustentaram a resistência contra a tentativa de comprimir a arte radical nos moldes das regras estéticas tradicionais.” (2007, p.230) “Toda experiência estética possui esta bipolaridade: confrontação com uma presença, “súbita” e segundo o princípio aquém (ou além) da reflexão que se rompe e se duplica; elaboração reflexiva dessa experiência a partir da lembrança posterior.” (2007, p.237) “O presente é necessariamente erosão e escapada da presença. Ele designa um acontecimento que esvazia o agora e nesse mesmo vazio faz brilhar a recordação e a antecipação.[...]Ele tem mais a ver com a morte do que com a tão evocada “vida” do teatro” (2007, p. 240, grifo nosso)
Se analisarmos bem e fizermos um entrecruzamento do que se entende por
performance com o material apresentado sobre os atos artísticos de Flávio, concluiremos que
a Experiência nº 2 figuraria assim entre as grandes performances da História brasileira
baseada em uma ação simples, ocupando lugar significativo. Ela e muitas outras que estariam
por vir.
Alguns exemplos do que teriam sido esses atos performáticos ao longo de nossa
História são dados por Antonio C.R. Moraes, como:
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i) O dia do Fico, de D. Pedro I - 9 jan 1822.33
Eu gostaria de destacar a abolição da escravatura com a Lei Áurea34.
ii) A Semana de Arte Moderna de 192235.
iii) Batalha de Itararé - 193036.
iv) Experiência nº 2 - 193137.
v) Parangolé - 196038.
Encarando a performance com a possibilidade de ser uma experiência lúdica e
contestatória, a Experiência nº2 se encaixa muito bem nessa classificação e segundo Moraes
“era performance para dadaísta nenhum botar defeito. Arte de pirar Marcel Duchamp.
Ineditismo total em terras brasileiras. Modernismo militante radical. [...] algo único no
panorama das artes brasileiras na época.[...] contudo folclorizada por falta de um rótulo que a
enquadrasse no arquivo dos críticos contemporâneos.” (MORAES, 1986, p.33). Inclusive o
subtítulo de seu livro sobre Flávio é o performático precoce.
Flávio procurava sempre escudar com uma teoria seus procedimentos mais insólitos e
até agressivos. Suas teorias, via de regra consideradas extravagantes, não eram, contudo, nem
gratuitas nem alienadas: resultavam de pesquisas e longos estudos.
Os títulos que descrevem cada uma das experiências ora são os títulos originais da
própria experiência, ora são títulos figurativos atribuídos livremente por nós a partir do
recorte que estabelecemos.
Experiência 1
Sangirardi Jr. afirma saber, tendo ele mesmo perguntado ao Flávio qual teria sido a
experiência 1, visto que a famosa mesmo foi a 2.
Flávio fingiu que estava se afogando e gritou desesperadamente por socorro. O
acontecimento teria se dado na fazenda de um parente dele. Mas não deu certo, fracassou.
33Ah, se realmente fosse para o bem geral de todos e da nação...34Assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Tendo o Ceará aderido à abolição quatro anos antes, rendendo-lhe o subtítulo de Terra da Luz, por José do Patrocínio, dando ânimo aos abolicionistas no resto do Brasil e sendo saudado diretamente da França por Victor Hugo.35Um acontecimento 100 anos depois do que para Moraes teria sido a “primeira performance brasileira”. Houve aí um choque, uma comoção, um impacto, “um descabelamento da platéia”, um evento carregado de um quê performático.36Foi anunciada e estava para ser conhecida como a batalha “mais sangrenta da América do Sul” entre as tropas de Washington Luís e as de Getúlio Vargas, mas nunca ocorreu de fato.37Que veremos a seguir mais detalhadamente.38(Experimentos de Hélio Oiticica, com diversos materiais de modo a constituir diferentes esculturas móveis, reveladas e modificadas a partir do movimento).
67
Flávio preferia esquecê-la, sempre fugia do assunto quando interpelado sobre ela, não entrava
em detalhes, nem lhe dava a menor importância. Ou um mínimo de importância lhe dava, e
Freud talvez explique, pois do contrário a experiência nº 2 não seria então assim chamada, se
a anterior fosse simplesmente desconsiderada.
Experiência 2 ou “Um incidente” (título de nota do Estadão)
A partir daqui é que deslancha ruidosamente. Antes disso, só havia feito a maquete de
O Último Abraço, participado da XXXVIII Exposição Geral de Belas-Artes e até então, desde
sua chegada, se dedicado inteiramente a sua profissão de engenheiro civil e arquiteto.
8 de junho de 1931, na esquina da rua Direita com a praça do Patriarca. Uma
verdadeira experiência de psicologia das multidões.
Flávio com seus aproximadamente 1,90m resolve cruzar uma procissão de Corpus
Christi no sentido contrário, com um boné na cabeça.
A sua atitude começa a chamar atenção e a revelar arrogância diante do gozo e culto
totêmico ao Deus invisível.
Causa perplexidade ante as irmandades de pessoas mais idosas, que erguem os olhos
aos céus numa afirmação de fé e gesto de piedade.
Ao passar pelas filhas de Maria flerta inicialmente com duas bonitas e duas feias e
depois com todas elas.
Ao atravessar um setor de homens mais jovens, surgem esporádicos e pouco incisivos,
os primeiros protestos: “Tira o chapéu!”. “Tira! Tira o chapéu! ” Aos gritos: “Pega! Lincha!”
Um amigo leva-o para o canto da calçada pede que tire o boné e desista daquela
loucura. Inútil.
Ameaçadores: “Pega, mata, lincha!” Alguém arranca o boné mas logo depois é
devolvido. Encurralado apela: “Abri meus braços num gesto patriarcal e patético e expliquei
com doçura: ‘Eu sou um contra mil.’[...] O meu apelo ao raciocínio tinha fracassado por
completo. A massa tinha reagido pela emotividade ancestral e não pelo raciocínio.”
Correu pela procissão em ziguezague, sempre perseguido, penetrou na Leiteria Campo
Belo, Rua de São Bento, cheia de fregueses. Na cozinha, ante os cozinheiros atônitos, subiu
numa pia e passou por uma clarabóia após ter arrebentado a tela de arame.
Saiu num pequeno pátio, pôde analisar sua sensação de medo, como se pudesse ver
fora de si a criatura sendo linchada e desossada, em sangue.
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Foi preso sem resistência, o que surpreendeu a polícia. Saiu numa “viúva alegre” rumo
à delegacia, enquanto a procissão seguia acalmada pela ação congregacional dos cânticos
religiosos.
Na delegacia foi logo acusado de comunista e de atirar bombas na procissão, acusação
última sob a qual protestou violentamente. Desfeito o equívoco, é dispensado.
Manchete do dia seguinte: “Na procissão uma experiência sobre a psicologia das
multidões resultou em sério distúrbio” (O Estado de São Paulo, 9 de junho de 1931).
Através de uma experiência-controle e de uma hipótese procurou formular uma teoria.
Trabalhava com a seguinte margem: Procurou inteirar-se da capacidade agressiva de uma
massa religiosa à resistência da força das leis, civis, ou determinar se a força da crença é
maior do que a força da Lei e do respeito à vida.
A experiência deu origem a um volume de 183 páginas com desenhos surrealistas e
expressionistas do próprio autor, 8 diagramas de análise psicológica (sua e da massa) (laços
afetivos = pares antitéticos) e várias fórmulas de ambivalência ódio-adoração. Faz uma
análise com base na psicanálise, na antropologia e na etnologia, com fortes influências de
Darwin, Freud (Totem e Tabu) e Frazer (The Golden Bough).
Especulações com a Moda e Experiência 3
A partir do incômodo que a roupa masculina lhe traz, rotinizada pela moda, não
adaptada ao clima tropical e ao cotidiano metropolitano, Flávio discorrerá sobre um estudo da
moda ao longo dos anos, em 39 artigos semanais, pelo Diário de São Paulo, numa série
intitulada ‘A moda e o Novo Homem’.
Flávio faz uma evolução histórico-filosófica do invólucro ambiental para o invólucro
corporal.
Procura entender por razões sociológicas, psicológicas e etnográficas o que a moda
representa na sociedade: defesa anímica, produto da inteligência, reação à inferioridade,
necessidade de um povo para a estabilidade mental, articuladora do homem com a história
(por exemplo a calça, o colete e a casaca sobrevivem desde o século XVII, as cores escuras e
sombrias são derivações da cor preta imposta à burguesia pela nobreza, como condição
depreciativa. E assim podemos estender o raciocínio ao paletó, smoking, gravata e colarinho,
que apertam e tiram curvas).
Na arquitetura, na escultura, na pintura e principalmente nos trajes as curvas
representariam um padrão fecundante, sensual, de apogeu, as retas paralelas, um padrão anti-
fecundante, de luto, tristeza, procedendo períodos de destruição.
69
Sua tese central defende também que as mutações da moda têm origem nas camadas
plebéias, de loucos e personagens de rua, sendo estes os grandes criadores da moda. Em seu
mundo próprio de loucura e sonho, os supremos criadores da fantasia humana.
Todo esse estudo é mote para sua experiência número 3:
19 de outubro de 1956, sexta-feira quente de primavera. Rua Barão de Itapetininga,
nº296.
No saguão já se encontram alguns curiosos, a imprensa já está a postos para fazer a
cobertura do evento. Às 14:30 h surge Flávio no hall e assim inicia-se o passeio com o traje
de mil nomes: traje tropical, traje de verão do “novo homem dos trópicos”, roupa do futuro,
traje estival, smoking de baiano, indumentária do futuro, tentativa de revolução na
indumentária masculina, new look (diversas intitulações que recebeu entre o criador, a
imprensa e populares).
Com seu traje bizarro e fora do comum transita pelas ruas do centro velho ao centro
novo seguido por uma multidão de curiosos, críticos e adeptos do novo conceito de
vestimenta para um “novo homem.”
Com uma indumentária que seria seu correspondente ao smoking, ele mesmo explica:
“A gola em redor do pescoço é apenas um substituto do colarinho. Pode ou não ser usada,
mas não chega a apertar ou incomodar o pescoço, nem impedir a circulação. Tem uma
finalidade psicológica de ponto de apoio, para evitar a inferioridade quando ele anda por aí.
Nas pernas eu coloquei umas meias de malha de pescador, que hoje chamam de meia de
malha de pescador e que realmente era uma meia de bailarina, que eu adquiri numa casa que
vende artigos de bailarina. A função das meias de pescador era a de esconder as varizes que
certas pessoas têm. [...] A velocidade do fluxo do ar entre o tecido e o corpo é graduada por
meio de dois círculos de arame: um na cintura e outro sobre a clavícula”.
Descrevendo o traje, tratava-se de sandálias de couro, meias de bailarina, um saiote-
short, uma blusa de náilon vermelha, listrada, de estranho corte, um chapéu de pano
transparente.
A roupa visava o conforto e a circulação de ar, evitava gripes e resfriados e contribuía
para uma maior liberdade de movimento.
Flávio recebe reações as mais variadas: abraços da Miss Televisão, apoio de Paulo
Emílio (“Ridículas são nossas gravatas...”), solidariedade de um motorista da CMTC (“Se a
direção da empresa permitir, amanhã mesmo virei trabalhar assim”), piada de um gaiato
(“Esse deve ser o tal de smoking baiano”). Aplausos. Toma um cafezinho num bar. Entra no
Cine Marrocos mesmo após ser inicialmente barrado pelo porteiro por não vestir gravata, uma
70
das exigências do cinema. Vê um pedaço do filme e retorna às ruas, parando o trânsito. Mais
comentários: “será o fim dos crediários e a guerra às vestes cretinas e imbecis do homem
atual”. Senador Assis Chateaubriand disse que iria de new look numa reunião do palácio
Monroe e o maestro Eleazar de Carvalho regeria a sinfônica com o traje.
Após o estardalhaço que o libertário antropofágico causou na imprensa, parte para a
Europa onde realiza exposição individual na Galeria L’Obelisco, em Roma, na Itália. Um de
seus tios paternos, o médico Custódio Ribeiro de Carvalho, já falecido, conta que vinha com a
esposa pela Via Veneto, em Roma, quando viu, na vitrine de um fotógrafo, uma grande foto
ampliada, em cores, onde se via um homem alto, de blusa amarela e saiote verde, seguido por
um grupo de italianos curiosos e sorridentes. Era Flávio tentando lançar na Itália seu traje de
verão.
Teatro da Experiência
Um dos desdobramentos diretos do CAM, fundado por Flávio de Carvalho em 1933
com a colaboração do cenógrafo (depois cineasta) Osvaldo Sampaio. Um verdadeiro
empreendimento performático. Localizado no andar térreo do CAM à Rua Pedro Lessa nº 2,
com lotação para 275 lugares.
Funcionaria de fato como um laboratório científico: pesquisar com espírito imparcial o
desconhecido para promover o progresso.
Tinha um caráter essencialmente experimental de tudo que surgisse de vital no mundo
das ideias , integrando as artes: cenários, problemas de luz e de som, e sua conjugação ao
movimento de formas abstratas, estudo da influência das cores e das formas na composição
teatral, modos de dicção, novas formas de expressão, aplicação de testes pré-determinados e
análise de seus efeitos no público, realizar espetáculos-provas só para autores, ou focados
mais nas vozes, ou nas luzes, despertar o interesse para a escrita teatral (incentivar o
aparecimento de novos autores), diminuir ou eliminar a influência humana e figurada na
representação (ideia que nos remete diretamente aos experimentos de Craig e sua teoria da
supermarionete). Todas essa investigações com o intuito de formar uma base prática da
psicologia do divertimento.
A programação do teatro incluía seções de “teatro improvisado”, que seriam realizadas
à meia noite por Procópio Ferreira e Joracy Camargo. Como realizou-se também espetáculos
por “Henricão e sua trupe”, sendo estes uma coletânea de danças com cânticos da época da
escravidão. Seções de leitura de textos de Oswald de Andrade e Brasil Gerson. Todavia, a
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iniciativa que ganhou maior notoriedade, foi a encenação da peça de Flávio: “O Bailado do
Deus Morto”.
O clube como um todo se tornaria esse laboratório para a arte moderna, um local onde
as ideias novas são experimentadas antes de serem lançadas no mercado do grande público.
O Bailado do Deus Morto – A saga ou De mudança para a delegacia
A procura de uma peça para inauguração do teatro, sem êxito em sua busca, na falta
de autores dispostos a colaborar, decide ele mesmo escrever O bailado do Deus Morto.
Frente à estranheza do material a analisar, os censores resolvem vencer Flávio pelo
cansaço: “Passei dias inteiros na censura procurando convencer o delegado Costa Neto (o
censor era delegado de polícia), me faziam esperar horas e horas propositalmente - de uma
feita esperei seis horas a fio, cheguei a me mudar para o gabinete de polícia, levei livros,
cadernos, régua de cálculo, alimento e lá ficava toda a manhã e toda a tarde procedendo ao
expediente do meu escritório, esperando ser atendido. Osvaldo Sampaio ia e vinha em meu
auxílio”.
Acredite, somente após dez dias de tentativas inúteis, abordando o delegado ao sair do
edifício, no meio da rua, Flávio apela para Shakespeare e sua liberdade de linguagem em
meio a um ajuntamento de gente, pedindo uma afirmativa do delegado. O delegado
atarantado, suado e com pressa se pronuncia verbalmente a favor da liberação, sem nenhum
alvará oficial.
A peça estreia com um público duas vezes maior que a lotação do teatro em novembro
de 1933.
Na noite da quarta representação a censura proíbe o espetáculo. O coronel Cabanas
que, de repente, apareceu pela primeira vez no Clube ordena a um dos guardas: “Diga ao
senhor Costa Neto que o teatro vai funcionar e se a polícia aparecer aqui será recebida a
bala!”. Minutos depois, praticamente toda a comitiva do Gabinete de Investigações, invade o
teatro. 300 homens fortemente armados dando cobertura ao delegado. Após prolongado
silêncio entre Costa Neto e Flávio, o comandante Cabanas faz seus apelos, o delegado suas
alegações e Geraldo Ferraz propõe a Flávio que ofereça o espetáculo especialmente ao
Gabinete de Investigações. Delegados, guardas e policiais assistem em silêncio. O coronel
Luís Alves ao ser interrogado responde que o referido bailado “é uma coisa muito nova e que
interessa bastante”. Mesmo assim o teatro é fechado e uma guarda armada é mantida por
meses frente ao teatro isolando-o.
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Flávio move uma ação contra o Estado e perde, é novamente acusado de comunista, a
questão chega a ser discutida na Câmara dos Deputados e um abaixo assinado é enviado à
Censura. Esse, um verdadeiro manifesto de repúdio à violência praticada contra a cultura e a
liberdade de expressão, que talvez pela primeira vez foi assinado por quase todo o meio
intelectual modernista, pelo coronel Cabanas e até mesmo por Paulo Prado, então conselheiro
de Estado. Logo depois o CAM também seria fechado. Suas armas? O cérebro e a
sensibilidade, sempre insuportáveis para as instituições de poder que regem o sistema.
O enredo da peça era bem mais simples do que o caos provocativo e até autoritário
que gerou:
O Bailado do Deus Morto não passa de uma interpretação metalingüística das ideias
expostas na Experiência nº2. Tendo como alvo uma das instituições que Flávio acreditava ser
a grande responsável por atravancar o progresso e a felicidade do novo homem, a Igreja.
O deus animal nasceu na floresta primitiva, gerado pela fome, pelo medo e pelo sexo.
A religião tornou-se um fenômeno universal porque o medo da morte é universal. Os homens
exigem um destino, através de um anseio de imortalidade. Num mundo sem Deus, sem
destino, sem matrimônio, os paraísos artificiais, o mundo mágico panteísta oferecido pelos
entorpecentes e alucinógenos, que levam a uma invenção da alma, cumprem bem essa função
eliminando o sentido do sagrado.
“O primeiro ato trata da origem animal de Deus, o aspecto e a emotividade do monstro
mitológico e as razões que levaram a Mulher Inferior a transformá-lo num objeto de
dimensões infinitas, apropriado à ira e ao amor do homem. Mostrará de início a vida do Deus
pastando entre as feras do mato e os laços afetivos que mantinha com esta. (...) No segundo
ato a Mulher Inferior explica ao mundo por que ela seduziu o monstro mitológico e pacato de
entre os animais e colocou-o como Deus entre os homens, uma profunda saudade marca a sua
entoação e a sua ira contra o Homem Superior”.
O deus acaba morrendo e os homens, então, “controlam os destinos do pensamento,
marcam e especificam o fim do deus e o modo de usar os resíduos no mundo novo”. Trata-se
da morte de Deus pelo homem, de sua materialização e utilitarização.
Em matéria que sai no jornal O Século, 26/11/1933 vale destacar o título e um trecho:
O “Teatro de experiência”do “Clube dos Artistas (?) Modernos (?)” é um atentado à cultura e à dignidade do povo paulista [...] em matéria de psiquiatria e de obscenidade, S. Paulo nunca viu coisa igual... Pelo “bailado do deus morto” (“deus morto” é hoje Marx) pode um cristão fazer uma ideia aproximada do que é a ação bolchevista, e sobretudo do que é a mentalidade patológica dos que a propugnam (Daher, 1982: p. 45)
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Os atores, quase todos negros, foram apanhados a esmo nas ruas. Hugo Adami era o
ator principal, relapso e racista.
Toda a peça tinha caráter experimental, era cantada, falada e dançada. Tinha diálogos
desconstruídos e um fio narrativo muito tênue. O texto escrito é cheio de rubricas e
indicações, com uma geometrização dos gestos dos atores, parece uma partitura corporal de
dança de cunho expressionista.
O cenário era composto de um fundo negro, uma coluna de alumínio seccionada de
modo a remeter a um totem e uma corrente presa a ela que depois se solta, além de uma pira
ou algo do gênero. Os figurinos eram túnicas ou camisolas brancas e máscaras de alumínio.
Os efeitos cênicos eram obtidos pelo movimento de luzes sobre esses elementos do cenário e
do figurino. A sonoplastia ficava em cargo de som ao vivo com uma orquestra de
instrumentos de percussão derivados do samba: bumbo, reco-recos, urucungo ou berimbau,
cuíca ou puita, tamborins, uquiçamba.
Atentando o pudor
Vítima de repressão gratuita e de um ódio alimentado pela ignorância, Flávio assistiu
ao fechamento do CAM, do Teatro da Experiência. E agora de sua primeira exposição
individual, em 12 de julho de 1934 pela polícia, com a apreensão de cinco dos mais de cem
trabalhos expostos e deixando um grupamento de agentes em vigília na porta.
Resta saber que espécie de risco poderia uma exposição de obras representar para a
segurança das instituições.
Os quadros expostos tinham crianças rindo e fazendo ginástica ainda no ventre
materno (consideradas imorais pelos censores). E nus femininos (constituíam atentado ao
pudor).
No dia seguinte, os monumentos de São Paulo amanheceram todos vestindo camisolas
brancas (ironia ao pudor? Ao puritanismo? Às vestes e máscaras sociais? A uma metro-
província ainda adormecida diante do progresso da realidade e do pensamento?). Este ato foi
feito na noite do próprio dia do fechamento da exposição, por Flávio de Carvalho e Quirino
da Silva.
Em 26 de julho, por ordem judicial a exposição é reaberta e as obras apreendidas são
devolvidas. O caso com a polícia serviu apenas de propaganda, resultando posteriormente em
interrupção do trânsito, lotação da exposição e venda de todas as obras.
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Estudo do papel higiênico
Flávio fará uma viagem que dará origem ao livro Os Ossos do Mundo (1936) (reúne
pequenos ensaios sobre arte, psicologia, estética, arquitetura, sociologia, história, etc.).
Durante essa viagem ele fez uma pesquisa de campo que consistiu em “uma razoável
coleção de papel higiênico dos países atravessados”, já que “o papel higiênico é um índice de
elevação do indivíduo e um elemento de estudo para o sociólogo”.
“O requinte do papel higiênico representa naturalmente a valorização de um dos locais
mais desprezados do corpo humano, mais destruído pelo chiste da palavra e do gesto,
possivelmente o mais desprezado de todos e, para mim, um índice que indica o valor do local
mais desprezado do corpo era também um dos índices de civilização de um povo e o desejo
de elevação do indivíduo.”
Dolce Vita
Em plena vigência do Estado Novo de Getúlio, Flávio é ‘flagrado’ tomando um banho
feliniano na Fonte das Lagostas, na Praça Júlio Mesquita. Não se sabe ao certo, mas dizem
que Flávio visava dinamitar a fonte após o banho. E mais uma vez novo passeio na “Viúva
Alegre”, nova nota no Estadão, mais uma ruptura do standard posto, mais uma quebra no
cotidiano.
Sapos ou São Francisco de Assis da Praça da República
A turma de Sangirardi Jr. auto-intitulada de “boêmios irrecuperáveis, notívagos
turbulentos” nutria grande admiração por Dom Flávio, por sua arte, pelo que dizia e fazia.
Certa madrugada, ao passarem já um pouco bêbados pela Barão de Itapetininga, viram
a janela de seu apartamento acesa e resolveram subir. Convidaram-no a conhecer o São
Francisco de Assis da Praça da República. Ele desconfiado hesitou, mas não resistiu à
curiosidade e foi.
Diante de um laguinho da Praça, cenário do grande evento, Osvaldo Moles ficou de
quatro na beirada da água e começou a coaxar. De repente um sapo respondia, depois outro e
mais outro. Assim eles vinham aos montes se aproximando, formando um semicírculo ao
redor do encantador de sapos, que também coaxava sem parar.
Flávio e sua alma de criança, com os olhos brilhando, ria e sem resistir aplaudia com
emoção essa travessura performática que se repetiria outras vezes.
75
Deitando no maior cinema da América do Sul
O gigantesco Odeon, na Consolação, tinha duas enormes salas independentes. Eram
interligadas entre si pelos halls de entrada, tão grandes que ali se costumava realizar bailes
carnavalescos.
Em cada hall estavam expostos conjuntos diversos de móveis, isolados por grossos
cordões. Uma noite, momentos antes de terminar a sessão mais disputada, a das oito horas,
Flávio de Carvalho, Plínio Xavier de Mendonça e Sangirardi Jr. deitaram na cama de casal de
um dos dormitórios em exposição. Ficaram os três cobertos pela colcha, apenas com a cabeça
de fora. Terminada a sessão, logo a cena começou a juntar gente, e um adeusinho aqui outro
acolá agrupou uma multidão de gente se empurrando para ver. Os três caras de sem-
vergonhas atraíram até a polícia (com Flávio de Carvalho no meio, já era de se esperar!)
‐ Que é isso?!
‐ Estamos descansando.
‐ Mas isso não é lugar.
‐ Por que? Está muito confortável.
‐ Nessa cama não pode deitar.
‐ Cama não foi feita para deitar?!
‐ Mas não essa. Essa é de propaganda.
‐ E vocês querem propaganda maior do que essa? Olha só quanta gente.
(Sangirardi Jr, 1985, p.96,97)
As pessoas riam e se divertiam. Os policiais sentindo-se ridicularizados decidiram
prendê-los, obrigando-os a descer da cama. Mas para fechar com chave-de-ouro, o púbico
havia gostado tanto da performance que não permitiu a prisão. E os três mosqueteiros, um na
frente e bem mais alto (Flávio) retiraram-se sob uma salva de palmas.
Suas performances ora previamente bem embasadas teórico-cientificamente, ora em
happenings, de improviso, não passavam de grandes aventuras clarificadoras do
comportamento humano, condição primordial para o jogo: desde que fossem lúdicas e, de
preferência, contestatórias.
Ato Falho
Sangirardi Jr. propôs a repetição em São Paulo de uma intervenção que realizou com
uns amigos na Ópera O Guarani em Piracicaba. Os “índios” brandindo grossos tacapes de
76
papelão puseram os “portugueses” para fora de cena, ganhando a batalha do terceiro ato e
fechando a ópera.
Em São Paulo a façanha ganharia caráter internacional uma vez que contava com a
participação do tenor Beniamino Gigli. Flávio entusiasmado acrescentou: “No dia seguinte
publicaremos um manifesto contra a ópera”. (Na época a ópera O Guarani de Carlos Gomes
realizada no Theatro Mvnicipal foi acusada pela imprensa de causar desrespeito à memória
nacional).
Mas ou por desconfiança e delação ou porque o acontecimento em Piracicaba tivesse
ganhado certa notoriedade, a companhia lírica do Mvnicipal só aceitou os comparsas de
sempre, já conhecidos. E o sonho foi por água abaixo.
Histórico do pé
Por volta de 1940, no meio da Rua Barão de Itapetininga, procurando o número de um
prédio, foi atropelado no pé direito pela roda de um ônibus.
Teve de manter repouso absoluto. Para proteger o pé imobilizado, o carpinteiro
japonês fez uma caixa de pinho, com tampa e dobradiças, fechada por uma vistosa fita azul,
para o paciente. Apesar de todas as pomadas, ungüentos, folhas, raízes, calor, frio, banhos de
luz, nada resolvia.
Contou com a ajuda de um cirurgião renomado que recomendou uma operação para
incisura em nervo da virilha. Uma rezadeira trazida pela professora Sebastiana de Morais. E
por fim, acompanhando Lasar Segall, um medico judeu fugido da Alemanha nazista que
examinou restritamente o pé avariado e receitou: “O único remédio é andar”.
Aos poucos foi dando alguns passos e medindo a evolução da melhora com um
paquímetro. O pé desinflamava, segundo ele, a uma velocidade de 0,56 milímetros por dia. Já
de muletas pelo centro da cidade, amigos e conhecidos não paravam de perguntar o causo.
Cansado de repetir sempre a mesma história anedótica digna de um conto, mandou imprimir
panfletos onde tudo era contado nos mínimos detalhes, sob o título: Histórico do Pé. Agora
tente imaginar a cena, um homem (figura pública) de muletas andando nas ruas do centro
(nada mais convencional) distribuindo o drama do próprio pé (nada mais original e até
clownesco).
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Cenários
Fez decorações para bailes carnavalescos, desde o do Clubinho dos Artistas (1951) e
do Circo Piolin (1954) até o do Teatro Municipal de São Paulo (1968) e muitos outros.
Criações a partir de linhas e formas geométricas.
No teatro sua contribuição cenográfica será notável a partir do famoso O Bailado do
Deus Morto (1933) com uma grande coluna de alumínio seccionada (totem) e uma corrente
presa a ela.
Se destacava pela criação de cenários em que a cor e a luz valorizavam a beleza
plástica e conferiam volume, reflexos, sombras e movimento aos bailados. Notando-se
características simbolistas e construtivistas, conservando simplicidade, economia de símbolos
e poder de síntese. Exemplos disso são o cenário para o grupo experimental de dança Dorinha
Costa (1951), com grandes tecidos esticados de modo a criar diagonais, retas e curvas no
espaço cênico, e a utilização de fachos luminosos; cenários e figurinos para A Cangaceira -
Balé do IV Centenário (1954); cenário para Ritmos de Prokofiev – Balé Yanka Rudska
(1956); cenário para Calígula - Teatro de Alumínio (1959) e cenários e figurinos para o
bailado Tempo em 1965.
Anti-performance
Flávio teve a maioria de seus projetos de monumentos recusados, talvez por fugirem
da rotina, dos padrões estabelecidos. Um, no entanto, foi executado: o monumento a Federico
Garcia Lorca, subsidiado pelos antifascistas de São Paulo, na figura de Paulo Duarte, e
erigido na praça das Guianas, perto da Avenida 9 de Julho. Inaugurado em 1968 com a
presença de Vinicius de Morais e Pablo Neruda (que discursou).
Nas palavras de Flávio: “Este monumento encarna em aço a têmpera de Federico
Garcia Lorca, simboliza o seu espírito dinâmico que explode num teatro telúrico e numa
poesia viva, universal. Seus tubos são flechas lançadas ao espaço, na procura da liberdade que
dignifica o ser humano. No seu conjunto, é a própria vida do poeta, que trava a definitiva
batalha contra a tirania e a opressão”.
Todo esse vitalismo só poderia irritar as forças do obscurantismo reinante. Essa tensão
latente, que reflete também um momento político nacional, toma forma no que entendemos,
em concordância com Antonio Carlos R. Moraes, ter sido um ato de barbárie, uma anti-
performance. Na madrugada de 26 de junho 1969, aproximadamente 30 jovens do ‘Comando
de Caça aos Comunistas’, armados de metralhadoras, intimidaram o guarda-noturno e ao som
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de gritos histéricos e selvagens, serraram e destruíram o monumento ao cabo de 4 horas. Era
esse o primeiro monumento do mundo ao poeta fuzilado na guerra civil espanhola.
Esse gesto era um “Viva a Morte” pelos nazi-fascistas, os mesmos que fuzilaram
Lorca, os mesmos que torturam e matam os que lutam pela liberdade.
O monumento teve de esperar os ‘tempos de democracia’, após 11 anos para ser
reconstruído por alunos da FAU da USP.
É indiscutível o Quê performático de Flávio, sua capacidade de lidar com o aqui e
agora, retratar e relacionar-se artisticamente com o presente, com o que lhe diz respeito, no
momento em que vive, buscando entendê-lo, transformá-lo e transformar-se nele.
Acreditamos que suas ações e propostas interventivas criticavam e revelavam problemas
socioculturais de sua época através de meios bastante simples mas que perturbavam a ordem
cotidiana imposta. Aplausos e saudações a este grande agitador cultural.
“A nova humanidade só pode admitir a arte sob fórmula diversa: ‘Todos fazem, eu
não faço’.” Flávio de Carvalho.
Apresentamos aqui uma tabela buscando uma aproximação teórica entre a
configuração e realização das propostas performáticas de Flávio e os aspectos relevantes à
criação de performances em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples. É
interessante para nós enquanto pesquisadores perceber e identificar aproximações com o
trabalho de outros artistas como forma de enriquecer, contextualizar, aprofundar e
parametrizar as características formadoras do nosso próprio fazer artístico.
Os parâmetros utilizados foram os seguintes: relação espaço-temporal estabelecida no
espaço público (data, lugar, observação imersiva, inscrição e escritura corporal, duração,
repetição, ritmo, energia), relação intersubjetiva proposta entre performer e cidadãos
(performatividade, presença, “valor de troca”), trabalho sobre o mínimo (gestos, ações,
elementos e signos).
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1 Experiência 1 Experiência 2 ou “Um
incidente”
Experiência 3
Relação espaço-
temporal:
Data _______________ 8 de junho de 1931 19 de outubro de 1956.
Sexta-feira quente de primavera.
Lugar
Fazenda de parente esquina da rua Direita
com a praça do
Patriarca.
Rua Barão de Itapetininga, nº296. Do
centro novo ao centro velho.
Observação
imersiva
Fluxos costumeiros de
relações estabelecidas em
família numa fazenda
Procissão de Corpus
Christi trafegando nas
ruas
Faz uma evolução histórico-
filosófica do invólucro ambiental
para o invólucro corporal.
Inscrição corporal
Intimidade com o
ambiente, conhecimento
da geografia
Adentrar a procissão
rompendo o fluxo
comum e esperado
Entender por razões sociológicas,
psicológicas e etnográficas o que a
moda representa na sociedade
Escritura corporal
Promover ação física
catastrófica sobre si e
analisar impacto gerado
sobre os parentes
Procurou inteirar-se
da capacidade
agressiva de uma
massa religiosa à
resistência da força
das leis, civis, ou
determinar se a força
da crença é maior do
que a força da Lei e
do respeito à vida.
A partir do incômodo que a roupa
masculina lhe traz, rotinizada pela
moda, não adaptada ao clima tropical
e ao cotidiano metropolitano, desfila
com uma proposição de traje
masculino que acredita se adequar à
realidade brasileira.
Duração _____ ______ _______
Repetição Ação única com certa
duração
Ação única com certa
duração
Ação única com certa duração
Ritmo Movimentos rápidos Lento-rápido-lento Cotidiano
Energia
Grande liberação de
energia
Gradativa: da
contenção para a
exaustão
Economia de energia
Relação
80
Intersubjetiva
proposta entre
performer e
cidadãos:
Performatividade Coordenação motora e
domínio respiratório
Simples Apesar do performer já ser uma
figura pública na época.
Concentrava-se mais na relação
sígnica entre a indumentária e as
pessoas do que no performer
Presença Não foi capaz de gerar
impacto
Grande poder de
observação, preparo
físico e interação
Atenção à reação e aceitação das
pessoas, colhia seus comentários
“Valor de troca” Ação não foi considerada Grande impacto sobre
a população religiosa,
gerou reações diversas
de acordo com os
gêneros, faixa etária e
instituições
Grande impacto sobre a população
civil, gerou reações diversas de
humor, revolta e aceitação entre
artistas, celebridades e políticos.
Trabalho sobre o
Mínimo:
Gestos Gritar por socorro Flerte às moças ________
Ações Afogar-se Cruzar uma procissão
de Corpus Christi no
sentido contrário, com
um boné na cabeça
Caminhar
Elementos Açude Boné New look
Signos Morte, ausência Boné, contra-fluxo,
flerte
Debate sobre importação e adaptação
de valores sócio-culturais.
81
2 “Atentado ao pudor” “Estudo do papel
higiênico”
“Dolce Vita”
Relação espaço-
temporal:
Data 12 de julho de 1934 1936 Vigência do Estado Novo de
Getúlio
Lugar __________ Diversos países Fonte das Lagostas, na Praça Júlio
Mesquita
Observação
imersiva
Fechamento do CAM, do
Teatro da Experiência. E
agora de sua primeira
exposição individual.
Uma viagem que dará
origem ao livro Os
Ossos do Mundo (reúne
pequenos ensaios sobre
arte, psicologia,
estética, arquitetura,
sociologia, história,
etc.).
Federação governada por Getúlio
Vargas que combinava ditadura,
censura e populismo. Conjuntura da
II Guerra Mundial.
Inscrição corporal
Apreensão de cinco dos
mais de cem trabalhos
expostos e deixando um
grupamento de agentes em
vigília na porta. Os
quadros expostos tinham
crianças rindo e fazendo
ginástica ainda no ventre
materno (consideradas
imorais pelos censores). E
nus femininos (constituíam
atentado ao pudor).
Realidade apresentada
no material analisado
de cada país.
“o papel higiênico é um
índice de elevação do
indivíduo e um
elemento de estudo para
o sociólogo”.
Qual o espaço do corpo nu no
espaço público?
Escritura corporal
Cobrir corpos nus de todos
os monumentos da cidade
Faz uma pesquisa de
campo que consistiu em
“uma razoável coleção
de papel higiênico dos
países atravessados”
Ocupação corporal do espaço
público.
82
Duração _______ ______ _______
Repetição Elemento repetido Ação única com certa
duração
Ação única com certa duração
Ritmo _______ _______ _______
Energia _______ _______ _______
Relação
Intersubjetiva
proposta entre
performer e
cidadãos:
Performatividade Força estética, de
significância e na repetição
de um mesmo elemento
sobre obras de arte
públicas
Simples Quebra de convenção social
Presença criar ambiente favorável a
jogo e fruição no espaço
público. Força
contestatória.
Força sociológica de
um elemento cotidiano
usado para higiene
Coragem de exposição da ordem do
íntimo, do considerado privado, em
espaço público.
“Valor de troca” Ação em resposta a
censura. Exposição foi
liberada, teve dias lotados
e vendeu todas as obras .
_________ É levado à delegacia, vira nota no
jornal, mais uma ruptura do
standard posto, mais uma quebra no
cotidiano.
Trabalho sobre o
Mínimo:
Gestos Os monumentos de São
Paulo amanheceram todos
vestindo camisolas brancas
(gesto social)
________ _________
Ações _________ colecionar papel
higiênico dos países
atravessados
Flávio é ‘flagrado’ tomando um
banho feliniano na Fonte das
Lagostas, na Praça Júlio Mesquita.
83
Não se sabe ao certo, mas dizem
que Flávio visava dinamitar a fonte
após o banho.
Elementos Camisolas brancas Papel higiênico Corpo
Signos Ironia ao pudor? Ao
puritanismo? Às vestes e
máscaras sociais? A uma
metro-província ainda
adormecida diante do
progresso da realidade e
do pensamento?
“O requinte do papel
higiênico representa
naturalmente a
valorização de um dos
locais mais desprezados
do corpo humano (...)
índice que indica o
valor do local mais
desprezado do corpo
era também um dos
índices de civilização
de um povo e o desejo
de elevação do
indivíduo.”
Questionamento sobre a
privatização do corpo, os fins e
usufruto do espaço público.
3 “Deitando no maior
cinema da América do
Sul”
“Histórico do Pé”
Relação espaço-
temporal:
Data 1940
Lugar Cinema Odeon, na
Consolação
Centro da cidade
Observação
imersiva
Em cada hall estavam
expostos conjuntos
diversos de móveis,
isolados por grossos
cordões.
De muletas pelo
centro da cidade,
amigos e conhecidos
não paravam de
perguntar o causo.
84
Inscrição corporal
Área de propaganda de
produtos em espaço
público-privado
Caminhava apenas
Escritura corporal
Habitar móveis em stand
de exposição
Cansado de repetir
sempre a mesma
história anedótica
digna de um conto,
mandou imprimir
panfletos onde tudo
era contado nos
mínimos detalhes, sob
o título: Histórico do
Pé. Distribua os
panfletos ao curiosos.
Duração Ação única com certa
duração
______
Repetição Gesto de acenos repetido Entrega de panfletos
Ritmo _______ _______
Energia “Cotidiana” “Cotidiana”
Relação
Intersubjetiva
proposta entre
performer e
cidadãos:
Performatividade Simples simples
Presença Estado de humor Estado de humor
“Valor de troca” Agrupou uma multidão de
gente se empurrando para
ver, as pessoas riam e se
divertiam. Atraíram até a
polícia. A ação acabou
promovendo com fins de
propaganda os móveis em
Justificativa aos
curiosos.
85
exposição. Os policiais
sentindo-se ridicularizados
decidiram prendê-los,
obrigando-os a descer da
cama. Mas o púbico havia
gostado tanto da
performance que não
permitiu a prisão. E os três
retiraram-se sob uma salva
de palmas.
Trabalho sobre o
Mínimo:
Gestos Acenos de adeus ________
Ações Flávio de Carvalho, Plínio
Xavier de Mendonça e
Sangirardi Jr. deitaram na
cama de casal de um dos
dormitórios em exposição.
Ficaram os três cobertos
pela colcha, apenas com a
cabeça de fora.
Um homem (figura
pública) de muletas
andando nas ruas do
centro distribuindo o
drama do próprio pé
(nada mais original e
até clownesco).
Elementos Cama Panfletos, muletas
Signos Transgressão de barreiras
físicas e sociais de
proteção de patrimônio
privado, relativização e
questionamento do poder
da polícia enquanto
autoridade pública,
promoção e propaganda.
Humor sobre a vida
pública. Fabulação,
compartilhamento de
uma história pessoal.
86
2.4 Experimentos Práticos
“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nessa vida” (Vinícius de Moraes). “No atual estágio ‘líquido’ da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada — ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida”.39 “A arte na cidade contemporânea só pode aludir ao que ali nos escapa, ao que ali não tem lugar” (LIMA, 2008, p.122)
Para nós ao praticar a performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou
da ação simples, mais do que as planificações, representações gráficas, ou projeções,
interessa-nos as ações, as vivências, os percursos, as apropriações com seus desvios e atalhos,
as micro práticas cotidianas do espaço vivido, e estes não precisam necessariamente ser
vistos, mas sim experimentados através de todos os sentidos do corpo escrevendo e sendo
escrito pela cidade, compondo a complexidade da experiência urbana. É o corpo em
movimento que realiza, transforma ou atualiza o lugar, seus projetos e planejamentos
urbanos.
Nossas performances buscam permitir fabulações a partir de estímulos imagéticos:
sígnicos, temporais (através de um tempo dilatado, extra-cotidiano) e de ação (cotidiana, mas
deslocada para outro contexto passando a ser extra-cotidiana). Buscam desterritorializar um
território já familiarmente conhecido, causar um estado efêmero de desorientação espacial,
quando todos os outros sentidos, inclusive a visão, se aguçam possibilitando uma outra
percepção sensorial do espaço e do que nele ocorre.
A espetacularização das cidades contemporâneas desencadeia um processo de criar
cidades-logotipo (JACQUES & JEUDY, 2006, p.127) cheias de cenários e espaços
espetacularizados, desencarnados, propícios somente para os simples espectadores. Levam a
uma diminuição da participação, mas também da própria experiência urbana enquanto prática
cotidiana, estética ou artística. Essa redução da ação urbana pelo espetáculo acarretam uma
perda de corporeidade, tornam os espaços urbanos “vazios”, meros cenários, como reforça
Paola Berenstein Jacques:
Os urbanistas teriam esquecido, diante de tantas preocupações funcionais e formais, deste enorme potencial poético do urbano, e principalmente, da relação inevitável
39 BAUMAN, Zygmunt. Entrevista. Istoé, 24 set. 2010. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/102755_VIVEMOS+TEMPOS+LIQUIDOS+NADA+E+PARA+DURAR+?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage>. Acesso em 29 nov. 2012.
87
entre o corpo físico e o corpo da cidade que se dá através da errância, através da própria experiência - do se perder, da lentidão, da corporeidade - do espaço urbano, algo simples. (...) No urbanismo contemporâneo, a distância ou descolamento entre sujeito e objeto, entre prática profissional e vivência-experiência da cidade, se mostra desastrosa ao esquecer o que o espaço urbano possui de mais poético, que seria precisamente seu caráter humano, sensorial e corpóreo. O sujeito urbanista, ao se esquecer de se relacionar fisicamente, afetuosamente, com a cidade em si, o seu objeto, se distancia desta e por fim projeta espaços espetacularizados ou desencarnados. (JACQUES & JEUDY, 2006, p. 134)
Os espaços públicos contemporâneos estão cada vez mais privatizados ou não
apropriados. São para nós um desafio de reinvenção corporal, carnal e sensorial das cidades.
Vemos a cidade como um campo de investigações artísticas aberto a outras possibilidades
sensitivas. Acreditamos que através de nossas experiências possibilitamos outras maneiras de
se analisar e estudar o espaço urbano, questionar a apropriação desses espaços de forma
crítica, poética.
Em se tratando de arte contemporânea vários artistas trabalham no espaço público com
algum tipo de questionamento teórico. Desde as flanâncias (final do séc. XIX e início do séc.
XX), as deambulações (1910-1930), as derivas (1950-60), os happenings (1960-70), ou
mesmo nós acreditando nas micro-alterações e possibilidades de transformação no espaço
público e de convivência social através do mínimo ou do simples, num processo de inscrição
e escritura corporal. O mínimo e o simples são intermédio para encontros entre pessoas e
esses encontros por sua vez geram micro-transformações perceptivas, afetivas e de outras
ordens.
Essa relação íntima entre arte e vida cotidiana passa tanto por “questões corporais
como por questões urbanas, chegando numa relação entre a experiência sensorial do corpo e a
experiência física da cidade” (JACQUES & JEUDY, 2006, p. 132). Acreditamos que
promover ambientes criativos nos espaços públicos os quais possibilitem a participação e
fruição do espectador é o antídoto ao espetáculo.
É dessa maneira, com os experimentos práticos, que as pulsões e inquietações teóricas
encontram seu lugar concreto, a partir da vivência do corpo em relação aos espaços
escolhidos40 da cidade de São Paulo. Para que materialize e conclua a partir da experiência os
pressupostos e hipóteses levantados com relação à fricção entre arte e vida, arte e relação, arte
e cidade.
Realizamos, portanto, para esta pesquisa sobre o potencial da performance através do
mínimo e do simples na malha pública urbana alguns experimentos práticos, além dos três
experimentos previstos. Daremos por conseguinte maior enfoque as esses três experimentos 40 e pessoas
88
evidenciando os diferentes caracteres públicos vivenciados na prática quer numa via, num
patrimônio público ou numa instituição pública. Apresentaremos a definição que acreditamos
mais se adequar a nossos fins dos termos via, patrimônio e instituição, trazidos por
FERREIRA (2010, p.781, 570, 430), ressaltaremos os dados mais relevantes colhidos da
observação imersiva em cada um dos experimentos, faremos uma reflexão acerca da
realização de cada uma das proposições artístico-performáticas e em seguida apresentaremos
os pontos de vista do participantes que acompanharam os experimentos através de um
protocolo observacional. Faremos também um breve relato dos outros experimentos
realizados apenas com o programa de ação constando de informações de lugar e data, ação
realizada, questão a ser abordada e imagem do experimento.
Cada um dos experimentos constitui-se de duas fases básicas:
Observação imersiva
Proposição de ação artístico-performática.
89
2.3.1 Experimento I: Via Pública- túnel Papa João Paulo II
[Lat. via.] sf. 1. Lugar por onde se vai ou se é levado; caminho. 2. Direção, rumo. 3. Qualquer ducto do organismo. 4. Meio, modo. (FERREIRA, 2010, p.781)
Como vimos as cidades a partir do princípio de harmonia, organização e
funcionalidade serão entrecortadas por vias que permitam uma maior eficiência nos meios de
transporte e comunicação.
Nosso primeiro experimento dedica-se a estudar e perturbar os fluxos presentes no
túnel Papa João Paulo II, este entre-lugar arquitetado para tão somente ligar pontos, um lugar
de trânsito constante, um meio de passagem, de embarque e desembarque, de não-estada, de
impermanência, uma veia escondida da cidade, uma via que para tornar mais eficiente o
aproveitamento geográfico da cidade e aumentar as áreas de contato, desbrava o subterrâneo,
some da superfície, espaço público imemorial, escuro e nada convidativo.
Diante de vários becos e pontos que a cidade esconde e maquia aos olhos, é lá que
queremos estar, intervir, buscar ou imprimir vida, perturbar, criar ruídos, nem que “invisíveis”
a uma grande mídia, público, ou aparelhos que garantem a ordem da cidade. Esta ação na
invisibilidade aparece para nós como recurso a partir do momento em que:
Trazer a arte como enfrentamento ao inevitável incrustado na vida ordinária, desacomodando um mundo sem saída, nos oferece a invisibilidade como ação política. O invisível veiculado por meio da arte possibilita a criação de veias multiplicadoras de análises, desdobramentos do pensamento em combate contra um mundo cristalizado em reluzente cartão-postal[...] não a comodidade das metáforas indicadoras de realidades familiares, mas com virtualidades de ações, narrativas incompletas, desassossegos produtores de mundos possíveis ou impossíveis, que têm o corpo da cidade como fundamento singular (LIMA, 2008, p.137)
Pensando na cidade como corpo e a via como qualquer ducto do organismo, ao habitar
este entre-lugar público, o túnel Papa João Paulo II, por algumas horas surge-nos a reflexão
sobre o que ele momentaneamente abriga: carros. E não podemos evitar as associações entre o
que lemos e vivemos, ao notar que o carro não passaria de um não-lugar privado trafegando e
ocupando por horas a fio este espaço público, as vias, especial e majoritariamente destinadas a
ele. Através do urbanismo enquanto campo disciplinar e profissional, transformou-se “as
antigas ruas de pedestres em grandes vias de circulação para automóveis, reduzindo as
possibilidades da experiência física direta, através do andar, das cidades” (JACQUES &
JEUDY, 2006, p.129). Sendo as vias, portanto, um aparelho público declaradamente a serviço
do mercado: ou para que esta mercadoria, o próprio carro, trafegue, ou para que
90
mercadorias41 sejam deslocadas de um ponto a outro através dos meios de transporte.
Ao contrário do que poderíamos pensar há vida sim neste ambiente inóspito, poluído,
escuro, cinza e fétido do túnel Papa João Paulo II, há pessoas morando no chão, nas valas, e
inclusive nos buracos dos corrimões de concreto das escadas deste túnel do Vale do
Anhangabaú. Há uma potência vital neste invisível, no subterrâneo do subterrâneo. O ser
humano revela-se extremamente adaptável às condições mais adversas e cria formas de
resistência, de sobrevivência, de permanência mesmo na impermanência.
O vale do Anhangabaú é uma área alagadiça, de pântano, agravada pelas enchentes.
Os índios que habitavam este lugar antes de nós já o sabiam. Biologicamente, regiões
pantaneiras são altamente anaeróbias, favorecendo o processo de putrefação. Os índios
destinavam este lugar ao enterro de corpos, era um cemitério, um vale de mortos. Na crença
popular e no misticismo trata-se portanto de um lugar amaldiçoado, assombrado, de forte
fluxo energético. O “ser humano civilizado” intervém neste espaço de modo a cobrir e asfaltar
esta região alagadiça para aproveitamento de espaços e ampliação da malha urbana, mas o
que factualmente constatamos ao longo dos anos é que a cada chuva intensa essa região de
túneis alaga com enchentes, como também um alto número de mortes e suicídios são
registrados nessa região. “Mas talvez ele (o urbanista) teria evitado vários enganos se tivesse
se dado o tempo para se abrir, lentamente, às exigências dos lugares que ele deveria tratar, se
ele tivesse aceitado ser modestamente um flâneur esclarecido de sua cidade”.(JACQUES &
JEUDY, 2006, p. 124)
Para este 1o experimento habitamos temporariamente o Túnel Papa João Paulo II por
dois dias, totalizando oito horas e trinta minutos dedicados a este experimento. A seguir
fazemos uma descrição das atividades realizadas e os frutos colhidos desta nossa experiência.
Local: túnel Papa João Paulo II
Duração: 2 dias, 8:30 h.
1o dia: Sábado, 08.09.12.
Procedimentos: Inscrição corporal, observação imersiva, silêncio, ação42.
Duração: 9:00h- 14:30h (5h).
Participantes: Lucas Paz e Patrícia Bispo.
41 Presentes, cargas, encomendas, compras. 42 Para qualquer esclarecimento sobre os procedimentos consulte o tópico Dos procedimentos práticos utilizados.
91
Atividades realizadas:
i) Entrevista à participante convidada com duração aproximada de uma hora43.
ii) Ação simples: observação imersiva com duração de quatro horas.
iii) Procedimentos específicos:
iii.1) Indicações à participante antes da atividade de observação:
Introduzimos os parâmetros utilizados para a realização dos experimentos: observação
imersiva, silêncio, ação e autoria.
Falamos brevemente sobre micro-percepções a partir do exemplo de Leibniz sobre o
mar e o barulho do mar, citado por Renato Ferracini em entrevista concedida à pesquisa.
Orientamos os participantes a observar os fluxos e contra-fluxos deste espaço e
capturar o máximo de imagens, sensações, eventos, através das palavras. Segue parte das
indicações efetivamente dadas à participante no dia do experimento:
Por enquanto se trata de um exercício de inscrição neste espaço que adentramos, receber dele, simplesmente escutar, com o corpo inteiro e registrar cada detalhe. É um trabalho de imersão e instauração de uma relação espaço temporal extra-cotidiana. Durante as quatro horas de observação haverá uma transição entre escolher um único ponto de vista a cada hora (escolher um ponto fixo de colocação espacial do corpo para observação), ou fluir continuamente durante a observação, portanto descobrindo um ritmo próprio de adequar trânsito, observação e registro ao longo da duração de uma hora. Exercício de permanência, de habitar temporariamente este entre-lugar (idealmente quatro horas de permanência, quatro horas de livre trânsito para de fato se inserir e perceber a fundo as dinâmicas do lugar). A ação simples seria registrar tudo que observa. É natural que os níveis de atenção ao longo do processo variem, o desafio é se ater e registrar cada detalhe. Viver este ‘lugar’. Perceber as diferenças de fluxo com o passar das horas, o que varia (muda), o que é invariável (permanece inalterado), o que impressiona, o que ‘passa despercebido’, o que é específico daqui? Estamos falando de ruídos, o visível e o invisível.
iii.2) Indicações à participante pós atividade de observação:
A sua forma de encarar, perceber o espaço público sofre alguma mudança após esta experiência? De que maneira? Que espaço a arte teria aqui? Como a arte pode estar presente aqui, trocar com este espaço, dialogar com ele, a partir dele? Pense em um mínimo gesto ou ação simples para se inscrever, escrever neste espaço, aqui entra a autoria através da “prática crua”, algo não ensaiado, apenas idealizado e que só é quando acontece.
iii.3) Observação Imersiva de Lucas Paz através de método de escrita em fluxo
contínuo de pensamento:
43 Em Anexos
92
Como esmiuçamos em dos procedimentos práticos utilizados a escrita em fluxo
contínuo de pensamento é o método que elegemos para absorver com a maior riqueza possível
de detalhes e a menor quantidade de filtros todos os aspectos que saltam e se revelam do
espaço. Essa fluidez acelerada, sem “quebras” entre o que se vê o que se anota, nos permite
inserir-nos em primeira instância no espaço com mais propriedade e abertura ao que este traz
como realidade, para daí podermos captar o que seria uma intervenção nele através do
mínimo gesto ou da ação simples.
Todo este processo de observação e escrita acaba por criar um “proto-roteiro” do que
será nossa intervenção artístico-performática, seria para nós uma dramaturgia da cidade, a
dança da cidade recortada em determinado momento através das ações registradas em
palavras.
Por ser parte fundamental para o entendimento do processo de criação das proposições
artístico-performáticas anexaremos as observações imersivas ao final do relatório em Anexos.
Aqui registraremos os trechos com as impressões mais fortes colhidas do 1o dia no
Papa Joao Paulo II, destinado especificamente a esta atividade:
9:21h-10:21h 1a hora ponto fixo (sobre corrimão esquerdo de concreto da escada) Túnel Papa João Paulo II (via escondida de passagem de carros e pedestres do Anhangabaú, centro de SP) Variações rítmicas entre as faixas de carros Patrícia sentada no chão emborrachado (calçada destinada aos pedestres, suja, fedorenta, com vala escoadora de água, forte cheiro de esgoto exalando dejetos, mijo e cocô, não chega a ser insuportável). (Túnel) Bem iluminado com leds
cantar de pneus prenúncio de possível acidente escadas em setas
olhar curioso que desce do ônibus Moça passa por nós e não olha Reconstrução, reparo, manutenção, nova iluminação X mal-cheiro, degradação, escuro arquitetônico Patrícia parada chama muita atenção. Pista do meio geralmente para e pessoas nos observam buscando algum sentido. É possível trocar sabe-se lá o que com esses alguns olhares.
93
Um grito abafado pelo som de carros: Ei. Uma mulher tira foto do túnel, tira foto da Patrícia Turbinas exaustoras parecem estar desligadas, hoje o som do túnel já não parece tão ensurdecedor neste início. -som de fundo constante, um ronco de ar. Olhares que olham demorados ou breves, olhares que seguem. Moto olha brevemente e se distrai no trânsito. O que achamos, o que estamos buscando? Quadrado da escada: buraco, cova, quarto escuro, sossego. Túnel atravessar-se, deixar-se atravessar. O ônibus vai, o olhar se vira e busca ficar desvendando essa presença. Qual o seu/nosso contexto. Pessoas num túnel que anotam. Olhos que observam (casal) e apontam, como que conversando, criando teorias. Por que? O que será? Performar também é permanência, estar, presença, não necessita um algo a mais a se impor, muito mais a observar, a perceber. Pois é natural da relação intersubjetiva, do ser humano, buscar, atribuir sentido, se relacionar, trocar. Assobio para distrair, acompanhar, passar o tempo. Buzina, buzina (notas musicais - pã, pin, buzina que emite som de risada), pin, pin, pin, sinaleiras, piscas, pedir passagem Olho (que busca algo para distrair no meio da mesmice)-seguir-pedir para seguir (buzina/sinaleira) “Risada”(buzina que emite som de risada) novamente - ainda preso no túnel depois de vermos tanta fluência, tantos carros passarem? - Intervenção no trânsito, não usual, torna lúdica a relação interjeição de cansaço âââi som de fundo retorna a percepção. Corrente de ar Não dá para ouvir distinguir as conversas diante dos barulhos Ficar parado diante do movimento parece pedir movimento. Correr. Habitar. Ronco bem alto de moto. -Bom dia. Entrou no buraco da escada. Falou com o outro. Negro, cabelo curto, dentes bons, cigarro na mão. -Pra cá caralho! -Sumiu lá dentro. Mundo sub-sub-terrâneo. A veia da veia. O buraco do buraco. Dentro da escada, no túnel. Repente do trabalhador. 2a hora: 2o ponto de vista (10:21h-11:21h) próximo a entrada do túnel. Sentado (avistando o dentro- de costas para o fora) Ela na outra extremidade em pé. -3 turbinas exaustoras- como canhões, atiradores de mísseis. Concreto, borracha, poeira, folhas, cinza, infiltração, mofo, rastros deixados pela água, teto sanfonado, listras de tinta branca- demarcação de trânsito. Várias bolinhas azuis, textura do cimento no chão
Buzina/motor/buzina/motor Coluna (vertebral) Será que pensam na figura do estudante estudando em lugar adverso? Alguém gravando-me gravando o trânsito Descompressão do ônibus/caminhão (2 vezes) um alívio, um descanso Rádio alto de carro. Alerta de luz alta. Sinfonia de buzinas de motos e caminhão (2) e de carros. Buzina de festa (pensei como intervenção até ela se esgotar, várias) na 25 de Março. Guarda municipal- alguns, 20 mins. atrás.
94
Carro batido, amassado, riscado, arranhado, vidro riscado, fumaça do escapamento. Máscara de respiro Laranja no túnel chama atenção Barulho/ sujeira/chamar atenção (luz, cor, som)/ mal-cheiro/claro x escuro Ronco da moto como alerta sonoro, imposição, estabelecer seu espaço (luz, ou buzina) Máscara, lanterna, buzina, mp3 Propaganda política associada ao facebook (rede social na internet) Carlos Funakipolítica e mercado ferramentas da publicidade, do marketing, lucroentretenimento e a mudança social onde fica? É preciso estar atento e forte. Abrir os olhos Ambulância Que noção possível de passagem de tempo é essa? Como se dá? Pelo ritmo dos carros? Pois aqui é como se fosse um tempo em que eventos diferentes ocorrem, mas se repetem, como se o tempo fosse “igual” o tempo todo, não passasse pois perde-se parcialmente a noção das horas, de claro de escuro, pois internamente a veia, via, é de uma cor só. A não ser pelas horas vistas no relógio e as luzes do dia nos fins visíveis do túnel. Um constante fluir, fluir, fluir, que estado de (im)permanência é esse? Nós que permanecemos, é possível permanecer ou divagar, filosofar, como se dá essa imersão? Corporalmente sinto de fato uma variação nos níveis de atenção, permaneço de diferentes formas, habito. O tempo simplesmente passa e esse extra... Caos de buzinas algum não fluir ocorre. Atrapalha-se o fluxo, severa punição sonora público-privada ...já me começa a ser confortável, aceitável, familiar, não incômodo, consigo já em pouco tempo relaxar. Diferente da outra experiência vivida neste mesmo lugar. Tenho uma impressão de ser-me já intimo, cúmplice, familiar deste “entre-lugar”. Quantidade interminável de rodas, carros, pessoas. Nesta 2ª hora aparentam mais buzinas, mais próximo do atraso, do compromisso, da hora estipulada ou biológica da fome, do almoço, da pausa, esperada pausa no fluxo, já também bem contada, cronometrada, regulada, sem sesta, sem os seus, sem parar, sem poder parar o fluxo do dinheiro. Nesta segunda hora filosofo mais e observo menos com os olhos, mas com o corpo. Sinto-me meio lesado, anestesiado pelos sons, mas não dói. Placas de trânsito (É proibido estacionar/parada de ônibus) -super possível morar na rua. Mesmo ganhando dinheiro. “Meu pedaço de chão” Fluxo começa a emperrar.11:12h saco de lixo na pista lembrei da capinha de iPhone na pista (trafegando de carro pela Av. Vital Brasil a caminho do experimento avistei uma capinha de iPhone no asfalto). E se tivesse notas de 100 reais na pista? Pararia o fluxo? (fluxo e anti-fluxo, o próprio movedor, o dinheiro, pode ser o que paralisa ou atrapalha o fluxo). Dinheiro na pista
3ª hora escolher fluir constante ou ponto de vista 11:21h-12:21h Mais um aceno. (Antes um mendigo próximo onde Patrícia observava no 2º ponto, próximo a saída do túnel) Alguém grita falando comigo Eu do outro lado da pista, na vala, de frente para a entrada do túnel. Dirigindo rápido e falando no celular. Lixo. Som alto funk. Carros: Vem olhando de longe e ao passar olha nos olhos. Outro desacelera revelando preocupação. Alguém que dorme no carro enquanto alguém dirige. Acena. Buzina: Respostas a “Pra onde você vai?” Que sibilo entre os lábios Tornar-se visto através de um desenho simples, cotidiano do corpo, do olho. Eu no reflexo do carro. Olhou enquanto fechava o vidro. 3 cantadas de pneu.
95
-Pra onde você vai? Olhar para o início e o fim do túnel virando cabeça. Olhar nos olhos dos motoristas com semblante sério, triste - Aonde você quer chegar? Som alto-balada eletrônica -Para onde você vai? -Center Norte. Para São José, quer carona? 3 vezes pergunto, só acena Preto, Branco, Cinza, Vermelho, Azul, Vermelho, Cinza, Branco 11:49h C, P, P, P, C, P, C, C, P, P, C, C, B, C, C, C, P, C, C, C, P, C, P, C, C, C, C, VERDE, P, C, V, B, B, B, ROXO, P, B, C. SOM ALTO AXÉ/ SOM ALTO RELIGIOSO 12:04-12:18 São Paulo, São Paulo, Jambeiro, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Campinas, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Santos, São Paulo, Belém, Angra dos Reis, Sorocaba, São Paulo, Florianópolis, São Paulo. SOM ALTO RAP/ SOM ALTO SERTANEJO está fazendo estatística? One Direction - SOM ALTO (POP) com medo estranhamento Vãos no teto e no chão aberturas que revelam outras camadas. 12:21h-13:21h 4a hora: ele dormindo no vão da escada vejo braço. Outro ele próximo à saída do túnel deitado eu estou gravando, também deitado. Ele me observa desconfiado tenho medo de gravá-lo e sua reação mas continuo, respiração ofegante, cocô, calção, lixo, mosquito, cigarro, isqueiro, sacolas, isqueiro, carteira de cigarro, manta, eu vontade de fazer xixi, leds fortes no rosto, linhas, ângulos, retas, seguir, seguir. Patrícia na metade do percurso não aguenta mais, já não vê mais nada, ultrapassar o limite “tudo” que já observou. Capturar mais detalhes. Correria da vida X sensação de perda de tempo. Habitar o vazio, o nada, a imobilidade e o cheiro de cocô. O lixo parado os carros que seguem. Só os carros que seguem o tempo inteiro, paisagem contínua velocidade imóvel quais os limites de cada lugar. Posso me aproximar da casa dele? As minúsculas e pequenas imperfeições na estrutura. Buzina. Sono, anestesia, desligamento, cochilo, dispersão. “Nada” acontece. -Atravessar de um lado para outro. Ou parar no meio da pista. -Limpar varrer o lugar, lavar. -visível, invisível. (pneu no asfalto, buraco no chão, toupeira (expedição, capacete, escavação tesoura) buscar capturar reação das pessoas o que você vê? Qual impacto de sua ação estabelecido no uso, funcionamento do espaço? Em que planos ocorre o estabelecimento de relações intersubjetivas? Há a possibilidade de relação? Efêmero, breve ou longo? Uma faixa: para onde você vai? Aonde você quer chegar? Jornal, carteira de cigarro, água empoçada, fundir-se ao espaço, sumir. Os que moram ou ficam aqui a polícia não os tira pois repousam, não atrapalham a ordem, o fluxo, não representam risco. A arte já tem maiores dificuldades de habitar, acontecer, permanecer aqui pois, em algum grau, compromete-se o fluxo, fere-se a ordem, representa risco. 13:09h- Pati- limite 4 h. Pão, papelão, brinco
96
Logo, em decorrência da experiência vivida através da observação imersiva, alguns
questionamentos floresceram em nós:
i) Como pensar numa imagem forte que captura a atenção do passante em poucos
segundos, e desloca seu pensamento diretamente do trajeto que seu carro-mente perseguia em
meio à “dispersão-focada”, “orientada”, proposta arquiteturalmente, urbanisticamente pelo
fluxo urbano?
ii) Que impacto psicofísico essas ações, imagens geram nas pessoas? Como essas
ações alteram ou se fundem ao fluxo?
iii) Que fruição elas tem sobre o visto/vivido?
iv) Condição de trânsito, de “Entre” gera dispersão, ausências-fantasmas (Patrícia
desiste, ausenta-se de continuar experiência, moradores do túnel: presenças-ausências.)
v) No túnel trabalha-se, mora-se, esconde-se, trafega-se, observa-se, buzina-se,
desembarca-se, embarca-se, fuma-se crack, caga-se, mija-se.
vi) Destacar as formas de utilização dos espaços públicos e formas de relação
estabelecidas entre as pessoas nesses mesmos espaços.
Esses primeiros questionamentos nos levaram a formalizar questões balizadoras como
estratégia de conferir foco ao nosso trabalho de observação e dos participantes que
acompanhariam a realização das proposições artístico-performáticas, de modo que as
apresentamos a seguir:
Protocolo Observacional: Balizadores para observação Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas neste mesmo espaço? A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos? A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que aspectos? Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as) Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo? É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um “estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer? Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível?
Após o processo de Observação Imersiva, elegemos a partir dos dados colhidos nesta
experiência de habitar e vivenciar o lugar, qual mínimo gesto ou ação simples é capaz de
sintetizar artisticamente uma questão, problema, conflito ou realidade do espaço a ser
evidenciada (este procedimento vale para todos os experimentos).
97
Assim para o Experimento I: via pública, optamos pela realização de duas proposições
artístico-performáticas, uma ação simples em Ir e vir-Pelo direito inalienável de parar e um
mínimo gesto em Silêncio ensurdecedor-Buzina até gastar/para gastar a buzina.
Descrevemos as atividades do 2o dia de experimento. Em seguida refletimos acerca da
concepção e realização deste 1o experimento prático de acordo com a problematização do
caráter público e da força de uma linguagem que busca explorar, através do simples, as
possibilidades de troca intersubjetiva nestes espaços. E apresentamos as impressões através de
protocolo observacional do participante Otávio Oscar, que acompanhou este experimento.
2o dia: Quarta-feira, 19.09.12.
Procedimentos: Inscrição e escritura corporal, autoria, ação simples.
Duração: 10:00h-13:00h (3h).
Participantes: Lucas Paz e Otávio Oscar.
Atividades realizadas:
i) Entrevista ao participante convidado com duração aproximada de uma hora44.
ii) Observação Imersiva e filmagem45: Otávio Oscar
iii) Propostas performativas de ação simples e mínimo gesto: Lucas Paz
iii.1)Programas de ação das propostas performativas:
“Ir e vir - Pelo direito inalienável de parar” (duração: uma hora)
Performer cruza túnel horizontalmente e prega no chão cédulas falsas de dinheiro com
os dizeres “até onde você vai?” “aonde você quer chegar?”
44 Em anexo 45 Idem
98
99
100
“Silêncio ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina” (duração: uma hora)
Performer com máscara farmacêutica de proteção das vias aéreas, headphone, buzina
de festa e lanterna estrobo, buzina até a latinha produtora do som esgotar-se.
101
0:54’’
102
0:39’’
Diante do fluxo incessante o motoqueiro parou 15 segundos de seu trajeto para
procurar decodificar aquele evento inusitado que testemunhara no meio do caminho.
Quanto tempo demoraria para essa imagem-lembrança ser engolida pelo fluxo da
cidade em esquecimento?
Ou, pelo contrário, essa imagem impregnar-se-ia em sua memória enquanto resistente
reminiscência simbólica convidando-o a micro-transformações?
103
Reflexão sobre proposições artístico-performáticas
Diante da exposição do estudo teórico feito acerca do espaço público explorado, dos
procedimentos utilizados para coleta de dados através de observação in loco, de recorte feito a
partir do material colhido, da estipulação de balizadores para observação e da apresentação
dos programas de ação das duas “práticas cruas” realizadas, nos propomos a refletir sobre os
aspectos geradores da experiência vivida.
Das dinâmicas sócio-espaciais
O túnel Papa João Paulo II configura-se para nós como um entre-lugar, um lugar de
passagem, de ligação de pontos, de impermanência, de fluxo voraz e acelerado de capital.
Bastaria um pequeno acidente natural, ao acaso ou provocado (enchente, desabamento,
interdição, atropelamento) para causar uma pane, uma interrupção deste fluxo contínuo de
mercadoria pelas “veias” que atravessam a cidade e nutrem a economia. O que poderia
ocorrer de ação artística que evidenciasse este fluir cego e mecânico? Esta anestesia dos
sentidos?
Nos deparamos com um espaço “neutro” que existe abaixo da superfície visível da
malha urbana, estruturado de maneira a realmente travar relações passageiras, efêmeras, quase
de modo a não existir de fato.
Angular, monocromático (em tons de cinza), escuro (apesar da iluminação pública),
com forte poluição sonora (com o eco das buzinas, motores, cantares de pneus, turbinas
exaustoras) exalando forte odor de dejetos humanos misturados à fumaça dos carros, ele se
limita à primeira vista a cumprir sua função mais óbvia: conectar, permitir tráfego.
Assim conta com atravessamento de diversos meios de transporte e breve embarque e
desembarque de passageiros de ônibus e táxis para o Vale do Anhangabaú.
Das relações
Vemos trabalhadores da prefeitura realizando manutenção dos aparelhos que
permitem o tráfego, como o asfalto e as escadarias que conectam o túnel ao Vale do
Anhangabaú, por sua vez causando uma pequena perturbação no fluir rotineiro. Vemos o
tráfego de transportes. Vemos pedestres e passageiros que embarcam e desembarcam no
ponto de ônibus e vemos moradores de rua e usuários de drogas.
104
As relações são dotadas de tamanha brevidade que fica difícil pensar em construção de
relações intersubjetivas, sendo este um dos grandes desafios à nossa proposição artístico
performática neste experimento.
A velocidade, o barulho e a “ausência” de cor nos levavam para uma sensação de
ausência de passagem do tempo, ou um tempo que aparentemente não se transformava, seguia
linearmente, embriagava-nos numa energia “pesada” e baixa, um presente contínuo em que
aparentemente nada acontece ou modifica a paisagem, nada fica, tudo passa.
Por este motivo as relações travadas se dão em ambientes privados e íntimos no
espaço público: conversas rotineiras entre os trabalhadores, músicas cantadas e piadas para
passar o tempo, compartilhamento de drogas entre os moradores de rua, moradores de rua
dormindo em meio a insalubridade e perturbação sonora do local, pedestres que se conhecem
e trocam meias palavras durante suas travessias diárias, motoristas e passageiros em seus
carros conversando, dormindo, ou ouvindo som- alto com vidros abertos, ou sob vidros
fechados na tentativa de sobrepor o vórtice sonoro gerado pelo ambiente do túnel.
Das impressões
Diante do exposto o que nos saltou mais forte da experiência de observação foi a
velocidade, a violência que um carro em seu fluir representa enquanto símbolo capital que
corta as veias da cidade, a mecanização ou anestesia dos sentidos, os recursos de sinalização,
sonora ou visual para chamar atenção num espaço “vazio” ou “neutro”.
Em cinco horas dedicadas à observação sentimos em nosso próprio corpo e mente a
transformação e adaptação dos sentidos. Depois de certo tempo aquela condição inóspita e
quase expulsiva do espaço nos acolhia com tamanha “intimidade e conforto” que chegamos a
nos acostumar com o ambiente ao ponto de cochilar por alguns minutos diante da fumaça, do
mal cheiro, da sujeira, do confusão de sons e luzes. Todas estas características próprias do
lugar pareciam dizer constantemente da possibilidade iminente do seu contrário: o parar, o
interromper, o perigo, a insegurança no possível travamento de qualquer natureza de relações,
a grande catástrofe, a morte, nos lembrando o enredo de Construção de Chico Buarque:
“Agonizou no meio do passeio público�/ Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.
Gostaríamos de relatar que a exposição ao risco sempre está muito presente em todos
os experimentos, dado que intervir nos espaços públicos é relacionar-se constantemente com
o acaso, com o incerto, com o desconhecido, com o inesperado. E aqui não seria diferente. Os
diversos olhares de motoristas, trabalhadores, passantes, moradores, guarda civil, polícia ora
105
nos temiam, nos evitavam, nos buscavam, ora nos ameaçavam. Ao final do dia de observação,
nos últimos minutos, ao gravar as valas do túnel me deparo com uma algema quebrada e logo
em seguida dá-se um encontro forte e ao mesmo tempo desestabilizante com um homem que
acabara de voltar liberto para São Paulo dos seus anos de detenção em Bauru. Ele tomou
minha água e pediu-me dinheiro, ao que calmamente expliquei que não tinha e a que fim eu
estava ali. Meu temor era de que me levasse a câmera filmadora em minhas mãos, que
registrava tudo. Ele falou que a sensação de liberdade, de voltar a vida não tinha preço,
desejei-lhe sorte, ele pediu apenas que não o filmasse e cada um segue seu caminho. Ele iria
então sentar-se junto a um morador de rua ali no túnel e compartilhar uma pedra de crack.
Por mais arriscado que sejam os encontros aos quais estamos suscetíveis nesta nossa
investigação, constrói-se um rico e intransferível repertório etnográfico de experiências
vividas através de encontros e de histórias bastante diversas compartilhadas que nos permitem
cada vez mais nos perguntar qual a função que a arte tem para nós? O que queremos com a
arte, e o que só a arte seria capaz de possibilitar? Qual o limite entre arte e vida?
Não conseguimos neste caso nos ater a apenas uma intervenção. Concebemos duas
proposições, cada uma com duração de uma hora. As ações que programamos para intervir no
túnel obedeceram a uma lógica da invisibilidade e da não espetacularização.
Quer seja pelos elementos escolhidos ou pela ação desempenhada, apesar de
estranhados, as intervenções respeitavam e se fundiam em elevado grau aos fluxos presentes
no próprio local. A motivação aqui era de aproximar ao máximo arte e vida a ponto de quase
não se perceber o limiar, para revelar de maneira simbólica os conflitos que o espaço carrega
em seu dia-a-dia.
Em Ir e vir- pelo direito inalienável de parar o que se colocava em cheque era esta
necessidade forjada de sempre se manter em movimento, de sempre circular, da
impossibilidade de parar que o consumismo nos submete. Como a circulação de dinheiro e a
circulação física por meio do transporte submetida a uma pressa infinda estão intimamente
atreladas. E quando por algum motivo este fluxo em espaço público é interrompido, torna-se
motivo para imediatas repreensões de ordem privada quer seja por uma buzina, um sinal de
luz, um xingamento ou a própria invasão da integridade individual através de agressão física.
Aqui nos importava uma ação silenciosa, mas que se dá em conexão com o fluxo
imposto. Tratava-se de colar cédulas falsas de dinheiro no meio da via com os dizeres “até
onde você vai?”, “aonde você quer chegar?”. Era uma forma de indagar em outras palavras
para que tanta pressa, para onde e por que seguir, o que te move de fato? Acorde!
106
Imaginávamos até que ponto de fato o dinheiro nos move. Esta situação chegaria ao
extremo quando aquele mesmo que nos move é o que também nos paralisaria. Supondo por
exemplo que alguém curioso, ou identificando a presença de algo no chão da pista, ou mesmo
eventualmente percebesse as notas de dinheiro, parasse no meio do túnel e as recolhesse.
Tamanha seria a surpresa e inicial desapontamento ao perceber que se tratava de dinheiro
falso que o fez “perder tempo”, mas com dizeres que o podiam fazer não parar simplesmente,
mas parar para pensar.
O que de fato ocorria era o medo, a iminência da morte, o alto grau de prontidão e
atenção, o jogo vivo com o espaço, freadas bruscas, desvios e cantares de pneu, freadas lentas
e buscando entender o que ocorria, algumas cédulas distribuídas para carros em movimento,
outras distribuídas para pedestres e passantes que desciam dos ônibus, algumas cédulas
coladas em ônibus e exatamente 12 cédulas afixadas ao chão do túnel formando uma barreira
que pairava entre o visível e o invisível, mas nada ameaçadora, somente presente,
incessantemente esmagada pela velocidade cega que nos rege em nossas buscas de atingir e
cumprir metas. Que metas, que necessidades?
Os passantes que recebiam as cédulas riam um sorriso lamentoso que parecia sim
captar de pronto o questionamento feito.
Essa ação simples de atravessar o túnel e a cada travessia depositar uma cédula,
pareia-se diretamente com o real, não abria nenhum espaço para a ficção, era o agir que
determinava qualquer consequência. E realmente tratava-se de ampliar uma problemática
capturada do espaço a um nível de fruição através de um choque muito mais concreto, de um
fluxo sendo interrompido, ameaçando e sendo ameaçado por uma presença física de uma
barreira humana.
O espaço de fato parecia não propiciar qualquer instauração mais profunda de relações
intersubjetivas através dessa ação simples, mas acreditamos nas micro-alterações que ocorrem
no cosmos a nível perceptivo, afetivo e intelectual como o fremir de asas de uma borboleta.
Já em Silêncio ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina a troca que se
dava, apesar de não se tratar de uma interação ou interlocução direta, por também se tratar de
um mínimo gesto “silencioso”, parecia ter maior espaço de visibilidade do caráter estético à
medida em que uma imagem se formava com a presença deste “censor de trânsito”. Este se
posicionava em plano elevado à vista de todos os que passavam, com seu instrumental que
evidenciava as formas de evitar, poupar, ou matar os sentidos diante de tamanha adversidade
que o ambiente em redor constitui.
107
Como o excesso estivesse presente no túnel “atacando” os cinco sentidos de todos os
lados, se por sua vez trabalhamos o aguçamento de todos estes sentidos através de um risco
visceral na primeira proposição, esta aqui parecia evidenciar uma dormência, mecanização ou
anestesia dos mesmos. O que poderia trazer a tona esta sensação de um estado quase
vegetativo? O mínimo gesto escolhido foi pressionar o botão de uma buzina de festa até que o
som se esgotasse por completo. Esta aparente agressão e imposição sonora, sumia como
silêncio diante do ronco do ar, dos motores, das buzinas, dos rádios em volume alto, das
propagandas, dos flashes de luzes vermelhas, laranjas, brancas e amarelas. O que se via era
uma figura com headphones e mp3, máscara farmacêutica de respiro, lanterna de longo
alcance em modo estrobo, e uma buzina de alerta. Estávamos privados voluntariosamente (ou
privando), portanto, de todos os sentidos: visão, audição, olfato, tato e paladar. Os vários
recursos de proteger-se do ambiente também levam-nos a aprisionarmo-nos.
Mais uma vez queríamos evidenciar algo que o lugar já trazia como dado a ser
pensado e não uma solução ao que para nós se afigurava como problema. Com esta ação
percebíamos mais diretamente a troca de olhares, as cabeças que se viravam dentro dos
ônibus e carros, acompanhando curiosas, fruindo e buscando dialogar com esta figura
estranhada e de movimentos bastante sutis, quase estática. Uma moto que diante do violento
atravessar ditado por aquele espaço e nele praticado, decide parar por quinze segundos o seu
trajeto para se ater a fato extraordinário que ocorre diante de seus olhos.
Devolvíamos ao espaço tudo que ele nos dava: o flash da lanterna apontando para a
nossa cegueira em seguir percursos viciados no dia-a-dia, como instrumento produtor de
presença a partir do momento em que puxa para a fonte o foco da ação, e como forma de
alterar veementemente a percepção de quem segue decidido sem questionamentos ou
interferências, que o faça perceber novamente seu entorno. Este elemento era o que mais nos
preocupava enquanto proponentes, tinha maior latência de risco envolvido para os motoristas,
pois poderia provocar um estado momentâneo de cegueira realmente, causar um acidente e
parar drasticamente o fluxo de vida ou de capital. O som ensurdecedor da buzina sinalizadora
juntamente aos headphones, apontando para um alerta que não se faz ouvir, como para uma
escuta anestesiada que simplesmente seleciona ou exclui as invasões sonoras do ambiente. E a
máscara farmacêutica, também outro instrumento paliativo que resolve momentaneamente o
excesso de sujeira e entorpecimento dos gases não atentando de fato para a fonte do problema.
Acreditamos que o choque dos passantes com essa imagem era capaz de transportá-los a um
estado reflexivo através destes discretos, mas potentes elementos acionados por um mínimo
gesto. Apesar de posicionarmo-nos em plano elevado para buscar uma maior visibilidade, não
108
acreditamos que o gesto ganhe um caráter espetacular no sentido debordiano, configurando-se
mais como uma ação disruptiva que resiste em meio à corrente.
Como de fato atestado no dia de observação imersiva houve aqui também um
colamento entre discurso e experiência psicofísica: após determinado tempo ao longo de uma
hora de duração, sentimos de fato uma espécie de anestesia, uma baixa do metabolismo, e um
estado letárgico, mantendo o dedo pressionado até o esgotamento do apito da buzina.
Um olhar externo é de fundamental importância em nossa área (linguagem artística),
conferindo maior grau de criticidade acerca do experimento elaborado, auxiliando-nos a
analisar por diferentes prismas um mesmo objeto de estudo. É desta maneira que convido
participantes para observarem e lançarem sua visão crítica sobre as práticas realizadas.
Havendo a possibilidade de nós pesquisadores travarmos diálogo, concordar, discordar e
expandir nossa percepção sobre o material investigado.
As circunstâncias de longa duração em condições que desafiam nosso estado
psicofísico cotidiano muitas vezes representam uma superação para a corporeidade do
performer como também do observador. Neste primeiro experimento Patrícia acompanhou o
primeiro dia e desistiu de seguir adiante a partir da última hora de observação e Otávio
participou do segundo dia, mas ausentando-se do túnel por alguns minutos para respirar um ar
menos poluído emergindo à superfície acima do túnel.
Ambos foram entrevistados acerca de noções que buscamos cercear e construir a partir
deste estudo. Suas respectivas entrevistas encontram-se nos Anexos do trabalho.
Neste primeiro experimento tivemos Otávio Oscar como participante-observador
responsável pelo registro em vídeo e por reflexão através de um protocolo observacional.
Compartilhamos aqui os dados que julgamos mais pertinentes, o protocolo na íntegra também
encontra-se nos Anexos.
Protocolo Observacional respondido por Otávio Oscar após realizar observação imersiva
das ações artístico-performáticas Ir e vir - Pelo direito inalienável de parar e Silêncio
ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina
Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as
formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas
neste mesmo espaço?
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O túnel é um território de passagem, para uso quase que exclusivo dos automóveis e
ônibus. A relação das pessoas com o espaço, no geral, é apenas olhá-lo e senti-lo (visto que é
praticamente um “buraco escuro” no meio do caminho). O ambiente sinaliza hostilidade por
ser muito barulhento, escuro e deserto.
A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de
mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos?
As duas performances realizadas estavam dentro desses dois conceitos. Eles não se
configuravam ações espetaculares, mas sim sutis, acredito que, no primeiro experimento,
poucas pessoas tenham reparado nas notas de dinheiro no meio da pista e acredito que quase
nenhuma interpretou o ato como artístico. De qualquer forma, em nenhuma das duas houve
um interesse dos transeuntes em “fruir” a ação. Apesar de chamar um pouco de atenção, todos
passavam e apenas dirigiam o olhar no tempo em que seus automóveis ou o seu ritmo de
caminhada permitia.
Nos dois casos, a ação era uma só e se repetia do início ao fim, com poucas alterações.
Essas alterações apenas aconteciam quando algo não planejado ocorria, como quando, no
primeiro experimento, houve um pequeno engarrafamento e o performer foi ameaçado por
alguns motoristas nervosos.
A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por
que aspectos?
Acho difícil falar em coerência ao se tratar de performance. Eu diria que a proposição
foi mais “controversa” do que “coerente”. Digo isso pois me questiono sobre a “eficiência” da
performance naquele espaço.
Aquilo era perigoso não só para o performer, mas também para os motoristas. Esse
risco para ambos os lados é interessante do ponto de vista da linguagem, mas eu tive a
impressão de que apenas a primeira camada, a mais imediata, era percebida pelo “público”,
logo eles aparentemente encaravam aquilo do ponto de vista do que se entende por “vida real”
e o enquadramento estético da coisa se perdeu.
Logo, acho controverso que se apresente uma performance que ninguém vai ver, ainda
por cima com tal grau de risco. Muitas obras performativas de grande impacto também eram
“invisíveis” ao público, e apenas o registro, a lembrança ou o relato delas é que se dão a ver
110
ao público como arte. Isso questiona bastante o que pode ser considerado arte ou não e é
muito difícil estabelecer critérios para isso – talvez nem se deva. Por isso, acho controverso.
Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as
pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as)
A sensação de risco era a mais forte de todas as sensações. Isso era interessante, pois
dirigir um automóvel é algo realmente muito violento. Isso trazia à tona a fragilidade do
humano perante uma criação própria. É engraçado pensar na idolatria da máquina em
contraposição à sua possibilidade de destruição da vida humana. Mesmo num objeto
aparentemente tão cotidiano e banal quanto um carro.
Outro impacto era a curiosidade. Poucos se continham diante do ímpeto da vontade de
olhar para entender. Isso me faz pensar sobre a necessidade do ser humano de buscar o
entendimento racional, as pessoas querem pelo menos seguir confortáveis acreditando que a
metrópole é explicável. Mas o próprio fluxo não permite esse entendimento. Qualquer
motorista que parasse sofreria consequências violentas, fossem elas materiais ou sonoras.
Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo?
A primeira performance tinha um impacto forte no fluxo de automóveis, em muitos
momentos os motoristas tinham que desacelerar ou parar. Houve até pequenos
congestionamentos. A performance como um todo foi muito tensa. Até tive mesmo vontade
de interromper. Não é fácil lidar com o fato de que seu amigo pode morrer ou se machucar na
sua frente sem que você tome uma atitude para reprimir a periculosidade da ação dele.
Entretanto, o performer apresentou uma intimidade grande com o fluxo daquele
trecho, parecia até tecnicamente preparado para a ação. Isso fazia com que ele, na maior parte
do tempo, estivesse plenamente inserido no fluxo. Esse domínio da espacialidade e do
movimento era bem interessante de fruir.
Por outro lado, a segunda performance não interrompia em nada o fluxo. Apesar de
estar em relação o tempo todo, ela não provocava alterações. Os sinais luminosos e sonoros
emitidos não eram fortes o suficiente para se sobrepor à sobrecarga de estímulo aos quais os
motoristas de São Paulo já estão acostumados.
111
É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um
“estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer?
Talvez o estado de concentração. No primeiro experimento, concentração para não
errar os “timings” de atravessar a rua e grudar as notas no asfalto. Qualquer erro poderia ser
fatal e isso obviamente altera o corpo, é preciso lutar contra todo o “stress” que o rodeia.
No segundo experimento a concentração era para se manter parado e repetindo as
ações de emitir luz e som. Isso parece fácil, mas acredito que não seja. Em determinado
momento eu tive que sair pois a poluição do ar e sonora foi muito intensa e eu precisava de
um pouco de ar, sol e menos barulho.
Se a resistência do corpo pode ser encarada como um estado psicofísico alterado,
então ela também esteve presente e pode ser apontada.
Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível?
Para mim tudo pareceu muito invisível, não do ponto de vista sensorial, mas do ponto
de vista da leitura do acontecimento.
Do ponto de vista sensorial, imediato, a primeira ação era muito visível, até demais:
não é possível para um motorista ignorar o corpo que está na sua frente enquanto ele se
encaminha em alta velocidade em direção a ele, isso é diferente da invisibilidade viável de um
mendigo que apenas está jogado em algum canto, ao qual você pode facilmente desviar.
Já a segunda ação movia apenas a curiosidade e nada mais, parecia mesmo um
mendigo jogado num canto, mas ao mesmo tempo, como não era, gerava curiosidade e atraía
os olhares. Entretanto continuou invisível do ponto de vista estético.
Otávio nos abre um campo perceptivo interessante ao ressaltar que este primeiro
experimento, levando em consideração a ação simples e o mínimo gesto propostos, pairaria
mais na invisibilidade e na fusão com a concretude da vida real, em que o plano estético
estaria mais em segundo plano, e a força da ação estaria presente por sua simples ocorrência,
pela sutileza e elevado grau de apropriação das proposições e do jogo com as dinâmicas
próprias do espaço.
Seu olhar externo me possibilitou criar consciência e dialogar com esses fatores
apontados, como enfatizar minha propriocepção sob as condições de atenção e resistência
112
psicofísica necessárias e presentes desde o processo de observação imersiva deste espaço
público de atmosfera pesada e hostil.
Outro aspecto relevante do observador que me é de grande valia é como ele avalia o
impacto das ações sobre o público: o espaço e as pessoas, pois por mais porosos e atentos que
estejamos, aquele que cumpre o papel com enfoque na observação tem o privilégio de pontos
de vista outros que não os mesmos de quem vive a ação como atuante. O observador ressaltou
o dado premente de curiosidade que se dá como primeiro efeito de afecto pelas ações, para
depois destacar a necessidade humana de estar recorrentemente buscando explicações e
significados, leitura de signos, apesar de aquele ambiente especificamente, potente
microcosmo da dinâmica urbana social como um todo, com a mesma intensidade desencorajar
tal ato e chamar à aceitação, à letargia, ao não questionamento.
113
2.3.2 Experimento II: Patrimônio público, monumento histórico – Theatro Mvnicipal
Patrimônio [Lat. patrimônio.]sm. 1. Herança paterna. 2. Bens de família. 3. P ext. Os bens materiais ou não, duma pessoa ou empresa. 4. Fig. Riqueza: Patrimônio cultural Público [Lat. publicu.]adj. 1.relativo, pertencente ou destinado ao povo, à coletividade, ou ao governo de um país. 2. Que é do uso de todos, ou que está aberto ou acessível a quaisquer pessoas: hospital público. 3. Conhecido de todos; manifesto, notório. 4. Que se realiza em presença de testemunhas, perante pessoas, não secreto, ato público. sm. 5. Conjunto de pessoas reunidas que assistem a um espetáculo, a uma reunião, etc.; audiência, assistência. 6. Conjunto de pessoas as quais se destina uma mensagem artística, jornalística, publicitária, etc. Monumento [Lat. monumentu.] sm. 1. Obra ou construção destinada a transmitir à posteridade a memória de fato ou pessoa notável. 2. Qualquer obra notável. Histórico [Lat. historicu] adj. 1. Da, ou digno de figurar na história. 2. Real, verdadeiro. História [Lat. historia] sf.1. Narração dos fatos notáveis ocorridos na vida dos povos, em particular, e da humanidade, em geral. (FERREIRA, 2010, p. 570, 623, 515, 400, 401).
As definições trazidas pelo dicionário Aurélio associam patrimônio a um bem ou
riqueza que atravessa a história por gerações, uma herança com determinado valor no
mercado. Quando ganha o adjetivo “público” se trataria portanto de um bem de uso de todos,
acessível ao povo. Similarmente, a definição de monumento histórico designa uma construção
carregada de memória com forte carga representativa da história de um povo. Ou seja uma
construção em que o povo se reconhece e se lembra do que lhe constitui histórico-
socialmente. Seria um elemento urbano com valor mítico.
A partir do momento em que um prédio é considerado patrimônio público e
monumento histórico ele prevê a não alteração de suas características e o máximo de
preservação de suas características originais. O Theatro Mvnicipal é fundado em 1911, entra
nesta categoria em 198146 e foi escolhido para ser objeto de análise, por reunir em sua
arquitetura e história dois fatores específicos importantes para nossa pesquisa: por ser um
prédio bastante representativo da arte em São Paulo 47 e por corresponder em termos
urbanísticos à segunda categoria de espaço público a ser explorada que estipulamos para fins
de pesquisa.
Para entender a força do patrimônio público e da patrimonialização na constituição de
uma cidade contemporânea selecionamos trechos do artigo Arquitetura, Patrimônio e
Museologia (GUIMARAENS, 2010) que nos ajudarão a compreender a função social que o
Theatro Mvnicipal deveria desempenhar na cidade, como também a observar as
46 Tombado pelo Condephaat 47 Sendo o Theatro Municipal de qualquer cidade um forte símbolo e cartão-postal da arte daquela mesma cidade -Ópera de Paris, Teatro Colón, Theatro José de Alencar, para citar alguns exemplos que conhecemos.
114
consequências advindas da tentativa de governantes e urbanistas de preservar e privilegiar,
sob diversificadas variantes de interesses, certos prédios na malha urbana, em nome da
construção de uma memória histórica comum a todos da cidade:
[...]no Brasil, a arquitetura da maioria dos edifícios onde estão instalados os principais museus é representativa de momentos conformadores do patrimônio nacional. Portanto, ainda considera-se que, em decorrência desse fato, expografias urbanas simbólicas e historicamente significativas encontram-se configuradas em quase todas as cidades do país. [...] Assim, a necessidade de conservar o patrimônio de todos e ampliar o sentido informacional e comunicacional das instituições de cultura produziu influências transdisciplinares (entre arquitetura e museologia) recíprocas no sentido da contextualização conceitual dos objetos e lugares patrimoniais. Dentre essas influências, destaca-se o reconhecimento das contradições ideológicas dos processos de musealização, aí incluindo a discussão sobre as formas de renovação urbanística e de promoção do patrimônio musealizado. Os setores de educação patrimonial e turismo tornaram-se, em consequência, parceiros insubstituíveis dos museus para a utilização estratégica da cultura no sentido do desenvolvimento. E, embora muitas vezes espetacularizadas e danosas, pois excessivamente superficiais e pouco ou nada educativas, as atividades museológicas passaram a ser fatores de desenvolvimento e geração de riqueza para os habitantes de regiões e áreas em processo de degradação e arruinamento. Desse modo, a arquitetura das instituições museais, quando observada tanto do ponto de vista do edifício quanto da cidade, anunciou as mudanças políticas e sociais no século XX, pois, tais equipamentos estabeleceram-se no domínio da comunicação de massas, hoje irreversivelmente mundializada. No entanto, os museus ainda continuam sendo identificados na condição de instituições “duras”, ou seja, portadoras de menor flexibilidade programática e, consequentemente, pouco ou nada inclusivas socialmente. A espetacularização do espaço urbano por meio da promoção da morfologia singular dos edifícios de museus é outro foco representativo das ideias que articulam museologia, patrimônio e arquitetura, pois o principal papel dessas instituições de cultura seria “acirrar” a relação entre história e cidadania, revelando, idealmente, a excelência pedagógica dos lugares originais e a condição de espaço museológico das cidades no cotidiano dos cidadãos. Desse ponto de vista, a requalificação efetiva de áreas centrais das cidades resultaria de ações que devolveriam aos habitantes e aos usuários o sentido de urbanidade e historicidade. Choay afirma que a noção do patrimônio urbano foi gerada na “contramão” dos processos de modernização das cidades (2001:180). [...]O Plano Voisin, idealizado por Le Corbusier para Paris em 1925, dissolveria, à maneira de Haussmann, a malha urbana dos velhos bairros, aumentando consideravelmente o gabarito dos edifícios e conservando apenas alguns monumentos. Entretanto, a manutenção da Notre Dame, do Arco do Triunfo e da Torre Eiffel no Plano Voisin, seria uma espécie de “inventário que já anunciava a concepção midiática dos monumentos antigos”.48
Apesar deste artigo tratar mais diretamente do museu, entendemos que o Theatro
Mvnicipal, nosso espaço de estudo, atende a esta configuração de arquitetura museal,
patrimonial, “histórica”, espetacular. O artigo portanto foi bastante relevante para que
pudéssemos entender como o patrimônio público assegura sua força de espaço público na 48 Grifo nosso
115
formação de uma cidade, nos ajudando a perceber que pelo seu caráter público específico, e
diverso do caráter apresentado pela via ou pela instituição pública, ele exigirá uma outra
forma de atuação artística, de acordo com os preceitos que apresenta. A decisão entre o que
permanece e o que sucumbe na representação da história e da identidade de uma cidade
envolve aspectos bastante controversos em favor de uma classe ou sistema dominante e isso
se reflete no próprio uso destes espaços. Por este motivo disponibilizamos o artigo em anexo
na íntegra para que se possa compreender com mais detalhes a importância da presença de
prédios na cidade com esta função memorial. Outro artigo que tratará bastante da força do
patrimônio público em fricção com os diversos fluxos presentes no “centro velho” de São
Paulo, exemplificando as contradições entre uso público e espetacularização chama-se
Intervenção urbana no centro histórico da cidade de São Paulo: atores sociais envolvidos e
também encontra-se nos Anexos deste trabalho.
Refletindo sobre a significância pública deste prédio no perímetro central de São
Paulo e pensando sobre sua acessibilidade será que este patrimônio público e monumento
histórico tem nos representado sócio-culturalmente?
Esta foi a grande indagação que surgiu durante o processo de observação imersiva e
que se instaurou como desafio a nossa intervenção artístico-performática.
Dos três experimentos realizados a exploração deste espaço nos permitiu vivenciar a
maior multiplicidade de dinâmicas sócio-espaciais.
O perímetro do “Centro Velho” de São Paulo que abriga o Theatro Mvnicipal revela
variadas formas de uso e relação apresentando questões étnicas, sociais, políticas, econômicas
e culturais. O espaço é utilizado como lugar de sobrevivência, trabalho, sociabilidade,
especulação e ganhos de capital. Vemos, portanto, prédios destinados ao comércio e prestação
de serviços, escritórios executivos e imobiliários, prédios judiciários, bancos, prédios da
administração municipal, prédios destinados à cultura, prédios abandonados, moradores de
rua, artistas de rua, ciganos, bolivianos, nordestinos, manifestantes de movimentos sindicais,
partidários e sociais, mães-de-santo, advogados, consumidores das mais variadas classes,
usuários de drogas, executivos, bancários, vendedores, anunciantes, camelôs, propagadores da
fé, assistentes sociais, compradores de ouro, guarda municipal, polícia militar.
Trata-se de um espaço com população e uso bastante heterogêneos onde “diversidade,
insegurança e exclusão social” (BAPTISTA, 2011, p.3) convivem juntas e geram uma
infinidade de conflitos sociais, é um espaço, portanto, de bastante efervescência sociocultural.
Em meio a este rico contexto dedicamos quatro dias para este experimento num total
de quinze horas e trinta minutos de habitação temporária deste perímetro que compreende o
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Theatro Mvnicipal. Três dias para observação, compreendendo escolha de diferentes pontos
de vista, visita monitorada ao Theatro Mvnicipal e ao museu do Theatro, e dois dias
dedicados à proposição artístico performática.
O Theatro Mvnicipal símbolo ostentoso da arte em São Paulo completou neste ano
cento e um anos desde sua inauguração em 1911. Sempre pertenceu ao aparelho público
municipal, mas foi erigido por Ramos de Azevedo sob financiamento privado com isenção de
impostos pelos barões do café.
A cidade prescindia de uma casa de espetáculo de grande porte, a exemplo das
grandes metrópoles internacionais, que atendesse às demandas culturais, de convívio social e
de manutenção de status quo entre a elite paulista. Desde sua inauguração este espaço
considerado público, mas que até hoje é parcialmente mantido e administrado sob
investimento privado, tinha acesso restrito a elite.
A “boa arte” ou a arte erudita de ópera, música e balé que se fazia no Theatro
Mvnicipal era sectária, havendo ainda assim, divisão de acesso entre as classes ricas em três
setores ou ordens. Setores estes que, dependendo do valor pago pelo ingresso, revelavam nas
dimensões arquitetônicas de seus salões e bares, nas portas de acesso e na qualidade de
materiais suas diferenças. Este aparelho público muitas vezes servia à ostentação e exibição
de poder. A restrição à área do teatro era tamanha que nos tempos de sua origem havia um
pedágio de acesso que dividia o Centro, justamente nas imediações do Theatro, em duas
regiões, promovendo uma forte segregação social. E somente nos anos 90 o acesso da antiga
“terceira ordem” se dará também pelos portões frontais - durante oitenta anos esta ordem
social dentre os ricos entrou pelas laterais.
Ainda hoje, apesar de oferecer uma programação regular, frequente, com trabalhos
marcantes e de contar com alguns programas de inclusão e formação de público, este Theatro
pode ser considerado um “fantasma” para considerável parcela da população paulista que
nunca sequer passou diante de sua fachada. Um teatro dito público, mas que, pelas várias
circunstâncias socioculturais apontadas49, ainda carrega pertinente carga separatista. Este se
afigura para nós como um não-lugar na medida em que seu caráter público é relativamente
restrito, com ingressos a valores não acessíveis a todas as classes, não atingindo de maneira
mais abrangente seu objetivo principal que é servir como aparelho cultural de uso do povo,
tornando-se mesmo um cenário ou cartão-postal desprovido de identidade, destinado somente
49 de restrição sócio-financeira, de um quadro nacional de carência ou banalização de formação cultural consequentes de uma lógica mercadológica a qual favorece uma indústria cultural de massa, da degradação social da região do centro de São Paulo que gera insegurança nos cidadãos dentre outras.
117
à passagem, contemplação ou ao consumo elitista ou turístico.
Mais um dado que reforça este nosso ponto de vista é a divulgação pouco disseminada
entre os meios de comunicação dos eventos que lá acontecem, ou o agendamento de visitas
que atualmente só se dá por internet, sendo fator bastante limitador do acesso.
Arte para qualquer parte?
Outro fator que assoma-se a essas constatações é o que vem nos movendo a cada vez
mais realizar nossas práticas: as pessoas parecem não se interessar ou reservar tempo
disponível para “consumir” arte, no sentido de querê-la, vivê-la como algo que pertence e
constitui seu ser. Somos viciosamente convidados a admirar, consumir ou contemplar de
maneira rápida, passageira, instantânea e espetacular, onde o simples, ou o mínimo parecem
mesmo não ter vez ou lugar numa lógica que preza pelo grandioso e pela substituição.
Ao longo deste nosso experimento tivemos a chance de interpelar as pessoas e o que
víamos majoritariamente era uma construção de memória superficial através de um mero
registro instantâneo fotográfico e nenhuma experiência corporal ou sensorial do espaço.
Muitas pessoas que residem há anos na cidade e nunca sequer pisaram as escadarias do
Theatro Mvnicipal, nunca tiveram real interesse, ou uma vez que este interesse é manifestado,
o que alegaram é que não fazem parte ou não se sentem parte desta ‘história’, não se sentem à
vontade para entrar pois a imponência do espaço parece não permitir. Ouvimos depoimentos
de passantes dizendo não se sentirem em condições apropriadas para frequentar aquele lugar
embora quisessem e mesmo apresentando certa condição financeira.
Os processos de urbanização que limitam a convivência e a construção social através
da arte e da história, dos quais o centro tem sido palco há anos encontram seu verdadeiro
retrato nesta palavras de BAPTISTA (2011, p.15):
[...]demolição dos prédios, remoção de atores e dissolução da memória local. Os pressupostos que regem os projetos optam pelo paradigma de revitalização com um centro limpo, asséptico, para poucos, com a expulsão dos mais pobres, favorecendo os investimentos privados e adensamento planejado com ganhos para os segmentos imobiliários e do capital, aumentando a segregação social e periferização na cidade. Constata-se, no final da última década, o retrocesso na democratização do centro de São Paulo, enquanto acesso e uso de atores junto aos espaços públicos que passam a ter uso restrito e privatizado, privilegiando a recuperação e requalificação de bens isolados, tornando-os ilhas que reforçam a fragmentação do espaço. Apreende-se que estas intervenções visam atender prioritariamente o mercado, dentro da nova conformação econômica da globalização, onde o patrimônio cultural passa a ser concebido como atrativo e mercadoria.
Concordamos plenamente e reiteramos a visão da autora.
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É tão evidente este processo que ela descreve que, logo no primeiro dia dedicado ao
Experimento II: Patrimônio Público, conhecemos o Sr. João Alfredo Godry, morador de rua
que nos acompanhou ao longo deste experimento e foi de fundamental importância para
determinarmos o que seria a intervenção artística através do simples mais apropriada para
dialogar, inserir-se e promover ruído no espaço público explorado. O Sr. João compartilhou
histórias acerca do Theatro, da dinâmica social do entorno e de sua própria vida pessoal.
Ao sentar-nos no chão das escadarias do teatro e das ruas em redor fomos como no
primeiro experimento absorvendo a “energia pesada” do lugar, aquela que num andar
corriqueiro não se sente. É preciso permanecer, habitar, estranhar e depois “naturalmente se
acostumar”. Chega a se tornar, depois de três dias nesse processo de observação, um ambiente
familiar, onde o tempo corre com tranquilidade, e vemos a vida passar diante de nossos olhos
sob conversas descompromissadas e aparentemente sem objetivos. Para curar o mal de
solidão, de fome, e a “pinga” para curar o mal de lembrança.
Descreveremos cada um dos dias dedicados ao Experimento II, faremos uma análise
reflexiva e apresentaremos fotos e os protocolos observacionais dos participantes que
acompanharam a proposição artístico-performática.
Local: Theatro Mvnicipal50
Duração: 4 dias.
1o dia: Quinta-feira, 11.10.12.
Procedimentos: Inscrição corporal, observação imersiva.
Duração: 9:30h-14:20h (5hrs).
Participantes: Lucas Paz, João Alfredo Godry.
Atividades realizadas:
i) Ação simples: observação imersiva com duração de cinco horas.
ii) Procedimentos específicos:
ii.1) Descrições detalhadas a partir de observação e do travamento de relações
intersubjetivas através de diálogo com passantes e habitantes do entorno do espaço
investigado, com alternância do ponto de vista a cada hora decorrida do processo de
observação imersiva.
50Observação imersiva chegou a considerável nível de inscrição e imersão no espaço a ponto de construir relações com os habitantes do lugar e inclusive ser assaltado por eles no último dia do experimento, da realização da proposição artístico-performática.
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ii.2) Observação Imersiva do Experimento II: Patrimônio Público - Theatro
Mvnicipal.51 . Seguem-se os registros mais relevantes para o recorte subsequente da
proposição artístico-performática:
11.10.12 9:36h-sentado nas escadas, como eu se entretém com os pombos. O monumento de tapete vermelho já é palco de fotos, o que as paredes guardam? “a ação mora na inação, há ação na inação” imobilidade e o que se leva no papel fotográfico? De repente um amontoado à minha direita de fotógrafos amadores e de “especialistas” (amadores) que atentamente analisam detalhes da estrutura. Já conversas sobre o futebol. Moradores da rua. Ele, o teatro, fechado. Fachada, suas escadarias são palco para espera do tempo passar, da vida começar, da conversa corriqueira, de olhos curiosos. Vermelho: janelas do shopping light, ciclo faixa, tapete vermelho, ônibus, carros, placas, sinal de pedestres, sinal de carro. Luzes do carro da guarda municipal. Camisas vermelhas. Bege (cinza): estrutura: prédios no entorno, casas Bahia, shopping light, Itaú, escritórios, Vale do Anhangabaú, fórum. ... artistas de rua começam também pegando a saída do horário do almoço dos outros. Antes não por causa dos fiscais da prefeitura. O pessoal para para ouvir o forró e perde o expediente. Homens-pombos. O teatro já abriu mas fora é onde está o espetáculo. Homens fortes e bravos sustentam a estrutura. De onde vem isso? Sempre assim. Mulheres lindas nas bases das luzes (postes) e nos altos do prédio. Máscaras acima delas do antigo teatro grego com suas bocarras abertas. 2a hora Lado esquerdo do teatro: ponto de ônibus Conversas, fofocas sobre choro e dinheiro e reclamação (as três associadas) Mendigos “estacionados “ “Fantasmas” nas janelas do teatro Pessoas que aparecem para tomar um ar, café 3a hora Conversa com Sr. João Alfredo Godry (habitante do espaço público, morador de rua, 60 anos) Bengala. Bebendo cachaça. Agora com problema da vista (fez gesto de bebida “sem nem perceber”). Restaurador (vitral, móveis), jardineiro da prefeitura. Por causa da vista não consegue trabalhar mais. Teatro Municipal, Ramos de Azevedo 1512? Argila Portugal / vitral Alemanha. Submerso quatro andares. Túnel do Teatro até a prefeitura (carro sai no Anhangabaú). Cultura e religião eles não podem tirar!!! Tiram os camelôs. passarela para pedestres – passarela fechada, muitas mortes, pessoas assassinadas, mesma passarela que (Teatro da) Vertigem usou. Os artistas de rua cada um tem direito a duas horas, tocam, vendem seu CD. No Viaduto do Chá: macumba, búzios, cartas Mais arte fora do que dentro acontecendo, pulsando A maior população que temos em São Paulo é rato e barata! Depredação natural vento e mijo João Alfredo “se eu fosse cego eu não te via, se eu fosse surdo eu não te ouvia
51Lucas Paz através de método de Escrita em Fluxo Contínuo de Pensamento, a partir de diálogos travados com passantes: primeiro senhor não identificado, sentado às escadas do Theatro Mvnicipal, à espera do horário para negociação sobre um imóvel, segundo senhor, morador de rua, de nome João Alfredo Godry. Esta observação contou com maior aporte visual, em que o recurso de filmagem encontrou mais força de registro se comparado ao primeiro experimento. Ficando visível o procedimento de determinação de um ponto de vista a cada hora sucedida de experimento.
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Canta, canta, meu sabiá” Sobre Jesus: se eu fosse seu pai, jamais eu deixaria machucarem você Quem senta nas escadas do teatro? Estudante lendo jornal, moradores de rua 12:49h- fluxo já ficou mais concentrado “Não acredito em nada só no que pode ver e apalpar” Obediente a Deus – a seu consciente e subconsciente Você não consegue chegar perto do sol por que? E sem o sol você não vive. Deus ninguém viu e quem viu foi fulminado. Todo dia é isso daí – nóia pedra (casal brigando) Cachaça direto, não posso parar senão dá revertério, falta oxigênio no sangue Eu não gosto que usa drogas, o álcool é liberado a pedra não é liberada. A maconha até que é medicinal. Pessoas me olhando conversando com mendigo. Ir na prefeitura pegar licença (subprefeitura Sé) O senhor hoje em dia é sozinho? (trabalhava na construção civil) É ladrão esse cara. Cláudio Gonçalves de Arouche- escreve aí 13:30h- lotado de gente difícil trafegar, todos param para ouvi-las, as 3 irmãs forrozeiras. Uma roda muito grande de pessoas três dançando/ cinco dançando Ele: camisa Brooksfield, casaco de couro preto, calça verde, sapato marrom, muleta – bengala de metal, papelão pra se sentar, boné Fluke. Óculos da direita sem lente vai operar a vista depois de nove meses de espera no Hospital Monumento. Estátua que conta a história Homem sozinho, sempre eu tô por aqui, cê vê como aqui é interessante, cada história... 13:46h a chuva interrompeu o show de Daiane e Tatiane Dançando Michael Jackson, o tempo faz o show do artista da rua Guarda Municipal tira as pessoas do teatro, da porta, não pode, só nas escadas. Assim que ajeitar minha vista volto a trabalhar Programação dos artistas de rua: 13h- 18h acaba: Evangélico/ Forrozeiras Daiane e Tatiane/ Filho de Chitãozinho e Xororó GCM Guarda Cível Metropolitana Não pode ficar na porta do teatro é órgão público O que o senhor imagina acontecendo de arte aqui? Só motoqueiro, maloqueiro e cachaceiro. Poste da Inglaterra deitado na escada Saía a Rainha de Portugal na sacada na lateral do teatro e acenava para o povo Ih tá molhando, vai apagar suas letras Tapete vermelho – desenrola e deita numa das pontas Terminou 14:20 “ih olha o alemão conversando com o mendigo”
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2o dia: Quarta-feira. 17.10.12.
Duração: 10h-12h (2hrs)
Atividades realizadas: Visita guiada ao Theatro Mvnicipal e ao museu do Theatro Mvnicipal.
Participantes: Lucas Paz num grupo de 10 pessoas desconhecidas em reunião gratuita para
adquirir informações históricas a respeito do patrimônio público e ícone histórico em questão
sob orientação de guia formada por empresa privada Votorantim, a qual administra as visitas
monitoradas através da “ação educativa” e os cuidados a este patrimônio. Este em breve será
promovido a fundação, categoria que confere maior autonomia de atuação da empresa que o
administra frente ao poder público do Estado.
3o dia: Quarta-feira. 28.11.12.
Procedimentos: Inscrição e escritura corporal, autoria, ação simples.
Duração: 10h-14h (4hrs.)
Participantes: Lucas Paz, João Alfredo Godry.
Atividades realizadas:
Procedimentos específicos:
i) Indicações ao participante antes da proposição artístico performática.
ii) Observação Imersiva, filmagem e fotos: Lucas Paz
iii) Propostas performativas de ação simples e mínimo gesto: Lucas Paz e João
Alfredo Godry.
iii.1) Programa de ação das propostas performativas:
“Tapete vermelho-patrimônio de poucos” (duração 1h. 13-14h).
Performer como estátua-viva enrolado sob tapete vermelho que cobre escadarias do
Theatro Mvnicipal com placa escrita: eu faço pARTE, conta histórias sobre a construção e
memória histórica do teatro, problematizando sobre quem são os usuários do Theatro
Mvnicipal hoje em dia.
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Alguns comentários colhidos:
“Onde um pisa outros usam como cobertor”
“E nesse prédio onde o ingresso custa 100 reais”
“Uma coisa jogada no chão significa o quê? O desprezo do teatro”
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4o dia: Quinta-feira. 29.11.12.
Procedimentos: Inscrição e escritura corporal, autoria, ação simples.
Duração: 10h-14:30h (4:30hrs)
Participantes: Lucas Paz, Otávio Oscar, Felipe Stocco.
Atividades Realizadas:
Procedimentos específicos:
i) Observação imersiva: Otávio Oscar, Felipe Stocco
ii) Filmagem e Fotos: Otávio Oscar
iii) Propostas performativas de ação simples e mínimo gesto: Lucas Paz
iii.1) Programas de ação das propostas performativas:
“Tapete vermelho-patrimônio de poucos” (duração 3:30h. 11h-14:30h).
Performer como estátua-viva, vestido de rei, enrolado sob tapete vermelho que cobre
escadarias do Theatro Mvnicipal. Sobre o tapete sapatos vermelhos, sob o travesseiro em que
repousa a cabeça, uma placa com escrito: Eu faço pARTE. Indaga pessoas quando
interpelado: Do que você faz pARTE? Com que frequência você visita a vida? Com que
frequência você visita a arte? A arte faz parte da sua vida? De que maneiras? Você já visitou o
Theatro Mvnicipal? Problematizando sobre quem são os usuários do Theatro Mvnicipal hoje
em dia, como a arte está presente no cotidiano das pessoas?
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Reflexão sobre proposições artístico-performáticas
Quanto a este experimento já demos a saber previamente sobre as dinâmicas sócio-
espaciais e as possíveis relações travadas. Nos interessa aqui compartilhar nossas impressões
reflexivas sobre a realização do experimento.
Das impressões
O vermelho e o bege foram as cores que saltaram com maior intensidade daquele
espaço. Pareciam contrastarem as desigualdades sociais presentes e convivendo juntas.
Encontramos neste experimento uma forte evidenciação do espetáculo desincorporado do
cotidiano. Pessoas que insistiam por “ver demais” e registrar o totem da arte em São Paulo, o
Theatro, guardando para a posteridade em fundo de baú vários ângulos de paredes
estonteantes e grandiosas, mas “esqueciam-se de ver” os detalhes de sua estrutura, muitos
homens e mulheres que apoiavam sobre seus braços essas mesmas estruturas, homens e
mulheres de bocas abertas, escancaradas, em gritos mudos, sim, estátuas, comparadas às
estátuas-vivas de artistas marginais ou moradores de rua. Figuras que estacionam ou transitam
lentamente invisíveis naquele perímetro urbano.
Após conversa a tarde inteira com o senhor João ele para nós era essa metáfora viva de
visibilidade e invisibilidade, pertencimento e não-pertencimento, luxúria e pobreza, grito e
silêncio que constituíam aquele grande monumento dedicado a arte. Para nós uma arte meio
‘empoeirada’ ou pouco acessível.
Ouvindo as diversas histórias e narrativas de senhor João que acessava sua memória
pessoal e a memória histórica do Theatro da cidade, relatava e recriava a realidade como
forma de sobreviver a si mesmo e aos outros. E confrontando auditivamente e visualmente
sua figura às diversas estátuas esquecidas que compunham os postes e pilastras do Theatro e
do seu entorno, nos veio a ideia de uma ‘estátua-viva’, alguém parado, imóvel, numa
condição marginal, que compartilhava histórias e indagações acerca do Theatro, da arte e da
vida.
Como, a partir de nossas pesquisas dedicadas a este experimento, fomos constatando
que o Theatro ainda hoje é um aparelho cultural com caráter mais turístico, elitista e
passageiro do que de fato cultural e amplamente acessível, fazia-se necessário evidenciar essa
separação através da cor mais gritante no espaço, cor essa também que pinta um dos
128
elementos mais chamativos que preenche toda a área interna do Theatro, o tapete vermelho,
símbolo de status, de poder econômico, político e social.
A figura cifradamente reivindicava para si o direito de fazer pARTE. Parte de que?
Que arte? Estava assim lançado o desafio de juntar este quebra-cabeça de elementos e
promover-se um debate reflexivo que poderia quem sabe levar a discussões socioculturais
individuais ou em grupo.
Quando nos referimos a ‘estátua-viva’ pensamos não só no ofício de artistas de rua,
mas nos símbolos de cada uma dessas palavras. A estátua tem por fim representar algo ou
alguém memorável, é monumental e memorial, podendo ser pública, assim como o Theatro
Mvnicipal, mas as estátuas geralmente sofrem de um mal de esquecimento ou
desconsideração, são obras de arte muito “solitárias”, “invisíveis”, só viram “lembrança”
quando registradas espetacular e exoticamente pelo viajante do tipo turista, que quer guardar
recordações fotográficas, imagens brevemente substituídas ou descartadas.
E viva porque apesar da invisibilidade ou do esquecimento a que estão submetidas, e
também disso sabem tirar proveito, há ali algo que ainda pulsa e necessita da fricção
relacional com outrem para continuar existindo, assim como a memória, as pessoas e a
própria cidade. Ação, vida é relação no tempo e no espaço.
Ora uma estátua viva que anuncia “eu faço pARTE” e conta histórias ou levanta
indagações sobre a realidade que nos cerca não faz outra coisa senão compartilhar e construir
experiência, memória e imaginação humana. Contar histórias é uma forma de se lembrar
quem somos, voltar a nos questionar sobre nós mesmos em relação ao mundo, é alimentar os
nosso mitos, é criar sentido e justificar o fato de estarmos vivos. Bastaria estar vivo? Do que
se faz parte? Que História é essa da qual estamos fazendo parte? Do que se quer fazer parte?
E quem quer fazer arte? Já dizia Gandhi: “A arte da vida consiste em fazer da vida uma obra
de arte”, “Se queres progredir não deves repetir a história, mas fazer uma história nova”.
Chega de dormir, vamos acordar, e sonhar acordados.
Aguçar a percepção não é apenas inserir-se, mas inserir-se identificando, analisando e
sabendo jogar com os fluxos apresentados pelo espaço, sabendo também atuar, escrever
naquele espaço. Apesar de me julgar desperto ao longo deste experimento, alienei-me
extremadamente no vetor oposto ao que criticava, e quis viver, habitar, fazer parte, sentir a
realidade apresentada pelo perímetro público no entorno do Mvnicipal.
Tornei-me ‘amigo’ de alguns moradores de rua da região, compartilhei comida e
conversas de vida com eles. Acreditando na possibilidade de travar relações saudáveis com
qualquer ser humano, acreditando que se pode sim alimentar e construir a confiança no ser
129
humano, sem distinções ou marginalizações, em nome da dita Humanidade adormecida ou
anestesiada pelos fluxos urbanos, mas por um lado esqueci de considerar todos os fatores
socioculturais e político-econômicos envolvidos nessas relações.
Fui assaltado às claras na finalização do segundo experimento por aqueles aos quais
confiei meus princípios, buscas, anseios e verdades. A perda definitivamente não foi material,
mas das relações que acreditava haver construído.
Meu aparelho celular que havia registrado quatro horas dos diálogos travados nos
encontros com os passantes, os quais serviriam de material de análise para nosso estudos, em
segundos foi furtado e nesse breve instante tudo aquilo deixou de existir. Por um tempo
frustramo-nos com nós mesmos, com nossas escolhas, buscamos incessantemente recorrer a
essas pessoas para que devolvessem, sem para isso precisar acessar o aparelho público que
garante a segurança, a polícia. Mas os três dias subsequentes foram “em vão”.
Se tomado passionalmente pela causa, lamentando a desfeita, depois tive convicção e
estímulo para seguir adiante, acreditando na possibilidade de construção e transformação do
ser humano através da arte, mais especificamente de ações simples e mínimos gestos. O
mundo já vive grandes excessos, absurdos e catástrofes diariamente, resta-nos buscar uma
forma de resistência outra, gritos silenciosos que para além de serem vistos, sensibilizem,
voltem a sensibilizar para a possibilidade de mudança de valores, certezas, comportamentos e
imposições já solidificados e tomados como naturais.
Na contramão deste ocorrido conhecer o senhor João foi bastante significativo para o
experimento e indício de que a arte pode sim construir relações intersubjetivas valorosas,
transformar realidades. Dos dois dias dedicados a proposição artístico performática Tapete
vermelho-patrimônio de poucos o primeiro foi performado justamente pelo senhor João
durante uma hora e o segundo por mim durante 3:30h.
Perceber as diferenças contextuais entre um morador de rua deitado na frente do
Mvnicipal enrolado num tapete vermelho e um artista-performer vestido com um manto Real
vermelho realizar a mesma ação no dia seguinte configurou aspecto singular e surpreendente
em nossos estudos. A ação em si já nos transporta para um contexto de discurso político
bastante forte. Perceber a disponibilidade e vontade de um cidadão comum em agir um ação
simples artística e inclusive contribuir em sua elaboração nos revela que as “pessoas comuns”
tem sim algo a dizer, compartilham de ideias e indignações semelhantes que muitas vezes são
caladas ou iludidas à desistência de manifestar-se e provocar ruídos nas estruturas.
No dia em que o senhor João performou ele mesmo foi atrás de informações históricas
a respeito do Theatro Mvnicipal que constavam no museu do Theatro, para poder partilhá-las
130
com os passantes. Ele já trabalhou como restaurador de vitrais do Theatro e conhece como
ninguém a estrutura arquitetônica do lugar. Dedicou-se a me contar histórias verdadeiras e
fantasiosas sobre fatos que lá ocorreram.
Em nome de que este homem de sessenta anos, que perdeu a esposa e o filho num
acidente de carro, sem a visão de um dos olhos, sem a metade dos dentes e que transita de
bengala dispôs-se a pesquisar a história do Theatro por conta própria e deitar-se, lúcido, na
área inferior das escadarias do Theatro Mvnicipal? Esta sua ação gerou bastante impacto nas
pessoas em geral, que observaram por longos minutos, registraram dezenas de fotos, apenas
contemplaram, indignaram-se com a ação propriamente dita, ou indignaram-se com o que a
ação revelava no plano metafórico de explicitar as contradições latentes do monumental
Theatro da cidade: desigualdades sociais, dificuldade de acesso, o valor atribuído a arte, o que
é e o que não é arte52, a classificação da “boa arte”, o desinteresse dos cidadãos pela arte, a
segregação social e racial que o Theatro ainda hoje impõe, a beleza e luxo do Theatro em
contraste com a miséria e a pobreza de cidadãos e artistas.
O valor comercial e história estão tão intimamente atrelados a este edifício que o valor
histórico dele se reverte também num alto preço a se pagar para alugar seus salões para fins
artísticos.
Já estas são algumas das questões e reflexões que construí em relação com os
passantes a partir das trocas intersubjetivas que se instauraram no dia em que performei
Tapete vermelho-patrimônio de poucos. Vale ressaltar que a realização do experimento
permitiu uma experiência tão rica e proveitosa, de fortuitos encontros, a qual coaduna com
nossas ganas enquanto artista e atuante na sociedade, que o tempo previsto de performance
era de uma hora. Mas os encontros a fizeram durar três horas e trinta minutos. As
interlocuções diretas totalizaram em oito encontros ou individuais ou com grupos de pessoas e
deles pudemos colher fervorosamente:
O ser humano está buscando antes de tudo e desde sempre a Felicidade, fazer cada dia
valer, aproveitar o que a vida nos traz como surpresa e viver esta experiência, buscar
experiências novas, ser quem você é, sem medo, ainda se mostra atento ao outro, busca
proteger o outro, pratica a solidariedade, revela preocupação, ajuda.
52Uma senhora, que vendia livros por ela escritos contando a História do Theatro Mvnicipal, dizia que Arte é História, e não aquilo que ninguém entende ou a pouca vergonha dos artistas de rua, os quais cantam todos os dias ali em frente, formando uma numerosa plateia.
131
Por outro lado é bastante adaptável e acostuma-se fácil, sem nem perceber, à logica da
compra, do consumo, do entretenimento, a um atrativo a ser registrado, fotografado,
colecionado, privatizado, mas não fruído.
Se por um lado tememos ou não nos desafiamos a fruir o desconhecido, ou fruímos de
maneira rápida, fácil e mais próxima, é da natureza humana atribuir sentido, entender, querer
explicações para o que desconhece ou não entende, como também trazer compreensões
prontas.
“Ler” algo é friccionar e associar este algo com repertório vivido, construído, com o
que já se pensa sobre o mundo, é uma forma também de revelar (-se) o seu próprio ponto de
vista. Não é (somente) o que é, é o que eu penso que é projetado sobre o que é. O ser
humano é curioso, busca saber o que são as coisas como forma de se proteger, sair da zona
de risco, como segurança. Entender, reprimir ou afastar-se como possibilidades de se proteger
em qualquer relação travada. Ou manter a ordem, como pudemos vivenciar a partir da
abordagem do aparelho urbano responsável por este fim, a GCM (guarda civil municipal).
Ocorreu no primeiro dia de ação performática no Mvnicipal (apesar de previamente termos
colhido autorizações junto à administração do Theatro Mvnicipal), como também no dia
seguinte: nos dirigimos ao posto da GCM para deixar-lhes cientes da realização da
performance e novamente enfrentamos processo “burocratizado”.
Levantou-se uma discussão acerca das necessidades básicas, sobre o que é cultura,
como a cultura está presente em nossas vidas (“desde o momento em que acordamos ao
momento em que dormimos, da forma de levantar da cama à forma de ir se deitar”), cultura é
uma necessidade básica?
Percebemos a partir dos diálogos uma confusão entre cultura e indústria cultural
(“agora estamos indo consumir cultura num espaço super rico em cultura, a 25 de março”).
Conversamos sobre o acesso a arte, comprar arte, encontrar-se, perguntar-se através da arte,
sobre seres humanos solitários, depressão, abandono social, luxúria e pobreza, preconceito
racial, inacessibilidade, arte para poucos, (des)confiança no ser humano e na possibilidade de
verdadeiros encontros.
Roubo (tive meu iPhone, que registrava as entrevistas e conversas com passantes,
artistas e habitantes, roubado por dois dos moradores de rua com os quais tive contato ao
longo de quatro dias), diagnosticamos o recurso ao valor material-capital, dinheiro, para
preencher vazio existencial, aguardente, (não) existe amor em SP. Uma certeza, continuar
buscando relações intersubjetivas acreditando nas micro-transformações que se dão através da
arte-vida (performance).
132
Protocolo Observacional respondido por Felipe Stocco após realizar observação imersiva
(de11h-12h) da ação artístico-performática: Tapete vermelho-patrimônio de poucos
O choque de pontos de vista, a discordância nos mobiliza, nos coloca em situação de
refletir, rever ou reafirmar certas convicções que estabelecemos como parâmetro de acordo
com o contexto que recortamos. O protocolo observacional realizado com Felipe deu-se após
sua observação do Experimento II através de um diálogo, uma conversa gravada em sua casa
e não de maneira escrita. O prisma apresentado pelo participante-observador nos provocou a
pensar mais ainda sobre nosso fazer, de maneira que só a relação intersubjetiva instaurada a
partir de um diálogo presencial permitiu isso e despertou-nos ideias naquele ‘aqui-agora’.
Diante do exposto houve também certas colocações do participante-observador que
foram confrontadas por nossos pensamentos subsequentes à conversa realizada, já em estado
de análise sobre o material transcrito. Assim, para desenvolver criticamente nossa reflexão,
selecionamos trechos do protocolo observacional e optamos por apresentá-lo adotando o
modelo de ‘diálogo platônico’, em que Felipe expõe um argumento e eu o choco com outro
ponto de vista possível sobre a mesma questão (ponto de vista este ora construído
presencialmente enquanto o diálogo se dava, ora em reflexão a posteriori).
A partir da escolha deste modelo encontramos uma forma eficaz de expor bastante e a
contento pensamentos e questões nossas concernentes a concepção e realização deste segundo
experimento, deveras relevantes para a análise teórica sobre a prática como um todo, o que
justifica a extensão do diálogo platônico aqui enredado, como meio de clarear o percurso do
pensamento construído, não só para este experimento como para todos os experimentos
analisados neste trabalho. Expomos portanto o diálogo platônico que tecemos com os
argumentos reflexivos:
L- Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais
as formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as
pessoas neste mesmo espaço?
F- Duas coisas muito óbvias: dois movimentos no espaço que um era em frente às
Casas Bahia, que é uma região de mais sombra, de mais lojas, e em frente ao teatro, mesmo.
Para mim tinha uma separação nítida entre o espaço. Mas o que caracteriza muito os dois: a
região como um todo é de passagem, totalmente funcional. E não é um espaço de muito
diálogo entre as pessoas, as pessoas ficam pouco tempo.
133
Em frente ao teatro municipal, trata-se de um espaço mais turístico, as pessoas param,
olham, tiram foto, entram e vão embora.
As relações não se estabelecem de forma profunda, não há um contato efetivo entre as
pessoas. É o tempo mínimo de ‘entender’ o que está acontecendo e voltar para o serviço,
voltar para o espaço-tempo que cada um tem que seguir.
Quanto às formas de utilização do espaço vejo passagem e entretenimento.
L- A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou
de mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos?
F- Sim. De ação simples. É uma ação que chega com um entendimento, um vetor que
extrapola o mínimo gesto, mas não chega ser algo que se propõe a ser super-chamativo, que
tem uma mensagem sendo passada.
L- A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por
que aspectos?
F- Penso que não. Penso que há uma tentativa, mas a realização deixa a desejar nesse
sentido. Porque há um aspecto do chamar atenção na vestimenta que você usa e não na ação
que você faz e isso distancia um pouco do espaço, da realidade do espaço, o que torna mais
cênico do que performático, no meu ponto de vista. Mas acho que não se desdobra enquanto
cena, porque você se propõe a ficar na ação simples. Fica algo um pouco descolado, vazio de
significado. Não sei qual era a intenção da performance, não cheguei a uma conclusão sobre
isso. Apontava talvez alguma crítica. Ficava na incógnita e parecia que era isso mesmo. Era
só uma imagem.
Por exemplo, acho que faz menção aos moradores de rua, mas não desenvolve essa
questão.
L-Enquanto pesquisador acreditamos que nossas ações são gatilhos, fagulhas para a
fruição, não respostas ou discursos fechados, de fato trabalhamos de início com a escolha de
elementos, gestos ou ações que sejam símbolos os quais se abrem em camadas diversas para
cada um para que, através do debate interno ou compartilhado, frua e desenvolva a proposição
interventiva com o repertório que traz, oferecendo-me como troca inclusive uma possível
leitura que eu enquanto proponente não havia imaginado, percebido ou visto.
F- As pessoas não conseguem ler essa aproximação com os moradores de rua, por
exemplo, principalmente por causa da situação cênica em si: um tapete vermelho, você
vestido de vermelho, com uma roupa de rei, acho que fica “chapado’’, a questão fica chapada,
não se aprofunda.
134
Não sei quanto às conversas que você tem, pois durante a ação você conversa com as
pessoas. Eu vislumbro como possibilidade de a questão ser desenvolvida, sem que as pessoas
precisem chegar e pedir uma explicação ou que você esteja mais aberto a essa explicação.
L- É natural do ser humano pedir explicação sobre o que ele não entende em primeira
instância, eu não quero estar lá para responder, para passar a mensagem.
F- Porque vira uma coisa bem pontual para algumas pessoas e é um espaço que
demanda que você faça para todo mundo. Então o que fica para todo mundo é justamente a
imagem do tapete vermelho e de você deitado. O que eu acho que dá bastante leitura, mas não
desenvolve.
L- No caso eu quero abrir em leituras, abrir espaço a ser fruído, e não desenvolver “A
Minha Leitura”, é uma forma de interferir para gerar trocas intersubjetivas, ouvir.
F- Quando apareceu aquele moço também de vermelho, que entrou com o radinho,
passou o protetor solar em você, ali começou a ter uma situação que gerava um
questionamento maior: “Por que ele?” “Por que ele está fantasiado também”, “quem é ele?”
“Será que o que está deitado é subjugado a ele que está passando por cima, subindo as
escadas?”
L- Achei bem interessante que ele resolveu passar por cima de mim e do tapete. O
tapete é feito para isso né? Também um lugar de passagem
F- Para as pessoas comuns, os passantes, estabelecia-se uma região de não
passagem. Era algo muito chamativo, “não tocarei nisso”, era mais um elemento de
distanciamento. A ação poderia ter algum envolvimento que fizesse as pessoas ficarem mais
tranquilas para passar ali.
L- Se aproximar dali. Interessante quando dizes que espera-se que se passe por cima
do tapete, mas ele acabava virando um lugar para não passar mesmo, para ser visto, mas não...
F- Fiquei pensando se sua ação não poderia ser a ação de ficar caminhando também no
tapete. Subir escadas e descer escadas. Pudesse gerar um outro questionamento, um outro
movimento. O tapete estendido e você deitado não dialogava tanto. Fiquei pensando em
possíveis ações que pudessem acontecer ali.
L- Mais alguma?
F- A mais clara para mim seria de caminhar no tapete. Pois o tapete estava ali como
uma extensão sua, da maneira como estava. Então ninguém ia passar por ele. Como é que
você enquanto propositor faz as pessoas se questionarem, entrarem, vivenciarem algo
diferente.
135
L- Vivenciar por vivenciar algo diferente também não significa que isto as
encaminhará a uma reflexão, vira entretenimento.
F- Coloco aqui uma crítica minha com relação a performance frente à sociedade: está
tudo tão “chapado”, estamos tão acostumados a ver “visualmente” que passamos pela
experiência com “ah já conheço” e vamos embora, nem vivemos.
L- É mais uma no meio de tantas
F- Qualquer um tem experiências assim praticamente todos os dias, então passa.
L- Algo inusitado ali acontecendo mas...
F- Fico me perguntando em cidades do interior, em outras localidades, levar isso para
outros lugares. São Paulo está socialmente tão marcada por isso. Por isso tem tantos
teatros, performances indo para a periferia. Ainda existe a possibilidade de uma
experiência que não seja já marcada, calejada por essa relação quase displicente, de não
afetação, de não se colocar uma posição, de não defender um ponto de vista. A relação de
consumo permite isso: você não tem que responder pelas suas ações. Posso chegar tirar uma
foto ir embora. Então eu posso estender o tapete vermelho, ficar deitado.
L- Há de se fazer uma ressalva: foi solicitada uma autorização à administração do
Theatro Mvnicipal para que essa ação fosse permitida.
F- E às vezes estou sendo visto não como artista, como alguém que está criticando
algo, que tem um ponto de vista sobre determinada situação social. Por isso a relação de
passagem, a relação funcional. Que estudo, que tipo de questão eu quero desenvolver e como
eu vou desenvolvê-la? Me levantou bastante questionamento essa ação, foi super importante
ter visto.
L- Com relação à relação estabelecida com o moço mascarado, me chamou atenção
em estar fazendo, o fato de que quando ele passou por sobre mim, me atravessou de uma
maneira que eu senti “Nossa!”. De alguma maneira ele estava lá fazendo parte do
“espetáculo”, virou algo espetacular, de “chamar atenção”, mas para meu corpo foi quase uma
agressão de fato, sentir aquela pessoa passando por cima de mim. Essa foi uma sensação
despertada por esse acontecimento.
F- Porque ele veio tão displicente, tão suave, num ritmo tão cotidiano, que atravessou
mesmo você, era óbvio que você não esperava. Foi muito legal. Quebrou, furou.
L- Ele ligou o radinho lá!
F-“Cara estou aqui, estou chegando, eu sou assim”
L- Você viu a parte que ele deitou também?
F- Sim, vi tudo até a hora que ele foi embora.
136
L- Ele voltou depois.
F-Depois eu já não estava presente. Essa é outra questão, do tempo que você fica
deitado, acho que precisaria ficar muito tempo deitado
L-Muito mais tempo.
F- Dias. Para surtir algum efeito assim.
L- Para virar uma ruptura.
F-Todo dia no mesmo horário.
L- Virar uma rotina né? Dentro daquele lugar que a rotina é passar, aquele evento
também virar uma rotina.
F-Exato. Aí eu acho que mudaria.
L-Que foi o que a Cris (Esteves) diretora do OPOVOEMPÉ falou também. Ela leu em
algum lugar, não sei se o Paul Virilio, falando disso, de como essas tentativas de ruptura
acabam virando em dado momento um... Se acontece um dia, dá-se um intervalo de dois dias,
e acontece de novo, começa a ser identificada, depois absorvida, já não mais estranhada.
F- Exatamente.
L- Até o ponto que ela para de novo e volta a ganhar esse caráter de estranhamento.
F- São Paulo de fato é uma cidade que para chegar necessariamente você tem que
incorporar de certa forma, para daí poder britar.
L- Para ganhar alguma reverberação.
F- Para as pessoas entenderem o jogo. As pessoas ali não tinham o jogo. Elas não
sabiam quais eram as regras. Aí se você está lá todos os dias elas vão começar a estabelecer
regras.
L- A dona Milza, que foi uma das pessoas que pararam para conversar, perguntou se
eu faria no dia seguinte: “Você vai estar amanhã aqui de novo?”
F- Exatamente. Por que? Porque eu quero entender o jogo. Porque senão vira um jogo
estranho. Não é? É super chato ver um jogo que você não entende as regras.
L- Também pensando nas ações do grupo OPOVOEMPÉ. Aquele termo do André
Carrera eu não sei agora aprofundar mas no ponto de vista que ele defende o teatro de invasão
não se trataria de uma invasão do tipo “por fogo em tudo. E ao mesmo tempo lá no
OPOVOEMPÉ elas discutem como pensar em ações que: vão ser vistas e não consideradas,
não vão ser vistas, ou vão ser vistas e ser consideradas. E eu até ficava pensando quando ela
(Cristiane) me falou isso: “Eu acho que essa ação do Mvnicipal de estender o tapete realmente
é muito invasiva em algum grau. Será que eu não estou invadindo demais, forçando,
impondo?” Por outro lado elas falam em imantação: uma ação que não força você a participar,
137
não é uma interferência que te obriga a ter que se relacionar com ela. Ela abre um campo, se
você entra nesse campo, talvez aconteça um jogo. No meu entendimento sobre a ação no
Mvnicipal foi isso, algumas pessoas, eu não sei até que ponto você ficou observando, mas
algumas pessoas acabaram criando alguma relação ali. O meu temor era de eu ser a pessoa
que aborda, de eu ficar trazendo as questões e isso talvez afastar mais do que se eu estivesse
simplesmente ali deitado esperando um encontro. Até porque a “estátua-viva” é parada, tem
algum atrativo, mas a curiosidade das pessoas é que faz elas se chegarem e criarem relação. A
estátua se move quando percebe a abertura de quem joga à participação.
F- Mas aí precisa de um tapete vermelho? E estar vestido de vermelho? Qual elemento
seria de atração. Concordo que tenha que ter um elemento de atração. Mas que elemento é
esse então? Será que a própria ação não poderia ser? Com uma roupa cotidiana? E, por
exemplo, a ação de subir e descer escadas, subir e descer escadas, subir e descer escadas...
Que tipo de ação, qual ação causaria essa imantação, esse campo magnético? Essa é a
questão. Porque acho que não era nem invasivo, nem o oposto. Só passou por ali, um dia.
Eu entendo essa questão de “por que eu gerar as questões”, é você o propositor delas.
É justamente como criar o espaço para que as pessoas se sintam a vontade para questionar o
que eu estou fazendo.
L- Sim, eu quem gerarei parte das questões, mas primeiro dando abertura para que elas
sejam geradas justamente em jogo, quando o jogo se instaura.
F- A questão é justamente essa. Pois na relação de consumo a questão é você não
questionar, e passar e ir embora. Vejo, assisto, é um grande ator, é um grande teatro, mas não
me alterei. Essa é a questão que ficou mais forte. Uma questão que todo artista deveria ter:
como criar esse espaço de diálogo. Que não é: “Oi como está você?” Que é uma relação que
instiga as pessoas a estarem ali. É uma necessidade. Não é uma opção. Deveria ser uma
necessidade para você, talvez, enquanto propositor. Não é uma opção vir tal dia, não, você
precisa estar lá em tal dia, nesse horário, é criar problema para você não ser mais um,
qualquer um, ser você. Qual é a sua necessidade.
L- A minha ou a do público?
F- A sua. Porque a do público cada um sabe que tem a sua. Mas qual é a sua para não
ser qualquer um ali. Como você faz que aquilo não seja uma opção, que aquilo não seja só um
dia que você marcou para as pessoas verem consumirem e irem embora. Qual é a real
necessidade de fazer isso? O que você quer com isso? Quem você quer atingir? Não sabe se
quer atingir alguém, mas trocar com qualquer um que seja. Precisa dizer isso, precisa, é
necessário. E como deixar claro essa urgência para as pessoas.
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L- Acredito que é algo pulsante, vital, mas menos messiânico, é apenas a urgência de
tornar a arte mais presente na vida das pessoas, não de forçar as pessoas a meus pontos de
vista e mensagens salvadoras.
Esse questionamento, pensando em tudo isso que você falou, nessa relação de
consumo com as coisas de hoje em dia. Se apresenta pra mim como se não fosse mais uma
necessidade da humanidade de maneira geral, senão dos artistas, que vão ver os artistas, que
escolhem ir ver os artistas. No meu ponto de vista a arte já não está mais presente de maneira
cotidiana. Já não se apresenta como uma necessidade. Eu venho pensando sobre isso, nessa
relação de consumo, de status. “Ah, eu vou assistir ‘O Bob Wilson’”, “Ao final vou aplaudir
muito e gritar bravo”.
F-São situações que sempre vão acontecer, mas para o Bob Wilson é extremamente
necessário fazer o que ele faz, por isso chama tanta atenção, que todo mundo vai ver
L-Quem estaria entre esse todo mundo? Vejo uma limitação de acesso bastante grande
–público de artistas, celebridades e intelectuais em sua maioria-, não necessariamente pelo
valor do evento, mas por uma questão de formação cultural e indústria cultural também. E
onde fica a questão tão apontada do consumo?
F- A relação de consumo se estabelece não só por ele, pelas pessoas que estão lá
também. Tem tietes, tem o nome dele, tem várias maneiras de se consumir, mas para ele é
extremamente necessário. O que não importa o quão consumidor eu sou ali. Porque é
necessário. Diferente da sua ação, por exemplo, que ali me importava e me preocupava. Você
se coloca num espaço aberto e vulnerável, podendo ser assaltado. E aí qual a real
necessidade? Num ponto de vista positivo. O quanto você tem que defender aquilo? Para
justamente não ser assaltado... tem várias questões, são milhares de variantes.
L- Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo?
F- Todas as respostas foram nesse sentido da relação de consumo. Ela não alterava
nem se fundia necessariamente. Era mais uma ali. Justamente por não alterar, não estar
imbricada ali, não havia uma real necessidade de ver, e parar, e contemplar, e dar o tempo da
ação acontecer, e não o tempo de eu passar e consumir e ir embora.
L- Mas a ação que acontecia era eu deitado.
F- Sim, era você deitado, um cara deitado. Eu ouvi muito: “ah é um cara deitado, de
vermelho, com um tapete”.
L- O ser humano quer, precisa de explicações, dar sentido às coisas. A forma de
atribuir sentido, achar a resposta mais imediata, é em primeira instância nomear, identificar
elementos, sem associá-los. Seria possível imaginar que após a primeira impressão,
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associação, formem-se outras possíveis combinações através de novas tentativas de ligação
entre os símbolos martelando na mente? Não estamos falando de um mero “impacto
imediato”, mas uma imagem ou ação simples potente que fique martelando na memória. Não
estamos falando de grandes transformações aparentes, mas micro-transformações perceptivas
e sensíveis nas formas de enxergar o mundo.
L- É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria
um “estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do
performer?
F- Se revelava mais esse estado da ação simples: “estou deitado aqui e ponto”.
L- Mas seria algo mais cotidiano ou não?
F- Talvez mais cotidiano, mas como a imagem não era cotidiana
L-É justamente essa contradição -cotidiano x não-cotidiano x extra-cotidiano; arte x
não-arte- que me interessa.
F- Você se relacionava com a ação de forma corriqueira, de forma simples. O que eu
acho interessante, só que faltava alguma coisa, que acho que é o estado cênico. No meu caso,
no que eu estudo enquanto ator. O lugar de imantação é esse você atinge um lugar, o seu
corpo está tão presente ali que as pessoas não conseguem simplesmente passar e ir embora.
Muitas pessoas tem isso, muitos mendigos tem isso, que é uma relação de sobrevivência,
atingir um estado de percepção tão grande que tudo pode acontecer, por mais que eu só esteja
fazendo esta ação. Isso eu acho que faltou.
L- Mas você me via de maneira como se eu estivesse fechado
F- Não. Via você se relacionando, mas de forma cotidiana. Não era cotidiana... O que
que é o estado cotidiano? O estado cotidiano também se altera. Eu via você se relacionar
assim, corriqueiro, sabe, “estou aqui deitado...”
L- Como estamos agora?
F- A ponto de o moço passar por cima de você, gerar algo que talvez você não
estivesse preparado. O estado cênico gera isso você fica preparado: O moço passou por cima e
não foi nada demais...
L- Mas não me cabia atuar. A minha reação veio de maneira espontânea em jogo, sem
dúvida fui transformado, mas não havia um psicologismo da ação, e sim a ação, não um
pressuposto de como eu deveria reagir de acordo com um subtexto ou a partir de determinada
ação.
F- A ação dele que permitiu você se transformar. Ele transformou você. Nesse sentido
foi bom ele ter aparecido. Eu percebi que você ficou mais relaxado, mais à vontade, porque
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ele estava à vontade e transmitiu isso para você. Não é que você estava fechado, mas você não
liberou, não saia do seu cotidiano, do seu pensamento, do que você queria talvez com aquilo,
para que a ação acontecesse. É muito difícil, esse é o trabalho do ator, performer. Quais
mecanismos eu vou utilizar para que isso aconteça?
L- Está revirando aqui minha cabeça.
Eu enquanto performer deveria clarear o que? O que você sugeriria? Pra mim é uma
importante questão entender o que seria “estado cotidiano” e “estado performativo”. Se eu
entendo que deveria se aproximar da vida, é confuso, mas teria que vir para o mais simples, é
chegar lá e deitar.
F- Para que aquele monte de roupa, se a proposta é uma ação simples e o mínimo
gesto. Aí me reportava para a performance que você fez da mala (Necessidade X Supérfluo:
supercidade, nãoseisefluo), aquilo se aproximava mais de um estranhamento através de uma
ação simples, de um mínimo gesto enquanto resultado cênico que as pessoas viam. A resposta
era a necessidade, qual é a real necessidade de se fazer isso? Por que faço isso? Não importa
se está bom ou ruim, mas é necessário que eu faça. Precisa ter mais problema, parecia que
você estava solucionando só. Estava muito claro que era uma ação simples. Mas era
indiferente para os outros porque não tinha um problema a se desenvolver, a se questionar.
Era desnecessário, era corriqueiro, a resposta talvez seja essa.
L- Pensando agora friamente nos elementos: o municipal, tapete vermelho uma pessoa
vestida de rei. A sua relação com a prática, com a experiência revelou isso. E de repente
agora, se debruçando de novo sobre esses elementos, por onde você arriscaria?
F- São muitas possibilidades. Só o tapete vermelho já tem muitos significados, não
importa onde você coloque. Só o Theatro Mvnicipal já tem muitos outros significados que
podemos escolher, e o rei então que é mais antigo ainda que o tapete vermelho e o Theatro
Mvnicipal. Você trabalha com várias simbologias, e aí tem que ter a necessidade (por que,
como, quando e onde)
L- Você viu que tinha uma plaquinha (eu faço pARTE)?
F- Vi. Ela vinha justamente por essa necessidade de algo mais. Ela meio que explicava
a ação, tinha a necessidade de explicar a ação para as pessoas que estavam passando, por que
a ação talvez não fosse... talvez até aí você já estivesse entendendo que a ação em si não era
suficiente sozinha.
L- Entendi. E aí entra a palavra.
F- Pelo que você está se propondo de aproximar. Pois no cotidiano é isso, as pessoas
têm que falar, elas não colocam uma placa para dizer, justamente por não colocar uma placa
141
para dizer elas ficam falando, se justificando, ou não, ou elas não têm que justificar nada para
ninguém. Tem que se jogar com essas informações. Penso que foi meio que tudo, e ao mesmo
tempo o que é tudo é nada. É um tapete vermelho, no Theatro Mvnicipal, com um rei deitado!
Mas por quê? O que o rei está fazendo, por que desse tapete, e o Theatro Mvnicipal o que tem
a ver com isso? Qual a necessidade disso tudo, pra você mesmo.
L- Eu ficava pensando assim. A primeira coisa das pessoas é atribuir um sentido.
Ligar os pontos tentar ligar aquilo ali e buscar o sentido. Quando esse sentido não vem de
maneira direta, elas pedem a explicação, que era o que acontecia. Só que eu me colocava na
posição também de não responder ou de tentar devolver a pergunta para que elas fruíssem a
coisa. De repente para mim essa era a necessidade. De que elas tentassem ligar aqueles
pontos. Ou então só passa, é um espetáculo como qualquer outro.
F- É. Pra mim um dos pontos é: as pessoas não entendem. Por que que elas não
entendem? Por que qual é o jogo que você está jogando? Me fala qual é o jogo que você está
jogando, que eu vou tentar dialogar com isso. Me fala quais são as regras. Não tinha regra
estabelecida, tinha a imagem, tinha o resultado do jogo, mas não tinha jogo. O fato de as
pessoas pedirem explicação se deve a isso. Se ela não entende o jogo ela pede uma
explicação, e quando você devolve a questão, você já devolveu uma questão que não estava
clara, nesse caso, porque você não deu material suficiente para a pessoa. Você deu vários
símbolos, mas não deu o material para ela jogar com os símbolos, montar o quebra-cabeça.
L- O material para mim é brincar de combinar, a partir do repertório pessoal de cada
um, de suas vivências e histórias de vida, os próprios símbolos e ações simbólicas- ações
simples são ações cotidianas que pelo deslocamento do contexto ganham caráter simbólico. O
mínimo gesto tem a ver com uma decodificação de um gesto cotidiano ou estetizado que
significa por sua mera repetição ao longo de uma duração prolongada dilatando a noção
espaço- temporal cotidiana.
F-A televisão, por exemplo, coloca o resultado. Como o faz todo dia, ela vai te
acostumando com o resultado e aí você fica com o resultado na cabeça.
L- Mas ali você acha que tinha um resultado? Ou tinham peças?
F- Tinham peças, tinha o tabuleiro, tinha o resultado de alguma coisa. Mas não tinha o
jogo, não tinha a peça se movimentando. Não estava claro isso. Pra mim também, por mais
que eu tivesse os balizadores. O jogo em si não se estabelecia. Na ação, na questão social, na
questão espacial.
L- Internamente fazendo parte dela o que me passou pela cabeça foi: a ação era ficar
deitado e começar a desenvolver algum encontro se houvesse essa imantação de alguma
142
maneira e não puxar um encontro, não buscar. Porque meu temor era: quanto mais eu tentar
chamar a atenção, digamos assim, uma vez que a figura já chamava atenção de alguma forma,
porque não é uma coisa que está lá todos os dias, um tapete vermelho com uma pessoa deitada
ao final. Logo, se eu tentasse buscar as pessoas, talvez isso as distanciasse mais. Como a
mesma relação que se estabelece costumeiramente com o panfleto. Eu te dou um panfleto,
mas você já espera um panfleto e você não aceita. No meu raciocínio se dava um pouco
assim: qualquer coisa que eu tentar trocar de cara com as pessoas, tentar ficar olhando, isso
não vai trazê-las. O que eu pensava era isso.
Outra questão era o físico também: naquela posição eu percebi que não dava para ficar
de fato olhando as pessoas, naquela condição era o sol no rosto, e se eu ficasse tentando abrir
o olho eu ia ficar sempre “no meio do caminho”. Então eu vou tentar permanecer neste lugar,
habitar este lugar por este tempo. A ação era ficar deitado, eu vou ficar aqui.
Quando alguém vinha eu tinha alguma coisa pela qual... se ela já vinha perguntando
algo, eu tentava transformar em pergunta para ela de volta: “Ah eu faço parte, eu faço parte de
que?” a pessoa perguntava. Eu perguntava: “Do que que você faz parte?”, tentava voltar o
questionamento para ela. Também me ocorria: Se por sua vez lá do lado das Casas Bahia
todo dia tem aquelas bandas, que reúnem muitas pessoas, por outro lado aquele monumento
inteiro, imenso, parece inabitado. As pessoas sentam ali, mas não vivem aquele espaço, de
entrar e conhecer, no meu parco entendimento de julgar que as pessoas em geral não
frequentam aquele monumento, o embate para mim era esse, pensando: a arte não está
presente na vida das pessoas, este “bicho” deste tamanho não faz parte da vida das pessoas
elas só passam por aqui e tiram uma foto.
F- Você acha que você só de vermelho, ali deitado... para mim é um pouco óbvio, vai
continuar do mesmo jeito. Você não colocou uma situação que as pessoas pudessem vivenciar
aquele espaço. Não alterou nada para as pessoas. Talvez se você fizesse nas Casas Bahia,
tivesse mais efeito. Da sua trajetória toda que acompanhei chamava muito mais atenção das
pessoas você se trocando do que você deitado no Theatro Mvnicipal. E por que não deitar de
rei no meio dos mendigos?
L- Eu teria que pensar o porquê disso. Aí para mim seria um pouco de invasão, de
ofensa. E eu não objetivava isso.
-Talvez. Qual a real necessidade? Você precisa dizer isso para quem? O que quer que
as pessoas percebam com isso, ou o que você precisa entender? A questão é justamente esta: o
que eu preciso entender, eu preciso fazer. Senão não acontece. Um piquenique, faça um
piquenique e aí talvez as pessoas comecem a ficar, a trocar mais, se sintam mais a vontade,
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para usar a arquitetura mesmo. Você só endossou a arquitetura, você virou parte da
arquitetura e mais uma coisa para tirarem foto. É isso, é para isso que ele está aí para tirar a
foto e ir embora. É muito difícil, é muito difícil.
L- Por outro lado a parte interessante que achei, que realmente não tem como a gente
esperar, foram esses alguns encontros que aconteceram nesse tempo que eu fiquei -11:00h-
14:30h. Com essas pessoas eu consegui este lugar que seria através da arte, através de uma
ação simples estabelecer uma relação com alguém, e esse alguém não são necessariamente os
muitos “alguéns”, não é algo unânime. Talvez a unanimidade seja a foto. Mas de repente por
algum motivo alguém escolhia passar alguns momento do seu dia ali. O menino mascarado, o
qual tinha muito mais a ver com endossar a ideia de espetáculo, uma relação intersubjetiva
mediada por um espetáculo, minha com ele. E eu vi, apesar de conseguir conversar com ele e
tentar entender qual era a dele também, pois ele disse que andava daquele jeito porque
daquele jeito as pessoas não atrapalhavam-no, ele tinha liberdade para ir e vir do jeito que se
trajava: capa vermelha, chapéu de bruxa vermelho, máscara, microfone e caixas de som no
cinto. As pessoas categorizavam-no de um jeito e ele simplesmente poderia ser, o ser e não
ser juntos na cabeça dele. Mas ao mesmo tempo eu achava que o que estava acontecendo ali
era um espetáculo, apesar dessa troca tinha uma teatralização: passar com o som ligado e
andar por cima do tapete. Depois veio a dona Milza, uma senhora.
F- Sim que ficou conversando com você todo o tempo até eu ir embora.
L- Que ficamos conversando muito sobre várias questões da vida.
Como eu queria fazer o jogo entre arte e vida, o que eu perguntava para eles era: com
que frequência você visita a vida? Com que frequência você visita a arte? Como é que arte
está presente na sua vida? Fazia essas indagações quando a relação acontecia. Aí ficamos lá.
Eu me prendi a essa relação com ela, que aconteceu com ela.
F- Sim, mas você esqueceu a ação simples de ficar dormindo, não sei, de ficar deitado
apenas. A ação deixou. O jogo mudou completamente. Para mim naquele momento você
podia ter tirado a roupa, deixado ali para outro vestir, e ficar conversando com ela. A ação que
você propôs, você a deixou de lado. Para alimentar essa conversa. Eu acho que esse é um tipo
de conversa que tem que ter depois do impacto da ação. Esse tipo de questionamento. De fato
ela viu a ação, já entendeu e foi conversar com você. Era uma necessidade dela, não era sua,
talvez fosse a sua também.
L- A minha era como através da arte a gente se conecta com as pessoas.
Estabelece essas trocas no meio do cotidiano.
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F- Então você atingiu o seu objetivo e pronto. Acabou, a ação simples acabou nesse
momento, porque você conseguiu através de estar vestido de rei, com o tapete, deitado ali,
você conseguiu que alguma pessoa chegasse e conversasse com você. Pronto. Para mim não
era interessante ver aquilo, aquilo não era uma ação, eu não tinha a necessidade de estar ali,
nem você tinha a necessidade de estar vestido de rei.
L- O que me chamou atenção do lugar é que lá haviam muitos vermelhos: de todos os
tipos: o vermelho do shopping Light, o vermelho da ciclovia, muitas pessoas vestidas de
vermelho, o vermelho do semáforo, como se estivesse já bem presente naquele lugar. Então
fui fazer uma visita monitorada ao teatro e há um “tapetão” vermelho que atravessa o teatro
inteiro. Você vai andando pelo teatro e “só o que tem” é o tapete vermelho. O que me fez
pensar: este teatro ainda hoje é um espaço elitizado, desde quando ele surgiu até agora ele é
um espaço nobre, por esse motivo o rei.
Eu perguntava se eles já haviam entrado naquele teatro. Com que frequência você
visita a vida? Com que frequência você visita a arte? A arte faz parte da sua vida? De que
maneira? Você já entrou neste teatro?
F- O que elas respondiam?
L- Alguns diziam que aquele teatro não era para eles. Eles não se sentiam convidados
a entrar naquele teatro. Um senhor no dia anterior, em que a performance foi feita por seu
João, disse: “Olha eu já fui na Europa e parece que lá a gente vai muito mais a vontade nesses
lugares, aqui parece que não é da minha cor53. Eu perguntei: “como assim não é da sua cor?”
ao que ele respondeu: “Eu acho que o Brasil ainda é um país racista.”
F- Sempre foi.
L- Havia uns que asseguravam a minha visão de que a arte não faz parte, ela está ali e
as pessoas não usam e outras diziam: “Não, esse é um espaço super acessível, aqui tem
eventos gratuitos, no natal. Eu mesma fui aí, mas ganhei o ingresso da minha amiga que
trabalha aí”. Apontavam-se algumas contradições.
Pra mim era necessário problematizar aquele lugar. No seu ponto de vista teria de
se pensar qual seria essa ação mais apropriada, ou de repente uma vez da escolha dessa ação,
“o deitado”, permanecer ali para sempre sem a relação com as pessoas?
53atriz Ana Luiza Leão em sua entrevista também comenta como na Europa sente a arte mais presente e apropriada pelas pessoas e espaços da cidade, a ponto de os artistas terem mais condições favoráveis a realizar seu ofício e compartilhar com todos.
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F- Eu não sei eu fiquei levantando possibilidades. Não é uma resposta. Fui um
espectador e questionador. Você que tem que ver isso. Estou aqui para questionar. Nós temos
que fazer isso um com o outro. Assim a gente cresce mais.
L- Para constantemente pensar sobre a criação. Eu fiquei me perguntando e eu não
conseguia sair dessa ideia, a ação é essa mesmo. Pensava: “o que pode acontecer aqui?” Pois
primeiro vou e observo um dia: as dinâmicas do espaço, o que acontece ali. Depois que essa
ideia se estabeleceu eu não conseguia ver outra coisa senão ela. Fiquei a tarde inteira
conversando com seu João e para mim ele se apresentava como aqueles postes ali em frente
ao teatro com várias carrancas, “estátuas-vivas”. E ele era uma “estátua-viva”, naquele lugar
pra mim ele se apresentava como uma estátua daquelas várias, gritando, só que ninguém
ouve. Pra mim ele era uma estátua-viva.
O que eu imaginava? Algum jeito de evidenciar este espaço, como este espaço para
mim não é o lugar em que arte acontece, no meu ponto de vista. Como podemos colocar uma
imagem ali, algo que evidencie isto. Esse tapete vermelho! Ninguém cruza esse tapete
vermelho! Quem tem que estar lá embaixo é uma “estátua-viva”, é uma pessoa que está ali,
enrolada nesse tapete vermelho contando suas histórias, e só.
Também percebo a diferença entre ser o seu João lá, e eu. Realmente acho que a
situação muda. Achei bem interessante de os dois dias terem acontecido, apesar de vocês só
terem visto o dia que eu fiz. O que permanece na minha cabeça é continuar tentando,
continuar buscando, não desistir de fazer essas coisas, acreditar que isso é uma possibilidade.
Porque tem muito disso, a maioria das ações não chega numa compreensão, num resultado de
uma compreensão: “o que justifica isso”. É mais o julgo que cada um fará individualmente
depois da foto. Se vai ou não vai fazer.
A partir desta devolutiva do participante sobre “Tapete vermelho-patrimônio de
poucos” me levantei algumas questões variadas:
Sempre tudo tem de ter respostas bem formuladas esclarecidas e utilitárias, senão não
é necessário, não faz sentido?
Meu objetivo é interferir de maneira sensível, sensorial, mexendo com outras
possibilidades de percepção que não a racional, lógica, gramaticalmente construída, ou de
passar uma mensagem, doutrinar, de agitação política, proponho um debate que nasce por um
estímulo de símbolos.
Em “Tapete vermelho-patrimônio de poucos” a questão era pensar a marginalidade, a
invisibilidade social dos mendigos, friccionada com a invisibilidade daquele imenso
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monumento ou da arte na vida das pessoas, o rei enrolado no tapete e não pisando nele.
Dizendo eu faço pARTE. O enfoque era a marginalidade da arte, não dos mendigos.
Talvez tenha revelado o que já é, o que já está lá, e aí alguns, quem sabe, se alterem
na sua forma de se relacionar com o lugar. Não queria propor qualquer experiência para
vivenciar o espaço, ocupar o espaço (como um piquenique), mas para revelar o próprio
espaço, com seus elementos próprios, numa nova configuração de contexto, revelar a função
que ele teoricamente deveria ter e não está tendo por uma série de variantes de acessibilidade,
informação, formação cultural, mercado e ritmo de vida.
O risco da Repetição é que em dado momento ela pode virar um lugar comum, ao
invés de provocadora de novas leituras, ser classificada e logo absorvida, respondida, não
mais estranhada- pensando sobre os possíveis efeitos do recurso de Repetição, “Água mole
em pedra dura...?” Continuemos experimentando.
Julgamos bastante importante e enriquecedor apresentar ainda outro ponto de vista
externo, de quem observa a ação, assim compartilhamos o protocolo observacional de Otávio
Oscar que também acompanhou este experimento. Otávio estabeleceu uma relação de leitura
de signos distinta da relação que Filipe fez sobre a mesma proposição artístico-performática,
tendo os dois a presenciado no mesmo dia.
Protocolo Observacional respondido por Otávio Oscar após realizar observação imersiva
(de 11h-13h) da ação artístico-performática: Tapete vermelho-patrimônio de poucos
Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as
formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas
neste mesmo espaço?
A escadaria/calçada em frente ao Theatro Mvnicipal, ao meio dia, durante a semana, é
um local de intenso fluxo de pessoas. Aparentemente, a maioria dos transeuntes eram
trabalhadores em horário de almoço, pessoas fazendo compras, passeando ou gente que estava
se deslocando de um lugar para outro no próprio centro.
A escadaria do Theatro é utilizado como um local de descanso. As pessoas se sentam
ali pois é um dos poucos locais permitidos para sentar, além de ter uma boa sombra. À noite,
havendo espetáculo, o Theatro muda de figura e o que acontece dentro dele passa a
determinar sua dinâmica, diferente do horário de meio-dia, em que ele apenas é mais um
prédio como os outros.
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As relações entre as pessoas é bastante pueril. A escadaria não é um lugar de
convivência, muito menos voltado ao lazer. As pessoas sentam para descansar, sejam
sozinhas ou em grupo. No segundo caso, há a oportunidade de se conversar, o que é bastante
comum. De resto, a relação de quem está na escadaria com quem está na calçada é apenas
observar a sua passagem.
A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de
mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos?
Acredito que a ação era simples, mas o gesto não era mínimo. A ação era apenas ficar
deitado na parte de baixo da escadaria e no final do pano vermelho, algo bem simples, apenas
complementado com a ação de conversar com quem abordasse o performer.
O gesto não era mínimo pois a estrutura cenográfica (chamemos assim) e o figurino
eram bastante chamativos, quase espetacular. Essa estrutura espetacular, apesar de negar o
mínimo gesto, me parece coerente dentro da proposta de discurso do performer, que buscou
questionar o status do consumo de cultura na cidade de São Paulo. Chamar a atenção
parecia um mote essencial da performance, afinal a ação artística se aproxima bastante do
protesto, do manifesto e do ativismo, o que remete bastante à ações de performers dos anos 60
que realizavam suas performances nas ruas como forma de protesto. O que me chama atenção
comparando ao exercício anterior (no túnel do Anhangabaú) foi o desejo político do
performer em lançar um questionamento que atingisse de forma mais cortante, o que o levou a
uma ação com um discurso mais incisivo e uma forma mais espetacularizada.
A ação de permanecer deitado, apesar de simples, chamava também muita atenção, em
grande parte devido à incidência cruel do sol em seu rosto, que estava descoberto e totalmente
vulnerável, gerando um risco (queimadura solar) que levava a um envolvimento dos
transeuntes. Isso demonstra que o “público” teve empatia pelo performer. Ouso dizer que sua
juventude, beleza e vulnerabilidade era algo tocante para quem passava. Muitos ficavam
admirados pela valentia e tenacidade do performer em se manter exposto ao risco em prol de
uma causa como “a arte”.
A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por
que aspectos?
Me pareceu coerente pois questiona o status social da arte diante do maior, mais
reconhecido e mais antigo aparelho cultural da cidade, onde impera o status quo
artístico. Ao mesmo tempo que o Theatro Mvnicipal é tudo isso, ele também parece algo
totalmente alheio a quem passa, como se fosse algo que não pertencesse ao cidadãos, ou que
pertencesse apenas a alguns deles. A performance também questionava isso: arte para
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quem? E essa pergunta era instigante para quem passava. Outro ponto de coerência é o
diálogo com o espaço. Acredito que a performance não teria impacto se apresentada na frente
da entrada do metrô ou na frente da prefeitura. Fazia sentido aquele tapete vermelho em frente
a um espaço de arte tão elitista, em contraposição ao performer numa condição semelhante a
de um morador de rua.
Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as
pessoas têm com/sobre o visto/vivido?
Muitas pessoas pararam por estarem curiosas em relação aos objetivos do performer.
Elas buscavam “entender”, um comportamento muito comum ao transeunte que é colocado na
posição de espectador de uma performance. O tecido vermelho, como um tapete, saltava aos
olhos pela sua cor chamativa e pelo formato de tapete, remetendo à maneira como pessoas
VIP’s são recebidas em eventos. O primeiro impacto, portanto, era visual, bastante
chamativa. Outro impacto, como já foi mencionado acima, é a exposição e vulnerabilidade
do performer ao sol. Fato é que naquele dia o sol estava muito forte, e deixou o seu rosto
muito avermelhado. Essa exposição parecia absurda aos olhos das pessoas. Nem tanto a
exposição ao sol, mas muito mais a atitude de se expor a ele. As pessoas pareciam se
questionar em relação a isso muito antes de buscar qualquer fruição da performance. O dado
da realidade imediata, no caso a realidade do risco, era muito mais relevante para quem
passava. Num segundo momento (ou no caso de pessoas mais acostumadas ao contato com
performances e intervenções urbanas) elas buscavam entender. Claro que essa observação é
muito generalizante. Fato é que as intervenções urbanas geram infinitas formas de recepção e
reação. Alguns simplesmente passavam, muitos olhavam e observavam rapidamente, outros já
se desinteressavam logo de cara, alguns paravam, alguns poucos conversavam com o
performer.
Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo?
A ação alterava muito pouco o fluxo. A escadaria é uma área desativada naquele
horário, pois o teatro não está aberto. As únicas alterações se davam devido aos curiosos que
saíam de seus percursos para se aproximar do performer. Outra alteração é visual, aquele
tecido vermelho gerando um desvio perceptivo na paisagem. Uma alteração que gera um
olhar diferenciado a quem está acostumado a passar por aquela região, o que em si já altera o
fluxo mesmo que o movimento ao redor aparentemente permaneça o mesmo.
É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um
“estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer?
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Sim, pois o performer se coloca numa situação bastante vulnerável ao se deitar no
chão, num lugar onde as pessoas normalmente pisam, além do sol, que exigiu concentração e
tenacidade para evitar ansiedade ou medo de se machucar. Seu corpo, portanto, explorava
um estado performativo.
Não, pois quando as pessoas o abordavam ele conversava naturalmente com elas, num
registro cotidiano, inclusive bastante simpático e casual.
Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível?
O que salta como visível é o que já foi dito: a intervenção visual e tátil no espaço. A
cor vermelha é a mais impactante de todas e traz uma simbologia, dentro do contexto irônico
da performance, que é facilmente trazido à memória pelo senso comum: o tapete vermelho,
estrutura de espetacularização acerca do valor social de figuras VIP’s que frequentam
eventos. Isso gerava bastante visibilidade.
O que estava invisível era a identidade do performer, que não fazia questão de sequer
se identificar como autor ou mesmo de esperar o reconhecimento pela obra artística. Esse
anonimato tornava a performance, em algum nível, invisível a quem passava.
Surpreende-me o fato de a fruição de Otávio sobre os signos (elementos e ações)
convergirem com as questões mais fortes que me motivaram a realizar esta proposição
artístico-performática. Divergindo consideravelmente do ponto de vista de Felipe, Otávio foi
capaz sim de identificar uma crítica ou problemática contida na ação proposta. Esta em seu
ponto de vista era carregada de ironia e protesto, portanto não pairava num campo abstrato e
descolado como Felipe apontou. Otávio também julgou que aquela ação tinha uma caráter de
site-specific uma vez que era apropriada para ocorrer naquele prédio, naquela geografia
específica não cabendo ser deslocada para outro lugar, o que reforça nossos esforços em
absorver, pesquisar e em seguida produzir uma ação artística que diga respeito e dialogue
especificamente com o espaço em que se insere, afetando e sendo afetada por ele.
Apesar de não ser o propósito que buscamos (pelo contrário, queremos desenvolver
outras alternativas à espetacularização do cotidiano), assim como os participantes-
observadores também reconhecemos que esta ação carrega um quê espetacular, um
estranhamento muito “às vistas”, quase pomposo, mas que parece em certa medida apropriado
para travar diálogo crítico com o espaço e que mesmo assim ainda corre o risco da
invisibilidade ou da indiferença diante das “regras de tráfego” que povoam e imperam na
região central da cidade.
150
Nos surpreendeu particularmente a quantidade e a qualidade das distintas trocas
intersubjetivas diretas que ocorreram a partir dessa ação simples. Foi possível sim me
modificar a partir da experiência (acredito também ter afetado a percepção dos outros) e
aprender, através de questões trazidas por essas relações em via dupla54, sobre o que tem-se
pensado sobre as desigualdades sociais, estas mesmas que geram desigualdades no usufruto e
consumo da cultura e da arte, e como o gerador das desigualdades, relações sociais baseadas
na troca econômica, gera também insegurança, desconfiança, descrença, desinteresse,
violência, conformação, nos deixando “estacionados” sem jamais parar.
54 Não apenas questões trazidas por mim, pois meus disparadores eram apenas estar deitado e perguntar com que frequência você visita a vida, com que frequência você visita a arte?
151
2.3.3 Experimento III: Instituição Pública - CEPEUSP
Instituição [Lat. instituitione] sf. 1. Ato ou efeito de instituir. 2. A coisa instituída. 3. Associação ou organização de caráter social, religioso, filantrópico, etc. Instituições [Pl. De instituição.] smpl. 1. O conjunto das leis, das normas que regem uma sociedade política. 2. O conjunto das estruturas sociais estabelecidas, esp. As relacionadas com a coisa pública. Público [Lat. publicu.]adj. 1.relativo pertencente ou destinado ao povo, à coletividade, ou a ao governo de um país. 2. Que é do uso de todos, ou que está aberto ou acessível a quaisquer pessoas: hospital público. 3. Conhecido de todos; manifesto, notório. 4. Que se realiza em presença de testemunhas, perante pessoas, não secreto, ato público. sm. 5. Conjunto de pessoas reunidas que assistem a um espetáculo, a uma reunião, etc.; audiência, assistência. 6. Conjunto de pessoas as quais se destina uma mensagem artística, jornalística, publicitária,etc. (FERREIRA, 2010, p.430, 623).
As instituições públicas portanto teriam uma finalidade de regência e estruturação
sociocultural e política de uma cidade, aparelhos que existem para regrar e servir a uma
sociedade.
Nossa intervenção em uma instituição pública obedece à lógica de um ato público, não
secreto, compartilhado com uma comunidade aberta, formada por cidadãos não só
paulistanos, mas advindos de outros estados e países para este evento artístico que habita
temporariamente uma instituição pública destinada a princípio para o esporte.
Ao longo deste trabalho pudemos compreender sobre diferentes formas de
apropriação, restrição e privatização de atividades nos espaços públicos, quer seja pela ordem
garantida com a presença e a ronda constante dos aparelhos de segurança, através da polícia
militar e da CET em estado de observação sobre nossa ação, no caso do túnel Papa João Paulo
II, e da guarda civil municipal no Theatro Mvnicipal, quer seja por um acesso restringido
economicamente, por intermédio de ingressos com valores variados, ou mesmo pela
imponência do prédio, revelando o poder “invisível” de uma arquitetura separatista.
Encontraremos no Experimento III: Instituição Pública – CEPEUSP, o ápice da
restrição de acesso sobre um órgão dito público, mas que a acessibilidade se dá por forte
controle, não deixando de apresentar suas contradições.
A partir desta nossa experiência entenderíamos que o direito de ir e vir livremente
garantido pela constituição brasileira sobre os espaços públicos, encontra uma série de
limitações e regulamentações que variam de órgão a órgão para manter um certo ordenamento
e forma harmônica às operações da cidade.
Para este terceiro experimento tivemos de ir a fundo num processo de pesquisa e
estruturação para conseguir as devidas concessões junto à administração da instituição para
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viabilização do processo que planejávamos. E como em todo processo ocorrem mudanças,
alterações, surpresas e percalços a serem transpostos ou adaptados ao longo do caminho.
O Centro de Práticas Esportivas da Universidade Estadual de São Paulo o CEPEUSP
funciona como uma instituição pública com regras próprias dentro de um complexo
institucional maior que é a Universidade.
Desde dezembro de 2011 demos início à solicitação de uso do complexo aquático do
CEPEUSP para realização do terceiro experimento que daria origem ao espetáculo
performático de ações simples e mínimos gestos MoAciR: Filhos da Dor.
O processo administrativo se deu detalhadamente entre mim, como estudante de
graduação em artes cênicas com o aporte de meus orientadores Antônio Araújo e Helena
Bastos, representando o departamento de artes cênicas num trabalho de formatura, e a direção
administrativa do CEPEUSP, rendendo um documento de cento e cinquenta páginas relatando
na maior riqueza possível de detalhes todos os acordos combinados e adaptados ao longo do
processo: desde os possíveis horários de uso, a assinatura de todos os professores do
complexo em favor da realização do projeto, a concessão de materiais disponíveis para nossa
prática e a manutenção de ensaios no período de fechamento do clube sob o acompanhamento
de salva-vidas.
Este processo se deu ao longo de onze meses resultando num processo de criação e
intervenção artístico-performática em um espaço público por oito meses ao longo de 2012.
O CEPEUSP é um aparelho público destinado a ampla variedade de esportes com
acesso restrito que se dá por meio de identificação com cartão universitário, catracas,
vigilância de acesso aos portões e matrícula nos esportes em que se quer ter aulas. É uma
instituição que declaradamente o acesso público não significa o acesso de todos e se você não
tiver como comprovar seu vínculo a universidade você não pode usufruir deste bem público.
O grande conflito que se dá é que a universidade é frequentada diariamente por um
público amplo, não se limitando somente aos estudantes, funcionários e professores, para fins
de recreação, visita às instalações e museus, atividades e oficinas oferecidas e inclusive
esportes.
Em se tratando de um espaço público o grande conflito que se dá é que se por um lado
o CEPEUSP não é aberto a todos, por outro a diretoria administrativa do CEPEUSP não julga
correto a privatização do espaço público à medida em que a USP abriga vários prestadores de
serviço que “alugam” gratuitamente a universidade para dar suas aulas particulares de
bicicleta, corrida, alongamento, pilates. Estes procedimentos ainda estão em voga, mas estas
empresas são consideradas ilegais e parasitas do espaço público uma vez que o privatizam
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para fins próprios não compartilhados, que alteram os fluxos e dinâmicas de uso do espaço
com instalação de materiais, fechamento parcial de vias pelo trânsito de pessoas, distribuição
de produtos e propaganda, sem isso se reverter para um bem comum e aberto à comunidade.
Essa é sempre uma questão bastante delicada pois ora se permite, ora é vetado o
investimento privado numa universidade pública. Muitas vezes o próprio CEPEUSP é palco
que abriga interesses de empresas privadas na promoção de eventos esportivos.
Então como nós enquanto pesquisadores e coletivo de artistas do grupo
(PRE)FORMA-SE, nos debruçando justamente sobre essas questões de apropriação e
usufruto do espaço público, nos inseriríamos nesta conjuntura?
Por vezes chegamos a refletir se estávamos compartilhando o espaço público do
complexo aquático ou se de alguma forma nossa intervenção acabava por privatizar aquele
lugar em nome de nosso processo artístico. Uma coisa é certa: com certeza nossa presença
constante no espaço ao longo do ano alterou os fluxos já tidos como cotidianos e esperados
naquele lugar, promoveu fricções extra-cotidianas perceptivas, afetivas e intelectuais entre
nós, os usuários, professores e funcionários, acarretou em impactos na estrutura e na forma de
uso em alguns setores do CEPEUSP como portarias, local de armazenamento de materiais,
serviços elétricos e de marcenaria e desde o início carregava uma crença: a possibilidade de
dialogar e criar relações intersubjetivas através de ações simples e mínimos gestos artísticos
num espaço público destinado em tese ao esporte. E que esse diálogo se desse de maneira
mais ampla e acessível possível à comunidade, resultando num espetáculo de duas horas e
trinta minutos de duração aberto ao público, sem a necessidade de intermédio por cartão
universitário ou identificação. Este processo representou para nós um grande desafio do início
ao fim de constante superação e descoberta administrativa, artística, profissional e
principalmente de relações humanas.
MoAciR: corpos cotidianos costurando ações simples na construção de um espetáculo
performático aquático
Seguimos, como Moacir, somos nômades estrangeiros em nosso próprio lar (nômade por Renato Ferracini ou Walter Benjamin). Como o andarilho na sua vida de andarilho, o artista anda sempre com o que precisa, está sempre preparado para viver, fazer arte. Quero pessoas-artistas que estejam sempre preparadas para fazer arte mesmo que não tenham consciência racional dessa certeza.55
55 Anotação minha em livro de referência bibliográfica bem no início do processo do Experimento III.
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Um dos significativos e radicais aspectos que vivemos em MoAciR era como construir
uma estrutura que se assumia de fato espetacular, um evento que para além de promover uma
inserção e ruptura no cotidiano, objetivava a criação de um espetáculo com ações simples e
mínimos gestos realizados por pessoas com corpos cotidianos e não artistas profissionais
detentores de técnicas específicas. Mas performers que trariam ao extremo, por ser essa sua
realidade mais próxima, o colamento entre arte e vida, simplesmente evidenciar um corpo em
ação. “Ação que acredita no poder de si mesma”56.
Distribui informativos em quase todas as unidades de ensino da USP e na moradia
estudantil, buscando trabalhar com esse “qualquer um que quer” (como me revelava Helena
Bastos, minha orientadora, após saber desta minha iniciativa). Eu buscava corpos “querentes”.
Que acreditassem ser possível fazer arte, dança 57 com ações simples e mínimos gestos
cotidianos.
Outro desafio era: explorar esta possibilidade em outro meio que não o já conhecido
“peso” do ar, a gravidade, mas explorar isso em ambiente aquático.
Muitos interessados se manifestavam em telefonemas e e-mails mas nunca chegavam
a aparecer nos ensaios e de cinco pessoas que apareceram, apenas os dois que chegaram no
início do processo permaneceram.
Trabalhamos então com dois “não-dançarinos” num intenso processo de construção e
descoberta dos limites do corpo com ensaios longos, sob todas as condições climáticas
apresentadas ao longo do ano de calor, chuva e frio, aulas especializadas e uma dieta baseada
na obtenção de glicose, proteína e hidratação por: mel, água e suplemento proteico. De fato
tratou-se aqui de chacoalhar a existência e entrar em crises psicofísicas na busca sempre do
melhor de si, de uma não conformação com o que já está posto ou com o que já nos
acostumamos de nós mesmos.
Um dado bastante interessante e relevante de se colocar é que o performer Vanderson
encarava uma luta tão grande consigo mesmo ao ponto de não saber nadar e aprender, e
superar medos que o acompanhavam por anos dentro deste processo, ao ponto de conseguir
pular de um trampolim de cinco metros. Como Thaís, que já apresentava um corpo mais
atlético e uma intimidade maior com o meio aquático, descobrir formas de driblar suas
constantes câimbras, como controlar os músculos e a homeostase diante do frio, agarrar o
desafio de pular de dez metros de altura oito vezes ao longo do espetáculo, retroceder e
56 Cris Esteves em entrevista anexa ao ser interrogada sobre o termo ação simples 57 “A dança? Não é movimento, / Súbito gesto musical / É concentração, num momento, / da humana graça natural”. Assim escreveu Carlos Drummond de Andrade em seu poema “A Dança e a Alma”.
155
construir um medo a partir de experiências de insucesso, voltar a superar-se e seguir adiante
com os pulos.
Não havia espaço para “psicologização”, criação de personagens e ficções, era um
encadeamento constante de ações simples aparentemente ilógicas, sem a construção de um
enredo claro com início meio e fim, que apostava extremamente na fisicalidade, na
concretude dos corpos em relação consigo mesmos e com o ambiente, sem pausas num
deslocar-se constante ao longo de duas horas e meia, ou com todas as pausas preenchidas
internamente, mesmo que o gesto externamente fosse mínimo.
Se nos outros experimentos encontrávamo-nos totalmente dependentes da observação
imersiva para a criação e escolha do mínimo gesto capaz de intervir na realidade apresentada
pelo espaço, aqui no caso do CEPEUSP tínhamos um direcionamento inicial: trabalhar um
espetáculo de dança a partir de mínimos gestos ou ações simples dentro da água a partir de
“Iracema”58 como obra gatilho para repensar nossa condição de “filhos da dor” embalados
neste mar urbano São Paulo. A piscina era importante metáfora destes vários aquários de água
parada que quase não se tocam ou se relacionam, mas todos em deslocamento (mecânico),
ilhas flutuantes embaladas por um mesmo mar de fluxos caóticos e viciantes.
O trabalho apresentou como viés, nesta temporada de doze apresentações que cumpriu
em outubro de 2012, a necessidade de maturação na edição e organização de suas nove partes,
no aparato técnico de luz e som precários para atender um espaço aberto durante a noite, e
numa adequação dos pontos de vista em relação às grandes distâncias de um espaço total
explorado nos seus 90m x 40m, em que o público tinha liberdade de trânsito para ir e vir
como lhe aprouvesse.
Para aprofundar um poucos mais a compreensão de como se deu este processo de
criação, que já teve seus procedimentos de construção explicitados e desenvolvidos em dos
procedimentos práticos utilizados, acreditamos que a melhor tradução desse extenso período
de oito meses de trabalho sobre o Experimento III, março a outubro de 2012, seria através de
um diário de bordo adotado como formato, com relatos que capturam diferentes fases do
trabalho desde sua concepção, aos primeiros ensaios, às vivências, ao primeiro “passadão”
público, e uma tabela que esmiúça estas fases programaticamente com as atividades
realizadas em cada período.
58 obra canônica de José de Alencar, de visão romântica da origem do primeiro brasileiro, Moacir, dono e já exilado, estrangeiro em sua própria terra.
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O projeto MoAciR: Filhos da Dor tem suas origens num capítulo anterior a seu nome.
Ao longo de meu trajeto no curso de Artes Cênicas desejava desenvolver uma obra
que partisse de algo que pulsasse muito forte em mim, de algo que pudesse chamar de “vida”.
Ao ter abandonado minha terra natal para navegar por outras paragens, deixei para trás
um “bem” que se me tornou precioso, um bem natural meu e de todos, o mar.
Sempre que retornava por aquela “minha terra” sentindo-me dono e estrangeiro
naquele que chamei de lar por dezessete anos, estabelecia aquela misteriosa, curiosa e
meditativa relação com as águas salgadas de oceano. Não houvesse uma vez que retornasse
que não fosse de pronto contemplar, conversar, admirar e banhar-me no mar da Praia do
Futuro, nem que fosse mesmo apenas purificar o espírito, deixando-se molhar as raízes dos
pés.
Paralelamente ao longo dos anos na faculdade, essa minha nova morada de domingos
a domingos a fio me acolhia como estrangeiro, sentia-me eu estrangeiro neste lar já de cinco
invernos. Um impasse de “entre” do viajante, do nômade, que ora falava o antropólogo (Marc
Augé).
Queria eu aqui expressar algo meu, mar, nessa dança fluida, repetitiva, mas nunca
igual, dança de ondas que desequilibra-nos e confere-nos eixo por instantes de segundos. Esse
desejo depositou-se em barco naufragado no fundo do mar durante quatro anos, para agora
emergir do fundo com seus desejos e lembranças adormecidos.
Somos incitados no ambiente acadêmico com a pergunta “qual a sua pesquisa
pessoal?”. Pois é assim também que mais ou menos no mesmo período vou descobrindo e
investigando a arte da performance. Sob a pulsação dessas duas provocações ao longo dos
anos, refinei minhas vontades artísticas em alguns elementos para pensar este projeto do qual
agora vos falo: mar, repetição, ação, simplicidade, duração.
Via no mar a possibilidade de uma dança das ondas, uma dança produzida pela força
física externa do ambiente sobre o corpo. Mas as circunstâncias apresentadas pelo ambiente,
São Paulo, e a manutenção de ensaios semanais regulares, me exigia trabalhar não no mar
físico como meio, mas no mar metafórico, numa água revolta e ao mesmo tempo contida em
recipiente artificial: aquário, galão, piscina. É assim que nosso projeto-sonho sofreria a
primeira adaptação: sair de um bem natural patrimônio público da humanidade, o mar, para
recorrer a uma instituição pública, o complexo de piscinas do CEPEUSP.
Já realizando os ensaios no CEPEUSP, bem no início do processo em 27.03.12, às
13h, colhemos breves impressões dos usuários e salva-vidas:
157
A performer com sua fonte sonora locomovia-se com a coluna e os braços para frente
e para trás. Ao que ao longe ouvimos: “Olha João, João, João! O que é isso?”
O que nos faz pensar: Qual a força de relação intersubjetiva de um corpo que se move
em energia extra-cotidiana, ou mimética?/ Da curiosidade vai para que plano perceptivo?
L-O que está acontecendo ali?
“A”- Alguém muito corajosa que não liga para o que os outros estão pensando, age,
dança e só.
A princípio o que me chamou atenção foi achar sob efeito de que drogas ela estava
para se expor assim. Mas na verdade é bem interessante e dá vontade de ficar olhando.
É difícil entrar no universo do outro, o fone de ouvido é uma barreira. Eu quis entrar,
mas ela parecia estar sozinha, não senti abertura.
“B”- Acho bem interessante. É um projeto? É lindo de ver. Dá vontade de ir lá e
dançar com ela. Os movimentos me chamam. É uma coreografia específica?
L- Não, é uma fonte sonora não específica e ela realiza uma dança pessoal.
“B”- É lindo. Se eu for ficar no Brasil te aviso.
Depois de alguns minutos “A” retorna e pergunta mais sobre o projeto. Se é um estudo
de psicologia, ao qual explico que é um projeto de dança aberto a participações. Ele se
interessa e cogita participar.
“C”- salva-vidas- diz que a performer está mais fluida, mais desenvolta em
comparação a ensaios anteriores.
“C”- Era engraçado ver muita gente olhando para ela. Ela dançando, bonita, com
certeza vão olhar. Eu sou da bio-dança, eu piro vendo estas coisas. Percebo que ela já está
com mais propriedade, bem mais solta. Percebo pois fiz natação, skate, fazia balé obrigada
durante cinco anos, fiz bio-dança e me calhou como uma terapia por trabalhar com
ancestralidade, energia, desestressa. A água também tem esse poder, dançar na água deve ser
uma delícia.
Como também um breve relato das dinâmicas espaciais:
-Qual a dinâmica recorrente no dia-a-dia do espaço?
Em plena quarta-feira às 13h, 29.03.12, ocorrem aulas de hidroginástica ao som de um
gostoso jazz; aulas de natação para iniciantes nas piscinas menores, nadadores independentes
no seu próprio treino, nadadores atletas em treinos mais rigorosos nas piscinas de 50m.
Crianças das mais diversas idades (0-100 anos) divertindo-se nos trampolins. Salva-vidas que
conversam descontraidamente, difíceis aos olhos, e menos de meia dúzia de estudantes que
158
aproveitam o sol paulista para pegar um estudo-bronzeado ou um bronze estudado, de quando
em vez hidratando-se, nadando algumas voltas na piscina.
Já na vivência que realizamos na praia Barra do Una, no litoral norte de São Paulo, em
05.04.12, mesmo dia em que realizamos a visita à reserva indígena Rio Silveiras, destacamos
os seguintes registros59:
Presenças físicas são a alteração da paisagem, a presentificação do espaço para as
pessoas que observam, ali passam pássaros e helicópteros e lanchas ou pequenos barcos.
O vai e vem das ondas, o barulho da serra elétrica, da cidade atrás não nos deixa
esquecer que os índios (recém visitados na reserva indígena Rio Silveiras) já vestem roupa
industrializada, pintam as penas de neon e falam português.
A pergunta é para quem fazemos? O que muda? Você simula a ação a partir da
observação? Performar X Viver? “Vocês estão fazendo um teatro, algo especial?”
Ir no fluxo de energia: como dar vazão ao objetivo, mas com controle? Trabalhar com
o máximo de energia e o mínimo de movimento. Contenção. Buscar o controle micro-
perceptivo do próprio corpo. Cuidar dessas experiências vividas até agora. Desacelerar a vida,
até o ponto de repensá-la, de entrar em crise. Dar tempo para as coisas “aconte-serem” (termo
de Luiz Paëtow). Dilatação do movimento, paisagem, câmera lenta. Como o silêncio pesa
também.
Surfistas sentaram e observaram o dia todo as vivências que realizamos na praia. Ao
final, o depoimento de um deles:
“Legal, bem interessante o que vocês faziam, vocês cultuam o quê? Eu achei bem
interessante. A curiosidade mata o homem, aquilo nos prendia. Eles estão meditando,
relaxando a mente. Fiquei lá procurando o sentido. Quem sabe a gente não adota? Ele era o
“capitão da embarcação” e vocês “tripulantes”. A lentidão, a sutileza dos movimentos,
desperta muito a nossa atenção, é uma apresentação? Quando vocês apresentam? Parecia um
pai de santo e os outros seguindo, não é religião, é teatro. O ponto zen, o ponto zero, a paz.”
Depoimento de um dos performers:
Thais- Eu renasci após o enterro e a caminhada de uma hora. E é muito interessante
trabalhar outras formas de percepção adormecidas, mínimas, eu realmente fui capaz de ver
com os ouvidos as ondas caminhando da esquerda para a direita.
Compartilhamos aqui também depoimentos do primeiro “passadão” público já em fase
mais avançada do trabalho em 17.06.12:
59Os exercícios desta vivência foram descritos em dos procedimentos utilizados: vivências.
159
“D”- Me trazia a loucura da cidade nos corpos, a dificuldade diária de São Paulo.
Olhares perdidos, vazios. Muitas sacadas simbólicas, abre o campo subjetivo, cada elemento
abre para significados muito fortes. É impressionante como apesar de serem bexigas pesavam,
eram um fardo. A energia que despendiam nadando era dicotômica em meio à fluidez da
água, de uma brutalidade! Ver absurdos como uma barraca na piscina, 8 pulos do alto de 10
metros, cartas escritas com sangue, vícios de comer, beber, fumar, as garrafas com diferentes
materiais dentro (lembranças, saudades, cheias de memória), ficava tentando desvendar os
sentidos dos símbolos, cada elemento me levava a outro, queria descobrir todos, o que
estavam sentindo e o que deveriam estar sentindo. Vou, ou não vou nessa dança? Parecia uma
despedida da terra, revelava uma grande intimidade com a água.
Reflexão feita sobre minha observação imersiva enquanto diretor sobre o trabalho e
os desafios corporais com os quais os performers se deparavam em 08.07.12:
A exploração do mínimo e do simples em MoAciR através de ações e ritmos
cotidianos, tendo usado como procedimento a dança pessoal para aflorar, acordar este corpo
urbano que carrega seus próprios ritmos e repertórios corporais fica cada vez mais difícil de
ser explorado com a transposição do meio gasoso, com sua gravidade atmosférica para o meio
aquoso e sua atmosfera própria submetida ao efeito de empuxo, e também da transposição de
movimentos para este meio.
O que se observa é que os performers encontram limitações para manter o desenho
destes mesmos movimentos e buscam alternativas corporais que se adéquem a nova sensação
corpórea de gravidade e densidade trabalhando sobre flutuar, afundar, tornar visíveis ou
invisíveis determinadas partes do corpo dependendo da exploração tridimensional do corpo
no meio aquoso que reflete, refrata, portanto redimensionando e dando novas noções de
corporeidade tanto para quem vê quanto para quem age.
O tempo com certeza é afetado neste novo jogo do corpo no espaço. As ações
passíveis de transposição e adaptação do fora (ar) para dentro (água) encontram uma nova
barreira de densidade a vencer, com uma fluidez afetada concretamente, e não pela
estipulação de um ritmo completamente voluntário, mas determinado em parte pela água,
como ela permite mover, num tempo dilatado. Pois considerando a grande quantidade de
horas a que os performers são submetidos a este treino e suas descobertas, quanto mais
energia dispersam, lançam para o espaço, no caso da água menos se deslocam, menos se
movem e mais rápido se cansam ou sentem os efeitos do “peso” da água sobre seus corpos
cotidianos adaptados para lidar com mais “conforto” ao “peso do ar”, à gravidade
atmosférica.
160
Helena Bastos nossa orientadora do trabalho de conclusão de curso na graduação
parece nos apontar em sua tese algumas pistas do que seria para nós, neste processo
específico, o objetivo a ser trabalhado com o procedimento de dança pessoal, a qual
utilizamos enquanto método de apropriação - inscrição e escritura corporal no espaço:
“[...]formas novas que brotam do corpo, que não se apoiam na música, brotam do silêncio. ‘...desmoldar-me e fazer sentir meu corpo em um mundo de imagens novas. Comecei a mergulhar, a escavar no mundo do silêncio posto que pela primeira vez surgiam em mim formas sem som que me davam a impressão, porque não se apoiavam na música, de serem danças novas. Essas danças no silêncio foram pontes de comunicação que me ajudaram, anos mais tarde, a encontrar-me através do espaço com o surdo.’”(BASTOS, 2006, p. 49) “existem outras possibilidades de acordos que dependem da disponibilidade do artista-criador em querer inventar, isto é, organizar no corpo uma dança diferente daquelas apoiadas em modelos conhecidos[...] Uma das possibilidades de construção no mundo em que atuamos é a da criação de regras e modelos para estabelecermos diálogos com outros e vice-versa. Com esses acordos movimentamos e modificamos o mundo. O desafio é aprender a lidar com esses acordos sem nos tornarmos prisioneiros deles. Nestas relações “diferentes” surgem possibilidades de acontecimentos enquanto novidades no corpo. Neste caso, o corpo é obrigado a inventar outros acordos. A cada novo acordo, o corpo é obrigado a interagir com outros conhecimentos. Consequentemente, toda essa ação produzirá outras relações de conhecimento com o mundo que o cerca. Cada corpo, do seu jeito, abriga uma maneira de pensar, de organizar, de se relacionar com o mundo que no tempo, de acordo com suas experiências, vai modificando e especializando o próprio corpo. Vão sendo estabelecidos novos acordos a partir da experiência. Na verdade, é tanto do ambiente do corpo para o ambiente em que o corpo está envolvido, como vice-versa.” (BASTOS, 2006, p. 50) “Um aspecto fundamental no treinamento deste interprete-criador é intervenções no próprio corpo. Este artista precisa penetrar no próprio corpo para conhecer. Neste caso, conhecer é criar, isto é, dar existência ao que não existia antes. [...] No espaço, o corpo apontará possibilidades de diferentes construções. [...] este intérprete deverá aguçar uma escuta corporal em relação a diferentes focos na linguagem de movimentos. Estes focos são ocorrências que dependem da execução e entendimento do intérprete de acordo com o projeto poético do coreógrafo.” (BASTOS, 2006, p. 82)60
Em MoAciR: Filhos da Dor o laboratório de dois meses e meio que realizamos com
uma dieta baseada apenas na ingestão de mel e água (a posteriori acrescentando barrinhas de
proteína) e as condições climáticas de frio ao longo do processo faziam os performers re-
conhecerem os limites do corpo: indisposição, cansaço físico, músculos não respondem,
câimbra, agressividade, desânimo, persistência, ultrapassar este limite, desenvoltura física e
adaptação. Os focos estabelecidos na exploração de movimentos eram: dilatação do tempo,
precisão, repetição, sendo favorável para a investigação que o movimento fosse mais simples,
mas preciso.
60 Grifo nosso
161
Música em Moacir:
No MoAciR a música está desligada dos performers, eles têm uma música interna, a
trilha só viria no dia da apresentação. Para mim enquanto diretor encarei como um grande
risco, mas tomei como desafio que contribuía para a investigação de ações performáticas as
quais se relacionavam mais diretamente com o espaço e não com a música como fator
determinante da criação e do ritmo.
Trabalho sob o silêncio, pouca comunicação, para mim o choque, o debate se dá em
ação.
27.07.12
A “simples execução” (automação) de ações criadas (autonomia) os torna robores que
se deslocam de lá para cá. É preciso criar relações com essas ações criadas, e-moções. Fabular
sobre, imaginar histórias que movem, que fazem mover. A intenção, o propósito da ação.
31.07.12
Falta ao MoAciR evidenciar imagens da crise do Moacir, este nômade global, falido
europeu que retorna ao Brasil-Eldorado.
Vanderson apontou maior apropriação sobre 1a parte do processo/espetáculo que
envolvia: 0., Prólogo, Amor, Doença, Abandono (partes oriundas de vivências, proposições
de movimentos advindos da direção, improvisação, trabalhos pensados ou respostas cênicas).
Já Guerra, Água, Água-viva, Índio-urbano, Moral foram oriundas de bateria de respostas
cênicas + proposição de movimentos.
Por outro lado eles foram afinando sua percepção espacial, relação do corpo com o
ambiente, inscrição e escritura corporal no espaço, e libertando mais o corpo para um
deslocamento “dançado” no espaço na 2a bateria de respostas cênicas, obedecendo a
diferentes cadências rítmicas, a partir de uma seleção mais consciente de ações e gestos.
A condução do trabalho em MoAciR direcionando para estudar o performer da dança
pessoal para as ações simples gerou ações, movimentos, gestos em que o desenho do corpo
ou do deslocamento em repetição é a tradução formal do signo a que se quer fazer
referência, a ação aqui vira símbolo.
Através de um processo de criar e viver a ação criada a partir de uma visão de
mundo pessoal e particular. Executar as ações criadas significa tornar vivos os signos,
valores, ideias e posicionamentos a cada vez através de um pensamento do corpo. Que
ora parte da mente para o corpo através das “respostas cênicas” ou “trabalhos pensados” (da
ideia para o corpo), ora parte da dança pessoal em que a ação que brota da relação do corpo-
som-espaço é que são determinantes neste procedimento de criação.
162
Já pensando nas ações simples e mínimos gestos para as performances em espaços
públicos estas obedecem a um programa, uma concepção, uma conjunção pré-determinada de
elementos e ações a serem vividos, experienciados no momento do evento.
Nestes programas/proposições cabe a repetição: tanto por sua duração quanto por sua
ocorrência em novo espaço sendo esta nova relação e a própria repetição determinantes para
novas descobertas e percepções.
As ações simples e mínimos gestos em MoAciR portanto não se tratam da eleição de
apenas uma ação ou gesto com longa duração e relação vívida de presença e troca (como em
todos os outros experimentos apresentados neste trabalho), mas de um desafio diferente, do
encadeamento de várias ações e gestos simples a partir de uma seleção e polimento dos
mesmos para geração de um espetáculo performático.
Exemplos de ações simples e mínimos gestos presentes no espetáculo:
Correr, pular, desvestir-se lentamente durante oito minutos, deitar, abraçar uma mala,
parar, observar a paisagem, andar lentamente, ligar o chuveiro, prender os pulsos do outro com
um cadeado, esvaziar quatro galões de 20 litros de água, ser enterrado numa mala, rodear a
piscina pela borda carregando um elástico de 30 metros que parte do centro da piscina,
mergulhar, distribuir garrafas pet com presentes, deslocar-se deitado por sobre a raia, bater
pernas apoiando-se em uma das diagonais da piscina, espalhar água, colocar um cadeado no
chuveiro, derramar sangue, assobiar, pisar forte com o pé direito no chão repetidas vezes,
socar, girar, apontar espelho em direção ao público, parar.
Dividimos com o leitor uma tabela que explicita as fases de construção do processo
como um todo.
163
Tabela descritiva das fases de trabalho em MoAciR: Filhos da Dor:
1ª fase Contato com a obra Iracema:
Leitura e improvisação.
Colher ações, movimentos e gestos referentes ao universo
despertado pelo livro através de improvisos guiados por leitura
em voz alta. Levantamento e identificação de questões atuais a
partir de exercícios de escrita em fluxo, discussões e debates
sobre questões presentes no livro.
2ª fase
(concomitante a 1ª)
Contato com referências externas
(leituras, filmes, vídeos, imagens)
que deem suporte as questões
levantadas
Aprofundamento do debate sobre as questões e afunilamento
dos conceitos a serem trabalhados
3ª fase
Vivências externas (experiências
fora do CEPEUSP - local habitual
de ensaio)
Proporcionar aos atuantes envolvidos experiências marcantes
para o desenvolvimento corporal e cognitivo em dança, só
possiveis em ambientes externos ao local de ensaio, e que
agreguem artisticamente (em ideias criativas e construção
corporal) ao trabalho de construção do espetáculo
fase contínua
Treinos físicos específicos para
ambiente aquático (natação, pólo
aquático, deep running, saltos em
trampolim)
Desenvolver familiaridade com o meio aquático e resistência
corporal em relação a duração, a temperatura e ao gasto
energético dentro da água
fase contínua Desenvolvimento de dança pessoal
como procedimento de trabalho
A partir de fonte sonora individual os atuantes desenvolverão
uma relação de frequente descoberta e familiaridade com seus
corpos e suas capacidades sensorio-motoras ao longo dos
ensaios
4ª fase
Respostas cênicas: perguntas
disparadoras e frases-estímulo são
lançadas para que os atuantes
respondam cenicamente,
elaborando e compartilhando cenas
pensando em todos os detalhes:
ações, espaço, duração, objetos, luz,
som, cenário, figurino
Colher ações, movimentos e gestos referentes ao que foi
instigado por cada uma das perguntas dos diferentes atuantes,
reconhecendo os dados previamente citados como duração,
objetos e etc.
5ª fase Início de edição do material criativo
Testes de roteiros cênicos propostos pela direção a partir de
organização de todo material de criação levantado até esta fase
do processo
6ª fase Definição do roteiro do espetáculo Edição e definição do roteiro do espetáculo com as ações
escolhidas, organizadas em partes ou atos.
7ª fase Ensaio do roteiro do espetáculo Dedicação dos ensaios para experimentar praticamente o roteiro
inteiro sucessivas vezes
164
8ª fase Lapidação das partes ou atos
A partir de ensaios individuais dedicados a cada uma das partes
ou atos aperfeiçoar sua realização de modo a definir formato e
duração de cada um deles.
9ª fase "Passadão"
Ganhar ritmo e confiança sobre o trabalho desenvolvido até
aqui, a partir do treino constante do espetáculo ao longo dos
ensaios dedicados a esta fase
10 fase Apresentações, oficinas e debates
Trocar experiências e impressões afetivas, perceptivas e
intelectuais com o público a partir do processo vivido pelos
atuantes, como forma de aprofundar através do diálogo as
questões que lançamos a nós mesmos e a sociedade para
reflexão.
fase de produção Fase de produção do espetáculo Conseguir todos os materiais necessários para a realização plena
dos objetivos propostos pelo espetáculo.
A realização deste experimento ao longo do ano de 2012 teve um forte caráter
interventivo no espaço e cumpriu-se com o objetivo mor da pesquisa de admitir o espaço
público como próprio espaço de ensaio/ação, que o ensaio em si já se constitui como evento
artístico interventivo e com poder transformador de todos os envolvidos: performers, diretor,
usuários, funcionários, professores e visitantes. Essas micro-transformações se fazem sentir
ao longo do tempo: dias, semanas, meses, anos nas relações e consequentes descobertas que
essas fricções entre realidades causam, com a arte propondo novas maneiras de se enxergar o
cotidiano. Em MoAciR a dor, o esforço físico, a determinação e o excesso vivido pelos corpos
e símbolos com os quais os corpos dos performers jogavam em fluxo contínuo ocupando todo
o complexo aquático é que mediavam a experiência de relações intersubjetivas com o público
ora de usuários e funcionários durante o dia, ora de cidadãos comuns que vinham
especificamente para assistir o espetáculo a noite.
Para mais detalhes sobre o processo do Experimento III colocamos em anexo
entrevistas realizadas com os atores, fotos do espetáculo e enquetes respondidas pelo público.
165
2.3.4 Outros experimentos práticos sobre o mínimo gesto e a ação simples em espaços públicos
Aqui nos dedicamos a registrar todos os outros experimentos que fundamentaram a
investigação desta pesquisa acerca do mínimo gesto e da ação simples como possibilidades de
atuação artística no espaço público. Experimentos paralelos aos três experimentos previstos
pela pesquisa (categorizados a partir dos diferentes caracteres públicos de seus espaços).
Cada experimento segue com um descritivo de título, quantidade de performers,
materiais, duração, ação simples, mínimo gesto, lugar e questão motivadora da ação.
166
Tese X Antítese: Contra(d)ição
Materiais: Duas dissertações uma intitulada Tese, outra Antítese. Banana. Cesto de
lixo. Projeção de palestrante proferindo para uma sala vazia.
Áudio: debate de especialistas em mesa redonda da V ABRACE na USP acerca da
arte da performance.
Duração:15 minutos.
Ação simples: Ajoelhado diante dos objetos, comer em sucessão uma a uma as folhas
da Tese e da Antítese, em alternância com a banana. Eventualmente cuspir ou vomitar o
indigesto.
Lugar: sala de aula do departamento de Artes Cênicas da USP
Questão: Ensino na Universidade, acúmulo e formatação de conhecimento como
sinônimo de sucesso financeiro profissional.
167
Capitão Walter Arnold
Três performers
Materiais: Papel. Lápis de cor.
Duração: 30 minutos.
Ação simples: ler texto de Gertrude Stein em voz alta sucessivas vezes numa das três
velocidades possíveis: extremamente lento, extremamente rápido ou regular. Duração: 15
minutos.
Ação simples do público: escrever em fluxo as ideias suscitadas pela massa sonora
criada pela leitura dos performers. Duração: 15 minutos.
Lugar: Arena abandonada ao lado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
Questão: Discussão acerca do necessário, do supérfluo e da memória.
168
Necessidade X Supérfluo: supercidade, nãoseisefluo
Materiais: Mala. Elástico vermelho. Camiseta verde com escrito Grand Theater.
Garrafa de água. Guarda-chuva. Cesto de lixo
Duração: três horas e 5 minutos
Ações simples: andar com mala atada aos punhos por elástico vermelho, segurando
garrafa de água. Duração: 1:30h. Despir-se até ficar somente de cueca branca. Duração 5min.
Ficar dentro da mala estabelecendo uma relação intersubjetiva através de frases do texto de
Gertrude Stein “Capitão Walter Arnold”. Duração 1:30h.
Mínimo gesto: beber água com a dose da tampinha da garrafa.
Lugar: Área de agências bancárias da USP e Bairro Bom Retiro- São Paulo; Centro
Cultural Dragão do Mar e Praia do Futuro- Fortaleza, Praça Central de Mulungu; Obelisco na
Av. Nove de Julio-Buenos Aires; Restaurante Universitário da UNICAMP- Campinas;
Monumento a Marques de Pombal na Av. Liberdade-Lisboa; Arco do Triunfo na Av. Champs
Elysées- Paris.
Questão: discussão acerca do necessário e do supérfluo, sobrevivência, encontros.
169
170
Poesia Física: Passatempo
Três performers.
Materiais: Bicicleta. Caneta piloto preta. Roupas sociais.
Duração: 3 dias de 2 horas cada.
Ação simples: caminhar em círculos travando relações intersubjetivas através da fala,
acerca do tempo.
Lugar: praça central da UNICAMP- Campinas.
Questão: O que é o tempo? O que nos move? Os performers travava um diálogo com
as pessoas acerca do tempo, cada um por um viés: A fé, o aprisionamento das ideias, a
ciência.
171
T.E.M..P...∞.
Quatro performers
Materiais: Pó compacto. Meias-calças. Argila. Gesso. Duas bacias. 4 penteadeiras. 4
cadeiras. Projetor. Computador. Fones de ouvido. Rádio. 4 refletores. Areia. Garrafa pet. 2
cubos de madeira. Faca. Microfone. Amplificador. Ioiôs. Giz. Lousa. Frases coladas nas
paredes.
Duração: uma sessão de uma hora pela manhã e uma sessão de três horas à noite.
Ação simples: caminhar em círculos; ligar e desligar refletores; falar ao microfone em
diferentes velocidades.
Mínimo gesto: raspar digital do dedo polegar com faca; maquiar-se com pó compacto,
meia-calça, argila e gesso; depositar areia no chão.
Lugar: sala do departamento de Artes Cênicas da UNICAMP.
Questão: Reflexão acerca do tempo linear, circular e espiral.
172
Receita-minuto para um passatempo: Tempo no Espaço/
Minute recipe for a happy-hour: Time in Space.
Materiais: Poema, conto ou música sobre o tempo. Câmera.
Ação simples: proferir texto sobre o tempo
Programa de ação bilíngue, enviado via digital:
Escolha ou escreva um poema em sua língua de origem que fale sobre Tempo.
Às 00:01 do dia 31 de dezembro para 1o de Janeiro de 2011.
Escolha um espaço aberto (de preferência um espaço público com trânsito de
desconhecidos) para recitá-lo.
Grave o acontecimento e envie para mim via anexo de email ou link do youtube
lucasfppaz@gmail.com/ lucasfppaz@hotmail.com.
Confirme sua participação nesse projeto e envie uma cópia de seu poema até 30 de
setembro de 2010.
Você receberá um lembrete do projeto em 30 e 31 de dezembro de 2010.
Grato,
Lucas Paz
173
Minute-Recipe for a Happy Hour Time in Space:
Choose or write a poem, in your own language, about Time
At 00:01 from 31rst of December to 1rst of January of 2011
Choose an open space (by preference a public space with unknown people passing
through) to say that poem.
Record the happenning and send it to me via attachment of email or as a link from
youtube. lucasfppaz@gmail.com/ lucasfppaz@hotmail.com.
Confirm your participation on this project and send a copy of your poem until 30th of
setember 2010
I’ll remind you of the Project on 30th and 31rst of December 2010
With Regards,
Lucas Paz
Duração: indeterminada, gravação na “virada do ano”. Projeto que se estende
mundialmente colhendo vídeos por 10 anos (atualmente no ano 3).
Lugar: qualquer parte do Globo Terrestre.
Questão: Refletir sobre o nosso próprio tempo, o tempo contado através da arte. Uma
construção criativa coletiva a partir das particularidades de expressão criativa de cada
indivíduo (autoria) reunidas numa cápsula do tempo.
174
Enredado en Eldorado
Materiais: Elástico vermelho. Tecidos. Mala. Gravata. Camisetas pretas com moedas,
penduradas em varal. Papéis pendurados em varal com os dizeres “bem de vida”, “bom retiro”
em armeno, coreano, espanhol, português, grego e italiano.
Duração:15 minutos
Ação simples: jogo de desequilíbrio proferindo “enredado en eldorado”, “de todos”,
“para todos”, “ouro negro”, “tecer ouro”
Lugar: Esquina do bairro Bom Retiro- SP onde é “proibido colocar entulho”.
Questão: Trabalho semi-escravo nas oficinas de costura do bairro. Prisão flexível.
175
Decomposição
Materiais: Roupa branca. Cordão de gelos pretos (água, detergente, anilina preta de
bolo, barbante).
Duração: derretimento do gelo. Aproximadamente 2horas.
Ação simples: permanecer dentro do lixo até o derretimento inteiro do gelo.
Lugar: Lixo da Av. Maria Antonia- SP.
Questão: Degradação humana, estado de putrefação das mentes e corpos.
176
177
Les Pigmentés (com grupo Ilotopie)
15 performers
Materiais: tinta apropriada ao corpo
Duração: uma hora.
Ações simples: caminhar, compor imagens corporalmente com o espaço e com os
outros, parar,correr, pular.
Mínimo gesto: fotografar as pessoas bem de perto, olhar nos olhos.
Lugar: Centro de São Paulo, Virada Cultural
Questão: Combate às diversas naturezas de Preconceito social.
178
Cidade-Formigueiro
5 performers
Materiais: Roupas com tons de cinza, verde-musgo, marrom. Balde, Megafone,
máscaras de alginato. Textos sobre a cidade-formigueiro escritos pelos performers. 2 Carros
para guiar público no trajeto. Música: Vazio-Luiz Gayotto, vendas.
Duração: 3 dias de 3 horas cada.
Ações simples: andar, correr, pular, deitar, sentar, compor imagens corporalmente
com o espaço.
Mínimo gesto: Sinalizar direção com as mãos, arremessar máscaras de alginato.
Lugar: Túnel Papa João Paulo II, Vale do Anhangabaú-SP
Questão: O que bastaria para interromper o fluxo de capital, criar uma pane no
formigueiro social em que vivemos?
179
180
PARTICIPAÇÕES EM CONGRESSOS E SIMPÓSIOS
Ao longo da realização desta pesquisa tive a oportunidade de participar de dois
importantes eventos que congregavam trabalhos de pesquisadores em iniciação científica: o
Simpósio Internacional de Iniciação Científica da USP e o Congresso Nacional de Iniciação
Científica. Situações ímpares para conhecer outros projetos em desenvolvimento nas mais
diversas áreas de conhecimento no Brasil e no mundo. Assim expor nossa pesquisa em
ambiente tão frutífero à transdisciplinaridade, como nosso estudo se propõe ao tangenciar
noções da arquitetura e da antropologia, tendo como área central de conhecimento as artes.
Além da chance de tornar pública uma reflexão teórica colhida da pesquisa em curso,
reflexão que se dá em parte na clausura da escrita solitária forjada em ambiente privado (há
quem diga que, apesar de tudo, o pensamento é público)61, compartilhar saberes e pontos de
vista com os colegas e avaliadores nos ajudaram enquanto pesquisador a clarear, a partir da
exposição de pensamentos e argumentos, os pontos essenciais e nevrálgicos daquilo que
buscamos e investigamos, a expandir nossa compreensão a partir do feedback dado e a rever
pontos a serem aprofundados, descartados ou adaptados.
Foi bastante interessante e surpreendente notar no SIICUSP que, apesar de os
trabalhos serem provenientes de áreas distintas como artes cênicas, cinema, artes plásticas e
ciências sociais, eles se interligavam bastante, enfocando cada um diferente vieses, por
questões que agregavam homem, arte e ocupação do espaço arquitetônico público urbano.
Essa sinergia nos faz acreditar que os pesquisadores, dada a convergência de suas questões
lançadas, estão sim atentos e buscando soluções criativas advindas de todas as áreas do
conhecimento aos problemas da realidade que os cerca. Pensando de maneira perspectiva,
interessante mesmo é entrecruzar esses saberes para ampliar as nossas descobertas enquanto
agentes, sujeitos e objetos em sociedade.
Já o CONIC trazia uma gama mais variada de temas, sendo o que unia os trabalhos,
não o tema, e sim a área de conhecimento. Abrir a escuta para temas aparentemente bastante
díspares e daí começar a estabelecer conexões e associações com meu trabalho é o que me
chamava atenção enquanto pesquisador ao participar deste evento.
Nos dois eventos em que participei tomei nota de cada um dos trabalhos apresentados
e pude ao final discutir sob minha perspectiva as pesquisas apresentadas.
61 Cristiane Zuan Esteves em entrevista anexa debatendo sobre “espaço público”
181
Nossa pesquisa foi bem recebida pelos colegas e avaliadores, inclusive no CONIC a
Profa. Doutora Rosa Italica Miglionico se mostrou bastante atenta e sensível às questões
apresentadas, surpreendendo-se com a concatenação em um só trabalho da investigação sobre
diferentes caracteres públicos através da arte, complementando algumas ideias, dados e
reflexões que apresentei e lançando-me desafios.
A participação nos dois eventos foi bem proveitosa para minha trajetória de
pesquisador e ajudou-me a verticalizar num tempo breve de exposição as ideias principais de
meu estudo.
A seguir constam as descrições de cada um do eventos, a transcrição das falas e os
slides utilizados nas apresentações, que acredito enriquecerem e sintetizarem apropriadamente
todo o estudo que viemos realizando nestes sete meses. Como os slides apresentados em
ambos os eventos são bastante similares apresentaremos aqui uma única versão.
182
20o Simpósio Internacional de Iniciação Científica da USP
A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples
PAZ, Lucas F.P.
22-26 de outubro de 2012
FEA-USP
Transcrição de minha fala para 20O SIICUSP
Bem, boa tarde a todos.
Curioso perceber que o trabalho de cada um, apesar de partir para campos diferentes
eu consigo identificar bastante contato entre o que estamos fazendo. Vou até mudar um
pouquinho meu começo. Na verdade eu vejo como a liminaridade está presente em cada um
dos três trabalhos apresentados até então, não é? Perceber que quer seja pela arquitetura, pela
arte se chocando com a arquitetura, esses trabalhos dialogam.
E hoje eu vim falar sobre uma coisa que na verdade não é nenhuma novidade, nem
original, nem nada de novo para ninguém, eu vim falar sobre uma coisa que existe, no meu
entendimento, desde a existência do ser humano, que se caracteriza como algo público, que é
a arte. A qual, pegando pelo radical, seria ou a artesania ou o artifício de transformar, de
entender a realidade.
Eu queria na verdade depois disso trocar impressões sobre essa percepção.
A arte para mim é o que nos separaria de outros seres, é o que nos torna humanos, é a
criação, é a possibilidade de criação, de trocar com as pessoas, uma troca intersubjetiva. E
para o Matteo Bonfitto, em seu livro o “Ator-Compositor” ele dirá que nós temos três formas
de perceber o mundo, de apreender o mundo. Seria pelo intelecto, pelo afecto e pelo percepto.
Essas três formas de apreensão ou expressão do mundo passariam pelo campo da arte. Então
não estaríamos falando só de um raciocínio lógico, mas desse não-dito, desse indizível, que é
aonde a arte transita. Para mim um autor que passa bastante por esse não dito seria o Manoel
de Barros, ele consegue traduzir esse não-dito que a arte toca.
Há esse lugar que o Denis Guénoun no texto “A exibição das palavras” vai falar
especificamente sobre o teatro, mas que eu acredito também que se estende para qualquer
campo da arte, é o fato de ela ser um lugar de debate, de fórum, de discussão, de fomentar
discussão, de se entender, pela troca, pela fricção de pensamentos, portanto ela é pública, ela
tem esse caráter público imbricado. Você faz, você se manifesta, seja numa roda de fogo, num
quadro ou num espetáculo para alguém para uma alteridade, para esse outro que existe.
183
Quer seja da pedra lascada à pedra polida, ao helenismo, à democracia, às dionisíacas,
que eram grandes assembléias públicas para discutir os rumos da cidade, da polis: as pessoas
criticavam, escarniavam, satirizavam o próprio fazer social ali, naquele momento, em
assembleia publica. É dessa maneira que eu vejo também esse poder da arte, e que eu me
pergunto e que esse trabalho se pergunta é: O que é que está acontecendo com a arte e com as
pessoas? Que esta ligação entre arte e cotidiano está cada vez mais, no meu entender, se
distanciando, não é algo cotidiano, é algo que é... que de certa maneira precisa ser... ele não
faz mais tão parte como outrora já fez, parece que tem de ser procurado.
O título do trabalho é “A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto
ou da ação simples”. Qual foi a minha motivação e uma descoberta que eu fiz também ao
entrevistar alguns profissionais? Entrevistei profissionais tanto da área da arquitetura, quanto
da dança, do teatro e da intervenção urbana. E um deles, o Renato Ferracini, me alargou a
compreensão do que seria espaço público. Porque no meu entendimento eu estipulei três
categorias de espaço público a serem analisadas: uma via, um patrimônio público e uma
instituição. E nesta entrevista com ele (o Renato Ferracini é ator do grupo LUME de teatro,
sediado em Campinas), o mesmo me traz essa compreensão do corpo como espaço público.
Se eu penso no espaço diretamente, uma configuração espacial na cidade, ele retorna ao
primeiro do ser humano, ao primeiro da arte, do que gera tudo, que seria o próprio corpo. Isso
me causa até uma balançada, uma confusão no meio da pesquisa. Então que espaço público é
esse que estamos falando?
O que eu pude perceber, e o que me motiva também ao longo da pesquisa é perceber
este distanciamento das pessoas tanto da arte quanto do próprio espaço público. Você bem
citou a Carta de Atenas (no desenvolvimento de sua fala). E aí temos o Walter Benjamin
falando, num coletânea de seus escritos nomeada Passagens, sobre alguns escritos de Le
Corbusier acerca do modernismo francês, como a arquitetura começa a se modificar e essa
noção de estruturação da cidade começa a se modificar. Alargar vias para que as coisas fluam.
Então as vielas e espaços de convívio vão sendo suprimidos para dar espaço a uma dinâmica,
a uma velocidade, a um tráfego constante, a uma segurança nacional, porque aí eles (os
governantes e estruturadores das cidades) começam a se preocupar com os ataques de guerra e
ter um planejamento da cidade (específico para este tipo de ocasião). Então tanto a arte quanto
o espaço público vão sendo suprimidos da nossa vida de alguma maneira. É aquele velho
exemplo que vocês já devem ter ouvido sobre as praças sem bancos, praças que não são mais
habitadas. Não podemos mais... só temos direito a circular no espaço público, e aí aquele
objetivo primeiro da arte que é o de troca intersubjetiva ou que seria o objetivo social (da arte
184
e destes espaços) de troca entre as pessoas, um espaço de debate, um espaço de fricção de
ideias já não acontece mais, porque simplesmente a arquitetura não permite que eles
aconteçam: a gente começa a ver obstáculos, placas, caixas. A arquitetura vai perdendo sua
justificativa primeira que é sócio-espacial, para ganhar um caráter simbólico, de símbolos que
indicam o fluir, o atravessar, o passar.
(A partir deste levantamento) Eu vejo no campo da performance um lugar de tentativa
enquanto artista-pesquisador de que a arte esteja mais presente na vida das pessoas de maneira
mais descompromissada, de uma maneira mais casual, mais cotidiana, que ela esteja ali
acontecendo tanto quanto o trabalho, quanto o fluir, quanto uma atividade que se desempenha
normalmente nesse espaço público. Por que? Porque eu acredito que a arte não está, não
deveria estar limitada aos artistas, ou para os artistas, como vem acontecendo. Ela devia, ela
poderia ser feita por qualquer um em gestos simples ou ações simples.
Neste sentido o Grotowski falará dessa “consciência” do performer que não seria um,
não estaria encarnando um personagem, mas uma pessoa com uma questão que está lançando-
a para outras. Ele coloca a imagem, a metáfora do pássaro que bica e do pássaro que observa,
como você ao mesmo tempo que propõe uma ação, você tem consciência daquela ação, você
consegue se perceber com o entorno e dialogar com esse entorno. Não se valer de um roteiro
que está externo a você e que você simplesmente executa, você é senhor da sua criação
também. Chama-me atenção quando você (ao expor seu trabalho) fala dos documentaristas e
dos documentados que passam a ser documentaristas, como é que você pode se perceber
enquanto agente, enquanto criador. Diferente do teatro que se vale de um roteiro que vem de
fora, de um figurino que vem de fora, de uma ideia que vem de fora e você configura naquele
momento, o Renato Cohen no livro “A Performance como Linguagem”, falará, quando este
termo aparece, a performance no campo artístico, que o artista é justamente este detentor da
criação, tem essa capacidade de ser detentor dos meios de criação, ser o diretor, ser o
dramaturgo, ser o agente de uma ideia, de uma discussão, dessa troca. Onde é que está essa
troca entre as pessoas? Que está sendo suprimida cada vez mais.
Os objetivos da pesquisa como já coloquei para vocês seriam: investigar quais são
esse fatores que influenciam para um distanciamento entre cidadãos e arte no dia-a-dia, por
que isso está tão separado. E para essa investigação desenvolver três ações artístico-
performáticas, buscando essa troca entre o artista e as pessoas nas ruas: No túnel Papa João
Paulo II, uma via pública aqui no Vale do Anhangabaú, que não foi feita para ser vista, foi
feita para passar. Novamente o planejamento urbano que não permite o habitar, o permanecer
você tem que fluir. E ele é escondido, está abaixo da superfície, é essa ideia de ser realmente
185
um entre-lugar, liga pontos, liga capital. O Theatro Mvnicipal como esse patrimônio público
e totem da arte em São Paulo. E aí podemos analisar este seu caráter público, na medida em
que foi um prédio erigido, administrado pela prefeitura, mas erigido sob financiamento
privado, dos barões do café, que precisavam de um espaço na cidade o qual configurasse essa
ópera, essa arte de elite. Inclusive ele fazia parte na época do centro novo, ele dividia o centro
novo do centro velho, e para acessar a região do teatro municipal havia-se de pagar um
pedágio. Realmente desde o início da construção do teatro por Ramos de Azevedo, este já é
um totem separatista. Até hoje, se você me perguntar, estou aqui na cidade há cinco anos, só
fui ao Theatro, e faço teatro, para fins de pesquisa, nunca havia visitado o lugar. E você
realmente percebe o entorno pulsando em arte, essa arte marginal, essa arte de rua que está
presente todo dia, e aquele prédio inteiro, suntuoso, habitado por quem? Também me fez
refletir bastante esta pergunta. Em se tratando de instituição, vocês receberam os folders (da
temporada do espetáculo MoAciR: Filhos da Dor), eu escolhi o CEPEUSP enquanto
instituição publica dentro da própria universidade para o terceiro experimento prático. O qual
seria pensar, se a performance se propõe, no meu caso, a entrar no espaço publico de maneira
não espetacularizada, tentando se chocar com a espetacularização do espaço público, como
seria o contrário? Trazer para dentro da instituição o auge do espetáculo, reunir essas ações
simples e mínimos gestos numa organização que seria sim com fim espetacular. Aqui de
novo, mais uma vez, uma nova forma de ver esse “público”, uma vez que o acesso é restrito a
certos usuários, logo esta liberdade de trânsito também não existe de maneira plena.
Por conseguinte a metodologia para o estudo é: primeiro realizar leituras de materiais
que dessem embasamento para essa investigação empírica, e aí sim, começar a descrever,
analisar e articular os dados colhidos. Para esses dados utilizamos quatro filtros que seriam:
Observação Imersiva- em cada experimento prático, um dia dedicado simplesmente
a habitar aquele lugar, ou a via ou o patrimônio, ou a própria instituição. No caso da
instituição, tivemos um processo de seis meses, de tentar entender quais são esses fluxos, o
que é que se permite, quais são as formas de atuar, de agir nesse espaço. A observação
imersiva que no nosso ponto de vista também recebe outro nome, que seria Inscrição
Corporal no Espaço, muito mais receber daquele lugar.
Autoria- aqui pelo contrário, a partir dessa absorção dos fluxos começar a ver que
possibilidades existem para a arte naquele lugar. Como é que a gente começa a dialogar com
as pessoas, de novo fomentar este lugar de troca, de diálogo, de fricção de ideias de maneira
estetizada, a partir de uma questão lançada.
Silêncio- espaço necessário para que algo aconteça
186
Ação- que estaria de maneira mais simples no campo do fazer, do desenvolver algo, se
envolver com algo.
Valemo-nos de protocolo observacional, de entrevistas, de vídeos das entrevistas e
registro de documentos e material audiovisual (todos das experiências realizadas, das
entrevistas com Renato Ferracini, Marcelo Maia, arquiteto formado aqui pela FAU, Helena
Bastos, professora doutora de dança do Departamento de Artes Cênicas, e com o grupo
chamado OPOVOEMPÉ de intervenção urbana).
Essa rede de significados tanto da parte prática, quanto ouvindo essas opiniões de
pessoas que trabalham nessas diversas áreas, foram nos trazendo conclusões.
Aqui eu trago um pequeno exemplo de um experimento prático que não está contido
na pesquisa, mas que serve a este fim, de exemplo:
Chama-se Decomposição. O performer, no caso eu mesmo, entrava numa lixeira, com
esse cordão de gelos pretos sobre uma roupa branca. A performance durava o tempo do
derretimento desse gelo, era o derreter do gelo no corpo.
Cada um desses experimentos de maneira simbólica abre para um campo, que seria
esse campo de fórum do flash, justamente a gente vive num cotidiano que não permite a
conversa, não permite o diálogo, não permite o convívio, então quando batemos o olho com
algo que serve como ruído naquele lugar, para onde somos direcionados? O quê que cada uma
dessas simbologias nos remetem?
Como resultados, conceituamos os termos mínimo gesto e ação simples; realizamos
esses três experimentos práticos; e mapeamos os trabalhos de um artista que eu acredito que
convergem para essa pesquisa, a saber, o Flávio de Carvalho, pegando um exemplo brasileiro
que tem extensos exemplos do que seria essa ação simples ou esse mínimo gesto que se
desdobra numa longa duração, e como essa repetição pode fazer cada vez mais a gente ir
pensando em diferentes camadas, em diferentes leituras para uma mesma coisa.
As conclusões são:
-de fato a utilização cível legal e estrutural do espaço público sofre fortes alterações
depois da ideia de urbanismo que se estabelece no Modernismo. É super difícil você fazer arte
hoje em dia no espaço público, por mais que tenhamos bastante exemplos legais ou ilegais, é
bastante difícil. Uma coisa que me chamou atenção foi o depoimento de um morador de rua
que falou: “a religião e a arte não tem como a prefeitura proibir”, lá no entorno do Theatro
Mvnicipal, então ele dizia: “eles podem tirar o comércio, mas eles não podem tirar os leitores
de cartas, os cantores de rua, os artistas de rua”, e isso me chamou bastante atenção. Apesar
disso é bastante difícil você propor um ato artístico no meio da rua.
187
Como eu falei no início, do modernismo ao pós-modernismo a arquitetura vai
perdendo esse caráter sócio-espacial para se transformar num sistema de leitura de signos da
superfície. Vemos o que o Guy Debord vai falar sobre essa sociedade do espetáculo, de caixas
que são vistas, mas que escondem, de uma aparência que não é para convívio. Ou a Paola
Berenstein Jacques também falará da ideia de corpografia urbana, de voltar a habitar a cidade
que não permite mais isso, como criamos jogos, ruídos, interferências para voltar a habitar o
espaço público. E para mim, apesar das minhas convicções, ainda fica uma pergunta: o “valor
de troca” da arte é social ou econômico? Embora não precise ser ou um, ou outro. A tentativa
do mínimo aqui seria criar esse pequenos ruídos acreditando que eles sejam essas potências
no meio do excesso que a gente vive. A arte é o que nos confere humanidade diante dos
outros seres. Como através dela podemos voltar a conviver com as outras pessoas.
188
12o Congresso Nacional de Iniciação Científica-SEMESP
A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples
PAZ, Lucas F.P.
30 de novembro e 1o de dezembro de 2012
Universidade São Judas
Transcrição de minha fala para 12o CONIC
“Bem, o CONIC este ano se propõe a falar sobre sustentabilidade. Eu pego o gancho
disso, mas deslocando essa palavra no sentido de: como podemos pensar em sustentabilidade
falando sobre arte? Como a arte se tornar sustentável nas nossas vidas hoje em dia? Como ela
faz parte das nossas vidas hoje em dia? Que usufruto cada um aqui desta sala partilha da arte?
Essa foi minha motivação para este estudo que vou tratar, que se chama “A
performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples”. Tem amparo
da FAPESP, sob orientação de Antônio Araújo, sendo eu estudante da USP.
Minha primeira motivação para este estudo foi perceber de alguma maneira, esta é
uma opinião minha, de que a arte realmente não faria mais tão parte da vida das pessoas de
maneira cotidiana, como outrora poderia ter feito. Se pensamos na História da Arte desde o
período da “pedra lascada”, da “pedra polida”, da democracia grega, temos exemplos de que
as pessoas utilizavam a arte para justamente se reconhecerem enquanto seres humanos, e na
minha opinião ela seria o que nos diferencia dos outros seres, essa questão da criação. Neste
sentido o Matteo Bonfitto falará no livro “O Ator-compositor” a questão de como o ser
humano apreende a realidade ou expressa a realidade, através do percepto, do intelecto e do
afecto. Da maneira que eu entendo então não teria a ver só com um raciocínio lógico da
realidade, uma expressão lógica da realidade, mas algo que sentimos, que poderia estar nesse
campo do invisível e do indizível, mas que não se trata de uma questão metafísica, é algo que
é muito palpável. Assim uma das entrevistas que eu fiz para o estudo, que me chamou
bastante atenção, com o Renato Ferracini, ator do LUME de Teatro, ele dará um exemplo de
outro estudioso chamado Leibniz. Eu o indaguei sobre essas questões do que seria o mínimo
gesto, o que seria a ação simples pensada nessas interferências cotidianas e ele me falou do
mar.
Quando você olha o mar, quando você ouve o barulho do mar, você identifica: mar.
Você sabe que é mar. Só que pensando nessa micropercepção que caminha junto com os
fluxos da cidade, não teríamos só... para produzir esse barulho que chega a nós como mar, nós
189
temos: a água que bate na água, a água que bate no peixe, a água que bate na areia, o vento
que bate na areia, e tudo isso chega para nós como mar. Assim conseguimos ter uma
consciência de todos estes fluxos, mas à primeira vista estaria num plano sensorial em que às
vezes não conseguimos dizer ou identificar.
Este estudo vai investir justamente no mínimo, para como voltamos, transformamos
nossa percepção sobre o cotidiano. De repente algo que é corriqueiro, que está sempre
passageiro, uma pequena ação que pode ser colhida do próprio cotidiano vai revelar para
quem faz parte dele a sua consciência no mundo, como você está se pondo no mundo, e esse
fluxo volta novamente.
Logo seria um estudo qualitativo convergindo para a questão destes fluxos no espaço
público, sobre a utilização do espaço público.
Se a arte, no meu entender, é um espaço de fórum, de debate público, como ocorria, e
hoje para mim não parece ser tão premente, tão partícipe de nossas vidas dessa maneira, um
lugar que a gente discute, troca ideias, se encontra. O espaço público da mesma maneira, na
minha compreensão, tem sido cada vez mais restringido, a experiência tem se restringido.
Como então tratamos essas duas frentes: arte e cotidiano? Para que as pessoas (simplesmente)
se encontrem, como estamos fazendo aqui: trocando pensamentos, refletindo. Parece que o
dia a dia não permite muito isso. Mas, pensando como podemos discutir para além de uma
questão que os urbanistas já fazem, dessa não apropriação do lugar, deste não-lugar, ou do
que gosto de trabalhar também que é pensar na ideia do entre-lugar, seriam vários lugares de
passagem, lugares que servem para ligar pontos, não para a permanência, não para habitar,
são os famosos exemplos que ouvimos também das “praças sem bancos”. Já não
conseguimos mais nem parar.
Tudo isso com a finalidade da troca entre as pessoas, voltar a exercer essa noção do
debater sobre o que se vê, sobre o que se sente.
Este estudo teórico e prático passa primeiro por uma fase de leitura para tentar cercear
alguns destes termos que estão sendo forjados: o que é ação simples, o que mínimo gesto no
espaço público?
E pensando que se vivemos num ritmo tão acelerado que não nos permite parar, não
nos permite ver as coisas, o que poderia estar presente neste cotidiano, que acontece tanto
quanto o trabalho, tanto quanto o metrô? O que poderia estar presente não de forma
simplesmente “contra”, mas de modo a resistir de alguma forma, romper de alguma forma.
Para mim seria através não do espetacular -porém a pesquisa também apresenta suas
190
limitações, viéses na prática com relação a ser ou não ser uma ação artístico-performática
espetacular-, mas do mínimo.
Como o próprio cotidiano nos revela mínimos gestos e ações simples que se
deslocados do contexto nos fazem parar para pensar. Como o mínimo e o simples no campo
da arte podem atravessar essa complexidade, essa extravagância, esse excesso da vida urbana
espetacularizada.
A nossa hipótese seria trabalhar sobre a invisibilidade, a dilatação do tempo, o
silêncio, a sugestão simbólica através do corpo e de elementos utilizados, em um contexto
deslocado. Todas essas estratégias com o fim de pensar: como reincorporamos a cidade, como
voltamos a habitar esses espaço, como voltamos a promover espaços de encontro.
Começa por essa investigação de diferentes formas de caráter público. A parte prática
resolve abordar da seguinte forma: fazer um experimento prático numa via, que seria esse
entre-lugar, ou lugar de passagem, espaço que liga capital, justamente não foi feito para
permanecer, mas visa ligar dinheiro de um ponto a outro da cidade, e se algum acidente
acontece naquele túnel então o “motoboy” não conseguirá chegar com a encomenda do outro
lado, parou momentaneamente esse fluxo da cidade, do dinheiro.
Primeiro, uma via, um patrimônio público e uma instituição pública, seriam esses três
experimentos práticos. Tentando investigar diferentes restrições nestes espaços, diferentes
formas de restringir o espaço público, quer seja por um interesse de fato de uma empresa
privada, ou a privatização do espaço público sem que isso se manifeste de maneira tão clara
através de uma empresa, mas a própria restrição arquitetural que nos obriga a fazer certos
percursos. E o ser humano vai lá e diz: “Não, eu invento a minha realidade à minha maneira”.
Um percurso determina um certo trajeto e o ser humano vai lá e pula ou desvia por uma
diagonal. Está sempre também se reinventando e reinventando a forma de utilizar este espaço
restrito.
Estes lugares, então, foram: O túnel Papa João Paulo II, no Vale do Anhagabaú, o
Theatro Mvnicipal, como esse totem da arte em São Paulo, se ele está vivo ou não está, quem
é que frequenta estes lugares, sempre se perguntando como é que a arte pode fazer cada vez
mais parte da vida das pessoas de maneira menos compromissada e mais casual: estou
passando e tanto quanto o meu horário para o trabalho tem alguma coisa aqui acontecendo
que me faz pensar por alguns instantes ou através desse debate solitário, dessas ilhas que
caminham, ou de repente uma troca com alguém, uma interlocução com o artista que está
propondo aquela ação.
191
Profa. Doutora em arquitetura e urbanismo Rosa Italica Miglionico (avaliadora de sala
do CONIC):
- Eu gostei da questão do CEPEUSP.
- E o CEPEUSP que é o centro esportivo lá da USP que...
- Que é a regra: só entra quem... Não, se você quiser visitar você não consegue.
- É um espaço público que tem um acesso restrito.
Logo cada um deles vai revelar uma limitação diferente. Quer seja pela presença da
guarda municipal, quer seja pela mediação de um ingresso que chega a R$ 100,00. Você tem
uma diferença de um espaço enorme que está sendo visto e fotografado todos os dias (Theatro
Mvnicipal) e logo ali do outro lado da rua tem algumas bandas que sempre formam uma roda.
Então onde é que a arte está pulsando, para quem ela está fazendo parte?
E o CEPEUSP como esta instituição, como você bem frisou, que tem uma restrição de
acesso.
- O público não público, quase um não-lugar.
- Ao mesmo tempo, o argumento deles é, uma briga deles dentro da própria
universidade: as pessoas usam o espaço público com finalidades privadas. Todos aqueles
esportistas também contratam seus serviços e privatizam aqueles espaços por algum
momento. Aí eu me coloco essa provocação também: em que medida eu também não estou
privatizando o espaço em nome da arte quando escolho pegar temporariamente aquele lugar
e...
- Se apropriar dele.
- Me apropriar dele. Resta saber essas aberturas, a que fim viemos. Se é um
exibicionismo, se é uma “mostragem”, ou se de fato acontece uma troca através dessas ações.
Esses dois experimentos, portanto teriam esse caráter mais forte de ação simples e
mínimos gestos com uma longa duração, enquanto o CEPEUSP seriam uma reunião de várias
ações simples e mínimos gestos de maneira espetacular, aí sim tendo a finalidade de criar um
espetáculo, que não está interferindo no cotidiano (sim pelos ensaios porque foi um processo
de seis meses), mas ele visa ao final ter uma temporada, com público gratuito, mas num
horário que é diferente do horário
- Do horário normal
- Isso, do dia-a-dia.
Como metodologia nós utilizamos protocolo observacional, ou seja todos os
experimentos destinavam um dia inteiro para observação: primeiro perceber quais são as
dinâmicas sociais desse lugar, o que acontece ali, quais são as possíveis relações travadas
192
nele, para depois pensar como a arte pode estar presente ali, tanto quanto esses fatores
próprios do lugar.
Entrevistas feitas com um arquiteto, uma profissional da dança, um grupo de
intervenção urbana e teatro, e um ator de teatro: o Renato Ferracini do LUME, o grupo
OPOVOEMPÉ, a Helena Bastos, professora de dança contemporânea e o Marcelo Maia, que
escreveu uma tese chamada “Práticas sensíveis sobre o espaço comum” (só este nome já me
chamou bastante atenção, fiquei bastante curioso).
Perceber essas dinâmicas sociais características de cada lugar e esses diferentes
caracteres públicos, e propor ações que através dessa expressividade sutil se fundem àquele
lugar. Se muitas vezes ela tem um “quê” espetacular nos elementos utilizados, muitas vezes
estes passam despercebidos.
Como resultados preliminares, pois esta é uma pesquisa em andamento até Janeiro de
2013, buscamos conceituar estes termos mínimo gesto e ação simples através da leitura e das
entrevistas feitas (para além de uma compreensão que eu já tenho sobre esses termos),
fizemos as entrevistas e realizamos os três experimentos práticos.
O mapeamento dos artistas ainda está em andamento, que seria pensar em artistas, que
ao meu ver também trabalham sob essa perspectiva do simples e do mínimo. Um exemplo
brasileiro, o Flávio de Carvalho e um exemplo internacional, a Marina Abramovic. Em que
eles escolhem uma ação só com uma longa duração no espaço público e isso permite
diferentes fruições, diferentes leituras, por conseguinte a volta dos encontros entre as pessoas.
Este exemplo não faz parte da pesquisa, mas é um exemplo que posso utilizar
(expondo a performance Decomposição): eu mesmo ficava dentro dessa lixeira, com uma
roupa branca, com um cordão de gelos pretos, e a performance durava o derretimento do gelo.
Era simplesmente habitar aquele lixo durante o derretimento do gelo. Que fruição as pessoas
terão disso? Está pra além da questão que eu me coloco. Acho que o bacana é isso.
Assim eu encerro. Aqui são as fontes consultadas: Augé, Renato Cohen, Galizia com
Os processos Criativos de Robert Wilson, a Paola Berenstein Jacques, que traz uma ideia bem
interessante de como voltar a reabitar o espaço público com a ideia de corpografia urbana:
Como criamos jogos para romper com essa arquitetura que não permite relação? A Evelyn
Furquim que também reúne vários artigos falando do espaço teatral à cidade como palco, e o
Flávio de Carvalho através do Moraes.
- A tua pesquisa é interessante eu gostaria de ver esse resultado na avaliação desses
experimentos. Depois que vocês conseguirem analisar toda essa questão das características,
etc., aí é o experimento, e analisar e filmar a reação exatamente, o que é que acontece...
193
- Com o entorno.
- Com o entorno quando você faz essa interferência. Achei interessante a tua pesquisa,
vai exigir bastante trabalho mental e físico. Ficar principalmente embaixo ali do túnel, o
antigo buraco do Jânio ali no Anhangabaú, que depois eles puseram...
- os corpos de fato, né? E Anhangabaú também é o nome para Vale dos Mortos. Ele
tem uma historicidade que, se hoje em dia ele é um lugar para não permanecer, ali tem muitos
corpos.
- Embaixo passa o rio Anhangabaú. A questão do vale ali era porque choveu, enchia.
Os índios já sabiam isso. Aí veio o branco e o que fez? Aproveitou todo o fundo de vale,
tapou e fez avenida. Por que é que a gente tem enchente em São Paulo?
- Por que é que ali sempre enche
- É só pensar...
“Porque fundo de vale está pronto, você vai lá, canaliza, é só dar uma alisadinha, está
pronto.”
- Interessante também que noutra vez que nós estivemos neste túnel, inclusive Otávio
fez parte desse experimento, um dos performers encontrou um corpo dentro da escada e não
sabíamos nós se tinha vida ou se tinha morte... Aí voltamos para esta questão: Onde é o lugar
de se estar? Ali de repente virou um lugar para alguém.
- Parabéns. Prossiga com fé e vontade.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da naturezas as naturalidades. (...) Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar” (BARROS, 2010, p. 350) “Não preciso do fim para chegar”(BARROS, 2010, p. 348)
Para mim foi curioso observar que o grau de espetacularização dos três experimentos
práticos analisados -apesar de se manter os princípios buscados de simplicidade e
minimalismo e aproximação ao máximo com a vida, com a realização de uma ação ou gesto
sem o intermédio de uma ficção ou de personagens, mas de corpos em ação- revelou-se
crescente do 1o ao 3o experimento. Um dado que a princípio, de acordo com o que
objetivávamos na pesquisa, poderia se afigurar como viés, mas que também pode revelar suas
potências diante de fluxos anestesiados e viciados, em que quase nada mais choca ou
surpreende.
Essa constatação nossa de um aspecto que salta do percurso trilhado nos faz querer
buscar mais e descobrir novas formas de atuação que nos dirijam para a não-espetacularização
associada à possibilidade de gerar experiências e encontros entre pessoas com a arte de
maneira mais próxima e com menos intermediadores, através do simples e do mínimo, tendo
o corpo como signo: objeto significante e significado.
O primeiro experimento realmente aconteceu mais desprovido de elementos ou
trabalhou com elementos mais invisíveis tanto pela dimensão como por estarem mais
inseridos no cotidiano. Investia mais fortemente numa intervenção artística sutil, sorrateira,
invisível, numa ação disruptiva, que diferente dos outros dois experimentos passava mais
“despercebida” enquanto ato espetacular ou considerado artístico. Era sim para ser vista e
sentida, mas fundia-se mais à dita “realidade”, a um evento possível e esperado no espaço em
questão. A ação simples era atravessar o túnel e colar uma cédula no chão e o mínimo gesto
era apertar uma buzina de festa. Este experimento evidenciou a força do capital na
determinação dos fluxos no espaço público, levando a uma desincorporação da cidade.
Já o Experimento II apelava para recursos e elementos visuais fortes, nada cotidianos,
visto que tiveram seu contexto deslocado (o tapete vermelho interno do Theatro ganha as ruas
e o “rei-mendigo” não o pisa, mas está enrolado nele), e com forte estímulo cromático.
201
Contudo que não se mostravam descontextualizados ou incoerentes com o espaço explorado,
reforçavam algo já pertencente ao próprio espaço: a evidenciação do choque entre diferentes
classes sociais gerando desigualdades de acesso a um patrimônio cultural, e esta situação
como microcosmo de uma realidade mais abrangente. Apesar deste dado evidente da força
simbólica dos poucos elementos utilizados, o experimento trabalhava com uma ação bastante
simples que é deitar-se. Este experimento revelou dentre os espaços públicos explorados a
maior multiplicidade de relações e dinâmicas sócio-espaciais num mesmo perímetro urbano.
O Experimento III apresentava desde sua idealização um desafio diferente dos outros
dois experimentos visava realmente promover um choque entre espetacularização e vida.
Como é construir um evento ao longo de sete meses de exploração artística num
espaço público altamente disputado destinado ao esporte, anunciar este evento como
espetáculo com temporada de doze apresentações, com horário determinado de duas horas e
trinta minutos de duração, e a proposição artística é simplesmente viver? Fluir entre uma
sucessão de ações? Simplesmente realizá-las num presente contínuo sem interrupções, de
maneira vívida e real? Como é ser parte integrante da paisagem e não o foco ou o
protagonista, mas mais um elemento partícipe do meio? Este era o desafio dos performers ao
transitar entre ações simples e mínimos gestos, eles eram tanto quanto a música, o tempo, o
pássaro, o vento, o frio, a chuva, um integrante do público, a luz, mais um elemento
compositivo da paisagem real concreta ou imaginada.
A construção e fruição do meio depende de nós e de nossas constantes escolhas,
buscávamos essa radicalidade como desafio neste experimento. O público era convidado a
transitar e participar daquele evento da maneira que lhe aprouvesse como quando transita num
sonho, num parque ou num aquário.
É interessante destacar detalhes como pessoas sentadas na beira da piscina com os pés
dentro d’água, uma moça que assistiu a performance em cima da árvore, outra moça que
subiu junto com a performer ao alto dos 10 metros do trampolim, um cadeirante que assistiu o
espetáculo debaixo d’água, através da visão submersa, crianças que imitavam as ações dos
performers junto com eles, pessoas que cochilavam, pessoas que conversavam sobre outros
assuntos, pessoas que utilizavam os instrumentos sonoros distribuídos ao redor da piscina e
um moço que inclusive resolveu deslocar para a superfície 50 metros de pano vermelho, o
qual compunha o cenário da peça no fundo da piscina.
De alguma forma, apesar das proporções espetaculares que apresentava na grandeza
do espaço, nos recursos de luz e som e nas formas, o experimento parece ter cumprido seu
objetivo de promover ruídos na realidade, chacoalhar as possibilidades de uso e relações
202
estabelecidas em determinado espaço público. O que testemunhamos enquanto pesquisadores
foram esses micro-afetos se dando através de ações simples e pequenas intervenções de todos
que transformavam o espaço e por ele eram transformados. Aqui as ações simples e mínimos
gestos através da característica lúdica da arte e do ser humano em criação foram capazes de
estabelecer relações intersubjetivas e despertar micro-sensações, micro-percepções.
O evento teve a alegria de alcançar de fato seu caráter público sendo acessível a toda
a comunidade rompendo a barreira institucional de apresentar uma identificação para acessar
o CEPEUSP, e contamos com uma grande diversidade de pessoas das mais diversas raças,
sexualidades, idades, etnias, condições sociais e físicas. Contamos com espanhóis, peruanos,
fortalezenses, africanos, cadeirantes, aleijados, mulheres grávidas, idosos, crianças de colo,
homens e mulheres.
Este experimento trouxe à tona, através da instituição pública explorada, esta exemplo
de um macrocosmo da categoria instituição pública, o ápice da restrição e segregação através
de barreiras sociais meritocráticas.
A presente pesquisa possibilitou vivenciarmos a fundo, através dos vários
experimentos práticos realizados, para além dos três experimentos principais estipulados, o
mínimo gesto e a ação simples como linguagem performática bastante potente e adequada a
ser inserida no espaço público.
Tivemos a chance única de expandir nossa compreensão sobre esses termos que
forjamos através do choque de ideias com participantes-atuantes, participantes-observadores e
participantes-entrevistados.
As experiências etnográficas, as vivências, e o contato com o trabalho de importantes
figuras do meio artístico paulista viabilizaram uma rica experiência, em parte intraduzível em
palavras, que só se manifestará como fruto artístico com o maturar de ideias ao longos dos
próximos anos.
Este estudo nos fez constatar que o entrecruzamento de áreas de conhecimento (no
nosso caso a intervenção artística urbana, a performance, a dança, o teatro, a arquitetura, o
urbanismo, a antropologia e a poesia) parece cada vez mais ser uma promissora maneira de
problematizar e encontrar soluções para os conflitos sociais, políticos, culturais e econômicos.
Enfrentados coletivamente.
Apesar de arte vir cada vez mais galgando seu espaço novamente na esfera pública
através de trabalhos de artistas que decidem intervir na cidade e voltam a ter lento
reconhecimento por parte do poder público, a utilização cível legal e estrutural do espaço
público sofreu fortes alterações após a ideia de urbanismo que se estabeleceu com o
203
Modernismo. A arte encontra mais obstáculos para instaurar-se livremente no espaço público.
Do Modernismo ao Pós-Modernismo a arquitetura deixa de ser entendida como disciplina
sócio-espacial e tem seu papel reduzido a um sistema de leitura de signos da superfície
(TSCHUMI,1996,P.140). Abre-se margem para o aparecimento de não-lugares e para a
desincorporação do espaço urbano.
O espaço público apesar de estar urgindo pela incorporação das pessoas, ainda tem
política bastante restritiva de uso. Como a arte pode vir a tornar-se corpo novamente, como o
corpo pode voltar a ter força criativa na esfera pública se os fluxos restritivos do dia-a-dia
nos condicionam cada vez mais a controlar nossas emoções, pensamentos e sensações?
Ainda nos ficam questões que valem contínua reflexão: O atual “valor de troca” da
arte em meio a um ambiente espetacularizado é social ou econômico? Reafirmamos a crença
no mínimo e no simples como potentes respostas da arte capazes de desacelerar a vida,
atravessar a complexidade, a extravagância, a efemeridade e o excesso da vida urbana,
lembrando-nos dia-a-dia da imprescindível parcela de Humanidade envolvida em nossas
trocas intersubjetivas.
Este estudo nos possibilitou uma ampliação de nossos repertório estético criativo.
Pudemos também perceber o caráter provocativo que o simples e o mínimo geram em cada
uma das ações propostas. Observamos que nossa inserção na paisagem pública através de
inscrição e escritura corporal no espaço por intermédio da arte promoveu um desordenamento
momentâneo originando dinâmicas incomuns de percepção e rompendo com convenções e
barreiras físicas e ideológicas. Dessa maneira pôde-se re-imaginar e reinventar a realidade
atribuindo novos usos possíveis aos espaços nesse diálogo entre arte e espaço público. Os
performers envolvidos, confiando na potência de uma arte através do mínimo e do simples,
conectaram-se e trocaram experiências em via de mão dupla com os passantes e o espaço
público, adquirindo ao longo dos experimentos discernimento sobre formas diversas de agir a
depender do caráter público vinculado ao espaço, posto que as leis de uso e atuação variam de
espaço a espaço. Foi possível desenvolver também uma estética relacional de formas
variadas, estabelecendo conexões com as pessoas não só através de uma interação e
interlocução direta, mas também do plano das sensações, de um jogo de associações e
decifração de símbolos.
Antes julgávamos que nossas proposições performáticas não deveriam ser
classificadas dentro da categoria espetáculo. Mas levando em consideração a visão trazida por
PAVIS, 2007, p.141, hoje concluímos que sim. Nossas proposições artístico-performáticas
têm uma escolha estética e um efeito plástico altamente acentuados destinados a um público.
204
São portanto espetáculo. Por mais que corram o risco de passarem despercebidas como mais
uma atração dentre muitas, as quais somos alvos de bombardeio ao cruzar a malha urbana. E
por mais que busquem a aproximação ou a não separação, como diria Artaud, entre arte e
vida, artista e obra.
A adequação do tempo ao cronograma sem dúvida mostrou-se como uma dificuldade,
diante da demanda de investigação que cada experimento ou atividade prescindia e visto que
a quantidade de meses era consideravelmente breve. Gostaríamos de ter tido mais tempo para
desenvolver este objeto de estudo e para continuidade de nossas buscas efervescentes já
estipulamos daqui para frente algumas metas e desafios. Temos o desejo de pesquisar mais a
fundo sobre ação, gesto e minimalismo ao longo da História das artes cênicas: teatro, dança e
performance. Pesquisar mais especificamente sobre o gesto na História da performance.
Mapear mais artistas que acreditamos investir sobre um trabalho pautado no mínimo e no
simples como linguagem no espaço público, por exemplo: Marina Abramovic, Tesching
Hsieh, Bob Wilson, Gertrude Stein, OPOVOEMPÉ, os Situacionistas. Realizar entrevistas
com outros coletivos de intervenção urbana artística e social no Brasil como o Grupo
Empreza, o Curativos Urbanos e o Trio Serviços Gerais. Estruturar um trajeto possível de
exploração corpórea que tenha como vetor encaminhar dos ‘corpos cotidianos’ à
‘performance de ações simples’. E continuar uma pesquisa acerca das leis de uso do espaço
público pela arte através de estudos feitos com advogados e arquitetos, consultando
documentos da prefeitura de São Paulo.
Para finalizar gostaríamos de compartilhar um texto de Eduardo Galeano:
A função da arte Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!
205
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Peças
STEIN, Gertrude. Peças, trad. Luiz Paëtow.
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__________________. Será que vou ou que direi isso, trad. Luiz Fernando Ramos.
Arquivo pessoal.
GUIMARÃES, Júlio Castañon. Gertrude Stein: cinco peças. O Percevejo – Revista
de teatro, crítica e estética do programa de pós-graduação em Teatro da UNIRIO, Rio de
Janeiro, n. 9, p. 239-250, 2000.
Palestras e Eventos
“Expedições, videocriaturas e carinhódromos” com Otavio Donasci (Brasil)-
Universidade de São Paulo, SP-2011.
“Performers brasileiros” com Lúcio Agra (Brasil)-Universidade de São Paulo, SP-
2011.
Entorno do Retorno- Coletiva dividida em instalações, performances e conversas
acerca de “Corpo, Imagem, Texto e Espaço” com Alexandre Veras, Ana Cristina Mendes,
Andréa Bardawil, Beatriz Furtado, Claugeane Costa, Eduardo Jorge, Euzébio Zloccowick,
Flávia Meireles, Felipe Ribeiro e Lucas Coelho- Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e
Produção-Fortaleza, CE-2011.
V Reunião Científica ABRACE-Universidade de São Paulo, SP-2009.
“Que resta da performance?” com Josette Féral (Canadá)-Universidade de São Paulo,
SP-2009.
“Máscaras e Mascaramento social” com Sartori (Itália)-Universidade de São Paulo,
SP-2008.
209
ANEXOS
Observação Imersiva e Protocolo Observacional
Observação Imersiva do Experimento 1: via pública- Túnel Papa João Paulo II Lucas Paz
através de método de Escrita em Fluxo Contínuo de Pensamento:
9:21-10:21h 1a hora ponto fixo (sobre corrimão esquerdo de concreto da escada) Túnel Papa João Paulo II (via escondida de passagem de carros e pedestres do Anhangabaú, centro de SP) 2 ônibus em poucos minutos/fluxo livre de carros, pequenos e breves engarrafamentos. Variações rítmicas entre as faixas de carros Carros pretos brancos, cinzas, vermelhos, poucos de outra cor (azul ou marrom) Trabalhadores da prefeitura vestidos de laranja, escada de acesso ao Vale parcialmente interditada- cones e fita zebrada (sendo re-cimentada) Patrícia sentada no chão emborrachado (calçada destinada aos pedestres, suja, fedorenta, com vala escoadora de água, forte cheiro de esgoto exalando dejetos, mijo e cocô, não chega a ser insuportável). (Túnel) Bem iluminado com leds
cantar de pneus prenúncio de possível acidente escadas em setas
olhar curioso que desce do ônibus ação simples: observar e registrar observação, tempo 8h. Funcionários da prefeitura passam e observam Patrícia como se fossem observar os ônibus, os fluxos, mas rodeiam-na, eles se aproximam por trás dela, a observam e seguem. Porta engancha senhor no ônibus Moça passa por nós e não olha Reconstrução, reparo, manutenção, nova iluminação X mal-cheiro, degradação, escuro arquitetônico Alguém com mala sai do ônibus Desembarques de pessoas nos ônibus, pedestres vindos de fora do túnel (todos para subirem escadas do Vale do Anhangabaú) Homem olhos vermelhos, passos lentos, sobe escadas, olha para trás, coloca óculos escuros
210
Mão nos quartos Funcionários prefeitura luvas amarelas, capacetes verdes, botinas. Do C3 os óculos observam Patrícia. Ônibus azul, vermelho, laranja. Olhares curiosos do ônibus, Patrícia parada chama muita atenção. Primeiros 15 mins. e Patrícia mão no queixo boceja. Pista do meio geralmente para e pessoas nos observam buscando algum sentido. Mas aí a faixa da esquerda parou. A da velocidade. É possível trocar sabe-se lá o que com esses alguns olhares. Um grito abafado pelo som de carros: Ei. Buzina. Conversa cotidiana dos trabalhadores como pano de fundo. Moço na BMW passa e acena para Patrícia (dá tchau simpático, está acompanhado) Uma mulher tira foto do túnel, tira foto da Patrícia Roncos de motor de moto. Turbinas exaustoras parecem estar desligadas, hoje o som do túnel já não parece tão ensurdecedor neste início (se comparado à primeira visita há 2 anos para realização da intervenção Cidade-Formigueiro) Pessoas descem do ônibus, menina cabelos lisos pretos, franja, vestidinho roxo olha. Moço passa, nos olhamos, ele acena com a cabeça Moço mal-dormido vem, olha Patrícia, olha-me e a escada e dá meia volta. 9:48 -buzina... -cantar de pneus -som de fundo constante, um ronco de ar. Ele (funcionário da prefeitura) quer ver o que anotamos, volta com pedaços de madeira para a escada. O outro, instantes depois também. Faróis acesos, faróis desligados. Caminhão, um me observa, outro toma água da garrafa térmica (quanto tempo de jornada já? deles) Ônibus de luzes apagadas. Princesa Isabel Caminhão de papelão da prefeitura. Olhares que olham demorados ou breves, olhares que seguem. Moto olha brevemente e se distrai no trânsito. O que achamos, o que estamos buscando? Uma mão no recorte da janela de vidro, outra mão de trás no ombro do motorista. Outra mão olha as horas. Outra mão alisa o cimento. Outra mão limpa a remela. Eu bocejo. Quadrado da escada, buraco, cova, quarto escuro, sossego. 2a foto de flash que tiram da Patrícia- túnel (agora da janela do teto do carro). Túnel atravessar-se, deixar-se atravessar. Corrijo a postura. Parar 16:30- dar instruções para o dia seguinte. 2o ônibus luzes apagadas. Olhares que buscam de táxis. Barulho alto de madeira Vidro do carro com pano. O ônibus vai, o olhar se vira e busca ficar desvendando essa presença. Qual o seu/nosso contexto. Pessoas num túnel que anotam. Mãos cruzadas para trás que observam. Ela bebe água 10:00h Campanhas de prefeitura. Carros com adesivos personalizados, caixas de som, bandeiras.
211
Olhos que observam (casal) e apontam, como que conversando, criando teorias. Ela engole e passa mãos no cabelo. Carro, moto, ônibus, ônibus de viagem, topic, caminhão, Ela muda a posição de sentada, sobre os joelhos. Uma pergunta a outra Por que? O que será? Com as mãos Performar também é permanência, estar, presença, não necessita um algo a mais a se impor, muito mais a observar, a perceber. Pois é natural da relação intersubjetiva, do ser humano, buscar, atribuir sentido, se relacionar, trocar. Eu levantei o rosto de repente para observar e vi olhares atentos do táxi (6-2 crianças) pularem junto com minha levantada de cabeça. Assobio para distrair, acompanhar, passar o tempo. Buzina, buzina (notas musicais- pã, pin, buzina que emite som de risada), pin, pin, pin, sinaleiras, piscas, pedir passagem Olho (que busca algo para distrair no meio da mesmice)-seguir-pedir para seguir (buzina/sinaleira) “Risada”(buzina que emite som de risada) novamente- ainda preso no túnel depois de vermos tanta fluência, tantos carros passarem?- Intervenção no trânsito, não usual, torna lúdica a relação interjeição de cansaço âââi som de fundo retorna a percepção. Corrente de ar constantemente arrastando cabelos. Bocejo meu, dela. Abre vidro para olhar, só mulheres, comentam. Não dá para ouvir distinguir as conversas diante dos barulhos Ficar parado diante do movimento parece pedir movimento. Correr. Habitar. Ele olhou para ela, para mim, subiu, hesitou, olhar de novo, olhou, eu estava encarando outros, ele achando que fosse ele desviou e seguiu. Som alto do carro. Vidros abertos, vidros fechados. Senhora-ônibus, pressa, gorda, boa forma física, sobe ágil as escadas. Outro que passa e acena. Senhor que observa o serviço sendo feito. Cansada, mexe pezinhos. Ronco bem alto de moto. -Bom dia. Entrou no buraco da escada. Falou com o outro. Negro, cabelo curto, dentes bons, cigarro na mão. -Pra cá caralho! -Sumiu lá dentro. Mundo sub-sub-terrâneo. A veia da veia. O buraco do buraco. Dentro da escada, no túnel. Repente do trabalhador. 2a hora: 2o ponto de vista (10:21-11:21) próximo a entrada do túnel. Sentado (avistando o dentro- de costas para o fora) Ela na outra extremidade em pé. -3 turbinas exaustoras- como canhões, atiradores de mísseis. Concreto, borracha, poeira, folhas, cinza, infiltração, mofo, rastros deixados pela água, teto sanfonado, listras de tinta branca- demarcação de trânsito. Várias bolinhas azuis, textura do cimento no chão
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Buzina/motor/buzina/motor Coluna (vertebral) Será que pensam na figura do estudante estudando em lugar adverso? Alguém gravando-me gravando o trânsito Descompressão do ônibus/caminhão (2 vezes) um alívio, um descanso Ele olha, eu olho, eu desvio, ele desvia Limpo X Sujo. Carro limpo, carro sujo. Rádio alto de carro. Alerta de luz alta Sinfonia de buzinas de motos e caminhão (2) e de carros. Buzina de festa (pensei como intervenção até ela se esgotar, várias) na 25 de Março. Guarda municipal- alguns, 20 mins. atrás. Carro batido, amassado, riscado, arranhado, vidro riscado, fumaça do escapamento. Máscara de respiro Laranja no túnel chama atenção Barulho/ sujeira/chamar atenção (luz, cor, som)/ mal-cheiro/claro x escuro Ronco da moto como alerta sonoro, imposição, estabelecer seu espaço (luz, ou buzina) Máscara, lanterna, buzina, mp3 Lixeiros passaram e riram na caçamba do caminhão de lixo Motor da moto falhando dando estalos altos Propaganda política associada ao facebook (rede social na internet) Carlos Funakipolítica e mercado ferramentas da publicidade, do marketing, lucroentretenimento e a mudança social onde fica? É preciso estar atento e forte. Abrir os olhos Lixo Som alto do rádio Ambulância Ela em pé, sentada, em pé Que noção possível de passagem de tempo é essa? Como se dá? Pelo ritmo dos carros? Pois aqui é como se fosse um tempo em que eventos diferentes ocorrem, mas se repetem, como se o tempo fosse “igual” o tempo todo, não passasse pois perde-se parcialmente a noção das horas, de claro de escuro, pois internamente a veia, via, é de uma cor só. A não ser pelas horas vistas no relógio e as luzes do dia nos fins visíveis do túnel. Um constante fluir, fluir, fluir, que estado de (im)permanência é esse? Nós que permanecemos, é possível permanecer ou divagar, filosofar, como se dá essa imersão? Corporalmente sinto de fato uma variação nos níveis de atenção, permaneço de diferentes formas, habito. O tempo simplesmente passa e esse extra... Caos de buzinas algum não fluir ocorre. Atrapalha-se o fluxo, severa punição sonora público-privada ...já me começa a ser confortável, aceitável, familiar, não incômodo, consigo já em pouco tempo relaxar. Diferente da outra experiência vivida neste mesmo lugar. Tenho uma impressão de ser-me já intimo, cúmplice, familiar deste “entre-lugar”. É preciso distinguir as noções de entre-lugar para meu trabalho e outra noção possível apresentada por Renato (Ferracini) e Patrícia (Bispo) Quantidade interminável de rodas, carros, pessoas. Nesta 2ª hora aparentam mais buzinas, mais próximo do atraso, do compromisso, da hora estipulada ou biológica da fome, do almoço, da pausa, esperada pausa no fluxo, já também bem contada, cronometrada, regulada, sem sesta, sem os seus, sem parar, sem poder parar o fluxo do dinheiro. Nesta segunda hora filosofo mais e observo menos com os olhos, mas com o corpo. Sinto-me meio lesado, anestesiado pelos sons, mas não dói. Mais alguém gravando(me?) o fluxo.
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Outro que aponta. Placas de trânsito (É proibido estacionar/parada de ônibus) japoneses. Observam cautelosos, curiosos, preocupados. -super possível morar na rua. Mesmo ganhando dinheiro. “Meu pedaço de chão” Reboque/Sabesp Fluxo começa a emperrar.11:12 saco de lixo na pista lembrei da capinha de iPhone na pista (trafegando de carro pela Av. Vital Brasil a caminho do experimento avistei uma capinha de iPhone no asfalto). E se tivesse notas de 100 reais na pista? Pararia o fluxo? (fluxo e anti-fluxo, o próprio movedor, o dinheiro, pode ser o que paralisa ou atrapalha o fluxo). Dinheiro na pista 3ª hora escolher fluir constante ou ponto de vista 11:21-12:21 Mais um aceno. (Antes um mendigo próximo onde Patrícia observava no 2º ponto, próximo a saída do túnel) Alguém grita falando comigo Eu do outro lado da pista, na vala, de frente para a entrada do túnel. Dirigindo rápido e falando no celular. Lixo. Som alto funk. Patrícia: fluir constante, buscar que velocidade é essa necessária para fluir constante, observar e anotar.) Vem olhando de longe e ao passar olha nos olhos. Outro desacelera revelando preocupação. Alguém que dorme no carro enquanto alguém dirige. Acena. Buzina: Respostas a “Pra onde você vai?” Que sibilo entre os lábios Tornar-se visto através de um desenho simples, cotidiano do corpo, do olho. Eu no reflexo do carro. Olhou enquanto fechava o vidro. 3 cantadas de pneu. -Pra onde você vai? Olhar para o início e o fim do túnel virando cabeça. Olhar nos olhos dos motoristas com semblante sério, triste - Aonde você quer chegar? Som alto-balada eletrônica -Para onde você vai? -Center Norte. Para São José, quer carona? 3 vezes pergunto, só acena
Preto, Branco, Cinza, Vermelho, Azul, Vermelho, Cinza, Branco 11:49 C, P, P, P, C, P, C, C, P, P, C, C, B, C, C, C, P, C, C, C, P, C, P, C, C, C, C, VERDE, P, C, V, B, B, B, ROXO, P, B, C, V, C, P, B, P, V, V, B, P, P, C, C, AZUL, C, B, P, C, C, B, C, C, AZUL, C, C, C, C, C, C, P, B, C, C, P, P, C, V, B, P, V, C, C, B, P, V, P, B, VERDE, P, C, C, C, P, P, C, A, P, P, C, C, VERDE, C, C, C, P, C, C, P, P, P, C, V, C, P, AZUL, AZUL, P, C, VERDE MUSGO, DOURADO, B, C, AZUL, P, C, P, V, C, C, C, C, B, C, C, C, B, C, C, B, V, C, B, VERDE, P, C, C, C, AZUL, C, P, C, V, B, AZUL, C, B, C, C, C, C, B, P, C, C, P, C, C, C, B, B, B, P, AZUL, P, C, B, B, C, C, P, P, V, C, P, C, B, C, P, B, A, C, A, AZUL, C, B, B, P, P, C, C, C, P, C, C, C, P, C, C, B, B, C COM MEDO DE OLHAR ELE AZUL, C, C, B, C, P, AZUL, C, P, P, VERDE, V, C, B, C, C, V (SOM ALTO), C (SOM ALTO AXÉ), B, P, C, P, C, B, B, B, B, VERDE, C, P, P, C, AZUL, P, P, P, P, AZUL, C, C, P, C, C, B, C, P,
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C, C, C, DOURADO, B, VINHO, P, P, C, P, P, AZUL, C, C, C, P, P, C, C, V, C, P, P, C, C, V, C, P, P, C, C, P, BEGE, C, C, P, P, B, C, P, C, P, AZUL, P, C, C, SOM ALTO RELIGIOSO, B, V, C, C, V, P, P, VERDE MUSGO, C, B, B, C, C, C 12:04-12:18 São Paulo, São Paulo, Jambeiro, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Campinas, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Santos, São Paulo, Belém, Angra dos Reis, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Sorocaba, São Paulo, São Paulo, Florianópolis, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Rio de Janeiro, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Belo Horizonte, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo SOM ALTO RAP Guarulhos, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São José dos Campos, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, sem graça, sorriu, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Recife, São Paulo, São Paulo, Guarulhos, Hortolândia, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São José dos Campos, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Acarei, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, SOM ALTO SERTANEJO, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, DOR (placa de carro), São Bernardo do Campo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Rio de Janeiro, Sorocaba, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Diadema, Maringá, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo está fazendo estatística? São Bernardo do Campo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Itatiba, São Paulo, Diadema, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, São Paulo, Registro, PR- Arapongas, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, São Paulo, Ponte Alto, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, Mogi das Cruzes, Jundiaí, São Paulo, São Paulo, São Paulo, FUN, GOL (PLACAS), São Paulo, São Paulo, São Paulo, Campo Grande-MG, São Paulo, Guarulhos, Mogi das Cruzes, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, One Direction- SOM ALTO (POP), São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Cotia, São Paulo, Rio de Janeiro, São Paulo, Itajaí, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Campinas, São Paulo, São Paulo, com medo estranhamento, Curitiba Vãos no teto e no chão aberturas que revelam outras camadas. 12:21-13:21 4a hora: ele dormindo no vão da escada vejo braço. Outro ele próximo à saída do túnel deitado eu estou gravando, também deitado. Ele me observa desconfiado tenho medo de gravá-lo e sua reação mas continuo, respiração ofegante, cocô, calção, lixo, mosquito, cigarro, isqueiro, sacolas, isqueiro, carteira de cigarro, manta, eu vontade de fazer xixi, leds fortes no rosto, linhas, ângulos, retas, seguir, seguir. Patrícia na metade do percurso não aguenta mais, já não vê mais nada, ultrapassar o limite “tudo” que já observou. Ele se levanta e vem e minha direção, “vai embora” com sua mochila. Capturar mais detalhes. Correria da vida X sensação de perda de tempo. Habitar o vazio, o nada, a imobilidade e o cheiro de cocô. O lixo parado os carros que seguem. Só os carros que seguem o tempo inteiro, paisagem contínua velocidade imóvel quais os limites de cada lugar. Posso me aproximar da casa dele? As minúsculas e pequenas imperfeições na estrutura. “Céu”=Teto Vermelho caixa de força com luz vermelha fios que alimentam leds parede cinza, bege, preto, marrom, amarelo, pixação tinta desencapada, tinta demão antiga, demão nova de tinta.
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Buzina. Sono, anestesia, desligamento, cochilo, dispersão. “Nada” acontece. -Atravessar de um lado para outro. Ou parar no meio da pista. -Limpar varrer o lugar, lavar. -visível, invisível.(pneu no asfalto, buraco no chão, toupeira (expedição, capacete, escavação tesoura) buscar capturar reação das pessoas o que você vê? Qual impacto de sua ação estabelecido no uso, funcionamento do espaço? Em que planos ocorre o estabelecimento de relações intersubjetivas? Há a possibilidade de relação? Efêmero, breve ou longo?
Uma faixa: para onde você vai? Aonde você quer chegar? Cruz ou pássaro? no teto. Jornal, carteira de cigarro, água empoçada, fundir-se ao espaço, sumir. -Os que moram ou ficam aqui a polícia não os tira pois repousam, não atrapalham a ordem, o fluxo, não representam risco. A arte já tem maiores dificuldades de habitar, acontecer, permanecer aqui pois, em algum grau, compromete-se o fluxo, fere-se a ordem, representa risco. 13:09- Pati- limite 4 hrs. Pão, papelão, brinco
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Protocolo Observacional respondido por Otávio Oscar após realizar Observação Imersiva
das ações artístico-performáticas do Experimento 1-Via pública: Ir e vir - Pelo direito
inalienável de parar e Silêncio ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina.
Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as
formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas
neste mesmo espaço?
O túnel é um território de passagem, para uso quase que exclusivo dos automóveis e
ônibus. A relação das pessoas com o espaço, no geral, é apenas olhá-lo e senti-lo (visto que é
praticamente um “buraco escuro” no meio do caminho). Há um ponto de ônibus na calçada do
túnel, o que permite uma pequena e rápida circulação de pedestres. Aparentemente, quem
desce do ônibus não quer ficar muito tempo ali, o ambiente sinaliza hostilidade por ser muito
barulhento, escuro e deserto. No tempo em que ficamos por lá, praticamente ninguém desceu
para esperar algum ônibus naquele ponto.
A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de
mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos?
As duas performances realizadas estavam dentro desses dois conceitos. Eles não se
configuravam ações espetaculares, mas sim sutis, acredito que, no primeiro experimento,
poucas pessoas tenham reparado nas notas de dinheiro no meio da pista e acredito que quase
nenhuma interpretou o ato como artístico. De qualquer forma, em nenhuma das duas houve
um interesse dos transeuntes em “fruir” a ação. Apesar de chamar um pouco de atenção, todos
passavam e apenas dirigiam o olhar no tempo em que seus automóveis ou o seu ritmo de
caminhada permitia.
Nos dois casos, a ação era uma só e se repetia do início ao fim, com poucas alterações.
Essas alterações apenas aconteciam quando algo não planejado ocorria, como quando, no
primeiro experimento, houve um pequeno engarrafamento e o performer foi ameaçado por
alguns motoristas nervosos.
A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por
que aspectos?
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Acho difícil falar em coerência ao se tratar de performance. Eu diria que a proposição
foi mais “controversa” do que “coerente”. Digo isso pois me questiono sobre a “eficiência” da
performance naquele espaço. A maioria das pessoas não observava o gesto como artístico e
não entendia o caráter do acontecimento.
No primeiro momento, o que os motoristas e passageiros viam era apenas uma pessoa
corajosa que ousava atravessar a rua com todo aquele fluxo. Aquilo era perigoso não só para o
performer, mas também para os motoristas, pois atropelar alguém é crime e pode acabar em
prisão. Esse risco para ambos os lados é interessante do ponto de vista da linguagem, mas eu
tive a impressão de que apenas a primeira camada, a mais imediata, era percebida pelo
“público”, logo eles aparentemente encaravam aquilo do ponto de vista do que se entende por
“vida real” e o enquadramento estético da coisa se perdeu. Os únicos espectadores que
poderiam, talvez, ver a ação através de um enquadramento seriam os pedestres, mas esses não
tinham vontade de parar para fruir – o espaço não é convidativo.
Logo, acho controverso que se apresente uma performance que ninguém vai ver, ainda
por cima com tal grau de risco. Mas, ao mesmo tempo, muitas obras performativas de grande
impacto também eram “invisíveis” ao público, e apenas o registro, a lembrança ou o relato
delas é que se dão a ver ao público como arte. Isso questiona bastante o que pode ser
considerado arte ou não e é muito difícil estabelecer critérios para isso – talvez nem se deva.
Por isso, acho controverso.
Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as
pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as)
A sensação de risco era a mais forte de todas as sensações. Isso era interessante, pois
dirigir um automóvel é algo realmente muito violento, principalmente pela possibilidade de
um pedaço gigante de metal atingir um frágil corpo humano em alta velocidade. Isso trazia à
tona a fragilidade do humano perante uma criação própria. É engraçado pensar na idolatria da
máquina em contraposição á sua possibilidade de destruição da vida humana. Mesmo num
objeto aparentemente tão cotidiano e banal quanto um carro.
Outro impacto, bem mais forte eu diria, era a curiosidade. Esta movia os transeuntes
de forma quase visceral. Poucos se continham diante do ímpeto da vontade de olhar para
entender. Isso me faz pensar sobre a necessidade do ser humano de buscar o entendimento
racional, mesmo que seja um entendimento um tanto burro, as pessoas querem pelo menos
seguir confortáveis acreditando que a metrópole é explicável. Mas o próprio fluxo não
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permite esse entendimento, e todos são vitimados por ele. Qualquer motorista que parasse
sofreria consequências violentas, fossem elas materiais ou sonoras.
No caso das notas no asfalto, acho que os motoristas que temiam atropelar o performer
ficavam nervosas e irritadas, não é fácil lidar com a ideia de estar a um passo de acabar com
uma vida humana de forma assim tão crua.
Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo?
A primeira performance tinha um impacto forte no fluxo de automóveis, em muitos
momentos os motoristas tinham que desacelerar ou parar. Houve até pequenos
congestionamentos. A performance como um todo foi muito tensa nesse sentido. Os carros
em fluxo são objetos perigosíssimos. Eu mesmo, observando, fiquei bastante nervoso e não
via a hora de acabar. Até tive mesmo vontade de interromper. Não é fácil lidar com o fato de
que o seu amigo pode morrer ou se machucar na sua frente sem que você tome uma atitude
para reprimir a periculosidade da ação dele.
Entretanto, o performer apresentou uma intimidade grande com o fluxo daquele
trecho, parecia até tecnicamente preparado para a ação (é legal para pensar a questão da
preparação na performance). Isso fazia com que ele, na maior parte do tempo, estivesse
plenamente inserido no fluxo, sem atrapalhar nada. Esse domínio da espacialidade e do
movimento era bem interessante de fruir.
Por outro lado, a segunda performance não interrompia em nada o fluxo, ela era
estática e estava fora de qualquer fluxo. Logo pode-se dizer que estava alheia à ele, apesar de
estar em relação o tempo todo, ela não provocava alterações. Os sinais luminosos e sonoros
emitidos não eram fortes o suficiente para se sobrepor à sobrecarga de estímulo aos quais os
motoristas de São Paulo já estão acostumados.
É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um
“estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer?
Talvez o estado de concentração. No primeiro experimento, concentração para não
errar os “timings” de atravessar a rua e grudar as notas no asfalto. Qualquer erro poderia ser
fatal e isso obviamente altera o corpo, é preciso lutar contra todo o “stress” que o rodeia.
No segundo experimento a concentração era para se manter parado e repetindo as
ações de emitir luz e som. Isso parece fácil, mas acredito que não seja. Em determinado
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momento eu tive que sair pois a poluição do ar e sonora foi muito intensa e eu precisava de
um pouco de ar, sol e menos barulho.
Se a resistência do corpo pode ser encarada como um estado psicofísico alterado,
então ela também esteve presente e pode ser apontada.
Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível?
Pra mim tudo pareceu muito invisível, não do ponto de vista sensorial, mas do ponto
de vista da leitura do acontecimento.
Do ponto de vista sensorial, imediato, a primeira ação era muito visível, até demais:
não é possível para um motorista ignorar o corpo que está na sua frente enquanto ele se
encaminha em alta velocidade em direção a ele, isso é diferente da invisibilidade viável de um
mendigo que apenas está jogado em algum canto, ao qual você pode facilmente desviar.
Já a segunda ação movia apenas a curiosidade e nada mais, parecia mesmo um
mendigo jogado num canto, mas ao mesmo tempo, como não era, gerava curiosidade e atraía
os olhares. Entretanto continuou invisível do ponto de vista estético.
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Observação Imersiva do Experimento 2: Patrimônio Público - Theatro Mvnicipal Lucas Paz
através de método de Escrita em Fluxo Contínuo de Pensamento a partir de diálogos
travados com passantes (primeiro senhor não identificado, sentado às escadas do teatro
municipal, à espera do horário para negociação sobre um imóvel, segundo senhor, morador
de rua, de nome João Alfredo Godry):
11.10.12 Experimento IC A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples 9:36- o primeiro sentado nas escadas já saiu. O outro como eu se entretém com os pombos. O monumento de tapete vermelho já é palco de fotos, o que as paredes guardam? “a ação mora na inação, há ação na inação” imobilidade e o que se leva no papel fotográfico? De repente um amontoado à minha direita de fotógrafos amadores e de “especialistas” (amadores) que atentamente analisam detalhes da estrutura. Dir-se-ia ainda silencioso e calmo. Nublado. Tranquilo. Mas com ruídos buzinas, skates, motos, ônibus. Já conversas sobre o futebol. Moradores da rua. Ele, o teatro, fechado. Fachada, suas escadarias são palco para espera do tempo passar, da vida começar, da conversa corriqueira, de olhos curiosos. Vermelho e bege (cinza): janelas do shopping light, ciclo faixa, tapete vermelho, ônibus, carros, placas, sinal de pedestres, sinal de carro. Luzes do carro da guarda municipal. Camisas vermelhas. Bege: estrutura: prédios no entorno, Casas Bahia, Shopping Light, Itaú, escritórios, Vale do Anhangabaú, fórum. 6hrs. de jornada de trabalho. O movimento se intensifica mais para as 11 hrs. O expediente incia 1h da tarde... (o que são aqueles? com aquelas plaquinhas? São cientistas. Estudaram. Falam do ser humano, dos planetas.) ... artistas de rua começam também pegando a saída do horário do almoço. Antes não por causa dos fiscais da prefeitura. O pessoal para para ouvir o forró e perde o expediente. “Eles aprendem por si só” morador de rua homossexual se olhando no espelho do teatro. Sai falando sozinho, eu o miro e ele corresponde começa a balbuciar em mudo falando comigo querendo me despertar a curiosidade para o que esta falando e segue rebolando. Outro joga papel fora. Mais sentados nas escadas, o que fazem, o que esperam? Quem esperam? Homens-pombos... começa a chuviscar O teatro já abriu, mas fora é onde está o espetáculo. Homens fortes e bravos sustentam a estrutura. De onde vem isso? Sempre assim. Mulheres lindas nas bases das luzes (postes) e nos altos do prédio. Máscaras acima delas do antigo teatro grego com suas bocarras abertas.
Pausa para lanche. Suco desintoxicante (abacaxi, gengibre, limão). Pão de queijo.
2a hora Lado esquerdo do teatro: ponto de ônibus Conversas, fofocas sobre choro e dinheiro e reclamação (as três associadas) Mendigos “estacionados “ “Fantasmas” nas janelas do teatro Pessoas que aparecem para tomar um ar, café
3a hora João Alfredo Godry (habitante do espaço público, morador de rua) Bengala
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Bebendo cachaça Agora com problema da vista (fez gesto de bebida “sem nem perceber”) Restaurador (vitral, móveis), jardineiro da prefeitura Por causa da vista não consegue trabalhar mais
Teatro Municipal, Ramos de Azevedo 1512 Argila Portugal / vitral Alemanha Submerso quatro andares Túnel do Teatro até a prefeitura (carro sai no Anhangabaú) Cinquenta anos, Roberto Carlos saiu pela frente Conversa com Sr. João Alfredo, 60 anos morador de rua Albergue na Barra Funda, (já)15 dias (em) frente ao Municipal, Casas Bahia Cultura e religião eles não podem tirar!!! Tiram os camelôs passarela para pedestres – passarela fechada, muitas mortes, pessoas assassinadas, mesma passarela que (Teatro da) Vertigem usou Os artistas de rua cada um tem direito a duas horas, tocam, vendem seu CD. No Viaduto do Chá: macumba, búzios, cartas Mais arte fora do que dentro acontecendo, pulsando A maior população que temos em São Paulo é rato e barata! Sabiá e bem-te-vi naquela árvore, sabiá canta a noite inteira
Depredação natural vento e mijo Estrutura do teatro argila João Alfredo “seu eu fosse cego eu não te via, se eu fosse surdo eu não te ouvia Canta, canta, meu sabiá Coloco a mão assim, mas é só pra fazer contato, o tato As músicas dos Beatles, Elvis, Creedence são tipo gospel, espiritual
Sobre Jesus: se eu fosse seu pai, jamais eu deixaria machucarem você Quem senta nas escadas do teatro? Estudante lendo jornal, moradores de rua 12:49- fluxo já ficou mais concentrado “Não acredito em nada só no que pode ver e apalpar” Obediente a Deus – a seu consciente e subconsciente Você não consegue chegar perto do sol por que? E sem o sol você não vive Deus ninguém viu e quem viu foi fulminado Eu acredito no subconsciente porque existe a igreja Dinheiro dízimo Cantor/depois pregou a palavra Todo dia é isso dai – nóia pedra (casal brigando) Cachaça direto não posso parar senão dá revertério, falta oxigênio no sangue Mosca de boi – parasita- para ver se tem mais cachaça mais comida. Só encostam não têm ideia pra trocar, não têm ideia nenhuma, só mosca de boi, só falam abobrinha Mas porque condena eles? Eu não gosto que usa drogas, o álcool é liberado a pedra não é liberada. A maconha até que é medicinal. Oito subiram ou desceram AIDS, dois pneumonia, câncer (Vitorino Caminha, Santa Casa, Emilio Ribas) Pessoas me olhando conversando com mendigo.
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Ir na prefeitura pegar licença (subprefeitura Sé) Recife, Bahia e Santa Catarina, gastar meu dinheiro mora na rua 15/30 dias O senhor hoje em dia é sozinho? (trabalhava na construção civil) Filha- 2 netos um homem e uma mulher, indústria de pescado com ele, alumínio (embalagem “marmitex”) Matou os caras que provocaram o acidente (de carro, morreu mulher e filho) Caminhoneiro acidente Chevette- mulher e filho Leonardo Matou um (com arma) e outro paraplégico, condenado 12 anos, ficou 6 meses, 5 balas, 6 balas- caninho curto natal todo mundo me esperando 17 dias internado na UTI mandou filha 17 de novembro para SC 23 de dezembro natal todo mundo me esperando e eu não chego/e eu não chego/e eu não chego. chora, bebe cachaça falei de bobeira aquilo, mas acredito em Deus, mas tenho um anjo da guarda que esse me protege. Eu já vi ele em sonho, mas como eu queria conhecê-lo casal continua brigando ela pisando nele e ele dizendo pisa, pega no pau e mostra a bunda para seu João. É ladrão esse cara. Cláudio Gonçalves de Arouche- escreve aí 13:30- lotado de gente difícil trafegar, todos param para ouví-las, as 3 irmãs forrozeiras. O povo pisa no pé dele, ele fica infernizado, sai filho da puta, sai piranha “oh meu amado porque brigamos...” Uma roda muito grande de pessoas três dançando/ cinco dançando Ele: camisa Brooksfield, casaco de couro preto, calça verde, sapato marrom Muleta – bengala metal, papelão pra se sentar, boné Fluke Óculos da direita sem lente vai operar a vista depois de nove meses de espera no Hospital Monumento Estátua que conta a história Homem sozinho, sempre eu tô por aqui, cê vê como aqui é interessante, cada história 13:46 a chuva interrompeu o show de Daiane e Tatiane Dançando Michael Jackson, o tempo faz o show do artista da rua Guarda Municipal tira as pessoas do teatro, da porta, não pode , só nas escadas. Morador de rua – boca de rango. Eu não, tenho minhas atividades, gosto de andar... Assim que ajeitar minha vista volto a trabalhar Programação dos artistas de rua 13h- 18h acaba Evangélico/Forrozeiras Daiane e Tatiane/Filho de Chitãozinho e Xororó O beijo da moça (ele quer) GCM Guarda Cível Metropolitana Não pode ficar na porta do teatro é órgão público Seu João tentou retratar a fachada Fotografar os dois vitrais da direita Nomes dos vitrais: O beijo do homem aranha O corcunda de Notre-Dame – Ramos de Azevedo é foda O que o senhor imagina acontecendo de arte aqui ? Só motoqueiro, maloqueiro e cachaceiro Poste da Inglaterra deitado na escada Saía a Rainha de Portugal na sacada na lateral do teatro e acenava para o povo Ih tá molhando, vai apagar suas letras
223
Tapete vermelho – desenrola e deita numa das pontas Terminou 14:20 “ih olha o alemão conversando com o mendigo”
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Protocolo Observacional respondido por Felipe Stocco (em entrevista gravada e transcrita)
após realizar observação imersiva (de11h-12h) da ação artístico-performática: Tapete
vermelho-patrimônio de poucos
Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as
formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas
neste mesmo espaço?
Duas coisas muito óbvias: dois movimentos no espaço que um era em frente às Casas
Bahia, que é uma região de mais sombra, de mais lojas, e em frente ao teatro, mesmo. Para
mim tinha uma separação nítida entre o espaço. Mas o que caracteriza muito os dois: a região
como um todo é de passagem, totalmente funcional (ir para empresa, para o banco, para
algum órgão público ao qual eu pretendo usar, ou privado: as lojas, os shoppings). E não é um
espaço de muito diálogo entre as pessoas, as pessoas ficam pouco tempo. É um espaço que
geralmente acontece algumas performances seja pelos moradores de rua, seja por artistas
mesmo, mas as pessoas não ficam muito lá. Elas vão ficar o tempo necessário, um tempo
mínimo, eu acho, para elas sentirem, entenderem o que está acontecendo e irem embora. É
esse o tempo que elas usam. Às vezes pedem explicações, às vezes não.
Em frente ao teatro municipal, trata-se de um espaço mais turístico, as pessoas param,
olham, tiram foto, entram e vão embora.
As relações são meramente de curiosidade, elas não se estabelecem de forma profunda,
não há um contato efetivo entre as pessoas, justamente é um tempo mínimo para entender o
que está acontecendo e ir embora, sem me afetar. Tentar formular o que está acontecendo ali,
entender, olhar, ver o que é, e pronto, ir embora, seguir caminho, isto em relação à ação
performática e de maneira geral com relação a todo o resto, assim como o senhor que estava
cantando Beatles ou qualquer outro evento ali. É o tempo mínimo de entender e voltar para o
serviço, voltar para o espaço-tempo que cada um tem que seguir.
Quanto às formas de utilização do espaço vejo passagem e entretenimento.
Entretenimento pela loja, pelo teatro, pela própria rua histórica e pelas performances que vão
acontecendo. Ademais isso, a passagem dos locais de trabalho.
A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de
mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos?
225
Sim. De ação simples. Penso que é coerente com ação simples, com mínimo gesto não,
pelo que entendo.
Mínimo gesto é algo que quase seria imperceptível para as pessoas. Um mínimo gesto,
não chega a se concretizar enquanto gesto. Como não estudei, não pesquisei, eu tenho uma
sensação do que este termo me causa. Imagino que chega a acontecer só para a pessoa, talvez.
Justamente aquele tempo mínimo que eu fico ali para entender a situação e ir embora, não
importa o tempo do outro.
Já a ação que você estava fazendo se desdobra mais enquanto ação simples. Porque é
uma ação que chega com um entendimento, um vetor que extrapola o mínimo gesto, mas não
chega ser algo que se propõe a ser super-chamativo, que tem uma mensagem sendo passada,
penso que ela fica nessa barreira, por isso ação simples.
Penso que o mínimo gesto estaria mais ligado a uma movimentação interna. Ou talvez
não pois uma movimentação interna pressupõe uma demanda de energia que acho que não
necessariamente estaria aí.
A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que
aspectos?
Penso que não. Penso que há uma tentativa, mas a realização deixa a desejar nesse
sentido. Porque há um aspecto do chamar atenção na vestimenta que você usa e não na ação
que você faz e isso distancia um pouco do espaço, da realidade do espaço, o que torna mais
cênico do que performático, no meu ponto de vista. Mas acho que não se desdobra enquanto
cena, porque você se propõe a ficar na ação simples. Fica algo um pouco descolado, vazio de
significado. Não sei qual era a intenção da performance, não cheguei a vislumbrar sobre isso,
não cheguei a uma conclusão sobre isso. Mas ela estava de fato descolada. Apontava talvez
alguma crítica. Algo que não se desenvolvia enquanto cena, pois ficava na ação simples,
então esse significado não chegava, não transbordava. Ficava na incógnita e parecia que era
isso mesmo. Era só uma imagem.
Por exemplo, acho que faz menção aos moradores de rua, mas não desenvolve essa
questão (enquanto pesquisador acreditamos que nossas ações são gatilhos, fagulhas para a
fruição, não respostas ou discursos fechados, de fato trabalhamos de início com a escolha de
elementos, gestos ou ações que sejam símbolos os quais se abrem em camadas diversas para
cada um para que, através do debate interno ou compartilhado, frua e desenvolva a
proposição interventiva com o repertório que traz, oferecendo-me como troca inclusive uma
226
possível leitura que eu enquanto proponente não havia imaginado, percebido ou visto). Logo
acho que não é coerente com espaço, porque não chega a ser funcional para as pessoas que
estão ali. Ela fica uma imagem, mais um atrativo. Um atrativo que não dá nem catarse, nem
outra coisa. Seria como colocar um outro objeto lá. Porque ela não se desenvolve enquanto
cena, não chega a desenvolver um questionamento. Eu não via um questionamento a ser
aprofundado. Nesse sentido é que acho que fica descolado. As pessoas não conseguem ler
essa aproximação com os moradores de rua, por exemplo, principalmente por causa da
situação cênica em si: um tapete vermelho, você vestido de vermelho, com uma roupa de rei,
acho que fica “chapado’’, a questão fica chapada, não se aprofunda.
Não sei quanto às conversas que você tem, pois durante a ação você conversa com as
pessoas. Eu vislumbro como possibilidade de a questão ser desenvolvida, sem que as pessoas
precisem chegar e pedir uma explicação (natural do ser humano pedir explicação sobre o que
ele não entende em primeira instância, eu não quero estar lá para responder, para passar a
mensagem) ou que você esteja mais aberto a essa explicação. Porque vira uma coisa bem
pontual para algumas pessoas e é um espaço que demanda que você faça para todo mundo.
Então o que fica para todo mundo é justamente a imagem do tapete vermelho e de você
deitado. O que eu acho que dá bastante leitura, mas não desenvolve (no caso eu quero abrir
em leituras, e não desenvolver “A Minha Leitura”, é uma forma de interferir para gerar
trocas intersubjetivas, ouvir), fica apar da funcionalidade do espaço.
Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as
pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as)
Ou as pessoas iam perguntar a você o que estava acontecendo, ou elas passavam,
tiravam uma foto, talvez, no máximo, que é a questão do tempo mínimo que eu fico para me
satisfazer, para encontrar uma resposta, para consumir aquilo de certa forma. É o tempo que
eu levo para consumir e ir embora. Para muitas pessoas: “o cara está ali deitado”, “bonito”,
“fora do comum”. Não é um morador de rua, mas também não está desenvolvendo uma
questão rara. Havia esse entre que não chegava a desenvolver o questionamento: era o tempo
das pessoas consumirem e passarem. Nunca era o tempo de você, da sua proposição chegar.
Sua proposição se limitava a isso as pessoas poderem ir ver e passar, ver e passar. Havia a
possibilidade de entrar e conversar com você, mas eu sinto que não era isso que movimentava
mesmo a coisa. Era mais a questão do consumo. Tiro uma foto ou faço algum comentário e
vou embora. Percebi isso principalmente pelas pessoas que estavam sentadas perto de mim, o
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foco não ficava, eu não percebia uma mudança nelas, pelo que você estava fazendo. Na
relação de consumo eu percebo isso: as pessoas não se alteravam. Eu consumo sem alterar o
que eu vivo, meu cotidiano, o que eu penso das coisas e vou embora. Por algum motivo
consumiam, mas não tornavam aquilo experiência. Não se estabelecia. Acho que faltou
alguma “coisinha” que gerasse: “o que este cara está fazendo?”, “quem é ele?”, “Por que ele
está fazendo isso?” “Por que nesse espaço”. Penso que estes questionamentos não passavam
na cabeça das pessoas, pelo menos das que eu conversei, das que eu percebi.
Fiquei quieto, escrevendo minhas impressões e questões, e deixei eles que estavam
sentados ali próximos falar, essa é a melhor forma de abordar as pessoas. As pessoas que
tinham mais tempo para ficar ali que talvez pudessem ter alguma relação elas sentariam na
escadaria do teatro ao invés de ficar no sol te olhando. Sentei ali e fiquei esperando.
Automaticamente vieram algumas pessoas, sentaram do lado e começaram a comentar sobre o
que estava acontecendo. Tive a oportunidade de chamar a atenção de dois e conversar com
eles, mas muito pouco, o suficiente para deixar eles falarem. Justamente por isso acho que não
teve tanto desenvolvimento porque eles falaram muito pouco, o questionamento era mínimo:
é cena, é teatro. Mas o comentário não se desenvolvia, talvez por não ter essa relação de ação
com as pessoas, de não ter uma reação as pessoas passando. Então não criava embate.
Quando apareceu aquele moço também de vermelho, que entrou com o radinho, passou
o protetor solar em você, ali começou a ter uma situação que gerava um questionamento
maior: “Por que ele?” “Por que ele está fantasiado também”, “quem é ele?” “Será que o que
está deitado é subjugado a ele que está passando por cima, subindo as escadas?”
L- Achei bem interessante que ele resolveu passar por cima de mim e do tapete. O
tapete é feito para isso né? Também um lugar de passagem
F- Para as pessoas comuns, os passantes, estabelecia-se uma região de não passagem.
Era algo muito chamativo, “não tocarei nisso”, era mais um elemento de distanciamento. A
ação poderia ter algum envolvimento que fizesse as pessoas ficarem mais tranquilas para
passar ali.
L- Se aproximar dali. Interessante quando dizes que espera-se que se passe por cima do
tapete, mas ele acabava virando um lugar para não passar mesmo, para ser visto, mas não...
F- Fiquei pensando se sua ação não poderia ser a ação de ficar caminhando também no
tapete. Subir escadas e descer escadas. Pudesse gerar um outro questionamento, um outro
movimento. O tapete estendido e você deitado não dialogava tanto. Fiquei pensando em
possíveis ações que pudessem acontecer ali.
L- Mais alguma?
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F- A mais clara para mim seria de caminhar no tapete. Pois o tapete estava ali como
uma extensão sua, da maneira como estava. Então ninguém ia passar por ele. Como é que
você enquanto propositor faz as pessoas se questionarem, entrarem, vivenciarem algo
diferente (vivenciar por vivenciar algo diferente também não significa que isto as
encaminhará a uma reflexão, vira entretenimento). Coloco aqui uma crítica minha com
relação a performance frente à sociedade: está tudo tão “chapado”, estamos tão acostumados a
ver “visualmente” que passamos pela experiência com “ah já conheço” e vamos embora, nem
vivemos.
L- É mais uma no meio de tantas
F-Qualquer um tem experiências assim praticamente todos os dias, então passa.
L- Algo inusitado ali acontecendo mas...
F- Fico me perguntando em cidades do interior, em outras localidades, levar isso para
outros lugares. São Paulo está socialmente tão marcada por isso. Por isso tem tantos teatros,
performances indo para a periferia. Ainda existe a possibilidade de uma experiência que não
seja já marcada, calejada por essa relação quase displicente, de não afetação, de não se
colocar uma posição, de não defender um ponto de vista. A relação de consumo permite isso:
você não tem que responder pelas suas ações. Posso chegar tirar uma foto ir embora. Então eu
posso estender o tapete vermelho, ficar deitado (há de se fazer uma ressalva: foi solicitada
uma autorização à administração do Theatro Mvnicipal para que essa ação fosse permitida)
e às vezes estou sendo visto não como artista, como alguém que está criticando algo, que tem
um ponto de vista sobre determinada situação social, mas que é isso, mais um aí, fica nesse
lugar. Por isso a relação de passagem, a relação funcional. Que estudo, que tipo de questão eu
quero desenvolver e como eu vou desenvolvê-la? Me levantou bastante questionamento essa
ação, foi super importante ter visto.
L- Com relação à relação estabelecida com o moço mascarado, me chamou atenção em
estar fazendo, o fato de que quando ele passou por sobre mim, me atravessou de uma maneira
que eu senti “Nossa!”. De alguma maneira ele estava lá fazendo parte do “espetáculo”, virou
algo espetacular, de “chamar atenção”, mas para meu corpo foi quase uma agressão de fato,
sentir aquela pessoa passando por cima de mim. Essa foi uma sensação despertada por esse
acontecimento.
F- Porque ele veio tão displicente, tão suave, num ritmo tão cotidiano, que atravessou
mesmo você, era óbvio que você não esperava. Foi muito legal. Quebrou, furou.
L- Ele ligou o radinho lá!
F- “Cara estou aqui, estou chegando, eu sou assim”
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L- Você viu a parte que ele deitou também?
F- Sim, vi tudo até a hora que ele foi embora.
L- Ele voltou depois
F- Depois eu já não estava presente. Essa é outra questão, do tempo que você fica
deitado, acho que precisaria ficar muito tempo deitado
L- Muito mais tempo.
F- Dias. Para surtir algum efeito assim.
L- Para virar uma ruptura.
F- Todo dia no mesmo horário.
L- Virar uma rotina né? Dentro daquele lugar que a rotina é passar, aquele evento
também virar uma rotina.
F- Exato. Aí eu acho que mudaria.
L- Que foi o que a Cris (Esteves) diretora do OPOVOEMPÉ falou também. Ela leu em
algum lugar, não sei se o Paul Virilio, falando disso, de como essas tentativas de ruptura
acabam virando em dado momento um... Se acontece um dia, dá-se um intervalo de dois dias,
e acontece de novo, começa a ser identificada, depois absorvida, já não mais estranhada
F- Exatamente
L- Até o ponto que ela para de novo e volta a ganhar esse caráter de estranhamento.
F- São Paulo de fato é uma cidade que para chegar necessariamente você tem que
incorporar de certa forma, para daí poder britar
L- Para ganhar alguma reverberação.
F- Para as pessoas entenderem o jogo. As pessoas ali não tinham o jogo. Elas não
sabiam quais eram as regras. Aí se você está lá todos os dias elas vão começar a estabelecer
regras.
L- A dona Milza, que foi uma das pessoas que pararam para conversar, perguntou se eu
faria no dia seguinte: “Você vai estar amanhã aqui de novo?”
F- Exatamente. Por que? Porque eu quero entender o jogo. Porque senão vira um jogo
estranho. Não é? É super chato ver um jogo que você não entende as regras.
L- Também pensando nas ações do grupo OPOVOEMPÉ. Aquele termo do André
Carrera eu não sei agora aprofundar mas no ponto de vista que ele defende o teatro de invasão
não se trataria de uma invasão do tipo “por fogo em tudo. E ao mesmo tempo lá no
OPOVOEMPÉ elas discutem como pensar em ações que: vão ser vistas e não consideradas,
não vão ser vistas, ou vão ser vistas e ser consideradas. E eu até ficava pensando quando ela
(Cristiane) me falou isso: “Eu acho que essa ação do Mvnicipal de estender o tapete realmente
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é muito invasiva em algum grau. Será que eu não estou invadindo demais, forçando,
impondo?” Por outro lado elas falam em imantação: uma ação que não força você a participar,
não é uma interferência que te obriga a ter que se relacionar com ela. Ela abre um campo, se
você entra nesse campo, talvez aconteça um jogo. No meu entendimento sobre a ação no
Mvnicipal foi isso, algumas pessoas, eu não sei até que ponto você ficou observando, mas
algumas pessoas acabaram criando alguma relação ali. O meu temor era de eu ser a pessoa
que aborda, de eu ficar trazendo as questões e isso talvez afastar mais (até porque a “estatua-
viva” é parada, tem algum atrativo, mas a curiosidade das pessoas é que faz elas se
chegarem e criarem relação. A estátua se move quando percebe a abertura de quem joga à
participação) do que se eu estivesse simplesmente ali deitado esperando um encontro.
F- Mas aí precisa de um tapete vermelho? E estar vestido de vermelho? Qual elemento
seria de atração. Concordo que tenha que ter um elemento de atração. Mas que elemento é
esse então? Será que a própria ação não poderia ser? Com uma roupa cotidiana? E, por
exemplo, a ação de subir e descer escadas, subir e descer escadas, subir e descer escadas...
Que tipo de ação, qual ação causaria essa imantação, esse campo magnético? Essa é a
questão. Porque acho que não era nem invasivo, nem o oposto. Só passou por ali, um dia.
Eu entendo essa questão de “por que eu gerar as questões” (sim, eu quem gerarei parte
das questões, mas primeiro dando abertura para que elas sejam geradas justamente em jogo,
quando o jogo se instaura), é você o propositor delas. É justamente como criar o espaço para
que as pessoas se sintam a vontade para questionar o que eu estou fazendo. A questão é
justamente essa. Pois na relação de consumo a questão é você não questionar, e passar e ir
embora. Vejo, assisto, beleza, é um grande ator, é um grande teatro, mas vou embora e não
me alterei. Essa é a questão que ficou mais forte. Uma questão que todo artista deveria ter:
como criar esse espaço de diálogo. Que não é: “Oi como está você?” Que é uma relação que
instiga as pessoas a estarem ali. Não consigo, eu preciso parar e ver, é uma necessidade. Não
é uma opção. Deveria ser uma necessidade para você, talvez, enquanto propositor. Não é uma
opção vir tal dia, não, você precisa estar lá em tal dia, nesse horário, é criar problema para
você não ser mais um, qualquer um, ser você. Qual é a sua necessidade.
L- A minha ou a do público?
F- A sua. Porque a do público cada um sabe que tem a sua. Mas qual é a sua para não
ser qualquer um ali. Como você faz que aquilo não seja uma opção, que aquilo não seja só um
dia que você marcou para as pessoas verem consumirem e irem embora. Qual é a real
necessidade de fazer isso? Esse é o meu questionamento: qual é a real necessidade de fazer
isso? O que você quer com isso? Quem você quer atingir? Não sabe se quer atingir alguém,
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mas trocar com qualquer um que seja. Precisa dizer isso, precisa, é necessário. E como deixar
claro essa urgência para as pessoas (acredito que é algo pulsante, vital, mas menos
messiânico, é apenas a urgência de tornar a arte mais presente na vida das pessoas, não de
forçar as pessoas a meus pontos de vista e mensagens salvadoras) porque senão não se
estabelece. A relação de consumo está tão friccionada que não se estabelece. As pessoas só
vão a igreja quando elas precisam ou porque é corriqueiro. Por que tem outras necessidades:
pagar promessa, “preciso ver aquela mulher”, “preciso encontrar aquele homem”, é o tipo de
gente que eu quero estar perto. É por isso que as pessoas vão na igreja, não é para qualquer
outra coisa. Ou são muito beatas e acreditam que estão fazendo um favor. Não, a religião tem
que estar no cotidiano.
L- Fazer parte espiritualmente. Eu fico me perguntando como é que isso pode acontecer
com a arte.
F- Tem de ser uma necessidade, senão por que a gente faz? Escolhi ser ator a ser
engenheiro?
L- Esse questionamento, pensando em tudo isso que você falou, nessa relação de
consumo com as coisas de hoje em dia. Se apresenta pra mim como se não fosse mais uma
necessidade da humanidade de maneira geral, senão dos artistas, que vão ver os artistas, que
escolhem ir ver os artistas. No meu ponto de vista a arte já não está mais presente de maneira
cotidiana. Já não se apresenta como uma necessidade. Eu venho pensando sobre isso, e
quando você falou da questão da igreja, eu fiquei pensando numa relação de consumo, de
status. “Ah eu vou assistir o Bob Wilson” “Ao final vou aplaudir muito e gritar bravo”.
F- São situações que sempre vão acontecer, mas para o Bob Wilson é extremamente
necessário fazer o que ele faz, por isso chama tanta atenção, que todo mundo vai ver (Quem
estaria entre esse todo mundo? Vejo uma limitação de acesso bastante grande –público de
artistas, celebridades e intelectuais em sua maioria-, não necessariamente pelo valor do
evento, mas por uma questão de formação cultural e indústria cultural também. E onde fica a
questão tão apontada do consumo?). Pelo menos a peça que eu vi. Não vi outras, não vi
todas. A que eu vi, era necessário! A Lulu. Era necessário ele encontrar o Lou Reed e produzir
aquilo, era urgente, era preciso, não era uma situação corriqueira. Não é que peça eu vou fazer
agora. Tem um lugar aqui, algo que precisa ser dito.
L- Eu achei bem semelhante com os outros trabalhos dele.
F- Eu não conheço muito. Pode ser, pode não ser. E a relação de consumo se estabelece
não só por ele, pelas pessoas que estão lá também. Tem tietes, tem o nome dele, tem várias
maneiras de se consumir, mas para ele é extremamente necessário. O que não importa o quão
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consumidor eu sou ali. Porque é necessário. Diferente da sua ação, por exemplo, que ali me
importava e me preocupava. Você se coloca num espaço aberto e vulnerável, podendo ser
assaltado. E aí qual a real necessidade? Num ponto de vista positivo. O quanto você tem que
defender aquilo? Para justamente não ser assaltado... tem várias questões, são milhares de
variantes. Faltou alguma coisa. Que envolve todas esses quesitos: que tipo de ação, o que é
necessário, o que eu estou vestindo, que espaço é esse, como é, que relações? Sabe essas
perguntas balizadoras que você fez dão um caminho para isso, mas a realização faltou nesse
sentido.
Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo?
Todas as respostas foram nesse sentido da relação de consumo. Ela não alterava nem
se fundia necessariamente. Era mais uma ali. Justamente por não alterar, não estar imbricada
ali, não havia uma real necessidade de ver, e parar, e contemplar, e dar o tempo da ação
acontecer, e não o tempo de eu passar e consumir e ir embora.
L- Mas a ação que acontecia era eu deitado.
F- Sim, era você deitado, um cara deitado. Eu ouvi muito: “ah é um cara deitado, de
vermelho, com um tapete” (o ser humano quer, precisa de explicações, dar sentido às coisas.
A forma de atribuir sentido, achar a resposta mais imediata, é em primeira instância nomear,
identificar elementos, sem associá-los. Seria possível imaginar que após a primeira
impressão, associação, formem-se outras possíveis combinações através de novas tentativas
de ligação entre os símbolos martelando na mente? Não estamos falando de um mero
“impacto imediato”, mas uma imagem ou ação simples potente que fique martelando na
memória. Não estamos falando de grandes transformações aparentes, mas micro-
transformações perceptivas e sensíveis nas formas de enxergar o mundo) “Nossa que bonito
esse tapete, essa imagem com o teatro, na entrada do teatro”. O que eu mais vi foi isso. E
algumas pessoas que ficam mais tempo ali, pareciam que ficam mais tempo ali, vão conversar
com você. Penso que se todo dia você estivesse ali, talvez pudesse... em função disso eu
comecei a pensar em muitas outras coisas sobre o que poderia ser feito.
É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um
“estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer?
233
Uma das coisas que eu senti falta com relação à necessidade talvez seja isso também. O
estado talvez era um pouco indiferente. Justamente por a ação ser simples, o estado era
indiferente, era corriqueiro, não era um estado alterado de percepção, da forma que eu estava
vendo, é necessário dizer, porque às vezes para você, você estava hipersensível, mas isso não
estava sendo passado, enquanto performer faltou isso, esse lugar da imantação. Esse estado
que chamo de cênico, não de estado performativo, mas ele faltou, ou não se estabeleceu,
faltou esse campo de imantação que faz as pessoas ficarem ali.
L- E se revelava o que então?
F- Se revelava mais esse estado da ação simples: “estou deitado aqui e ponto”.
L- Mas seria algo mais cotidiano ou não?
F- Talvez mais cotidiano, mas como a imagem não era cotidiana (é justamente essa
contradição -cotidiano x não-cotidiano x extra-cotidiano; arte x não-arte- que me interessa).
L- Pensa desde a preparação.
F- Você se relacionava com a ação de forma corriqueira, de forma simples. O que eu
acho interessante, só que faltava alguma coisa, que acho que é o estado cênico. No meu caso,
no que eu estudo enquanto ator. O lugar de imantação é esse você atinge um lugar, o seu
corpo está tão presente ali que as pessoas não conseguem simplesmente passar e ir embora.
Muitas pessoas tem isso, muitos mendigos tem isso, que é uma relação de sobrevivência ,
atingir um estado de percepção tão grande que tudo pode acontecer, por mais que eu só esteja
fazendo esta ação. Isso eu acho que faltou.
L- Mas você me via de maneira como se eu estivesse fechado
F- Não. Via você se relacionando, mas de forma cotidiana. Não era cotidiana... O que
que é o estado cotidiano? O estado cotidiano também se altera. Eu via você se relacionar
assim, corriqueiro, sabe, “estou aqui deitado...”
L- Como estamos agora?
F- A ponto de o moço passar por cima de você, gerar algo que talvez você não estivesse
preparado. O estado cênico gera isso você fica preparado: O moço passou por cima e não foi
nada demais... (mas não me cabia atuar. A minha reação veio de maneira espontânea em
jogo, sem dúvida fui transformado, mas não havia um psicologismo da ação, e sim a ação,
não um pressuposto de como eu deveria reagir de acordo com um subtexto ou a partir de
determinada ação) ou foi um absurdo, ou sei lá o que poderia acontecer. Logo nesse sentido o
moço passou e veio sua risada. Acho que sua risada denunciou para mim naquele momento
algo que, um comentário, um julgamento seu com relação ao que ele estava fazendo, não
importa que julgamento era, mas havia um julgamento, você não deixou isso de lado para
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fazer a sua ação, e eu acho que isso foi um empecilho, talvez, para ela acontecer na sua
potência total. Ela aconteceu mas poderia ter sido mais. Há muitas variantes, acho que essa é
uma delas.
L- De focar no aqui. Essa risada talvez não fizesse sentido naquele contexto é isso?
F- É. Ela veio como uma surpresa. Não foi uma surpresa boa da ação. Foi uma surpresa
que parecia que estava te atrapalhando “ah, não estava no script”, aconteceu um problema.
Você continuar deitado e dar aquela risada. O fato de ele vir e passar, ele foi quem sustentou,
ele estava num estado diferente. A ação dele que permitiu você se transformar. Ele
transformou você. Nesse sentido foi bom ele ter aparecido. Eu percebi que você ficou mais
relaxado, mais à vontade, porque ele estava à vontade e transmitiu isso para você. Não é que
você estava fechado, mas você não liberou, não saia do seu cotidiano, do seu pensamento, do
que você queria talvez com aquilo, para que a ação acontecesse. É muito difícil, esse é o
trabalho do ator, performer. Quais mecanismos eu vou utilizar para que isso aconteça?
L- Está revirando aqui minha cabeça.
Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível?
Isso não chegou a ficar claro para mim. Diante de tudo diante dos fluxos diante desse
espaço funcional
L- Não só a minha ação em relação ao perímetro daquele espaço, às pessoas que
passam, mas as próprias ações que se dão ali. O que geralmente o olho vê e de repente o que
te surpreendeu ver naquele lugar, que a princípio seria algo invisível.
F- Por não ter acontecido de fato essa imantação. Não permitiu com que o invisível
acontecesse. Com o que tivesse no subtexto acontecesse. Era mais “chapado” mesmo, claro só
aquilo. Faltava algo que fosse realmente o transformador. Não desenvolveu isso para mim.
L- Eu enquanto performer deveria clarear o que? O que você sugeriria? Pra mim é uma
importante questão entender o que seria “estado cotidiano” e “estado performativo”. Se eu
entendo que deveria se aproximar da vida, é confuso, mas teria que vir para o mais simples, é
chegar lá e deitar.
F- Para que aquele monte de roupa, se a proposta é uma ação simples e o mínimo gesto.
Aí me reportava para a performance que você fez da mala (Necessidade X Supérfluo:
supercidade, nãoseisefluo), aquilo se aproximava mais de um estranhamento através de uma
ação simples, de um mínimo gesto enquanto resultado cênico que as pessoas viam. A resposta
era a necessidade, qual é a real necessidade de se fazer isso? Por que faço isso? Não importa
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se está bom ou ruim, mas é necessário que eu faça. Precisa ter mais problema, parecia que
você estava solucionando só. Estava muito claro que era uma ação simples. Mas era
indiferente para os outros porque não tinha um problema a se desenvolver, a se questionar.
Era desnecessário, era corriqueiro, a resposta talvez seja essa.
L- Pensando agora friamente nos elementos: o municipal, tapete vermelho uma pessoa
vestida de rei. A sua relação com a prática, com a experiência revelou isso. E de repente
agora, se debruçando de novo sobre esses elementos, por onde você arriscaria?
F- São muitas possibilidades. Só o tapete vermelho já tem muitos significados, não
importa onde você coloque. Só o Theatro Mvnicipal já tem muitos outros significados que
podemos escolher, e o rei então que é mais antigo ainda que o tapete vermelho e o Theatro
Mvnicipal. Você trabalha com várias simbologias, e aí tem que ter a necessidade (por que,
como, quando e onde)
L- Você viu que tinha uma plaquinha (eu faço pARTE)?
F- Vi. Ela vinha justamente por essa necessidade de algo mais. Ela meio que explicava a
ação, tinha a necessidade de explicar a ação para as pessoas que estavam passando, por que a
ação talvez não fosse... talvez até aí você já estivesse entendendo que a ação em si não era
suficiente sozinha.
L- Entendi. E aí entra a palavra.
F- Pelo que você está se propondo de aproximar. Pois no cotidiano é isso, as pessoas
têm que falar, elas não colocam uma placa para dizer, justamente por não colocar uma placa
para dizer elas ficam falando, se justificando, ou não, ou elas não tem que justificar nada para
ninguém. Tem que se jogar com essas informações. Penso que foi meio que tudo, e ao mesmo
tempo o que é tudo é nada. É um tapete vermelho, no Theatro Mvnicipal, com um rei deitado!
Mas por quê? O que o rei está fazendo, por que desse tapete, e o Theatro Mvnicipal o que tem
a ver com isso? Qual a necessidade disso tudo, pra você mesmo.
L- De repente como esta mesma ação entraria nesse campo da necessidade pra ti?
F- Não sou eu o propositor, não sou eu que tenho que dar essa resposta. Quem tem que
pensar nisso é você. Essa conversa é justamente para isso.
L- Eu ficava pensando assim. A primeira coisa das pessoas é atribuir um sentido. Ligar
os pontos tentar ligar aquilo ali e buscar o sentido. Quando esse sentido não vem de maneira
direta, elas pedem a explicação, que era o que acontecia. Só que eu me colocava na posição
também de não responder ou de tentar devolver a pergunta para que elas fruíssem a coisa. De
repente para mim essa era a necessidade. De que elas tentassem ligar aqueles pontos. Ou
então só passa, é um espetáculo como qualquer outro.
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F- É. Pra mim um dos pontos é: as pessoas não entendem. Por que que elas não
entendem? Por que qual é o jogo que você está jogando? Me fala qual é o jogo que você está
jogando, que eu vou tentar dialogar com isso. Me fala quais são as regras. Não tinha regra
estabelecida, tinha a imagem, tinha o resultado do jogo, mas não tinha jogo. É como ver o
placar. Eu vi o resultado do jogo, mas não vi o jogo. O fato de as pessoas pedirem explicação
se deve a isso. Se ela não entende o jogo ela pede uma explicação, e quando você devolve a
questão, você já devolveu uma questão que não estava clara, nesse caso, porque você não deu
material suficiente para a pessoa. Você deu vários símbolos, mas não deu o material para ela
jogar com os símbolos, montar o quebra-cabeça (o material para mim é brincar de combinar,
a partir do repertório pessoal de cada um, de suas vivências e histórias de vida, os próprios
símbolos e ações simbólicas- ações simples são ações cotidianas que pelo deslocamento do
contexto ganham caráter simbólico. O mínimo gesto tem a ver com uma decodificação de um
gesto cotidiano ou estetizado que significa por sua mera repetição ao longo de uma duração
prolongada dilatando a noção espaço- temporal cotidiana). A televisão faz isso, coloca o
resultado. Como o faz todo dia ela vai te acostumando com o resultado e aí você fica com o
resultado na cabeça.
L- Mas ali você acha que tinha um resultado? Ou tinham peças?
F- Tinham peças, tinha o tabuleiro, tinha o resultado de alguma coisa. Mas não tinha o
jogo não tinha a peça se movimentando. Não estava claro isso. Pra mim também, por mais
que eu tivesse os balizadores. O jogo em si não se estabelecia. Na ação, na questão social, na
questão espacial. Tinha algo ali que não estava acontecendo. Daí a necessidade de uma
explicação. Porque tem todo o material, mas se eu não souber que “o cavalo anda em L”, pra
mim não importa como que ele vai andar. Faltou esse esclarecimento “ó, aqui só anda em L,
ali só diagonal”.
L- Internamente fazendo parte dela o que me passou pela cabeça foi: a ação era ficar
deitado e começar a desenvolver algum encontro se houvesse essa imantação de alguma
maneira e não puxar um encontro, não buscar. Porque meu temor era: quanto mais eu tentar
chamar a atenção, digamos assim, uma vez que a figura já chamava atenção de alguma forma,
porque não é uma coisa que está lá todos os dias, um tapete vermelho com uma pessoa deitada
ao final. Logo, se eu tentasse buscar as pessoas, talvez isso as distanciasse mais. Como a
mesma relação que se estabelece costumeiramente com o panfleto. Eu te dou um panfleto,
mas você já espera um panfleto e você não aceita. No meu raciocínio se dava um pouco
assim: qualquer coisa que eu tentar trocar de cara com as pessoas, tentar ficar olhando, isso
não vai trazê-las. O que eu pensava era isso.
237
F- Acho que não. Até pelo contrário nesse caso. Por que que panfleto que essa figura
está me dando. Por que senão é só uma figura com panfletos escondidos.
L- Outra questão era o físico também: naquela posição eu percebi que não dava para
ficar de fato olhando as pessoas, naquela condição era o sol no rosto, e se eu ficasse tentando
abrir o olho eu ia ficar sempre “no meio do caminho”. Então eu vou tentar permanecer neste
lugar, habitar este lugar por este tempo. A ação era ficar deitado, eu vou ficar aqui.
F- Mas quando você começa a conversar com as pessoas, você quebra isso. Qual a real
necessidade de estar, qual é o jogo? Que jogo você está jogando. Não estava. Você mudava o
tempo todo. Talvez justamente por estar tentando ficar aberto, mas ele não chegava.
L- Quando alguém vinha eu tinha alguma coisa pela qual... se ela já vinha perguntando
algo, eu tentava transformar em pergunta para ela de volta: “Ah eu faço parte, eu faço parte de
que?” a pessoa perguntava. Eu perguntava: “Do que que você faz parte?”, tentava voltar o
questionamento para ela. Também me ocorria: Se por sua vez lá do lado das Casas Bahia
todo dia tem aquelas bandas, que reúnem muitas pessoas, por outro lado aquele monumento
inteiro, imenso, parece inabitado. As pessoas sentam ali, mas não vivem aquele espaço, de
entrar e conhecer, no meu parco entendimento de julgar que as pessoas em geral não
frequentam aquele monumento, o embate para mim era esse, pensando: a arte não está
presente na vida das pessoas, este “bicho” deste tamanho não faz parte da vida das pessoas
elas só passam por aqui e tiram uma foto.
F- Você acha que você só de vermelho, ali deitado... para mim é um pouco óbvio, vai
continuar do mesmo jeito. Você não colocou uma situação que as pessoas pudessem vivenciar
aquele espaço. Não alterou nada para as pessoas. Talvez se você fizesse nas Casas Bahia,
tivesse mais efeito. Da sua trajetória toda que acompanhei chamava muito mais atenção das
pessoas você se trocando do que você deitado no Theatro Mvnicipal. E por que não deitar de
rei no meio dos mendigos?
L- Eu teria que pensar o porquê disso. Aí para mim seria um pouco de invasão, de
ofensa. E eu não objetivava isso.
F- Talvez. Qual a real necessidade? Você precisa dizer isso para quem? O que quer que
as pessoas percebam com isso, ou o que você precisa entender? A questão é justamente esta: o
que eu preciso entender, eu preciso fazer. Senão não acontece. Um piquenique, faça um
piquenique e aí talvez as pessoas comecem a ficar, a trocar mais, se sintam mais a vontade,
para usar a arquitetura mesmo. Você só endossou a arquitetura, você virou parte da
arquitetura e mais uma coisa para tirarem foto. É isso, é para isso que ele está aí para tirar a
foto e ir embora. É muito difícil, é muito difícil.
238
L- por outro lado a parte interessante que achei, que realmente não tem como a gente
esperar, foram esses alguns encontros que aconteceram nesse tempo que eu fiquei (11:00h-
14:30h). Com essas pessoas eu consegui este lugar que seria através da arte, através de uma
ação simples estabelecer uma relação com alguém, e esse alguém não são necessariamente os
muitos “alguéns”, não é algo unânime. Talvez a unanimidade seja a foto. Mas de repente por
algum motivo alguém escolhia passar alguns momento do seu dia ali. O menino mascarado, o
qual tinha muito mais a ver com endossar a ideia de espetáculo, uma relação intersubjetiva
mediada por um espetáculo, minha com ele. E eu vi, apesar de conseguir conversar com ele e
tentar entender qual era a dele também, pois ele disse que andava daquele jeito porque
daquele jeito as pessoas não atrapalhavam-no, ele tinha liberdade para ir e vir do jeito que se
trajava (capa vermelha, chapéu de bruxa vermelho, máscara, microfone e caixas de som no
cinto). As pessoas categorizavam-no de um jeito e ele simplesmente poderia ser, o ser e não
ser juntos na cabeça dele. Mas ao mesmo tempo eu achava que o que estava acontecendo ali
era um (espetáculo), apesar dessa troca tinha uma teatralização: passar com o som ligado e
andar por cima do tapete. Depois veio a dona Milza, uma senhora.
F- Sim que ficou conversando com você todo o tempo até eu ir embora.
L- Que ficamos conversando muito sobre várias questões da vida.
Como eu queria fazer o jogo entre arte e vida, o que eu perguntava para eles era: com
que frequência você visita a vida? Com que frequência você visita a arte? Como é que arte
está presente na sua vida? Fazia essas indagações quando a relação acontecia. Aí ficamos lá.
Eu me prendi a essa relação com ela, que aconteceu com ela.
F- Sim, mas você esqueceu a ação simples de ficar dormindo, não sei, de ficar deitado
apenas. A ação deixou. O jogo mudou completamente. Para mim naquele momento você
podia ter tirado a roupa, deixado ali para outro vestir, e ficar conversando com ela. A ação que
você propôs, você a deixou de lado. Para alimentar essa conversa. Eu acho que esse é um tipo
de conversa que tem que ter depois do impacto da ação. Esse tipo de questionamento. De fato
ela viu a ação, já entendeu e foi conversar com você. Era uma necessidade dela, não era sua,
talvez fosse a sua também.
L- A minha era como através da arte a gente se conecta com as pessoas. Estabelece
essas trocas no meio do cotidiano.
F- Então você atingiu o seu objetivo e pronto. Acabou, a ação simples acabou nesse
momento, porque você conseguiu através de estar vestido de rei, com o tapete, deitado ali,
você conseguiu que alguma pessoa chegasse e conversasse com você. Pronto. Para mim não
239
era interessante ver aquilo, aquilo não era uma ação, eu não tinha a necessidade de estar ali,
nem você tinha a necessidade de estar vestido de rei.
L- O que me chamou atenção do lugar é que lá haviam muitos vermelhos: de todos os
tipos: o vermelho do shopping Light, o vermelho da ciclovia, muitas pessoas vestidas de
vermelho, o vermelho do semáforo, como se estivesse já bem presente naquele lugar. Então
fui fazer uma visita monitorada ao teatro e há um “tapetão” vermelho que atravessa o teatro
inteiro. Você vai andando pelo teatro e “só o que tem” é o tapete vermelho. O que me fez
pensar: este teatro ainda hoje é um espaço elitizado, desde quando ele surgiu até agora ele é
um espaço nobre, por esse motivo o rei.
F- Mas você endossou o que é, não quebrou com isso, não desenvolveu. Faltou. Talvez
um questionamento direto para ver o que as pessoas acham.
L- Eu perguntava se eles já haviam entrado naquele teatro. Com que frequência você
visita a vida? Com que frequência você visita a arte? A arte faz parte da sua vida? De que
maneira? Você já entrou neste teatro?
F- O que elas respondiam?
L- Alguns diziam que aquele teatro não era para eles. Eles não se sentiam convidados a
entrar naquele teatro. Um senhor no dia anterior, em que a performance foi feita por seu João,
disse: “Olha eu já fui na Europa e parece que lá a gente vai muito mais a vontade nesses
lugares, aqui parece que não é da minha cor (atriz Ana Luiza Leão em sua entrevista também
comenta como na Europa sente a arte mais presente e apropriada pelas pessoas e espaços da
cidade, a ponto de os artistas terem mais condições favoráveis a realizar seu ofício e
compartilhar com todos). Eu perguntei: como assim não é da sua cor? - Eu acho que o Brasil
ainda é um país racista.
F- Sempre foi.
L- Havia uns que asseguravam a minha visão de que a arte não faz parte, ela está ali e as
pessoas não usam e outras diziam: “Não, esse é um espaço super acessível, aqui tem eventos
gratuitos, no natal. Eu mesma fui aí, mas ganhei o ingresso da minha amiga que trabalha aí”.
Apontavam-se algumas contradições.
F- Mas isso não é uma pesquisa do próprio teatro? Qual era sua intenção com isso? Por
que era necessário para você fazer isso?
L- Pra mim era necessário problematizar aquele lugar. No seu ponto de vista teria de se
pensar qual seria essa ação mais apropriada, ou de repente uma vez da escolha dessa ação, “o
deitado”, permanecer ali para sempre sem a relação com as pessoas?
240
F- Eu não sei, eu fiquei levantando possibilidades. Não é uma resposta. Fui um
espectador e questionador. Você que tem que ver isso. Estou aqui para questionar
L- Botar o dedo na ferida
F- Nós temos que fazer isso um com o outro. Assim a gente cresce mais.
L- Para constantemente pensar sobre a criação. Eu fiquei me perguntando e eu não
conseguia sair dessa ideia, a ação é essa mesmo. Pensava: “o que pode acontecer aqui?” Pois
primeiro vou e observo um dia: as dinâmicas do espaço, o que acontece ali. Depois que essa
ideia se estabeleceu eu não conseguia ver outra coisa senão ela. Fiquei a tarde inteira
conversando com seu João e para mim ele se apresentava como aqueles postes ali em frente
ao teatro com várias carrancas, “estátuas-vivas”. E ele era uma “estátua-viva”, naquele lugar
pra mim ele se apresentava como uma estátua daquelas várias, gritando, só que ninguém
ouve. Pra mim ele era uma estátua-viva.
O que eu imaginava? Algum jeito de evidenciar este espaço, como este espaço para
mim não é o lugar em que arte acontece, no meu ponto de vista. Como podemos colocar uma
imagem ali, algo que evidencie isto. Esse tapete vermelho! Ninguém cruza esse tapete
vermelho! Quem tem que estar lá embaixo é uma “estátua-viva”, é uma pessoa que está ali,
enrolada nesse tapete vermelho contando suas histórias, e só.
Também percebo a diferença entre ser o seu João lá, e eu. Realmente acho que a
situação muda. Achei bem interessante de os dois dias terem acontecido, apesar de vocês só
terem visto o dia que eu fiz. O que permanece na minha cabeça é continuar tentando,
continuar buscando, não desistir de fazer essas coisas, acreditar que isso é uma possibilidade.
Porque tem muito disso, a maioria das ações não chega numa compreensão, num resultado de
uma compreensão: “o que justifica isso”. É mais o julgo que cada um fará individualmente
depois da foto. Se vai ou não vai fazer.
F- É. Não tem como cobrarmos isso das pessoas. É difícil ter uma resposta. E ter muita
calma.
241
Protocolo Observacional respondido por Otávio Oscar após realizar observação imersiva
(de 11h-13h) da ação artístico-performática: Tapete vermelho-patrimônio de poucos
Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as
formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas
neste mesmo espaço?
A escadaria/calçada em frente ao Theatro Mvnicipal, ao meio dia, durante a semana, é
um local de intenso fluxo de pessoas. Aparentemente, a maioria dos transeuntes eram
trabalhadores em horário de almoço, pessoas fazendo compras, passeando ou gente que estava
se deslocando de um lugar para outro no próprio centro. Mais do que isso, não sabemos dizer
sobre estas pessoas.
A escadaria do Theatro é utilizado como um local de descanso. As pessoas se sentam ali
pois é um dos poucos locais permitidos para sentar, além de ter uma boa sombra, dependendo
do ângulo do sol, que ao meio-dia fica a pino e quase não oferece sombra. É engraçado
pensar que à noite, havendo espetáculo, o Theatro muda de figura e o que acontece dentro
dele passa a determinar sua dinâmica, diferente do horário de meio-dia, em que ele apenas é
mais um prédio como os outros.
As relações entre as pessoas é bastante pueril. A escadaria não é um lugar de
convivência muito menos voltado ao lazer. As pessoas sentam para descansar, sejam sozinhas
ou em grupo. No segundo caso, há a oportunidade de se conversar, o que é bastante comum.
De resto, a relação de quem está na escadaria com quem está na calçada é apenas observar a
sua passagem.
A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de
mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos?
Acredito que a ação era simples, mas o gesto não era mínimo. A ação era apenas ficar
deitado na parte de baixo da escadaria e no final do pano vermelho, algo bem simples, apenas
complementado com a ação de conversar com quem abordasse o performer.
O gesto não era mínimo pois a estrutura cenográfica (chamemos assim) e o figurino
eram bastante chamativos, quase espetacular. Essa estrutura espetacular, apesar de negar o
mínimo gesto, me parece coerente dentro da proposta de discurso do performer, que buscou
questionar o status do consumo de cultura na cidade de São Paulo. Chamar a atenção parecia
242
um mote essencial da performance, afinal a ação artística se aproxima bastante do protesto, do
manifesto e do ativismo, o que remete bastante à ações de performers dos anos 60 que
realizavam suas performances nas ruas como forma de protesto. O que me chama atenção
comparando o exercício anterior (no túnel do Anhangabaú) foi o desejo político do performer
em lançar um questionamento que atingisse de forma mais cortante, o que o levou a uma ação
com um discurso mais incisivo e uma forma mais espetacularizada.
A ação de permanecer deitado, apesar de simples, chamava também muita atenção, em
grande parte devido à incidência cruel do sol em seu rosto, que estava descoberto e totalmente
vulnerável, gerando um risco (queimadura solar) que levava a um envolvimento dos
transeuntes. Isso demonstra que o “público” teve empatia pelo performer. Ouso dizer que sua
juventude, beleza e vulnerabilidade era algo tocante para quem passava. Muitos eram os casos
em que pudemos observar, na abordagem de alguns transeuntes, sentimentos paternais ou
maternais em relação ao risco da exposição ao sol. Muitos também ficavam admirados pela
valentia e tenacidade do performer em se manter exposto ao risco em prol de uma causa como
“a arte”.
A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que
aspectos?
Discutir a coerência é sempre complicado. Me pareceu coerente pois questiona o status
social da arte diante do maior, mais reconhecido e mais antigo aparelho cultural da cidade,
onde impera o status quo artístico. Ao mesmo tempo que o Theatro Mvnicipal é tudo isso, ele
também parece algo totalmente alheio a quem passa, como se fosse algo que não pertencesse
ao cidadãos, ou que pertencesse apenas a alguns deles. A performance também questionava
isso: arte para quem? E essa pergunta era instigante para quem passava. Outro ponto de
coerência é o diálogo com o espaço. Acredito que a performance não teria impacto se
apresentada na frente da entrada do metrô ou na frente da prefeitura. Fazia sentido aquele
tapete vermelho em frente a um espaço de arte tão elitista, em contraposição ao performer
numa condição semelhante a de um morador de rua.
Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as
pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as)
243
Muitas pessoas pararam por estarem curiosas em relação aos objetivos do performer.
Elas buscavam “entender”, um comportamento muito comum ao transeunte que é colocado na
posição de espectador de uma performance. O tecido vermelho, como um tapete, saltava aos
olhos pela sua cor chamativa e pelo formato de tapete, remetendo à maneira como pessoas
VIP’s são recebidas em eventos. O primeiro impacto, portanto, era visual, bastante chamativa.
Outro impacto, como já foi mencionado acima, é a exposição e vulnerabilidade do performer
ao sol. Fato é que naquele dia o sol estava muito forte, e deixou o seu rosto muito
avermelhado. Essa exposição parecia absurda aos olhos das pessoas. Nem tanto a exposição
ao sol, mas muito mais a atitude de se expor a ele. As pessoas pareciam se questionar em
relação a isso muito antes de buscar qualquer fruição da performance. O dado da realidade
imediata, no caso a realidade do risco, era muito mais relevante para quem passava. Num
segundo momento (ou no caso de pessoas mais acostumadas ao contato com performances e
intervenções urbanas) elas buscavam entender. Claro que essa observação é muito
generalizante. Fato é que as intervenções urbanas geram infinitas formas de recepção e
reação. Alguns simplesmente passavam, muitos olhavam e observavam rapidamente, outros já
se desinteressavam logo de cara, alguns paravam, alguns poucos conversavam com o
performer.
Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo?
A ação alterava muito pouco o fluxo. A escadaria é uma área desativada naquele
horário, pois o teatro não está aberto. As únicas alterações se davam devido aos curiosos que
saíam de seus percursos para se aproximar do performer. Outra alteração é visual, aquele
tecido vermelho gerando um desvio perceptivo na paisagem. Uma alteração que gera um
olhar diferenciado a quem está acostumado a passar por aquela região, o que em si já altera o
fluxo mesmo que o movimento ao redor aparentemente permaneça o mesmo.
É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um
“estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer?
Sim e não.
Sim, pois o performer se coloca numa situação bastante vulnerável ao se deitar no chão,
num lugar onde as pessoas normalmente pisam, além do sol, que exigiu concentração e
244
tenacidade para evitar ansiedade ou medo de se machucar. Seu corpo, portanto, explorava um
estado performativo.
Não, pois quando as pessoas o abordavam ele conversava naturalmente com elas, num
registro cotidiano, inclusive bastante simpático e casual.
Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível?
O que salta como visível é o que já foi dito: a intervenção visual e tátil no espaço. A cor
vermelha é a mais impactante de todas e traz uma simbologia, dentro do contexto irônico da
performance, que é facilmente trazido à memória pelo senso comum: o tapete vermelho,
estrutura de espetacularização acerca do valor social de figuras VIP’s que frequentam
eventos. Isso gerava bastante visibilidade.
O que estava invisível era a identidade do performer, que não fazia questão de sequer se
identificar como autor ou mesmo de esperar o reconhecimento pela obra artística. Esse
anonimato tornava a performance, em algum nível, invisível a quem passava.
245
Entrevistas com profissionais e participantes dos experimentos práticos
Entrevistas realizadas com profissionais das áreas de intervenção urbana, teatro, dança e
arquitetura e participantes dos experimentos práticos. (As entrevistas foram gravadas
presencialmente e seguem uma estrutura padrão, variando em algumas perguntas específicas
de acordo com a área de cada entrevistado).
RENATO FERRACINI.
Professor Doutor e Ator do grupo LUME de teatro. Atualmente com projeto temático:
Memória(s) e pequenas percepções.
DIA 1 – 18.08.12
L – Eu queria agradecer a oportunidade de realizar essa entrevista contigo, é algo que vai me
ajudar bastante. Eu fiquei alguns anos definindo intuitivamente o que seria o mínimo gesto e a
ação simples no espaço público e sinto que agora é o momento de teorizar sobre isso. Agora,
durante a iniciação científica resolvi definir esses termos com essas entrevistas. Estou
investigando as ações que podem ser quase invisíveis no dia-a-dia, ações pequenas no meio
de um fluxo intenso.
Pelo fato de você fazer parte de um grupo de teatro que já tem bastante tempo, eu
queria saber o que você entende como performance.
R – A performance é difícil de definir, tem um amigo que diz que é um procedimento, que ela
não é algo. Eu acho que dá pra colocar a performance num campo, não definir o que é
exatamente, mas o campo que ela busca. Eu acho que primeiramente ela nega a representação;
não nega um tipo específico de técnica de atuação ou de representação, um tipo de representar
um personagem, é mais o ato de presentificar algo, tornar algo uma discussão de uma
presença, que tem no teatro também, se pensarmos hoje. Tanto performance quanto teatro
estão em lugares bastante híbridos, as vezes você vê uma peça de teatro e tem muitos
elementos que poderiam ser performance e vice-versa. O teatro pós-dramático, por exemplo.
A performance foi um campo de expressividade que negou a representação, dentro do
contexto de você falar 'em nome de' ou a representação do próprio pensamento. Às vezes
pensamos que temos opiniões, mas o pensamento já está dentro da representação do próprio
pensamento, então quando você fala ou dá uma opinião você já esta representando outros
alguéns, já ha uma representação histórica, social. Eu acho que a performance busca esse tipo
de representação e não uma representação específica de criação e personagem. A própria
246
performance busca como fugir de uma representação ou uma outra forma de apresentar o
presente. Isso pra mim é a base da performance. Mesmo que o teatro e a dança estejam
pensando nisso, eu acho que foi esse movimento que contaminou o teatro e a dança. Eu acho
que é a eliminação da ilusão.
L - E você acha que essa eliminação acontece de fato? Você já viu algum trabalho onde isso
acontece?
R - Como todo artista que busca o meio de seu fazer, há artistas que conseguem e outros que
não, ou às vezes conseguem e em outro momento não. Eu já vi algumas performances muito
interessantes onde se chegou aí, e interessantemente performances muito simples. Às vezes se
busca um terrorismo artístico, por exemplo, já vi um trabalho que se considerava performance
e eram gritos e jorros de sangue, algo que na verdade ficava no limite da representação, era a
performance do que se achava que era a representação da própria performance. Um exemplo
de performance de dança que eu vi do grupo Basirat chamava-se Brasil: o público entrava e
tinha um ator que ficava olhando para as pessoas. Quando todo mundo sentava ele perguntava
'o que vocês querem que eu faça?'. Claro que sempre tem alguém que pede pra que ele tire a
roupa. Então ele tirou a roupa e virou pro público e disse ' era isso que vocês queriam que eu
fizesse?', como um tapa na cara, como quem diz 'olha como vocês são idiotas', 'olha o que
vocês estão me pedindo', na própria ação da performance isso já estava embutido, isso trazia o
público pro chão e logo alguém falou 'ponha a roupa'. Depois disso começavam a pedir mais
coisas do tipo falar uma poesia, gritar, e só depois que isso se estabelecia começaria o
espetáculo, um espetáculo de improvisação e dança. Isso foi muito simples. Como a Eleonora
Fabião: fala-se de amor, você senta numa cadeira e tem uma fila de 500 pessoas querendo
conversar sobre isso. Isso não esta baseado em nenhum personagem, em nenhuma
espetacularização, isso traz o participante num estado de igualdade, outra característica da
performance é destituir as hierarquias. E já que você comentou sobre invisibilidade, eu tenho
um orientando de doutorado que tem uma performance onde ele fica doze horas vestido de
mendigo na frente de uma igreja, onde ninguém sabe que ele está fazendo uma performance.
Até se discute se realmente é uma performance ou não. As pessoas que passam pela rua veem
ele como mendigo e não dão bola nenhuma. Ao mesmo tempo é um gesto tão mínimo que se
dilui no cotidiano. Também tem essa questão e a crítica sobre ser muito comum uma pessoa
dormindo e vivendo na rua, e isso foi feito através de um gesto tão simples. Eu vejo a
performance entrando de sola nessas relações de crítica social, porém de uma forma muito
sutil e delicada, que eu considero muito difícil de ser bem feito. Sair gritando pelado cheio de
247
sangue pra mim é quase o clichê do que seria performance hoje, isso não choca mais. Alguém
querer falar de amor choca.
L- Eu dei uma lida no seu livro 'A arte de não - interpretar como poesia corpórea do ator' e
lembrei dessa dualidade entre interpretação e representação e a performance em meio a isso
tudo...
R- No início, quando o Luis Otavio fundou o Lume, ele fez essa separação de interpretação e
representação; o que ele entendia por interpretação é o que chamamos hoje de representação,
que é uma coisa que todos evitamos; e o que ele chamava de representação era para ele
reapresentação, uma apresentação duas vezes. Isso causa um problema conceitual sério,
porque hoje todo mundo está querendo fugir da representação.
L- A reapresentação seria algo como tornar vivo novamente?
R- Exatamente. A representação naquela época seria como você ter ações físicas numa
presença específica e numa relação muito direta com o espectador, sem a mediação de um
personagem ou espetáculo, parecido com o que a performance busca. A mediação sempre
acontece, mas você tenta tirar o máximo de anteparos possíveis. Hoje eu falo mais sobre a
relação de atuação, o performer atua no meio e reverbera. Quando você coloca uma cadeira
no meio da cidade e chama as pessoas para falarem de amor, você cria um eco, uma fissura
naquela plastificação daquele espaço. A performance cria fissuras. O Luis Otavio chamava de
reapresentação tornar vivas essas fissuras. Ele foi infeliz porque usou a palavra que hoje
temos como pejorativa.
L- Você pode diferenciar ação de gesto?
R- De acordo com o Grotowski, o gesto é algo que não tem nenhuma relação com o
externo, você fuma um cigarro e faz isso mecanicamente, ou convida alguém pra dançar, e
dança mecanicamente. O que transformaria isso numa ação? Você esta dançando e
paquerando essa pessoa, o marido dela entra e você começa a agir em relação a algo externo.
Você amplia a relação do seu corpo, do seu gesto. A ação abre uma relação externa a ela. O
que acontece quando você abre a ação para uma ação externa é que se cria uma rede de ação.
A sua ação está conectada com a ação da dança, conectada com o seu olhar, conectada com o
olhar do marido. Toda essa rede de pequenos gestos e ações se chama ação física. Isso me
interessa porque, diferentemente do gesto, que pode ser algo muito individual, que é
solipsista, a ação sempre está vinculada a uma rede, a algo exterior a você, seja o espaço, o
tempo, uma rede de pessoas, um objeto...a ação física tem receptividade, não é só jogar pra
fora, tem de se reconhecer essa rede e agir com essa rede. A ação é aberta a uma rede de
relações. Toda ação é relacional. E o gesto não. Por isso a ação física teatral só acontece no
248
teatro, o gesto pode se dar em qualquer lugar. Eu gosto que a performance fala bastante de
ação, não espetáculo. A ação sempre reverbera, afeta e é afetada. Essa reverberação não
deixa a ação ser simplesmente mecânica e repetitiva, se ela for mecânica não há espaço para
abertura e se você estiver receptivo haverá micro mudanças, mesmo que seja uma ação
codificada. Eu acho que basicamente é isso.
L- Como você conceituaria espaço público? A partir disso, o que você colocaria dentro dessa
categoria?
R- Existe uma dicotomia que precisamos começar a repensar sobre o que é espaço público e o
que é espaço privado. Minha questão é: podemos pensar o espaço público como o oposto do
espaço privado, uma definição bastante medíocre, onde o espaço privado é a minha casa e o
público é a rua. Até que ponto o seu próprio corpo não é um espaço público, por exemplo?
Spinoza, por exemplo. Ele próprio é um conjunto de partes que nas suas relações compõem
ele mesmo, a relação das suas partes compõe o que você é, pensando no seu corpo, por
exemplo. Podemos ampliar ou diminuir esse espectro: o seu olho também é um conjunto de
partes que nas suas relações compõem o seu olho e somente o seu olho, não o meu. Isso pode
ser infinito pra cima, como uma relação social, que também é um conjunto de partes, que nas
suas relações compõem essa relação em especial. Cada apresentação aqui é um conjunto de
partes que nas suas relações compõem esse espetáculo e somente esse. E em outro dia vai ser
outra coisa. Você então desloca a noção de que o corpo é uma forma privada para uma forma
relacional. Eu só me defino por relações sociais, políticas e todas forças que me atravessam. A
definição do que você é não passa só pelo privado. Passa por essas forças que te atravessam e
redefinem o tempo todo. Pode-se então pensar no corpo como um espaço público. Você é um
espaço público, aí dá pra sair dessa dicotomia de pensamento capitalista que divide o que é
público e privado. Esse conjunto de redes extrapola sua vontade e seu desejo, que faz com que
você queira se manter vivo nessa composição. Nosso corpo é uma composição, uma
biopolítica. A biopolítica é a tentativa de controlar esse corpo para certas funções sociais a
serviço de um poder estabelecido. Também existe uma biopotência, que é como esse corpo
pode escapar disso e criar. A performance, o teatro, a dança, formas presenciais de arte, criam
uma biopotência, onde o seu corpo nega essa dicotomia, você está trabalhando o espaço
público de uma forma privada, por exemplo a Eleonora. Ela está falando de amor, que é
privado, no espaço público. A performance tem no corpo uma grande potência de ação porque
o próprio corpo é um espaço absolutamente privado e absolutamente público, porque é nele
que incidem as forças. Antes de definir o que é público e privado eu diria que estamos no
momento da crítica dessa visão simplista dicotômica. O André Carrera, por exemplo, trabalha
249
bastante em espaços públicos. A Marina Abramovic tinha uma performance onde ela ficava
numa casa de vidro.
L- Mas também estava dentro de uma galeria. Eu fico pensando nesse jogo de poderes e acho
que isso tem a ver com público e privado.
R- Por exemplo aqui fazemos um evento público no SESC, que é privado, então as coisas
estão misturadas. Ao mesmo tempo criticamos dentro do espetáculo as noções de ator, de
espetáculo, de personagem. Estamos fazendo isso dentro de uma instituição que está
definindo as artes cênicas hoje. Ao mesmo tempo é isso que nos dá abertura pra criticar esse
tipo de atitude, dentro do próprio. Como o Bauman falava do mundo líquido, onde as formas
estão dentro do acontecimento, hoje estamos nesse acontecimento, onde temos que ter CNPJ,
por exemplo. Então até que ponto podemos falar dessas relações de poder onde o espaço de
criticá-las está no espaço que se abre nelas mesmo? Não tenho a solução e também não acho
que o jeito é fazer teatro Brechtiano. Há um jeito sensível de fazer política, precisamos ter
essa noção de rede e de resistência, a performance cria resistência. Tem um autor que fala que
resistência é composição e exposição. Ou seja, você não vai contra algo, você compõe com
esse algo. Ir contra algo de alguma forma também é legitimar esse algo. Como se compõe
com isso? Não é roubar quando o outro rouba, é como você é afetado pelo seu entorno e como
você cria fissura e linha de fuga pra sair disso. Mas você precisa compor com isso, você faz
parte disso. Isso é dificílimo de fazer, é mais fácil ir contra. Mas o discurso do contra é vazio,
você anda de carro, mora numa cidade grande, ganha dinheiro do estado pra fazer suas coisas.
Vamos mudar esse discurso, acho que aí, sim, fica produtivo. E se você não expõe a
composição também não adianta nada. Você compõe com a podridão e expõe essa podridão.
Isso está num livro chamado 'Arte e Resistência', está no meu site.
L- Pensando numa possível associação entre a sua ideia de performance e o que você conhece
sobre o minimalismo, como você definiria ação simples?
R- Simplicidade já é uma coisa extremamente complexa. Eu estou num projeto que chama
memória e micro-percepção. Leibniz nos dá um exemplo: Quando você olha o mar, você ouve
o barulho do mar e reconhece que aquilo é o barulho do mar, isso é uma macro-percepção
formada por muitas micro-percepções: a água batendo na água, a água batendo na areia,
vento batendo na areia, vento batendo na água, batendo na pedra, areia batendo no peixe, etc.,
o conjunto disso é o que você percebe, “ah, o barulho do mar”. Seria impossível decodificar
todas essas pequenas percepções. E você não consegue pensar racionalmente sobre as
pequenas percepções, mas elas te afetam. O mar te afeta, você percebe o mar de um jeito,
mas ele te afeta de outro. Deleuze e José Gil, refletirão sobre isso posteriormente. O que
250
chamamos de ação, essa rede é composta não somente de macro-percepções, mas também por
esses afetos de micro-percepção. Como a micro-percepção não é concebida conscientemente,
só conseguimos conceber conscientemente a macro-percepção, aquela é sentida. Existe um
nível de sensação, de uma invisibilidade, que mesmo no movimento mínimo pode afetar.
Uma ação simples poderia criar essa rede de micro-afetos, de micro-percepções, de
sensações. O público, o transeunte está percebendo o seu corpo parado ou fazendo mínimas
ações ou ações simples, mas na verdade existe uma complexidade de micro-percepções,
micro-relações e micro-afetos que está afetando-se e afetando e sendo afetado pelo espaço
ao redor. Como o mar que você só ouve o barulho, mas você não vê toda a água, toda a areia,
todos os peixes e todo o vento batendo ali. Eu acho que a arte está muito mais próxima dessa
simplicidade micro-perceptiva do que de uma ação macro-perceptiva. Hoje se existe algum
tipo de formalismo esquece-se das relações invisíveis e aposta-se só no macro no trabalho do
ator, do performer. Uma ação simples teria uma macro-percepção simples, não
efetivamente grandiosa, seria mais condensada, mas teria uma grande complexidade
nessa camada de micro-percepções.
L- E isso para o artista seria consciente ou inconsciente?
R- Como as micro-percepções não são conscientes, o artista nunca vai ter controle total disso,
mas ele vai poder criar um campo de jogo e de experimentação onde ele possa mergulhar e
fazer com que esse campo aconteça, dentro do campo ele não tem controle consciente, ele
pode criar condições para esse campo. Eu vejo que a performance trabalha com a criação
bastante consciente de um campo. O campo em si não é consciente, porque o acontecimento
vai, se faz naquele presente, isso não é conscientemente controlável.
251
DIA 2 – 24.08.12
L – Na entrevista anterior nós conversamos sobre performance, a diferença entre ação e gesto,
falamos sobre espaço público, um conceito mais amplo do que a dicotomia público-privado,
entender o corpo como espaço público, e terminamos falando sobre ação simples, que tem
uma relação com seu projeto das micro-percepções. Como o simples se trata de uma rede
complexa de micro-relações, micro-percepções e micro-afetos. O que me faz lembrar também
do exemplo do mar (de Leibniz) que você deu, nossa apreensão do barulho do mar. E sobre a
arte buscar essa “simplicidade”.
R- Com nível de complexidade muito grande
L- Em que esse invisível também faz parte.
R– Invisível que não é metafísico, está nas relações, é imanente. É muito mais palpável, mas
imperceptível, porque não se tem uma sensibilidade perceptiva disso, mas se pode ser afetado
por.
L– Como você definiria o mínimo gesto?
R– Perguntas que pedem definições são difíceis porque você tem que circunscrever algo num
contexto e reduzi-lo. Às vezes paradoxalmente uma coisa é algo e seu oposto ao mesmo
tempo. Hoje penso muito mais em campos que se fundem. Eu nunca pensei em unidade
mínima, é algo difícil de se pensar. O mínimo gesto no sentido de decupar o que seria o
mínimo, o mínimo pensado enquanto unidade mínima, entramos numa questão ainda mais
complexa. Quando você tem algo estruturado, a linguagem por exemplo. Aquilo te impõe
uma estrutura que você tem que obedecer, não se pode comunicar sem isso. Se eu usasse um
código que você não domina, não haveria comunicação. Se eu falasse russo, por exemplo, e
você não. Qualquer tipo de estrutura tem estruturas macro e micro. Dentro da língua tem o
fonema, que é a estrutura mínima que forma sílabas, palavras, frases, verbos, substantivos,
também em padrões pré-estabelecidos. Para achar uma unidade mínima de algo é preciso uma
estrutura racional, organizacional em que você consiga ir do mínimo ao máximo numa relação
sequencial. Eu suponho que quando você fala mínimo gesto exista um gesto complexo, uma
estrutura gestual, e seria algo como retirar o mínimo, a unidade mínima. O Richard Dawkins,
da biologia, se aventurou a pensar a cultura. A unidade mínima da cultura, o gene cultural
seria o meme, informação mínima passada de geração a geração, que deixaria a cultura de um
povo. Pensando a vida como biologia, a unidade mínima seria o DNA, que se estrutura até
formar um corpo humano singular ou corpo animal, etc. Em que daquele corpo singular, de
uma organização complexa, de milhões de partes e suas relações determinando o que você é,
252
você pode reduzir ao gene. Eu retornaria a pergunta a você, perguntando qual é um gesto
complexo, qual a estrutura gestual. Existe um grande problema quando pensamos no corpo ao
se pensar estrutura mínima. Qual é a ação mínima que se pode fazer dentro de um espetáculo,
dentro de uma ação física? Qual a estrutura mínima da ação física? Nós chegamos à
conclusão que a estrutura mínima da ação física é a própria ação física como um todo, porque
o todo da ação física é o mínimo dela para que exista não tem como decupar esse gesto, qual a
unidade mínima desse gesto? Não dá pra pensar o corpo sem pensá-lo em fluxo. Não há lugar
onde começa nem onde termina. Onde começou essa entrevista? Quando você me fez uma
pergunta ou quando me ligou aquele dia? Podemos escolher, inclusive. O corpo não se reduz
a uma organização racional, só no nível biológico, que é o gene. Você só pode reduzir se
recortar, mas o corpo é um conjunto de relações biológicas, materiais e de forças históricas,
sociais, culturais e relacionais. Como reduzir um gesto mínimo dessas relações todas?
Falando de espetáculo, de performance, também não é possível reduzir isso, porque hoje
também o teatro e performance contemporâneos querem entender o corpo com todas suas
relações. Será que talvez o que você procura não tenha outro nome? Um gesto condensado,
talvez. Um gesto que condense numa micro-ação um fluxo de tensão, de acontecimento.
Nesse gesto não se ignora os fluxos, condensa-se. Pela lei física, quando se reduz o espaço, a
matéria (o ar, as moléculas) se intensifica e gera energia, potência. Hoje eu gosto de trabalhar
com isso, com gestos sutis, são poucas ações no espaço, de grande condensação. O Butoh é
assim (veja a condensação de gestos e ações do Kazuo Ohno). Outro princípio é o da
antropologia teatral: enquanto no cotidiano você tem o mínimo de esforço com o máximo de
resultado, nas relações codificadas que a antropologia teatral coloca você tem o oposto, o
máximo de esforço com o mínimo de resultado. Quando Stanislavsky fala de ação na inação,
isso é uma condensação gestual, na ação.
L – Acho que tem relação com o que eu penso. Uma sutileza.
R – Isso amplia para que se possa perceber as micro-percepções. No fundo a tão buscada
ampliação de consciência, através de drogas ou experiência mística, por exemplo, pode ser
alcançada com esse gesto, que tem isso como consequência. Ele te proporciona uma
“diminuição” de consciência no sentido de infra-consciência, você não perceberá o “todo”,
mas os mínimos detalhes, percebe-se as relações sutis.
L– Eu acho que era uma tentativa de ligação entre a linguagem da performance e o
minimalismo das artes visuais. Um escultor pode reproduzir um homem inteiramente numa
pedra e um outro trabalho pode ser uma pedra com três riscos e também fica claro a imagem
de um homem.
253
R – Sim, até que ponto um quadro de um suprematista que é um quadrado não é uma
condensação de formas e não uma unidade mínima retirada? Esses três riscos na pedra, são
uma condensação de linhas, e não uma retirada de linhas e o esquecimento de todo o resto. Se
eu tiro o sangue de você, aquilo é outra matéria, te pertence, mas não é mais você, está fora de
você. Na condensação eu penso em como mostrar o sangue não retirando-o de você,
condensando-o. Pra mim todo o movimento minimalista é isso, não a retirada de uma parte
mínima de um todo complexo, mas a condensação de um todo complexo. Seria como
condensar toda uma gestualidade num gesto só. Não é uma parte pelo todo, é o todo
condensado. Uma música minimalista não repete um ponto até o limite, mas como se
condensa naquele ponto, numa frase musical, toda uma musicalidade. Se você busca isso na
sua performance é algo muito nobre, muito difícil.
L – Voltando à sua pesquisa, você poderia falar sobre micro-ações e micro-percepções e
como tem sido desenvolver esse termo na prática ao longo desses anos de Lume?
R – Na verdade não existe um modelo prático, porque a micro-percepção não é um trabalho
técnico racional, só consegue-se trabalhá-la pela experiência do fluxo. Então criamos espaços
de experiência. Toda manhã há um espaço de experimentação no Lume para que você crie
uma atmosfera de experimentação pra entrar num fluxo perceptivo. Eu trabalho bastante com
paradoxo, de ação na inação. Por exemplo, um exercício que eu dou é você colocar uma
música e dançar sem mexer o músculo. Como se dança sem se mover? Outro exercício de
como condensar: você pula, pula, e vai pulando e condensando até não pular mais, você pula
já parado (como é o pulo da musculatura interna). Ou: faça ações suaves e densas ao mesmo
tempo durante uma hora. Você precisará achar um lugar para fazer isso de alguma forma ,
criar um caminho de busca. Eles são exercícios simples, mas vêm num bojo físico muito forte,
há bastante preparação para ativar algumas relações musculares e relações com o ambiente,
para que o corpo possa adquirir essa sensibilidade, esse fluxo relacional micro-perceptivo.
Perceber, ser afetado e afetar o entorno, sem grandes ações no espaço, ou uma ação
absolutamente internalizada. Isso não é novo. Ação na inação, Grotowski falava sobre
condensação. Esse trabalho interno é uma questão micro-muscular, sutilmente muscular de
conexão . Um pensamento corporal.
L – O que seriam esses micro-ações?
R – Não dá pra definir, é um fluxo de diferenciação que se dá numa relação muito sutil
(espaço, tempo, outro). Quando se passa por isso é tão claro do que se trata porque é uma
questão absolutamente vivencial. Só é possível entender a micro-ação, a micro-percepção, a
relação de sutileza quando você mesmo entra no campo de experiência, e não estamos
254
falando de conhecimento científico, mas conhecimento que o corpo adquire, as fichas caem
depois da experiência. É um pensamento que não é racional. Um pensamento do corpo. O
corpo é mais composicional e relacional do que nossa síntese de consciência racional.
Podemos falar sobre isso, estamos até usando palavras pra falar sobre, mas isso só faz sentido
concreto no campo experiência.
L – Mas não é aleatório, existem formas de ativar isso.
R – Sim, isso são três formas que eu falei pra ativar isso, deve haver milhões. Citando
algumas grandes: Stanislavsky, Grotowski, Artaud, Tchekov, todos trabalharam pra entender
isso racionalmente, criaram sistemas, métodos, procedimentos, exercícios. Os orientais
relacionam com a energia. É um lugar de trabalhar a concretude do invisível, do impalpável.
L – E o que te impulsiona para isso?
R – Eu penso que a presença do ator, organicidade do ator e até mesmo a vida do ator moram
nesse lugar, por isso quero estar aí... Eu acredito que a grande potência que se pode ativar
relacionalmente, esteticamente, poeticamente necessariamente passa pelo invisível.
L – O mínimo gesto seria o micro-gesto?
R – Sim, eu acho que é o gesto condensado. As palavras não importam desde que você
explique o que quer dizer. Você pode usar a palavra que você quiser. As palavras estão dentro
de um sistema organizacional que não dá conta de explicar racionalmente a experiência. A
poesia se utiliza da estrutura para fugir dela mesma. Da mesma forma também temos um
corpo biologicamente estruturado, e a grande pergunta das arte cênica presencial é saber como
o corpo foge dele mesmo, dessas grandes estruturas biológicas, históricas, econômicas,
sociais, emocionais, da sensibilidade. É muito fácil falar que o teatro trabalha com a
sensibilidade, mas ela é construída, ela não está para além do constructo econômico, social,
histórico. Você sente, se emociona desse jeito hoje porque existe uma construção de
sensibilidade para que você se emocione assim. O teatro busca que a sensibilidade fuja da
própria sensibilidade, busca montar outras formas sensibilidade, diferente dessa, construída
para e em função de algo dado, de um poder estabelecido. Você precisa se sentir “assim” para
consumir certas questões sensíveis. Hollywood trabalha “assim”, a novela trabalha “assim”.
Como se pode construir outra sensibilidade? Na maioria das vezes não conseguimos.
L – Também tem uma vontade minha de que a arte esteja mais presente na vida das pessoas.
Como esse mínimo pode estar passeando mais por suas vidas e às vezes elas nem percebendo
isso, mas está lá acontecendo. Em que medida você acredita que o mínimo ou o simples
possam atravessar essa construção, essa complexidade, esse excesso posto pela vida urbana,
pensando nos fluxos?
255
R – Macroscopicamente as questões estão dadas, é tudo uma construção. Você tem uma
sensibilidade macroscopicamente construída. A camada de micro-percepções, de virtualidade,
não está totalmente massificada, ela tem mais liberdade de se reconectar, de construir alguma
outra forma diferente dessa. Eu imagino um constructo sensível como um grande quadrado
que tem em volta muitas potências de micro-percepções soltas, elas são selvagens e se
recombinam de formas que não estão dadas, elas têm mais possibilidade de conexão de
relações. Nossa identidade não é unitária, ela se dá em relação. Às vezes esquecemos que
nossas relações partem desse âmbito invisível, sutil de forças. Se lembrarmos disso podemos
criar fissuras nessas grandes estruturas de pensamento e sensibilidade que nos formatam. Eu
acredito muito nessas relações. É uma forma absolutamente política de resistência assumir o
sutil, o delicado, o ínfimo, o virtual como algo que possa fissurar essas relações.
L – Mas se isso ficasse instaurado, já não se torna o novo modelo?
R – Sim, tudo é uma construção. A questão é não tornar isso um modelo. O que temos hoje é
um modelo de sensibilidade, econômico e social. ‘Outras formas de sensibilidade’ não quer
dizer que se vai trabalhar com outros modelos, quer dizer que se vai trabalhar com diferenças
que em relação ao modelo não se transformam em modelo. Não proponho outra forma
macroscópica de organização para que ganhe dessa que já é dominante, eu proponho uma
resistência pequena das minorias para que essa grande estrutura se dilua e não vivamos mais
por modelos, e sim por relações de minorias, onde as minorias todas possam conviver, criar
suas próprias regras, resistências, e inclusive entender que não podem criar modelos de
minoria mas estar sempre no fluxo de diferença. A arte não quer modelos, quer estar na
diferença, na diluição de modelos. Por isso a palavra resistência não é resistência a um
modelo, é resistência de sempre estar criando outras formas de sensibilidade. Não é ir contra,
é compor com essas forças pra gerar uma relação potente de diferença.
L – Isso me lembra do devir, sobre o qual você fala...
R – O devir é basicamente um fluxo de diferenciação sem modelização. A questão não é criar
outro modelo, não se deveria nunca mais criar modelos. Eu gosto de dar um exemplo, que é:
há um modelo de gênero dominante, que é o heterossexual, branco, rico, de meia idade,
ocidental. Qualquer coisa que saia disso tem que lutar para ter espaço. As mulheres, os
homossexuais, os negros estão fora disso. Começa-se a criar lutas pra criar espaços em
relação ao modelo: movimento dos gays, feministas, dos negros, etc. O movimento gay tem
dentro dele gays femininos e gays masculinos. Se você é bissexual, já não está no modelo,
então precisa criar mais outro modelo, se você é pansexual também, outro modelo. Ninguém
destruiu o modelo-mor, só foram criados mais modelos ao redor, e para se enquadrar, você
256
precisa criar mais modelos ainda e escolher. Se você não se enquadra em nenhum é
complicado, você encontra resistência por todos os lados. Esse lugar de posicionamento,
muito vinculado a uma relação marxista, é difícil. E se eu quiser estar sempre nesse fluxo de
diferença? E se eu quiser hoje ser gay, e depois ser hétero, e depois ser bi e depois virar
padre? Pelo modelo estabelecido hoje eu seria louco, porque eu não posso ter esse fluxo. Se
pensamos em multiplicidade, isso quer dizer uma liberdade absoluta de se estar em devir.
L - Então não existiria ruptura?
R– Sempre existe ruptura, pois tudo é constructo. O devir é uma ‘sempre ruptura’. Se você
constrói uma forma de sensibilidade, já é preciso pressupor a ruptura do modelo de
sensibilidade criado. Porém como algo positivo. A dialética a grosso modo é a negação do
que acabou de ser construído. Isso é um cuidado para a não modelização, para a
potencialização.
L– Você conseguiria, a partir do título da minha pesquisa ‘A performance em espaços
públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples’, estabelecer alguma relação ou
entrecruzamento possível entre nossas pesquisas? E como a micro-percepção poderia auxiliar
na construção de ações simples e mínimos gestos?
R – O mínimo gesto e ação simples que você busca na sua pesquisa está nesse cabedal micro-
perceptivo do qual falamos. Pensar no lugar público como o corpo, o lugar mais público que
existe. Pensar o corpo para se potencializar e fugir dele mesmo, enquanto modelo de corpo
nesse espaço público e nos espaços públicos. Conseguir isso através do mínimo gesto, de
trabalhar nesses fluxos e correlações. Eu venho me perguntando isso desde a primeira
pergunta, tentando relacionar o seu ‘mínimo gesto’ com tudo que eu faço.
L – Como você acha que essa micro-percepção poderia auxiliar na criação de ações simples?
R – Entrando nessas relações de experiência. Seria bom experimentar essas relações de
sutileza, paradoxo, no seu próprio corpo, achar no seu corpo essa potência micro-perceptiva
através dessas sutilezas, para que você possa verificar se isso pode te ajudar no que você está
chamando de mínimo gesto. Ou seja, partir para a prática, mesmo.
L – Em que medida a arte, que em sua raiz terminológica já denota artifício, necessita
espetacularizar-se para dialogar, influir, tocar, trocar com o espaço público (e seus passantes e
habitantes) que se julga atualmente espetacularizado? Você acredita nisso? Que possibilidades
enxerga?
R – A arte é um artifício, sim. O Guy Debord fala da espetacularização que é sedução ao
modelo. A arte também é um constructo, porém de resistência a modelos. Não existe
nenhuma pureza a ser buscada, ela busca outra forma de modelo como resistência ao modelo
257
dado, é um outro espetáculo, mas um espetáculo em resistência ao grande artifício. Ela não
deixa de ser espetáculo.
L – Para mim artifício passa a ideia de uma mentira. Uma dúvida que me aparece enquanto
performer é a diferenciação que existe entre o que é real e virtual. No trecho ‘O virtual não se
opõe ao real, mas somente ao atual. O virtual possui uma plena realidade enquanto virtual. Do
virtual é preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: reais sem
serem atuais, ideais sem serem abstratos’ e como o Deleuze continua: ‘simbólicos sem serem
fictícios’, isso me instiga e eu gostaria de entender melhor isso. Eu acredito que o que faço em
performance é um trabalho que é simbólico porém não fictício. Queria saber de acordo com
os seus conceitos se ele é real, virtual ou atual.
R – O virtual não se opõe ao real. Tudo, tanto simbólico, quanto fictício, como virtual, como
atual, tudo isso é real. O virtual é tudo o que conversamos sobre essa invisibilidade, essas
micro-percepções, essas relações, o fora do modelo, as possibilidades de reconfiguração. O
Deleuze fala que isso é real, não está em outro lugar, está junto ao modelo, está acontecendo.
Então existe uma possibilidade de sair do modelo se atualizarmos o real de de uma outra
forma. Então tudo o que você faz é real, você pode fazê-lo vinculado ao modelo ou buscar
outras relações de construção criativa para uma outra coisa que entre em resistência ao
modelo dado. Você está atualizando algo outro. Um espetáculo performativo é isso. Se você
busca uma simbologia pelo gesto mínimo você está buscando no universo virtual uma
atualização de algo que seja formalmente resistente ao modelo dado.
L – O virtual que você fala é diferente do virtual que conhecemos.
R – É. Não é o mundo virtual impalpável, esse virtual existe, precisa de atualização. O artista
atualiza esses virtuais de modo que seja, uma arma contra o modelo estabelecido.
258
DIA 3 – 25.08.12
L – Ontem terminamos a conversa falando sobre real, virtual e atual. Acho que muitas
pessoas se perguntam na performance o que é estar, ser, a questão da presença. Que limiar é
esse que divide o teatro e a performance?
R – No campo do virtual não vejo diferença entre eles, eu vejo no campo macroscópico
estético, no campo dos procedimentos, até na relação com o público. Tanto teatro como
performance precisam trabalhar no campo virtual, que é real mas precisa ser atualizado numa
efetuação de resistência. Se o teatro usa procedimentos macroscópicos para se apresentar e se
relacionar com o público e a performance usa outros, eles se encontram nessa camada virtual.
Pensando o virtual como uma realidade não dada, imanente, que precisa ser efetuada. Uma
certa realidade selvagem onde precisamos gerar dispositivos que sejam críticos, de fissura dos
modelos estabelecidos, ou pelo menos de problematização.
L – Você coloca a virtualidade como essencial na formação do corpo.
R – O corpo é um duplo nessa questão.
L – E a relação com a memória?
R – A memória é virtual, toda ela está no seu presente, você não se lembra de tudo porque ela
é virtual, você atualiza no corpo conforme a necessidade ou até involuntariamente. Um déja
vu, por exemplo, é uma delas. A ‘Madeleine’ do Proust, por exemplo, naquele trecho em que
a personagem toma um chá e come um bolinho, sente uma alegria extrema e se lembra da sua
infância: ele não buscou aquilo. Foi fisicamente efetuado, 30 anos depois por causa do
bolinho e do chá, uma memória foi atualizada. Nós pensamos memória como lembrança que
se pode controlar. Não, a memória é em grande parte involuntária.
L – Pensando na arte como um todo, a arte seria uma “troca” de experiência? Pensando nessa
“troca” com o público, por exemplo. O “valor de troca” da arte é social ou econômico, qual a
diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”?
R – Eu não vejo como nenhuma das duas coisas. Eu vejo seu valor como valor sensível.
Também não é troca de experiências. Ela deve gerar um campo de experiências onde os
encontros possam acontecer nesse lugar, e aí pode-se trocar afetos, percepções, sensibilidades.
Há compartilhamento de sensibilidades, uma partilha de sensibilidades. É difícil falar da arte
em geral. Algumas manifestações artísticas têm como objetivo – mais potente, a meu ver –
esse compartilhamento de outras formas de ver, de tocar, de sentir o mundo. Claro que isso é
transformado em valor de venda, como nosso espetáculo (Os Bem Intencionados) coloca.
Todo mundo precisa de patrocínio, vender espetáculo, um SESC que compre...mas comprar o
259
quê? Justamente, a nossa crítica engloba tudo isso. O que está em questão é: essa obra de arte
potencializa afetos, encontros? Pra mim só pode ser chamado arte se houver e se conseguir
efetuar esse tipo de encontro aumentativo de potência. Eu não vejo como troca de experiência,
não é a experiência do artista que está sendo trocada com o público, nem o contrário. Nesse
campo você aumenta a potência criativa de todo mundo que está dentro. Lugar de
criatividade. O público tem que criar junto com você. E também não vejo a arte só como lugar
de crítica, esta vem no bojo dessa relação, é quase uma consequência natural. A partir da
criação desse espaço você gera outras maneiras sensíveis de ver o mundo, e para isso precisa-
se gerar uma resistência ao modelo estabelecido de sensibilidade. Então naturalmente a
relação crítica vem, ela é consequência e não objetivo, apesar que sempre presente se a arte se
efetua de fato. Qualquer compartilhar de sensibilidades hoje é um ato absolutamente de
resistência política, mas a resistência política vem como consequência do partilhar a
sensibilidade.
L – Às vezes vemos trabalhos de artes visuais que classificamos como “pura forma”, algo que
não nos toca de maneira nenhuma, então me pergunto onde está a crítica...
R – Para mim, se eu faço arte consequentemente faço crítica, mas eu não busco a crítica na
arte. Para mim o objetivo é compartilhar sensibilidades, para isso é preciso resistir a uma
sensibilidade dada a priori, e isso é um ato político, um ato de resistência. Quando você
conscientemente quer ser crítico, geralmente o espetáculo sai ruim. Você começa a adentrar
as fórmulas de crítica, começa a contrapor um modelo a outro modelo.
L – Porque dessa maneira se impede aquela multiplicidade da qual falávamos ontem.
R – Exatamente. Modelo contra modelo cria outro modelo que vai se tornar hegemônico
como esse. A revolução russa foi isso. Criou um modelo hegemônico em contrapartida a outro
modelo. Até que ponto isso é interessante, eu me pergunto. Meyerhold foi assassinado pelo
regime dito democrático. Até que ponto não temos que criticar todos os modelos? Se você faz
arte você está fora de todos os modelos, compondo com todos eles. Hoje você só faz arte com
patrocínio, Petrobras, SESC, universidade, e todos eles fazem parte dos modelos
hegemônicos. Ou você compõe com isso, fissura isso, e através disso você faz, ou eu não sei
como seria possível para fazer de outro jeito. Senão é só discurso, ideologia vazia. E
concomitantemente consome-se Coca-Cola, em seu Volkswagen, vai à Blockbuster aluga um
filme hollywoodiano, compra vinho de grandes potências europeias, numa taça Nadir
Figueiredo. E assim o mundo caminha.
L- Na conversa do bar.
260
R- Sobre quão nós devemos ser resistentes a tudo isso. A arte busca outra coisa, senão é muito
hipócrita.
L – E qual a importância do público no seu trabalho?
R - O público é onde qualquer tipo de coisa que você queira fazer com arte se efetua. A obra
artística de caráter presencial pra mim só se efetua com público. Ali a obra acontece, tudo
antes foi uma preparação para aquele momento. O público é co-criador da obra e essa precisa
dar espaço pra ele co-criar. Não acho que o palco italiano impeça isso, é outra coisa. Sempre
há um caráter de jogo, o público cria com você. Se você entrar para mandar uma mensagem
para o público ou se colocar num lugar superior, porque acha tem mais consciência politica,
sensibilidade que eles, você está se colocando numa situação hierárquica superior ao público e
não consegue estabelecer jogo. A potência criativa está em você e nele também. A arte hoje
precisa acordar essa potência criativa do público. Isso está em falta.
L – Eu já vi trabalhos de dança nos quais eu não sentia em nenhum momento que eu fazia
parte daquilo, e mesmo em performance isso acontece.
R – É, não tem a ver com teatro interativo. Qualquer Van Gogh está totalmente aberto pra
você se fundir com ele, é poroso, é uma outra forma sensível de ver o mundo. O Kurosawa
fez o ‘Sonhos’ não por acaso, porque a obra do Van Gogh gera outras criações, tanto num
caráter de influenciar outra pessoa a fazer um filme tanto no momento efêmero em que você
está em frente a um quadro dele. Tem coisas que ajudam, como quebrar o espaço, mas não há
regras. Você pode ter um espetáculo absolutamente poroso num palco italiano e uma obra
absolutamente fechada num espaço público.
L – Você pode falar sobre entre-lugar? Eu li que você aproxima fronteira de não-lugar nos
seus escritos.
R – Para mim fronteira é um lugar de limite, não é um delineamento entre uma coisa e outra.
Quando eu falo ‘a fronteira do teatro’, não é onde começa a dança, onde começa a
performance, como se poderia dizer. Pra mim é o limite do teatro, até onde se pode ir. Além
da fronteira não há mais nada a não ser mais fronteira. É um lugar que expande o espaço.
Ontem falávamos do corpo e a virtualidade mora na fronteira, no limite. Como buscar esse
limite? Cada grupo e artista tem suas especificidades para isso. Eu vejo o Tó forçando limites
nos seus espetáculos, como gerar um monumento, um enquadramento, naquele espaço de
limite. O rio Tietê, o rio odiado e amado, é um lugar de fronteira. Ele não faz separação entre
municípios. Lá é um não-lugar, ninguém entra naquele rio. É um limite natureza-cidade, um
limite vida-morte. É um lugar de paradoxo. Eu vejo muitos grupos buscando limites. Nós,
nesse espetáculo, buscamos o limite de nossa própria historia. Tentamos jogar fora tudo o que
261
é conhecido. Não significa que estando nos limites você está seguro, lá é o lugar mais
arriscado. Quando você assiste um musical da Broadway é o centro, entende?
L – Não tem muitos riscos...
R – Não tem nenhum risco. Você faz uma novela, não tem nenhum risco. Um filme
hollywoodiano, se você seguir certos parâmetros não há risco nenhum. Quando você sai
desses padrões está no lugar de fronteira.
L – Isso me lembra do nômade, o ‘corpo nômade’.
R – O nômade não está em lugar nenhum, não se fixa. Mas se fixa justamente no não-lugar,
ele opera a raiz no movimento, no fluxo, o território é o próprio desterritório. Eu acho uma
boa metáfora para os grupos de teatro, dança: como criar raízes em um ambiente movediço,
perigoso.
L – Eu trouxe alguns termos do André Carrera, como ‘arte de rua’, ‘arte na rua’ ou ‘arte de
invasão’, que estão no artigo Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade, que são
formas de entender os possíveis diálogos entre a arte a cidade. Como você vê atualmente o
espaço público da arte no espaço público?
R – Minha especialidade não é essa, mas tem um espetáculo que é a Parada de Rua, onde
invadimos lojas e supermercados e fazemos uma bandinha, algo muito simples. A arte sempre
ocupou o espaço da rua na verdade. A arte rupestre já fazia isso. Independente do nome que
se dê, existe um procedimento que fala que teatro de rua e teatro na rua e invasão são coisas
diferentes. Minha questão não é tentar entender cada procedimento nem delimitar espaços
públicos ou privados. Seja o que for e onde for, quero saber se essa arte potencializa algo.
Teatro de invasão significa que eu vou invadir um lugar e fazer teatro, mas o que me mais me
interessa é saber se isso vai gerar algo. Minhas perguntas são outras.
L – Talvez seja um preconceito ou uma constatação errônea achar que a arte está pouco
presente na vida das pessoas, que teríamos que ir a lugares pra fruir essa criatividade. Por isso
quero entender como essa arte ocorre no espaço público.
R – A arte está ausente do grande público e eu concordo com isso, mas então o que queremos
ao levar arte a essa população? Levar qualquer coisa? O que queremos? Levar uma banda
mascarada para a favela? É isso? A minha questão, independente do nome, é com que
qualidade vamos a esses espaços. Só um procedimento não justifica, não cria arte, se não for
intensificação. Como fazer isso é outra questão. Para mim as perguntas são realmente outras.
Eu não sei diferenciar esses procedimentos. Eu sei que se eu fosse fazer algo nesse sentido, eu
teria todos os princípios sobre os quais estamos conversando.
262
L – Da forma como vivemos hoje, você acha que existe abertura para que a arte aconteça no
espaço público?
R – Eu acho que abertura, sim. Teoricamente o espaço público é aberto. Mas não depende
somente de uma relação quantitativa, qualitativa também. Se cria um campo de
experimentação ninguém se recusa a entrar nele. Ninguém se recusa a criar, existe uma pulsão
de criação no ser humano, seu desejo é criar. Essa força do desejo foi desviada para outros
fins. Então se a arte, seja qual for, cria esse campo, ninguém se recusa a entrar.
L – Você tem algum comentário, quer complementar nossa conversa?
R - Eu me fiz repetitivo justamente porque acredito nessa arte que trabalha com a realidade
virtual, que é uma resistência em composição.
L – Você disse que é importante pensar mais na busca do que no procedimento.
R – Para mim a questão ética vem antes do procedimento, sempre veio.
L – Você conseguiria identificar qual é essa busca no seu grupo ao longo dos anos?
R – Para nós o que pulsa é como trazer o público para criar. E como criar uma resistência aos
modelos estabelecidos e principalmente aos modelos que nós mesmos criamos para nós. Você
cria a resistência, cria um fluxo que rebate essa resistência, mas logo isso se estratifica de
novo e você tem que combater isso de novo. Depois de 27 anos de busca temos que brigar
bastante com nós mesmos.
L – Eu vejo a necessidade de muitos grupos de buscar uma identidade.
R – Para nós é o contrário.
L – É se reinventar.
R – Nós fugimos disso, não queremos identidade nenhuma. As pessoas estranham muito esse
espetáculo, dizem que voltamos pra trás. Nós queremos, a cada espetáculo, desfazer as nossas
identidades. É justamente o contrario de ´qual é o seu posicionamento?´. Eu quero fugir de
qualquer posicionamento, eu quero entrar nesse fluxo. Podem dizer que isso é antipolítico,
porque a política está num momento líquido. Como buscar compor com essa liquidez toda e
de certa forma encontrar outro campo de escoamento? Estamos tentando escoar pra alguns
caminhos que acreditamos. A nossa posição é nômade, nem obedecemos a isso de não ter
posição. Queremos nos recriar a cada momento, não achar que a resistência está nos micro-
coletivos.
L – Eu anotei uma frase do projeto temático, que é: ‘No devir não há passado nem futuro,
nem sequer presente, não há historia, trata-se antes no devir de involuir. Não é nem regredir
nem progredir. Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio. Cada vez mais simples. Tornar-se cada
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vez mais deserto e assim mais povoado.’ Fiquei com isso na cabeça: ‘Tornar-se cada vez
mais deserto e assim mais povoado.’
264
CRISTIANE ZUAN ESTEVES.
Formada em Jornalismo e Diretora do grupo OPOVOEMPÉ de intervenção urbana e teatro.
23.11.2012
L– Primeiramente obrigada por me receber. Essa entrevista está sendo realizada sob amparo
da FAPESP com a Cristiane, diretora do Povo em Pé, no dia 23 de novembro de 2012.
Cristiane, eu queria te fazer umas perguntas. E sobre as minhas pesquisas, tenho tentado
definir alguns termos com pessoas cujo trabalho eu considero que tem relação com o que
estou pesquisando. Meu tema é “A performance em espaços públicos a partir do mínimo
gesto e da ação simples”. Vou te perguntar sobre esse tema e depois queria ouvir um pouco
sobre a história do OPOVOEMPÉ. Eu estou investigando o uso do mínimo na performance
através dessas ações simples em espaços públicos. Ações que em algum grau são quase
invisíveis diante dos fluxos que vivemos. E estou tentando definir alguns termos através de
embasamento teórico e pelas respostas dos meus entrevistados. Eu vou fazer perguntas que
não estão num caminho linear.
C – Eu também vou fazer digressões, porque vou fazer referências ao meu trabalho no
OPOVOEMPÉ.
L – Sim. E eu conheci o trabalho de vocês através de uns vídeos que o Luis Fernando,
professor da USP, me mostrou, pois achou que tinha relação com meu trabalho.
Primeiramente eu só conhecia as intervenções urbanas, e as ações com duração longa me
chamaram muita atenção. Essa interferência no cotidiano e a reação das pessoas. Você pode
esclarecer isso sobre ser um grupo de intervenção urbana que trabalha com teatro. E o que
você entende como performance?
C – É uma pergunta bem difícil. Eu não diria que fazemos performance como se entender
performance como foi nomeada e delimitada por pesquisadores, pelo menos do Brasil. Eu
tenho o Schechner como referência, que é um dos embasadores teóricos da pesquisa de
partida da pesquisa do Povo em Pé, que é algo bastante amplo. A vida acontece em ações
performativas, então olhando pelo viés da vida, das ações que podem ser performativas, esse
lugar é bastante amplo. Por exemplo você pode ver um cobrador de ônibus fazendo uma ação
que se repete vivamente, por exemplo. A questão da repetição também, já é outra discussão
em performance. Essa pergunta é impossível de ser respondida, pois há muitos campos, na
performance, performance brasileira, na prática teatral no geral, ou mesmo no OPOVOEMPÉ,
onde há algo vivo, irrepetível, poroso. Tem uma confusão de nomeação da performance. Eu
não sou teórica, então eu tiro essas conclusões da minha prática. Mas é uma possibilidade do
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aqui e agora de viver e descobrir junto. Já estive em discussões onde diziam que o teatro não
era performance. O teatro também é performance. Eu tenho um texto, mas se a interação
acontece como momento presente e espaço real, se não estou representando, estou em ação, é
um estado de performance. Eu não diria que fazemos performance nesse sentido, mas ao
mesmo tempo a vida é performativa, estamos fazendo performance, fazendo ações. Esse
aspecto performativo está presente em muitos campos da vida e da arte, das ações presentes e
porosas.
L – E você falou do cobrador de ônibus...
C – Sim, ele age, responde...Eu trabalhei com o Stefan Kaegi, do Rimini Protokoll, era uma
pesquisa com os policiais paulistanos, onde observávamos os movimentos de repetição deles.
Eles têm protocolos de ação, que são elementos muito performativos. Nos treinos, nas
exibições, no comportamento. É uma coisa que é ritualizada, espetacular em alguma instância.
Não espetacular como ‘Sociedade do Espetáculo’. Talvez festivo, compartilhado, ou o visto,
mesmo. Algo que não é realizado solitariamente.
L – Mas que espetacular é esse? Como assim é diferente do espetáculo da ‘Sociedade do
Espetáculo’?
C – Quando eu menciono o ‘Sociedade do Espetáculo’ eu me refiro a uma industrialização
disso. Para os policiais a função não é a exploração disso como algo para fora, ou para que
pareça bem. É para identificação, organização, funções internas, como um ritual de índios,
por exemplo. Uma rotina de ações, que não é necessariamente aquela nossa rotina
mecanizada. No Guy Debord é outra coisa, é a midiatização, a apropriação pelo capitalismo.
Eu vejo em vários grupos o rito de viver certos valores junto.
L – E cada grupo tem seus símbolos, isso daria esse caráter espetacular?
C – Sim, os valores que se agregam a cada coisa. Mas eu não defini performance e talvez não
vou conseguir fazer isso. Já recebemos críticas dizendo que fazíamos performance, e isso era
uma crítica negativa. Já fomos recusados em uma curadoria de teatro. A peça de ontem,
inclusive, que tem uma dramaturgia muito clara, apesar de ter elementos performativos.
Podemos pensar no estado performativo, como os teóricos delimitam, que é o estar, o agir.
L – E essa diferença entre representar e agir? Como ocorre no trabalho de vocês?
C – De alguma forma estamos agindo e representando, porque não somos cientistas, somos
nós mesmas brincando. O jogo já é uma performance, o teatro é relação e jogo, é um lugar
bem amplo.
266
L – Eu reflito muito sobre essa diferença, uma mulher varrendo, por exemplo, estaria em
teatro ou performance ou teatro performativo ou etc? Em que medida é uma ação ou
representação?
C - Na peça de ontem havia mulheres varrendo as caixas de remédio. Isso é uma ação
concreta, se elas não varrerem as caixas de remédio ficarão lá, portanto elas modificam o
espaço com essa ação. Mas também há um limite sutil onde não acontece nada mas há ação,
eu estou varrendo. E aí já abre um grande campo, que é...Eu fiz uma oficina com um discípulo
do Stanislavsky, o Vassiliev, onde o grande nó era a tradução em português para ‘análise
ativa’. Nos meus estudos de Stanislavsky eu traduzia como análise ativa, mesmo, e foi
traduzido como ‘análise para ação’. Isso significa o ator se preparar para passar pelas ações na
peça. Mas isso também é performativo. Então onde está a representação, se se passa por
ações? Personagem e atuação mudam totalmente, então. Tem muitas nomenclaturas
traduzidas errado, porque não temos ‘play’ em comum com outras línguas, que tem o
significado de jogo, ação. Temos que usar performar, por exemplo, que é um estrangeirismo.
Também é um problema etimológico. Eu tenho alguma resistência com a nomeação das
coisas, porque eu sinto que damos prioridades a dar fronteiras e fechar do que entender as
coisas. Acho que é mais delicado do que dizer ‘isso é teatro’ ou ‘isso não é teatro’.
L – Você poderia diferenciar ação e gesto?
C – Isso é interessante para mim, como atriz. No Viewpoints o gesto é nomeado como algo
que tem início, meio e fim, você pode variar velocidade, repetir, pode ser um gesto
expressivo, um gesto cotidiano, um gesto que revele classe social, saúde. Ele está na esfera do
desenho do movimento. Eu posso passar a mão no cabelo com variação de amplitude, mas é
o mesmo gesto. A ação é algo que modifica o espaço e a você mesmo. Quando vamos para a
rua chamamos de ação coreográfica, não de performance. É coreográfica, mas causa alguma
alteração. Tem um exemplo de ação que é um homem que chega na mesa, põe o revólver em
cima e decide se vai se matar, acaba desistindo. Talvez nem todos tenham visto, mas o espaço
foi modificado pelo fato. O gesto, a partir do viewpoints, é coreográfico e pode ser
modificado. Dentro do gesto posso por uma outra ação. Não é intenção. Se você muda o
contexto, ele vira outra ação, pois a modificação que ele causa em si mesmo, no outro e no
espaço é outra. Mas o elemento coreográfico é o mesmo. A ação inclusive pode acontecer no
campo do invisível, pode não ter gesto, se eu estiver modificando o espaço e me modificando.
Eu posso estar fazendo muitos gestos e não estar em ação também, nada acontece, pois estou
somente em repetição coreográfica. Entrando no seu campo do invisível, do pequeno. A ação
às vezes está no invisível, na mobilização do centro de energia. Tem uma técnica do Suzuki
267
que você levanta e abaixa (mobilizando seu centro conectado com o espaço), e quando você
faz não só coreograficamente, mas está agindo também, todo mundo que assiste
‘involuntariamente’ se suspende e abaixa junto com você. Você pode ver qual é minha ação?
Parece que é subir e descer. Na verdade é suspender e baixar todo mundo. O gesto é dobrar a
perna, baixar, esticar. Essa é a diferença entre gesto e ação. Eu mudo o outro e me modifico,
não só realização coreográfica com início meio e fim. O Kazuo Ohno, por exemplo, erguia
um paninho, uma ação poderosíssima, mas um gesto pequeno.
L – Como você conceitua espaço público?
Tem uma frase do arquiteto que foi parceiro da Lina Bo Bardi que dizia que o único espaço
privado é o da mente. Às vezes nem o da mente, eu penso. Para ser muito pragmática eu
definiria como o espaço que não está dentro da propriedade e que deve ser compartilhado, o
lugar onde podem acontecer as relações humanas. A tendência hoje é privatizar os espaços
públicos, restringir o acesso. Por isso temos tanto trânsito, o carro é um espaço privado no
espaço público. Quando você está no celular também está no espaço privado dentro do espaço
público. Essa fronteira está um pouco estranha. O ‘Máquina do Tempo’ fala bastante sobre
não sabermos mais diferenciar isso. Eu creio que seja um lugar em transformação hoje.
Colocar uma mensagem no Facebook é colocar algo no espaço público e isso tem uma
repercussão. Falando então da pólis, é um espaço que todos deveriam poder compartilhar, que
se constrói significado pela acumulação do uso. Ele é redeterminado o tempo inteiro, por isso
é múltiplo, está vivo e poroso. Eu acho que é o lugar por excelência para que isso aconteça. É
o junto.
L – Você falou de cerceamento, como especificamente?
C – O fato de todos terem um carro é uma grande privatização. E também a reserva do lado
do Rio de Janeiro, um lugar muito lindo, o prefeito deixou um grande hotel internacional
construir apartamentos de luxo de 2 milhões de dólares. Isso acontece por força do capital, do
dinheiro que destrói coisas belas. Vivemos isso em várias instâncias. O fato de que a qualquer
momento eu posso desconsiderar a presença do outro, como na internet. Prédios abandonados
no centro de São Paulo, que o poder público não libera. Também existe o espaço público
simbólico das mentes, da maneira de fruir as coisas. Pela sociedade de consumo que vivemos
a nossa imaginação é colonizada por essas imagens de felicidade. Ter isso ou o corpo de um
certo jeito como felicidade é a privatização do espaço íntimo. Seu espaço íntimo é apropriado
e o de todo mundo, isso está acontecendo em esfera coletiva, em vez de o espaço ser
construído coletivamente. Acho que as redes sociais quebram um pouco essa hegemonia.
268
L – Pensando numa possível associação entre performance e minimalismo, o que você
entende por ação simples?
C – Citando a Adélia Prado. A repórter perguntou para ela por que ela deixava o cabelo
branco. Ela respondeu ‘porque acho bonito’. A repórter insistiu na palavra bonito. Mas a
palavra bonito já diz o que é, já é suficiente, não precisa explicar. Se você ouvir de fato o que
estou falando. E nós precisamos falar um milhão de coisas para ouvir uma, não conseguimos
ser simples. A ação simples seria aquela que acredita no poder dela mesma de
modificação. Não precisa criar penduricalhos. Ela em si já diz bastante, já será efetiva.
L – Eu acho interessante ouvir cada um de vocês entrevistados porque me identifico com
alguns pontos. Cada um desenvolverá por um prisma, um parâmetro, uma vertente, aquilo que
entendo de maneira particular. Também vejo pontos de vista diferentes, então isso me agrega
experiência. E como você definiria mínimo gesto?
C – Eu nunca pensei sobre isso conscientemente. Mas há muito tempo eu escrevi um texto
sobre o mínimo gesto que altera todo o espaço. Talvez eu teria que contrariar como defini
gesto e ação anteriormente para você. O mínimo gesto aqui seria uma mínima ação, porque
modificaria, teria ressonância no espaço. A mínima coisa possível e que ainda ressoe.
L – Você conseguiria pensar na diferença entre mínimo gesto e gesto mínimo?
C – Eu nunca elaborei sobre isso, gostaria de saber o que você quer dizer com isso.
L – Quando você falou de ação e de gesto. O gesto pode ser expressivo, social, cotidiano, tem
começo meio e fim, pode sofrer algumas alterações e ainda ser o mesmo gesto, mesmo
percurso coreográfico.
C – E também pode mudar de tamanho (amplitude do movimento) e ganha sentidos
diferentes.
L – Talvez um raciocínio a partir disso.
C – O ‘mínimo gesto’ para que consigamos causar uma modificação. O ‘gesto mínimo’
parece o gesto reduzido que você realiza de uma maneira essencializada. Em termos de
amplitude do movimento. Eu não tenho certeza. ‘O mínimo gesto capaz de’ criar algo, e o
gesto mínimo, é o mesmo gesto numa mínima amplitude.
L – Logo o ‘gesto mínimo’ talvez teria relação com amplitude. Se você coloca ‘o mínimo
gesto capaz de’, talvez a amplitude dele não seja mínima.
C – Sim, talvez o ‘mínimo gesto’ capaz de mudar o trânsito dessa cidade talvez seja um gesto
gigantesco. O mínimo gesto capaz de mobilizar de fato o coração de alguém talvez seja
enorme. O mínimo gesto capaz de parar a guerra em Israel, na Palestina é um gesto enorme.
Um ‘gesto mínimo’ é um gesto que pode ser invisível.
269
L – Em que medida você acredita que o mínimo e o simples podem atravessar a
complexidade, a extravagância e o excesso da vida urbana?
C – Às vezes uma ação muito pequena tem capacidade de alterar o tempo, paralisa o fluxo
cotidiano de percepção e pode alterar a cegueira pelo excesso de fluxos ou pelo fato de se
considerar que os fluxos já são conhecidos. Se algo pequeno cria um evento, por menor que
seja, e altera o fluxo existente, a percepção se altera, não se está mais no terreno do
conhecido, a percepção é ampliada. Então você fica mais predisposto a estar vivo naquele
espaço e a responder a ele de fato, não num espaço privado dentro do espaço público, mas de
fato compartilhando aquele lugar. O bando de coisas e estímulos nos faz ficar meio cegos, não
damos conta, e como parte da evolução precisamos canalizar o que lemos, o que vemos, o que
ouvimos da realidade, fomos fechando. Senão ficamos loucos. Se formos sentir todas as
vibrações dessa cidade a gente morre, se dissolve. Selecionamos o que vamos perceber. Mas
se eu crio uma perturbação no que você está acostumado a perceber, isso criar uma
perturbação nos sentidos. É interessante poder criar um outro estado de atenção.
L – Você conseguiria estabelecer relação entre o meu trabalho e o de vocês a partir do título
“A performance em espaços públicos através do mínimo gesto e da ação simples”?
C – Eu penso que tem relação com a “Guerrilha Magnética”(projeto que fundou
OPOVOEMPÉ). Foi quando voltei para o Brasil depois de um tempo fora. Em Nova York
após treinar viewpoints eu observava: ‘a cidade está dançando’, as repetições, os fluxos, os
pássaros, ‘isso é uma coreografia’. Parar, olhar a cidade ver que há uma dança do
cotidiano acontecendo. Estudei em Paris, voltei e tive um choque aqui em São Paulo, porque
antes estava vivendo situações muito mais “harmônicas” de cidade, menos caóticas. Aqui me
veio esse nome de guerrilha. Chamei mais pessoas e foi o começo do OPOVOEMPÉ. Nós
conseguimos um fomento para isso e pesquisamos durante dois anos intervenções urbanas a
partir do conceito desenvolvido de Guerrilha Magnética. Guerrilha tinha relação com o Carlos
Marighela, do ‘Manual do Guerrilheiro Urbano’: o guerrilheiro deve usar armas do
cotidiano se misturar onde está, as ações devem ser explosivas e ele deve poder se dispersar
rápido, etc. Eu peguei os itens e transformei em ação artística (roupas, ações, se valer do
próprio cotidiano para criar sua ação artística). É uma subversão que acontece utilizando
material que já está acessível. Tem esse viés do mínimo gesto, o que já está acontecendo que
eu posso me apropriar e subverter. Magnética pelo poder de imantar o outro, uma atração
voluntária e não imposta. Nós tomamos esse cuidado até hoje, para não expor os outros, as
pessoas só vêm jogar quando querem jogar. Queremos criar uma ação que atraia. Tínhamos
alguns passos para construir as ações da Guerrilha Magnética: Observação do ambiente
270
(como um guerrilheiro observa): os fluxos, acontecimentos, ações, quem são as pessoas, que
trajetos têm. A partir daí que ações vamos eleger. Nós já fizemos várias ações em
supermercados e nunca fomos descobertos. Eles viravam um espaço onde a rua poderia
acontecer. Cria-se um evento e ele se dissolve. Observação dos fluxos e a mínima
alteração. Nós fazíamos alterações mínimas que criavam um estranhamento na
percepção do espaço (de sua função ou uso). Acabamos revelando algo (um
comportamento, uma arquitetura) que já está lá e nossa percepção costumeiramente anulou.
Criamos essa mínima alteração para modificar a percepção, para possibilitar a relação e
em última instância o que pode acontecer é você liberar o espaço de jogo. Há um conceito
do Schechner que diz que há um potencial de jogo latente, n’O Futuro do Ritual’, e às vezes
você só precisa de uma ação para liberar isso. Uma das ações nossas (O que se viu, o que
você vê) era usar uns jornais para compor no espaço. Muitas pessoas entravam e participavam
conosco. Nessa época houve muito policial matando civis, e deitávamos com o jornal sobre
nós na frente da cabine policial. Nasceu na esquina da Consolação com a Paulista, a mostra
Verbo nos chamou e era uma ação coreográfica.
L – A coreografia foi para o evento ou já tinha sido pensada?
C – Não, tudo é uma estrutura improvisacional, levantamos um vocabulário. Nós temos um
ponto inicial, por exemplo, revelar um viaduto em questão. Há sim um exercício de direção e
composição, determinação de momentos e ações, um roteiro. Mas isso não quer dizer que as
coisas não serão modificadas. Então tem programação e também a vida se encarrega de que
aconteça de uma maneira única. Às vezes temos que mudar as direções, através das próprias
ações em jogo, e para isso o treinamento e regras de improvisação, para podermos nos
escutar, para que possamos ter uma ação bem estruturada. E nós aproveitamos bastante a
técnica do Viewpoints para isso escuta e resposta. O que eu privilegio nela é a resposta. A
ação do outro me coloca em movimento. Na Guerrilha a visão sobre a cidade vem do Milton
Santos, o espaço que está sendo reconstruído pelos seus usos e apropriações. No Brasil
temos realidades completamente diferentes e essa convivência potencializa a criação, a
imprevisibilidade, uma nova leitura das coisas. Nós estudamos bastante teoria, não
necessariamente seguimos os conceitos ao pé da letra. Estranhamento do Brecht, trânsito
entre invisibilidade e evento, Augusto Boal, o potencial de liberação do jogo de cada
espaço, Schechner. Um teórico catalão Jorens Barber, este fala da plurifocalidade, ele faz
concertos com sinos de igreja. Ele cria uma partitura pela cidade inteira com os sinos tocando.
Ele fala de dois tipos de espectador: o que acompanha a ação (fixo) e o peripatético (que se
desloca). O peripatético no caso de nossa intervenção encontra um jornal, encontra outro e vai
271
desvendando e juntando os pontos. Acho isso interessante. Elaboramos três tipos de
espectador a partir de modalidades de percepção: o que não vê o que está acontecendo (talvez
essa pessoa tenha sido afetada e não percebeu), o que desconfia, estranha, não tem certeza se
algo está acontecendo, mas entrou em outro estado, e o que percebe, identifica e pode vir a
interagir com aquilo. Nós também temos outra intervenção (O que você não deixa para trás),
que é de recolher depoimentos em trouxas, começa a ter perguntas, já vai se expandindo para
um evento. Quando fazemos peças com dramaturgia específica, como o ‘Farol’, é diferente. A
convenção do jogo já é dada para o espectador desde o início. É outro lugar que as ações
criam, em se tratando das peças no espaço público. Tem dois tipos de espectadores, então, o
que está dentro da ação e o que está fora vendo aquilo passar. Dramaturgicamente é menos
poroso. Um dia estávamos na rua e veio na nossa direção uma procissão de candomblé. É a
cidade viva. Você joga com ela, mas não nos modificou como provavelmente teria
modificado numa ação da guerrilha magnética, mesmo assim continua sendo plurifocal, pois
cada um se relaciona de maneira diferente com aquele mesmo material. No ‘Farol’ é uma atriz
e dois espectadores por vez, então é mais camuflado no espaço público, causa estranhamento,
mas é mais camuflado. No ‘Aqui dentro, aqui fora’ já é uma ação mais coletiva, todos, atores
e público, de capa amarela. Acharam que éramos da fiscalização. Tem muitas maneiras de
ler o que estávamos fazendo. E já tem um conceito que ouvi pelo BijaRi que é o conceito
analisador. A mesma ação num lugar (ou em outro) revela o que já está acontecendo
naquele espaço. Então quando passamos pela rua dos camelôs e as pessoas acharem que é o
rapa, isso revela uma tensão, uma dinâmica que já existe lá. Tem uma ação da galinha do
BijaRi, eles levam uma galinha e soltam a galinha no Largo de Pinheiros. Lá eles queriam
pegar, comer. Tiveram que salvar a galinha. Até alimentaram a galinha. No shopping
Iguatemi as pessoas ficaram horrorizadas, os seguranças não sabiam o que fazer. Uma
pequena ação revela o que já está acontecendo. Também temos uma ação chamada ‘Fora
de Chave’, fomos chamados por um festival na Croácia, com o tema ‘como nós lamentamos’.
Instalamos portas brancas em toda a cidade onde se podia olhar pelo olho mágico e ver uma
outra possibilidade, outras imagens, também tinha portas que caminhavam. Perto do rio que
eles reclamavam, - que era lindo, no meio do mato, mas não era usado para nada - ,
colocamos uma foto da marginal Pinheiros, suja, engarrafada, e uma foto de pessoas se
exercitando no parque, perto de um rio. Colocávamos duas possibilidades. Quando fomos
para uma área de shopping center que localizava-se num antigo reduto comunista houve uma
leitura mais política, já na praça central da cidade as pessoas achavam que éramos de alguma
campanha publicitária, porque lá já virou um reduto comercial de produtos e serviços. Este
272
lugar que podia ser de cunho político, virou lugar de propaganda, a nossa ação foi recebida
assim porque as pessoas só estão acostumadas a receber propaganda ali. E de repente darem-
se conta que não. A mesma ação dependendo do contexto em que se insere revela o que está
latente ali. E quando fizemos essas portas aqui, foi na Paulista. Lá a interação é muito mais
difícil, pois o movimento é mais em linha reta as pessoas estão indo almoçar(a arquitetura, o
uso que se faz dos espaços, de onde vem para onde vão, tudo isso define a ação). Na Croácia
as portas terminaram intactas. Aqui elas foram pichadas e escritas, sofreram muito mais
ações. Foi muito mais eloquente o que se manifestou na porta. No Rio Pinheiros colocamos
uma imagem de pessoas nadando, na Paulista um cinema ao ar livre, no outro ponto uma
ciclovia. No largo Treze, em Santo Amaro, colocamos a foto de um mercado persa, porque lá
é cheio de camelô, então em vez de expulsá-los a ideia seria agregá-los. Um dia me avisaram
que levaram a porta de Santo Amaro, porque o rapa pensou que estavam vendendo as portas.
Nós não tínhamos identificado a obra, não vemos sentido nisso, senão ninguém se relaciona
com aquilo como coisa em si e sim diretamente como arte, me faz ficar menos atento, já
categorizo, já atribuo sentido a priori e só vou me relacionar a partir daquele sentido. Se
não sei o que é, eu me relaciono com aquilo e estarei vivo para dar todos os sentidos,
compartilhar isso com outro, e isso começa a criar relações entre pessoas que
normalmente não se relacionariam naquele espaço, as pessoas voltam a conviver. Abrir
essa possibilidade de um mar de leituras, relações novas que acontecem entre as pessoas,
não necessariamente com a gente, mas entre eles, vão tentar entender aquela realidade
que não estão lendo, vão performar. O interessante é essa fabulação e estado de atenção
de cada um, menos automático.
L – E todas essas ações se referem à Guerrilha Magnética?
C – As portas já eram outra coisa. Os da Guerrilha eram as do jornal, do supermercado, das
trouxas, a lista onde as pessoas colocavam seus desejos no meio da feira. Depois começa a
virar pesquisa de espetáculo, como o sofá que vai para a rua. Mulheres carregando um sofá.
Mas em um momento nós paramos e sentamos, contamos histórias. Depois as ações se
complexificaram. Sempre houve roteiro. Começamos a pensar suportes, começamos a ter
resíduos em objetos. A própria peça vira uma síntese de espaço público, onde se acumulam
vivências. Quando fazemos uma pergunta e recolhemos uma resposta na trouxa, por exemplo
‘o que você não deixa para trás’, todo mundo responde e em algum momento eles começam a
discutir aquele assunto, você vai embora e deixa aquela discussão viva. Também tínhamos a
lista do ‘o que você precisa?’ e tudo ia se acumulando na lista. As pessoas se relacionavam
com as respostas dos outros. Nas portas perguntávamos sobre lamentações e esperanças. No
273
sofá as pessoas têm três minutos para contar histórias. No meio disso nós criávamos os títulos,
com consentimento deles, títulos absurdos. Isso incentivava outros a contarem mais histórias,
uma dramaturgia coletiva. Pensar o espaço público como possibilidade de intervenção de
todo mundo. Nós condensamos esse imaginário coletivo.
L – Algo que libere esse jogo.
C – Ou transformar aquilo em algo material.
L – E como foi o processo da intervenção para a peça?
C – Depois de três anos fizemos uma peça com algumas estratégias de intervenção que
usávamos na rua. Mas o que mais fizemos foi uma intervenção, a ‘Pausa para Respirar’.
Conversar com você agora me faz pensar em algo. Nós recolhíamos depoimentos nas trouxas,
nas portas com post-it, nas listas e começamos a usar as entrevistas das pessoas sobre o que
estávamos trabalhando e devolvemos para o espaço público, que é o ‘Aqui agora...’. Eu crio
essa trilha num trabalho longo de edição. Como por exemplo n’O Farol’, usamos só
depoimentos de pessoas em movimento, em trânsito. Eu vejo isso muito relacionado com o
espaço público simbólico e físico.
L – Em que medida a arte – que em sua raiz terminológica denota artifício – necessita
espetacularização para que a troca seja possível?
C – Eu fiz um workshop com o Rogerio Lopes Cuenca, um espanhol, em que passamos por
uma questão muito forte do que é arte pública e de como nós acabamos sendo apropriados
também, nós criadores. Há artistas que fazem mega-esculturas impositivas amparadas pelo
poder público, que acredita que isso deve ser espetacular. Isso cria o cartão postal, que faz
essa cidade mais decodificável, que é algo que não acho interessante. Então esse lugar de
poder público e marketing que se apropria da arte pública para vender seu peixe. A Virada
Cultural, por exemplo. Todo mundo vai lá e suja a rua. E acabou. É um espetáculo. Às vezes
o artista também cria algo nesse sentido e não percebe. O trabalho do Rogerio é muito
invisível. Ele usa os signos da própria cidade e os embaralha. A pessoa não precisa saber se é
de verdade ou de mentira, isso muda a percepção. Ele dissimula no âmbito da vida. Um
trabalho dele era um evento como essas feiras mundiais, com painéis indicativos dos
pavilhões, pavilhão da Palestina, por exemplo. Uma coisa muito política, o poder público não
deixou ele executar no fim das contas. Eu creio que podemos criar ações que não são
espetaculares e que criam mobilizações, experiências íntimas. O espetáculo é consumido e
não fica, ele demanda mais e mais consumo.
L – Mas hoje no teatro está muito difícil, também. Hoje esquece-se muito fácil das coisas.
274
C – Mas precisamos criar a experiência. Criar outros espaços, incluir o expectador na ação,
como tentamos fazer. A grande dificuldade é convencer os atores a não fazer espetáculo. A
ideia do teatro de que um faz e o outro vê é muito forte. Mas todos fazem juntos. O John
Dewey, do ‘Arte como Experiência’ diz que a arte acontece no outro. Eu, público, crio aquilo
como obra de arte. Você precisa diminuir seu ego para que o objetivo seja o encontro de fato.
A arte como espelho, se dar e receber. Na intervenção da ‘Pausa para Respirar’ nós
convidamos as pessoas para pisar na grama e ouvir seus corações. E lá eu não faço nada. Elas
estão com elas mesmas. É um trabalho espiritual.
L – A arte então visaria troca de experiência? O valor de troca da arte é social ou econômico?
Qual é a diferença entre valor de troca e valor de uso?
C – No mundo ideal o ato artístico deveria acontecer sem trocas econômicas e no âmbito do
homem com o homem. Nosso trabalho no mercado jamais se sustentaria, teríamos que cobrar
caro para sustentar contra-regra, é uma mobilização muito grande. A arte acontece na
experiência do outro. O valor social dela é uma consequência, penso. Se a arte tenta somente
ser social ela não chega no cerne, pois está muito mais próxima da filosofia, da religião. É no
âmbito do inefável, do indizível. Então às vezes tem ações sociais que se valem de
procedimentos artísticos, por exemplo trabalhar uma coisa educativa de arte com crianças,
elas vão desenvolver um potencial artístico na relação com o mundo. Porém a arte tem esse
poder também e não somente o trabalho social. É muito difícil fazer as coisas assim, você tem
que fazer as pessoas se perguntarem e se colocarem em movimento. Já o âmbito econômico é
onde precisamos ganhar dinheiro para sobreviver, comprar livros, pagar os outros. Mas nosso
trabalho não visa isso, sempre fizemos com muito pouco dinheiro. Quando ganhamos o
fomento isso significava muita responsabilidade mas também muita liberdade. Não
precisávamos fazer um espetáculo que desse bilheteria. Eu sou a favor de que ações não-
comerciais sejam apoiadas pelo poder público.
L – Qual a importância do público (caráter, pessoas em si, espaço) no seu trabalho?
C – O público é elemento compositor da cena na pesquisa do OPOVOEMPÉ. O público
compõe a cena espacialmente. Quando estamos na rua e eles saem conosco, não dá pra
diferenciar quem é público e quem é autor. E o espaço físico público é onde acontecem
nossos projetos. Nós temos vozes múltiplas dentro do trabalho, que são as pessoas e suas
opiniões. É o espaço que vai sendo ressignificado, isso é a base de nosso trabalho. Todas as
histórias são importantes. Um aprendizado que tiramos disso é como levar isso a um contexto
teatral honesto. Nós temos uma personagem, por exemplo, que é um repórter ficcional que faz
275
parte do jogo e também nos faz atentar para a realidade. Nós pegamos e devolvemos. Eu
penso que acordamos o olhar para o contexto em que estamos.
L – Sobre os termos ‘arte de rua’, ‘arte na rua’ e arte de invasão como possibilidades entre
arte e cidade, qual seria o espaço público da arte no espaço público?
C – Como assim invasão?
L – Aproveitar a arquitetura, por exemplo. Não necessariamente destruir coisas.
C – Eu não me relaciono com ‘arte de invasão’ nem com ‘ocupação’. Eu vejo mais como uma
liberação do espaço público. É recuperar a possibilidade se sentir esse espaço como público
de fato. Liberá-lo do aspecto privado, das convenções sobre ele.
L – E em que medida há essa possibilidade?
C – Tem muitas pessoas criando esse espaço. O próprio carnaval é um momento de liberação
desse espaço. Eu nunca estive no carnaval em Recife, e eu ouço as histórias e acho
maravilhoso. Tem muita gente fazendo ações. E há pessoas que se identificam com serem
artistas ou com um jeito de fazer ou outro. Quando fazemos as ações na rua eu sinto que eu
não ensino nada, eu aprendo muito. O Milton Santos diz que o fato de haver tantas
experiências diferentes dentro da cidade faz com que aquilo esteja em ebulição contínua.
Apesar das regras, ainda mais aqui, onde todo mundo dá um jeito de fazer as coisas, aquelas
pessoas na rua que manipulam bonequinhos. Claro que há o consumo nos invadindo, é
impossível estar imune. Mas é possível comer pelas beiradas, o Rogerio, por exemplo. Ele
evidencia essas ações pequenas que são incríveis e políticas. Enquanto formos humanos
haverá espaço para fazer coisas. Talvez o espetáculo seja uma coisa mais difícil. O Ant
Hampton fala do auto-teatro. É você que faz o teatro na rua.
L – Mas vocês sempre foram amparados por órgãos? Vocês pedem autorização? Como é essa
liberação burocrática?
C – A única vez que pedimos autorização foi em uma mostra para o Sesc, porque as portas
ficavam instaladas. A Guerrilha Magnética nunca teve disso, era em supermercados.
L – E nunca teve esse problema de a arte habitar aquele lugar?
C – Não. Porque as pessoas não percebiam. E nem podiam perceber. Quando acontecia isso
nós dissolvíamos. Essa possibilidade é muito grande, de ter uma ação e ela se dissolver.
L – Eu pergunto isso porque nas ações que faço sempre aparece alguma autoridade para
controlar aquilo. E são coisas muito simples. Lembrei que eu estou fazendo uns experimentos
que são dedicados somente à observação, então são dois estudantes com papel e caneta
sentados, e isso desperta muita curiosidade.
276
C – Sim, porque é um lugar que não é para ser nada, e quando tem algo isso causa um
estranhamento. Quando é um lugar só de movimentação e alguém para, há um estranhamento.
Quando você sai do fluxo isso acontece. Ultimamente houve muita repressão sobre as pessoas
não poderem intervir na rua. Esse programa ‘Cidade Limpa’, por exemplo, que parecia ótima
a iniciativa de tirar cartazes, mas que era na verdade uma assepsia para a especulação
imobiliária, isso também impediu os artistas de rua de se apresentarem. Cidade limpa para
quem? Se tornou ‘cidade para ninguém’. É muito difícil achar um espaço, mas mesmo assim
em uma cidade como a nossa ainda tem muita coisa acontecendo pelas ruas.
L – Muita coisa pulsando. Nesses termos de não-lugar, mesmo.
C – É. Nenhuma das nossas intervenções teve autorização. ’O Farol’ teve uma autorização da
CPTM, mas também não precisaria.
L – Mas também porque era uma ação mais silenciosa.
C – Sim, mas é a estratégia que eu descobri pra poder fazer em qualquer lugar.
L – Talvez isso tenha a ver com o espetacular.
C – Sim. Eu sinto que eu não tenho direito de barrar ninguém. Por isso usamos a palavra
imagético. Nas nossas ações também me preocupo em não barrar o fluxo, porque isso é fechar
o espaço público. Eu também não quero ser barrada. Nós não paramos o trânsito. Por isso não
uso os termos ‘ocupação’, porque a liberdade dos outros precisa ser garantida.
L – O que você entende por entre-lugar?
C – Eu poderia pensar em um lugar intermediário ao público e privado...Ou um lugar com
outra função. Elaborando agora, todo lugar é um entre-lugar, um espaço entre. Acho que é eu
está se relacionando com o mundo ao redor, então a ponte do entre está acontecendo o tempo
todo, o lugar imantado, ele é as relações que existem, eu e essa planta que eu vejo, eu e essa
cadeira. Existe uma consciência agindo e recebendo vibração, informação... A arte é um
espaço entre, que às vezes contem tensão, ou é denso, ou é leve. Para mim o grande
ensinamento do Lecoq, que eu estudei é esse entre. Não é a coisa em si, mas o movimento que
acontece. O que mais me chateou quando voltei para o Brasil é que as pessoas estavam
habitando espaços diferentes na cena, não havia um entre. E o espaço não estava acordado. O
Jacques Lecoq tem esse exercício de aquecer o espaço, esse pensamento é muito diferente de
aquecer o ator.
L – Algumas coisas que observei do trabalho de vocês: a presença da repetição, a duração das
ações e outras coisas que você poderia comentar sobre.
C – Isso são dois aspectos do método do Viewpoints: ação e repetição. A repetição é a
possibilidade de ter uma ação que é algo que se repete e que também pode se modificar. Eu
277
acho que nosso cotidiano é assim, sobretudo a repetição. Todos os dias eu me repito, posso
estar mais ou menos cansada, mas algo se repete. E por isso esse elemento veio para nossa
pesquisa, de nossa observação do cotidiano. a repetição também tem a ver com nossas
possibilidades. Às vezes estamos presos em possibilidades únicas, e se estamos conscientes
disso talvez possamos alterar isso. O próprio pensamento é um ato de repetição. Tudo tem
repetição com um certo grau de diferença. A natureza se repete, nosso cotidiano se repete. Se
não olharmos para isso não estamos nos olhando. Quando você faz algo diferente, isso é
excepcional. A regra é a repetição.
L – Mas você tem algum objetivo com isso na cena especificamente?
C – Nós trabalhamos repetição com diferença. Eu penso que tem relação com a coralidade. É
uma estratégia poética. Pensando no espetáculo do Sofá, tínhamos histórias muito similares
mas com aspectos diferentes. É como a gente pode brincar com rimas, com a percussão da
poesia. Pensando sobre ontem tínhamos 20 pessoas num espetáculo que geralmente tem 60
pessoas. Fazendo uma reflexão sobre ontem vocês, público, receberam muito mais repetições
do que normalmente se receberia no espetáculo. Eu acho que foi um pouco diferente. É o
nosso processo de criação, mesmo. Sobretudo essa peça.
L – Mas eu acho que ‘A Festa’ também tem bastante repetição.
C – É. É engraçado porque não foi o Viewpoints mais focado por nós. E a ação coral,
também, que não acontece em sincronia. O fato de não haver um protagonismo também é um
reflexo disso. Todos no mesmo enunciado mas com pequenas diferenças.
L – Eu vejo isso em ação, ou em elementos, em palavras.
C – Vários mundos, é isso?
L – É uma ação que, sendo uma só, dá sensação de repetição justamente por se desdobrar. O
giro, ou varrer, por exemplo.
C - Nós pensamos pouco a duração. Eu acho que não é o elemento preponderante de nenhum
dos espetáculos, a não ser no começo d’A Festa’, onde todos passam pela identificação dos
números. Reclamaram disso, mas é como quando você vai numa repartição pública, isso dura
muito. É parte da experiência durar mais do que é confortável. Tem um conceito do Jo-ha-
kyu, que eu gosto muito. Quando a peça está fora do eixo ,ela está sem organicidade, sem jo-
ha-kyu, sem a duração própria de cada coisa. Como trabalhar duração e jo-ha-kyu. Mas não
tem a intenção de não ser palatável... A coisa precisa acontecer no tempo que ela tem. É
importante trabalhar com variação. Penso que cada apresentação nossa tem uma natureza. Isso
também depende muito da conexão com a platéia. O ‘Aqui dentro’ dura 20 minutos. Não tem
cadeira pra mudar, não tem público de interação. Tem essa questão do teatro que é a
278
modulação, de como estamos, se estamos cansados, que dá uma variação. E também tem uma
margem, sabemos mais ou menos quanto as coisas duram. Tem dias que eu olho uma cena e
acho que demorou demais. Mas o tempo da varrida é o tempo da varrida. Então ali temos uma
desaceleração proposital da ação, e outras coisas tem a variação do dia.
L – O diferencial do trabalho de vocês é que para mim de fato ele passa uma sensação forte de
simplicidade, não foca em “O Espetacular”, apesar da complexidade do enredamento de
ações, e me mostra que para se conectar com as pessoas é mais simples do que imaginamos,
são essas tais ações simples, como chegar com um papel, desenhar no prato. E eu fico curioso
sobre a autoria e o processo de roteirização. Na performance trata-se de programas, roteiros,
já as peças de vocês obedecem uma estrutura de textos...
C – Para a peça do sofá, por exemplo. Eu vi um panfleto de vendas de sofá e achei o título
bom para uma peça. Então resolvi fazer baseado em um determinado conceito de causalidade
perturbada. Pesquisamos todos isso. A partir disso todos recolheram histórias e eu encadeei
um texto, depois de um processo longo de improvisação e levantamento de material. Tem
ações que vêm dos atores e ações que saem do diretor. Aí, temos dois processos, um para a
rua, outro para o teatro. Peguei um tema de uma fala da Maria Rita Kehl sobre as depressões
como um processo coletivo, uma dissonância entre a velocidade da sociedade e a imagem da
felicidade. Aí tinha o método. Era a mesma dramaturgia para os dois espaços. Então como
diretora proponho composições com vários elementos para os atores. Eu coloco regras. No
‘Aqui dentro...’eu não fiz composição como atriz, achei melhor ficar de fora, porque não
consigo julgar quando estou compondo junto. As composições trazem muitos materiais. Em
uma delas o título era ‘Construir e destruir mundos’...
L – Explique como é a estruturação das composições...
C - Eu crio um título que tenha relação com o material que estamos lidando ou o que interessa
naquele instante. Tivemos uma composição intitulada ‘tá tudo bem’. É mais ou menos uma
técnica da Anne Bogart distorcida: tem que ter uma relação espacial, um trajeto, uma relação
com o público. Eu invento as tarefas que naquele momento me parecem relevantes. É
interessante como as atrizes lidam com isso. Às vezes lidam, às vezes não, às vezes fogem e
mesmo assim continua bom. No processo d’A Festa’, apareceu muito material bonito, e
depois temos que selecionar. No ‘A Máquina do Tempo’ tinha uma composição chamada
‘onde está o agora?’, e eu lembro que eu pus ‘agora’ em vários lugares. Abria portas, gavetas,
encontrava ‘agora’ em tudo. Tinha outra proposição em que a Ana comia em cima de um
relógio...Outro momento é quando eu fecho a concepção de um espetáculo, e a partir daí vem
a dramaturgia. A concepção é que o público vai mudar as cadeiras, e aí experimentamos. Da
279
primeira vez que tentamos quase não tinha texto, aí eu fui propondo a dramaturgia. Até hoje
foi assim, primeiro vem a experimentação. Fora ‘O Sofá’. A experimentação, as
composições...E aí é um processo de depurar. Essa peça já teve muito mais coisas. A gente
vai tirando. Depois vem o texto. Quando eu voltei das férias pensei nisso, que ‘A Máquina do
Tempo’ seria em três partes. Que íamos trabalhar com a ideia que se sabia os dias de vida de
casa um. Isso eu tirei de quando eu morei na França e era babysitter do filho do proprietário
da minha casa. Um dia ele fez o cálculo de quantos dias eu tinha vivido, ele tinha aprendido
na escola. E resolvi começar com isso. Paralelo a isso eu trouxe uma dramaturgia com 40
páginas. O objetivo é ir enxugando, é que fique simples.
L – Você escreve o texto?
C - Eu que escrevo o texto. Eu trabalho bastante com colagens, eu uso uma frase que é uma
tradução de uma frase do ‘Mercador de Veneza’, é um processo a partir de algo. Mesmo que
você veja o ‘Mercador de Veneza’, mudou muita coisa. A dramaturgia é usar essas coisas de
modo que nos sirvam.
L – Como você faz esse cálculo de texto com a ordem das ações? Como fica essa ligação?
C – Tudo vai mudando conforme os ensaios. Tem algumas ações que aconteceram de um jeito
durante uma composição e eu lembro de um elemento daquilo, como marcar a altura da
pessoa na parede e coloco na cena. Os textos das atrizes também entram nisso, por exemplo a
cena da Ana, que ela diz ‘quantos dias vive um coelho?’. Foi uma reposta que ela me deu
durante uma composição. Aí também é tentativa e erro, levantamos a estrutura proposta. N’A
Festa’ tínhamos a ação principal acontecendo e outras coisas acontecendo em volta. Isso deixa
um espaço para o ator criar em cima do texto que o outro está falando. E todos fazem juntos.
Eu nunca imponho minha vontade. Para elas é um pouco difícil. Por exemplo descobrimos
que o meu texto não funcionava pra elas falando, então tivemos que mudar. Então vamos
vendo, e se não funciona sai. Então acontece a dramaturgia e direção e proposição do ator
muito junto. Eu sou bastante diretora, dou bastante feedback. Tem momentos que eu trago a
concepção, tem momentos que eu trago a dramaturgia e a gente vai afinando. Eu acho que ‘A
Festa’ é mais autoral das atrizes, no sentido que as ações foram propostas por elas, elas
ficaram mais soltas. Mas também conforme acontece cai bastante coisa. Aí o outro processo é
diferente: eu lanço a concepção, peço para todos entrevistarem muitas pessoas com relação a
temas e me mandarem o material. Às vezes é bem fechado, ou até bem amplo. Tem até
palestras que a gente ouviu que já entrou dentro disso. E aí eu fico no meu computador
fazendo o texto, decidindo o que fica e o que não. E isso é sincronizado com o percurso, os
tempos de andar, de se movimentar, de se mexer.
280
L – E a roteirização das intervenções de rua? É através de um programa?
C – É um pouco isso, no sentido da exploração. Mas
Mas tem muito conceito, é muito perto do conceito. No ‘Aqui Fora’, o conceito era ‘capas
amarelas’. ‘O que vamos usar para conduzir o público? O caderninho.’ Eu controlo mais essa
precisão. N’O Farol’ eu fiz uma leitura do Paul Virilio e eu queria um movimento de grande
velocidade para baixa velocidade, e descobri a estação Presidente Altino, que é um
estacionamento de trem. Eu queria que o farol saísse de um lugar de altíssima velocidade,
onde há circulação de grana, para falar sobre isso, esses processos de velocidade. Se você tem
dinheiro você viaja, senão fica 10 anos juntando dinheiro, quando muito. Então eu dei tarefas,
como projetar no percurso, fazer gravações. Aí vêm ideias, também vêm ideias na véspera e aí
ligamos pra produção e pedimos um monte de coisa.
L – Como o Viewpoints entra nisso tudo? Com que tipo de tratamento?
C – Acho que a maneira de olhar o treinamento. Eu estou fazendo uma matéria com o Tó
(Antônio Araújo) e ele tinha conhecido a Anne Bogart. Perguntei como tinha sido e ele falava
muito de arquitetura. Achei muito interessante porque era uma visão totalmente diferente da
minha. Eu gosto do Viewpoints porque cada um se relaciona de um jeito com a técnica. Para
mim o que é mais importante é o conceito da ‘resposta’. E esse método trabalha muito com
espaço e tempo, que é algo inevitável em qualquer situação. Ele também se apoia muito na
arquitetura, trabalha repetição, a duração. E nos ajuda a dialogar sobre coisas que funcionam e
não funcionam. Sobre mudar tempos, ou decisões como repetir algo. Nos direciona. Eu
também não sei dizer como as outras pessoas trabalham.
L – Eu imagino como é a sala de ensaio de vocês...Vocês estão sem espaço físico?
C – Só agora, porque acabou o fomento. Nosso ensaio começa com treinamento, exceto
quando estamos em fases muito atarefadas. E depois começa o processo de composição,
mostrar e dar feedback.
L – É nesse momento que você lança mão do Viewpoints?
C - Eu sempre incluo na composição elementos do Viewpoints, por exemplo ‘usem tempo’,
‘usem uma relação espacial x’. Mas não fico pensando com base do Viewpoints. As
proposições vêm por inquietações. No período de composição também tem muita frustração,
porque elas ficam semanas sem ressonância do material. Mas quando tem algo que vai servir
para a peça, é unânime, todo mundo sabe. Nós não temos um texto de partida, temos um tema
de partida, por isso ficamos algum tempo patinando.
L – E a trajetória de vocês? Você chamou o pessoal para fazer a Guerrilha e depois?
281
C - O grupo tem 7 anos. A história é engraçada porque eu dava aula de Viewpoints. Eu fui
mandar um projeto para a Cultura Inglesa e tinha que dar um nome para o grupo, que não
existia. Abri um tarô e veio a carta do Povo em Pé, que são as árvores. E eram outras pessoas
e outro projeto. Nasceu o nome ‘Povo em Pé’. Mandei para o edital. Logo depois eu tive a
ideia da Guerrilha Magnética. Aí chamei várias pessoas, como a Graziela e a Ana, de outros
contextos, e algumas pessoas para quem eu estava dando aula. E o primeiro projeto que
mandamos pro fomento era pela cavalaria, nem éramos cooperativados. Tinha 4 meninos,
depois ficaram dois, e aí umas meninas já não vieram. Durante um bom tempo ficamos em
um formato que era...
L – De 30 sobra um ou dois.
C – Uns dez. Ficou quem tinha mais afinidade ou interesse. Quem me aguentou, também. A
Julia ficou o tempo todo que estávamos na rua e saiu um pouco antes do processo do sofá. A
Paulinha foi embora antes do sofá e depois voltou pra fazer o segundo fomento. Também tem
momentos em que queremos outras pessoas junto, mas também tem um histórico de
linguagem...
L – Que já está se solidificando.
C – É.
L – Como eu conheci só com mulheres achei que era assim, mesmo. Na faculdade em um
momento eu sempre estava trabalhando só com mulher.
C – Ah, sim. É meio difícil, mesmo.
L – Outra coisa que me intrigou foi que vi que estávamos usando os mesmos elementos, eu e
vocês.
C – Quais?
L – Tem uma ação que faço com a mala. O Vanderson, ator da peça que estou dirigindo foi
assistir o espetáculo com a mãe. Ele que veio me contar que tinha muito a ver com nosso
processo. A mala, as portas... Eu já fiz um trabalho que era uma sequência de oito portas com
a fechadura em tamanhos diferentes, que delimitava o olhar, por onde você olhava. Inclusive
foi em períodos parecidos.
C – É, estamos compartilhando mesmo o espaço público.
L – O tempo também. Quando eu estava na Unicamp fiquei fazendo trabalhos em cima do
tempo. Em um grupo pedi um exercício de pensamento em fluxo, não tínhamos nada que nos
ligasse, mas das palavras-chave que colhi deles eu tirei o tempo. Isso resultou em uma
intervenção que fizemos durante 3 dias, cada dia 3 horas. Na praça principal da universidade
ficávamos andando em círculos ao redor do grande círculo. Cada um tinha uma motivação
282
acerca da discussão do tempo. Nos primeiros dez minutos a cada dia a proposta era esvaziar o
pensamento, os três partiam juntos. O Felipe ficava circulando com a bicicleta por dentro do
lago já sem água. A Bruna no meio e eu por fora. Parecia uma órbita de astros. Eu tinha que
suscitar questões do tempo pelo viés da fé, ela, a partir de um texto que ela criou, sobre a
formatação das ideias, e o Felipe discutia o tempo pelo viés da ciência. E eu lembro dessas
pequenas coisas de vocês.
283
ANA LUIZA LEÃO.
Dançarina, circense e atriz do grupo OPOVOEMPÉ de intervenção urbana e teatro.
24.11.12
L - Primeiramente obrigado por aceitar esse convite. Estou fazendo essa pesquisa com amparo
da Fapesp, é uma pesquisa sobre performance com gestos simples em espaços públicos. Eu
venho trabalhando com esse tema já há algum tempo e o Luiz Fernando Ramos, ao final do
meu seminário, me mostrou um DVD com alguns trechos do trabalho de vocês. Eu conhecia o
grupo até então como um grupo de intervenção urbana e me identifiquei com o trabalho e
achei interessante. O primeiro trabalho foi o da ‘Máquina do Tempo. Vi ‘O Espelho, ‘A
Festa’ e depois o ‘Aqui dentro aqui fora’.
A - Você viu semelhança? Você viu só o espelho mas você consegue ver uma linha comum
entre o que tem dentro e fora em relação ao mínimo olhar?
L - Sim, vi. Principalmente o fato de os espetáculos serem como um encadeamento de ações
simples. Mas não vou falar muito das minhas opiniões para que você coloque suas percepções
primeiro. Sobre o mínimo, são ações que beiram a invisibilidade no dia-a-dia, e estou
tentando definir os termos pelo que leio e baseado nessas entrevistas com artistas que
considero que façam algo nesse sentido, para que eu possa alargar meu horizonte.
L – O que você entende hoje por performance, a partir da sua experiência e bagagem?
A – É uma pergunta em aberto, sendo refeita constantemente. Quando assisto Bob Wilson,
vou ao teatro, etc, estou sempre me refazendo essa pergunta. Há um cerne que é um ‘aqui e
agora’, que é algo transformador naquele instante para quem faz e para quem vê, para quem
propõe e para quem se propõe a assistir; é muito verdadeiro. Todo mundo tem que sair
transformado. Eu falo de sensações mais do que teoria. Às vezes eu assisto algo que não me
toca – não que tudo tenha que tocar, claro. Há momentos comuns, há instantes que podem ser
vividos em comum, há em encontro, como esse momento aqui agora.
L – Algo vivo, transformador, presente, essa é sua ideia de performance?
A – E também é muito autoral, se você se propõe a fazê-lo é um risco, sempre é muito
relacionado com suas perguntas. Há uma inquietação que necessariamente tem que estar ali.
Há uma urgência. Eu estendo isso para a vida também. E for a isso, há vários níveis de
performance. A relação com a platéia no teatro, por exemplo, é uma delas, mas a performance
é mais arriscada, um salto sem rede.
L – Onde está esse risco e que risco é esse?
284
A – Não se sabe o que vai acontecer, qualquer tipo de previsão talvez possa aprisionar. Eu
acho que cada encontro é muito único, independente da combinação. Eu nunca sei o que vai
acontecer. Estamos aqui eu e você e isso gera algo. Se qualquer coisa muda, sua abertura, seu
olhar, seu tom de voz, ou como eu recebo isso, já muda muita coisa. Abrir-se plenamente pra
isso é muito arriscado, porque toda troca é inédita. Se eu tenho uma programação em relação
ao espaço, é outra coisa.
L – Você falou sobre uso dos espaços. Que ideia você tem de espaço público?
A – Espaço público deve ser algo pelo qual você transita, algo acessível a todos, onde não
exista maneiras diferentes de se entrar, e pode ter funções ou não. Há espaços com função de
transporte ou consumo, por exemplo. Mas deve ser acessível. Nós trabalhamos com um ponto
de subversão, então quando falo de espaços públicos…O lugar tem suas características
espaciais e aí as pessoas ocupam esse lugar, isso é muito diferente, falar só do espaço e do
espaço com as pessoas ocupando ele. E quando trabalhamos convidamos as pessoas a
participarem e há um componente de subversão, uma subversão cuidadosa. Há lugares que te
atraem e lugares que não. Às vezes me pedem para criar algo para um certo espaço, então eu
me pergunto o que acontece ali, qual sua espacialidade, que tipo de lugar é aquele, que ritmo
tem. Cada parte conversa com um certo tipo de ação, isso nasce a partir da observação.
Também observo o fluxo natural dali, se as pessoas passam ou ficam, se podem sentar-se. O
lugar pede coisas. Talvez as pessoas estejam adormecidas, então vou tomar medidas em
relação a isso, entender o que está faltando, que vida não existe ali e pode ser levada até lá. Às
vezes é algo mínimo, mesmo, no sentido de que já há algo ali e você só entra pra revelar uma
pequena coisa, despertar a atenção para a aquilo. A nossa prática é assim.
L - Sobre intervir em lugares, existe um conceito que é o não-lugar, eu queria provocar o seu
pensamento para elaborar o que seria um entre-lugar.
A – Eu tenho uma pesquisa que é anterior ao grupo, onde os encontros vão se dando por
afinidades. Eu entrei no grupo porque encontrei ressonância com meus interesses. Eu
chamaria esse lugar de não-lugar, não sei se é o mesmo conceito que você está usando. E
entre-lugar seria o que permeia, entre nós tem uma substância que é o ar, é um ‘entre’ vivo,
que nos afeta. Estou pensando em pessoas e em relações. É um lugar que existe
permanentemente, e quanto mais consciente o ator, ou performer, estiver disso, mais ele se
revela. Você tem um lugar com uma espacialidade, o entre está lá também. É importante
revelar o entre, essa relação. As pessoas percebem quando fazemos isso quando nos
apresentamos. Eu sinto que o entre está nessas conexões, coisas que se revelam. O entre é
muito rico. Na minha percepção as coisas estão em contato.
285
L - De que maneira essa percepção está presente no cotidiano, além do plano artístico? Esse
entre está vivo?
A – Eu tenho impressão que as pessoas agradecem quando revelamos um entre vivo. O entre
acordado é um momento raro. Penso que nosso cotidiano – a pressa, as frustrações, os
objetivos - corta um pouco esse entre, separa as coisas. O entre não existe se eu não souber
que ele existe. E existe quem viva assim, sem saber que o entre existe. Mas é muito melhor
revelar e considerar o entre vivo, pelas qualidades das nossas relações.
L - O que seria um entre-lugar físico?
A – Eu associo e lembro de coisas com suas perguntas. a Lygia Clark, numa época da vida
dela, resolveu parar tudo porque entrou em crise por seu trabalho não ser autoral, ela
considerava que aquilo vinha de outras pessoas. Então ela fez um quadro cuja moldura era
enorme. Aí ela já questiona o que é quadro e moldura e essa obra já é ligada à espacialidade
do lugar, pois está relacionada à sala onde ficaria a obra, nos transporta para as linhas
espaciais da arquitetura e você começa a pensar nas várias molduras que te cercam. Também
penso em dois pontos. Nós fizemos uma intervenção na esquina da Av. Consolação com a Av.
Paulista, que é um lugar de fluxo intenso. Nós brincamos um pouco com as linhas de
pedestre, e as pessoas atravessavam e não faziam o caminho “oficial”. Ali já estava
estabelecido uma nova necessidade antes de chegarmos, esse é um entre-lugar interessante. É
uma ocupação entre dois pontos. Essas linhas da Lygia entre o quadro e a moldura são muito
marcadas, tem um entre ali, no espaço.
L - Você poderia diferenciar ação de gesto?
A – Tomei água: isso foi uma ação. Isso já é um gesto (demonstra uma gestualidade com a
mão). No olhar do Viewpoints tem o gesto cotidiano e o gesto expressivo. O primeiro pode
ser coçar o nariz, mexer no cabelo. E às vezes está num lugar de gesto parasita, que você não
percebe que está fazendo, tem um componente inconsciente. Ao pensar em gesto expressivo,
talvez você não faria aquilo na fila do banco, é uma qualidade de comunicação de emoção, de
sentimento. É uma expressão. É interessante pensar onde eles se cruzam, também.
L – Como você definiria ação simples?
A – Sempre precisamos olhar pra vida pra responder, no cotidiano, por exemplo. Ouvir.
Ações geradas externamente e internamente, como corrigir sua coluna quando dói. Piscar
os olhos, apoiar os braços, mexer o dedão. Pra mim é das coisas mais belas, que quando
somadas viram música. Eu vejo música e dança em todas as ações cotidianas, ações
simples. Algo me faz querer apoiar (os braços na mesa), algo me gera, não importa sua
natureza (voluntário, involuntário). Algo cotidianamente presente. O corpo tem circulação,
286
não está parado, por mais imóvel que esteja, há muita ação acontecendo. Pode ser consciente
ou inconsciente também. São níveis diferentes. Que atenção tem esse que faz. Se falamos em
atores, já há um outro nível de consciência corporal, mas isso (esse não perceber as próprias
ações) também acontece. Já estamos falando também de comunicação. Daquilo que é
comunicado através do corpo. Posso enquanto atriz comunicar, ‘sem querer’, tensão porque
estou tensa. Temos que cuidar da ‘neutralidade’, para em cena comunicarmos o que queremos
expressar com a cena e não um eventual aprisionamento meu individual a questões fora
daquele universo. Consciência e cuidado no que estamos comunicando.
L – Como você definiria mínimo gesto?
A – Tem uma pesquisa minha que não entrou na pesquisa do OPOVOEMPÉ. (Ela demonstra:
passeia com os olhos de baixo para cima com leves piscadas e um suspiro quase
imperceptível): Entende? Dentro está acontecendo muita coisa. Quando falamos do fluxo ele
também está acontecendo dentro: eu procuro uma palavra, lembro de outra coisa, aquilo me
gera algo, tenho uma intenção, mas não vou, tudo isso dentro, no fluxo. O cinema
(obviamente por causa da câmera) fala demais disso, acho. Quando você vê gradações no olho
(o dentro fervilhante, mas o fora muito sutil, como nós e nossos pensamentos e sentimentos
no dia-a-dia). Falando de dentro do campo da anatomia emocional, por exemplo. O coração
bate, independente de mim. Esse mínimo acontece de qualquer maneira. (Isso só a nível de
corpo, se pensarmos na organização disso tudo no mundo, isso está). Eu vejo a mínima ação
um pouco assim, nesse fluxo também mental, psíquico, de idas e vindas e hesitações. Na
minha pesquisa trabalhos com sonoridades musicais, como me transformam, me alteram, mas
é quase o mínimo possível, despertam o dentro, um gráfico de coisa acontecendo que são
dentro de mim, não “preciso me expressar”. O mínimo está dentro.
L – O que se manifesta desse dentro que você menciona?
A – Em que âmbito você quer saber?
L – O mínimo é emocional, é biológico, ou tem relação com algo? Com detalhe com o que
não se vê?
A – Sim, tem relação com detalhe, com algo que não é escancarado. Eu creio que o mínimo é
visível e sensível. É perceptível. Acho que está ligado ao emocional, mas não somente. É só
o tamanho de uma mesma coisa. No Viewpoints, quando falamos de resposta. Resposta
espontânea ao estímulo que pode ser interno ou externo. Isso me transforma, no dentro.
Quando se fala em minimalismo me vem a ideia de escala. Se alguém bate uma janela eu
posso reagir de uma maneira grande, ou se alguém derruba uma colher eu posso reagir de uma
maneira sutil.
287
L – O que seria o mínimo gesto no contexto performance-vida? Quando há ação há gesto e
quando há gesto há ação? Ou há diferença entre mínimo gesto e gesto mínimo?
A – Uma partitura corporal, por exemplo, pode ser executada em várias escalas. Eu acho
que eu precisaria fazer as coisas pra entender essa diferença. Preciso olhar, fazer. Quando
penso em ação penso em verbos. Há coisas que vêm da intenção, outras que não, da
consciência, da escolha. Há gestualidades mínimas, as gentilezas, por exemplo, são mínimas
e são uma oferta de algo. Ter abertura para escutar e se transformar também pode ser uma
coisa mínima. Mas na verdade é o máximo. Estamos falando de fisicalidade. Quando nas
minhas aulas usando viewpoints peço para os alunos correrem ou pularem, eles não
conseguem se ater simplesmente àquilo. É incrível como é muito difícil fazer uma ação
simples. Há uma necessidade de “preencher” (encher, demonstrar) que não se “contenta” com
o simples.
L – Essa obrigação de ser o melhor no nosso trabalho se revela como excesso e não funciona.
A – Esse simples é muito difícil, é um grande trabalho. N‘O Ator Invisível’, do Yoshi Oida,
por exemplo. Esses questionamentos, sobre como ficar limpo. Fazer um trabalho interior, as
intenções, a necessidade de falar, se por vaidade ou por contribuir com o coletivo. Senão é
muito fácil cair no lugar do que já funciona. Como se renovar, como se questionar o tempo
todo. No ‘Cartas a um jovem poeta’, do Rilke, há uma passagem em que ele diz ao poeta que
ele só será “bom poeta” se ele morrer, se ele adoecer por não estar fazendo aquele ofício.
Outro dia também vi uma entrevista com a Fernanda Montenegro, e ela disse que diria para
um ator que está começando: ‘Desista. Mas se você adoecer porque não está pisando no
palco, aí não tem outro jeito’. Porque tem que fazer sentido pra você. O cerne é a relação. A
Fernanda é viva demais, receptiva, arrisca e sabe seus limites. “Eu só não adoeci, porque no
teatro eu pude ser”.
L – Em que medida você acredita que o mínimo e o simples possam atravessar o excesso da
vida urbana?
A – Atravessam dependendo de onde eles partem, seu princípio. Daquele que faz (de onde
parte?). Ação por ação não atravessa. Você pode ver. Para atravessar, tocar, conversar há de
ter uma urgência. Quando há urgências as coisas acontecem.
L- A questão, não é? O que te impulsiona àquela ação.
A- Sim. Você pode atribuir a mesma gestualidade a várias pessoas, mas de repente uma
chama atenção. Pois está viva com suas contradições e perguntas.
L – Eu fico pensando sobre o que preenche a ação, então, se não basta ela para estabelecer o
diálogo, pois o contrário disso, como conversamos é o ‘enfeitar’ a ação com excessos.
288
A – Eu acho que o cerne disso está na presença. Uma mínima ação presente diz muito. Fazer a
ação integralmente, preenchendo cada instante da ação. Não cria-se um motivo, uma
vontade e contra vontade , não é ‘intenção’, não é vazio, é vida, é presença, “aquis” (aqui-
aqui-aqui-aqui- lembra-me, a mim, Lucas, o presente contínuo de que falava Gertrude Stein,
uma sucessão de agoras, ou a noção de devir, cada vez mais deserto e por isso cada vez mais
povoado). Tem que se sentir onde se está, o pé no chão, a temperatura da mesa, o quadril onde
está.
L – Você conseguiria estabelecer alguma relação entre o meu trabalho e o de vocês a partir do
título do meu trabalho ‘A performance no espaço público através da mínima ação e do gesto
simples’?
A – Sim. Nós entramos numa dança cotidiana nas intervenções, num supermercado, por
exemplo. Lá já existem ações, e nós vamos entrar com mais ações. Chamamos isso de
invisibilidade e evento. Enquanto eu estou dentro da ação de lá, eu estou invisível. Se eu
causo um estranhamento ao abrir a geladeira, isso é um evento. Eu vejo essa relação. Pra
revelar coisas você precisa estar em sintonia. Como é a dança que já existe, como as
pessoas estão no ponto de ônibus? Isso mexe com coisas que estão adormecidas. E
precisamos uns dos outros pra nos acordar.
L – Em que medida a arte – cuja raiz terminológica contém artifício – precisa se
espetacularizar para efetivar a troca?
A – O que você chama de espetacularizar?
L – O que você entende por isso?
A – Isso pode acontecer de muitas maneiras, é uma coisa da linguagem. Um jeito é chamar
atenção para, dar foco, revelar. Nós tínhamos um trabalho chamado ‘Isso não é um
espetáculo’, e muitos trabalhos nossos vemos desse jeito, não como espetáculo. Um Bob
Wilson, por exemplo, é abundante de recursos. Iluminação, cenário, atores, a qualidade da
sonoridade, a maneira como é orquestrado é muito espetacular. Você também pode observar
um espetáculo no cotidiano, por exemplo. Tem arquiteturas que revelam.
L – Mas é espetacular?
A – Eu me pergunto de onde vem essa palavra.
L – Me remete à grandiosidade do Bob Wilson que você comentou, por exemplo. Mas eu me
referia à sociedade do espetáculo, do Guy Debord.
A – Quando fazemos um trabalho nós olhamos o cotidiano. O olhar é apreciar o que já é,
então o espetacular depende do olhar. Outro dia eu olhei aqui do lado e parecia uma cena de
Magritte. Não sinto que meu olhar construiu, e sim que recebeu. Creio que a apreciação tem
289
relação com nosso estado interno, com a consciência interna. É preciso ter escuta. Esse
violoncelo, por exemplo, tem afinações diferentes, e ele tem essa microafinação. Às vezes
propomos para as pessoas da rua pararem por um tempo, colocarem o pé na grama, ouvirem o
próprio coração. Eu considero isso também uma microafinação.
L – Quando você está propondo isso precisa ser algo espetacular?
Não, é sempre muito simples. O espetacular até afasta. O encontro em si é espetacular. Tem a
ver com respeito, com o tempo, esse encontro precisa ser verdadeiro. Pra mim isso já é um
espetáculo. Às vezes o espetacular do Bob Wilson também pode comunicar.
L – Pra mim o maior espetáculo do Bob Wilson está nas palmas, no sentido pejorativo.
Quando eu assisti o ‘Aqui dentro aqui fora’, senti que vocês não fazem espetáculos para
serem aplaudidos. Não por ter sido bom ou ruim ou por não saber que acabou. É como se
você continuasse sentindo os efeitos, então não tem porque aplaudir. Os aplausos no Bob
Wilson são um grande espetáculo social pra mim. E também lembro da competitividade que
mencionei antes. Fico pensando em que medida a arte precisa de tanto dentro de uma cidade
que já tem tanto para que algo aconteça. Talvez seja isso, o pé na grama. A arte visaria uma
“troca” de experiência na sua opinião? E o “valor de troca” da arte é social ou econômico? e
qual a diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”?
A – Eu tenho uma imagem aqui. Essa obra de arte gera algo para quem vê. A arte toca o ser
objetivamente no profundo do ser, esse conceito é o da arte objetiva, do Peter Brook. E em
que medida eu também não alimento isso, além disso me alimentar. Eu não saberia dizer em
que proporção se dá a troca. E eu não vejo a arte financeiramente, isso é um jeito que ela está
sendo trabalhada hoje. Há outros jeitos. Quando eu falo de moeda, por exemplo, que para
mim é energia. E se você guarda o dinheiro a energia para de circular. O consumo está num
lugar muito raso, a posse é excessivamente importante. Achei a definição de espetáculo aqui,
é olhar atentamente. Você precisa de um tempo para se dedicar àquilo. Quando propomos o
pé na grama, a pessoa sai diferente daquela experiência. E tem muitas pessoas que não dão
abertura pra nós.
L – Elas estão esperando o espetáculo social, talvez. Virou como o ‘compro ouro’ para as
pessoas.
A – É, e realmente eles não falam com o rapaz que compra ouro. Mas eu não saberia por onde
pensar valor de uso e valor de troca. Por princípio a arte só existe se alguém olha. A troca
existe, com tempos diferentes. Às vezes eu assisto uma peça que foi escrita há mil anos atrás.
Também há a troca como energia. Dentro do tempo não há nada parado. A princípio a troca é
social mas também se insere no econômico, é inerente. É social, é político e também é
290
necessariamente econômico. E dentro disso você vê os valores, que são questionáveis.
Depende de como julgamos os valores hoje. É difícil porque penso em manifestações mais
ancestrais, como dança, pintura, teatro. As pessoas precisam de coisas que as reflitam, que as
façam questionar. Eu não conseguiria pensar num teatro comercial hoje.
L – Qual a importância do público (caráter público, pessoas em si, espaço) no seu trabalho?
A – Não haveria motivo para fazer se não fossem as pessoas, esse encontro. Hoje tem essa
questão do acesso, o público não frui a rua, e aqui em São Paulo não tem mar, que é uma
coisa gratuita à qual se pode ir. Em Berlim, por exemplo, tem muito mais acesso, tem
monumentos que são históricos e têm muita vida no presente. Aquilo te transforma. Lá tem
mais ambientes artísticos. Também tem essa questão das diferenças sociais, como alguém sem
acesso pode apreender uma obra intelectual? Que tipo de arte se pode oferecer que seja
acessível a todos níveis sociais? E também políticas públicas, dinheiro público. Nós estamos
engatinhando muito ainda. A Denise Stoklos, por exemplo, deveria ter um apoio para fazer o
que quisesse na hora que quisesse, mas a mulher está ralando, tentando edital. Isso não
acontece em outros lugares. A Meg Stewart falou que o tipo de laboratório que ela faz só é
possível porque ela tem uma infra-estrutura para isso, onde ela pode descobrir fazendo. Aqui
precisamos explicar tudo no edital previamente.
L – E há também o questionamento de por que a arte deveria ser merecedora desse espaço, se
ela também batalha por um lugar de ofício como os outros. E também me pergunto por que a
arte não faz parte da vida das pessoas. Isso estaria resolvido, porque estaríamos no mercado
como qualquer outra profissão. Você está colocando que o poder público é bastante
importante.
A – Eu estava pensando no caso da Denise Stoklos. Fico pensando sobre o que deveria ser
diferente. E ela é uma artista internacional. Eu penso sobre as instâncias de reconhecimento
aqui no Brasil.
L – Eu não paro de pensar na Petrobrás e como muitos grupos de teatro sobrevivem da
Petrobrás. É exatamente isso: o desenvolvimento do Brasil com a força no Petróleo. E muita
gente hoje trabalha com isso e tem um discurso oposto a esse.
A – O SESC também, que é muito importante hoje. Eu vi espetáculos muito importantes pelo
SESC.
L – Eu acho mais difícil de analisar do que a Petrobrás.
A – Sim, principalmente quando você está dentro. Para as produções de fora (internacionais)
tem muita abundância de recursos e para as produções internamente tem muita restrição.
291
L – O Teatro Oficina foi pra Fortaleza, ganhando 627.000 reais para realizarem quatro dias de
espetáculo e os grupos de lá mesmo não recebem apoio público. Este fato causou grandes
manifestos.
Qual o espaço público da arte no espaço público?
A – Pensando em espaço público, as intervenções, é algo que já tem se tornado mais possível,
já é uma categoria dentro dos editais, começa a ter um caráter. Eu sinto que às vezes essas
ações públicas são excessivas ou descompensadas. A Virada Cultural, por exemplo, é mais
pela quantidade do que pela qualidade, poderia ser programado de outro jeito, de uma maneira
mais apreciativa, senão você entra num sistema de edição como o da televisão, cada frame
tem menos de um segundo. É burocrático, falta cuidado, porque dinheiro tem.
L – A arte já teria esse espaço público garantido, então?
A – Tem, mas tem problemas enormes. Os músicos de rua batalhando, por exemplo. É muito
desgastante. Mas pensando em público enquanto pessoas, elas são muito receptivas. Elas
gostam e têm muito o que dizer. E dizem coisas lindas. O público é muito disponível.
L – Eu acho que é porque muitos dos trabalhos de vocês lançam perguntas de maneira direta,
verbal mesmo.
A – É, mas o que fazemos não é verbal, o lugar que criamos, inclusive foge disso. Tem
humor, tem ludicidade, tem risco, tem gente viva. Essa maneira de se relacionar me interessa.
O verbal é só um canal nosso. Tem tipos de público diferentes, e esse comportamento também
não está no verbal.
L – Eu pensei se as pessoas realmente estão porosas para o que vai acontecer.
A – Eu acho que porosidade sempre existe, depende de como você acessa. As pessoas estão
sobrecarregadas. E aí as pessoas se protegem, é uma reação do organismo. É característico do
nosso trabalho saber olhar para isso, entender como se relacionar com as pessoas. Às vezes
chamam nosso trabalho de feminino, não sei direito sobre isso. Mas só nesse cuidado
podemos abrir portas. Vamos achando pistas.
L – Quando vimos a intervenção de vocês e vocês perguntam ‘Você já chegou ao fundo do
poço?’, imagino que muitos dizem que sim, e meu amigo teve uma iniciativa de ir contra e
responder ‘não’.
A – Isso não tem problema, tem espaço para isso.
L – Para você qual a importância da repetição? No seu trabalho ou no trabalho do grupo?
A – Posso pensar no espetáculo que se repete e em repetição gestual dentro de um trabalho.
Usamos muito essa palavra quando falamos de composição de cena. A repetição pode
expandir a apreensão de alguma coisa. O sentido vai se transformando. E claro, existe a
292
pergunta: o que a repetição pode comunicar? Pode ser da palavra, da frase, da cena, do
espetáculo inteiro.
L – E qual seria o efeito disso? Vocês visam a expansão de uma compreensão?
A – Sim.
L – E também tem a duração dessas ações. Você acha que esse componente está no trabalho
de vocês? Na minha visão parece um espetáculo de ações simples e eu gostaria de saber como
vocês usam a duração?
A – Ela também é um recurso. Ela é combinada com outros elementos, e o viewpoints nos dá
base para isso.
L – E como são os roteiros disso?
A – Temos um roteiro com o tempo da duração, nossos objetivos. Temos uma duração que
pode virar um evento se alguém estiver vendo. Às vezes a duração da veracidade, a duração
do movimento.
L – Mas há pré-determinação?
A – Nós misturamos a base com alguns princípios de improviso. Nunca dá pra prever tudo.
Um dia chegamos na praça e tinha uma banda militar tocando e manifestação, tudo junto. Mas
temos uma previsão.
L – Eu já ouvi uma coisa que era ‘andar’ e ‘andar’, que um era dança e outro, não. Eu vejo as
pessoas na rua que não estão se propondo a dançar, mas estão criando um deslocamento que
pode ser dança. Acho que tem a ver com a presença, que conversamos anteriormente.
A – Sim, você pode estar ou mostrar que está, são coisas diferentes. Tem muito conceito,
como fazer essa prática e teoria se combinarem? Tem que ver se isso se dá no contato com o
ser humano. Tem os que não percebem o que estão fazendo, por exemplo o rapaz que trabalha
no supermercado colocando as caixinhas de sabão em pó na prateleira repetidamente. É uma
gestualidade.
L – Quais são os métodos de criação que vocês usam? Como é esse trabalho com Viewpoints
e os trabalhos com roteiros? Quando faço intervenções para minha pesquisa, de fato exploro
uma ação ou um gesto só. Nas intervenções de vocês, o que me impressiona é a orquestração
das várias ações simples. Para mim parece muito orgânico, não virtuoso.
A – Temos três espetáculos. O espetáculo do sofá foi concebido para um palco italiano,
diferente dos dois, ele é mais convencional e conseguimos fazer o circuito Sesi com ele. Lá
temos partituras corporais declaradas, eu gosto dali, porque me provoca. Os outros são mais
diluídos, é quase nada. No sofá é assim, tem repetições na frase, também. Tem marcações, por
exemplo. Eu adoro ação física, lapidar partitura. Isso eu também chamo de entre, porque
293
revela, imagine três pessoas fazendo o mesmo gesto, é uma surpresa. Acho muito potente.
Sobre os roteiros, não são um princípio, nós arrumamos depois, é o acabamento. A
composição nos guia para as ações. Aí está a autoria, podemos fazer composições em grupo
ou em dupla ou sozinhos. Pro aquecimento nós trabalhamos com Suzuki, Viewpoints para dar
uma presença física e voz. O Viewpoints é uma técnica de improviso e composição, e essa é
nossa base. Ele é uma linguagem traduzida para trabalhar nossa percepção, temos os mesmos
termos e isso facilita o trabalho. O resto do processo criativo não tem como explicar, é um
grande arsenal de propostas para ser enxugado. Também trazemos muitas coisas de fora,
coisas que nos influenciam.
L – Vocês têm palavras-chave?
A - Relação com o público. Convite. Quem é o público? Se ele é ativo, como ele se comporta
no espetáculo do sofá (9:50 Qualquer Sofá).
L – Qual sua formação antes do OPOVOEMPÉ?
A – Eu fiz Célia Helena e saí de lá com teatro infantil (Maria Borralheira) e adulto (tragédia
grega). O primeiro no SESI, com carteira assinada e benefícios e o outro nós mesmos
pagávamos para fazer. Eu tive as duas experiências. Hoje já é mais efêmero, no SESC a
temporada é um mês e meio. Eu pude constatar esse mercado completamente desigual.
Depois entrei no Nau de Ícaros, que trabalha com circo, teatro, dança, música, vídeo. Era
outra coisa, muita virtuose, muita entrega, por isso também saí. É bom fazer algo bonito para
os outros mas eu precisava falar, ouvir minha voz. Esteticamente era muito refinado e era
muito sensual, era nossa comunicação. Depois eu estudei com o método Lee Strasberg, que é
de memória afetiva. É trabalhar o que te afeta. Se eu estou em um barco com você em uma
cena eu preencho o sentimento de como se eu estivesse no barco real em alto-mar. Tem
exercícios de sabor, de cheiro, eu acho muito bom. Tem exercícios de relaxamento, atenção.
Eles pedem para que você coloque limão puro na boca e sinta tudo que acontece. Esse método
pode servir para qualquer pessoa. E depois você tenta fazer todas as reações sem o elemento.
Isso me alimentou muito. Outras coisas aconteceram depois disso e eu comecei a ver música e
dança em tudo. Li um conto, ‘Bliss’, da Katherine Mansfield, é muito cotidiano e muito
refinado, e eu almejei aquela refinação. Depois eu fui fazer uma aula de Viewpoints na Casa
das Caldeiras e achei um recurso. A qualidade de atenção, de ação, me deu base para fazer
uma partitura cotidiana e precisa. Não dá para ser um ator sem consciência de si. Ao mesmo
tempo não quero que vejam a matemática toda. Mandei um projeto agora para o Cultura
Inglesa, e é um conto. É um trabalho delicado, preciso prestar atenção aos corpos, cada pessoa
tem a consciência e o comportamento que teve a vida inteira. As pessoas já estão prontas. Eu
294
observo esse comportamento natural do dia-a-dia e quero entender como codificar isso.
Minhas questões já começaram há 9 anos e depois disso conheci pessoas e começamos a fazer
intervenções na rua. A qualidade de pesquisa era muito boa e o grupo do OPOVOEMPÉ foi
se formando. Algumas pessoas saíram e outras entraram.
L – E como foi o encontro com o LUME?
A – Ambos estavam sedentos pelo novo e foi muito bom jogar com eles, porque nós temos
nossos vícios, nós nos arejamos. O que eles nos ofereceram com as técnicas deles também foi
muito fértil. Tivemos intensos encontros longos. Das 5 às 10 da manhã, era proposital para
condicionar. O encontro final foi para amarrar o que íamos apresentar. Houve proposição dos
dois lados separados, e no fim foi junto. Apresentamos isso no Rumos, que era um roteiro
improvisado.
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HELENA BASTOS.
Professora Doutora de Dança Contemporânea do Departamento de Artes Cênicas-ECA-USP
e atual chefe de departamento. Fundadora e integrante do grupo MUSICANOAR com
pesquisa na sutileza dos movimentos, escuta corporal, corpo mídia, corpo e ambiente.
06.12.12
L- Como você sabe eu me propus a pesquisar o que seria o mínimo gesto e ação simples no
espaço público, tentando entender no corpo como seria essa relação. O que estaria em jogo ao
envolver performance, minimalismo e espaço público. Para tanto tenho conversado com
alguns artistas do teatro, da intervenção urbana e da dança, esta representada por sua figura.
H- Por incrível que pareça é um lugar que me interessa muito e isso eu venho desenvolvendo
mais com os alunos do CAC (departamento de Artes Cênicas)
L- No teatro mesmo.
H- Pelas minhas inquietações. Converge com minha pesquisa. Mas a pesquisa do
MUSICANOAR, meu grupo que vai fazer agora 20 anos, não está focada para isso. Porém
nesse ambiente do MUSICANOAR, nesse lugar, de estar olhando para a cidade, eu gerei a
última coreografia, Cadeira de Rosas.
L- A qual inclusive na época em que eu assisti, também me chamou bastante atenção.
H- Na verdade como ela é concebida? Pensando nessa contaminação: a cidade tem uma
organização. Como eu trabalho com a ideia da teoria corpo-mídia em que o corpo é um
ambiente que está sempre trocando informações com o espaço em que ele se insere,
sendo totalmente co-dependente das relações que ele estabelece. Se este corpo está na
cidade, como essa cidade interfere cognitivamente nesse corpo e também esse corpo vai
interferir na paisagem dessa cidade (assemelha-se as noções de inscrição e escritura
corporal no espaço). É nesse sentido que eu olho muito para a cidade.
O Cadeira de Rosas foi esse olhar em que eu, a partir dessa percepção, levantei: Por que a
questão das rodas (cenografia da peça que intermediava o deslocamento dos dançarinos-
cubos pretos de diferentes tamanhos com rodinhas)? Porque eu comecei a perceber que as
pessoas hoje em dia, principalmente nos centros urbanos, mesmo quando há uma política de
sustentabilidade, pensando por exemplo na bicicleta, as pessoas estão na grande maioria sobre
rodas- é o ônibus-, esse direito de ir e vir, de alguma forma já está implícito esse
deslocamento sobre rodas. Que em si já traz a ideia de velocidade, de determinados
circuitos que se repetem. O que essa repetição produz no corpo? Com certeza mexe na
sua rede neuronal. Olhando desse jeito me interessa.
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Quando você fala desse movimento mais minimalista em nosso trabalho, penso que é
interessante te dar uma devolutiva que isso é uma observação, uma percepção sua. Porque eu
nunca penso nesse conceito de movimento minimalista. Mas, talvez, pelo modo como eu
organizo o pensamento em dança, eu tenho uma recorrência em que começo a recortar a
partir de uma ideia e como eu quero discutir essa ideia no corpo, eu já vou trazendo
recortes. A minha tendência, não penso num conceito minimalista, mas o que eu vejo é que
estruturas esse corpo vai descobrindo quando vou trazendo um campo de restrição. Talvez
por isso é que você tenha esse olhar. O que ali eu estou pensando é nesse campo de restrição.
E se eu posso restringir mais: uma questão no Cadeira de Rosas: já é uma restrição nos
locomovermos basicamente em cima daqueles cubos de tamanhos diferentes.
L-Aquilo é a regra que media
H- Conforme fomos criando para eu me mexer eu comecei a usar os braços, é normal. O que
fizemos? Tiramos os braços. Ficamos o tempo inteiro com os braços para trás e as mãos
entrelaçadas. Ao mesmo tempo eu percebia nessa postura uma complexidade, que
dependendo de como você olha pode parecer uma postura de poder, de autoridade, por
exemplo a polícia com o braço para trás.
L-Projeta o peito
H- Há um quê de autoridade. Mas também dependendo dessa coluna, uma relação de
submissão, de subalterno. É uma postura bem interessante.
Não que eu percebi isso anteriormente, foi uma questão de restrição: tira isso, agora tira isso,
tira isso. Como um corpo pode dançar tendo seu ambiente (restringido). Se ele anda, ele anda
num cubo, que não é o mesmo por exemplo que um skate. E nem temos a ideia de ter um
trabalho para uma linguagem de uma virtuosidade que as pessoas reconheçam, é uma
virtuosidade que está num outro lugar.
L- ela não necessariamente está exposta, tão visível.
H- Como naquele ambiente tão árido, “cubos quadrados”, quem controla quem? Muitas vezes
a gente perde o controle daqueles cubos. Nos ensaios caíamos muito, ríamos. Mesmo nos
espetáculos muitas vezes queremos ir para um lugar e dependendo de como as rodinhas
estão naquele dia elas não vão para aquele lugar, a gente ria. Os grande protagonistas de
cadeira de rosas são os cubos. Eles foram pensados nessa relação dessa minha percepção com
a cidade. Nós somos um articulador nessa cidade, mas essa cidade nos articula também.
L- Nesse sentido quando você coloca essas restrições pensando na metáfora da relação entre
corpo e cidade, em que você dá e recebe o tempo inteiro fica para mim este fato do ser
humano estar sempre se adaptando, organizando o corpo para a situação.
297
H- Você agora falou algo que é fundamental, aí é o mote do nosso trabalho. Há pessoas que
falam que é improvisação. Não que seja improvisação, mas lidamos com estados de
improvisação, são determinadas instruções que a cada espetáculo, e até aí todo espetáculo é
assim, mesmo o mais...
L- Marcado.
H- Sempre vai sofrer breves rumores de diferença no dia-a-dia porque as pessoas, o tempo (se
está frio), se você está feliz se você está com preguiça, o trabalho, o espetáculo estará
totalmente co-dependente dessas circunstâncias, só que no nosso caso essa escala é muito
maior. São espetáculos de grande risco que a gente estabelece, porque vamos cada vez
mais para questões muito simples, o que não quer dizer que é simplista. O simples contém
as sínteses (esta frase encontra uma ponte com as crenças e buscas do movimento
minimalista) e a síntese é extremamente complexa. O desafio é que se não estivermos com o
corpo preparado com esse tipo de prontidão, de escuta, o trabalho vira uma bobagem. É um
tipo de pensamento que exige desse bailarino, intérprete-criador, uma prontidão em relação
aquilo que você se propõe e as condições que aquele ambiente se coloca naquele
momento. O tempo inteiro somos obrigados a fazer escolhas.
A cada vez que você vivencia aquele espetáculo é um grande evento para nossos corpos. Para
ele manter esse frescor estético a gente realmente está fazendo escolhas naquele momento
L- E coloca na estrutura regras que permitem esse grande acaso também, não é?
H- O tempo inteiro estamos jogando com o acaso. Você por exemplo viu Cadeiras de Rosas.
Em Vapor, não havia objeto nenhum, mas havia um risco muito grande em relação a mim,
pois o trabalho todo discute controle em cima da manipulação da minha cabeça. Conforme o
Raul (Rachou) me jogava eu nunca sabia exatamente aonde estaria esse jogo, como ele ia me
jogar. Esse corpo tinha que responder porque senão eu podia quebrar meu pescoço. É uma
relação como eu entendo também a vida. O tempo inteiro estamos fazendo escolhas, há
horas que fazemos boas escolhas e há horas em que fazemos péssimas escolhas. O tempo
inteiro você vai reconhecendo isso: “Nossa que legal!” E se você depois quiser repetir aquela
situação você vai ver que não dá certo. Nem sempre aquilo que foi uma escolha maravilhosa
hoje, se você tentar forçá-la no outro dia, a situação, a circunstância já é outra, e aí ela às
vezes não vai caber ali. Fica muito claro quando essa coisa aparece mas chega de um jeito
armado. Isso fica revelado no espetáculo.
Assim também como quando há uma situação: “Nossa que ‘embananação’ eu fiz, o que eu
vou fazer?” Mas isso para você. Para o observador... Eu sempre falo em aulas a questão dos
“nós”, sempre acho que esses momentos que a princípio odiamos, que nos colocam numa
298
situação de “e agora?”. Quando você reconhece o que chamo de “vislumbre de uma
paisagem”, é aquele momento em que você percebe que houve uma exatidão. E isso é
incrível, mas ao mesmo tempo que você percebe, isso é muito rápido, já foi. É legal, os
desafios serão outros, você fica querendo manter aquele vislumbre, mas isso fisicamente é
impossível, pois se reconfigura constantemente. O interessante é pensar nessa atitude em
relação à cena: um corpo que está sempre selecionando.
L- Mas quando você fala dos “nós” que o observador vê de um jeito
H-O interessante do “nó” que nós percebemos, que seria a ideia do “erro”, mas o “erro”, a
pessoa que está implicada... na verdade o “erro” não é erro é um “problema”. O bailarino ou
ator quando está nesse lugar, esse corpo se dilata, e o observador percebe o corpo pensar, isso
é o mais incrível na cena. Você percebe, algo acontece, dá um “gap” na cena. Claro uma coisa
são aqueles problemas
L- Que eternamente não se resolvem
H-Quando se perdeu mesmo. Embora o nosso trabalho tem sempre esse risco. Eu brinco até,
às vezes tem dias que “a bruxa ganha”. Mas o “nó” é o momento em que você pode descobrir
uma novidade. Foi colocado para você uma circunstância que provoca: “o que que eu faço?”.
Essa dúvida. Eu sempre acho que a dúvida é o reino do artista. É nesse lugar da dúvida que
está colocada a possibilidade de uma novidade.
L-Aparecer.
H- E aí você resolve essa novidade, no caso do pensamento como nós entendemos- é
importante falar da minha parceria com Raul Rachou, nós estamos há 20 anos juntos, imagina
a ideia de escuta que foi construída dessa relação, é diferente de trabalhar com alguém com
quem eu comecei agora ou há dois anos.
L-Bastante.
H- Retomando para o seu trabalho quando você fala desse minimalismo eu até vou começar a
pensar mais, porque você sem querer está me dando uma devolutiva, “poxa eu nunca tinha
pensado desse jeito”, quem sabe assim por causa de você eu até vou prestar atenção nesse
lugar que você coloca do minimalismo. Não necessariamente são pequenos gestos, mas são
ações pontuais e repetitivas. Nesse sentido podemos dizer que há o minimalismo.
L- Nessa tentativa de definir esses termos, você com essa compreensão da dança.
H- No MUSICANOAR há convergências com questões que você está pensando.
L- Ao entrevistar OPOVOEMPÉ, LUME, eu vi como é o entendimento deles a partir do
teatro, do que seria ação e o que seria gesto. Você tendo esse background, essa formação da
dança, pensando esse entrecruzamento entre performance e minimalismo, mas trazendo para o
299
seu universo da dança, o entendimento do corpo a partir dessa noção de dança. Como você
definiria ou o que entende por ação simples?
H- O modo como eu trabalho eu não faço distinção entre ação simples, ação, pré-ação. Ação
para mim é qualquer ideia que surge nesse ambiente corpo, isso já é uma ação. Por que eu
coloco que não há essa diferença? Inclusive o modo que eu trabalho, esse trânsito entre teoria
e prática, por que que não há diferença? Porque são as mesmas cadeias sensório-motoras,
aquilo que quando eu articulo, crio um pensamento, são as mesmas cadeias que me permitem
criar uma queda em cena. Eu não faço essa distinção, não existe para mim ação simples. Pré-
ação ou ação simples, há uma série de estudiosos em teatro que trabalham desse jeito. Os
pesquisadores em dança organizam teoricamente como eu estou falando para você. Agora eu,
Helena Bastos, nessa relação prático-teórica eu não faço essa distinção por reconhecer que
são as mesmas cadeias sensório-motoras que vão produzir um pensamento conceitual, ou um
pensamento ao nível de o corpo produzir uma queda no espaço. Lógico que há um nível de
descrição diferente. Eu organizo deste jeito.
L- Mas de repente propondo uma diferenciação entre uma ação que você entende quando vê
que seria complexa, se isso ajudar a pensar, ou simplesmente pensar num campo inteiro do
que seria ação, e se há como delimitar esse termo, (ação simples).
H-Penso que a complexidade já está. Se eu penso ação como mover com determinado
propósito, a complexidade já está nessa relação e no modo como eu elaboro essa
terminologia. O que eu vou poder mapear. No modo como eu crio e penso, eu não pré-
planejo. Eu lanço uma ideia, esta ideia já está totalmente contaminada de algumas questões
conceituais, e com elas eu me lanço no espaço com alguns gatilhos.
Eu estou fazendo um trabalho, novo, eu não tinha clareza, eu tinha alguns gatilhos no
lançamento desse novo projeto criativo. Na hora que eu vou para a sala de ensaio movida por
algumas perguntas, em que esse corpo começa a fazer algumas experiências, é nessa relação
que eu vou construindo todo um sistema coreográfico. Nessa criação eu vou reconhecendo
esses espaços na relação de determinadas circunstâncias que eu vou colocando para mim
mesma. Não sei se consegui te responder, mas é bem diferente da metodologia do pessoal de
teatro.
L- E agora o outro termo que estou tentando cercear: como você definiria mínimo gesto?
H- Eu acho que não definiria mínimo gesto, porque se eu estou colocando para você que não
há distinção entre teoria e prática, também não haveria diferença para mim... não sei, eu não
penso desse jeito, mínimo gesto... O que eu posso falar para você, que talvez eu pensasse... Aí
depende, vai estar sempre dependendo da pergunta que eu coloco para mim mesma. Quando
300
você fala mínimo gesto, eu estou lembrando de alguns exercícios que já dei, talvez até por
isso que você me pergunta. Penso em escalas maiores ou menores. Se faço assim com a mão
(abre os dedos), isto em relação à mão é um gesto grande. Agora como com isso aqui (abre
dedos e estende o movimento para o antebraço) eu posso ampliar esse gesto, é uma questão de
escala. Eu até brinco com a “xerox”, “xerox ampliada” “xerox reduzida”. Talvez eu faria
esse tipo de relação. Mas dar uma definição do que é um gesto mínimo
L- Atentar para a diferença, se é possível pensar o que é mínimo gesto e gesto mínimo.
Falando em mínimo gesto?
H- Estarei chutando. Não acho que é legal.
L- Tudo bem, me interessa essa construção de pensamento a partir de novas possibilidades de
associação inclusive para você.
H- O mínimo gesto eu vou pensar na batida, numa pulsação (Helena relacionou à menor
unidade, como na música, a uma relação gramatical decodificada, silábica, de notação),
mesmo uma pulsação pode ser uma pulsação estrondosa, depende da relação e da conexão
que você quer. Se eu quero trabalhar, dependendo da pergunta que me lanço quando vou para
uma sala de ensaio pesquisar, essas escalas, já traduzindo para mim, estas vão surgir na
relação de determinadas perguntas que eu me coloco, na relação de uma experiência diferente
que eu vou ter, então depois conseguirei responder. A princípio quando você me pergunta
desse jeito, é muito impreciso, eu não consigo mapear isso no corpo. Uma questão mínima já
me vem a pulsação. Mesmo assim a pulsação pode ser forte como um espasmo, ou às vezes
eu brinco: “o fremir de uma borboleta”, que está ali, quase morta. Ou uma asa que, não é que
voa, quase voa. Fico nesse “entre”.
L- A arte para você pode ser entendida como uma “troca” de experiência? O “valor de troca”
da arte é social ou econômico? Qual a diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”?
H- Aí você já está indo para uma linha de economia cultural, não é? Economia criativa. Eu
reconheço a arte como produção de conhecimento, é como eu entendo. Hoje em dia, no
contexto das políticas públicas, estamos começando a discutir, a arte tem determinadas
particularidades. Penso que é importante esses editais de fomento, logicamente eles acabam
dando visibilidade a determinados pensamentos e sobrevivência a determinados pensamentos
criativos. Por outro lado começa a haver uma onda inversa desses grupos que acabam sendo
fomentados, por exemplo, eu atualmente sou uma fomentada, digamos assim. De gerar
também... Esse circuito vai se fortalecendo, você começa a ver que há um certo rodízio, uma
hora você está dentro, outra hora você está fora. Os grupos começam a ficar reféns desses
jogos do editais. Estão aparecendo outros tipos de problema, não estou falando que sou
301
contra as leis de incentivo, mas temos que pensar também esses outros lugares da arte. Há um
grupo que estou fazendo assessoria em Ribeirão Preto e a princípio meu combinado com eles
era de ir aos sábados. Ele ganharam proAc e, quando comecei, a diretora mudou para
segunda-feira. Eu perguntei por que e ela alegou que era o dia de descanso deles. Tudo bem,
também somos trabalhadores, mas essa relação na hora que entra conceitos de bens
materiais... é um campo que precisamos discutir, porque eu vejo nesse momento muitas
incoerências também. Vejo avanços, por exemplo, eu mesma não consigo produzir se não
houver um respaldo econômico, mas sou de uma geração que vendia meu carro para pagar as
coisas, a geração “quebra pedra”.
Vejo pessoas saindo da universidade falando já da “minha pesquisa”. Agora depois de trinta
anos que estou começando a entender a minha pesquisa. Sua geração, sinto que tem um
discurso bastante potente, mas percebo também ser um discurso muito desencarnado. Uma
coisa é o que você fala, tem aquela potência, mas eu quero perceber esta potência também no
corpo.
L- Você estava falando do gerar conhecimento também no fazer, não é?
H- Senão vira retórica. Ou este grupo de Ribeirão é super legal e todos os bailarinos vieram
de condições difíceis. Gerados desse âmbito do social, há um lugar muito precioso no trabalho
que se está fazendo nessa companhia. Ao mesmo tempo me choco, pois pegam as leis
trabalhistas, não sei se estou sendo incoerente, mas se você é um artista é um outro jeito que
eu produzo, que eu penso a ideia de trabalho. Temo que garantir esse chão, mas não posso me
colocar igual a um metalúrgico, e não estou fazendo uma questão de valoração. Mas a arte
em si, se tem (deveria ter) algo de atravessamentos, rupturas, então (a partir do exposto)
começa a ser uma arte muito conivente com as regras do sistema.
L-Que para acontecer tem que ser sempre mediada por uma condição...
H- É.
L- Se não tiver fomento, “não rola”.
H-Exatamente. Mas também tem uma série de questões que, por exemplo, eu até estou lendo
uma tese. Dança é tida como o 4o lugar dentro das perspectivas de programas de cultura.
Deixa eu até ver para não falar bobagem:
“São poucos que sabem que se trata de um campo em expansão. No Brasil, teve no primeiro
panorama estudado em 2006, quando o IBGE apurou que as famílias gastam 4,4% do seu
orçamento em cultura”. Cultura é o 4o lugar
L- É o quarto lugar dos gastos numa família?
H- Isso. É um ambiente, e não sabemos disso...
302
L-Voce sabe quais os 1o ,2o 3o ?
H- Olha: “Habitação, alimentação, e transporte” quer dizer a saúde vem depois da cultura.
Isso é um dado do IBGE, está vendo? Já estamos em 2012, mas não é tão longe assim. A
dança, se não me engano nessa questão da cultura, não sei se é a primeira...tenho que ler mais.
L-Qual é essa tese?
H- Da Dora Alice Leão “Uma fábrica de mentiras: A incomunicação da economia da dança”.
Essas suas perguntas convergem bastante com as questões de sustentabilidade, de
divulgação da cultura, de formação de público. Isso tudo gera um ambiente. Eu sinto
que hoje as leis de incentivo acabam demarcando um panorama que vai mapear os que
estão dentro. E os que estão fora?
L-qual o entendimento que você tem de espaço público? O que você classificaria dentro dessa
categoria?
H- Espaço público é desde os lugares que circulamos, como a universidade por exemplo é um
espaço público. Concorda?
L- Sim.
H-Desde aquilo que você compartilha uma circulação, das ruas à própria produção de
conhecimento. Nesse sentido seria legal a gente pensar a arte como um espaço público.
L- Olha, parecido com o que o Renato e a Cris colocaram. Eles devolveram ao corpo e ao
pensamento esse lugar do espaço público. O corpo é um espaço público e quando você fala
também a questão do pensamento e como o pensamento para você também não está ligado a
um fazer que é mental, que o mental também está presente no movimentar-se.
H- Não existe diferença entre a mente e o corpo, estão entrelaçados. Filósofos das ciências
cognitivas Mark Johnson e George Leicov, fazem uma descrição do corpo como se
houvessem cinco instâncias misturadas: Corpo biológico, fenomenológico, social, cultural e
ecológico. Corpo ecológico é bem interessante para o seu trabalho: se você pensa o corpo
como uma extensão do ambiente que habita.
L- Nós falamos de mínimo gesto, ação simples, tentando ver que entendimento se tinha,
espaço público, qual é o valor da arte, como poderíamos valorar a arte. Assim eu te pergunto,
faço uma provocação à sua visão: Qual o espaço público da arte no espaço público?
H- Eu penso que ainda tem muito a ser feito. Ou há um incentivo a grandes projetos que aí é
arte e entretenimento, não tem problema, mesmo no entretenimento algo você está captando,
não se há de ter preconceito. O problema é o modo como se manipula com essa arte. Deveria
não sei como...
303
Eu participei bastante da criação do programa de fomento à dança. Quando recortamos
que seria dança contemporânea foi uma estratégia de um pensamento de dança de alguns
artistas que se percebem num determinado ambiente da dança. O modo que produzimos é
diferente de um grupo que vai trabalhar com as tradições folclóricas, são gatilhos muito
diferentes. Não estou falando que o folclore não tem o seu lugar, mas é complicado colocar
todo mundo num mesmo ambiente. Têm estruturas e modus operandi diferentes. O que nos
liga é o grande “guarda-chuva” da dança, mas sobre que dança estamos falando? Por que falei
do programa de incentivo à dança? Porque conseguimos elaborar um perfil deste artista
específico de dança, e acho que as políticas públicas devem estar pensando nessas diferentes
formas de pensar e fazer arte.
Houve até uma palestra da Diana Taylor no 2o congresso da ANDA. Ela citou um
exemplo da UNESCO falando dos bens imateriais: as grutas de determinado lugar, as pinturas
rupestres. Ela colocou: “E por exemplo a produção”, vou chutar, “de Marina Abramovic?”
Isso também não seria um bem imaterial? Como você vai comparar? Num caso a construção
ficou ali, como se você identificasse, há museus. Agora uma obra ao mesmo tempo que
acontece se dissolve, que é a questão das artes cênicas, da performance, da dança, do teatro: “
Acabou? Acabou.”. Como olhar para isso? E que são pensamentos que precisam de
recorrências para que as pessoas tenham acesso. Uma coisa é eu estar no show da Ivete
Sangalo, ela tem o seu lugar. Outra coisa é eu estar num espetáculo de música contemporânea
que eu ouvirei “tin, pon”. Haverão pessoas que vão odiar aquilo, mas são pensamentos que
estão discutindo determinadas complexidades. Por isso que digo, a arte quando é produção de
conhecimento, sempre falo do Jorge Albuquerque: “A arte é uma forma refinada de testar o
tempo-espaço”. Se penso desse jeito esse “tin, pon, pun” da música contemporânea, eu vou
precisar ouvir muitas vezes, para estar reconhecendo um discurso contemplado naquele
ambiente.
Quando começamos a colocar nessa relação de produto e de retorno é um outro canal.
A arte começa a ser tratada como uma espécie de um produto que te dará não sei quanto de
retorno. Você não tem. Não sei se é paradigma, ainda mais no pensamento contemporâneo. O
show da Ivete Sangalo já tem um modelo Ivete, ou um espetáculo do Bolshoi, as pessoas
quando compram um ingresso do Bolshoi sabem o que vão assistir, escolheram aquilo porque
sabem que aquilo é daquele jeito. Agora uma dança como a minha quem vai comprar?
Sempre poucas pessoas ou quem já conhece um pouco a sua trajetória. Acho que precisa
estabelecer uma relação dessa complexidade, e nesse quesito as políticas públicas tendem a
uniformizar, aí é dado um desafio.
304
L- porque aí essa questão da arte no espaço público acaba se limitando a alguns
H- Sim, é. “Sobre que espaço público você está falando? Sobre que edital você está
comentando?” Também tem isso.
L- Em que medida você acredita que o mínimo e o simples possam atravessar a
complexidade, a extravagância e o excesso da vida urbana?
H- Bom se eu falo que eu trabalho com a ideia de restrição. E acho que é um certo
ativismo, diferente da década de 70 (grandes guerras, grandes oposições) penso que
agora...(entrevista interrompida pela entrada de um professor na sala).
O mínimo e o simples já trazem em si uma complexidade. Eu acredito hoje em dia nas
micropolíticas, pequenas ações. Como uma gota que fica pingando: “água mole em pedra
dura tanto bate até que fura”. Eu acredito nessas micropolíticas, estratégias de aglutinação
de redes entre um perfil de artistas. Bauman vai falar, deste tempo dissolvido, tempo
líquido.
Você criar estratégias com pessoas afins, ambientes afins. Por isso falo de
micropolíticas, pequenas alianças, mas que essas alianças se perpetuem num tempo. Não
acredito mais em “pá” na Dança! “Pá” no Teatro! Qual teatro? Qual dança? Que pessoas?
Tem que fortalecer os campos afins, reconhecer.
L- Terminarei com uma pergunta lá do começo: que diferença você faria entre ação e
gesto?
H- Nao faço diferença, depende da proposição que eu me coloco. Para mim gesto é
ação e ação gera gesto.
L- Mas houve uma mudança na construção: gesto é ação, ação gera gesto
H- Sim.
L- Aí dentro você não reconheceria uma pequena, uma sutil diferença?
H- Mas é o que coloquei lá atrás também. Dependerá não só da pergunta, mas em que
ambiente eu vou discutir essas questão: É no corpo? É dançando? Será na hora que eu começo
a criar que vou conseguir identificar a natureza dessa ação: “Ah, ela surgiu como um gesto”,
ou “ah ela surgiu como um grande movimento”. Ela é dependente da experiência que eu me
coloco.
L- Você responde pela experiência.
H- Não só pela experiência, mas o que é que me move nessa experiência.
305
OTÁVIO OSCAR NUNES DO NASCIMENTO.
Formado em direção teatral pela ECA-USP. Participou da pesquisa como observador crítico
dos experimentos.
19.09.12
L – Qual sua experiência artística?
O – Na minha cidade, que é Macapá, eu trabalhei com uma diretora formada no Rio, depois
ela me estimulou a fazer o curso de artes cênicas, então eu fui para Curitiba, e lá eu trabalhei
com o teatro do oprimido e teatro infantil, estudei Maria Clara Machado, depois fui para Belo
Horizonte e fiz escola de teatro com o grupo Galpão, também fiz dança contemporânea, em
São Paulo, onde estou, trabalhei com experimentos de direção no departamento de Artes
Cênicas da USP e tenho dois grupos de teatro, um que trabalha mais com a linguagem de
teatro performativo e outro atua mais no espaço urbano.
L – E você também fez um projeto de iniciação científica, como se chama?
O – Projeto 3x3 de (não entendi por causa deo vento) de teatro e performance.
L – O que você desnvolveu nessa pesquisa?
O – Ela misturava elementos de performance e intervenção urbana a textos teatrais. Nós os
usávamos como base para ações no espaço urbano junto a elementos da performance, a ideia
de ação e representação, de performatividade. Trabalhamos com Édipo Rei, do Sófocles, o
Hamlet, do Shakespeare e As Três Irmãs, do Tchekov.
L – Que ideia você tem de espaço público?
O – Todos os espaços são públicos ou deveriam ser. É o avesso da casa, do privado, é o que o
estado administra e não pertence ao indivíduo. Pertence aos cidadãos. Pode ter diversos usos e
todos podem utilizá-lo, ao mesmo tempo também tem muitas regras. Eu imagino calçada, rua,
praça, parque, via, e os fechados como galerias. Tudo que é administrado pelo poder público.
Mas a USP é um espaço público que é fechado ao público.
L – O que você entende por ação simples?
O – Ação no sentido mais concreto, talvez. Algo minimalista, que recorta para acentuar
algo. A ação complexa talvez seja extensa ou complexa em seus significados. A diferença
entre a linha e o ponto. Também é possível fazer um ponto se desdobrar no espaço (pontual
em sua execução, mas que abre campos de significação, uma única ação repetidas vezes).
L – Como o quê, por exemplo?
O – Caminhar, observar. Uma ação única repetidas vezes também. Artisticamente creio que
caminhar também pode ser, dependendo da intenção.
306
L – O que daria esse grau artístico à ação?
O – Tentar estetizar o cotidiano, como usar um discurso ou intervir em uma ação para que
ganhe significado. Também pode estar no olhar de quem vê, um mendigo na rua fazendo
uma coisa estranha pode ter um enquadramento artístico. Não é possível definir de
antemão. Tem relação com o que é arte, também. A arte já está definida por especialistas. É
uma rede muito imbricada, muitas pessoas assistem performance e julgam que aquilo não é
arte.
L – E o mínimo gesto?
O – Depende o que você chama de gesto, também. Um aperto de mão, um aceno, sentar,
fechar os olhos. O gesto geralmente busca remeter a outra coisa. É uma ação física feita
com os músculos – mesmo que pequenos músculos – e pode significar muitas coisas.
Dependendo do contexto esse significado pode mudar, como piscar um olho. E o mínimo
pode ser o mínimo de esforço, o mínimo de significado. Pensando pela performance, seria um
gesto que quer comunicar, porém usando recursos mínimos. Seria enxugar alguns
aparatos, como figurino, maquiagem, história, narrativa, espetacularização, para fazer algo
quase cotidiano, que flerta com a não-arte. Poderia ser se deitar na esquina, do jeito que
estou agora. Acho que o mínimo gesto amplia a visão para as coisas que estão exteriores a
ele.
L – O que é performance para você?
O – A performance surgiu como uma forma de fazer o terreno da arte ser mais movediço, pois
na época as formas estavam muito cristalizadas. Talvez os performers surgiram antes da
performance. Per-forma é atravessar a forma, é a ideia de uma forma em transformação. Para
isso ela tenta problematizar os códigos aceitos, tirar as coisas do padrão. A convenção do
espaço urbano é que ele seja de passagem, então a performance tenta subverter esse fluxo,
romper esse convenção. A arte separada do cotidiano também é uma convenção, e a
performance tenta juntar isso, a arte e a vida. Essa questão do limite físico, também, como se
cortar, é o que subverte o padrão ético. Ou outras coisas como a ideia de que a obra é
intocável, a performance tenta mexer com isso tudo. É uma arte rebelde. É a permuta da
forma.
L – Eu lembrei do que o Renato Ferracini falou sobre ir contra e a favor do fluxo.
O – Sim, a sociedade humana tem tendência a se solidificar. Ao mesmo tempo temos uma
tendência ao fluxo, à movimentação, e a performance enfatiza isso, podermos entrar em
outras dinâmicas mentais. O artista que se propôs a passar um ano sem entrar embaixo de um
teto, e sobreviveu. Temos muitas convenções, achando que precisamos de teto, comida,
307
conforto, e no fim tudo é mutável. Criamos uma visão muito mesquinha do que é ser humano,
então iniciativas nesse sentido são sempre muito boas. Essas ações podem mostrar
possibilidades de mudar o mundo e a si mesmo.
L – O que é entre-lugar?
O – A travessia, experiência, a passagem. A transformação, quando você vai de uma forma
para outra. É difícil permanecer muito tempo neste lugar, mas ele acontece, quando as coisas
não estão definidas. Ele existem todo dia, e também se manifesta hoje espacialmente. temos o
lugar privado, que é confortável e onde você cria suas próprias regras, e a rua, onde você
enfrenta riscos, lida com regras que não são as suas. É o lugar por onde você está de
passagem, não se fixa. Eu vejo esses dois sentidos.
L – A arte visa uma “troca” de experiência? O “valor de troca” da arte é social ou econômico?
Qual a diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”?
O – A arte é como engenharia ou ciência, pode ser usada para diversos objetivos, como a
bomba atômica, ela foi idealizada para outros fins que não o que vimos acontecer. Ela foi
idealizada para criar energia. A arte também, pode ser altruísta, provocar, melhorar, por outro
lado também pode ser usada para vender ideias, para fixar pontos de vista, e até mesmo para
fazer as pessoas se acomodarem. Eu penso no teatro do Padre Anchieta, que era feito para
catequizar os índios.
L – O que seria da publicidade sem a arte?
O – É. Só o ‘beba Coca-Cola’ não seria suficiente. A novela também, tem sua estética
consolidada, e faz com que você esqueça a realidade ao seu redor. E a arte pode ter um valor
de troca, pode ser usada para produzir, potencializar, e o valor de uso depende dos objetivos
que se tem. Hoje está muito associado ao valor e econômico. Então se você não gera lucro
com a arte, fica difícil fazer mais arte. Você é menos valorizado. Essa dimensão da arte
provocadora, por contextos sociais, está em baixa. O sistema produtivo determina esse valor.
Hoje a arte mais voltada para o lucro está mais triunfante. A arte consumível. Não se entende
como experiência, sim como produto. E a mídia também constrói isso. A maioria dos
performers do mundo são marginais, mas pensando-se na Marina Abramovic, o trabalho dela
gera muito lucro, fala-se muito dela. Tem grande valor de troca. Para um museu isso é
interessante, atrai mais pessoas. Mas para mim o maior potencial é o provocativo, mesmo.
L – Qual o espaço público da arte no espaço público?
O – Isto é engraçado, porque fala-se em arte de rua como se fosse estar na rua. Imagine um
show do Michel Teló no centro de São Paulo e eu fazendo uma performance em que eu
arranco meus fios de cabelo. Acho que as intenções são diferentes. Depende do conteúdo, não
308
é só fazer uma novela no espaço público, colocar uma questão privada no espaço público. Eu
posso fazer uma performance no Viaduto do Chá, que discuta o uso do Viaduto do Chá, isso é
uma questão que diz respeito a todos. A arte pública é relacional, depende de suas intenções,
das relações em que se está inserido, das relações que se propõe.
L – E há espaço para a arte nesse espaço público?
O – Está muito difícil. Para tudo se precisa pedir autorização. Só se pode circular na rua,
quando um artista tenta algo, isso já é barrado. Ou um camelô, por exemplo. Ou os artistas
que passam o chapéu, são pessoas fazendo atividade econômica ilegal, porque não estão
pagando imposto.
L – E por que então a arte não pode circular economicamente, já que você disse que é como a
engenharia?
O – Porque ela precisa estar livre. Sempre se controlou a arte, na ditadura, por exemplo. Ela
tem muita potência. Ela tem poder de questionar o status quo. Então quando ela busca o lucro
você fica preso na necessidade do consumidor, para que ele compre. E aí você começa a
reforçar discursos, e não questioná-los, para ter o maior alcance possível. E aí se perde esse
poder.
L – Mas para o estado quando a arte está no espaço público ela tem o mesmo valor
econômico...
O – Eu gosto de pensar na Comedia dell’Arte. Eles precisaram montar um empreendimento,
porém o fizeram de maneira própria. Faziam espetáculos na rua. Tinha um grau de
simplicidade, para que fosse acessível e ao mesmo tempo é muito rico e potente. Também
tinha uma provocação com os poderosos da época. Afinal, também precisa-se sobreviver. A
troca se dá pelo dinheiro, então precisa-se tirar dinheiro de algum lugar, seja através de editais
públicos ou outros jeitos.
L – E qual a importância do público no seu trabalho?
O – Meu trabalho é sempre voltado para minhas questões e para o público, coisas que quero
compartilhar, quero trocar. Também gosto de pensar sobre o que quero falar em consonância
com o que acontece, questões que tenham a ver com o jeito que estamos vivendo
coletivamente. Mesmo quando eu falo da minha intimidade, precisa ter uma ponte. Mesmo
quando tem uma pessoa só falando, pode haver um diálogo. Depende da intenção, do modo. E
pensar a intervenção no espaço público também é pensar os efeitos dessa arquitetura, por
onde podemos transitar, que são as configurações de pensamento. O espaço é para ser
ocupado. E o discurso estético tem grande potência de surpreender.
L – Aos outros e a quem propõe, também.
309
O – Sim. E não é só o estado que censura, as pessoas também se reprimem ou te reprimem,
não querem ouvir o que você quer dizer. São cristalizações que tentamos quebrar. Talvez
possamos tocar alguém naquele momento ou aquilo nunca vai acontecer.
310
ENTREVISTA SOBRE PROCESSO DO EXPERIMENTO 3: INSTITUIÇÃO PÚBLICA-
CEPEUSP. ESPETÁCULO MOACIR:FILHOS DA DOR COM PERFORMERS:
TAIS FELICIA LUCIANO DE LUCENA, 23 anos.
Formanda em Relações Públicas pela ECA-USP, atriz, não-dançarina.
VANDERSON CRISTIANO SOUSA, 28 anos.
Formado e mestrando em Biologia, formando em Ciências Sociais pela USP, não-dançarino.
L - Qual a experiência artística de vocês?
T – Comecei a fazer teatro aos 8 anos de idade. Eu dançava, fazia teatro, tocava flauta. Eram
matérias da escola. Depois participei de algumas companhias amadores de teatro. E então
entrei no curso profissionalizante de atores, onde tentei montar algumas companhias de teatro
que não deram certo. Agora tenho uma companhia chamada Aliás. Eu trabalhei em uma
companhia de circo com animação de festas, andando com perna de pau, fazendo maquiagem
em crianças.
L – E como se interessou por essas coisas?
T – Não sei, na escola já fui estimulada, sempre estive em contato. Já fiz aula de desenho,
pintura, curso de máscaras, argila, artesanato.
V – Teatro eu só fiz na escola. Mas sempre fiz coisas em paralelo. Quando era criança eu
escrevia bastante. Na escola tinha peças, também, eu escrevi alguns textos. Durante a
faculdade eu fiz um trabalho de educação ambiental com crianças, fizemos muitos trabalhos
artísticos, documentários.
L – Eu tinha um professor de literatura no ensino médio que trazia o trabalho dele de clown
para a sala de aula e era muito prazeroso estudar com ele. A arte conferia ao ensino outra
forma de recepção.
V – Eu escrevi o CicAtrizes.
L – E o que o trouxe para esse processo, MoAciR: Filhos da Dor (espetáculo de dança-teatro
aquático nas piscinas do CEPEUSP, Experimento 3 deste projeto de pesquisa)?
T – Eu vim porque o encontrei aqui na faculdade e tive curiosidade e vontade de participar.
V – Eu me interessei por causa do folheto. Tive vontade de fazer algo diferente. Eu gosto de
entrar nesses fluxos de tentar algo diferente. E sempre estou em busca de conhecer novas
pessoas, amizade principalmente. Por isso entro em muitos projetos.
311
L – Eu distribui esse folheto para achar pessoas que realmente se interessassem pelo projeto.
Aqui no departamento há um desinteresse muito grande. E você, que não sabia nadar, se
ofereceu para vir. O que te moveu?
V – Eu não parei para pensar racionalmente, pois estou fazendo o projeto para o mestrado,
inclusive. Mas mesmo quando você não pensa sobre já existe algo latente. Se acontece é
porque tem um interesse. Eu fui fazer Ciências Sociais quando percebi que tinha essa vontade,
apesar de estar em outro curso.
T – Eu achei interessante por ser na piscina, achei que era um projeto diferente. Eu tinha
acabado de me formar, então estava livre. Todo projeto te acrescenta coisas, e eu nunca tinha
feito algo do tipo. E eu também estava cansada do teatro realista-naturalista.
L – Que ideia vocês têm de espaço público e o que estaria dentro dessa categoria?
T – Não é o contrário do privado. Seria o espaço de todos, mantido por todos juntos, ou pela
ação de cada um. Onde há livre trânsito, livre acesso.
V – Eu pensei que também pode ser o contrário, que é um espaço de ninguém, um lugar onde
se pode fazer qualquer coisa, porque não é responsabilidade de ninguém. Mas eu vejo como
espaço de todos, um lugar que todas pessoas possam usufruir. Tem espaços com mais limites
e menos limites. O metrô é diferente da praia, por exemplo.
L – E o que determinaria essas diferenças?
V – O contrato social que é determinado pelo poder do estado. A USP também é um espaço
público, apesar de que para entrar você precisa mostrar a sua identificação. Quando os
homens primitivos estavam na natureza todo espaço era público, a partir dos clãs e a definição
dos territórios começa a existir um conceito de espaço privado.
T – Na Grécia o conceito de público e privado tinham conotações diferentes da que temos
hoje. A ideia de que no privado a mulher era oprimida pelo homem e no público era o espaço
de se discutir os assuntos. Hoje é o contrário você tem essa liberdade dentro de casa.
V – Eu assisti uma peça que falava sobre os mendigos, e tinha uma cena de um homem se
masturbando e isso chocou muito as pessoas, mas se fosse dentro de quatro paredes seria
perfeitamente normal.
L – Também tudo que está relacionado ao baixo ventre. A privada, por exemplo, tem que ser
negado, escondido. E o que entre nesse conceito que vocês descreveram?
T – Não sei direito, porque a USP, que é pública, por exemplo. Dentro dela tem algumas
empresas privadas lucrando.
V – É como um malabarista que vai para o espaço público ganhar seu dinheiro.
T – Não, eu penso que é diferente. A relação de ocupação do espaço é outra.
312
V – E a praça Benedito Calixto, onde tem feira?
T – Sim, todos estão usando para o seu bem próprio, eliminando a possibilidade de outras
pessoas usarem.
V – Mas você não acha que essa feira também é uma troca? As pessoas pagam taxa para
vender seus produtos lá e as pessoas que compram também se beneficiam. Por dois dias elas
podem usufruir o espaço de maneira diferente.
L – O teatro, por exemplo. É público ou privado de acordo com o espaço? Se está no SESC
ou na Praça Roosevelt? Ele deveria ser para todos.
V – Quando é num lugar fechado não é público, há limitação de pessoas. Mesmo o espaço
público tem limitação.
L – Então são praças, avenidas, ruas, universidade?
V – O CEPEUSP é público, mas só pode ser acessado a quem tem a identificação da USP.
T – O ônibus circular também.
V – Sim, tem um acesso restrito.
L – Mas o contrato não é mediado pelo dinheiro.
V – Não, é pelo mérito, mas é a mesma coisa. As pessoas confundem dinheiro e mérito, no
ego. O dinheiro é o meio para o mérito. O CEPEUSP não é para as classes baixas, as pessoas
que estudam na USP e as pessoas que trabalham aqui também, veja a concorrência dos
concursos aqui. Quando a USP fala de comunidade interna e comunidade externa, isso já é
uma distinção.
L – E o que vocês entendem por ação simples?
T – Ação conceitualmente simples, sem muito rebuscamento de significado, sem sub-texto.
V – Vou usar o exemplo da dança: são as ações que compõem a dança, a estrutura
elementar da dança (os “passos básicos”). No forró, por exemplo, é um passo para lá e um
passo para cá. É um conceito da antropologia. Seria a forma elementar de uma ação
maior. Eu li isso em um capítulo de um livro do Levi-Strauss, onde ele tentava explicar o que
era a antropologia estrutural. Ele teve um insight quando viu as estruturas de uma flor. Ele
também fala da linguística nesse texto. Na linguagem a estrutura elementar é o fonema. Na
cultura é o mitema.
L – Mas em ação simples dá para fazer essas gradações?
V – Pegar um copo, por exemplo, é uma ação simples. E ainda posso dividi-la em mais ações.
Mas não sei qual seria o mínimo ponto, talvez mexer um músculo só, mas acho que isso é
impossível.
L – E onde vocês identificam isso em nossa prática?
313
T – É que ação simples não é minimalista, estamos trabalhando com espaços grandes e
ações grandes para preenchê-los. Quando corremos, talvez.
V – E uma ação complexa?
T – Não sei.
L – Achei interessante você ter diferenciado simples de minimalista...
T – Sim, porque pular do décimo andar é um passo para frente, que é simples. E é
grande. Correr é simples, mas é grande.
L – Você relaciona mínimo a uma certa amplitude no espaço?
T – Sim. E tocar piano talvez não seja uma ação simples. (mas movimentos mínimos
espacialmente).
V – Imagine uma pessoa tocando repetidamente a mesma tecla do piano, isso é uma ação
mínima ou simples?
T – Sim.
V – Mas a ação mínima é simples sempre?
T – Não.
V – Mas então dê um exemplo de ação mínima.
T – Só de mínima?
V – Sim, porque eu acho que mínima está dentro de simples.
T – Então, tocar piano não é uma ação simples.
L – A imobilidade?
V – Ela envolve uma ação.
T – Dentro da piscina não é tão simples.
L – E fora?
T – Fora, sim. Depende das condições externas, se estiver ventando, não.
L – A imobilidade parece fazer a distinção, para mim ela é mínima mas não é simples.
Alguém que trabalha como estátua viva. São micro-movimentos que para serem mantidos
envolvem uma complexidade, variações que a olho nu são mínimas.
V – Veja o exemplo do sorriso no contexto do nado sincronizado, elas estão sempre rindo,
mas o todo exige um esforço tremendo para manter “aquele sorriso”.
L- Complexidade na simplicidade.
T – Eu vejo aquilo como algo extremamente doloroso, de permanecer de maneira rígida.
L – Ou moldar o corpo. Toda dança que envolve uma técnica reeduca o corpo. A tendência do
corpo é deixar a gravidade atuar. Essas bailarinas têm seus cem anos, foram reeducando o
314
corpo, os músculos, a postura. E o que vocês entendem por mínimo gesto ou gesto mínimo?
Há diferença?
V – O mínimo gesto seria o caminho mais curto, tem relação com amplitude, o foco é o
mínimo. O gesto mínimo seria o gesto elementar para uma ação, a estrutura elementar,
basal. Qual a estrutura elementar da água? Dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio.
Agora qual o mínimo átomo? O mínimo gesto, escolher dentre todos os gestos possíveis o
mínimo possível.
L – E o que seria um mínimo gesto?
V – Para ir para nossa cena da Guerra, por exemplo, eu vou escolher dentre todos os gestos
que tenho na cabeça o mais simples de todos, o mais elementar que possa representar guerra.
De todos os gestos mais simples, os gestos mínimos que se possa representar guerra (marcha-
ação simples, bater continência, posição de sentido), qual o mínimo gesto? Seria “o menor
gesto possível para/de”, os mais condensados, menos complexos.
L – Um você associou com símbolo, identificação, repertório, o gesto mínimo, e me remete à
representação (o gesto mínimo que representa algo, como pode representar de maneira
mínima algo – H2O, DNA). Quando na verdade estou sempre instigando vocês à ação, como o
ritmo, o deslocamento, o desenho podem abrir para vários símbolos. Diferente daquele
símbolo já codificado, diferente da estrutura elementar “universal” (B+A=BA). Como
criar esses outros repertórios não codificados? (remete-me à reflexão a posteriori da
realização da entrevista dos ideogramas de Grotowski ou Artaud citados por PAVIS, 2007,
p.185). Como algo como “correr” não está necessariamente codificado a apenas um contexto
(guerra, maratona, invasão, fuga... e é “correr”), diferente do gesto que você fez de bater
continência, que É a guerra. Descodificar, como Artaud coloca: as mesmas palavras
começarem a significar coisas diferentes que não o já entendido por elas. E o que é
performance para vocês?
T – Eu entendo como o que não é teatro nem dança. E que acontece preferencialmente fora de
lugares fechados, onde muitas pessoas vejam. Alguém que aja fora do comum, de maneira
diferente das pessoas em volta, com objetivo artístico ou não. Pode-se ser performático sem
saber. Eu lembro de um vídeo onde duas pessoas correm e batem na parede e a parede vai se
afastando. Geralmente tem pouca fala e mais ação, o foco é a ação.
L – E sobre o nosso processo, qual a diferença em fazê-lo como cena ou como ação
performática.
315
T – Em teatro eu penso mais em contexto, personagem. E na performance é a ação, só fazer.
Eu busco não psicologizar muito, esvaziar. Sobre mudança corporal eu não sei se houve. A
diferença para mim é mental, mesmo.
V – Eu não pensei muito sobre isso, mas como algo que é feito para ser visto, tudo é
performance, o teatro, a dança. E até momentos da sua vida em que você se apresenta para
outros, como dançar em uma festa. Quando nos apresentávamos eu não estava com isso em
foco, eu tinha a ação em foco. Por mais que teorizemos sobre, a ação é soberana. Eu
considero que algumas cenas eram muito performáticas e outras não.
L – É, tem cenas mais dotadas de subtexto, e é inexplicável, mesmo. Mas qual seria o limiar
entre cena e ação performática?
V – Depende do ponto de vista, dá para trocar os nomes se te convier, dependendo da sua
intenção. O artista de rua para mim faz performances. Não é uma cena com enredo. A nossa
cena da cadeira é uma cena, mas se fosse isolada poderia ser uma performance. Ela vira uma
cena por causa do contexto todo. Para mim performance é uma coisa isolada.
L – Então a sequência de movimentos que vocês fazem com a cadeira vista na rua seria uma
performance?
V – Sim, se apresentássemos no restaurante universitário, por exemplo.
T – Descontextualizada.
V – Isso.
T – Quando as pessoas falam sobre fazer uma performance da Madonna. É uma coisa
descontextualizada do show.
L – E o que é entre-lugar?
V – É mais psicológico do que físico. Eu pensei agora em uma pessoa que não tem condições
de estudar na USP e vem visitar o campus. Ele está no entre-lugar, é um espaço fictício para
ele. Na antropologia o ritual de passagem é um entre-lugar. Quando o adolescente está no
ritual, ele não é mais criança, nem adulto. No contexto artístico eu não elaborei. Vejo dessas
duas formas.
L – No plano físico como seria?
V – O exemplo mais próximo seria o primeiro. Ou os índios que são mendigos na Praça da
Sé.
T – Talvez seja a transformação do lugar, em teatro, por exemplo. O CEPEUSP se
transformou por nossas ações.
L – Sobre o exemplo do índio eu lembrei de algo como sobre habitar a incerteza. Para mim
o entre-lugar são os lugares de passagem, que não podemos habitar.
316
T – Eu sei que isso pode ser chamado de não-lugar.
V- Eu vi uma exposição com fotos de uma pessoa embaixo do viaduto, do lado de um
orelhão.
T – O não-lugar onde você não consegue construir memória. O McDonald’s. A sua casa é um
lugar. Você primeiro cria o espaço quando cria a memória.
L – E a arte visa troca de experiência? O valor de troca da arte é social ou econômico? E qual
a diferença entre valor de uso e valor de troca?
T – Tudo é uma troca, a arte visa a troca de experiência, sim. Isso constrói as pessoas e as
pessoas constroem a arte.
V – Se você faz uma peça, tem um valor de uso, pode ser o lazer. Para você, que trabalhou, é
um valor de troca. Mas o público te dá de volta em troca? Uma platéia com cem ou com uma
pessoa é a mesma coisa?
T – Sim, o público responde, corresponde, dá calor. E é muito diferente a relação entre as
duas platéias, até o calor muda.
V – Se a peça só tem valor de uso para a platéia não há valor de troca. Se é indiferente para o
artista.
T – Acho difícil que não aconteça troca. A presença ou ausência das pessoas tem significado.
V – No contexto de hoje sempre tem a troca cultural e econômica. Mesmo que não seja com o
público, você precisa ganhar dinheiro. A economia é a base da execução. Realmente, quando
as pessoas já visam o lucro desde o início, o valor é econômico.
T – Se a pessoa só trabalha com isso ela precisa se preocupar com o dinheiro, claro.
V – A peça ‘Trair e Coçar’, por exemplo. Não deixa de ser arte, mas eles visam a bilheteria. É
diferente da cia de teatro que atua na zona leste.
T – Mas também não é um problema querer crescer e ganhar dinheiro.
V – Não é, mas é diferente.
L – E a diferença entre valor de troca e de uso?
V – Cada objeto tem valor de uso e o valor de troca é a relação entre todos os valores de uso.
Um quadro do Picasso hoje, no começo talvez só tivesse valor de uso para quem conhecia e
sabia sobre, e hoje tem um valor de troca altíssimo.
T – O valor de uso talvez seja mais sobre o que a arte pode transformar na vida das
pessoas, e isso se estabelece pela troca.
V – Quando uma pessoa se dispõe a ficar duas horas vendo uma peça, é o valor de uso.
T – Mas é inacessível para o público, porque não se sabe direito como se vai usar aquilo.
V – Sim, como ler um livro, é um trabalho de decodificação.
317
L – E dentro do nosso contexto, apresentando o trabalho no CEPEUSP, qual é o espaço
público da arte no espaço público?
V – Por exemplo, há trabalhos que estão no espaço público e onde o artista acha que está
dizendo algo mas as pessoas não têm background cultural para decodificar aquilo. E aí não há
valor de uso. Não adianta só estar no espaço público, o trabalho não é público.
L – Está no plano do entendimento ou da referência?
V – É onde a arte realmente é pública. Não é necessariamente no espaço público.
L – E esse espaço para que a arte habite existe?
V – Se você colocar um monumento na rua, aquilo será necessariamente visto como arte? Se
isso acontecer, será arte no espaço público. Talvez eu faça algo que não seja considerado arte
pelos outros. Depende da motivação, cada artista tem uma relação específica com seu
trabalho.
L – Pensando em nosso caso, queremos intervir no CEPEUSP. Que espaço temos para isso?
V – O CEPEUSP na verdade é um espaço restrito.
L – E a sala de aula também não é?
V – Depende da forma que o professor leva isso.
L – Então eu penso sobre as diferentes regulamentações do espaço público. O CEPEUSP não
é público, então? Há espaço para que a arte aconteça nesses lugares?
T – No museu, não. É um lugar muito controlado. Acho que só conseguimos autorização para
fazer as coisas no CEPEUSP porque somos alunos da graduação da USP. O museu também.
Não tem acesso livre a todos.
L – Eu gostaria que vocês falassem sobre a importância do público no nosso trabalho (caráter
público, pessoas em si, espaço).
V – Para mim, durante o processo, eu me senti de maneiras bem diferentes, variação de
público, climas diferentes. Eu queria dar o melhor de mim porque eu percebi que as pessoas
realmente tinham vindo.
L – E isso fazia com que você buscasse o quê?
V – Não sei, eu especulava sobre o que eles estavam pensando.
L – E isso não lhe distancia do próprio fazer?
V – Não, era mais uma conexão com o que eles estavam pensando sobre a peça, suas
expectativas em relação à peça. Em nenhum momento eu fiz a peça sem vontade.
L – E em relação ao espaço público, o espaço?
318
V – É, eles não sabiam onde ia acontecer a peça no espaço então não conseguiram se
posicionar. É difícil as pessoas ficarem à vontade, eles estavam dependendo da gente.
Pouquíssimos resolveram escolher o lugar que queriam ficar.
L – E para você, Tais?
T – O espaço público influencia na quantidade de pessoas que você espera ou o tipo de
público. Funcionários entraram para assistir, pessoas com deficiência, pessoas que não
assistem peças com frequência. No espaço público a coisa pode ser vista por qualquer tipo
de pessoa. Imagine uma criança de 3 anos ou alguém que não fale nossa língua. Nossos
ensaios, por exemplo, foram vistos por muitas pessoas, até mesmo do campo de futebol do
clube.
L – A nossa criação estava sempre exposta.
T – Inclusive em relação às intempéries. Uma vez me abordaram, dizendo que já tinham me
visto pulando da piscina no ensaio.
L – E como isso afeta vocês?
T – Eu sempre ensaiei em lugares fechados. E a estréia no nosso caso se configura de maneira
diferente do comum, como mais um acontecimento, não como uma grande revelação.
V – Em uma peça de teatro tradicional as pessoas já sabem da história e querem saber como
será a configuração espacial e aqui conosco foi o contrário, todo mundo já conhecia essa
configuração, e não conheciam ainda o enredo.
T – Essa platéia já existia desde o começo.
L – E qual a mudança no corpo de vocês enquanto estão fazendo as ações?
T – É interessante se apropriar do espaço como se fosse nosso, quando a piscina estava
fechada. Por outro lado quando ensaiávamos com o clube aberto eu tinha um pouco de
vergonha, isso muda. Fui nadar na piscina esses dias e me senti muito familiar, meu corpo
sabia onde estava cada coisa. Depois que a piscina abriu voltamos à posição de
desconhecidos.
L – Sim, tivemos que voltar a percorrer os espaços de maneira guiada novamente. E podemos
fazer uma retrospectiva das nossas fases de trabalho? E também queria saber com que fases
vocês se identificaram mais.
V – No dia 17 de março, no primeiro mês, de conhecimento do espaço, eu não sabia como ia
ser direito. Depois veio a fase de criação das respostas cênicas, aí foi a junção das respostas
cênicas, onde fizemos juntos. E depois aconteceu a apresentação.
T – No começo eu achava que conhecia o espaço, as pessoas, mas na verdade eu não
conhecia. Depois comecei a me identificar mais, mas as dúvidas continuaram por muito
319
tempo, eu queria saber para onde iríamos, se teria fala, como seria. Depois as respostas
cênicas, foi uma fase legal, já tinha um pouco do que ia ser. E já colocávamos objetos, roupas.
Nesse momento eu já estava mais situada. E eu me sentia num treino esportivo, porque tinha
uma questão com tempo muito forte, parecia um treinamento de atleta. Parecia uma disputa
do tempo contra a arte. Então começamos a configurar a divulgação, trabalhar intensamente
na produção, e chegou a fase de apresentar, onde você volta a respirar para poder fazer.
L – Para mim essa questão do treino artístico foi interessante, algo que exigiu muito do nosso
corpo e transformou bastante o corpo de vocês. Estar de fora observando esses tempos era
algo bem intenso, também. Eu comecei a perceber como cada um se apropriava daquilo,
como cada um elaborava sua técnica. É importante perceber como preencher as ações, porque
também dá para fazer as coisas burocraticamente. O tempo também se alarga, dependendo
disso. E a peça tem algo de tempo dilatado. Além de uma hora de espera para os ingressos. É
o público se deparando com ele mesmo.
V - Sim, depois de uma certa parte algumas pessoas iam embora.
L – Meu amigo que assistiu teve a impressão que os atores corriam com a peça em vez de
estarem inteiros na etapa em que estavam. O que diferencia as duas coisas?
T – Nós estávamos em uma relação com o público, quando eles estavam em pé, para que eles
não se sentassem.
L – Eu gostaria que vocês falassem, do começo ao fim do processo, como foi se inscrever
naquele espaço específico?
V – Eu me distraía bastante com as pequenas perturbações ao nosso redor, sempre mantive
um olhar periférico. Eu não conseguia me importar muito com a construção do espaço, eu não
consegui desvinculá-lo do espaço público.
L – E como isso se refletiu no seu corpo?
V – Eu ficava um pouco travado. O que me ajudava era ficar com o olho fechado.
L – Ao longo do tempo como isso mudou?
V – Comecei a abrir mais os olhos. Deixou de ser uma questão.
L – E a gente ficou bastante dentro e fora da água.
T – Sim, e até o corpo se adaptar a isso levou um tempo. Conhecer o espaço corporalmente.
Desviar de algo sem precisar olhar. No começo também era muito cansativo e depois isso foi
mudando.
V – A percepção do espaço também mudou. Depois eu conseguia me orientar sem os óculos.
T – Eu acho que eu já tinha um pouco dessa percepção antes.
320
L – Sim, é mais uma questão de foco, não é mecânico. Fazer de um jeito que você continue
conectado. E pensando na ação performática, é como não trapacear o corpo, e sim saber usar
essa energia. Isso colabora para que não pareça que está corrido para o público. E sobre o
silêncio, ação e observação, palavras que trabalhamos muito nesses meses, o que vocês retém
delas? Que relevância elas tomaram dentro do trabalho?
T- Para mim o trabalho do silêncio fez bastante diferença para mim. Durante uma época
conseguimos esse silêncio. Como concentrar energia, como fazer silêncio. E a ação veio por
causa do silêncio. Talvez ação e observação ganham mais significado depois do silêncio. De
como a ação também está no verbo.
V – Eu me apeguei mais à observação, que é o foco. Aí o silêncio é uma consequência disso e
aí acontece a ação. E a observação é constante. E durante a apresentação ela é mais mental,
sobre se o público fica ou vai embora, se está gostando.
L – Você diria que o silêncio não existiu muitas vezes não existiu na apresentação
internamente em vocês? Como se os fatores externos fizessem vocês perderem o foco? Para
mim isso tem relação com experiência, com presença também. E isso está em perceber o que
cabe e o que não ao momento. Talvez essa preocupação com o público tire seu silêncio.
V – Mas internamente eu nunca me senti em silêncio.
L – Às vezes tem uns mecanismos que podem resolver isso. Eu sinto que muitas descobertas
durante o processo são pessoais.
321
PATRÍCIA MANCINI BISPO.
Formanda em Artes Cênicas pela ECA-USP. Participou do processo de observação imersiva
do Experimento 1.
08.09.12
L – Qual sua experiência com a arte?
P – Eu comecei a fazer teatro realmente no CAC. Antes disso eu fazia parte de um grupo de
teatro espírita, que eu considero mais doutrinação do que teatro. No CAC ganhei mais
repertório.
L – Não é doutrinação também?
P – Sim, mas mais aberto. Mas no grupo espírita só víamos peças espíritas, é fechado.
L – A partir da pesquisa ‘Performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto e ações
simples’, que ideia você tem de espaço público?
P – É um espaço por onde qualquer pessoa possa passar e onde você não deve ser perturbado,
a menos que danifique algo. Eu diria que são ruas, praças, parques, monumentos. Museu não.
Ele é considerado um espaço público mas é cheio de regras que não te permitem muito. Uma
performance sem avisar, por exemplo, não vai ser permitida.
L – Eu também penso bastante sobre os limites do público.
P – Uma vez na aula da Helena Bastos, no curso de graduação da USP, nós fomos para o
MAC do campus da Cidade Universitária fazer um exercício que era reagir corporalmente à
obras, e fomos um pouco tolhidos. Não é um espaço permissivo, por mais que estivéssemos
estudando arte dentro de um museu, não é esse o jeito que se espera que se faça isso.
L – Como você definiria ação simples?
P – Sabendo um pouco sobre performance, eu diria que é algo que não é feito para chamar
atenção. Longe de uma Abramovic com as facas, por exemplo. Algo que só pode ser visto
com muita atenção, uma coisa que beira o cotidiano, como comer uma maçã.
L – Por que essa ação da Abramovic não seria simples?
P – Porque isso choca. Mesmo quando eu brinco de fazer algo do tipo, isso vai causar
estranhamento.
L – Comer uma maçã seria simples, e comer uma cebola? Ela tem um trabalho em que come
uma cebola.
P – Não sei se é uma ação tão extraordinária. Talvez porque o contexto fosse outro.
L – Você então estabeleceu essa relação com o cotidiano ou algo que não cause impacto. O
cotidiano não pode ser impactante?
322
P – Sim, pode. Se a ação for deslocada do contexto, por exemplo, um mendigo tomando
banho na rua. Para ele aquilo é cotidiano, e isso choca as pessoas.
L – O que você entende por mínimo gesto?
P – Coisas menos expansivas e mais cotidianas, mais normais.
L – Você conseguiria diferenciar ação simples e mínimo gesto?
P – Acho que há uma diferença muito pequena. A ação simples deve ser uma ação cotidiana
e o mínimo gesto, creio, tem mais relação com energia, amplitude.
L – E performance?
P – A primeira vez que tive contato com performance foi em uma matéria de Direção I no
Departamento de Artes Cênicas da USP. Eu atuei e era uma cena do ‘Jardim das Cerejeiras’,
do Tchekov. Quando tivemos o feedback, disseram que criamos muitas imagens e tinha algo
de performático. Depois apresentamos a mesma cena em uma galeria como performance. Isso
é muito interessante. Até então eu não sabia o que era performance.
L – E como foi recebido na galeria?
P – O público da galeria (Galeria do Meio) era do meio de artes visuais. As obras expostas lá
dialogavam entre si e eles se conheciam e coincidentemente nosso trabalho, que era de fora,
dialogava muito com os trabalhos de lá. A impressão que eu tenho é que já é muito tradicional
performar em galeria.
L – E como foi essa adaptação?
P – Nós tínhamos signos muito fortes. O meu era um tecido vermelho, que eu usava de vários
modos. Outro era a árvore, outro era o leite. Nós só adaptamos o tamanho para o espaço
fechado. Enfim, quando um professor do departamento mostrou vários vídeos sobre
performance eu me atualizei.
L – E você chegou a alguma conclusão sobre o termo?
P – Eu creio que seja bem pessoal. Eu vi uma performance que pegava a lista de telefone e
ligava para vários amigos que já haviam morrido por AIDS. É uma ação muito simples que
tinha muito sentido. O telefone chamando sem parar é uma coisa forte. Nesse sentido a vida
dela também estava misturada com o trabalho. De qualquer modo você usa seu corpo, sua
imagem, para expôr.
L – E o que seria entre-lugar para você?
P – Não sei.
L – O que é lugar?
P – Aqui é um lugar. Entre-lugar talvez seja um outro lugar. Por exemplo, uma peça com
palco italiano, mas no momento da peça é outro lugar. Acho que um lugar que não é físico.
323
L – Por que não é físico?
P – Ele depende de uma construção que não é física, uma ficção.
L – E como se consegue isso?
P – Através das ações, dos atores, da iluminação, da música, dos figurinos...
L – Esse lugar não existe?
P – Acho que é mais efêmero. Existe por um momento.
L – E o que mais?
P – Acho que é só.
L – E você acha que a arte seria ou visaria uma troca de experiência? E o valor de troca dela é
social ou econômico?
P – Tem trabalhos que têm valor de troca muito mais econômico.
L – Qual a diferença entre valor de uso e valor de troca?
P – O valor de troca está mais ligado ao valor econômico e o valor de uso a outras questões,
como o que se espera da arte, no sentido de que se possa apreender algo de um trabalho. Acho
que a arte deveria estar dentro do valor de uso. Quando fazemos arte não é só pra nós mesmos
e não necessariamente para vender.
L – E você acha que a arte busca essa troca de alguma coisa?
P – Depende de quem faz, mas no geral, sim.
L – E pensando mais no campo da performance e a troca no lugar público, como você vê o
espaço público da arte no espaço público?
P – Nós temos museus e teatros públicos, e de vez em quando tem pessoas fazendo
performances na rua, que é um espaço público, porém não sei exatamente quanto espaço a
arte tem para isso. Mesmo na Av. Paulista a pessoa fica vulnerável a ser retirada de lá. Tem
espaços públicos que são somente de passagem.
L – Às vezes vemos pessoas permanecendo nos lugares de passagem. Eu queria lhe perguntar
novamente sobre o entre-lugar, porque, se não é físico, ele pode ser destruído de outras
formas, por exemplo isso que você disse sobre o incômodo das pessoas.
P – Sim, eu estava em uma peça com o ‘Coletivo de Galochas’ na ocupação da Prestes Maia,
eles falam sobre isso com uma poética pirata. Estamos sob proteção do VAI, que é uma lei de
incentivo pública, e esse lugar está abandonado. Lá perto tem a cracolândia, tem muita gente
usando drogas. Alguns moradores se incomodam. Já fomos expulsos por causa de horário,
mas temos e não temos muita liberdade, por ser um espaço esquecido – dos males nós somos
o menor para a polícia naquele lugar.
L – E como você acha que a arte cabe nesses espaços?
324
P – Não sei até que ponto a arte dialoga com esses lugares. Você não sairia da sua casa para
passear no meio da cracolândia à noite, então esse entre-lugar acontece lá. Quando acaba, vira
cracolândia de novo. Nós criamos essa história dos piratas, mas não é nem a cracolândia nem
a ilha dos piratas.
L – E qual a importância do público no seu trabalho?
P –Há quem diga que não, mas eu não vejo sentido fazer algo sem pensar no público, é um
limiar entre terapia e arte. Se você faz é para alguém ver.
325
Enquetes realizadas com público do Experimento III: Instituição Pública-CEPEUSP
Grupo (PRE)FORMA-SE MoAciR: Filhos da Dor Outubro 2012
Enquete sobre o espetáculo MoAciR: Filhos da Dor
Nome: Rogério Dias de Andrade
-Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?
Através de amiga, parente de integrante do grupo.
-O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?
A proposta apresenta um potencial vasto e profícuo.
-O que você achou do espetáculo?
A despeito das considerações elencadas na mensagem em cuja enquete foi anexada, o
espetáculo:
Demandou excessivo tempo, cansando os espectadores;
Embora saudável e pertinente, a proposta individualizante feita para cada espectador de
sonhar à vontade, somada ao longo tempo da peça, e o espaço muito amplo (sem coxias e
rotundas naturais), proporcionou inúmeros estímulos para dispersão, fazendo com que o
espectador tivesse que se concentrar mais do que o necessário para participar do espetáculo,
ou mesmo fazer valer essa mesma proposta.
-O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?
Entendo como dança qualquer movimento combinado com algum ritmo. Nesse sentido,
acredito que o espetáculo apresentou vários momentos com dança, dentro e fora d’água.
-A condição climática foi um fator limitador da experiência?
Sim e não: sim, porque a baixa temperatura (poderia ser chuva forte, ou calor excessivo)
atrapalhou todos os presentes; não, porque em tese, espetáculo desse tipo pressupõe fatores
climáticos como parte integrante.
326
-De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?
Vi de vários ângulos, exceto no subsolo e de uma das laterais da piscina olímpica; tive uma
leve preferência pela área onde se situava o chuveiro, cuja iluminação valorizava as
performances.
-Que imagens ficaram gravadas em sua memória discorra sobre sua experiência ?
Nenhuma em especial, infelizmente; a dispersão citada acima diluiu o impacto dramático do
espetáculo.
-Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?
Não. Fiquei até o final.
-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo?
Acredito que dar sugestões sem ter compreendido a essência do espetáculo seria um tanto
leviano; contudo, me parece que, com duração menor, e com mais integrantes (para diminuir
o intervalo entre uma performance e outra), proporcionando maior dinamismo, o espetáculo
ficaria mais denso. Mas reconheço que essa observação pode não fazer qualquer sentido se a
proposta era justamente se desenrolar dessa forma.
327
Nome: Karin Anselment
-Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?
Convite verbal de colega da USP
-O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?
Inovadora
-O que você achou do espetáculo?
Curioso; inédito
-O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?
Não chamou minha atenção; não lembro
-A condição climática foi um fator limitador da experiência?
O frio foi desagradável, mas não limitador
-De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?
Quando consegui abstrair, “viajei”
-Que imagens ficaram gravadas em sua memória discorra sobre sua experiência ?
As cenas junto a árvore
-Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?
Não
-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo?
Como o espaço é grande as cenas são demoradas e correm o risco de ser monótonas tirando o efeito de magia.
328
Nome: Helaine Diogo
-Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?
Em Fortaleza, por familiares.
-O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?
Achei interessante o fato de os atores estarem na maioria do tempo dentro da piscina, se
deslocando por cenários diversos. Nunca havia participado de algo sequer parecido.
-O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o
espetáculo fala sobre o que ?
Eu gostei, porém achei muito abstrato. Saí sem saber do que tratava a peça. Em muitos
momentos parecia tratar de chegadas e partidas... sofrimento, relações familiares, por falar de
“mãe”, “pai”. Mas também podia se tratar da mãe terra, por que falou sobre o sofrimento dos
índios arrancados de suas terras... Outra hora, parecia que podia estar tratando do desperdício
de água... Não entendi o mel, as colmeias. Só no final, ouvi comentários que se tratava de
uma peça envolvendo a história de Iracema dos lábios de mel. Fique confusa!
-O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?
Dança, pra mim, é, sobretudo, expressão corporal.
No espetáculo, de fato, as expressões corporais representaram a principal forma de
comunicação dos atores com o público, contudo, não assisti ao espetáculo interpretando-o
como uma “dança”. Não sei se isso se deu pelo fato de o som se dispersar com facilidade no
ambiente ou pelo som não estar na qualidade/volume adequado ao espaço ou se foram as
músicas selecionadas, não sei...
-A condição climática foi um fator limitador da experiência?
Estava bastante frio, mas isso não influenciou nas minhas impressões.
-De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?
Assisti sentada na borda das piscinas, me movimentando para mais próximo dos atores para
conseguir compreender certas cenas.
329
-Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.
As primeiras... os corredores estreitos e as pessoas caminhando no escuro sem saber o
destino, com aquelas janelas que davam para os fundos das piscinas com objetos curiosos
dentro. Achei linda a cena de entrada, os vestiários iluminados apenas por velas, com umas
colmeias super criativas, e uma mulher nua, cena linda! Tive a sensação de que a peça trataria
sobre um suspense...um crime, algo assim.
-Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?
Não. Fiquei por estar curiosa por um final que tornasse mais claras as minhas impressões.
-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.
Poderia ser feito um roteiro que torne mais claro o contexto em se passa a história da peça e o
tempo da peça poderia ser reduzido para tornar mais confortável ao público.
Achei impressionante o condicionamento físico dos atores.
Parabéns pela ousadia e pela criatividade!
330
Nome: Saulo Peixoto
-Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?
Fortaleza, através de familiares.
-O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?
Nunca participei de algo parecido, achei uma proposta interessante, que dando continuidade
ao trabalho, sendo persistente, pode sim mais chegar longe.
-O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o
espetáculo fala sobre o que ?
Eu achei o espetáculo bom, a idéia é ótima, mas precisa lapidar algumas coisas. Houve certos
momentos que chamaram a atenção, no momento em que ela joga a mala, dá uma sensação de
liberdade, ter o direito de errar; momento da árvore iluminada, traz paz; no momento em que
começam a cantar até entrar na mala, isso para mim quis dizer assim “vem provar do que eu
bebo”, ou “vem que quero te mostrar o meu caminho” ou “prova de tudo que eu te der”, “bebe
dessa água meu filho”, mais ou menos isso, a passagem debaixo da piscina, devia ter mais
suspense, acho que ficaria mais interessante. Entre outras cenas.
-O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?
Pois é, a dança eu não entendi muito bem, para mim acho que é uma forma de se comunicar
com a plateia, ou com o próprio tema da peça, por que até então aquelas danças tem que fazer
algum sentido.
-A condição climática foi um fator limitador da experiência?
Não, acho que pode atrapalhar mais os atores.
-Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.
O momento da corrida contra o tempo, um fator que pode ser trabalhado pra ficar bem na
mente do espectador; os garrafões de água insinuando o gasto excessivo de água no mundo; e
do canto até a mala.
-Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?
Não, fiquei até o fim para ver o final, apesar de ter sido muito extensa.
331
-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.
Olha, eu gostei muito do que eu vi, ouvi e senti, não estou aqui para criticar ninguém,
houveram alguns pontos em que deixaram a desejar sim, mas isso não quer dizer que foi ruim,
pelo contrário é um momento de observar e tentar buscar sempre o melhor. Uma delas foi o
tempo de duração, muito longa, tem que ser uma coisa que não demore muito, que deixe
gravado na mente das pessoas, quando se torna bastante demorado as pessoas “abusam” logo,
porque cansa; duas cenas ao mesmo tempo, às vezes confunde; mais narração durante a peça
acho que fica mais interessante; será que os performers poderiam fazer cenas de diálogos,
falando partes do texto? No momento em que passa o espelho, nessa hora podia ter umas
perguntas, tipo, “você deve estar se perguntando... por que tanta dor?” com voz de espanto,
tipo assim. Não sei se faz parte da metodologia da peça, somente uma ideia. Gostei da cena
dos garrafões de água, da corrida contra o tempo, no momento em que há uma música no
fundo tipo de ação. Entre outras.
Parabéns, sucesso e nunca desistir dos nosso sonhos!
332
Nome: Vinicius Antunes de Oliveira
-Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?
Cartaz no CEPEUSP
-O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?
Achei interessante. Nunca participei de algo parecido.
-O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o
espetáculo fala sobre o que ?
Muito longo e repetitivo. Cenário e iluminação mexem com as sensações.
-O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?
Movimento corporal como forma de expressão.
-A condição climática foi um fator limitador da experiência?
Com certeza.
-De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?
Três. Entre as piscinas, da plataforma de saltos e no subsolo, sendo o último o mais
interessante.
-Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.
Do subsolo, com a iluminação externa da piscina, pude notar que as gotas de chuva ao caírem
na superfície da piscina, propiciou uma imagem única.
-Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?
Não.
-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.
Um espetáculo mais curto. Mais elementos para localizar o espectador na peça.
333
Nome: Luciana Valério
-Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?
Meu marido esteve no clube e ficou sabendo pelos cartazes, aí eu fui com as crianças.
-O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?
Achei legal, nunca havia participado de nada parecido, queria ter ficado até o final, mas meus
filhos preferiram ir para casa.
-O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o
espetáculo fala sobre o que ?
Achei que falava sobre as agressões ao meio ambiente, gostei de estar lá, estava achando
interessante.
-O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?
Faço ballet clássico desde criança, então entendo as diversas formas de dança, e entendi a
proposta do espetáculo.
-A condição climática foi um fator limitador da experiência?
Não, poderia ter sido, mas não estava chovendo e fazia uma noite de calor muito agradável.
-De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?
Andei bastante, toda a volta da piscina. Adorei ir para a parte de baixo da piscina, foi muito
legal.
-Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.
Várias... os “mergulhadores”, os saltos, os “brindes” dados pelos atores durante o espetáculo,
os fogos, e as sensação de fazer parte do cenário.
-Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?
Meus filhos ainda são pequenos, estavam com sono, e corriam atrás dos atores o tempo todo,
eu achei que estavam atrapalhando, na verdade eles estavam se divertindo mais que qualquer
um, mas não achei conveniente e após terem que ficar quietos, eles passaram a achar chato.
334
-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.
Poderia ser um pouco mais ágil. Tive que deixar as garrafinhas lá, poderia ter sacolinhas para
ficar mais fácil de carregar. Gostei das músicas eletrônicas, elas conferiam ritmo e sensações,
portanto quando a música acabava e ficava silencioso, era ruim. Mas foi ótimo, espero ir ao
próximo, dessa vez só com o meu marido.
335
Caro Lucas,
Como vai? Puxa... Eu queria muito falar com vocês.
Bom, vamos lá. Eu sou apaixonada por teatro. MUITO apaixonada. Gosto de teatro
quando é bom e quando é ruim. Gosto de teatro.
E a minha angústia, minha vontade de falar com vocês, foi porque...puxa, eu acho que
vocês tinham tudo na mão para ir bem além, bem além do que foram. Em resumo, pois é, eu
não gostei da apresentação. Quando vi, no Jornal da USP, a nota sobre o espetáculo, fiquei
empolgada. Sou seguidora e muitíssimo fã do Teatro da Vertigem e gosto demais quando o
espaço foge do convencional e me propõe exploração múltipla das sensações. Então, cheguei
ao CEPÊ animada. Adorei a recepção, a entrega do convite na garrafa e o clima. Adorei a
entrada pelo vestiário, a chegada ao complexo de piscinas, já estava pensando em quantos e
quais amigos traria no domingo seguinte, mas, então, a coisa foi escorrendo pelo ralo.
Para resumir, o espetáculo me desagradou pela falta de amarração. Calma, eu não sou
cartesiana. Não queria nada com começo, meio e fim. Não, não é isso. Mas como sou
jornalista, trabalho com textos. E vejo muito texto que é um amontoado de frases de efeito. Às
vezes, uma frase de efeito pode, de fato, fazer efeito. Mas um texto que tem mil frases de
efeito desconexas (acontece muito em poesia...) denuncia uma falta de cuidado ou até de
profundidade. E Moacir foi assim. Tinha muitas ideias interessantes, mas todas pouco
exploradas e desamarradas. Vou citar um exemplo: andar sob a piscina grande, logo no
começo da peça, foi bem interessante. Mas, já aí, eu detectei o primeiro problema: levar o
público por todo o caminho e fazê-lo voltar pelo mesmo caminho sem nenhuma novidade ou
surpresa na volta. Ali, é o subsolo, o underground, o ponto enterrado, o mundo dos
mortos...sei lá, tinha tudo para ser super bem trabalhado, com mais música, com mais clima e,
sobretudo, já denunciando um propósito, uma atitude. Eu presenciei inúmeras pessoas
verbalizando o que eu estava pensando: "Tá, mas é para voltar pelo mesmo lugar?". Gosto da
ideia de que as pessoas explorem o espaço, mas era preciso, sim, conduzir um pouco o
público. Eu, por exemplo, ficava correndo atrás dos atores para tentar ver expressões,
movimentos, acompanhar de perto o que acontecia. No meio do espetáculo, me cansei do
corre-corre e abandonei a atenção. Daí, fiquei olhando de longe e, não via mais nada. Vi que
as pessoas ficavam conversando sobre outros assuntos totalmente alienados do espetáculo. A
falta de condução impossibilitou o engajamento do público. A Iluminação também era
ineficiente nesse sentido. A trilha sonora e a narração do texto também não me trouxeram a
emoção prometida... E eu fiz uma coisa que nunca, nunca faço: fui embora antes do final. Eu
fiquei cansada e um pouco desconsolada de ver uma chance de fazer algo incrível
336
desperdiçada.
Não acho que todos os espetáculos devam ser como os do Teatro da Vertigem. Mas
acredito que vocês poderiam pensar em:
1) conduzir um pouquinho mais o público tentando sinalizar com luz ou com alguma
outra proposta os caminhos que deveriam ser percorridos. Assistiram Bom Retiro 958? É
impressionante como eles conseguiram fazer uma condução perfeita.
2) regravar a narração da carta, colocando, dessa vez, um pouco mais de emoção
sincera na voz e refazer a trilha sonora também com mais impacto
3) fazer um espetáculo mais enxuto e que potencialize os pontos fortes. O mergulho lá
do último patamar é forte, merece ser inserido no contexto com mais pujança, tem que ter
mais sentido neste mergulho. Tem que ser algo que esperemos e que duvidemos que possa
acontecer. Na terceira vez que ela mergulhou, já ninguém estava prestando atenção...
Enfim, eu só escrevo porque queria tanto, tanto ter levado muitos amigos para rever o
espetáculo no dia seguinte e, no entanto, não pude (pois não recomendaria o espetáculo do
jeito que ele está agora). Peço desculpas pelas críticas, não são malvadas e ficam só entre
nós.
Um grande abraço e, ainda que não tenha sido o espetáculo que eu esperava, parabéns
pela iniciativa.
Márcia Carini
337
Nome: Mauricio Azinari Casaroti
-Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?
Jornal da USP
-O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?
Muito interessante, exótica e inusitada.
-O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o
espetáculo fala sobre o que ?
Gostei muito. Várias sensações de prazer, de estar naquele lugar, naquele horário, vendo a
performance .
-O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?
Movimento cíclico e rítmico.
-A condição climática foi um fator limitador da experiência?
Não.
-De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?
Vi o espetáculo em movimento, seguindo os atores. Uma pena que não estava com trajes de
banho. Senão teria pulado na piscina também.
Gostei mais quando estava atrás dos refletores de luz. Mas, acho que se tivesse entrado na
piscina, esse seria o ponto que mais teria apreciado.
-Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.
Como já disse, várias imagens muito prazerosas e interessantes
-Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?
Não. Mas teria que ter ido, pois tinha outro compromisso às 22:00h e não achei que o
espetáculo iria demorar tanto. Poderia ter meia hora a menos.
-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.
Reduzir o tempo em meia hora e orientar o público que venha com traje de piscina, para quem
quiser poder olhar o espetáculo de dentro dela também.
338
Nome: Marielle Martins
Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?
Através de cartaz fixado em um mural dos corredores do CRUSP.
O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?
Não tinha participado, não. Lembrou teatro de rua, em que você tem um espaço livre para se
movimentar.
O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o
espetáculo fala sobre o que ?
O espetáculo foi longo, mas curioso. Algumas coisas ficaram repetitivas. No final eu me
emocionei com o Vanderson girando o “espectro de guarda-chuva” e aquelas luzinhas
piscando...ali achei bem representativo: o que o personagem fez a vida toda e a sua morte não
foi algo corriqueiro...foi a morte de um sonhador...sei lá...a morte chega, mas os sonhos
ficam. Acho que foi por isso que me emocionei. Sou bem sonhadora.
O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?
A dança é expressão dos sentimentos e sensações através do corpo. Não entendi a música
final (era da Kate Nash?) Achei linda, mas não entendi. Ah, a Thais é ótima e se expressa
muito bem. Acho que foi só aí no final que percebi a dança. E talvez em alguns momentos na
piscina, em que o Vanderson rodopiava...
A condição climática foi um fator limitador da experiência?
Houve ameaça de chuva e boa parte do pessoal foi embora. Choveu um pouco e impediu que
nos movimentasse para melhor visualizar os atores.
De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais
interessante(s) ?
De pelo menos quatro. Acho que a melhor visualização é próximo à piscina funda do
trampolim...
339
Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.
Hmm...a cena em que eles saem da piscina (eles usam uma roupa de plástico com as bolinhas
brancas de oxigênio) e parecem morrer aos poucos à beira da piscina, buscando os últimos
folêgos....foi marcante! E a parte que eles cantam é muito bonito...mani, mani, yaracê....algo
assim. Ah, também gostei do clima de mistério na entrada, onde recebi a garrafinha! Bem
legal!
Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?
Não!!! Fiquei até o final!
Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.
Diminuir as cenas repetitivas... Acrescentar mais sons ao espetáculo...sons emotivos, fortes...
AHHHH!!! IMPORTANTE: FALTOU UMA VELA EM UM DEGRAU DO CORREDOR
LÁ EMBAIXO... PERIGOSO!
Parabéns a todos pela dedicação e trabalho!!! E boa sorte em Fortaleza!
A partir do feedback colhido através das enquetes sobre o espetáculo MoAciR: Filhos
da Dor podemos perceber uma variedade infinda de percepções e nos surpreender com a
possibilidade de leituras para um mesmo signo ou ação propostos, inclusive expandir nossa
propriocepção acerca de nossos gestos e seu impacto na troca com o outro.
É nítida e predominante a devolutiva acerca da extensa duração do espetáculo, dos
problemas técnicos por falta de aparatos adequados e da fragmentação da narrativa. Vemos
bastante pertinência nas observações, o que nos faz pensar que o “problema” não estaria na
duração do espetáculo, mas na força da realização de determinados mínimos gestos e ações
simples (ainda mal explorados ou que carecem de mais precisão no desenho que o corpo
circunscreve), e no encadeamento de ações no tempo e no espaço, pois muitas delas, pela
rapidez da transição entre uma ação e outra ou pela distância, não permitiam serem
experienciadas pelo público. A fragmentação da narrativa sem dúvida é um recurso proposital
contando inclusive com a simultaneidade de ações ora corais, ora justapostas, provocando o
poder de escolha do público participante, e com um excesso de estímulos sonoros e visuais
díspares que se diluem na paisagem, também com o intuito de provocar sensorialmente o
poder de escolha de cada um sobre o que focar/lembrar.
Este experimento teve bastante relevância investigativa para podermos clarear e
adaptar nossas escolhas estéticas ao explorar o mínimo gesto e a ação simples em espaços
340
públicos sob condições de dilatação extra-cotidiana do tempo, de olhares acostumados a
fluxos acelerados, espetacularizados e de constante substituição de “imagens e sensações
fortes”, por conseguinte de dispersão das ações e atenções na paisagem, reafirmar escolhas
radicais que não necessariamente agradam ou atingem a maioria, e rever certos quesitos
estruturais técnicos e de edição que carecem de mais experiência e refinamento do olhar por
parte da direção, que só a frequente relação teórico-prática com materiais de investigação
pode trazer.
341
Registros Fotográficos dos três experimentos principais da pesquisa
(seguem registros em vídeo do experimento I e II e entrevista sobre o experimento III):
Experimento I: Via
Ir e vir pelo direito inalienável de parar
Silêncio ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina
Perfomer: Lucas Paz
Duração: um dia (2h)
Lugar: Túnel Papa João Paulo II
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Experimento II: Patrimônio Público
Tapete Vermelho-Patrimônio de Poucos
Performers: João Alfredo Godry (1o dia), Lucas Paz (2o dia)
Duração: dois dias (1o: 1h/ 2o: 3:30h)
Lugar: Theatro Mvnicipal
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“Onde um pisa outros usam como cobertor”
“E nesse prédio onde o ingresso custa 100 reais”
“Uma coisa jogada no chão significa o que? O desprezo do teatro”
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372
Experimento III: Instituição Pública
MoAciR: Filhos da Dor
Performers: Lucas Paz, Maira Mesquita, Thais Lucena, Vanderson de Sousa
Direção: Lucas Paz
Iluminadores: Julia Freitas, Maria Druck, Martin Muller, Rodrigo Inamos, Thamara Uehara
Sonoplasta: Lucas Paz
Salva-Vidas: Ismael Barbosa, Victor Miggliati
Orientação: Antônio Araújo, Helena Bastos
Direção do CEPEUSP: José Farah
Duração: oito meses
Lugar: CEPEUSP
O.
373
374
375
376
377
378
Prólogo
379
380
381
382
383
Amor
384
385
386
387
388
389
Doença
390
391
Guerra
392
393
394
Água
395
396
397
398
399
400
401
Abandono
402
403
404
405
406
407
408
409
410
411
Água-viva-índio-urbano
412
413
414
415
416
417
418
419
420
Moral
421
422
423
424
425
Conceituação de Ação e Gesto por Pavis em Dicionário de Teatro
(Selecionamos os trechos mais relevantes para nosso processo de definição de termos):
PAVIS, 2007, p.2-7
AÇÃO:
1. Níveis de formalização da Ação
a. Visível e invisível
Sequência de acontecimentos cênicos essencialmente produzidos em função do
comportamento (das personagens)
Conjunto de processos de transformações visíveis (em cena)
b. Definição tradicional
“Sequência de atos e fatos que constituem o assunto de uma obra”
c. Definição semiológica
Determinação do sujeito e do objeto da ação.
A ação se produz desde que um dos actantes tome a iniciativa de uma mudança de posição
dentro da configuração actancial, alterando assim o equilíbrio das forcas do drama. A ação é
portanto o elemento transformador e dinâmico que permite passar lógica e temporalmente de
uma para outra situação. Ela é a sequência lógico-temporal das diferentes situações.
2. Modelo actancial, ação e intriga
A ação pode ser resumida num código geral e abstrato.
Um pequeno número de sequências narrativas fundamentais.
Ação esquemática espécie de essência ou fórmula concentrada da ação (se aplicaria bem à
noção de ação e programa de ação para nossas performances
Ação que assume uma duração ou ação encarnada no nível da existência: a ação
esboça acontecimentos e situações, a partir do momento que ela começa a se alongar, põe em
movimento um jogo de imagens que já conta uma história e que por aí se coloca no nível da
existência. (se aplicaria devidamente para noção de ação para o Experimento III MoAciR:
Filhos da Dor).
426
3.Ação das Personagens
Ação-caracteres (a ação para nós estaria envolvida numa tríade: ação-caráter-função)
a. Concepção existencial
A ação vem primeiro. As personagens não agem para imitar os caracteres, mas recebem
seus caracteres por acréscimo e em razão de suas ações.
A ação é considerada como o motor da fábula, definindo-se as personagens somente por
tabela. A analise da narrativa ou do drama esforça-se para distinguir esferas de ações,
sequencias mínimas de atos, actantes que se definem por seu lugar no modelo actancial.
Caracteres [...] só julgar estes com base em suas ações concretas.
Sartre: “uma peça é lançar pessoas numa empreitada; não há necessidade de delimitar
muito exatamente que posição, que situação ode assumir cada personagem, em função das
causas e contradições anteriores que a produziram com relação a ação principal.
b. Concepção essencialista
O homem por sua essência e não por suas ações. tudo se passa como se sua ação fosse a
consequência e a exteriorização de sua vontade e de seu caráter.
4. Dinâmica da Ação
A ação está ligada, pelo menos para o teatro dramático, ao surgimento e à resolução
das contradições e conflitos entre as personagens e entre uma personagem e uma situação. É o
desequilíbrio de um conflito que força as personagens a agirem para resolver a contradição;
porém sua ação (sua reação) trará outros conflitos e contradições. Esta dinâmica incessante
cria o movimento da peça.
5. Ação e Discurso
O teatro se torna um local de simulação onde o espectador é encarregado, por uma
convenção tácita com o autor e ator, de imaginar os atos performáticos num palco que não o
da realidade.
p. 139- Ação e mobilidade do signo teatral
A ação é a vetorização da encenação, a maneira de combinar os motivos e os materiais do
espetáculo.
427
6. Elementos Constitutivos da Ação
“O agente, sua intenção, o ato ou o tipo de ato, a modalidade da ação (a maneira e os
meios), a disposição temporal, espacial e circunstancial) e a finalidade”. Estes elementos
definem qualquer tipo de ação consciente e não acidental. Identificando estes elementos
precisar-se-á a natureza e a função da ação no teatro
7. Formas de Ação
b. Ação representada/ação contada
a ação é dada diretamente a ver ou é transmitida num texto.
8. A Ação Teatral numa Teoria da Linguagem e da Ação Humana
b. vínculo da ação da fábula e da ação falada das personagens
Substituir toda ação visível por uma história de sua enunciação ou de sua dificuldade
em se comunicar.
AÇÕES
Ao contrário das ações teatrais, simbólicas e representadas do comportamento humano, as
ações de artistas de performance ou de body art, como as de Otto MÜHL ou de Hermann
NITSCH, do grupo Fura dels Baus ou do circo Archaos são ações literais, reais, muitas vezes
violentas, rituais e catárticas: elas dizem respeito à pessoa do ator e recusam a simulação da
mimese teatral.
As ações ao recusarem a teatralidade e o signo, estão em busca de um modelo ritual da
ação eficaz, da intensidade, visando extrair do corpo do performer, e depois, do espectador,
um campo de energias e de intensidade, uma vibração e um abalo físicos próximos daqueles
que exigia Artaud ao reivindicar uma “cultura em ação que se torna em nós como que um
novo órgão, uma espécie de segunda respiração”.
ACONTECIMENTO
A representação teatral considerada não no aspecto ficcional de sua fábula, mas em sua
realidade de prática artística que dá origem a uma troca entre ator e espectador.
[...]constituir uma presença humana entregue ao olhar do público. Relação viva entre ator
e espectador é que constitui a base da troca.
428
O teatro é um ato realizado aqui e agora no organismo dos atores, diante de outros
homens.
[...]estabelecimento desta relação com o acontecimento: [...]distante da significação de
uma mensagem puramente linguística do que o está da significação de um acontecimento.
[...]o espetáculo depende também a todo instante da intervenção externa de um
acontecimento: rompimento do jogo, parada da representação, efeito imprevisto, ceticismo do
espectador, etc.
[...] a conscientização da realidade de um acontecimento vivido pelo público. A ideia de
ficção fazendo esquecer a comunicação do acontecimento torna-se então estranha para eles
(certos encenadores): “a ilusão que procuraremos criar não terá por objeto a maior ou menor
verossimilhança da ação mas a forca comunicativa e a realidade desta ação. Uma experiência
que não reproduz nada de anterior.
Algumas formas atuais de teatro (o happening, a festa popular, o teatro invisível de
BOAL, 1977) a performance buscam a versão mais pura da realidade ligada ao
acontecimento: o espetáculo inventa a si mesmo negando todo projeto e toda simbólica.
PAVIS, 2007, p. 184-187
GESTO
Movimento corporal, na maior parte dos casos voluntário e controlado pelo ator,
produzido com vista a uma significação mais ou menos dependente do texto dito, ou
completamente autônomo.
1. Estatuto do Gesto Teatral
a. O gesto como expressão
Cada época tem uma concepção original estilo da representação.
Concepção clássica: meio de expressão(...) exteriorização de um conteúdo psíquico
interior e anterior (emoção, reação, significação) que o corpo tem por missão comunicar ao
outro.
[...]movimento exterior do corpo e do rosto
[...]expressões do sentimento
[...]expressão
[...]parte principal da arte
[...]corpo expressar seus estados anímicos
429
[...]equivalentes entre sentimentos e sua visualização gestual.
Elemento intermediário entre interioridade(consciência) e exterioridade (ser físico).
Visão clássica do gesto na vida como no teatro signos exteriores e visíveis de nosso corpo,
pelos quais se conhece as manifestações interiores de nossa alma. Mudanças visíveis por
si mesmas; meios que indicam as operações interiores da alma
b. O gesto como produção
[...]gestualidade do ator (ao menos numa forma experimental de interpretação e de
improvisação) como produtora de signo
(Ver diferença entre ação e gesto em entrevista de Renato Ferracini) Grotowski recusa-se
a separar pensamento e atividade corporal, intenção e realização, ideia e ilustração.
Produção-decifração de ideogramas:
“novos ideogramas devem ser constantemente pesquisados e sua composição parecerá
imediata e espontânea. O ponto de partida dessas formas gestuais é a estimulação e a
descoberta em si mesmo de reações humanas primitivas. O resultado final disso é uma forma
viva que possui sua própria lógica”(Grotowski)
[...]fonte e finalidade do trabalho do ator. Impossível descrevê-lo em termos de sentimento ou
mesmo de posições-poses (Meierhold) significativas.
Hieróglifo= Signo icônico, tanto objeto simbolizado como o símbolo.
“O teatro deveria utilizar somente os movimentos que são imediatamente decifráveis,
todo o resto é supérfluo”(Meierhold)
c. O gesto como imagem interna do corpo ou como sistema exterior
Dificuldades[...]determinar fonte produtiva e sua descrição adequada. A descrição obriga
a formalizar algumas posições-chave do gesto; logo a decompô-lo em momentos estáticos e a
reduzi-lo a algumas oposições (tensão/relaxamento, rapidez/lentidão, ritmo
entrecortado/fluidez, etc.)
2. Rumo a uma Tipologia e a um Código Gestual
a. Tipologia
Nenhuma tipologia é satisfatória
-gestos inatos, ligados a uma atitude corporal ou a um movimento.
-gestos estéticos, trabalhados para produzir uma obra de arte (dança, pantomima,
teatro).
430
-gestos convencionais que expressam uma mensagem compreendida pelo emissor e pelo
receptor.
gesto imitativo [...]realista [...]estilização e caracterização são inevitáveis e condicionam
esse efeito da realidade gestual.
[...]gesto pode ao contrário recusar a imitação, a repetição e a racionalização discursiva.
Hieróglifo a ser decifrado “o ator, diz Grotowski, não deve mais usar seu organismo para
ilustrar um movimento da alma; ele deve realizar esse movimento com seu organismo” [...]
ideogramas corporais, segundo Artaud “uma nova linguagem física à base de signos e não
mais de palavras”
[...]tudo assume valor de signo e os gestos, qualquer que sejam a categoria a que
pertençam entram na categoria estética
b. Código gestual
-tensão do gesto/relaxamento
*concentração física e temporal de vários gestos (ideogramas Meierhold)
-percepção da finalidade e da orientação da sequência gestual
*processo estético de estilização, ampliação, depuração, distanciamento do gesto.
-estabelecimento da ligação entre o gesto e a palavra (acompanhamento, complementaridade,
substituição)
3. Problemas de uma Formalização dos Gestos
[...]difícil um decupagem em unidades gestuais. A ausência de movimento não é critério
suficiente para delimitar o início ou o fim do gesto.
Toda descrição verbal do gesto do ator perde muito das qualidades específicas dos
movimentos e das atitudes; [...]decupa o corpo de conformidade com unidades semânticas
linguísticas quando se deveria exatamente estudar o corpo segundo suas próprias unidades
ou leis- se é que existem
GESTUAL
Maneira de se mexer especifica de um ator, de uma personagem ou de um estilo de
representar, uma formalização e uma caracterização
GESTUALIDADE
Designar as propriedades específicas do gesto.
431
Um sistema de maneiras de ser corporais, o gesto se refere a uma ação corporal singular.
GESTUS
Maneira característica de usar o corpo, tomando já a conotação social de atitude para com
o outro.
2. Gestus Brechtiano
O gestus se compõe de um simples movimento de uma pessoa diante de outra, de uma
forma social ou corporativamente particular de se comportar.
O gestus fundamental da peça é o tipo de relação fundamental que rege os
comportamentos sociais (servilismo, igualdade, violência, astúcia). O gestus se situa entre a
ação e o caráter: enquanto ação ele mostra a personagem engajada numa práxis social;
enquanto caráter, representa o conjunto de traços próprios a um individuo. É sensível ao
mesmo tempo, comportamento corporal do ator em seu discurso: um texto, uma música,
podem ser gestuais se apresentam um ritmo apropriado ao sentido do que ele está falando.
[...]gestualidade teatral como hieróglifo do corpo humano e do corpo social.
432
Artigos referenciais
Artigos que embasaram nossa compreensão teórica sobre patrimônio público, privatização,
consumo e espetacularização
Arquitetura, Patrimônio e Museologia
Cêça Guimaraens
Arquiteta, Doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR),
Professora Associada UFRJ – FAU / PROARQ, Pesquisadora do CNPq
Resumo
Em face à crescente patrimonialização de todo o existente e à consequente
musealização do espaço urbano, a função social e a hermenêutica da arquitetura dos edifícios
de museus adquirem importância singular. No artigo observa-se inicialmente que a arquitetura
e a museologia são campos disciplinares e de ação social que visam a proteção e a promoção
das expressões patrimoniais das sociedades humanas.
Dessa perspectiva, busca-se abordar a associação entre arquitetura, patrimônio e
museologia com vistas a ampliar as discussões acerca dos fundamentos dos registros
historiográficos e arquitetônicos dos museus, considerando que nestes registros estão
constituídas as formas integradoras daqueles campos.
Essa intenção do trabalho justifica-se na medida em que, no Brasil, a arquitetura da
maioria dos edifícios onde estão instalados os principais museus é representativa de
momentos conformadores do patrimônio nacional. Portanto, ainda considera-se que, em
decorrência desse fato, expografias urbanas simbólicas e historicamente significativas
encontram-se configuradas em quase todas as cidades do país.
Com base no trabalho analítico de textos sobre essa temática verifica-se que as
grandes inflexões formais que ocorreram no tipo arquitetônico “museu” aconteceram no
início do século XX e foram provocadas por meio do embate e da consecução de objetivos
que foram comuns e integraram a arquitetura e a museologia. Nesse sentido, o artigo trata dos
registros de ideias e recomendações preservacionistas, buscando observar as bases históricas e
políticas desses objetivos comuns. Destaca-se, então, que as ideias contidas em disposições de
organismos internacionais configuraram-se em documentos básicos, nos quais foram
anunciadas tanto a inovação conceitual dos objetos patrimoniais quanto a revolução
433
programática das instituições museais e o consequente reconhecimento dos novos lugares de
memória urbanos.
Palavras chaves: arquitetura de museus, patrimônio urbano, cidades.
Contexto e conceitos
Respeitadas as características genéticas singulares, a consolidação da Arquitetura e
da Museologia na condição de campos disciplinares ocorreu de modo simultâneo a partir de
meados do século XVIII. Porém, desde o início do século XX, as disposições sobre a
preservação e a guarda de objetos patrimonializáveis e musealizáveis ―cuja quantidade
cresce de modo irreversível em natureza e volume, o que torna inadministrável esta
proliferação―, passaram a exigir a realização de ações diálogicas em níveis
interdisciplinares.
Assim, a necessidade de conservar o patrimônio62 de todos e ampliar o sentido
informacional e comunicacional das instituições de cultura produziu influências
transdisciplinares recíprocas no sentido da contextualização conceitual dos objetos e lugares
patrimoniais. Dentre essas influências, destaca-se o reconhecimento das contradições
ideológicas dos processos de musealização, aí incluindo a discussão sobre as formas de
renovação urbanística e de promoção do patrimônio musealizado.
Os setores de educação patrimonial e turismo tornaram-se, em consequência,
parceiros insubstituíveis dos museus para a utilização estratégica da cultura no sentido
do desenvolvimento. E, embora muitas vezes espetacularizadas e danosas, pois
excessivamente superficiais e pouco ou nada educativas, as atividades museológicas
passaram a ser fatores de desenvolvimento e geração de riqueza para os habitantes de
regiões e áreas em processo de degradação e arruinamento.
Desse modo, a arquitetura das instituições museais, quando observada tanto do
ponto de vista do edifício quanto da cidade, anunciou as mudanças políticas e sociais no
século XX, pois, tais equipamentos estabeleceram-se no domínio da comunicação de
massas, hoje irreversivelmente mundializada.
No entanto, os museus ainda continuam sendo identificados na condição de
instituições “duras”, ou seja, portadoras de menor flexibilidade programática e,
consequentemente, pouco ou nada inclusivas socialmente.
62 Grifos nossos
434
SANTOS (2007) propõe um processo de reflexão no qual considera o museu
“um fenômeno social, um espaço relacional e, como tal, resultado da ação de muitos sujeitos
sociais, que estão no interior da instituição e fora dela, e o constroem e reconstroem, a cada
dia.” 1
Na sequência desta afirmação, a mesma autora comenta as dificuldades que temos
em perceber e transformar as nossas paradigmáticas visões de mundo, destacando que “os
museus talvez sejam uma das instituições mais resistentes, no sentido de rever teorias, de
enfrentar o novo e provocar rupturas”.2
Na perspectiva de que as teorias e os sistemas formais arquitetônicos e urbanísticos
recentes também expressaram, simultânea e coletivamente, tanto os desejos de mudança
quanto de permanência das estruturas conservadoras das sociedades humanas, os temas
tratados neste artigo se referem às maneiras com as quais a arquitetura envolveu a preservação
do patrimônio das cidades à museologia.
Para discorrer sobre tal articulação considera-se que as categorias de análise dessas
disciplinas, nas quais se configuram os estudos e a prática do campo da ação social, são
complementares. E denota-se ainda que a compreensão dos sentidos e da harmonia dos
lugares requer o estudo das ideias e dos ideais das sociedades.
Neste sentido, observo inicialmente que a ordem e a proporção são leis da
harmonia que fundamentam a criação arquitetônica e também a aferição dos valores
sociais, determinantes da historicidade das culturas e identidades. Pois, nas formas
físicas, a essas leis e valores estariam agregadas, de modo interativo, ideologias
excludentes e inclusivas.
Entretanto, a arquitetura é um ato criativo cuja finalidade seria, em essência e por
princípio, a radical renovação do espaço físico existente, observadas ou não as estruturas
preexistentes. E a museologia é uma disciplina em aberto, fundamentando-se em releituras
constantes da história e da memória das ações humanas.
A museologia, diferentemente da arquitetura, estaria direcionada à produção,
reprodução e institucionalização de progressivas apropriações e representações sociais
das coisas do mundo estabelecido. Assim, tanto em termos de ação efetiva quanto de
1 SANTOS, Maria Célia T. Moura. “Os museus e seus públicos invisíveis”, texto apresentado no I Encontro Nacional de Rede de Educadores de Museus e Centros Culturais, realizado no Rio de Janeiro, na Casa de Rui Barbosa, em 17 e 18 de setembro de 2007, p. 2. 2 Idem, p.2
435
elaboração teórica, ambas as disciplinas atuam com base no reconhecimento da importância
da dimensão física na constituição do espaço social.
Do ponto de vista de tais assertivas decorreria a distinção entre os sentidos de
museificar e musealizar, pois, quando a necessidade de dar sentido à forma nova ― e a
preservação de patrimônios é problema aí incluído ―, os valores de dinamicidade e de
ancianidade das ações e dos objetos são matéria a ser observada de maneira imprescindível.
Então, no sentido restrito, museificar seria um termo que sugere paralisia e inércia,
ou seja, resistência negativa. E musealizar, em sentido amplo, seria o processo de elaborar e
abrir possibilidades para conhecer e reconhecer os atos lembrados e esquecidos.
A musealização do espaço urbano
Cristina Bruno, citando Waldísia Rússio Guarnieri, entende que musealização
pressupõe ou implica em preservar. Essa autora também considera que a preservação é uma
ação museológica que aproxima objetos e homens e, assim, revitaliza o fato cultural.
Portanto, C. Bruno afirmou que:
“a preservação proporciona a construção de uma memória que permite o reconhecimento de
características próprias, ou seja, a identificação. E a identidade cultural é algo
extremamente ligado à autodefinição, à soberania, ao fortalecimento de uma consciência
histórica”.3
Assim, a historicidade seria um atributo da memória em processo; e a história
poderia ser o modo de limitar ou acirrar tal processo.
Museificar seria “fazer” a história. Então, por outro prisma, musealizar seria garantir
a historicidade das coisas e dos lugares. E identificar, portanto, significaria reconhecer as
diferenças de modo afirmativo e positivo do que está estabelecido historicamente.
De outro lado, em termos etimológicos e políticos, harmonia significa ajuste e
beleza, o que pressupõe reconhecimento e pacto.
Admite-se, entretanto, que o reconhecimento das diferenças sugere a primeira
acepção do que é moderno, ou seja, do que possui historicidade. Em tal acepção, o que é
antigo é o que teria história; e o que é moderno seria o que é dinâmico, radical e
originalmente novo.
3 BRUNO, C. in http://tercud.ulusofona.pt/publicacoes/1997/BrunoC_Text.pdf Acessado em 22 de julho de 2010.
436
No entanto, ainda há que lembrar e preservar o fato de serem muitas e de ordem
variada as naturezas das preexistências. Por isso, para a arquitetura da atualidade, a
articulação das preexistências e o reconhecimento do modo mútuo com que essas
preexistências apoiam e influenciam, tanto os próprios sentidos quanto os significados das
construções novas, são inevitáveis e quase impositivos.
O trabalho analítico em que se busca associar os sentidos de harmonia à
musealização do espaço urbano poderia ser restringido à dimensão física e à escala urbana e
edilícia dos lugares e paisagens.
Do ponto de vista do fazer arquitetônico na atualidade, essas categorias enquadram
as formas concretas de uso do edifício, do entorno imediato e da cidade preexistentes. Os
elementos formais do espaço social são os fatores que melhor contribuem para a
formação e percepção das ideias e das ações de natureza pública, dado serem os aspectos
mais apreendidos visual, direta e imageticamente, sendo, portanto, os mais
musealizáveis.
Nesta perspectiva, interessa aqui demonstrar algumas das maneiras sob as quais a
arquitetura e o urbanismo do século XX musealizaram ou, segundo alguns críticos, sugeriram
a museificação do espaço urbano.
No final do século XIX, apesar dos ímpetos saneadores, foi patente a tendência de
preservação das malhas urbanas representativas dos tempos passados. Tal inclinação deveu-se
não apenas às resistências conservadoras à industrialização crescente e aos movimentos
progressistas, mas, também, à expansão e difusão da história da arte, da arqueologia e da
etnografia.
John Ruskin e William Morris, socialistas e preocupados com os aspectos
econômico-sociais da industrialização em face do declínio das manufaturas, e considerados
entre os mais importantes pais fundadores das teorias do restauro, são também referenciados
na condição de serem os primeiros a promover, não só a proteção dos monumentos isolados,
mas a manutenção de bairros e cidades antigas da Europa e do Oriente Médio. (CHOAY,
2001: 141-142)
Os compromissos socialistas desses influentes personagens, os quais não eram
arquitetos, mas pleiteavam as reformas sociais e apoiavam o sindicalismo, podem ser
encontrados no diagrama da cidade-jardim de Ebenezer Howard, de 1898.
Ao associar de maneira equilibrada a industrialização à atividade agrária, a cidade de
Ebenezer Howard teria entre 30 e 50 mil habitantes, e seria o lugar ideal para a
437
implementação das políticas sociais em que se combinariam a dispersão urbana, o ruralismo
de colonos e a descentralização governamental. (FRAMPTON: 1994, 47)
Porém, é a haussmanização de Paris, que poderia ser considerada uma operação
excepcional em que o entendimento da história e os conflitos resultantes deste conduziram a
museificação e a musealização do espaço urbano.
Observa-se, inicialmente, que as críticas e contradições que a destruição da malha
urbana medieval da cidade-luz provocou eram refutadas por Haussmann (1809-1891) com a
seguinte afirmação:
“Mas, boa gente.(…), cite pelo menos um monumento antigo digno de interesse, um
edifício precioso para a arte, curioso por suas lembranças, que minha administração tenha
destruído, ou de o maior valor e que ela se tenha ocupado senão para desobstruir e dar-lhe a
mais bela perspectiva possível”. (HAUSSMAN, apud CHOAY, 2001:175)
A expografia urbanística de que Haussmann se valia para consolidar e defender suas
ideias era decorrente da visão pinturesca e estética da cidade. Tal ótica, marcadamente
arraigada ao longo dos tempos, estabelecia mise-en-scènes singulares, as quais sempre
valorizariam o “novo” em oposição ao antigo, e, ousemos dizer, vice-versa.
No século XX, tal atitude serviu de álibi a inúmeras radicalizações e operações
“bota-abaixo” em muitas cidades do Ocidente. Os planos urbanísticos de Francisco Pereira
Passos, Sabóia Ribeiro, Alfred Agache e Afonso Eduardo Reidy são referências especiais
desses propósitos idealizados para a antiga capital brasileira, o Rio de Janeiro.
A separação das funções na cidade foi uma das mais fortes características das formas
urbanas inovadoras e da configuração das morfologias arquitetônicas originais no período
entre 1920 e 1960.
Para os arquitetos representantes da modernidade expressa no século XIX e do
Movimento Moderno do início do século XX, o contexto físico racionalista e funcional
possibilitaria a separação dos fluxos de veículos e de pedestres, o uso livre do solo e as
relações permeáveis entre o exterior e o interior das edificações.
No entanto, a integração com a natureza física e a constituição da nova sociedade
urbana também foram os objetivos que fundamentaram os projetos e as teses do urbanismo
moderno.
Assim, a cidade ideal, ou a segunda natureza, seria o lugar da síntese das artes e o
universo das máquinas onde os homens e as coisas novas e incansavelmente originais
estariam harmonizados, pois eram impensados e daí excluídos os conflitos e as restrições à
mobilidade física e social e ao convívio comunitário.
438
Em tais espaços de “futuros”, as relações tridimensionais expressivas do conceito e
do respeito moderno estabeleciam-se declaradamente face aos desejos de arte e história, os
quais adquiriam a condição de patrimônios dos grupos sociais historicamente hegemônicos.
As referências morfológicas e éticas primordiais e representativas das teses utópicas
do Movimento Moderno são a espiral, o esquema do museu do crescimento ilimitado, e a
proposta para a cidade mundial idealizados por Le Corbusier. O pavilhão de Barcelona e a
Galeria Nacional em Berlim de Mies Van der Rohe, ao lado do Kimbelll Art Museum de
Louis Kahn, também são edifícios em que os esquemas formais, as referências e os
significados clássicos aderem, de maneira integradora os elementos clássicos aos modernos.
Denota-se, portanto, que as coisas do passado estavam contidas de maneira constante
nas propostas modernistas. Tais esquemas ocorriam na perspectiva de futuro, pois a
representação da ideia de passado em espaços novos imprimia originalidade e garantia a
perenidade da ética modernista.
Em tal sentido, ao incluir o passado no princípio da “realidade” e da
contemporaneidade, a arquitetura moderna, racional, abstrata e neutra por excelência, parecia
articular os substratos, estruturas e significados essenciais da natureza dos lugares de
memória.
Assim, a tendência modernista que associava o uso das formas geométricas puras e
atemporais à ambiência existente, geraria tipologias ajustáveis ao “espírito” local.
(MONTANER: 2008, 116).
E, nessa atitude, estariam latentes as virtudes e os desejos de harmonia social.
A ideia de museu contemporâneo e o campo patrimonial
A espetacularização do espaço urbano por meio da promoção da morfologia
singular dos edifícios de museus é outro foco representativo das idéias que articulam
museologia, patrimônio e arquitetura, pois o principal papel dessas instituições de
cultura seria “acirrar” a relação entre história e cidadania, revelando, idealmente, a
excelência pedagógica dos lugares originais e a condição de espaço museológico das
cidades no cotidiano dos cidadãos. Desse ponto de vista, a requalificação efetiva de áreas
centrais das cidades resultaria de ações que devolveriam aos habitantes e aos usuários o
sentido de urbanidade e historicidade.
Para compreender tal “fenômeno”, recorro a F. Choay, autora que, em A alegoria do
patrimônio (2001), analisa as diferentes formas de tratamento aos monumentos e malhas
urbanas das cidades antigas, com base nas teses que constituiram o urbanismo moderno.
439
Choay afirma que a noção do patrimônio urbano foi gerada na “contramão” dos
processos de modernização das cidades (2001:180). E, segundo essa autora, as idéias e as
contradições dos processos de destruição das cidades pré-industriais e da configuração
funcionalista do urbanismo moderno, a partir de 1860 e até meados do século XX,
resultaram da “batalha” entre história e historicidade.
Ou, em outras palavras, entre a inércia e o dinamismo.
Em tal contexto de ações reflexivas e práticas, surgiram as figuras de cidade
denominadas por Choay “memorial, histórica e historial”, as quais são representativas das
ideias de John Ruskin, William Morris, Camilo Sitte, Violet-le-Duc e Gustavo Giovannoni,
inquestionáveis “pais fundadores” das teorias do patrimônio urbano moderno.
Para esses personagens, ajustadas ou negadas as escalas físicas do edifício, da cidade
e do território, e revistos os equívocos de interpretação, a conservação das estruturas
tradicionais e modestas, a permanência da beleza urbana concebida pelos mestres antigos, e a
função hermenêutica do uso dos diferentes tipos arquitetônicos e sistemas espaciais
antecedentes seriam fatos indutores da harmonia formal nas metropóles contemporâneas.
A verificação de tais conjunções pode ser comprovada na contribuição das teorias
urbanísticas de Gustavo Giovannoni (1873-1943) à Carta de Atenas de 1931 e na participação
dele no desenvolvimento, na consolidação das formas de definição, na atribuição de valor de
uso museológico aos conjuntos urbanos antigos.
A figura da cidade histórica ou museal era representada na cidade antiga entendida
na condição de ”objeto raro, frágil, precioso para a arte e para a história e que, como as obras
conservadas nos museus, deve ser colocada fora do circuito da vida.” (CHOAY: 191).
Segundo Choay, a cidade museal foi renegada pelos CIAMs (Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna), pois o Plano Voisin, idealizado por Le Corbusier para Paris em 1925,
dissolveria, à maneira de Haussmann, a malha urbana dos velhos bairros, aumentando
consideravelmente o gabarito dos edifícios e conservando apenas alguns monumentos.
Entretanto, a manutenção da Notre Dame, do Arco do Triunfo e da Torre Eiffel no
Plano Voisin, seria uma espécie de “inventário que já anunciava a concepção midiática dos
monumentos antigos”. (CHOAY: 194)
Assim seria a cidade museal o “lugar” da museificação, este ato hoje impensável?
As formas de representação da cidade museal no Rio de Janeiro encontram-se nas
propostas de Afonso Eduardo Reidy, o qual reproduziu as ideias haussmanianas e
corbusianas, recriando, com base no Plano Agache, a urbanização dos morros de Santo
Antônio e do Castelo. Em 1942, Reidy apropriou-se de recomendações morfológicas de
440
Agache e Sabóia Ribeiro, mantendo, em seus planos para a renovação do centro do Rio, as
estruturas coloniais (o convento de Santo Antonio e o Aqueduto dos Arcos), e as ambiências
neoclássicas do Passeio Público e da Santa Casa de Misericórdia. Entretanto, tais
monumentos seriam emoldurados pelas novas construções, dentre as quais ele incluiu a
réplica do Museu do Conhecimento Ilimitado.
A importância do edifício do “museu” no espaço urbano modernista foi reconhecida
por Le Corbusier quando utilizou o modelo de museu do crescimento ilimitado no projeto do
novo cuore de Saint Dié. Provavelmente, esse plano serviu de inspiração direta para o projeto
do morro de Santo Antônio, no qual o arquiteto carioca Afonso Eduardo Reidy reproduziu o
desenho do museu corbusiano.
Nas propostas para a cidade universitária da Universidade do Brasil elaboradas por
Le Corbusier e pela equipe liderada por Lucio Costa, a morfologia e a situação dos edifícios
dos museus universitários conferiam a esses edifícios referências monumentais modernas,
diferenciando-os de outras construções do conjunto.
Os projetos de arquitetura de museus de arte moderna e contemporânea também
poderiam ser observados na condição de exemplos expressivos das intenções modernistas de
agregação da arte nas cidades e da consequente popularização das experiências artísticas.
Afonso Eduardo Reidy, Lina Bo Bardi e Acácio Gil Borsói, arquitetos autores de
estruturas museais modernas, configuraram em seus desenhos as proposições da época
voltadas à democratização dos acessos de todos aos lugares das cidades. Para harmonizar os
edifícios com a natureza dos lugares, esses arquitetos utilizaram os pilotis e, assim, deixaram
livre o pavimento térreo de suas construções. As fachadas envidraçadas, típicas dos princípios
corbusianos, foram ações afirmativas de inclusão social constantes nos edifícios do Museu de
Arte Moderna do Rio e o Museu de Arte de São Paulo, lado a lado com outros MAMs,
incluindo o Museu de Arte Moderna do Recife.
As conexões entre “popular” e “moderno” também representariam outras
possibilidades de observar a correspondência entre a função social da arte e os programas de
museus de arte moderna. E, apesar de haver poucas referências à aceitação da arte popular e
da arte primitiva em museus de arte, tais articulações ocorreram por meio da exibição de
obras dos artistas naïfs, das crianças e dos pacientes psiquiátricos. Essa categoria especial de
criadores da “arte virgem”, conforme classificava o crítico Mário Pedrosa, participou de
exposições no MAM-SP e no MASP no final da década de 1940 valorizando extremamente a
arte popular e os artesãos.
441
Os documentos patrimoniais na década de 1930
A historicidade das estruturas urbanas pré-industriais foI reconhecida desde meados
do século XIX e, na perspectiva da permanência das preexistências de tal tipo, a cidade
histórica foi progressivamente melhor compreendida. Assim, o respeito às relações entre os
edifícios e o ambiente fundamentaria a consideração das camadas históricas das cidades e o
reconhecimento dos valores das preexistências, as quais eram vistas na condição de espaço
público, ou seja, a todos pertencentes.
No movimento moderno, as intenções de criar sistemas racionais contextualizados,
conciliando as expressões culturais estabelecidas das comunidades e os novos lugares então
criados, estão registradas em Cartas e Declarações elaboradas em reuniões de organismos
internacionais
A respeito desses textos que, até hoje, orientam internacionalmente as políticas e
diretrizes de proteção patrimonial, Judite Primo comenta que:
“Todos esses documentos seguem uma linha de preocupação e atuação que nos levam a
perceber o patrimônio nas suas relações com o meio em que se insere, na sua dinâmica
social e no seu papel como elemento simbólico. É ainda importante ressaltar que essas
preocupações também nos fazem refletir sobre o papel do patrimônio no contexto museal e
museológico e serviu de influência para que os profissionais da museologia pudessem
também formular documentos de base para fundamentar a ação museal.” 4
A primeira resolução internacional em que se tratou de monumentos históricos no
século XX, a Carta de Atenas, foi elaborada na reunião da Sociedade das Nações realizada em
1931 e as atas foram publicadas em 1933. Nessa Carta, as recomendações para a utilização
dos monumentos visavam assegurar o uso perene dos monumentos, desde que fosse
respeitado o “caráter histórico ou artístico dos mesmos.” (CARTAS, 2004: 13)
Na medida em que são observadas as intenções e diretrizes modernistas inaugurais,
elaboradas em reuniões de arquitetos e especialistas em conservação patrimonial na terceira
década do século XX, verifica-se que o princípio da coletividade seria o fundamento e o
sentido da função social das ações de proteção dos lugares e das coisas. Tal princípio seria o
sentido fundamental e preponderante da ação patrimonial, tanto no que se referisse às
construções novas quanto às intervenções em espaços públicos do “passado”.
4PRIMO, J. “Documentos básicos em Museologia”. In CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA. 2007, p. 124.
442
Dados o destaque e a atenção à relação entre os monumentos do passado e a cidade
moderna, o primeiro documento de Atenas também ressaltava, na mesma medida, o direito de
propriedade e a função social do património. Segundo observações de historiadores, essas
recomendações explicitavam de forma inovadora que os monumentos pertenciam à
“coletividade” e que, portanto, essa coletividade, ou grupo, tem o dever de compartilhar a
responsabilidade de preservá-los.
Então, ao ser constatada a tendência em que era consagrado “um certo direito da
coletividade em relação à propriedade privada”, no texto, uma certa “conciliação” das
diferenças entre os direitos público e privado preconizava que as leis fossem “adaptadas às
circunstâncias locais e à opinião pública, de modo que se encontre a menor oposição possível,
tendo em conta os sacrifícios a que estão sujeitos os proprietários em benefício do interesse
geral.” (CARTAS, 2004: 14).
O sentido da musealização do espaço urbano pode também ser observado na Carta de
Atenas, quando aí foi afirmado o respeito ao “caráter e à fisonomia das cidades, sobretudo nas
vizinhanças dos monumentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de cuidados
especiais.” (CARTAS: 2004, 14)
A noção de ambiência, dessa maneira, também estaria contida nas referências à
preservação das “perspectivas pitorescas” e ao uso de “vegetação conveniente ao caráter
antigo dos monumentos”, expressando ainda a ideia de expografia urbana.
O papel da educação e as ações de cooperação das comunidades dos estados, por
meio do Pacto da Sociedade das Nações, também foram temas tratados nessa conferência. Os
presentes à reunião estavam “profundamente” certos de que os “sentimentos” de “respeito e
de interesse dos próprios povos” pela proteção dos “testemunhos de toda a a civilização”
seriam cultivados e ampliados por meio das ações do poder público e dos educadores.
(CARTAS: 2004, 17)
A segunda Carta de Atenas, a do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna
(CIAM) de 1933, é um texto em que a cidade e a região tornam-se o foco de análises
conjunturais de ordem conceitual e prática no sentido do projeto e da gestão. Portanto, é um
documento seminal para a teoria e a prática do planejamento urbano moderno.
A liberdade e a vida em que seriam “conciliados os dois princípios contraditórios que
regem a personalidade humana: o individual e o coletivo” foram valores associados aos
aspectos econômicos e políticos e às características biológicas e psicológicas que os grupos e
as sociedades urbanas tinham em comum.
443
O espaço físico e o espaço social, ou seja, os contextos geográfico, político e
econômico eram vistos de modo complexo e entendidos na condição de modeladores das
atitudes mentais; da mesma forma, os “empreendimentos” seriam diferentes em virtude dos
modos de ver e da razão de viver das “raças”.
Assim, até nas características das cidades de “formato incerto”, “a proporção a
hierarquia e a conveniência” foram vistas na condição de regras humanas em que se denotava
“civilização” e “bem-estar”. (CARTAS :2004, 25)
Ao relacionar as mudanças e o dinamismo das cidades, a Carta de 1933 registra que:
“A História está inscrita no traçado e na arquitetura das cidades. Aquilo que deles subsiste
forma o fio condutor que, juntamente com os textos e documentos gráficos, permite a
representação das imagens sucessivas do passado” (...) “À medida que o tempo passa, os
valores indubitavelmente se inscrevem no patrimônio de um grupo, seja ele cidade, país ou
humanidade; a vetustez, não obstante, atinge um dia todo o conjunto de construções ou de
caminhos. A morte atinge tanto as obras quanto os seres. Quem fará a discriminação entre
aquilo que deve subsistir e aquilo que deve desaparecer? O espírito da cidade formou-se no
decorrer dos anos; simples construções adquiriram um valor eterno, na medida em que
simbolizam a alma coletiva ...” (CARTAS: 2004, 25-26)
Ao constatar as condições injustas dos ambientes onde eram construídas as
habitações modestas, os quais se diferenciam dos lugares em que eram localizadas as ricas, os
arquitetos do CIAM de 1933 afirmaram:
“É preciso tornar acessível para todos, por meio de legislação implacável, uma
certa qualidade de bem-estar, independentemente de qualquer questão de dinheiro. É preciso
impedir, para sempre, por uma rigorosa regulamentação urbana, que famílias inteiras sejam
privadas de luz, de ar e de espaço.” (CARTAS: 2004, 30)
As recomendações também tratavam das instituições coletivas que eram
consideradas prolongamentos da habitação, pois deveriam estar localizadas nas proximidades
dos setores de moradia. Dentre essas, estariam as “escolas, as quais se somarão organizações
intelectuais e esportivas destinadas a proporcionar aso adolescentes a possibilidade de
trabalhos ou de jogos adequados à satisfação das aspirações próprias dessa idade; (...)
(CARTAS: 2004, 31)
Assim, a preocupação com essas construções de uso comunitário, incluía os “centros
de entretenimento intelectual”, pois estes deveriam fazer parte dos planos de renovação das
cidades e dos setores habitacionais.
444
A densidade, resolvida com os arranha-céus, e a qualidade da legislação urbanística
associavam os programas de cultura, entretenimento e lazer ao estatuto do uso dos espaços
abertos públicos. Desse modo, os espetáculos, concertos e teatros ao ar livre, configurariam
”(...) destinação fecunda das horas livres (a qual) forjará uma saúde e um coração para os
habitantes das cidades.” (CARTAS:2004, 42)
Dentre as atividades de trabalho estava incluído o artesanato, o qual deveria ser
praticado nos pontos mais densos. E, segundo a Carta de Atenas, embora considerado
diferente da indústria, o artesanato, “emana diretamente do potencial acumulado nos centros
urbanos. O artesanato de livros, joalheria, costura ou moda encontra na concentração
intelectual da cidade a excitação criadora que lhe é necessária.” (CARTAS: 2004, 46)
A seção da Carta de Atenas destinada à avaliação do contexto e às soluções para a
conservação e demolição do patrimônio histórico das cidades reafirma e amplia as
recomendações citadas, na medida em que registra o compartilhamento das responsabilidades
e sugere soluções conciliatórias para edifícios e conjuntos monumentais.
“Um culto estrito do passado não pode levar a desconhecer as regras de justiça
social” (CARTAS: 2004, 53) foi a declaração-chave em que os autores desse documento
buscaram expressar de modo claro as preocupações com “a miséria, a promiscuidade e a
doença” instaladas em bairros antigos.
Nesse sentido, as mudanças e as renovações nas cidades deveriam abranger desde
desvios e deslocamentos da circulação até transposições de monumentos, pois o objetivo seria
conservar apenas os elementos essenciais.
No entanto, os componentes do CIAM de Atenas, também afirmam que: “em
nenhum caso, o culto do pitoresco e da história deve ter primazia sobre a salubridade da
moradia da qual dependem tão estreitamente o bem-estar e a saúde moral do indivíduo”.
(CARTAS: 2004, 53)
No Brasil, as ações de preservação do Iphan seguiram essa variada e ambígua trilha
traçada para integrar modernidade e preservação progressista. Dentre os exemplos mais
representativos de tal sentido encontram-se a transposição do pórtico da antiga Academia
Imperial de Belas Artes para o Jardim Botânico e a construção da sede provisória da
prefeitura de Salvador.
Em muitos casos assemelhados e baseados em intenções modernizantes do século
XX, estão as “superfícies verdes” que criaram as grandes perspectivas e os grandes vazios
urbanos que resultaram da demolição de cortiços existentes no entorno de monumentos
históricos.
445
O largo da Lapa, no Rio de Janeiro é outro exemplo da museografia urbana que
utiliza as recomendações de Atenas no centro histórico para criar, na década de 1970, cenário
monumental e espetacular.
Em Atenas, também a cópia e o pastiche foram condenados, pois “as antigas
condições de trabalho não poderiam ser reconstituídas e a aplicação da técnica moderna em
um ideal ultrapassado sempre leva a um simulacro desprovido de qualquer vida.” (CARTAS:
2004, 54)
Assim, o movimento e o estilo neocolonial foram rechaçados em reunião de nível
internacional. Porém, registre-se aqui o fato de que tal recomendação não foi seguida pelos
preservacionistas norte-americanos na reconstituição de Williamsburg e na construção do
Cloister em Nova York.
Embora observada pelos principais arquitetos da geração modernista brasileira, essa
disposição não evitou a continuidade do uso de adornos daquele estilo nas construções das
principais cidades do país, e algumas proposições de tendência historicista da arquitetura pós-
moderna também utilizaram as formas decorativas difundidas no movimento neocolonial.
Nas Conclusões de Atenas, foi possível verificar que, em trinta e três cidades estava
ilustrada
“a história da raça branca sob os mais diversos climas e latitudes” (...) “o crescimento
incessante dos interesses privados” e o “maquinismo” seriam os responsáveis pela
“desordem instituída (...) em uma situação que comportava até então uma relativa harmonia;
e também a ausência de qualquer esforço de adaptação”. (CARTAS:2004, 55)
A desumanidade das aglomerações urbanas, a falta de controle e o sofrimento dos
indivíduos e grupos desapareceriam com o urbanismo moderno, o qual faria da cidade uma
unidade funcional harmoniosa e utópica, onde seriam asseguradas “a liberdade individual e o
benefício da ação coletiva”. (CARTAS:2004, 56-57)
O sentido da coletividade e as ações especulativas são referenciadas ao longo da
Carta; e as contradições e a subordinação do direito privado ao interesse coletivo foram
matérias também tratadas nos últimos itens das Conclusões. Dessa perspectiva afirmava-se
que: “O direto individual não tem relação com o vulgar interesse privado. Este, que satisfaz a
uma minoria, condenando o resto da massa social a uma vida medíocre, merece severas
restrições.” (CARTAS: 2004, 64-65).
Conclusão
A década de 1930 também possui marco documental importante para a Museologia,
pois as reflexões sobre as maneiras de articular a missão e o programa dos museus ainda são
446
discutidas; e as disposições sobre as mudanças do espaço físico que ocorreram nesta época
também são, até hoje, reproduzidas em projetos de arquitetura.
Os temas de projeto de arquitetura foram tratados no Congresso Internacional de
1934 realizado em Madrid pelo Office Internacional de Musée e ali foram estabelecidos e
evidenciados os padrões para a criação de espaços expositivos apropriados à correta
funcionalidade dos museus.
Nesse sentido, transcrevemos as afirmações de SALCEDO,5 nas quais estão
registrados parâmetros arquitetônicos:
“A forma das salas deve ser retangular, de dimensão variável, de acordo com a proposta
expositiva, bem como facilitar o acesso fácil e independente; a iluminação deve ser do alto,
por janelas que também possam dosar a incidência luminosa e a temperatura;
A distribuição dos espaços é resultante da circulação, e deve ser organizada de tal forma que
se possa escolher o que se deseja sem interrupções de outros espaços;
A circulação deve permitir o acesso livre às salas e, caso haja outros andares, deve-se ter
uma única escada como acesso principal, mas se deve prever outra para serviços, elevador e
um plano na entrada principal que indique ao visitante o sentido e, ainda, o fácil acesso entre
salas e o local de armazenamento das obras;
A iluminação ideal será obtida por meio de um sistema difuso, realizado pelas janelas altas,
visto que a iluminação zenital, além de ofuscar a visão do observador, cria zonas de sombra,
iluminando mais o piso do que as paredes; já se prevê que a iluminação artificial será a
melhor para o futuro;
O modo de construção dependerá das necessidades técnicas, materiais e econômicas;
A implantação deve ser equivalente à de teatros e igrejas, o museu deve estar cercado de
jardins, facilitando os acessos, evitando o som da cidade, garantindo segurança por meio do
distanciamento da vizinhança e possibilitando seu crescimento futuro.”
Verifica-se nessas considerações que a arquitetura do museu deveria considerar o
local e as possibilidades de soluções expositivas flexíveis e acessíveis, determinando-as com
base em intenções que eram, ao mesmo tempo, nitidamente modernistas e preservacionistas.
Tais intenções progressistas e contextualistas também podem ser observadas em uma
das disposições sobre as exposições, na qual registrou-se que “a exposição das obras deve ser
didática, sistemática, limitada quanto ao número de peças em razão da decoração existente na
sala ou do excesso decorativo que possa resultar.” (SALCEDO: 2008, 258)
5 DEL CASTILLO, S. Salcedo. Cenário da arquitetura da arte. São Paulo: Martins, 2008, p.258.
447
Portanto, os diagramas arquitetônicos dos novos museus e as soluções de adequação
dos edifícios existentes, dos quais resultariam os volumes e as formas originais de
organização espacial dos museus modernos e contemporâneos estavam objetivamente
sugeridos.
Referências bibliográficas
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Acessado em 22 de julho de 2010.
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DEL CASTILLO, S. Salcedo. Cenário da arquitetura da arte. São Paulo: Martins, 2008.
GUIMARAENS, C. “Entrevista”. Mais Passeio, agosto de 2003.
MONTANER, J. M.. Sistemas arquitectónicos contemporâneos. Madrid: Edtorial Gustavo Gili, 2008.
PRIMO, J. “Documenos básicos em Museologia”. In CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA. Lisboa: ULHT,
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SANTOS, Maria Célia T. Moura. “Os museus e seus públicos invisíveis”. In I Encontro Nacional de Rede de
Educadores de Museus e Centros Culturais. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2007.
448
Intervenção urbana no centro histórico da cidade de São Paulo: atores sociais
envolvidos
Dulce Maria Tourinho Baptista
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
dulcebaptista@uol.com.br
O estudo aqui apresentado reflete questões enfrentadas por São Paulo no trato para
com o seu patrimônio histórico na área central, buscando diagnosticar os agentes envolvidos
na produção e gestão dos projetos de intervenção. As ações e relações sociais na cidade
retratam convivências, tanto harmoniosas como conflituosas, representadas pelas motivações
dos diversos atores sociais na correlação de forças aí estabelecida.
A área central da cidade é um cenário que acolhe atores e identidades onde,
cotidianamente, emergem conflitos múltiplos, decorrentes do confronto de uma população
heterogênea que usa a cidade como espaço de sobrevivência, de
sociabilidade, de trabalho, de especulação e ganhos de capital, entre outros usos e
apropriações. Os projetos que aí se desencadeiam são diversos, desde os meios básicos para
trabalhar, sobreviver, viver e lutar, até as estratégias para lucrar e enriquecer. Desse modo,
busca-se refletir como os atores sociais envolvidos nesse contexto interagem com a cidade,
com o seu patrimônio, com as ações de intervenção e aí correlacionam forças em busca de
espaço, voltado ou não, para construção da dignidade humana.
O presente texto está fundamentado nos conceitos de ator social1, hegemonia,
sociedade civil e política2. A leitura da atuação desses atores sociais nos projetos de
intervenção urbana considera, tanto a perspectiva da lógica do poder da sociedade política,
como o poder das organizações da sociedade civil no enfrentamento ou coalizão ao poder
dominante. Sabe-se que os diversificados atores sociais se engajam de diferentes formas na
formulação, implementação e controle, dos projetos de intervenção urbana que podem se
1 Conceitua-se ator - da sociedade civil e política - quem representa um papel dentro de um enredo, em
uma trama de relações sociais. Representa um grupo, uma classe, um país, uma idéia, uma reivindicação, um projeto, uma promessa, um interesse ou uma denúncia. O conceito de ator não se limita a pessoas ou grupos sociais. Instituições podem ser atores sociais: sindicatos, partidos políticos, associações de base, entidades assistenciais e articuladoras, etc. (Souza, 1999).
2 Os conceitos de hegemonia, sociedade política e civil são apreendidos na perspectiva gramsciana em que a sociedade política – aparelhos militares, estatais e burocráticos de dominação e coerção- e a sociedade civil – aparelhos privados de uma classe ou um bloco de classes envolvendo igreja, partido, organizações diversas - lutam pela hegemonia e pela direção política ou moral (Gramsci, 1991).
449
constituir em coerção ou hegemonia.
O trabalho desenvolvido é resultante de pesquisa, cuja metodologia envolveu
apropriação e análise de dados dos projetos de intervenção em desencadeamento no centro,
levantamento de bibliografia referente às políticas de intervenção no patrimônio cultural das
cidades e do estudo de campo. Este último incluiu a realização de 60 entrevistas com
moradores, trabalhadores e usuários do centro, realizadas no primeiro semestre de 2010, com
o intuito de obter a percepção dos atores quanto ao processo de renovação do centro.
A análise partiu do pressuposto que os projetos interventivos deveriam atuar além da
dimensão material do patrimônio edificado, ou seja, privilegiando a necessária inclusão dos
usos sociais da cidade, na perspectiva da dimensão intangível dos modos de vida cotidianos,
das práticas e direitos costumeiros, das expressões de singularidade cultural, da preservação
da história e da memória como patrimônio vivo - com uso e apropriação cotidiana (Bauman,
2009; Arantes,1984; Lefebvre, 2008; Fortuna, 2002). O patrimônio imaterial está inserido no
material e, muitas vezes, os projetos não consideram essa dimensão e excluem atores sociais,
principalmente os menos favorecidos que ficam sem acesso aos novos usos da cidade. A
conservação do patrimônio público e a possibilidade de vivenciá-lo democraticamente criam
vínculos de pertencimento dos atores com a cidade, além de gerar ganhos na qualidade de
vida dos sujeitos que se sentem estimulados a preservar o meio ambiente em que vivem,
quando
criam uma identidade com o lugar.
Busca-se refletir sobre as intervenções – com ênfase na última década – que permitem
compreender esse universo, parte de um todo, com o olhar voltado para os atores sociais que
contracenam nesse contexto. As reflexões estão fundamentadas nos princípios do urbanismo
na apreensão do contexto visto enquanto totalidade, englobando as políticas públicas voltadas
para o patrimônio cultural coletivo urbano e os direitos de participação e cidadania dos atores
aí envolvidos.
Essa é uma questão substantiva na proposição de ações voltadas à conservação do
patrimônio cultural, para além dos critérios adotados que se referem à dimensão material do
patrimônio edificado com políticas de preservação alicerçadas na invenção dos atrativos e
oferta da cultura como segmento de mercado, conforme constata Fortuna (1999, p.44): “O
passado e os lugares das nossas cidades tornaram-se mercadorias e exaltação do seu
consumo”.
O recorte empírico desse ensaio está então na cidade de São Paulo, cenário
cosmopolita de uma cidade potencialmente global com 11.244.369 habitantes (IBGE 2010).
450
Sua área central histórica sofre intervenção de Projetos Urbanos envolvendo uma diversidade
de atores estatais e societários em nível local, nacional e transnacional, assim como atores
multilaterais – Nações Unidas, BID e Banco Mundial.
Trata-se de um espaço heterogêneo que convive com a diversidade, a insegurança e a
exclusão social. Aí estão evidenciadas as contradições de um mundo globalizado que
conquista tecnologias, desenvolve meios de comunicação de ponta em nível galopante, mas
caminha paradoxalmente na direção de produzir, no mesmo ritmo, uma população miserável e
excedente que não tem acesso aos modos de vida preconizados pelo capitalismo.
Etnografia do Centro e Seus Atores Sociais
O Centro de São Paulo é apreendido e vivido de diferentes formas, a saber: como
lócus da escrita histórica da cidade, de grandes concentrações urbanas, de reivindicações
político sindicais, ecológicas, de direitos humanos, culturais e religiosas, mas também como
estigma, espaço degradado, mal cuidado, poluído, sujo, violento, com edifícios abandonados,
invadidos, moradia dos sem teto, etc. Da representação simbólica desse lugar emerge a marca
do centro da cidade. Aí está representado o seu passado bandeirante cujas expedições saiam
do Pátio do Colégio deixando as mulheres chorosas, lamento esse que ainda é sentido no local
por muito dos seus moradores. A sua riqueza, na fase áurea do café, está demonstrada na
grandiosidade das suas edificações do século XIX cujas fachadas revelam a escrita da sua
história e da sua cultura.
Hoje, percebe-se, nas pessoas que aí circulam, uma população de “paulistanos”
provenientes dos mais distintos estados do Brasil e países do mundo, com diversas etnias
representadas como os “nordestinos paulistanos” ou estrangeiros- bolivianos, coreanos,
angolanos, chineses, japoneses, italianos, dentre outros. Nesse espaço de alteridade estão os
trabalhadores que nele transitam a pé, de ônibus, carro ou metrô; são os ambulantes, camelôs,
engraxates, compradores de ouro, jóias e outras mercadorias; são os vendedores de atestados e
documentos, trabalhadores informais, catadores de material reciclável, homens sandwiche,
moradores de rua; são os folheteiros propagandeando os mais diferentes serviços e produtos.
O centro também abriga os ciganos lendo a mão dos transeuntes, os indígenas vendendo o seu
artesanato, as prostitutas e travestis dançando na Praça da Sé às onze horas da manhã ao som
das músicas tocadas no local ou passeando no Parque da Luz; aí estão os traficantes, viciados,
alcoolizados, juntamente com os artistas, músicos, sejam eles repentistas, emboladores,
sertanistas, roqueiros, mágicos. Conforme destacado, são muitos os protagonistas que se
reúnem, trabalham, moram, circulam, desfrutam, estudam, distraem-se, compram e
451
consomem nesse espaço, símbolo de São Paulo como, por exemplo, na Praça da Sé – local de
manifestações populares históricas, marco zero da cidade-, na XV de Novembro e Direita
com “seus” ambulantes atraindo os compradores ou, ainda, no Vale do Anhangabaú com
cartomantes prevendo o futuro, caracterizando o centro de São Paulo como um espaço de
grande diversidade social, política, econômica, étnica e cultural.
Saindo do vivenciar da rua e indo mais para o mundo político aí está a sede da
Prefeitura e muitas das suas Secretarias, o poder legislativo municipal – potencial espaço de
debate de interesses grupos e classes sociais da cidade. Na esfera jurídica estão localizadas as
Secretarias da Justiça, municipal e estadual, juntamente com o Fórum, Palácio da Justiça,
Tribunal de Alçada Cível, cartórios, etc., movimentando os seus trabalhadores, desde os
juízes, promotores, advogados, procuradores, cartorários, oficiais de justiça, até os estudantes
estagiários de Direito, muitos carregando processos e fazendo funcionar toda a burocracia
jurídica da sociedade. O mundo financeiro dos banqueiros, acionistas empresários também
está presente, principalmente na rua Boa Vista, onde se localizam edifícios sede de
tradicionais e hoje multinacionais Instituições, além da Bolsa de Valores, Bolsa de
Mercadorias / BMF e do mercado imobiliário com os seus profissionais transitando, como
corretores, construtores e clientes das imobiliárias.
Somam-se a esse universo as manifestações religiosas com pregadores de várias seitas
discursando em nome de Deus. Há a presença de patrimônios religiosos como a Catedral da
Sé, Igreja e Mosteiro São Bento, Igreja de Santo Antônio, São Francisco cada uma delas
arregimentando os seus fiéis. Junto à capela do Pátio do Colégio está o Museu Anchieta que
abriga um acervo dos primórdios da cidade. Destacam-se ainda outros patrimônios da cidade
como o Teatro Municipal, a casa da Marquesa de Santos, o Edifício Martinelli, o Centro
Cultural Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o edifício Banespa, o prédio do antigo
Mappin, a Estação da Luz, Pinacoteca do Estado, Estação Júlio Prestes, Museu de Arte Sacra,
Mosteiro da Luz, entre outros.
Os serviços aí prestados são muitos. Na área de alimentação, o local concentra
estabelecimentos de vários padrões e nacionalidades, funcionando à la carte, ao quilo, self-
service, como bares, botecos, pequenas lanchonetes, barracas de côco e pastel, trailers de
cachorro-quente, vendedores ambulantes, etc. Além desses, destaca-se o Mercado Municipal
que passou por intervenção e hoje é local de concentração tanto de turistas, como de
moradores da cidade que aí vão desfrutar da oferta de frutas, verduras, carnes, frios,
culinárias, iguarias e do famoso sandwiche de mortadela – marca do lugar.
Culturalmente o centro vivencia anualmente a Virada Cultural - evento que mobiliza
452
turistas, a cidade e os seus atores, além de ser o cenário de intervenções urbanas que
instrumentaliza a cultura na implementação dos seus projetos de requalificação,
principalmente na região da Luz.
Desse cotidiano vivido emerge a diversidade cultural paulistana. Entende-se cultura
como cotidiano vivido onde estão presentes as manifestações artístico-culturais, os modos de
vida e as marcas que essas pessoas deixam no espaço, no processo de produção e reprodução
da vida. A diversidade histórica, étnica, cultural, patrimonial presente no centro deveria
interagir com as propostas de requalificação a serem intermediadas pelos atores. Entretanto,
dentre as medidas propostas hoje, pelos projetos interventivos para o centro, percebe-se a falta
da participação mais efetiva dos atores representativos da sociedade civil. A participação no
planejamento e operacionalização de políticas pode ajudar tanto a democratizar e racionalizar
o Estado como a dar voz política aos grupos politicamente marginalizados.
Considerados os aspectos até aqui abordados, a proposta de um planejamento
participativo sobre os destinos do local seria o caminho mais viável para a sua requalificação
por meio de ações decorrentes da interlocução dos atores envolvidos.
Percursionando na história das Intervenções do Centro O núcleo histórico originário
do centro da cidade de São Paulo surgiu no período colonial. Esta parte da cidade corresponde
ao período que vai de 1554 a 1822, equivalente ao espaço visto como “Centro Velho” - Sé. A
partir do século XIX o centro
foi se expandindo para o que é hoje o distrito da República e Bom Retiro, área intitulada de
“Centro Novo”. Essa região vem sendo, no decorrer da história, objeto de ações públicas
decorrentes do desenvolvimento da cidade, entretanto, na transição do século XIX para XX,
um novo cenário urbano de inspiração européia, incorpora a modernização da época e traz
transformações com os edifícios monumentais das primeiras décadas do século XX, re-
construindo a cidade colonial.
Mais tarde, novas propostas de renovação urbana chegam ao Brasil a partir dos anos
1970, a exemplo de outras cidades como Boston, Barcelona, Paris, Londres, Buenos Aires,
Quito que vêm passando por polêmicos processos de requalificação. O centro histórico de São
Paulo, dentro desses parâmetros, passa a ter ações mais consistentes de intervenção urbana a
partir de 1990 quando a cidade emerge como cidade potencialmente global. Apropria-se do
seu patrimônio cultural como aspecto diferencial, identitário e competitivo, por meio do
processo de “requalificação3”.
3Termo polêmico visto também como “revitalização”, ”qualificação”, “intervenção”, “renovação”, “reabilitação”, sob diferentes perspectivas.
453
Registra-se que as intervenções de requalificação acontecem concomitantemente ao
declínio do centro; a sua degradação se inicia a partir de 1930 com a valorização de outras
áreas da cidade, acompanhada da migração de expoentes da economia do café para a Avenida
Paulista. No entanto, a sua paisagem só apresenta sinais de deterioração no decorrer dos anos
da década de1960.
No Brasil já havia nesta ocasião uma política voltada para a preservação do
patrimônio, tendo como marco o surgimento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) em 1937, com objetivo de conservação dos centros históricos, por meio do
tombamento, instrumento jurídico aplicado para impedir a destruição dos bens culturais e
acervos museológicos do patrimônio. No estado de São Paulo, só em 1967 surge o Conselho
de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São
Paulo (CONDEPHAAT) que também vai atuar nessa direção.
Na cidade de São Paulo, a partir da década de 1970, desencadeia-se política urbana
com a criação em 1971 da Empresa Municipal de Urbanização – EMURB- que passa a
assumir os projetos urbanísticos idealizados com propostas de recuperação do centro.
Com a aprovação da Lei de Zoneamento em 1972, criam-se zonas especiais com
legislação disciplinadora para o uso, ocupação e reurbanização do solo que planeja o espaço
urbano do centro controlando o patrimônio edificado. Inovações urbanas acontecem ainda
nessa década, como o Metrô, Renovação Urbana na Luz, Plano de Revitalização no centro da
cidade de São Paulo – edifício Martinelli, calçadões, estações metrô Sé, República, São
Bento, Viaduto do Chá e Boa Vista, Pateo do Colégio, Parque D. Pedro e a Escola Caetano de
Campos. Na década 1980 desencadeiam-se processos de intervenção na Vila Itororó,
estabelece-se a Lei de Transferência de Potencial Construtivo e Operações Interligadas, o
Projeto Luz Cultural (1985), Praça da Cultura, Usina da Luz - iniciativas essas que
estimularam o turismo e a visitação à área central. Implementa-se em 1985 o Conselho
Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico Cultural e Ambiental da cidade de São
Paulo – CONPRESP – Órgão municipal responsável pelo patrimônio local.
No Brasil, além do IPHAN, a proteção do patrimônio passa também a ser prevista na
Constituição Federal de 1988, nos artigos 215 e 216, que amplia a idéia de patrimônio cultural
brasileiro com o reconhecimento de bens culturais materiais e imateriais, estabelecendo a
apropriação e preservação desses bens, por meio do registro e do inventário. Criam-se
mecanismos institucionais para a participação do cidadão, com a ampliação da
institucionalização democrática e de canais de participação direta nas políticas públicas e na
regulação da ação governamental.
454
Entretanto, no centro, apesar do desencadeamento das ações interventivas a
deterioração continua, com empreendimentos privados abandonando o local. Como
enfrentamento cria-se em 1991 a Associação Viva o Centro, Sociedade Pró-Revalorização do
Centro de São Paulo (AVC), iniciativa da sociedade civil com bases nitidamente empresariais
voltadas para os interesses do capital privado, que mobiliza parcerias com o objetivo
primordial de “reverter situações de declínio, de abandono, de ameaça para a área urbana
onde estão instaladas as entidades que compõem a Organização”. Dela participam
proprietários urbanos de setores da economia - serviços, comércio e indústria -, instituições
financeiras privadas e públicas voltadas para revalorização do centro. Atua por meio de
Conselhos Municipais Paritários, Conselho Superior de Orientação das Ações Locais, Ação
Integrada Centro Legal, Aliança pelo Centro Histórico (08/2009) – projeto em parceria que
cria zeladores urbanos no Triângulo Histórico com objetivo de tornar o centro modelo em
“limpeza pública,
atendimento social, segurança e manutenção para atrair público para o seu comércio, serviços
e equipamentos culturais”.
O centro passa a ser objeto de intervenção sob amplas dimensões, ou seja, o Palácio
das Indústrias vai sediar o governo municipal, a Sé passa por processo de intervenção, assim
como Arouche, Bexiga. Implantam-se as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS - e cria-
se a Operação Urbana Anhangabaú, a política de restauração do patrimônio histórico - cuja
atuação privilegiou o Teatro Municipal, o solar da Marquesa, Casa das Retortas, Correios,
dentre outros -, Operação Urbana Centro, Lei de Fachadas, além de acontecer reforma nos
cortiços.
Em 1993 é criado o Programa de Requalificação Urbana e Funcional do Centro, o
Procentro, nesta sua primeira fase com comissão composta por representantes das secretarias
municipais e outras organizações da sociedade civil, com o objetivo de implementar
estratégias para a recuperação do centro.
As ações interventivas utilizam leis de incentivo à cultura e desenvolvem parcerias entre
iniciativa privada e administração pública com práticas de recuperação e restauro de
monumentos. Alguns patrimônios significativos do centro como o Mercado Municipal, a
Estação Júlio Prestes com a Sala São Paulo (1999), a reforma da Pinacoteca do Estado (2004),
Estação da Luz com o Museu da Língua Portuguesa (2006) são privilegiados e passam por
intervenção com reforma e/ou a diversificação de uso nas suas edificações.
Em 1995 é lançado o Programa Monumenta, Programa de Preservação do
Patrimônio Histórico Urbano mantido por associação entre o Ministério da Cultura, a
455
UNESCO, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o IPHAN e a EMURB que
objetiva financiar ações de preservação e conservação do patrimônio histórico tombado na
Luz, por esse espaço reunir significativo acervo. O Programa é iniciado em 2002 e segue a
lógica da aplicação de recursos em áreas decadentes, tornando-as atrativas para o turismo e
novos investimentos, dentro dos princípios “pós-modernos” constatados por Harvey (1992)
nos projetos de renovação urbana, adequados ao capitalismo de acumulação flexível em que
há a “busca de soluções pontuais e locais, pretensamente “personalizadas”, ecléticas e
diversificadas, abrindo mão de soluções abrangentes – típicas do ideário modernista”. Na
perspectiva mencionada acontece a intervenção em 26 imóveis objetos do Programa como a
Chaminé da Luz (2002), o Museu de Arte Sacra, Estação da Luz, dentre outros.
Apesar das ações de requalificação, a degradação do espaço central continua a se
acentuar. Registra-se no centro 39.289 unidades habitacionais sem uso (ONU, 2004) ou seja,
cerca de 299 prédios fechados à espera de valorização imobiliária, limitando a população mais
pobre de morar neste espaço consolidado da cidade, tendo que ir para áreas da cidade com
mais baixa qualidade de vida, gastando tempo e dinheiro para vir trabalhar no centro4.
Continua também a migração de grupos de alta renda para outras regiões da cidade criando-se
novas centralidades em São Paulo, não só na direção do centro para a Paulista, mas para Faria
Lima e Berrini.
Neste período é promulgado o Estatuto da Cidade – lei Federal 10257 de 2001 -
estabelecendo o desencadear do Plano Diretor Participativo que, juntamente com a
Constituição Federal de 1988, dão o marco jurídico que permite exigir o cumprimento da
função social da cidade e da propriedade urbana para a efetivação da democratização da
gestão da cidade.
Participação dos Atores Sociais nos Projetos de Intervenção Concomitante aos
Projetos Interventivos desencadeados em nível estatal no âmbito da sociedade política, outros
atores da sociedade civil envolvidos com o centro também se mobilizam. Criam em 2000 o
Fórum do Centro Vivo para refletir, fortalecer, articular e lutar pelos direitos humanos no
centro. Lançam o “Manifesto por um Centro Vivo: o centro da reforma urbana” (2004).
Desencadeia-se o Programa “Ação Centro” e “Morar no Centro” (2001-2004) que planejava o
enfrentamento à questão da habitação popular e do esvaziamento populacional do centro, por
4 O centro é uma área consolidada devido os investimentos públicos e privados e concentração de postos de trabalho (718 empregos para cada 1000 hab). Apesar de ser área consolidada, conta com expressivo número (20%) de imóveis e domicílios vazios. Apresenta um crescimento populacional negativo em 1991/2000 (-26,04%), ao mesmo tempo em que se dá o adensamento das áreas da periferia da cidade.
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meio da implementação de moradia para famílias de baixa renda, objetivando levar população
para o centro, área consolidada com infra estrutura urbana e oferta de empregos. Previa
projetos de bolsa aluguel (chegando a atender a 2039 famílias em 2004) com locação social
via recursos alocados do BID para o Projeto de Reabilitação em áreas centrais, a exemplo da
França, Bélgica e Itália. Este projeto hoje está em extinção. Ações participativas e inclusivas,
a exemplo da “Oficina Boracéia”, foram prioridade até 2004, quando a nova gestão municipal
passa a caminhar em outra direção privilegiando outros atores sociais.
O Decreto n. 45.832/2005 retira da sociedade civil a coordenação executiva do
Procentro (existente antes no “Ação Centro”) e cria o Gcentro - grupo executivo
exclusivamente governamental para operacionalizar os Projetos de Intervenção, onde a
sociedade civil deixa de ser ator planejador das intervenções no centro. A operacionalização
das ações interventivas do Pro Centro e do Projeto Nova Luz vai ser coordenada pela
EMURB, em parceria com Órgãos estaduais, federais e internacionais, seguindo modelo que
prioriza os atores sociais mais favorecidos. Esse direcionamento está documentado na fala de
urbanista responsável pelo Projeto Nova Luz, quando questionado sobre a participação dos
atores sociais do centro no planejamento do Projeto. Diz5: ”... a população vai ser chamada
em uma próxima etapa quando formos operacionalizar...”
Mudam-se então os princípios norteadores da intervenção na área central
existentes na gestão 2001-2004 com a “Ação Centro” e “Morar no Centro” e a gestão (2005-
2010) re-estabelece o Procentro mudando os seus princípios norteadores, a exemplo do
Decreto 45.832/2005 mencionado que retira a participação da sociedade civil da coordenação
executiva e dissolve o Fórum de Desenvolvimento do Centro, implementado nos moldes da
Agencia de Desenvolvimento do ABC.
Constatam-se ações da Prefeitura impulsionando investimentos privados na
perspectiva da matriz higienista que prioriza a preservação do patrimônio cultural material na
perspectiva da monumentalização e museificação, aliada a instalação de zeladoria, câmeras,
ação policialesca de vigilância e controle do patrimônio material.
Escasseiam-se os investimentos em assistência, educação, habitação e segurança. As
ações da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar são a de atores executores da
política interventiva, repressora dos movimentos sociais com ações de “rapa” junto aos
ambulantes, operacionalizadora de reintegração de posse nos prédios invadidos, controladora
dos catadores de material reciclável·, omitindo-se da responsabilidade da função pública,
5 Depoimento feito por ocasião da realização de wokshop na PUC/SP em out de 2009.
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educativa e de proteção aos atores sociais mais vulneráveis.
No entanto, apesar das ações desenvolvidas nessa direção não se tem garantido
melhoramento no centro, já que os projetos que surgem – a exemplo da “Nova Luz” cuja
diretriz busca transformar esse espaço em um pólo tecnológico e cultural – não considera os
modos de vida aí existente.
Desse modo, os hábitos, experiências e conhecimentos da população, ou seja, a
dimensão participativa que propicia o entendimento dos aspectos subjetivos da interação dos
atores com o ambiente e que dá significado ao patrimônio cultural por meio dos usos que se
faz da cidade, não são considerados. Muitos dos entrevistados dizem não se apropriar do
patrimônio local. Vêem-se como pertencentes à outra classe social sem direito a usufruir do
local, a exemplo da Sala São Paulo que, conforme explicitado por moradores da Luz, é um
espaço usado pelos de fora, isolado por cordão nos eventos e outras celebrações onde os
moradores, não podem nem chegar perto.
Em relação à ação pública higienizadora na área da Cracolândia - Luz, um ator social,
técnico da Secretaria da Saúde, coloca que as blitz realizadas não vão levar a nada pois não se
age em saúde pública junto aos drogados com ação policialesca de espetacularização do
problema.
O planejamento e participação de diferentes atores sociais no Projeto não é
pressuposto para a intervenção, conforme explicitado na fala do agente de saúde. As
intervenções nesse nível, quando não são direcionadas ao engajamento dos atores envolvidos,
pouco contribui para o enfrentamento à problemática social no espaço público urbano.
Com o mesmo teor estão as ações voltadas para habitação. Presenciam-se,
cotidianamente, reintegrações de posse de prédios invadidos pelos sem teto. Um
repórter diz: “Ver senhoras e crianças levando bomba da polícia num prédio escuro é bárbaro
e assustador”. Por outro lado o poder público pouco faz a mediação com propostas de
negociação junto aos atores sociais do Movimento dos sem Teto e os proprietários.
Os imóveis vazios no centro, assim como o déficit habitacional, são
significativos. Entretanto os Projetos de Intervenção para recuperação do centro
priorizam o patrimônio histórico, sem perceber que o esvaziamento traz insegurança à vida no
centro, pois viabiliza pontos de tráfico e prostituição além de limitar o acesso à moradia, em
uma região consolidada que necessita ser habitada, conforme preconiza o Plano Diretor da
cidade. Um projeto de intervenção deveria se preocupar também com a falta de habitação para
famílias de baixa renda, com a economia popular e com as questões sociais para que essa
requalificação seja adequada. Nesse sentido, Proença Leite (2009) adverte acerca das políticas
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urbanas de patrimonialização e contrarevanchismos, pela não incorporação de políticas
sociais e habitacionais nos projetos de “revitalização” que convertem os processos e
intervenções patrimoniais em realidade alegórica, buscando reverter processos de declínio das
cidades. É imprescindível incluir o social nos Projetos de Intervenção para que os patrimônios
culturais possam conviver com os atores que se relacionam nesse espaço, evitando a sua
expulsão, para que a requalificação não venha seguida da crescente deterioração, a exemplo
do que vem ocorrendo em cidades históricas que passaram por processos de revitalização com
esse teor.
Entretanto é na direção da coerção sem hegemonia que Projetos, como o Nova Luz,
caminham. A Prefeitura vai conceder benefícios fiscais para atrair empresas e prevê a
demolição de 30% da região da Cracolândia – três quadras inteiras da rua Santa Ifigênia
(principal pólo de comércio de produtos eletrônicos de São Paulo) e duas quadras da Avenida
Rio Branco. Só serão mantidos os imóveis tombados pelo patrimônio histórico ou os julgados
de ocupação adequada. O projeto urbanístico para nova área vai ser entregue a uma empresa
em troca da revenda dos imóveis com lucro no bairro revitalizado. Os atores sociais do local
criticam e reagem6. Inserida nesse contexto, existe no centro de São Paulo o movimentar-se
da organização da sociedade civil que busca participar da gestão da cidade por meio da sua
inserção nos seus projetos
interventivos. Há movimentos sociais urbanos, organizações de base, entidades de educação e
cultura, universidades, diretórios acadêmicos, grêmios estudantis, coletivos de artes, teatro,
mídia independente, ONGs em defesa dos direitos Humanos- Travessia, CARE Brasil, Centro
Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Polis - Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em
Políticas Públicas - que buscam atuação no planejamento e controle social de políticas
públicas. São cerca de 70 organizações articuladas da sociedade civil que denunciam e
endossam o Dossiê Centro Vivo (2006). São os movimentos populares de mulheres e
moradia, a ação das Pastorais da criança, do cárcere, dos sem teto, com o apoio da Igreja, os
inúmeros sindicatos – bancários, professores, comerciários, e outros. Estão também presentes
Conselhos diversos como o
Municipal de Turismo (Programa Bem Receber), Habitação, Educação, etc. e muitas ONGs.
Os parceiros da AVC, como a OAB, IE, IAB, também lutam e pressionam em prol dos seus
interesses privados no local.
6 Os atores lojistas da Santa Ifigênia movem-se com a mediação do Ministério Público, Ação Civil Pública contra o Projeto Nova Luz no que diz respeito à demolição prevista e outras diretrizes do Projeto que não os inclui.
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Percebe-se que os atores organizados por categorias na área central de São Paulo
atuam, em momentos oportunos, por meio de práticas diversas em que, algumas delas, tem
por forma um “ato e maneira de aproveitar a ocasião” como um enfrentamento que resiste de
forma latente, com pouca visibilidade, utilizando “as táticas, a arte do fraco” na invenção do
cotidiano (Certeau, 1996). Entretanto, na atual conjuntura prevalecem os atores em
consonância com os seus interesses privados, ou seja, os com projetos que higienizam o
centro e promovem a expulsão dos menos favorecidos como a população empobrecida, os
moradores de rua, ambulantes e camelôs, considerados como os que desvalorizam e enfeiam o
centro. Câmeras, vigilância, ação policialesca, higienização tornam-se prioridade. O papel do
poder público legislativo, executivo e judiciário é visível na intermediação de conflitos
fundiários viabilizadores de despejos forçados e reintegração de posses violentas. Criam-se
Projetos para os sem-teto voltarem à origem, além do fechamento e descentralização dos
albergues priorizando ações que desencadeiam a regeneração urbana dentro de um contexto
de modernização e higienização, onde o discurso e a prática estão voltados para a
gentrification e o empreendedorismo, a exemplo do Projeto Nova Luz.
Frente à realidade diagnosticada a utopia está expressa na necessidade
emergente de políticas públicas contínuas e permanentes que trabalhem na direção de
diminuir a desigualdade histórica e estrutural da sociedade expressa nos centros das cidades,
dialogando com os atores sociais organizados da sociedade civil. Ações nessa direção
caminhariam para o direito à cidade e a apropriação da cidade como obra, na perspectiva de
Lefebvre (2008, p.113) onde “apenas grupos, classes ou frações de classes sociais capazes de
iniciativas revolucionárias podem se encarregar e levar até a sua plena realização, soluções
para os problemas urbanos; com essas forças sociais e políticas a cidade renovada se tornará
obra”.
Considerações Finais
O contexto dos projetos de intervenção no centro da cidade de São Paulo foi visto na
totalidade das relações sociais, onde se procurou decifrar a sua lógica
juntamente com a ação dos seus protagonistas. Os atores sociais envolvidos em suas múltiplas
ramificações, no Estado em seus diferentes níveis organizacionais, na sociedade civil nas suas
diversas categorias, evidenciam as políticas e a correlação de forças entre os segmentos. São
forças que agem com diversificadas motivações, manifestações culturais, sociais, políticas e
econômicas, interferindo na identidade do lugar, no processo de pertencimento e usufruto da
cidade.
460
Uma cidade democrática é uma cidade inclusiva que utiliza a diversidade como
recurso. O desenvolvimento urbano é adequado quando garante aos seus atores espaços
públicos participativos e instrumentos para entender, apreender e comunicar a própria cultura
e se construir livremente na cidade. Os atores sociais se formam a partir do conjunto dos
repertórios culturais que se constituem na origem, na história de pertencimento à cidade e que
permitem reconhecer sua vinculação a um determinado grupo, identificando-se com eles.
Assim sendo, o patrimônio cultural constitui a riqueza acumulada pelas gerações passadas, a
ser valorizado no presente, para elaborar formas sustentáveis de desenvolvimento.
Os Projetos de Intervenção em curso não apresentam a preocupação com a construção
histórica, com a inclusão de atores sociais e políticos na vida cotidiana da cidade, com a
participação e ocupação do público, com a operacionalização de uma cultura voltada a captar
o campo de signos e símbolos, práticas e valores produzidos na cidade. Ao contrário, os
diferentes atores sociais do centro pouco participem do planejamento e da gestão do lugar
como verdadeiros sujeitos. Não estão presentes no planejamento, não contracenam na
correlação de forças e no jogo político. A inexistência de espaços de fato, pois de direito já
existem, para a participação e cogestão, no sentido de integrar as forças locais, principalmente
aquelas ignoradas pela sociedade política e mal vistas pelo setor privado do mercado, coloca
em risco a construção de uma cidade democrática.
Nesse sentido, pensar na participação e engajamento dos atores sociais no
planejamento do lugar é buscar garantir que o espaço expresse o seu sentido e consiga
gerenciar o desenvolvimento local. A memória social da coletividade e de suas experiências
sociais deve ser considerada, para que o patrimônio do centro não se torne “não-lugares”
(Augé, 1994), lugares desprovidos de identidade, destinados somente à passagem,
contemplação ou ao consumo.
Percebe-se que a forma como se busca planejar o destino do centro de São Paulo,
principalmente no que se refere ao Projeto Nova Luz, envolve atores não relacionados à
identidade do lugar, criminaliza as formas de resistência popular, desconsidera as demandas
do local, desencadeando ações como a de demolição dos prédios, remoção de atores e
dissolução da memória local. Os pressupostos que regem os projetos optam pelo paradigma
de revitalização com um centro limpo, asséptico, para poucos, com a expulsão dos mais
pobres, favorecendo os investimentos privados e adensamento planejado com ganhos para os
segmentos imobiliários e do capital, aumentando a segregação social e periferização na
cidade. Constata-se, no final da última década, o retrocesso na democratização do centro de
São Paulo, enquanto acesso e uso de atores junto aos espaços públicos que passam a ter uso
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restrito e privatizado, privilegiando a recuperação e requalificação de bens isolados, tornando-
os ilhas que reforçam a fragmentação do espaço. Apreende-se que estas intervenções visam
atender prioritariamente o mercado, dentro da nova conformação econômica da globalização,
onde o patrimônio cultural passa a ser concebido como atrativo e mercadoria.
REFERÊNCIAS
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salvaguarda do patrimônio cultural intangível: ensaio de antropologia pública.
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