a hora em que... peter handke
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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Peter Handke
A HORA EM QUE NO SABAMOS NADAUNS DOS OUTROS
seguido de
O JOGO DA S PERGUNTASou
A Viagem Terra Sonora
Traduo e Introduo de
JOO BARRENTO
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O ARCO DA PALAVRA
Peter Handke, dramaturgo?
Peter Handke tem uma relao com o mundo e com a escrita que, por ser
excessivamente egocentrista e contemplativa, rilkiana e metafsica, dificilmente poderia
ser uma relao "natural" e conseguida com o teatro (isto no encerra, note-se, nenhuma
crtica de princpio). Ainda a sua carreira literria ia a meio e j alguma crtica afirmava:
este autor tudo menos um dramaturgo! E sempre se deu mais importncia sua obra de
fico (categoria mais que gelatinosa em Handke) e ensastica ou diarstica (tambm aquias fronteiras no passam por lugares fixos) do que sua produo dramtica - que, de
facto, e desde a primeira pea, parece entender-se mais como uma afronta ao teatro, um
desafio s suas convenes mais fortemente enraizadas (aco, dilogo, tenso), uma
resposta ensimesmada aos figurinos dominantes do momento. O teatro de Handke
sempre teve mais ligaes com os modelos estruturais e as obsesses temticas da sua
prosa do que com a tradio (ou as tradies) do teatro.
A sua obra dramtica - que se inicia em 1966, em simultneo com a publicao do
primeiro romance, Die Hornissen (Os Vespes) - parece surgir, apenas em determinadosmomentos separados por longos perodos de afastamento do teatro, quase sempre na
dependncia da obra de prosa, e formando com ela uma grande unidade de processos e
de temas. O grande modelo estrutural dessa obra que se poderia dizer cclica,
monotemtica e muito austraca, parece-me ser, desde o incio dos anos setenta, o da
viagem: viagem do sujeito para si prprio, viagem mtica e inicitica. assim desde o
romance Der kurze Brief zum langen Abschied (Uma Breve Carta para umLongo Adeus)
(1972), passando porDie Wiederholung (A Repetio) (1986), at Das Spiel vom Fragen
(O Jogo das Perguntas), de 1989. Um modelo que no provm tanto da tradio
dramtica (a "jornada" das moralidades no a do sujeito moderno, mas a da gerao
humana), mas mais directamente de uma forma literria especificamente alem e
? Publicado originalmente em:A Palavra Transversal. Literatura e Ideias no
Sculo XX. Lisboa, Livros Cotovia, 1996.
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austraca, o Bildungsroman ou romance de formao: em Uma Breve Carta... o
protagonista leva no bolso um dos grandes exemplos do romance de formao, Der
Grne Heinrich (Henrique do Gibo Verde), do suo Gottfried Keller; em A Repetio
um outro importante "romance de artista" que ecoa, o Nachsommer (Fim de Vero) do
austraco Adalbert Stifter, um autor muito admirado e seguido por Handke; e ainda n' O
Jogo das Perguntas uma das personagens saca tambm por mais de uma vez de um
livrinho que, no sendo um romance, o repositrio de uma viagem de formao e
iniciao: o Oku no Hosomichi (A Estreita Estrada para o Norte), de Bash. E, como em
todo o bom romance de formao, Handke transforma tambm muitas das suas peas em
processos de aprendizagem (e de dominao) - de si, nas primeiras peas(Kaspar/Gaspare Der Mndel will Vormund sein/O Pupilo Quer Ser Tutor); do mundo,
em O Jogo das Perguntas, e dos outros, no seu ltimo mimodrama, Die Stunde da wir
nichts voneinander wussten (A hora em que no sabamos nada uns dos outros), de
1992. Processos de aprendizagem e percursos de metamorfose (tambm isto evidente
nas duas ltimas peas do autor austraco), que se servem, no teatro como no romance,
de meios que so frequentemente os mesmos: a percepo aguda, e dolorosa, do mundo
exterior, e a reflexo despoletada pela observao das coisas, por vezes amplificadas
dimenso inquietante do pormenor que se agiganta, numa focagem que transforma ocorriqueiro em sublime (os melhores exemplos destes processos, para alm de textos
mais antigos como Die Lehre der Sainte Victoire (A Lio de Sainte-Victoire) ou Das
Gewicht der Welt (O Peso do Mundo), sero certamente os trs recentes Ensaios
(Versuche), sobre a fadiga, a jukebox e um dia "conseguido"). A isto no , obviamente,
estranha a forte tradio austraca de uma "mstica sem msticos", presente na sua
literatura e filosofia pelo menos desde Hofmannsthal, e cujas formas de manifestao -
todas presentes no teatro de Handke - tm sido a mstica das coisas (veja-se a "Carta deLord Chandos" de Hofmannsthal, ou O Homem sem Qualidades de Musil), a mstica da
arte (Rilke e a tradio romntica, mas tambm Stifter) e a mstica da palavra, ou melhor
do silncio, que se encontra no centro da tradio filosfica do cepticismo e da crtica da
linguagem, do ltimo Nietzsche e de Fritz Mauthner nos Beitrge zu einer Kritik der
Sprache (Subsdios para uma Crtica da Linguagem, 3 vols., 1901-02) ao primeiro
Wittgenstein.
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O percurso de Peter Handke como autor dramtico abre e encerra - pelo menos at
ao momento actual - com ncleos de peas que traam, de um extremo ao outro, o grande
arco da Palavra: da catadupa verbal de Publikumsbeschimpfung/Insulto ao Pblico (pea
de estreia, em 1966) tenso do silncio no mimodrama O Pupilo quer ser Tutor(1969),
ou, nos ltimos anos, do peso da discursividade potica e filosfica d' O Jogo das
Perguntas, que faz desta pea, para alguns, um "drama de gabinete", at poeticidade e
leveza (mais na encenao de Luc Bondy na "Schaubhne" de Berlim do que nas do
Burgtheater ou de Bochum) da ltima pea sem palavras - s ritmos, imagens, melodia
cnica - que A Hora em Que No Sabamos Nada Uns dos Outros, novo mimodrama
para um sem nmero de figuras e outras tantas histrias privadas, que so no palco eatravs de uma encenao ganham vida e sentido, forma visvel.
Entre os dois extremos situam-se variantes que constituem modulaes de um
tema nico - o do poder, dos limites e do sentido, existencial e civilizacional, da
linguagem - para um teatro que sempre um teatro da palavra, mesmo quando dela
parece prescindir totalmente em favor do gesto. De facto, demasiado forte e evidente a
nostalgia da palavra, mesmo nas peas sem palavras de Handke: tal como no Tractatus
de Wittgenstein, isso s acontece porque ele, por razes tcticas, impe limites
linguagem, mas est sempre a encostar a escada ao muro para espreitar para o outro lado.Na primeira fase da produo dramtica de Handke, entre 1966 e 1971, a obsesso
radical com a linguagem revela afinidades com os grupos experimentais de Viena e Graz
(onde Handke estuda e escreve de 1961 a 1965) e lanar pontes para a dramaturgia do
absurdo, qual, no entanto, no podemos reduzir pura e simplesmente peas como as
Sprechstcke (peas para declamar), nem o tratamento dramtico da aquisio
progressiva de linguagem em Gaspar (1968) ou o recurso sistemtico aos clichs
lingusticos e ao dilogo absurdo, la Ionesco, em Quodlibet(1970) eDer Rittber den Bodensee/A Cavalgada Sobre o Lago de Constana (1971). s depois de um longo
interregno, em 1982, que Handke regressar ao teatro com um "poema dramtico" (ber
die Drfer/Pelas Aldeias) em que a afronta ao teatro da fase inicial d lugar a qualquer
coisa como uma ressacralizao do teatro, um regresso s origens em que a palavra,
servindo agora intenes mstico-salvficas, o instrumento de uma viragem metafsica
que vir a caracterizar o Handke dos anos oitenta e noventa. O regresso palavra
processa-se agora no sentido da sua (re)literarizao: instalam-se a discursividade, o tom
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ritualstico, as "grandes palavras" de um discurso solene (os modelos parecem ser a
tragdia antiga e o oratrio), com a inteno de, partindo duma situao dramtica
quotidiana - um conflito familiar -, se propor aos espectadores (Handke tem agora uma
"mensagem"!) uma utopia da reconciliao entre homem e natureza e uma apoteose da
arte.
H nesta pea uma indisfarada herana romntica (a arte como a grande e nica
afirmao metafsica do homem) e um misticismo atvico (a natureza a reencontrar, a
busca de uma "elementaridade") que a obra de Handke no abandonou at hoje, apesar
do seu substracto cptico e irnico. As duas ltimas peas mostram-no evidncia: O
Jogo das Perguntas ou a Viagem Terra Sonora , ainda e sempre, a busca do silncio -a vrios ttulos paradoxal, de um Graal de sempre, o de uma Origem perdida, um estado
de comunho com o mundo que proporcione a compreenso do Ser (por isso os
verdadeiros actantes sero aqui as ideias, e no as palavras, como acontecia nas
primeiras peas). A Hora em Que No Sabamos Nada Uns dos Outros, por seu lado,
sendo como um regresso ao drama sem palavras, foi acolhida por alguma crtica com o
grito de jbilo de "Finalmente, o palco sem palavras!" Depois dos clamores (musicais) de
Bob Wilson e dos horrores (abismais/libidinais) de Heiner Mller, o teatro cala-se! Na
verdade, o teatro no se cala: o teatro, um teatro total (ser que o , sem a palavra?) falapelas suas personagens, transformadas em puro gesto. Fecha-se o arco da palavra e do
seu reverso, que tambm o arco do percurso global de Peter Handke dramaturgo.
Joo Barrento
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A HORA EM QUE NO SABAMOSNADA UNS DOS OUTROS
Um espectculo
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Para S. (e, por exemplo, para a praa em frente do
Centre Commercial du Mail, no planalto
de Vlizy)
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"No contes a ningum o que viste; fica-te pela imagem."
(Das palavras do orculo de Dodona)
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Uma dzia de actores e amadores
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A cena uma praa aberta, numa luz clara.
A aco comea com algum que atravessa a praa a correr.
Depois, vinda do lado oposto, mais uma pessoa, igualmente apressada.
Depois, cruzam-se duas pessoas, tambm em passo rpido, cada uma delas seguida, na
diagonal e a uma pequena distncia que se mantm, por uma terceira e uma quarta.
Pausa.
Ao fundo, algum atravessa a praa a passo.
medida que vai caminhando, absorto, abre as mos e estica continuamente todos os
dedos, estende e levanta ao mesmo tempo os braos, lentamente, at eles se fecharemnum arco sobre a sua cabea, volta a baix-los, tambm sem pressas, enquanto vai
deambulando pela praa.
Antes de desaparecer na rua estreita ao fundo, vai fazendo vento ao andar, abana-se com
as mos abertas, o que o leva a assentar a cabea na nuca e a ficar de cara para cima.
Finalmente desaparece, fazendo uma curva.
Quando, no mesmo andamento, reaparece num abrir e fechar de olhos, j outro vem
ao seu encontro a meio da praa, marcando o ritmo ao andar, primeiro com uma das
mos, depois com as duas; finalmente, ao sair da praa para entrar tambm noutra ruaestreita, j todo o seu corpo mexe, e o seu modo de andar vai tambm atrs do ritmo.
Enquanto este, tal como o que o precedeu - que, alis, entrando e saindo ao fundo,
continua a tentar fazer vento e luz sobre si prprio -, gira sobre os calcanhares, voltando
vrias vezes a medir a praa com a sua passada e a marcar o seu ritmo, no primeiro
plano, vindos da esquerda, da direita, de cima, saltando de um parapeito ou de uma ponte
invisveis, de baixo, saindo de uma vala ou de um buraco na rua, entram a correr,
balanando, quatro, cinco, seis, sete outras figuras, um grupo inteiro.Tambm eles no se detm na praa, dispersam-se, abandonam-na, j esto de volta, cada
um por si, e cada um deles, enquanto "vai aquecendo", muda continuamente de figuras e
de formas, com modos quimricos: de um salto a ps juntos passa-se logo, mantendo de
res-to um ar impassvel, para: bater dos taces, sacudir os sapatos, estender os braos,
pr a mo em pala sobre os olhos, andar de bengala, caminhar em bicos de ps, tirar o
chapu, pentear-se, sacar de uma faca, dar socos no ar, olhar por cima do ombro, abrir o
chapu de chuva, andar como um sonmbulo, deixar-se cair no cho, cuspir, equilibrar-
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se sobre uma linha, tropear, ensaiar uns passos de dana, girar em crculo enquanto se
anda, imitar um zumbido, gemer, dar murros na cabea e na cara, atar os sapatos, rolar
brevemente pelo cho, escrever qualquer coisa no ar, e tudo isto sem qualquer ordem,
sem terminar nenhum gesto, ficando todos a meio.
E tal como vieram, assim todos desapareceram j, os que estavam em primeiro plano, o
que estava a meio da praa, o que andava ao fundo.
Pausa.
Um homem atravessa a praa, sem olhar para este ltimo; um pescador linha que vai
a caminho de algum lugar.E logo a seguir, uma mulher velha embiocada nos seus trapos e pu-xando atrs de si um
carrinho de compras.
Ainda esta no sau de cena, e j dois homens com capacetes de bombeiro irrompem pela
praa, empunhando mangueiras e extintores - mais em ar de exerccio do que de
interveno a srio?
Colado a eles, como algum perdido em sonhos, segue-se um adepto de uma equipa de
futebol a caminho de casa, que ainda fica longe, debaixo do brao uma bandeira
queimada que se desfaz medida que ele vai andando; por sua vez, este seguido poralgum de ar indefinido, com uma escada de mo na qual uma mulher, que entra depois
dele vestida de beldade com saltos altos, roa ao ultrapass-lo, sem que nenhum deles
ligue ao sucedido.
Pausa.
Um patinador passa meteoricamente pelo palco, j desapareceu.
Um homem, vendedor de tapetes, a pilha de tapetes vista sobre o ombro, muitocurvado, descansando de vez em quando, de joelhos dobrados, atravessa atrs dele a
praa procura de fregueses.
Ainda se vai arrastando, quando se cruza com um outro que, vestido de cowboy ou
vaqueiro, a cada trs passos faz estalar o chicote, seguindo o seu caminho sem olhar para
ningum, como o outro.
E entretanto j uma mulher descala, hesitando, com as mos a tapar a cara, atravessa a
praa ao fundo, deixa cair os braos enquanto anda em crculo, arrastando os ps, um
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dedo na boca e um grande riso alarve, uma atrasada mental, talvez a que acabou de
passar na figura da beldade, enquanto que no primeiro plano da praa, logo a seguir a
ela, duas rapariguinhas novas que entram de brao dado, de repente se transformam
durante algum tempo num par de ginastas que vo fazendo "rodas", para desaparecer uns
instantes mais tarde.
Um homem, guarda temporrio da praa, vem atrs delas, aos ziguezagues pelo palco,
espalhando s mos cheias cinza que tira de um alguidar, e a segui-lo um homem
sozinho, quase um ancio, que traz cabea, muito direita, um imponente bero com um
belo braso, pesando cada passo, como na corda bamba, e acabando por largar o objecto
que traz cabea, equilibrando-o sem apoio, entrando progressivamente numa dana quepor fim se transforma num jogo seguro.
Quase ao mesmo tempo que ele, entra a correr um homem, o comerciante local, que, ao
atravessar a praa, mete no bolso um molho de chaves - as do carro? -, tirando outro,
maior - de casa e da loja? -, encontrando em andamento a chave certa, que empunha ao
sair, em direco ao seu objectivo.
E imediatamente a seguir vem algum ainda mais indefinvel, como que correndo atrs
dele, pra de repente no meio da praa e volta para trs lentamente.
Pausa.
A praa vazia, numa luz clara.
Um avio passa por cima, durante um, dois segundos; a sombra do avio?
Depois, regressa-se situao anterior.
Uma nuvem de p; fumarada.
Um homem de uniforme percorre um dos lados em passo de marcha, voltando logo de
seguida do outro lado, sempre em passo de marcha, um ramo de flores no brao,desaparecendo com ele pela sada mais prxima.
Um skater, contornando um objecto imaginrio; de seguida, salta do skate, coloca-o
debaixo do brao e continua num passo lento e pensativo, tendo pouco em comum com o
patinador de antes; num abrir e fechar de olhos substitudo por uma silhueta de
sobretudo e chapu; deste ltimo, quando o transeunte o tira e sauda em repetidos
crculos, comeam a cair, sem parar, folhas secas; e do sobretudo, quando o desabotoa,
caem saibro e areia com rudo, e por fim mesmo algumas pedras, que ecoam no cho.
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Outra a figura que entretanto j vai traando outro percurso sobre o palco: molhada,
pingando como um nufrago que se vai arrastando de joelhos, levantando-se a custo e
lentamente, e desaparecendo de cena, cambaleando, ainda antes de se erguer.
Em seu lugar surge agora uma mulher jovem, com um vestido leve de empregada de
escritrio, uma bandeja com algumas chvenas de caf, descrevendo um breve crculo no
palco antes de meter por uma das sadas.
E h tambm um varredor de ruas que passa num outro sector do palco, empurrando um
carro com vassoura e p.
Pausa.A praa vazia iluminada.
Gritos de gralhas, como na alta montanha.
Depois, o de uma gaivota.
Um homem com culos de cego entra a tactear, sem bengala, anda s voltas e depois
pra, como que perdido, enquanto sua volta se gera um burburinho instantneo, vindo
de todos os lados: os passos de um corredor (que j h muito tempo vem a correr) ecoam
subitamente; um homem com ar tresloucado passa como um relmpago, voltando
insistentemente a cabea para trs, perseguido como um ladro, por um outro que oameaa de punhos cerrados; um homem que entra fazendo de criado de esplanada,
abrindo uma garrafa e atirando a carica para o meio da praa, para sair em seguida; de
novo a velha com o carrinho de compras, acompanhada de outra quase igual, s os carros
que so diferentes; ao mesmo tempo, um homem numa bicicleta de montanha,
levantando constantemente o rabo do selim; e ainda todo um grupo que atravessa a praa
em fila, a passos largos, balanando sacos de viagem, como rapazes passando de uma
carruagem para outra num comboio, ou uma equipa que saiu do autocarro e vai acaminho do campo de jogos; e ainda um outro que folheia o jornal ao andar, sem levantar
os olhos, fazendo crculos volta do cego, que ficou como que escuta no meio da praa
e agora agarrado pelos ombros por um recm-chegado que saiu de uma das ruas
laterais; o cego agarra-se a ele sem lhe mostrar a cara e sai pelo meio, apalpando
cuidadosamente o livro que o outro lhe meteu na mo.
No lugar que os dois acabam de deixar j anda s voltas um cami-nhante, de casaco
comprido cheio de p, uma mochila j antiquada e botas cardadas, to mergulhado na sua
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caminhada que a praa nem para ele lugar para uma pausa; subitamente, passa o brao,
estendido e pendurado, como que volta de uma cintura no ar, e depois faz o mesmo
com o outro.
Entretanto, uma mulher jovem, elegantemente vestida, atravessa a praa, com um martelo
numa das mos, um metro de carpinteiro aberto na outra e pregos na boca.
Pausa.
Uma folha de jornal desliza pela praa, e depois mais uma.
Um carro de brincar telecomandado irrompe de um dos cantos, avana para um lado e
para o outro e acelera para desaparecer de novo.Um papagaio de papel muito colorido desce em espiral, paira sobre a praa e soprado
para uma das ruas, tal como o papel de jornal.
O eco de um varo de ferro que caiu em qualquer parte, fora de cena.
Uma sirene no nevoeiro.
Um grito breve e indefinvel, e depois apenas o piar de pequenos pssaros, e um tropel,
que s pode vir de um bando de crianas correndo livremente por uma rua.
Algum vai cambaleando como um bbado, em diagonal, ao fundo da cena, entrando
progressivamente no crculo, primeiro com um zumbido, depois soluando alto, emseguida aos berros e finalmente de dentes arreganhados e rangendo.
A tripulao completa de um avio, com as respectivas malas, faz ao longo da praa uma
trajectria que parece previamente determinada, seguida de um idiota que, colado a eles,
os vai imitando com esgares desvairados, beijando o rasto dos seus ps, para no fim se
pr escuta no cho e desaparecer rastejando a quatro patas.
Enquanto isto se passa, j noutro lugar uma mulher jovem se afasta, tirando, enquanto
anda, um mao de fotografias de dentro de um envelope; olha para todas, umas a seguirs outras, pra, sorri, rasga um grande sorriso, continuando mergulhada na contemplao
de uma das fotografias, continua a andar at que, ao ver um transeunte indefinido que
vem do lado oposto e a acompanha no seu sorriso, fica de repente muito sria e
desaparece por uma das ruas com uma cara que parece uma mscara; o outro, porm,
continua sorrindo e atravessa a praa, imitado por um momento pelo idiota, que entra de
forma fulminante, com uma curva apertada e uma cambalhota, para desaparecer logo de
seguida, o que s contribui para tornar mais aberto o sorriso do outro.
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A passos muitos largos, vindo do fundo do espao, chega o jovem executivo com os
acessrios da praxe, pra a meio, mete a mo no bolso do fato, bate nos outros bolsos,
esvazia-os, primeiro para a mo, depois em cima da mala de executivo, e volta a meter os
objectos nos bolsos um a um, com cuidado, at ao fim, como num ritual: o leno de
assoar de cores garridas, os dados de jogar, uma lata de pomada vazia (com a qual faz
um rudo de tambores na selva), uma vieira, a calculadora de bolso, o cacete, a ma, a
meia de senhora, o mao de notas soltas, o harmnio dos cartes de crdito, a lanterna de
espelelogo.
Depois desaparece to depressa como entrou, a mo que segura a mala leva tambm a
ma.O varredor regressa com a sua vassoura, varrendo, enquanto os papis que vai
empurrando sua frente voltam logo a esvoaar atrs de si, e quantos mais ele varre
numa direco, mais passam por ele a voar e a cair, vindos da direco oposta,
esquerda e direita, por mais que ele d passos atrs e recomece a varrer; sem
interrupo, aqui e ali, avanando apesar de tudo e sempre activo, acaba por desaparecer
do campo de viso.
Finalmente, passa uma beldade que, no momento em que entra em cena, baixa as
plpebras e, consciente de que est a ser observada de todos os lados e jogando com isso- imperturbvel -, atravessa o palco pelo meio com um nico olhar que se prolonga,
apenas intuvel, pelo canto do olho: nem um gemido de gato, nem um arroto vindo de um
altifalante, nem a sbita buzinadela, nem sequer o ladrar irrompendo agora de uma das
ruas - imitado? -, tambm nenhum papel que agora fique preso entre as suas pernas, o
tijolo que cai sabe-se l de onde, nada disso a perturba ou inquieta, nem sequer o jacto de
gua que, por um momento, sai de uma rua e passa por cima dela; s ao sair da praa
volta a abrir os olhos.Uma rapariga vestida como uma vendedora de boutique d uma volta mais larga com
uma bandeja de caf, enquanto que um outro, um pedinte que terminou o seu dia,
atravessa a praa, contando as moedas que tem no prato e metendo tudo de seguida no
bolso do casaco.
Duas figuras indefinveis passam ento pelo quadrado, vindas de lados diferentes, uma
com um livro na mo, a outra com um po.
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Sem olharem um para o outro, um deles abre o livro quando se cru-zam, e o outro d uma
dentada no po.
Torna-se mais lento o andar do que l, e tambm o do outro que come; o que l levanta
depois os olhos por cima do ombro, enquanto aquele que come, olhando volta, sai da
praa.
A grande praa vazia na sua luz clara, e mais nada.
Aparecem mais dois personagens indefinveis.
Um deles pra e levanta a cabea, como quem chega a algum lugar, olha sua volta,
respira fundo, abana com a cabea, enquanto o outro j lhe acena para continuar a andar,uma e outra vez, at que o primeiro, dando uma volta sobre si prprio com todo o vagar,
o segue a alguma distncia.
Entretanto, ao fundo, um arteso ambulante, tocando uma sineta, segue o seu caminho.
Atravessa a praa uma mulher de leno na cabea e botas de borracha, carregando um
regador e um ramo de flores j murchas, mesmo podres, que atira, a grande altura, para
trs do cenrio.
No mesmo momento vem de uma direco completamente diferente outra mulher vestida
quase da mesma maneira, tipo velhinha, com uma foice, um ramo de chamios e umacesta enfiada no brao, a transbordar de cogumelos silvestres.
Uma terceira mulher, indefinvel, vestida de forma quase idntica, movimenta-se por um
terceiro caminho, sem nada nas mos, costas e pescoo muito curvados, o rosto voltado
para o cho, sem parar, mas quase sem avanar, enquanto atrs dela aparece um outro
caminhante, retardando cada vez mais o passo, como se o atalho fosse demasiado estreito
para ultrapassar, mas mantendo um olhar firme para a distncia, sem dar ateno
criatura mesmo frente das biqueiras das suas botas de montanha.De frente para estes dois, que continuam a andar sem quase sair do mesmo lugar, aparece
brevemente, como num intervalo para tomar flego, um homem vestido de cozinheiro,
tira umas fumaas apressadas do cigarro e desaparece de seguida do campo de viso.
Um outro surge, arrastando-se penosamente ao virar de uma esquina, carregando aos
ombros uma rede de pescador, enquanto o caminhante, de passagem, lhe tira da camisa
um insecto que a ficou preso, lanando-o ao ar para que ele saia voando.
Ouviu-se um trovo, e agora ouve-se de novo trovejar.
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E uma mulher passou a correr pela praa, e regressa agora, trazendo nos braos um
monto de roupa em desordem.
Como se nada se tivesse passado, um homem passeia-se pela praa de pernas abertas,
balanando as ancas e os ombros, com a estatura de um senhor da praa, seguido de
perto pelo, digamos, idiota da praa, que comea por imit-lo, para depois se pendurar
nele, primeiro o brao, depois a perna - saltitando sobre uma perna ao lado dele -, e por
fim fazendo cabriolas sua volta, de mos e ps no cho, como co que ladra, sem que o
dono da praa, no seu papel de algum que se sabe sozinho naquele vasto campo, acuse a
sua presena uma nica vez durante a sua ronda.
Enquanto isto acontece, por um caminho ao lado uma esttua vai sendo puxada, presa navertical a uma armao circular, e por um outro caminho lateral passa de novo um
indivduo que tapa os ouvidos para no ouvir a charamela de sirenes que vem da
esquerda e da direita, e que a certa altura cresce de tom e j um silvo de alarme
(imediatamente interrompido).
Como uma apario, passa rapidamente pelo palco um Papageno, de gaiola na mo e
vestido de penas.
A sua figura fica meio escondida atrs do que parece ser um pequeno grupo de
lenhadores a caminho, com machados e serras ao ombro.Uma mulher jovem anda atrs deles, meio desvairada, por todo o palco, com olhos
esbugalhados, a mo a tapar a boca; depois deixa cair a mo com um grito surdo,
envolvido como que pelo piar de pardais nos pases do sul e o chilrear de andorinhas no
vero e outros quaisquer sons de passarada.
A mulher cruza-se de passagem com um homem de bola na mo, depois com um japons
com uma mquina fotogrfica ao ombro, pronta a disparar, sem reparar nos que com ele
se cruzam, todo olhos para a praa que j captou com a objectiva, apanhando tambmaquela mulher que ia a sair chorando baixinho, mais um patinador, desta vez com uma
vela frente, e um enfermeiro que substitui o cozinheiro de h pouco, entrando para dar
uma passa e desaparecendo num abrir e fechar de olhos; depois da fotografia, o japons
recua imediatamente, e j algum lhe faz sinal para seguir viagem.
Em primeiro plano e ao fundo atravessam agora dois de cabea baixa, sem nada de
especial, a no ser talvez que o seu modo de andar tem qualquer coisa de atarefado.
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Pausa.
A praa est vazia, na sua luz clara.
Comea a ouvir-se um sussurro, torna-se mais forte, um rumor fundo que envolve a
praa e depois se acalma.
Um homem (ou uma mulher) de olhos vendados, s apalpadelas em pequenos crculos,
sai de uma das ruas para entrar logo numa outra e deixar de ser visto.
Um homem com uma pena no cabelo, como se tivesse ficado ali esquecida, pe a mo
em pala por cima das sobrancelhas, enquanto um outro vem ao seu encontro, de olhos
postos na sua prpria mo que, como tudo indica, foi ligada recentemente.
Com um certo intervalo, entram como diabos, vindos de lados opos-tos, dois corredores,em grande tropel, quase roam um pelo outro ao se cruzarem, sem se cumprimentarem
nem fazerem qualquer gesto.
O contrrio acontece quando se cruzam os caminhos de dois carteiros de bicicleta, e
tambm quando se encontram dois polcias de giro (soldados em patrulha?) em uniforme,
e ainda, mas quase sem se dar por isso, como que em segredo, quando passam um pelo
outro um homem e uma mulher.
Algum puxa por uns instantes atravs da praa um esquife leve e azul, dentro do qual se
adivinha uma figura branca, como mmia.Um outro, na pose do dono da loja de ombro na ombreira, aparece de um dos lados,
deixa-se ver assim durante algum tempo, e retira-se de novo.
Um pequeno grupo de excursionistas atravessa em diagonal, subdividido em: grupo da
frente, peloto e um nico atrasado, de cabea cada, passo arrastado, e que no se
apressa nem mesmo quando um dos outros leva os dedos boca e solta um assobio do
outro lado do palco; antes de sair, o atrasado pra mesmo um instante, deixa a cabea
descer sobre a nuca e desenha com a mo qualquer coisa como as figuras de vriospssaros em voo no ar, metendo a mo debaixo da roupa para se abanar enquanto anda.
Entretanto, passou, com o seu ar distante, a beldade de antes, ou outra, de brao dado
com o idiota da praa de h pouco, ou outro, que coxeia, saltita e rebola ao lado dela com
um sorriso rasgado; a mu-lher irradia um grande brilho pelo caminho, vindo dos adornos
espelhados que usa, da coroa na cabea at aos saltos altos; no meio disso, vai lanando
olhares atravs de uma folha de rvore esburacada, como se fosse um leque; e o idiota
sopra os seus beijos, da mo para dentro do crculo, de onde sai logo uma freira de negro,
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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rosto invisvel, numa das mos uma mala de viagem em plstico, na outra um embrulho
atado, que desaparece noutra direco, nas costas dos dois.
Algumas figuras indefinveis voltam depois, durante algum tempo, a povoar a praa,
como quem anda atarefado.
Passa um homem com uma rvore.
Outro surge de baixo, das profundezas, com capacete de trabalhador dos esgotos, e
desaparece da mesma maneira.
Sado tambm de baixo e ao fundo, como de uma vala ou de um fosso, aparece mais um
par, como se estivessem l h muito tempo juntos, e afastam-se na luz da praa,
abraados um ao outro, lentamente, numa espiral que se abre, voltando-se sempre paraolhar para o lugar de onde vieram.
Fez entretanto uma breve apario um homem vestido como um gangster, de mos vazias
e com jogos de dedos, que agora empreende uma rpida retirada, ambas as mos
carregadas com sacos de hipermercado dos quais espreitam pontas de hortalias.
Igualmente apressado, passa algum acorrentado e descalo, escoltado por duas figuras
indefinveis, civil.
Durante a curta passagem, o acorrentado procurou com os olhos espectadores por todo o
lado, mas logo depois dele entra talvez novamente a (ou uma) beldade, que atrai sobre sitodas as atenes pelo modo como se movimenta pela praa, desta vez arrastando-se,
com uma barriga muito espetada, como em fase avanada de gravidez, completamente
sozinha, uma carta na mo, na qual ainda cola um selo medida que vai andando.
Pessoas indiscriminadas, velhas, novas, homens e mulheres, formam depois a sua
comitiva, dirigindo-se, a partir de diversos pontos, para um centro invisvel para l da
praa, todas elas com objectos postais diversos que vo virando, alguns escrevendo
neles, colando-os, voltando a l-los, observando os bilhetes postais; uma delas, de mosvazias, regressa ainda cena e dirige-se para outro lugar; uma mulher continua por uma
das ruas laterais, e um homem, regressando por um momento, desce para um subterrneo
ao fundo da praa.
Enquanto isto se passa, um outro passou como um meteoro noutra zona, quase despido;
em primeiro plano passa outro, de fato-macaco com uma corda grossa atada cintura, um
saco de marinheiro ao ombro, que pousa no momento em que entra, para lhe meter
dentro um enorme globo terrestre, que se acende de dentro do saco enquanto ele continua
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a andar, tentando de vez em quando iniciar um discurso incompreensvel que se vai
dissipando em murmrios e sussurros.
Dois caadores transportam um terceiro numa maca feita de ramos verdes.
Depois, um par passa simplesmente, sem destino e com destino, um deles transformando-
se a meio do percurso de algum sem destino em algum com destino, enquanto o seu
seguidor, muito consciente do seu destino, subitamente perde de vista esse destino.
E novamente se ouve um sussurro por toda a praa.
Um homem vestido de empregado de mesa faz uma curta entrada e espalha pela cena
pedaos de gelo que tira de um balde.
Pausa.
A praa vazia na sua luz clara.
Uma nica folha cai l do alto, como folha de rvore no vero.
Um tiro e os seus ecos, repetidas vezes.
Um homem entra na praa, com um aparelho ptico fantasmagrico nos olhos, como se
viesse de um oculista, experimenta a viso e volta a recuar.
Noutro lugar, uma mulher atravessa, um cesto pendurado na curva do brao, com mas
da primeira colheita, tira uma e d-lhe uma dentada enquanto vai andando.Um guarda da praa - o mesmo ou outro? - entra por um instante dando uma curva,
lavando o cho com uma mangueira.
Guiado por algum com uma sombrinha levantada, entra um pequeno grupo de turistas,
figuras curvadas, gente do campo, de fatiota escura festiva, na sua maioria pessoas de
idade; param todos de repente e soltam, como que sob o efeito da luz crua da praa, um
grito de espanto em unssono, que repetem sada, agora de boca fechada e como se
fosse uma zunida, voltando-se lentamente, curvados e em crculo, como se o som sedirigisse ao guia, que assiste a tudo quedo e mudo.
E novamente um homem e uma mulher se dirigem um ao outro vindos de longe, o
homem baixando logo a cabea, a mulher mantendo-a erguida; pouco antes de se
cruzarem, o homem levanta por um instante os olhos, olha a mulher de frente, mas esta j
tinha virado a cara no momento anterior.
Duas beldades, corredoras de marcha - disciplina desportiva - com equipamento a
condizer, passam num instante, com movimentos sincopados.
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Uma mulher candidata a executiva moderna, com uma malinha transparente onde se v
isto e aquilo, vai estudando um dossier enquanto anda, apertando na mo o telemvel
com a antena de fora; o telemvel acaba por cair ao cho; a seguir, depois de ela se ter
curvado a contragosto, a mala abre-se e os objectos caem; a seguir, depois de ela, irritada
e bruscamente, os apanhar, tropea ao dar mais um passo, sorri de repente de forma
indefinvel, o que se intensifica medida que ela se concentra de novo no dossier
continuando a andar e, quando agora tropea mesmo a valer, tenta amparar-se, quase cai,
e depois de soltar um grito de dor e raiva, d uma gargalhada ribombante enquanto vai
saindo.
Outro caminhante, chapu numa das mos, livro na outra, cabea baixa, passa enquanto,sem se dar por isso, um outro par de corredores entra em passo de corrida, fazendo ecoar
toda a praa; ensanduichando, ao ultrapass-lo, aquele que vai a passo, tiram-lhe ao
mesmo tempo os dois objectos das mos, sem sequer - porque j desapareceram, depois
de um breve movimento para cima e para baixo - se voltarem para trs, enquanto o outro
agora cospe para o cho solenemente, se curva, continua a andar e, saudado pela mo
erguida do corredor que vem atrs dos outros, levanta tambm a mo para retribuir o
cumprimento.
Enquanto ele ainda vai deambulando, j um agrimensor montou nas suas costas o seuteodolito, espreita, acena ao seu companheiro invisvel, fora da praa, para se desviar
para a esquerda, para a direita, diz-lhe que est bem levantando o polegar, e j
abandonou de novo a praa.
Um homem velho, quase centenrio, munido de uma antiga chave de porto, deixou-se
ver na periferia da cena muito brevemente.
E igualmente um outro homem, poderia ser o japons de h pouco, que, apoiado numa
bengala de montanha, leva s costas uma mulher de cabelos brancos; um jovem com umleque de palmeira ou fetos; dois ou trs que, ao passar, vo bebendo de cantis; um
homem vestido de Moiss, regressando do Sinai com as tbuas da Lei; um outro, de
andar indolente, pra subitamente a meio em posio de "en garde" e bate com os taces;
um pequeno grupo em traje festivo preto e branco, vai andando e tirando dos cabelos
gros de arroz; e mais uma beldade que, a princpio s visvel de costas, subitamente se
volta para... mim!
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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De modo igualmente sbito irrompe pela praa, no meio da cena, um novelo, a princpio
danando sapateado, acompanhado por muitas vozes que soltam latidos, berram, uivam,
tremem, chiam, rebolando-se pelo cho; no se trata de vrios seres, nem sequer de dois
que lutam um com o outro, mas de um nico que se debate com a morte, numa agonia
que por fim termina; o novelo estica-se, os objectos que foi perdendo na sua luta
espalhados sua volta, os sapatos a seu lado.
O moribundo foi sendo imitado, nos seus estertores, pelo idiota da praa, que entrou
cheio de salamaleques.
Silncio.
Entram a correr dois homens de bata branca, com uma maca;alguns movimentos rpidos,e o moribundo j vai de sada, com os seus poucos haveres.
Um par, a princpio separado, testemunha a morte, abraa-se agora; caem um sobre o
outro, saltam um sobre o outro enquanto saem apressadamente.
Um outro, totalmente a leste do que se passou, vai ainda deambulando pelo lugar.
A praa, sem mais, na sua luz clara.
Volta a ouvir-se o restolhar outonal.
Passa um homem vestido de jardineiro, um ancinho a fazer de cep-tro, arrastando atrsde si um saco de feno de onde caem alguns tufos.
Parte de uma trupe de circo - um arauto, uma artista que faz um nmero qualquer, um
com gestos de malabarista, outro de palhao, com um macaquinho ao ombro, um ano -
d uma volta praa como na arena, a meio caminho completada pelo idiota da praa
que por um instante vai atrs do grupo e no seguinte j est outra vez sozinho e sai meio
perdido.
Mais uma beldade que se pavoneia pela praa, seguida por uma outra que anda maisdepressa e que de repente desata a correr, d uma violenta pancada na cabea da que est
sua frente e foge logo para uma das ruas laterais; a primeira ficou parada, agarrada
cabea.
Enquanto ela assim fica, entra mais um homem de patins, avanando com bastes de
esqui, arranca-lhe a mala de mo ao passar e deixa-a a dar voltas sobre si prpria.
Enquanto ela j est outra vez imvel, passa algum com um cavalete, chapu preto em
bico e indumentria do sculo XIX, um outro mostra-se, com mscara de fauno, saindo
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de uma rua lateral, dois outros vo passando uma bola um para o outro com os ps, mais
uma velha passa com o carrinho de compras, que agora j faz uma chiadeira
insuportvel, cheio de sacos de plstico todos rasgados, l atrs um outro lana-se pelos
ares como Tarzan sobre a clareira, outro atravessa a cena em roupo com um balde de
lixo, vem-se de novo alguns dos que vo ao correio deitar cartas.
Um homem chega-se sorrateiramente beldade, vindo de trs, pronto a saltar, mas acaba
por lhe tapar docemente os olhos com as mos, depois do que, sem que ela se volte para
ele, pega nela com a mesma delicadeza sob os joelhos e por baixo dos braos, levando-a
para fora da praa.
Ouve-se a mulher soltar um fundo suspiro.Passa um homem de braos nus, cheios de relgios at acima dos cotovelos.
Dois ou trs com pesadas roupas de inverno, com malas e almofadas, encontram-se com
dois ou trs outros todos ligeiros, com roupas garridas de vero.
O caminho dos dois grupos foi interrompido a certa altura por um carro elctrico com
rodas de borracha que se atravessou fazendo uma curva; no carro vo dois homens de
bon transportando um caixo, atrs do qual segue o idiota da praa, num passinho curto,
de mos cruzadas frente, a acompanhar o funeral; na sequncia disso, os dois grupos
trocam de roupa sem constrangimentos, como se tudo estivesse previsto h muito,seguindo cada um depois o seu caminho.
Entretanto, algum lanou um vu a esvoaar para dentro da praa, logo seguido por uma
mulher nova com vestido de noiva, mas claramente ainda em prova, que procura
qualquer coisa, encontra, desaparece.
Durante todo este vaivm, mas agora em pezinhos de l, ouve-se de novo a toda a volta
da praa o tropel de crianas em corridas, com os respectivos gritos e exclamaes.
Um qualquer passa agora por outro qualquer, olha hesitante, o outro faz o mesmo, ficampetrificados a olhar um para o outro, reconhecem-se, enganaram-se, abanam as cabeas,
fazem um largo desvio, continuam a olhar fixamente um para o outro e seguem caminhos
diferentes, abanando a cabea.
Como que por acaso, e enquanto os dois ainda estavam em cena, um terceiro, abanando a
cabea descontente, atravessou o palco noutro lugar; mas, medida que vai andando
cada vez mais devagar, passa a acenar com a cabea dizendo que sim, depois novamente
que no, a seguir outra vez que sim, tambm sempre mais devagar, de cada vez com um
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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ar mais solene, e assim por diante, at que, no fim da sua passagem pelo palco, um gesto
exprime o mesmo que o outro.
Durante todo esse tempo nem olhou para o velho aperaltado com roupa de casa em estilo
oriental, muito enfeitada, quando este, de brao estendido para a luz, regressa a casa com
um rapaz andrajoso, coberto de lama e quase incapaz de andar, indo ao encontro desse
filho prdigo que antes a cada passo para a frente acrescentava outro para trs, enquanto
aparece um terceiro, vestido de servo, com um cordeiro no brao, que se adianta ao par
anterior.
Mal eles desaparecem nas respectivas ruas, segue-se-lhes, com os culos puxados para a
testa, o dedo enfiado em qualquer coisa como um manual, o idiota (ou o senhor) dapraa, imitando-os, muito en-tusiasmado, ora a um ora a outro, desordenadamente, e
acompanhado distncia por um outro que leva na mo uma maqueta reduzida da praa
iluminada, feita de madeira ou carto; vem juntar-se ainda aos dois uma terceira pessoa
que traz num dos braos um manequim de montra, na outra um monte de fatos; em
menos de nada desaparecem todos.
A praa vazia na sua luz clara, envolvida num marulhar intermitente, como de
rebentao numa pequena ilha.O assobio de uma marmota, o grito de uma guia.
Breve, fantasmagrico, o canto estrdulo de uma cigarra.
Duas figuras empurram um pequeno carro de taipais gradeados, sobre o qual transportam
uma coluna inclinada.
Um homem segue uma mulher, e logo a seguir, como se os dois tivessem dado
rapidamente meia volta fora da praa, uma mulher segue um homem; barra-lhe o
caminho, ele desvia-se, ela volta a barrar-lhe o caminho e, quando ele tenta passar,agarra-lhe a capa, ele solta-se e sai, meio nu, enquanto a mulher, sem sequer o olhar,
mos-tra a pea de roupa a um terceiro que entra vindo de outro lado, ao que o recm-
chegado persegue o primeiro heri a passos largos, a mulher logo atrs, cruzando-se a
meio caminho com um pequeno grupo de caminhantes de uma terceira idade bem
conservada.
Um outro velho, sozinho, vem ao encontro deles, tambm de bengala, com a qual se atira
ao grupo sem aviso, que apara imediatamente os golpes com as suas bengalas; gera-se
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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uma luta de esgrima que dura at que o solitrio pe em fuga os seus opositores e segue
o seu caminho, lacnico.
Durante algum tempo parece que a praa s atravessada por gente muito velha, sempre
os mesmos e sempre na mesma direco, os mesmos que entram por um lado e saem pelo
outro num crculo sem fim, umas vezes como estivessem numa fila que avana muito
lentamente, outras como se se tratasse de um cortejo solene de dignitrios com as suas
togas, outras ainda como gente do campo, com grandes braadas de espigas, garrafes de
vinho, rstias de maarocas de milho, uma procisso de graas pela colheita; outras vezes
parecem mais veteranos, com tudo o que prprio deles, e finalmente apenas velhos
isolados, cada um por si, agitados ou nem tanto, ultrapassando-se uns aos outros evoltando a encontrar-se, um ou outro desviando-se para o lado e, enquanto os outros
continuam s voltas, patinhando margem, nas margens da cena, arrastando um p atrs
do outro, empurrando outros para o lado, parados, procurando uma parede, uma cornija
para apoiar a cabea, os braos, os ps, mais a bengala, depois tremendo da cabea aos
ps sem sair do lugar, rosto impassvel, que parece ainda mais parado e branco quando
agora, vinda de uma das ruas, se ouve uma gritaria de criana, deixa de se ouvir, volta a
ouvir-se, gritos de terror e desespero que abafam at a agitao de passantes que
comeam a atravessar a praa, transeuntes vrios, entre eles uma equipa de filmagensque descontraidamente se instala em cena e que, ao passar, faz seu o lugar com todos os
que j l estavam mais os que vo passando, embora seja evidente que este no o lugar
em que o filme vai ser rodado; e no meio de uma tal confuso e tumulto treme no
horizonte ao fundo, acompanhada pela gritaria das crianas, a ltima cara de lua cheia da
roda dos velhos, mas to calmamente que no meio do tremor geral se distingue bem o
levantar sbito da cabea de cada um em busca dos olhos que, neste jogo de empurra,
talvez se encontrem com os seus - sem xito (ou ento no so os olhos que seprocuravam).
A este episdio juntam-se logo alguns outros, breves, de tal modo que de repente j s
atravessam a praa rapazes novos, s curvas, cruzando-se uns com os outros; depois,
apenas homens; e a seguir apenas as mulheres.
Depois, seguindo cada um o seu caminho, passam a correr um homem vestido de mulher
e uma mulher vestida de homem; na correria perdem, um a seguir ao outro, algumas
peas de roupa, apanham-nas atabalhoadamente, continuam a correr.
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Um outro passou entretanto, jovem ao entrar e j velho ao regressar, o que se reconhece,
no tanto pelo andar como pela pele e pelos cabelos, e noutro lugar (a criana j h muito
tempo que se acalmou) deambulam fraternalmente na luz dois adolescentes, tambm
vestidos com roupas orientais, um deles com um grande peixe pendurado num gancho,
enquanto que ao mesmo tempo, mas j noutro lugar, Eneias carrega s costas o seu pai
velho, atravessando a praa com um manuscrito enrolado na mo, a arder e a deitar
fumo.
Pausa.
A praa brilha de vazia.Rudo tpico do escape de uma nica motocicleta, invisvel, e depois o de um hlice
sobre a praa.
Em seguida, de novo o sussurrar a toda a volta.
Volta a aparecer num sector da praa um homem vestido de Papageno, mas em vez de
penas agora aparece coberto de conchas tilintando; a gaiola que traz na mo est vazia e
de portinhola escancarada.
Uma figura indefinvel, com a mo debaixo do casaco inchado, segue-o, e Papageno
volta-se repetidas vezes para trs, o outro move-se como colado a ele, descrevendo deforma igual cada curva e cada ziguezague.
S quando ele pega numa ma, d uma dentada enquanto anda e tira do casaco um
pacote de fraldas, o homem das conchas volta a olhar para a frente e at vai dando
umas voltas sobre si prprio, brincando aliviado.
Mas o seu seguidor aproxima-se num pice, amarra-lhe as mos atrs das costas, d-lhe
um golpe na nuca com o pacote de fraldas, deitando-o ao cho, onde fica imvel,
enquanto o outro segue, comendo a ma ruidosamente e balanando o pacote de fraldas.Enquanto Papageno, de gaiola no punho tenso, se arrasta atrs dele, entra em cena mais
um caminhante, levando cabea um tronco de rvore lavado da chuva, de razes para o
ar; depois de olhar em volta, descarrega o tronco e senta-se nele, com as razes a fazer de
ps do banquinho.
Enquanto desdobra um mapa, alguns outros irrompem pela praa, soldados que, uns
momentos depois, agora em menor nmero, voltam a atravessar a praa vindos da mesma
direco; por fim, aparece no mesmo lugar um outro, transformado em fugitivo,
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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esbaforido, lanando a cabea para um lado e para o outro, abre inesperadamente os
braos como se tivesse chegado ao lugar que procurava, d a volta a este tranquilamente
e junta-se depois ao que est sentado no tronco, antecipando por assim dizer o desfile
dos dois grupinhos seguintes: um deles puxa uma tenda de beduno, o outro transporta
num carrinho de mo um monumento feito em cacos; entretanto, o caminhante tirou os
sapatos, volta-os e deixa escorrer a areia e o saibro por entre os dedos.
Uma mulher voltou entretanto a entrar em figura de grvida, com um carrinho de
supermercado cheio, desta vez acompanhada por um homem; o par abranda o andamento
e pra sob a luz, abraa-se como mandam as regras - enquanto isto, a mulher continua a
empurrar o carrinho para l e para c sem sair do lugar.Quando, por fim, continuam a andar, a mulher agora com um cesto cabea, tapado com
um pano branco, o homem empurrando o carro a uma certa distncia, volta a aparecer um
homem que vai passeando com uma maqueta sobre a mo estendida: desta vez, em vez
de uma miniatura da praa, uma enorme maqueta de um labirinto clssico cujos
contornos o homem tenta reconstituir em andamento.
Enquanto ele prossegue a sua dana num movimento anguloso, j o prximo entrou,
novamente um homem com um tapete ou uma alcatifa enrolados; quando ele agora
desenrola o tapete, em diagonal atravs de toda a praa, v-se que se trata de um atalhono campo, com as marcas do rodado de um carro no barro amarelado e uma fita verde de
erva ao meio; os dois que tinham chegado primeiro deram--lhe uma ajuda rpida,
pisando o atalho na ponta, antes de voltarem a sentar-se.
Depois de terminado o trabalho, o homem do tapete sentou-se de pernas cruzadas beira
do caminho, a uma certa distncia dos outros dois.
Os primeiros a usar o atalho so Abrao e Isaac, o pai um passo atrs do filho, que vai
empurrando sua frente, pondo-lhe a mo no ombro, enquanto a outra segura, atrs dascostas, a faca do sacrifcio; so seguidos por um par indefinvel, que se transforma de
repente num rei com a sua rainha, pelo "velho agiota" que, por pouco tempo, se
transforma num que d saltinhos a andar, pelo heri do Oeste que, parando, se
transforma num coxo de muletas, num que d estalidos com os dedos, num que bate o
ritmo, num maestro de batuta imaginria, num que abana a cabea, que por sua vez se
transforma subitamente num que escreve de forma calma e regular, servindo-se do bloco
de notas que tira de baixo do brao, e depois num prestidigitador, quando, voltando a
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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guardar o bloco, faz aparecer uma bola de cristal de rocha que nesse instante absorve em
si toda a luz da praa; a magia acaba logo, por aco do prprio mgico, com o estoiro
produzido pelo rebentamento de um saco de papel.
Pausa.
A praa iluminada, com as figuras de antes, no tronco de rvore, beira do caminho.
A toda a volta ouve-se agora um chapinhar, como de peixes saltando, e um forte
zumbido ergue-se nos ares, como um enxame de abelhas no vero.
Um homem, mala de caixeiro viajante na mo, irrompe pela clareira, e de repente j no
tem pressa nenhuma, vai deambulando para o lado, junta-se ao que est sentado beirado caminho e acocora-se a seu lado.
Isaac regressa, salvo, Abrao segue-o de mos vazias, morto de cansao.
Enquanto eles se deitam a uma certa distncia dos outros, o pai com a cabea no colo do
filho, na parte invisvel da cena passam de novo crianas, reconhecveis pelos gritos e
chamamentos ininterruptos, e um homem vem-se aproximando de joelhos; depois pe-se
de p, sacode o p das pernas e vai postar-se em qualquer parte.
O idiota da praa volta a entrar sorrateiramente e percorre com os olhos, de baixo para
cima, cada um dos presentes, recua depois em bicos de ps, enquanto entra outro, o"louco dos livros", fazendo incidir continuamente a luz sobre o livro aberto e andando
assim para l e para c, e um segundo, saltitando por outro caminho, como que passando
de pedra em pedra no vau de um rio, parando agora na margem para olhar para trs; por
um terceiro caminho vem um casal de velhos lambendo gelados.
Por instantes ningum mais passa pela praa; todos param, deixam de estar activos,
ficando de p, sentados ou deitados, e o mesmo se aplica aos que se seguem: dois que se
agarram como lutadores espera do golpe e de repente se separam calmamente; outroque entrou fazendo o gesto dos vencedores, de braos no ar, para os deixar cair assim
que entra; outro que entra a correr, com um nmero no peito, e o nmero cai assim que
ele pra; uma mulher que, quando d o primeiro passo na luz, parece ter ressuscitado dos
mortos, mas logo comea a dar cambalhotas, para discretamente se perder entre as outras
figuras; um homem com neve nos ombros e no chapu e que, quando j quase atravessou
a praa, pra e regressa decidido para o centro, tirando o chapu, sacudindo a neve e
andando cada vez mais devagar e dando passos cada vez mais pequenos.
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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Por fim entrou ainda, tropeando, algum em fato-macaco azul, de aprendiz, fazendo
rolar uma roda de carro - ou ser uma roscea de vitrais em azul de Chartres, que agora
refracta a luz em vrias direces? -, quando chega ao centro d meia volta com a roda,
regressa j sem ela, procura o seu lugar junto dos outros, mas sem nunca o encontrar -
esta cena do no-encontrar-o-seu-lugar torna-se cada vez mais dramtica, at que por fim
o idiota, alis chefe, alis senhor da praa o manda sem cerimnias para um lugar
qualquer (nunca ningum esteve to claramente no seu lugar), e, depois de o arrumar
assim, tira a mscara e ocupa um lugar entre os outros, transformado em No-sei-quem.
Pausa.A praa na sua anterior luz clara e depois, espalhados, distanciados ou bem juntos,
deitados ou de p, de ccoras ou sobranceiros aos outros, a totalidade dos heris.
Volta a ouvir-se a toda a volta o sussurro ou o soprar do vento, a que se segue um som de
estalidos que se prolongam em diagonal da frente para o plano de fundo, como quando
um lago comea a gelar, a que se segue o som montono do trinar de grilos, a que se
segue silncio.
Por um longo espao de tempo, a seguinte cadeia de acontecimentos: um frmito
apodera-se de todos ao mesmo tempo, um terror simultneo, que se repete, que se repetemais uma vez, depois um sobressalto, por fim um estremeo seco.
Um deles d bofetadas a si prprio.
Outro convida uma das mulheres para se sentar ao seu colo, e antes que d por si j ela
est em cima dele.
Outro vira o casaco do avesso e transforma-o em fato de cerimnia.
Um engraxa os sapatos ao outro, um homem procura apoio e encosta-se a uma mulher,
outro esgaravata delirantemente o cho.Um homem, que parece estar espera de alguma coisa, v um se-gundo juntar-se a ele,
um terceiro vem juntar-se aos dois e faz tambm o papel de algum que est espera.
Um homem e uma mulher levam a mo ao sexo um do outro.
Um homem corta uma madeixa de cabelo, outro rasga a camisa no peito enquanto vai
andando, outro raspa a merda de co que ficou presa ao sapato, uma mulher atira uma
chave outra, e esta pe-se a saltitar com ela.
Um homem belisca outro ao passar.
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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Um deita-se no cho de barriga para baixo e pe-se escuta, e outro imita-o.
Um dos homens parece desistir da espera, e quando j comea a afas-tar-se trazido de
volta ao seu lugar por um outro.
Um homem procura qualquer coisa, dobrado, depois de gatas, um outro ajuda-o a
procurar, na mesma posio, um terceiro junta-se a eles, atravessa-se-lhes no caminho, e
num lugar diferente tambm algum comea a procurar qualquer coisa, enquanto aquele
que comeou vai encontrando isto e aquilo e olhando luz as coisas que encontra sem as
ter procurado, e um dos seus companheiros de busca encontra qualquer coisa que
pensava perdida para sempre, e que beija e aperta ao peito.
Um homem deita gua do cantil sobre a cabea de outro que est dei-tado.Um homem anda para l e para c na figura de Peer Gynt, descascando uma cebola.
As pessoas que esto na praa olham cada vez mais umas para as outras, no, observam-
se umas s outras: um homem, que de repente ficou louco, berrando desvairado, acalma-
se simplesmente porque algum olha para ele, tal como uma mulher que desata a soluar
e a gritar e o homem que assobiava desalmadamente; aqueles que os olham fazem-no
enquanto se vo aproximando.
E tambm pode acontecer que todos eles fiquem simplesmente ali, uns olhando-se,
outros escutando-se, e transformando-se no outro ao se olharem assim, e isto por toda apraa.
Um homem passa por todos os outros com um sinal de reconhecimento, primeiro flores,
depois um livro, em seguida uma fotografia: seguem-se vrias negas com abanos de
cabea, um encolher de ombros, um abanar de cabea definitivo, e por fim,
inesperadamente, o sim silencioso e um abrao desajeitado.
De forma igualmente desajeitada, dois dos que continuam procura de qualquer coisa
do uma cabeada um no outro, um homem pega noutro que est no cho, ofegante, eanda com ele, ofegante, s voltas, uma mulher acaricia um homem de tal maneira que lhe
desfigura grotescamente a cara.
E ficam todos novamente simplesmente ali, com olhos cada vez mais cerrados.
Grasnar de corvos e latir de ces, acompanhados de um som distante e cavo.
Desaba uma trovoada, alta, sobre a praa, com troves que estalam, sem que isso faa
mexer um nico cabelo dos que esto c em baixo.
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Depois ouvem-se a toda a volta do palco gritos de dor e lamentaes, aqui uma criana,
ali um elefante, acol um porco, um co, um rinoceronte, um touro, um burro, uma
baleia, um surio, um gato, um ourio, uma tartaruga, uma minhoca, um tigre, o leviat.
Depois, nada (se) passa a no ser as cores de cada um: das roupas, dos cabelos, dos
olhos.
Enquanto isto, um homem observava outro.
Dois aquecem as mos um ao outro debaixo dos braos, um assusta-se ao ver que aquele
que vem ao seu encontro o seu duplo, um outro, desesperado, procura aquele que o
observa e, tendo-o encontrado, pode representar o seu papel nessa situao, um outro
segue cada folha que vai caindo lentamente e estremece de cada vez que uma toca nocho.
Todos juntos formam com os seus corpos, no meio da praa, uma escada de exterior, o
que est deitado no topo levanta-se de repente e desce, enquanto se ouve o repicar de
sinos, vindo das profundezas por baixo deles, quase inaudvel, ora metlico, ora cheio,
ora longe, ora perto, ora puro, ora distorcido, e todos eles, levantando-se, dobrados, de
mos nas coxas, se pem escuta, uns encantados, outros carrancudos, uns gozando,
outros sofrendo.
Ao som dos sinos, duas silhuetas em trajes africanos sumptuosos entraram e pararam aofundo da praa, apenas com o tronco vista, num barco invisvel em que s se viam os
remos, convidando mudamente os presentes a entrar na sua canoa.
Ningum aceita, embora se sinta novamente um estremecer de todos nessa direco.
Os dois afastam-se enquanto os sinos submarinos continuam a tocar, cada vez mais
longnquos.
No ltimo momento, o aprendiz do fato-macaco azul desata a correr atrs deles, mas
estende-se logo ao comprido, porque um dos outros lhe passou uma rasteira.Fim dos sinos, fim do sonho.
Um acena a dizer adeus, depois outro, ainda outro, e por fim todo o coro.
Pausa.
A praa, a luz, os contornos.
Um homem, muito velho, de olhos esbugalhados, para quem a pouco e pouco todos os
outros se voltam, aproximando-se, olhando-o de longe.
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Subitamente, ele sorri para o crculo sua volta.
Silncio.
E eis que faz meno de comear a falar, ganha balano, faz dese-nhos com as mos que
marcam o ritmo, com os braos que se elevam para o cu, mexe os ombros, balana com
a cabea, ensaia a fala com os lbios silenciosos, as narinas alargam, as sobrancelhas
arqueiam-se, de vez em quando at as ancas gingam, tudo para preparar o discurso.
At os mais distantes ficam muito atentos.
Este ou aquele dos espectadores parece compreend-lo de antemo, acena com a cabea,
volta a acenar, soletra com ele, que j murmura, como que para comear, volta a
murmurar em vrios tons.De repente fica calado, como se finalmente fosse comear a falar, mas continua calado,
perde a expresso, deixa que o vejam assim.
Uma mulher aproxima-se dele com uma trouxa, como se fosse um recm-nascido,
deposita-a nos braos estendidos do velho, e este, olhando para a trouxa, os olhos em
alvo, transbordante de alegria e de jbilo, sem palavras, gaguejando e exultando.
E novamente este ou aquele dos seus espectadores acena com a cabea, sempre como se
antes ele tivesse dito qualquer frase; alguns j comeam a sair e acenam com a cabea ao
passar por ele.Mas s se assiste a um cortejo geral, fazendo um grande arco volta da praa, quando o
velho comear a bater palmas no centro da praa, repetidas vezes, depois do que,
exteriorizando mais alguns fragmentos do seu jbilo e da sua alegria, se integra no
cortejo com o recm-nascido nos braos, enquanto da trouxa vai saindo, com intensidade
crescente, um piar que se repete, como de passarinhos abandonados, ao qual se volta a
juntar o sussurro a toda a volta da praa; antes, um velho to velho como este massajou-
lhe as fontes, como que para o pr em forma.Depois disto, tudo se precipitou: depois de um dos homens passar ainda pela erva da
savana no atalho, para se despedir, este foi logo enrolado; tambm o tronco com raiz,
empurrado de passagem por vrias mos e vrios ps, j desapareceu nos bastidores; um
homem que, olhando por cima do ombro, hesita ainda perto da sada, projectado para
diante por um pontap no traseiro, dado pelo que vem atrs; aquele que ficou a ver as
folhas cair, agora faz isso a correr; aquele que ficou com o p preso numa espcie de
armadilha, precipita-se muito mais para a tirar e sai a correr com ela no p.
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Torna-se agora evidente, enquanto todos se vo dispersando em todas as direces, como
um sai irritado e desiludido, deitando a lngua de fora e cuspindo; outro serenamente
desencantado, encolhendo os ombros; uns mais aliviados por terem sado do sonho,
outros continuando a persegui-lo, meio sonmbulos; uns comeando a chorar, outros a
rir; um beija o cho antes de sair, outro desenha o caminho no ar antes de se ir embora,
como um esquiador antes da largada para a prova de slalom; um toma claramente
balano, outro abre e fecha as mos como um halterofilista antes de levantar os pesos, e
desaparece logo com todos os seus haveres; destaca-se tambm, isoladamente, cada um
dos que se vo dispersando, roupa de vero a adejar, tocada por alguma coisa que
esvoaa, um pedao de papel, um saco de plstico, uma nuvem de p de carvo - eentretanto comeam a ouvir-se, vindos vagamente de outras praas para l da praa, os
sons de fogo de artifcio que se transformam em acordes e depois se dissipam.
Pausa.
A praa clara e vazia, na sua luz de recordao.
O breve instante da borboleta (ou falena).Qualquer coisa atada entra, pairando, presa a um pra-quedas em miniatura.
Atrs dela vem logo outra vez o guarda, alis varredor, da praa, pu-xando um carro
carregado de tubos metlicos de barracas de mercado, que rangem, ao lado de um
contentor de lixo; na outra mo traz uma vassoura grossa com a qual, ou empurra sua
frente uma parte dos objectos que encontra no cho (incluindo o embrulho do pra-
quedas), ou ento, voltando-a ao contrrio, espeta-os com o cabo pontiagudo, para os
deitar no lixo: alguns frutos - um morango gigantesco -, o cadver de um pssaro, umlivro meio desfeito, uma cabea de peixe; ao empurrar sua frente o que encontra, e
parando por um instante, varre com a vassoura os prprios sapatos.
Entretanto, mais uma beldade passa em primeiro plano pela praa, mostrando durante o
longo percurso um sorriso voltado para dentro, mesmo quando, ao andar, vai
endireitando as meias todas torcidas; ao fundo, atravessa de novo um homem com uma
escada, to graciosamente que o objecto l atrs quase desvia as atenes da beldade que
vai frente; um homem, bbado ou ferido, entra de novo cambaleando, com os
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atacadores, superlongos, soltos; de novo um homem vai descrevendo crculos com um
livro aberto na mo, enquanto outro anda a seu lado, lendo do seu livro e virando as
folhas ao primeiro, e noutro lugar algumas pessoas passam, erguendo num pau, como
espantalho, algum que vo queimar em efgie.
Grito de coruja em pleno dia; um homem que chora em silncio, andando, depois
ganindo e gesticulando; um outro todo curvado, carregando-se a si prprio com cada vez
mais tralha e partindo assim com um sorriso de alvio, um outro que entra e sai com um
ramo entre as pernas; um outro ainda que passa com a maqueta de uma ponte, que
compara com a praa; a Morte transportada numa liteira; o caador transporta, num
frasco, o "corao de Branca de Neve"; o Gato das Botas pavoneia-se no palco; farraposde papel queimado caem do cu; uma mulher com roupa que foi buscar lavandaria,
dentro de um saco de plstico; pastores que regressam a casa com botas de borracha; um
transeunte com um girassol; uma mulher que ao passar deita fora o molho de chaves; a
beldade com um pau de avelaneira; um resfolegar monstruoso, e depois passa um
corredor minsculo; transporte de um porto enfeitado com grinalda de flores; um
general avana com sapatos de criana nas mos; algum com um mapa do firmamento,
outro com um pedao de carto dobrado sobre o nariz; o senhor, ou guarda, da praa
empurra de novo o carro, a vassoura e a p servem-lhe de ceptro; um homemtransportando a canoa cabea; outro, de olhos vendados, a caminho da execuo; outro
anda para l e para c com um cardpio gigantesco; uma famlia de refugiados, a cabea
de uma criana pequena saindo de um saco de ir s compras; a caadora de heranas
acompanhando a tia rica; um co manco trela de um homem coxo; um grupo, de
cabeas bem erguidas, a caminho de uma rcita de gala em traje de noite; um alegre
corredor correndo aos saltinhos; um jogador de cartas abrindo o baralho em leque
enquanto vai andando; dois que trocam qualquer coisa em andamento, num abrir e fecharde olhos; algum puxa um carro com taipais gradeados cheio de mscaras e bonecas; um
grupo que desceu junto de um autocarro dispersa-se rapidamente pela praa, cada um
para seu lado; a beldade fechada transforma-se numa beldade aberta ao passar; um jovem
apaga a luz da vela a um velho; o faroleiro atravessa pesadamente; uma patrulha
balanando algemas e bastes; um caminhante passa restolhando pela folhagem espessa;
o av traz umaa cobra a contorcer-se no cabo da bengala; aparece a Portuguesa; a
rapariga de Marselha avana pelo cais do porto; a judia de Herzliya deita para a rua a
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mscara de gs; a Mongolesa passa com o seu falco; a santa padroeira de Toledo arrasta
atrs de si uma pele de leo.
Comea finalmente um incessante vaivm em todas as direces - um homem novamente
vestido de empregado de mesa esvazia um cinzeiro na praa, uma mulher passa de uma
rua para a outra com uma bandeja cheia de copos de champanhe, outro homem,
comerciante de folga ou meteorologista, entra e comea a olhar para o cu, e Chaplin
passa flanando como quem no quer a coisa -, com o passar do tempo cada uma das
figuras mais no do que um simples passante, a caminho de algum lugar, balanando os
braos, representando de uma maneira ou de outra este papel de transeunte (um corredor
vai entretanto arfando e marcando o ritmo do seu andamento, levando na mo estendidaa escultura de barro que representa uma criana); por um momento temos a impresso de
que todos os passantes estariam ao mesmo tempo a ser transportados.
E agora, l em baixo, o primeiro espectador levanta-se da cadeira, junta-se por momentos
ao cortejo, perdido no palco como um co ou uma lebre num campo de futebol, e foge.
E agora o segundo espectador sobe ao palco e experimenta acompanhar os outros, logo
impedido por duas mulheres que, enquanto os outros se afastam com tacto, atravessam a
praa com um varo de metal carregado de roupa branca; ele fica.
E j o terceiro espectador entra em cena, mete-se logo por entre os outros e vaideambulando, muito naturalmente, com o cortejo que parece no querer pr fim ao
desfile.
Vaivm continuado, durante algum tempo.
Por fim, a praa escurece.
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O JOGO DAS PERGUNTASou
A Viagem Terra Sonora
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Para Ferdinand Raimund, AntonTchekov, John Ford e todos os outros
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E aqueles peregrinos iam, pensativos...Pareciam vir de longe, os peregrinos.
(Dante, Vita Nuova)
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PERSONAGENS:
UM OBSERVADOR?UM DESMANCHA-PRAZERESUM ACTOR JOVEMUMA ACTRIZ JOVEMUM CASAL VELHOPARSIFALUM-DA-TERRA, em diversas variantes
As indicaes de cena nem sempre so necessariamente instrues de cena.
? O nome alemo desta personagem -Mauerschauer: o que olha, ou vigia, do cimo da muralha - umainveno lingustica de Handke, decalcada da palavra grega que designa este processo j na tragdiaantiga: teicoscopia. O nome traz tambm, alis como outros momentos da pea, ecos do Fausto IIdeGoethe, nomeadamente da figura de Linceu, o Atalaia (no 5 Acto).
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O palco, com luzes de ensaio, um planalto no meio do mais remoto ponto docontinente, vazio, silencioso, ligeiramente inclinado, como que subindo at uma falsia.Comea a ver-se surgir a um par de mos procurando apoio. Do lado, como quem saide casa para a rua, entra em cena o OBSERVADOR, um homem de meia idade, vestidocom roupa ligeira, como quem est de partida; a sua bagagem reduz-se a pente e escovade dentes, que ele acaba de meter no bolso superior do anorak. Ao cabo de alguns
passos, poucos, e enquanto vai dando voltas sobre si prprio e olhando para o lugar deonde veio, j est a caminho, no espao aberto, tocado a vento, de cabea erguida, emritmo de passeio. Repara no movimento que procura apoio ao fundo do palco, porqueentretanto j s l est uma das mos. Pra. Quando, depois, corre at l, tambm essa
mo desaparece, como que sob o efeito da trepidao dos seus passos. Se h queda, ocerto que no se seguem, nem grito, nem baque do corpo. O Observador abeira-se da
falsia, recua rapidamente, acocora-se, cobre o rosto com as mangas largas do anorake permanece imvel.
De outro lado chega agora a correr, como que em fuga, ofegante, no ltimo flego, o DESMANCHA-PRAZERES, tambm ele um homem de meia idade, que nacorrida se volta frequentemente procura dos seus perseguidores, com as mosapoiadas nos flancos. Finalmente pra no canto mais distante do palco, de braoscados e olhando para todos os lados, como se, cercado, se entregasse. Mas os esbirros
no aparecem. Lentamente, espreguia-se e veste o sobretudo que at a trazia no brao,senta-se e estende as pernas, com olhos que mais no fazem do que repousar dascanseiras da fuga.
Entram agora em cena, vindos de pontos diferentes e sem que os dois primeirosdem por eles, o ACTOR JOVEM e a ACTRIZ JOVEM. Ele, de culos de sol, cansado,atento, como se viesse de um ensaio, enquanto ela vai a caminho: os olhos postos nohorizonte, uma das mos no ombro do lado oposto, a passos largos, num vestidorodado, como se fosse pelas colinas ao encontro de algum. No tarda nada, e ser amulher do padeiro ou a noiva de aldeia, enquanto o actor jovem se encontra ainda meio
preso ao papel do rebelde, do misantropo ou do condenado morte, vestindo uma pea
do respectivo guarda-roupa. O momento em que cada um, virando a esquina do seubastidor, d de caras com o outro aquele instante por que sempre esperaram. No
precisam de abandonar os respectivos papis: estes ganham apenas, com um leve toque,novos traos. Nela, ao jogo fisionmico da moa do campo apaixonada vem juntar-seuma expresso sria; nele, os golpes de espada do revoltado abrandam e transformam-se pouco a pouco em braos que se estendem para ela. Depois, a quebra: ela, virando acara, senta-se no lugar onde est, e ele, depois de ter deambulado at aos limites do
planalto, senta-se a uma certa distncia dela, desviando tambm os olhos.
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Entra agora em cena o CASAL VELHO, um atrs do outro numa corridadesajeitada, ambos agitando as mos estendidas. A mulher traz uma grande mala de
mo enfiada na dobra de um dos braos, e o velho puxa atrs de si um enorme malo,que no entanto parece ser leve. Acabam manifestamente de perder, por uma unha negra,um meio de transporte que pretendiam apanhar. Ambos usam fatos domingueirosescuros, como pessoas que quase toda a vida andaram de roupa de trabalho, e por issoo seu aspecto ainda mais festivo; hoje poderiam ter-se sentido livres, fora de servio.
Agora, porm, afastam-se de cabea baixa, tambm eles sem olhos para os demais, edeixam-se cair, primeiro de joelhos, depois sobre os calcanhares. A Velha tapa a caracom o leno que lhe servira para fazer alguns sinais, o Velho, com as mos nos joelhos,balana para a frente e para trs.
Por fim aparece ainda no palco PARSIFAL, entrando s arrecuas e parando com
frequncia, sugerindo como que um passo teimoso em relao ao lugar de onde partiu,mas afastando-se cada vez mais dele - como se acabasse de ser abandonado alguresnuma terra selvagem e algum o afugentasse, talvez com uma arma. o mais novo detodos quantos se encontram no planalto, quase ainda uma criana, de cabelo rapado,roupa esfarrapada, descalo. Como se acabasse de ser definitivamente expulso, d
pequenos saltos em crculo no ltimo canto livre do palco, bate com a cabea, primeironos joelhos e depois, j cado, contra as tbuas do cho, a saliva a escorrer-lhe daboca.
Vem agora um sinal sonoro, agudo mas propagando-se ao longe, um som
prolongado, o mais grave de todos os sons, que tudo atravessa; depois de uma pausa,durante a qual todas as figuras no palco, incluindo Parsifal, ficaram petrificadas e escuta, ouve-se ainda uma segunda e uma terceira vez qualquer coisa como a sereia deum barco no nevoeiro ou o apito sado do bojo de uma locomotiva antiga ou o sinal de
partida de um ferry-boat num brao de mar. Depois, no silncio, os sete do pelapresena uns dos outros e, se no esto j em p, vo-se levantando. Voltam a pegar nomalo e na carteira e apagam-se as luzes do palco.
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Uma curva do caminho na terra interior, com um pinheiro ano no alto de umacolina. Acampam a os sete, o CASAL VELHO em banquinhos articulados, a seu lado acarteira e o malo. Continua o silncio e a luz clara do planalto, ou a luz dos primeirosensaios. A ACTRIZ JOVEM est a desmaquilhar-se. O ACTOR JOVEM faz desaparecera pea do guarda-roupa que trazia.
O OBSERVADOR(Penteia os cabelos, entretanto de novo revoltos, pe uma mo em pala sobre os olhos,
perscruta o espao l fora e aponta com a outra mo)Olhem s, que beleza! H paz nesta terra interior, e por isso posso falar assim. No h
dvida: nasci para glorificar as coisas, no h dvida, nada mais tem voz em mim. O que,fora disso, de mim sai, ou no tem som, ou estridente. - Mas porque ser que hoje mecusta cada vez mais achar as coisas belas? Porque que vocs, os de antes de ns, diziamto facilmente: Coraes ao alto! ou: O mar salgado!, ou simplesmente: Terra! Sol!, ou omais simples de tudo: Temos tempo de sobra! E porque que abenoaram ainda os quevieram depois? E por que razo me afasto eu a cada passo mais de vocs, sem podertransmitir nenhuma das vossas bnos aos nossos filhos para l do horizonte, que a semovem, inconscientes, sobre o abismo? J estou a ver o horror a assaltar-vos de repente,ouo o vosso apelo, e ns sem podermos fazer nada. Nos meus ouvidos o vosso grito, e
vossa frente ainda as colinas, com um sussurro que parece vir de dentrodelas.(Acompanha com um movimento da mo a linha ondeante das colinas distantes.)
O DESMANCHA-PRAZERES(Enrola-se, com frio, no casaco.)E nas colinas, debaixo das rvores, os caadores. J no seguem a presa, sorrateiros,como antes. Agora entram de rompante com os jeeps pelas estradas florestais, j pararame disparam pelas janelas abertas, no a lees ou ursos, no, aos esquilos que saltam pelaltima vez, e empilharam os pequenos cadveres, e depois de mijarem apressadamente,todos em fila, contra as rodas dos jeeps, desandam para a prxima razia. E se, um
segundo depois, fores at ao lugar da matana, nem uma gota de sangue brilha a, nemum farrapo de pele esvoaa ao vento da tua colina, no encontras nem uma farpa decasca de rvore, no sentes nem um cheiro a queimado ou - como que se diz hoje? - umcalor remanescente: nada, s a rvore inclume, a erva sem sinal de bota e o sussurroinumano. - E os nossos filhos, esses j nos esqueceram, a ti e a mim, h muito tempo.Mesmo que nos vissem todos os dias, seramos para eles, se no uma seca, na melhor dashipteses "Ah, sim, esse" que s de olh-lo d vontade de bocejar! Por maisabandonados que se sintam, se ns lhes batemos porta o que vem depois da alegria do"Quem ser?" a desiluso do "Ah, s tu!", "Olha quem ele !". Os nossos filhos querem
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ser protegidos e salvos, l isso querem, mas por ns que no. Chamam por ns na horada morte, pois, mas isso mero reflexo. At nos seus sonhos ficamos de fora, e s depois
da morte voltaremos a olh-los nos olhos. - E os de antes de ns, a quem tu chamavas osantigos, to nobres? Aceito que talvez tivessem um corao capaz de glorificar, no squando se tratava de um vencedor, no s porque serviam a um deus ou um senhor eeram recompensados por isso. Mas no se sentiriam eles a si prprios como vencedoresquando a sua voz descia at ao povo? E no fim no estariam convencidos de ter dito deuma vez por todas o que havia a dizer para glria da existncia, reconhecendo-se apenasa si prprios, como todos os vencedores, surdos de indiferena em relao a ns, seusdescendentes - no ser tudo isto o contrrio das tuas bnos? "Tempo de sobra", pois .Mas no ser que os antigos, que dispunham assim soberanamente do tempo, por issomesmo nos no deixaram tempo nenhum a ns? Olhem s ali, na estrada, aquele gigante
centenrio, a mo aparentemente paternal no ombro do seu pequeno Isaac: o facto queele o leva uma vez mais para o matadouro. (Volta-se para a sua prpria mo aberta) Etu, meu bichinho, o que que achas? Ser que estou enganado? Ser que o velhadas, demo pesada no ombro do rapaz, apenas cego e se deixa levar um pouco a passear? Mas- tempo de sobra, tambm para ns? E ser mesmo s um campons cego que faz a rondadas suas terras com o neto? - Olhem, o bichinho deixou de espernear e levanta a cabea.Fareja qualquer coisa. Basta uma pergunta, e ela fareja logo qualquer coisa. - Ento lvai mais uma pergunta, meu bichinho: Ser que o tempo vai aquecer? O que que fazeslogo noite? Onde E que vais passar o Inverno? Onde estiveste na guerra? Onde est a
tua me? Onde est o teu filho? - Olhem s, ela volta-se mesmo, procura os seusparentes! - Esta a tua primeira forma, animal, ou j te metamorfoseaste? E ns, em que que ainda nos vamos metamorfosear no decorrer dos acontecimentos? Aquele ali: deidiota com pes aleijados passar a corredor prodigioso? E a outra: de uma que passoutodas as suas noites com as mos entre as coxas para uma que na prxima noite apertarnos braos o que est com ela? E os dois velhos ali, com cara de caso, sero amanh umacabea dupla de montanhs com o sorriso malicioso e contente das caras de Buda? Eaquele outro, com o seu ar de eternamente provisrio, transformar-se- em algum commorada certa, que j no busca a sorte na errncia, mas sim, como o velho sulto, aquimesmo, neste lugar e no regao da jovem amada? - E j agora diz-me tambm a mim,
orculo desta minha mo, se no decorrer dos acontecimentos o fugitivo que eu semprefui, com olhos que nunca ousam fechar-se completamente, que se assusta com o simpleslevantar voo de um pardal, que se desvia ao ver uma borboleta pelo canto do olho, que -(interrompe para se dirigir ACTRIZ JOVEM: "D s uma olhadela sua volta!". Elacorresponde imediatamente) - que nunca foi capaz de olhar por cima do ombro com adescontraco que acabamos de ver, mas sempre assim (mostra como): diz-me, meuanimalzinho, se o acossado por montes e rios se transformar finalmente aqui num outrocapaz de cantar alto na floresta dos caadores, para que o distingam da caa, porque jno caa humana para os seus caadores, os caadores de homens? Meu animalzinho,
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porque ser a fuga desde sempre o meu primeiro impulso ao ver uma pessoa? - Ou entodiz-nos, muito simplesmente: Quem o teu inimigo? Ou: foste tu que me roeste os
buracos no sobretudo? (Encosta o ouvido mo, e diz para os presentes:) Nem resposta.Fantstico! (Afasta com um sopro o animal da mo.)
O CASAL VELHO( Alternando as falas, acompanhadas de um movimento de braos meio erguidos, num"Singspiel")No fundo, esta devia ter sido a nossa primeira viagem. Mas a mim nunca me entusiasmoumuito. Nem a mim. (A uma voz:) E porque que no me disseste? - Desde a guerra queno durmo fora de casa. E eu desde aquele tempo no hospital. Sempre gostei muito queos outros viajassem, para poder ficar sozinho. : e quando eles, cheios de pena, me
acenavam e finalmente os perdia de vista, o meu corao dava saltos. Pois : e quandouma vez o filho voltou atrs para nos consolar com uma ltima palavra, apanhou-me jcomodamente instalado de jornal na mo. E a mim no jardim, debaixo da cerejeira, acuspir os caroos. (A uma voz:) Nas mas j nenhum de ns consegue meter o dente. - Acasa toda fica to bem, quando os outros esto a fazer boa viagem e a gente lhes tomaconta do lugar. Pois, afinal eles so dos nossos, e guardar-lhes a casa antecipa j oregresso (A uma voz:) Pelo menos por momentos. - A minha alegria foi sempre a de mesentir feliz com os meus. Sim, especialmente quando eles viviam a sua felicidade bemlonge de ns. E como ns lhes pintvamos cor-de-rosa as maravilhas das praias distantes
e os levvamos sempre a fazer novas viagens! ( A uma voz:) E agora os papisinverteram-se. - Em vez de ser eu a dar umas voltas na motorizada com o meu neto, eleque tem de ficar a ouvir as perguntas que o nosso filho lhe faz: "Ora conta l, que coisasboas te aconteceram hoje?" E em vez de eu ter no colo a minha neta a contar-me os seussonhos, e ns as duas a rir ou a chorar com eles, agora ela que tem de sorrir para afotografia. (A uma voz:) Antes isto do que andar com os outros velhos l da terra a fazerum cruzeiro pelos lugares da guerra. - Ser que j superaram o espanto da primeira vez, eagora s contam anedotas ou jogam s cartas? No acredito! Pois se a nossa terra conhecida por as pessoas no saberem anedotas nem jogos! E quanto mais velhas somais espantadas ficam! Na nossa terra, as pessoas quando chegam velhice at pasmam
colectivamente, em unssono, em coro, e o nome que mais se v nas casas "Opasmado", "A pasmaceira", "Vulgo: Pasmados". At o dialecto da terra conhecido por"fala dos pasmados", e a nossa entoao exprime um espanto permanente. Pois , estoumesmo a v-los ainda sentados, mudos como partida, de cabea levantada, a olhar. Masno achas que, com todo esse espanto, l bem no fundo cada um deles tem saudades daterra, das penias do quintal que partida estavam quase a desabrochar - o boto tinha juma aberturazinha cor de prpura! -, e do novo episdio da linda novela, logo noite nateleviso? Se acho! Pois se at l na terra temos a alcunha de "Os saudosos da terrinha"!Tambm sentes saudades da terra? No, agora j no. Eu tambm no, agora est tudo
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5/12/2018 A Hora Em Que... Peter Handke
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to morto por l, to fora do mundo, o silncio no o mesmo de antes. E dos outros,tens saudades? Ainda menos. Imagina s essa velhada toda junta! Um velhinho, s um,
j cheira a mofo que baste! E finalmente livres de todas aquelas velhas perfumadas comolhos de beladona, alagadas em suores de medo a cada movimento de ancas. J me bastao meu pescoo de peru. Pois , finalmente livres, de uma vez por todas, daquelashistrias de doenas, das ltimas intriguices, dos comentrios sobre os parentes do mortojunto campa.
A VELHA(Dirigindo-se ao crculo dos restantes:) Quando eu h muito tempo, ainda nova, tive deficar no hospital, o que gostei mais foi de ver passar os comboios junto janela; equando disse isso mmia que estava ao meu lado, a resposta dela foi: "Pois , mas para
mim os avies ainda so mais bonitos".
O VELHO( Dirigindo-se ao crculo dos restantes:) E quando eu fiz a guerra, uma vez estava delicena e fiquei aquela longa noite de Vero num pas estranho ao lado de um homemvelho, na esplanad
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