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A GRAMAacuteTICA DO PENSAMENTO EM WITTGENSTEIN DO TRACTATUS AO BIG TYPESCRIPT
Antoacutenio Carlos de Carvalho Pais
Julho 2020
Tese de Doutoramento em Filosofia
Especialidade de Filosofia do Conhecimento e Epistemologia
[versatildeo corrigida]
A GRAMAacuteTICA DO PENSAMENTO EM WITTGENSTEIN
DO TRACTATUS AO BIG TYPESCRIPT
Antoacutenio Carlos de Carvalho Pais
Tese de Doutoramento em Filosofia
Especialidade de Filosofia do Conhecimento e Epistemologia
Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessaacuterios agrave obtenccedilatildeo do grau de
Doutor em Filosofia especialidade de Filosofia do Conhecimento e Epistemologia
realizada sob a orientaccedilatildeo cientiacutefica do Prof Doutor Nuno Venturinha
Lisboa Julho de 2020
ii
iii
Agrave
minha filha Leonor
agrave minha mulher Alice
agrave minha matildee Maria
e agrave memoacuteria do meu pai Joatildeo
iv
AGRADECIMENTOS
A Universidade Nova de Lisboa tem sido a instituiccedilatildeo que sempre escolhi para
desenvolver os estudos necessaacuterios aos meus graus acadeacutemicos Foi nela que sempre
encontrei as condiccedilotildees ideais para as minhas realizaccedilotildees universitaacuterias Eacute com muito
orgulho e profundo reconhecimento que me apresento como candidato a doutor em
filosofia nesta instituiccedilatildeo
Nesta universidade merece uma muito especial referecircncia a Faculdade de
Ciecircncias Sociais e Humanas que me acolheu e proporcionou sempre da forma mais
generosa e empenhada a aprendizagem do muito que fiquei a saber sobre filosofia A
esta instituiccedilatildeo de referecircncia no ensino superior e a todos aqueles que com o seu
trabalho a tecircm dignificado o meu bem-haja
Natildeo sendo a minha formaccedilatildeo de base a filosofia o meu percurso acadeacutemico poacutes-
graduado nesta aacuterea devo-o integralmente agrave excelecircncia profissional e pessoal de todos
os meus ilustres professores do Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciecircncias
Sociais e Humanas A eles o meu mais reverente sentimento de gratidatildeo
O que devo ao Professor Doutor Nuno Venturinha excede em muito o ter
despertado o meu interesse essencial pela obra de Wittgenstein e ao longo dos anos
beneficiado da sua inesgotaacutevel erudiccedilatildeo filosoacutefica sobretudo sobre o pensamento deste
filoacutesofo Conviver com a nobreza do seu caraacuteter tem sido o maior de todos os
privileacutegios e o que mais profundamente lhe estou agradecido Sem o seu apoio a sua
orientaccedilatildeo e as oportunidades que me facultou para participaccedilatildeo em conferecircncias e
seminaacuterios natildeo teria sido possiacutevel chegar onde cheguei com este meu trabalho de tese
de doutoramento Por tudo isto fica uma gratidatildeo estima e admiraccedilatildeo perenes
Gostaria tambeacutem de prestar tributo agrave Professora Doutora Luiacutesa Couto Soares
que sempre incentivou a minha evoluccedilatildeo acadeacutemica e a quem devo a orientaccedilatildeo e
conclusatildeo da minha tese de mestrado em filosofia Um sentido obrigado Professora
Consagro ainda especiais agradecimentos agrave Professora Doutora Maria Filomena
Molder e ao Professor Doutor Antoacutenio de Castro Caeiro natildeo soacute pelas suas brilhantes e
memoraacuteveis aulas mas igualmente pelos ensinamentos que generosamente me
transmitiram para que eu pudesse fazer melhor filosofia
v
Satildeo tambeacutem merecidos os agradecimentos a todos os palestrantes nas
conferecircncias e seminaacuterios onde estive presente beneficiando de um modo geral este
meu trabalho de tese do que aiacute foi apresentado e discutido Em particular gostaria de
distinguir e agradecer aos seguintes oradores Sofia Miguens (Universidade do Porto)
Antoacutenio Marques (Universidade Nova de Lisboa) Modesto Goacutemez
Alonso (Universidade de La Laguna) Vicente Sanfeacutelix Vidarte (Universitat de
Valegravencia) Alois Pichler (University of Bergen) e Arley Ramos Moreno (Universidade
Estadual de Campinas)
Natildeo queria concluir os agradecimentos sem reconhecer o quanto foram para
mim importantes os meus mui estimados colegas de caminhada na construccedilatildeo de uma
tese unidos animados e bafejados pelo mesmo orientador Em especial agradeccedilo ao
Joatildeo Regueira agrave Vanessa Duron Latansio agrave Maria Joana Vilela e ao Luiacutes Simotildees
O muito que tenho a agradecer a todos que de alguma forma me ajudaram neste
trabalho natildeo diminui minimamente a minha responsabilidade exclusiva pelos seus
resultados Espero sinceramente que ele possa estar agrave altura da imensa generosidade dos
que estiveram ao meu lado nesta caminhada
vi
A GRAMAacuteTICA DO PENSAMENTO EM WITTGENSTEIN
DO TRACTATUS AO BIG TYPESCRIPT
Antoacutenio Carlos de Carvalho Pais
RESUMO
Investigar o conceito de pensamento nas obras filosoacuteficas principais de Wittgenstein ateacute 1933 eacute esclarecer o que o determina e quais satildeo as suas condiccedilotildees de possibilidade Satildeo deste modo tambeacutem as possibilidades do pensamento filosoacutefico que estatildeo em investigaccedilatildeo Eacute precisamente de acordo com essas possibilidades como veremos que se ergue a sua filosofia O periacuteodo considerado inclui os primeiros anos iniciados em 1929 da designada segunda fase do pensamento filosoacutefico de Wittgenstein Satildeo anos de transiccedilatildeo em que se analisa o que muda no seu conceito de pensamento e as suas implicaccedilotildees filosoacuteficas Antes o pensamento eacute um misteacuterio impenetraacutevel ao sentido algo que se mostra na linguagem mas que a proacutepria linguagem quando tentada a falar sobre isso se precipita no sem-sentido Nestes anos de transiccedilatildeo ele deixa de ser impensaacutevel passando a ser possiacutevel ao pensamento exprimir-se sobre a estrutura da sua proacutepria expressatildeo A gramaacutetica da linguagem comum sucede agrave gramaacutetica de uma linguagem formal Da possibilidade ontoloacutegica da verdade como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave possibilidade da expressatildeo do pensamento segue-se a verdade ou falsidade da expressatildeo do pensamento decidida pelo sentido dessa mesma expressatildeo Jaacute a metafiacutesica e a realidade psiacutequica permanecem impensaacuteveis O pensamento metafiacutesico eacute patoloacutegico e a atividade filosoacutefica dedica-se agrave sua terapia A filosofia eacute para Wittgenstein uma atividade que nos reconduz agrave realidade que faz com que deixemos que as coisas sejam como elas satildeo Este estudo estaacute organizado em funccedilatildeo das suas obras principais e da respetiva cronologia no periacuteodo considerado Assim a primeira parte eacute dedicada ao Tratado Loacutegico-Filosoacutefico a segunda parte agraves Observaccedilotildees Filosoacuteficas e a terceira parte a mais longa ao The Big Typescript Outras obras de menor dimensatildeo deste periacuteodo satildeo igualmente analisadas como sejam os Cadernos 1914-1916 ldquoAlgumas Observaccedilotildees Sobre a Forma Loacutegicardquo Conferecircncia Sobre Eacutetica e a primeira parte das Observaccedilotildees Sobre o ldquoRamo Douradordquo de Frazer O estudo termina com uma conclusatildeo final onde aleacutem de se destacarem os principais resultados desta investigaccedilatildeo se estabelecem pontes com algumas das suas obras filosoacuteficas posteriores
PALAVRAS-CHAVE filosofia gramaacutetica linguagem metafiacutesica pensamento
verdade
vii
THE GRAMMAR OF THOUGHT IN WITTGENSTEIN
FROM THE TRACTATUS TO THE BIG TYPESCRIPT
Antoacutenio Carlos de Carvalho Pais
ABSTRACT
To investigate the concept of thought in Wittgensteins major philosophical works until 1933 is to clarify what determines it and what its conditions of possibility are So too are the possibilities of philosophical thought that are under investigation It is precisely in accordance with these possibilities as we shall see that his philosophy is raised The period considered includes the early years beginning in 1929 of Wittgensteins designated second phase of philosophical thought These are years of transition in which we analyse what changes in his concept of thought and its philosophical implications Previously thought was a mystery impenetrable to meaning something that shows itself in language but that language itself when tempted to talk about it rushes into meaninglessness In these years of transition it is no longer unthinkable but it is possible for thought to express itself on the structure of its own expression The grammar of common language takes the place of the grammar of formal language The ontological possibility of truth as a necessary condition for the possibility of the expression of thought is followed by the truth or falsity of the expression of thought decided by the meaning of that expression Metaphysics and psychic reality however remain unthinkable Metaphysical thinking is pathological and philosophical activity is devoted to its therapy Philosophy is for Wittgenstein an activity that brings us back to reality that makes us let things be as they are This study is organized according to its main works and their chronology during the period considered Thus the first part is devoted to the Tractatus Logico-Philosophicus the second part to Philosophical Remarks and the third the longest part to The Big Typescript Other smaller works of this period are also analysed such as Notebooks 1914-1916 ldquoSome Remarks on Logical Formrdquo Lecture on Ethics and the first part of the ldquoRemarks on Frazers Golden Boughrdquo The study ends with a final conclusion where in addition to highlighting the main results of this investigation bridges are established with some of his later philosophical works
KEYWORDS grammar language metaphysics philosophy thought truth
viii
IacuteNDICE
LISTA DE ABREVIATURAS x
INTRODUCcedilAtildeO 1 PARTE I ndash O PENSAMENTO COMO IMAGEM LOacuteGICA DO MEU MUNDO 10
CAPIacuteTULO 1 ndash O PENSAMENTO E O SOLIPSISMO 11 A Existecircncia do Pensamento 11 O Sujeito do Pensamento 16 O Poder do Pensamento 20
CAPIacuteTULO 2 ndash A EXPRESSAtildeO DO PENSAMENTO 24 A Expressatildeo do Pensamento e o Sentido 24 A Expressatildeo do Pensamento e o Sem-Sentido 27 A Expressatildeo do Pensamento e a Verdade 33
CAPIacuteTULO 3 ndash O IMPENSAacuteVEL E A FILOSOFIA 38 A Possibilidade da Existecircncia como Condiccedilatildeo do Pensamento 38 A Impossibilidade de Pensar a Existecircncia 42 A Impossibilidade de Pensar o Extramundano 45 A Impossibilidade de Pensar o Pensamento 48 A Impossibilidade do Pensamento Filosoacutefico 52
NOTAS CONCLUSIVAS 67 PARTE II ndash A FENOMENOLOGIA DO PENSAMENTO 78
CAPIacuteTULO 4 ndash O PENSAMENTO E A GRAMAacuteTICA 79 O Pensamento e a Linguagem 79 A Normatividade da Linguagem e a Conceitualidade dos Fenoacutemenos 84
CAPIacuteTULO 5 ndash O PENSAMENTO E A FENOMENOLOGIA 90 O Pensamento a Fenomenologia e a Verificaccedilatildeo 90 O Pensamento do Fenoacutemeno e o Tempo 98 O Pensamento do Fenoacutemeno o Espaccedilo e a lsquoMinharsquo Experiecircncia 102
CAPIacuteTULO 6 ndash O PENSAMENTO E A EacuteTICA 109 A Inefabilidade da Experiecircncia do Pensamento 109 A Inefabilidade da Experiecircncia Eacutetica 112 O Pensamento dos Valores 118
CAPIacuteTULO 7 ndash O PENSAMENTO E A MATEMAacuteTICA 124 O Pensamento o Nuacutemero e a Intuiccedilatildeo 124 O Pensamento o Infinito e a Induccedilatildeo 130 O Pensamento a Proposiccedilatildeo Matemaacutetica e o Meacutetodo de Prova 133
NOTAS CONCLUSIVAS 142 PARTE III ndash A GRAMAacuteTICA DO PENSAMENTO 151
CAPIacuteTULO 8 ndash O PENSAMENTO FILOSOacuteFICO 152 O Modo de Pensamento Filosoacutefico 152 Os Problemas Gramaticais 155 O Meacutetodo de Investigaccedilatildeo Gramatical 158 O Progresso da Filosofia 166
CAPIacuteTULO 9 ndash O PENSAMENTO A LINGUAGEM E A ACcedilAtildeO 169 O Pensamento eacute a Sua Expressatildeo 169 A Intencionalidade do Pensamento 174
CAPIacuteTULO 10 ndash O PENSAMENTO E A GRAMAacuteTICA 190 O Pensamento a Compreensatildeo e a Significaccedilatildeo 190
ix
As Regras Gramaticais 196 O Seguir Regras Gramaticais 203 O Sistema Gramatical 211
CAPIacuteTULO 11 ndash A MATEMAacuteTICA COMO SISTEMA GRAMATICAL 220 A Matemaacutetica eacute um Sistema Infundado 220 O Sistema Determina as Provas Matemaacuteticas 225 O Sistema eacute Algoriacutetmico 229
CAPIacuteTULO 12 ndash O PENSAMENTO RELIGIOSO 234 O Pensamento Explicativo natildeo Fundamenta a Verdade 234 A Incomensurabilidade do Pensamento Religioso e Mitoloacutegico 238 O Pensamento Religioso e a Praacutetica Ritualista 242
NOTAS CONCLUSIVAS 248 CONCLUSAtildeO 259 BIBLIOGRAFIA 275
x
LISTA DE ABREVIATURAS
BEE Wittgensteins Nachlass The Bergen Electronic Edition The Wittgenstein Archives at the University of Bergen OUP Bergen amp Oxford 2000 Open access to transcriptions of the Wittgenstein Nachlass (2016-) httpwabuibnotransformwabphpmodus=opsjoner
BLB O Livro Azul Jorge Mendes (trad) e Carlos Marujatildeo (rev trad) Ediccedilotildees 70 Lisboa 2008 | The Blue and Brown Books Preliminary Studies for the ldquoPhilosophical Investigationsrdquo generally known as The Blue and Brown Books 2a ed Blackwell Oxford 1960
BRB O Livro Castanho Jorge Marques (trad) e Carlos Marujatildeo (rev trad) Ediccedilotildees 70 Lisboa 1992 | The Blue and Brown Books Preliminary Studies for the ldquoPhilosophical Investigationsrdquo generally known as The Blue and Brown Books 2a ed Blackwell Oxford 1960
BT The Big Typescript TS213 Kritische zweisprachige Ausgabe DeutschndashEnglisch edited and translated by C Grant Luckhardt and Maximilian A E Aue Blackwell Publishing Malden MA Oxford 2005
CL Wittgenstein in Cambridge Letters and Documents 1911-1951 Brian McGuinness (ed) Blackwell Publishing Oxford 2008
CV Cultura e Valor Jorge Mendes (trad) e Carlos Marujatildeo (rev trad) Ediccedilotildees 70 Lisboa 2000 | Culture amp Value A Selection from the Posthumous Remains ndash Revised Edition Georg Henrik von Wright in collaboration with Heikki Nyman (ed) Alois Pichler (rev ed) Peter Winch (trad) Blackwell Oxford 1998
LC Aulas e Conversas Sobre Esteacutetica Psicologia e Feacute Religiosa Compilado a partir de notas recolhidas por Yorick Smythies Rush Rhees e James Taylor Cyril Barrett (ed) Miguel Tamen (trad) Cotovia 3ordf ediccedilatildeo Lisboa 1998 | Lectures and Conversations on Aesthetics Psychology and Religious Belief Compiled from Notes taken by Yorick Smythies Rush Rhees e James Taylor Cyril Barrett (ed) Basil Blackwell Oxford 1966
LE Conferecircncia sobre Eacutetica Antoacutenio Marques (trad) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 2017 | ldquoLecture on Ethicsrdquo in Philosophical Occasions 1912-1951 James C Klagge and Alfred Nordmann (eds) Hackett Publishing Company Indianapolis amp Cambridge 1993 pp 37-44
LWPP Uacuteltimos Escritos Sobre a Filosofia da Psicologia Antoacutenio Marques Nuno Venturinha e Joatildeo Tiago Proenccedila (trad) Antoacutenio Marques (intro) Nuno Venturinha (apr histoacuterico-filoloacutegica) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 2007 | Last Writings on the Philosophy of Psychology Preliminary Studies for Part II of the Philosophical Investigations Volume 1 Letzte
xi
Schriften uumlber die Philosophie der Psychologie Vorstudien zum zweiten Teil der Philosophischen Untersuchchungen Band I G H von Wright and Heikki Nyman (ed) C G Luckhardt (trad) Blackwell Oxford 1982 | Last Writings on the Philosophy of Psychology The Inner and the Outer 1949-1951 Volume 2 Letzte Schriften uumlber die Philosophie der Psychologie Das Innere und das Aumluszligere Band II G H von Wright and Heikki Nyman (ed) C G Luckhardt and Maximilian A E Aue (trad) Blackwell Oxford 1992
MWL Moore G E ldquoWittgensteinrsquos Lectures in 1930-33rdquo in Philosophical Occasions 1912-1951 James C Klagge and Alfred Nordmann (eds) Hackett Publishing Company Indianapolis amp Cambridge 1993 pp 46-114
NB Cadernos 1914-1916 Joatildeo Tiago Proenccedila (trad) e Artur Mouratildeo (rev trad) Ediccedilotildees 70 Lisboa 2004 | Notebooks 1914-1916 G H von Wright and G E M Anscombe (eds) G E M Anscombe (trad) English and German 2ordf ediccedilatildeo Basil Blackwell Oxford 1969
PI Tratado Loacutegico-Filosoacutefico e Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Traduccedilatildeo e Prefaacutecio de M S Lourenccedilo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 4ordf ediccedilatildeo Lisboa 2008 | Tractatus Logico-Philosophicus Tagebuumlcher 1914-1916 Philosophische Untersuchungen Werkausgabe Band 1 Suhrkamp Frankfurt 1984
PPO Public and Private Occasions James C Klagge and Alfred Nordmann (eds) Rowman amp Littlefield Publishers Maryland Oxford 2003
PR Philosophical Remarks Rush Rhees (ed) Raymond Hargreaves and Roger White (trans) Basil Blackwell Oxford 1975 | Philosophische Bemerkungen Werkausgabe Band 2 aus dem Nachlass herausgegeben von Rush Rhees Suhrkamp Frankfurt 1984
RFGB Observaccedilotildees sobre o ldquoRamo Douradordquo de Frazer Bruno Monteiro (coord) Joatildeo Joseacute de Almeida (ed trad e notas) Nuno Venturinha (int e rev trad) Deriva Editores Porto 2011 | ldquoBemerkungen uumlber Frazers Golden Bough Remarks on Frazerrsquos Golden Boughrdquo in Philosophical Occasions 1912-1951 James C Klagge and Alfred Nordmann (eds) Hackett Publishing Company Indianapolis amp Cambridge 1993 pp 118-155
RFM Remarks on the Foundations of Mathematics G H von Wright R Rhees and G E M Anscombe (eds) G E M Anscombe (trad) Basil Blackwell Oxford 3ordf ediccedilatildeo 1978 | Bemerkungen uumlber die Grundlagen der Mathematik Suhrkam Frankfurt 1984
RPP I Remarks on the Philosophy of Psychology Bemerkungen uumlber die Philosophie der Psychologie Volume I G E M Anscombe and G H von Wright (eds) G E M Anscombe (trad) Basil Blackwell Oxford 1980
RPP II Remarks on the Philosophy of Psychology Bemerkungen uumlber die Philosophie der Psychologie Volume II G H von Wright and Heikki Nyman (eds) C G Luckhardt and M A E Aue (trad) Basil Blackwell Oxford 1980
xii
SRLF ldquoSome Remarks on Logical Formrdquo in Philosophical Occasions 1912-1951 James C Klagge and Alfred Nordmann (eds) Hackett Publishing Company Indianapolis amp Cambridge 1993 pp 29-35
TLP Tratado Loacutegico-Filosoacutefico e Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Bertrand Russell (intro) M S Lourenccedilo (trad e perfaacutecio) Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 4ordf ediccedilatildeo Lisboa 2008 | Tractatus Logico-Philosophicus Tagebuumlcher 1914-1916 Philosophische Untersuchungen Werkausgabe Band 1 Suhrkamp Frankfurt 1984
WLC Wittgenstein Lectures Cambridge 1930ndash1933 From the Notes of G E Moore David G Stern Brian Rogers and Gabriel Citron (eds) Cambridge University Press Cambridge 2016
1
INTRODUCcedilAtildeO
2
ldquo[]
As palavras natildeo chegam
a palavra azul natildeo chega a palavra dor natildeo chega Como falaremos com tantas palavras Com que palavras e sem
[que palavras
[]rdquo1
A
A curiosidade e promessa de uma compreensatildeo mais luacutecida da vida que me
suscitou o silecircncio que no Tractatus Wittgenstein impotildee ao pensamento sobre certos
assuntos por ser incapaz de sobre eles desempenhar a sua funccedilatildeo e os dotar de sentido
os limites que estabelece ao que eacute possiacutevel ao pensamento expressar e o que assim fica
inexprimiacutevel foi a semente donde brotaram o interesse o entusiasmo e o empenho por
estudar o conceito de pensamento neste filoacutesofo A possibilidade de evoluccedilatildeo desta sua
conceccedilatildeo de pensamento e os motivos que estiveram por detraacutes dela fizeram com que
estendesse este meu estudo aos primeiros anos de um periacuteodo de transiccedilatildeo do seu
pensamento filosoacutefico O que oferecia de oportunidade de investigaccedilatildeo neste domiacutenio
o The Big Typescript uma obra essencial deste periacuteodo que natildeo obstante serem jaacute
muitos os estudos que o consideram ainda me parecia ser feacutertil a sua exploraccedilatildeo
decidiu-me a aprofundar o seu estudo e a perceber o que ele trazia de novo agrave sua
conceccedilatildeo de pensamento O estudo desta obra apresentava-se-me no entanto algo
assustador sem duacutevida pela sua dimensatildeo mas sobretudo pelo seu caraacutecter
fragmentado variegado e aparentemente confuso Por sinal a anaacutelise das Observaccedilotildees
Filosoacuteficas veio a revelar-se essencial para a sua compreensatildeo
1 PINA Manuel Antoacutenio ldquoLudwig W em 1951rdquo in Todas as Palavras ndash poesia reunida (1974-2011) do livro Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembranccedila (1999) Assiacuterio amp Alvim Porto 2013 p 232
3
B
A questatildeo fundamental que dirige esta investigaccedilatildeo eacute a de saber ateacute que ponto se
altera a conceccedilatildeo de pensamento na filosofia de Wittgenstein dos primeiros anos do seu
periacuteodo de transiccedilatildeo entre as geralmente designadas primeira e segunda fases da sua
filosofia Satildeo vaacuterios os autores que desenvolveram estudos onde podemos perceber o
que muda nesta sua conceccedilatildeo ao longo da sua obra como satildeo os casos soacute para indicar
os que me serviram de principal referecircncia de P M S Hacker2 David G Stern3 e
Oskari Kuusela4 Mas a questatildeo fundamental deste trabalho natildeo mereceu ateacute agrave data
uma investigaccedilatildeo especifica e aprofundada especialmente focada no The Big
Typescript Outras questotildees centrais derivadas da fundamental motivaram igualmente a
investigaccedilatildeo empreendida A comeccedilar pela que se interroga sobre o que eacute que o
pensamento pensa e se lhe eacute possiacutevel pensar-se a si proacuteprio Nessa medida se eacute possiacutevel
ao pensamento perceber no interior de si mesmo o impensaacutevel os limites do
pensamento Mas tambeacutem como determina a verdade ou falsidade daquilo que pensa E
finalmente como conceber o pensamento filosoacutefico considerando as possibilidades que
configuram o pensamento Neste acircmbito deveraacute avaliar-se a possibilidade do
pensamento eacutetico-esteacutetico e religioso mas tambeacutem do pensamento filosoacutefico da
matemaacutetica A investigaccedilatildeo destas questotildees deve permitir destacar o que muda nas
respostas que Wittgenstein lhes daacute da sua primeira filosofia para a que se forma a partir
de 1929 Natildeo tendo este trabalho por objetivo estudar o que o filoacutesofo escreveu sobre
estas questotildees depois do BT eacute ainda assim sua intenccedilatildeo na sua fase de conclusotildees
2 Cf HACKER P M S Insight and Illusion ndash Themes in the Philosophy of Wittgenstein Revised Edition Oxford University Press Oxford 1986 ldquoMetaphysics From Ineffability to Normativityrdquo in Hans-Johann Glock and John Hyman A Companion to Wittgenstein Wiley Blackwell Oxford 2017
3 Cf STERN David G ldquoThe laquoMiddle Wittgensteinraquo From Logical Atomism to Practical Holismrdquo Synthese Volume 87 Issue 2 1991 pp 203-226 Wittgenstein on Mind and Language Oxford University Press Oxford 1995 ldquoWittgenstein in the 1930srdquo in Hans Sluga and David G Stern (eds) The Cambridge Companion to Wittgenstein Cambridge University Press Cambridge 2018 pp 126-151 Wittgenstein in the 1930s Between the Tractatus and the Investigations Cambridge University Press Cambridge 2018
4 Cf KUUSELA Oskari ldquoFrom Metaphysics and Philosophical Theses to Grammar Wittgensteinrsquos Turnrdquo Philosophical Investigations Volume 28 Issue 2 2005 pp 113-133 The Struggle Against Dogmatism Wittgenstein and the Concept of Philosophy Harvard University Press Cambridge 2008
4
voltar-se para os textos mais pertinentes de modo a sondar brevemente a continuidade
do seu pensamento
C
O periacuteodo de investigaccedilatildeo aqui realizado da obra de Wittgenstein vai ateacute 1933
ano em que depois de uma uacuteltima revisatildeo das observaccedilotildees coligidas entre 1929 e 1932
conclui o The Big Typescript Ano depois do qual de acordo com Mauro Luiz
Engelmann o filoacutesofo cedendo agraves criacuteticas persistentes de Sraffa adota uma perspetiva
antropoloacutegica5 O economista Piero Sraffa que lhe foi apresentado por John Maynard
Keynes quando em 1929 volta a Cambridge vem a ter uma influecircncia significativa na
evoluccedilatildeo do seu pensamento filosoacutefico desta eacutepoca reconhecida por Wittgenstein nas
suas PI Assim aquela perspetiva jaacute eacute veiculada no conjunto de notas reunidas nas obras
BLB correspondente ao periacuteodo de 1933-34 e BRB de 1934-35 que preparam as PI
Mas satildeo as criacuteticas que Frank P Ramsey um jovem matemaacutetico brilhante de
Cambridge tece ao seu TLP pelo qual foi responsaacutevel pelo primeiro esboccedilo da sua
traduccedilatildeo para inglecircs que despertam Wittgenstein para os problemas desta obra e o
lanccedilam na segunda fase da sua filosofia Nestes primeiros anos depois do regresso a
Cambridge desenrolam-se diaacutelogos nem sempre paciacuteficos com o Ciacuterculo de Viena
designadamente com Friedrich Waismann and Moritz Schlick onde por algum tempo
parecem partilhar do mesmo princiacutepio de verificacionismo que vem a ser abandonado
por Wittgenstein Se estas parecem ter sido as influecircncias mais determinantes deste
periacuteodo de renovaccedilatildeo da sua filosofia natildeo haacute duacutevida de que a filosofia de Gottlob Frege
e a de Bertrand Russell foram o ponto de partida para a sua filosofia da primeira fase6
De uma outra maneira as filosofias de Kant e de Schopenhauer fazem-se sentir em
certos aspetos mas nunca de forma sistemaacutetica nos escritos estudados deste periacuteodo
5 ENGELMANN Mauro Luiz Wittgensteinrsquos Philosophical Development Phenomenology Grammar Method and the Anthropological View Palgrave Macmillan New York 2013 pp 1-4
6 Para uma biografia de Wittgenstein e em particular a que respeita ao periacuteodo investigado ver MONK Ray Ludwig Wittgenstein The Duty of Genius Vintage Books London 1991 pp 1-335
5
D
A investigaccedilatildeo levada a cabo propocircs-se antes de mais fazer uma interpretaccedilatildeo
direta dos textos das obras analisadas e tanto quanto possiacutevel natildeo lhe acrescentando
subentendidos ou conjeturas ou forccedilando distorccedilotildees convenientes Sabendo de antematildeo
a aversatildeo de Wittgenstein a teorias ou teses por ele consideradas construccedilotildees
hipoteacuteticas ou dogmaacuteticas natildeo entendemos que isso fosse impeditivo de a sua filosofia
ser um todo de ideias tendencialmente coerentes entre si que demarca uma determinada
visatildeo filosoacutefica A abordagem hermenecircutica aos seus textos buscou uma compreensatildeo
global que permitisse delinear de modo objetivo uma perspetiva estruturada da
filosofia de Wittgenstein Esta abordagem foi poreacutem dificultada pelo seu estilo de texto
filosoacutefico que propiacutecia amiuacutede a divergecircncia interpretativa Assim sempre que as
ideias partilhavam o mesmo assunto mas eram apresentadas de forma fragmentada e
dispersa na obra como eacute frequente nas PR e sobretudo no BT reuniram-se e
conjugaram-se essas ideias de modo a que entre elas natildeo fosse possiacutevel a contradiccedilatildeo
mas aceitaacutevel se fosse o caso a diversidade inconclusiva ou a duacutevida sobre o seu
sentido comum Seguimos o princiacutepio de que a compreensatildeo de um conjunto temaacutetico
de ideias devia ser assimilada na compreensatildeo global do pensamento filosoacutefico integral
Ele veio a constituir o principal criteacuterio usado para assentar em determinada
interpretaccedilatildeo desde que essa interpretaccedilatildeo fosse sustentaacutevel em provas textuais
inequiacutevocas e natildeo fosse notoriamente contrariada por outras A compreensatildeo
interpretativa global das obras analisadas segundo as questotildees que dirigiram esta
investigaccedilatildeo foi por conseguinte uma construccedilatildeo progressiva em que o arranjo loacutegico
das partes temaacuteticas foram dando origem a uma certa visatildeo filosoacutefica Neste processo
as obras de outros autores foram naturalmente consideradas jaacute que as mesmas estavam
subjacentes aos escritos de Wittgenstein Mas foram finalmente tambeacutem tidos em
conta os textos interpretativos de outros autores que em certas mateacuterias deram origem a
alguns acertos no que jaacute se tinha realizado ou entatildeo a disputas interpretativas sobre as
quais assumimos posiccedilatildeo Muitos foram os textos referenciados pela oportunidade de
estenderem e enriquecerem a nossa leitura das obras investigadas Outros porque nos
remetiam para debates que vieram a acontecer a propoacutesito de obras posteriores mas que
jaacute nas obras em anaacutelise estavam de algum modo presentes as questotildees que os
6
mobilizaram Natildeo eacute demais assinalar a importacircncia que todos estes textos tiveram para
esta investigaccedilatildeo
E
Apresentam-se de seguida os principais resultados a que chegou o presente
trabalho os quais espelham de forma concisa as suas conclusotildees finais
bull A loacutegica formal e com ela a estrutura loacutegica do mundo ficam pelo caminho
com a transiccedilatildeo para a segunda fase do pensamento filosoacutefico de Wittgenstein Sucede-
lhe a gramaacutetica da linguagem comum que representa arbitrariamente o mundo
bull Agrave sua filosofia de 1929 soacute interessa a fenomenologia da linguagem querendo
isto significar a investigaccedilatildeo da linguagem que representa os fenoacutemenos isto eacute a
experiecircncia do imediatamente dado da realidade Eacute atraveacutes da investigaccedilatildeo
fenomenoloacutegica que Wittgenstein chega agrave gramaacutetica agraves regras de uso das palavras nas
proposiccedilotildees ficando assim fixado o seu significado A investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute a
investigaccedilatildeo gramatical Mas eacute essa mesma investigaccedilatildeo que constata que pode haver
proposiccedilotildees com sentido cujas palavras satildeo usadas livres das suas regras As regras
gramaticais natildeo satildeo dogmas
bull Assim a praacutetica da linguagem que intenta a representaccedilatildeo do que natildeo satildeo
fenoacutemenos manifesta um uso patoloacutegico um uso contraacuterio agrave gramaacutetica da expressatildeo do
pensamento A filosofia que era antes uma atividade de elucidaccedilatildeo passa a ser agora
uma terapia de problemas gramaticais que satildeo pseudoproblemas filosoacuteficos motivados
pela inquietaccedilatildeo com o mundo tal como eacute dado na sua experiecircncia imediata
bull O pensamento como operaccedilatildeo cognitiva como um mecanismo de que a
linguagem eacute a sua parte manifesta eacute uma falsa analogia pois essa operaccedilatildeo natildeo eacute um
fenoacutemeno A linguagem eacute incapaz de o dotar de sentido ndash jaacute assim era no TLP A
gramaacutetica da palavra laquopensamentoraquo estabelece o seu significado como expressatildeo na
linguagem E a palavra laquocompreensatildeoraquo significa toda a accedilatildeo humana consentacircnea com a
expressatildeo do pensamento sendo que nem toda a accedilatildeo eacute compreensatildeo havendo accedilotildees
que satildeo meramente expressivas ou simboacutelicas
7
bull O pensamento expressa-se a seguir regras e esse eacute o seu modo constitutivo de
expressatildeo na linguagem Daiacute que essa expressatildeo possa ser comparada a um caacutelculo que
tem o sentido que lhe eacute dado pelo jogo de linguagem que se joga num certo contexto O
pensamento assim encarado eacute capaz de expressar-se sobre a sua proacutepria expressatildeo
Esta eacute razatildeo pela qual ele enuncia proposiccedilotildees gramaticais cujo sentido satildeo as regras
gramaticais de uso das palavras Se no TLP o pensamento eacute impensaacutevel no BT passa a
ser pensaacutevel na perspetiva em que pode pronunciar-se sobre a expressatildeo do pensamento
bull O pensamento expressa-se usando palavras que seguem regras gramaticais que
satildeo arbitraacuterias ou seja palavras cujos significados satildeo arbitraacuterios As proposiccedilotildees
ganham o seu sentido usando as palavras em certos contextos de acordo com jogos de
linguagem igualmente arbitraacuterios Deste modo tambeacutem o sentido das proposiccedilotildees eacute
arbitraacuterio As proposiccedilotildees natildeo respondem perante a realidade que representam O que a
linguagem diz sobre a realidade natildeo tem em si o criteacuterio que permite decidir a verdade
ou a falsidade do que diz por comparaccedilatildeo com a realidade Os usos das palavras
laquoverdaderaquo e laquofalsidaderaquo soacute satildeo determinados pela sua gramaacutetica Mais uma vez ao
contraacuterio do que o TLP afirmava eacute possiacutevel ao pensamento expressar-se com sentido
sobre a verdade ou falsidade do que ele mesmo expressa
bull A matemaacutetica continua a ser concebida como natildeo sendo uma expressatildeo do
pensamento pois eacute constituiacuteda somente pelos seus signos que usados num caacutelculo pelo
caacutelculo com vista a determinar a verdade ou falsidade das suas proposiccedilotildees satildeo
desprovidos de sentido Contudo a gramaacutetica da palavra laquomatemaacuteticaraquo ganha o seu
significado com a aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade
bull Enfim tudo o que a linguagem mostrava e natildeo podia ser dito e mesmo assim o
pensamento caiacutea na tentaccedilatildeo de o expressar de dar voz ao que pertencia ao campo da
ontologia da metafiacutesica ou do psiacutequico eacute finalmente e definitivamente silenciado O
pensamento filosoacutefico soacute se pode expressar como forma de terapia sobre o pensamento
que se expressa sobre o que natildeo satildeo fenoacutemenos A verdade da expressatildeo do pensamento
filosoacutefico depende tatildeo-soacute da sua expressatildeo seguir regras gramaticais instituiacutedas Para
isso basta-lhe natildeo recorrer a explicaccedilotildees teorias ou teses que com base na conjetura
alteram as coisas de modo a acalmar a sua inquietude com o mundo tal como ele eacute
Nisto na impossibilidade do pensamento metafiacutesico veem alguns a sua filosofia como
antifilosofia
8
bull No essencial esta conceccedilatildeo de pensamento parece natildeo sofrer alteraccedilatildeo
significativa nas PI e RPP I RPP II e LWPP
F
Este estudo estaacute organizado em trecircs partes precedidas por esta introduccedilatildeo e
culminadas numa conclusatildeo final a que jaacute fizemos referecircncia Nesta conclusatildeo
encontram-se breves consideraccedilotildees sobre em que medida as conclusotildees a que chegamos
tecircm continuidade em obras posteriores de Wittgenstein Natildeo pretendermos com essas
consideraccedilotildees nem isso estaacute no acircmbito de investigaccedilatildeo deste trabalho ser conclusivos
sobre a questatildeo da continuidade dos resultados a que chegamos mas tatildeo-soacute darmos
conta do que uma anaacutelise exploratoacuteria de algumas dessas obras posteriores e de
preferecircncia secundada por comentadores de referecircncia nos permitiu perceber Cada
uma das trecircs partes deste estudo centra-se numa das trecircs obras fundamentais da filosofia
de Wittgenstein do periacuteodo considerado A cronologia da produccedilatildeo destas obras
determinou a sua afetaccedilatildeo a cada uma das partes Assim a primeira parte trata do TLP
a segunda parte dedica-se agraves PR e a terceira parte concentra-se na anaacutelise do BT Em
cada uma destas partes para aleacutem das obras mencionadas foram igualmente analisados
outros textos do filoacutesofo que satildeo da mesma altura da obra central estudada os NB na
primeira parte os SRLF e LE na segunda parte e a primeira parte das RFGB na
terceira parte As trecircs partes estatildeo organizadas num conjunto de capiacutetulos e uma secccedilatildeo
de notas conclusivas Estas notas sublinham os principais resultados alcanccedilados com a
anaacutelise filosoacutefica desempenhada no respetivo conjunto de capiacutetulos O que consta
genericamente de cada conjunto de capiacutetulos eacute de seguida apresentado Satildeo trecircs
capiacutetulos que compotildeem a primeira parte Estes capiacutetulos investigam a existecircncia do
pensamento e do seu agente o seu poder e limites e as implicaccedilotildees para a filosofia A
segunda parte estaacute estruturada em quatro capiacutetulos em que os dois primeiros estudam as
relaccedilotildees entre o pensamento a linguagem e os fenoacutemenos e os dois uacuteltimos as
implicaccedilotildees filosoacuteficas destas relaccedilotildees na matemaacutetica e na eacutetica A terceira e uacuteltima
parte desenvolve-se em cinco capiacutetulos sendo que os dois uacuteltimos agrave semelhanccedila da
segunda parte avaliam as implicaccedilotildees filosoacuteficas desta feita sobre a matemaacutetica e a
religiatildeo dos resultados da anaacutelise filosoacutefica realizada nos trecircs primeiros A referida
anaacutelise incide sobre a nova conceccedilatildeo que Wittgenstein tem do pensamento a
9
compreensatildeo e o pensamento filosoacutefico em que se destaca o papel do sistema
gramatical
G
Resta ainda um apontamento final sobre citaccedilotildees e respetivas traduccedilotildees As
citaccedilotildees satildeo sempre realizadas em liacutengua portuguesa que eacute a liacutengua usada para a
redaccedilatildeo deste estudo Utiliza-se sempre que exista a traduccedilatildeo publicada em portuguecircs
de uma obra em liacutengua estrangeira de onde se extraia citaccedilotildees Somente quando natildeo
exista essa traduccedilatildeo se encarrega o autor deste estudo de a realizar Em qualquer caso
as citaccedilotildees vecircm sempre que possiacutevel acompanhadas em nota de rodapeacute do texto
citado na liacutengua original Se um texto foi estudado numa sua traduccedilatildeo em liacutengua
estrangeira as citaccedilotildees que dele se extraia satildeo referidas em nota de rodapeacute nessa
mesma liacutengua e se possiacutevel na sua liacutengua original Acrescente-se tambeacutem que as
referecircncias com recurso a abreviaturas das obras de Wittgenstein quando seguidas por
um simples nuacutemero este refere-se ao paraacutegrafo ou agrave secccedilatildeo da respetiva obra mas se
esse nuacutemero for precedido por laquopraquo ou laquoppraquo ele corresponde agrave(s) paacutegina(s) nela
considerada(s) As abreviaturas podem igualmente ser acompanhadas pela indicaccedilatildeo do
manuscrito ou dactiloscrito referenciado assim como pela data a que respeita o
conteuacutedo a que se faz menccedilatildeo
10
PARTE I ndash O PENSAMENTO COMO IMAGEM LOacuteGICA DO
MEU MUNDO
11
Capiacutetulo 1 ndash O Pensamento e o Solipsismo
Aquele que pretende duvidar de tudo natildeo pode no entanto duvidar que existe enquanto duvida e que aquele que assim raciocina natildeo podendo duvidar de si proacuteprio e todavia duvidando de tudo o resto natildeo eacute aquilo a que chamamos corpo mas sim aquilo a que chamamos alma ou pensamento Assim considerei o ser ou a existecircncia de tal pensamento como o primeiro princiacutepio do qual deduzi muito claramente os seguintes que Deus existe e eacute o autor de tudo o que existe no mundo e que sendo a fonte da verdade natildeo criou o nosso entendimento de tal maneira que este se possa enganar no juiacutezo que faz das coisas e das quais tem uma perceccedilatildeo muito clara e muito distinta7
A Existecircncia do Pensamento
Em 9 de Novembro de 1916 Wittgenstein escreve
Seraacute a feacute uma experiecircncia
Seraacute o pensamento uma experiecircncia Toda a experiecircncia eacute mundo e natildeo necessita de sujeito
O ato de vontade natildeo eacute uma experiecircncia8 (NB 91116 p 131)
Se a experiecircncia (Erfahrung) eacute mundo entatildeo a interrogaccedilatildeo sobre se o pensamento e a
feacute satildeo experiecircncias equivale agrave interrogaccedilatildeo sobre se eles satildeo mundo Mas o que eacute o
mundo para Wittgenstein Do que ele eacute dependem aqueles conceitos pertencerem ao
mundo ou estarem fora dele como eacute o caso segundo o filoacutesofo do ato de vontade
Logo a abrir a sua obra TLP ele afirma que o mundo eacute tudo o que eacute o caso e o que eacute o
caso tido como facto eacute a existecircncia (Bestehen) de estados de coisas isto eacute a existecircncia
7 DESCARTES Reneacute ldquoCarta do autor ao tradutor francecircs ao jeito de prefaacuteciordquo in Princiacutepios de Filosofia Joatildeo Gama (trad) Ediccedilotildees 70 Lisboa 2006 p 19
8 ldquoIst der Glaube eine Erfahrung Ist der Gedanke eine Erfahrung Alle Erfahrung ist Welt und braucht nicht das Subjekt Der Willensakt ist keine Erfahrungrdquo (NB 91116 p 184)
12
de uma conexatildeo entre coisas (cf TLP 1 2 e 201)9 Assim parece que a questatildeo
decisiva eacute saber se o pensamento ou a feacute satildeo algo que existe como conexatildeo entre coisas
isto eacute se satildeo factos pois a sua possibilidade de existecircncia soacute poderaacute residir na
possibilidade de serem factos Na verdade mesmo que natildeo sejam existentes isso natildeo
impede que faccedilam parte da realidade pois esta compreende a existecircncia e a natildeo
existecircncia de estados de coisas (cf TLP 206) Contudo tal possibilidade a da natildeo
existecircncia a de serem factos negativos depende ainda assim de estes conceitos terem a
possibilidade de corresponder a estados de coisas
Centremo-nos sobre a questatildeo da existecircncia do pensamento considerando desde
logo a conceccedilatildeo de existecircncia em Wittgenstein Diz-nos ele que uma existecircncia
(Existenz) eacute uma possibilidade partilhada quer pelo lugar espacial ou geomeacutetrico quer
pelo lugar loacutegico (cf NB 71114 p 44 e TLP 3411) Precisando quer isto dizer que o
que tem existecircncia encontra-se concomitantemente nos dois lugares no espacial e no
loacutegico Cada uma das coisas pela sua forma isto eacute espaccedilo tempo e cor tem a
possibilidade de ocorrer em diferentes configuraccedilotildees espaciais com outras coisas as
quais correspondem a possiacuteveis estados de coisas (cf TLP 2013 2014 20141 e
20272)10 Mas ao mesmo tempo o que tem lugar no espaccedilo eacute apresentado no lugar
loacutegico como sua imagem como um modelo da realidade a partir da qual se chega agrave
existecircncia ou natildeo existecircncia de estados de coisas (cf TLP 113 211 e 212) A
realidade eacute dada pela imagem dos factos Por isso a imagem do mundo descreve-o
constituiacutedo por coisas na relaccedilatildeo entre si os elementos que compotildeem a imagem
9 A traduccedilatildeo da palavra alematilde laquoBestehenraquo por laquoexistecircnciaraquo natildeo deve perder de vista que o significado desta palavra em alematildeo tem outras acepccedilotildees que podem ser pertinentes considerar para melhor compreender o pensamento de Wittgenstein Enquanto substantivo ela partilha com a palavra laquoExistenzraquo os significados de laquoexistecircnciaraquo e laquosubsistecircnciaraquo mas como verbo ela quer igualmente dizer ldquoserrdquo ou ldquoconsistir emrdquo Nesta uacuteltima acepccedilatildeo a palavra ldquoBestehenrdquo pode ter uma dimensatildeo ontoloacutegica que pode ir para aleacutem do que se pode compreender na palavra Existenz designadamente a ldquocoisa em sirdquo inapreensiacutevel Ora no TLP Wittgenstein usa a palavra Bestehen sobretudo como substantivo que significa existecircncia ou subsistecircncia por exemplo nas proposiccedilotildees 2 20121 206 20622 211 2201 41 4122 4124 4125 42 421 427 e 43 O seu uso como verbo ou mesmo como adjetivo (bestehenden) natildeo parece nas frases que o articulam ter relevacircncia ontoloacutegica Julgamos assim que a ontologia no TLP se alicerccedila em torno das palavras laquoexistecircnciaraquo ou laquosubsistecircnciaraquo (Agradeccedilo ao falecido Prof Doutor Arley Ramos Moreno que foi professor da Universidade Estadual de Campinas a chamada de atenccedilatildeo para a importacircncia desta questatildeo semacircntica Esta nota eacute contudo da minha total responsabilidade)
10 A possibilidade de estados de coisas natildeo depende somente da forma das coisas mas tambeacutem do seu conteuacutedo As coisas como objetos simples que constituem a substacircncia do mundo tecircm de ter forma firme e subsistente A existecircncia no lugar espacial enquanto estados de coisas requer objetos substantivos Desta condiccedilatildeo depende tambeacutem a possibilidade de projetar uma imagem do mundo que possa ser verdadeira ou falsa (Cf TLP 202 2021 20212 2024 2027 e 20271)
13
correspondem agraves coisas do mundo satildeo delas representantes e a forma de
relacionamento desses elementos apresenta-se como possibilidade de as coisas
efetivamente se relacionarem entre si dessa maneira A imagem como forma loacutegica de
relacionamento de elementos tem pois a forma da realidade para dela poder ser uma
representaccedilatildeo pictoacuterica Eacute isto que estaacute na base da teoria pictoacuterica de Wittgenstein (cf
TLP 213 2131 214 2151 e 218)
Poder-se-aacute entatildeo dizer que o pensamento tem existecircncia Que corresponde agrave
existecircncia de um estado de coisas de que fazemos uma imagem A observaccedilatildeo seguinte
dos NB equaciona essa possibilidade
Torna-se agora claro porque pensei eu que pensar e falar eram o mesmo O pensar eacute uma espeacutecie da linguagem O pensamento eacute decerto tambeacutem uma imagem loacutegica da proposiccedilatildeo e assim eacute igualmente uma espeacutecie de proposiccedilatildeo11 (NB 12916 p 122)
Sendo a proposiccedilatildeo na forma de sinal proposicional um facto12 uma articulaccedilatildeo de
palavras composta logicamente (cf TLP 314 3141 e 4032) Wittgenstein pondera
sobre se o pensamento natildeo seraacute apenas a imagem loacutegica da proposiccedilatildeo Sobre o ato de
pronunciar escrever ou ler a proposiccedilatildeo como conexatildeo entre coisas projeta-se como
imagem loacutegica o que se designa por pensamento a proposiccedilatildeo tem no seu sinal um
lugar espacial a que corresponde um lugar loacutegico o da sua representaccedilatildeo como
pensamento Na circunstacircncia de haver uma identidade loacutegica entre proposiccedilatildeo e
pensamento do sinal proposicional e da sua imagem loacutegica natildeo se poderia negar a
existecircncia do pensamento sem negar a da proposiccedilatildeo Deste modo seria liacutecito dizer-se
que o pensamento como imagem loacutegica do falar eacute ele mesmo uma espeacutecie de
linguagem
Todavia eacute-nos dito no TLP que o pensamento eacute a imagem loacutegica dos factos (cf
TLP 3) De todos os factos e natildeo apenas do facto constituiacutedo pela escrita da proposiccedilatildeo
ou pelo falar Mas do mesmo modo que o pensamento eacute a imagem loacutegica de qualquer
11 ldquoJetzt wird klar warum ich dachte Denken und Sprechen waumlre dasselbe Das Denken naumlmlich ist eine Art Sprache Denn der Gedanke ist natuumlrlich auch ein logisches Bild des Satzes und somit ebenfalls eine Art Satzrdquo (NB 12916 pp 177-178)
12 E na medida em que a proposiccedilatildeo eacute uma imagem de um facto a imagem eacute ela mesma um facto (cf TLP 2141)
14
facto tambeacutem o eacute do sinal proposicional jaacute que ele mesmo eacute igualmente um facto A
proposiccedilatildeo como sinal proposicional estaacute ao mesmo niacutevel de outros factos sobre os
quais pensamos Isto parece pocircr em causa a mencionada identidade loacutegica da proposiccedilatildeo
e pensamento e consequentemente a possibilidade da existecircncia do pensamento pois
este ao ser a imagem loacutegica dos factos natildeo eacute ele mesmo um facto do qual se tenha uma
imagem loacutegica Se a possibilidade do facto que eacute pensado estaacute contida no pensamento
(cf TLP 302) natildeo sendo um facto possiacutevel o pensamento natildeo pode pensar-se a si
mesmo Logo o pensamento natildeo pertenceraacute ao mundo mas eacute antes uma condiccedilatildeo da
existecircncia do proacuteprio mundo o mundo existe enquanto pensamento de estados de coisas
dados no espaccedilo
Wittgenstein nega poreacutem que a proposiccedilatildeo e o pensamento se relacionem entre
si apenas como se relaciona qualquer facto com a sua imagem loacutegica Para ele a
proposiccedilatildeo eacute a expressatildeo do pensamento ou melhor a proposiccedilatildeo eacute um facto que
exprime percetivelmente o pensamento no sinal proposicional aleacutem de ser a imagem
loacutegica deste sinal como de todos os demais factos (cf TLP 31 e 35) Natildeo eacute pois um
facto como outro qualquer senatildeo uma manifestaccedilatildeo do pensamento que pensa todos os
factos incluindo o da sua proacutepria expressatildeo Assim se em rigor o pensamento natildeo pode
pensar-se a si proacuteprio pode contudo pensar o que exprime em proposiccedilotildees Percebe-se
agora melhor porque eacute que o pensar eacute uma espeacutecie de linguagem Natildeo soacute o pensamento
tem imagens loacutegicas das proposiccedilotildees como se exprime sob a forma de proposiccedilotildees A
tal ponto que torna possiacutevel por assim dizer o diaacutelogo entre proposiccedilotildees o que
normalmente designamos por conversaccedilatildeo ou reflexatildeo Um diaacutelogo que nunca poderaacute
referir-se a outra coisa que natildeo ao mundo pois o que o pensamento pode dizer di-lo
sempre acerca do mundo (cf TLP 2022) As proposiccedilotildees ao procederem do
pensamento que eacute como vimos uma imagem loacutegica dos factos satildeo naturalmente uma
imagem da realidade tal como eacute pensada (cf TLP 401) Deste modo o pensamento
devolve ao mundo a sua imagem loacutegica sob a forma da representaccedilatildeo proposicional E
toda a representaccedilatildeo proposicional pode dar origem a novas proposiccedilotildees de um modo
recorrente e potencialmente infindo sem que nisso contudo se deixe de algum modo
pensar o mundo
Mas natildeo eacute como imagem loacutegica que o pensamento tem existecircncia no mundo O
que tem existecircncia eacute a proposiccedilatildeo natildeo propriamente o pensamento mas a sua expressatildeo
15
apreensiacutevel o sinal proposicional13 Apenas a proposiccedilatildeo como sinal proposicional eacute
um facto de que eacute possiacutevel fazer uma imagem loacutegica Ainda assim pode-se argumentar
que este facto natildeo eacute igual a outros factos pois ele emana como expressatildeo do proacuteprio
pensamento Ora a proposiccedilatildeo mostra a imagem do que no pensamento eacute a
representaccedilatildeo pictoacuterica da realidade Natildeo obstante mais uma vez natildeo eacute a imagem mas
o sinal proposicional que tem existecircncia como um estado de coisas de que se pode fazer
uma imagem Somente do sinal se pode dizer que participa da substacircncia do mundo da
forma firme e subsistente que caracterizam as coisas do mundo (cf TLP 2021 2024 e
2027) Em resumo o pensamento em si mesmo natildeo tem existecircncia que natildeo seja a das
proacuteprias proposiccedilotildees enquanto sinais proposicionais que satildeo uma sua expressatildeo
Voltamos assim agrave ideia de que o pensamento existe nas proposiccedilotildees e assim sendo
como foi ventilado por Wittgenstein pensar e falar satildeo o mesmo (cf NB 12916 p
122) Mas na condiccedilatildeo de que a existecircncia do pensamento resida meramente na sua
proacutepria expressatildeo percetiacutevel
Wittgenstein tambeacutem nos diz que o pensamento eacute a proposiccedilatildeo desde que ela
mostre o seu sentido mostre a possibilidade da existecircncia ou natildeo existecircncia de estados
de coisas (cf TLP 4 e 4022) A proposiccedilatildeo eacute mais do que o respetivo sinal
proposicional pois ela mostra a imagem loacutegica do que representa e configura desse
modo a possibilidade da sua existecircncia ou natildeo existecircncia (cf TLP 41) Ao mostrar o
sentido das proposiccedilotildees o pensamento eacute algo sem a possibilidade de existecircncia ou natildeo
existecircncia uma vez que aquilo que eacute mostrado natildeo pode ser dito (cf TLP 41212) por
natildeo ser um facto Poreacutem a ausecircncia desta possibilidade natildeo o impede que se exprima
em algo com existecircncia ou seja no sinal proposicional Daiacute que ele afirme que ldquoO sinal
proposicional empregue e pensado eacute o pensamentordquo (TLP 35)14 Adianta mesmo que
aos objetos do pensamento correspondem enquanto sua expressatildeo os elementos do
sinal proposicional (cf TLP 32) Existe deste modo uma correspondecircncia entre o
pensamento como imagem dos factos e a sua expressatildeo na forma de sinal proposicional
Na resposta agrave questatildeo que Bertrand Russell lhe dirige sobre se o pensamento
(Gedanke) consiste em palavras Wittgenstein em carta datada de 1981919 que
13 A diferenccedila que Wittgenstein estabelece nas proposiccedilotildees 332 e 3324 entre o signo percetiacutevel e o siacutembolo transcendental eacute segundo Dale Jacquette influecircncia de Schopenhauer (cf JACQUETTE Dale ldquoWittgenstein and Schopenhauerrdquo in Hans-Johann Glock and John Hyman (eds) A Companion to Wittgenstein John Wiley amp Sons Oxford 2017 pp 61-63)
14 ldquoDas angewandte gedachte Satzzeichen ist der Gedankerdquo (TLP 35)
16
acompanha a coacutepia do TLP que lhe envia responde perentoriamente que natildeo que ele
consiste em constituintes psiacutequicos sobre os quais nada sabe Diz ainda que estes
constituintes ldquo[] tecircm o mesmo geacutenero de relaccedilatildeo com a realidade que as palavrasrdquo15
Nessa carta em resposta a outra questatildeo colocada por Russell assevera tambeacutem que
estes constituintes correspondem agraves palavras da linguagem e que eacute tarefa da psicologia
descobrir a relaccedilatildeo entre eles16 Deste modo afasta liminarmente da filosofia a
possibilidade de investigar o que eacute o pensamento do ponto de vista psicoloacutegico17 Para a
filosofia pelo menos para a de Wittgenstein o pensamento eacute a proposiccedilatildeo com sentido
que eacute exprimido pelo sinal proposicional como projeccedilatildeo da possibilidade de existecircncia
ou natildeo existecircncia de estados de coisas (cf TLP 311) Mas a proposiccedilatildeo alerta-nos ele
eacute suscetiacutevel de mascarar o pensamento sem que este decirc imediatamente a conhecer a sua
forma na linguagem (cf TLP 4002) E uma vez que a linguagem eacute capaz de disfarccedilar o
pensamento cabe entatildeo agrave filosofia fazer-lhe uma criacutetica que clarifique as suas formas
loacutegicas as formas do pensamento (cf TLP 4003 40031 e 4112)
O Sujeito do Pensamento
Se o pensamento eacute a proposiccedilatildeo com sentido que dizer entatildeo do sujeito do
pensamento Eacute suposto que o pensamento seja daquele que o pensa daquele que o tem
que o pensamento tenha objetos solicitados por quem os queira pensar que a expressatildeo
do pensamento seja uma manifestaccedilatildeo do pensar da construccedilatildeo iacutentima e silenciosa que
forma a consciecircncia de cada um Wittgenstein rejeita completamente esta ideia comum
e natildeo tem duacutevidas em afirmar que o sujeito pensante natildeo tem existecircncia que o
pensamento natildeo necessita da existecircncia de um pensador (cf TLP 5631) E natildeo
obstante aparenta contradizer-se quando assevera que ldquoNoacutes fazemos imagens dos
15 ldquoExcertos de Cartas de Wittgenstein a Russell 1912-20rdquo in NB p 186 ldquo[hellip] have the same sort of relation to reality as wordsrdquo (CL ldquoLetter to B Russell 1981919rdquo p 99)
16 Cf ibidem p 186
17 Mesmo assim Wittgenstein natildeo deixa de temer que a sua proacutepria investigaccedilatildeo se imiscua com o que eacute do acircmbito proacuteprio da psicologia ldquoNatildeo corresponde o meu estudo da linguagem simboacutelica ao estudo dos processos do pensamento que os filoacutesofos consideravam tatildeo essencial para a filosofia da loacutegica Soacute que eles se embrenharam na sua maior parte em investigaccedilotildees psicoloacutegicas natildeo essenciais e haacute tambeacutem um perigo anaacutelogo no meu meacutetodordquo ldquoEntspricht nicht mein Studium der Zeichensprache dem Studium der Denkprozesse welches die Philosophen fuumlr die Philosophie der Logik fuumlr so wesentlich hielten Nur verwickelten sie sich meistens in unwesentliche psychologische Untersuchungen und eine analoge Gefahr gibt es auch bei meiner Methoderdquo (TLP 41121)
17
factosrdquo18 (TLP 21) sugerindo aqui um putativo sujeito que erige as referidas imagens
Ou quando somos levados a supor que com a afirmaccedilatildeo de que ldquoNa proposiccedilatildeo o
pensamento exprime-se de modo percetiacutevel pelos sentidosrdquo19 (TLP 31) o pensamento
tem uma existecircncia independente da sua expressatildeo que subsiste para aleacutem da
proposiccedilatildeo e que esta eacute um produto separaacutevel do seu agente Cedendo-se a uma
interpretaccedilatildeo conveniente poder-se-ia ateacute considerar que o que se tem em vista eacute um
conceito de pensamento que existe como sujeito do pensado e daiacute que seja ele a fazer as
imagens dos factos
Mas tudo isto que parece presumir a existecircncia de um sujeito natildeo passa de
conjeturas que caem imediatamente por terra perante a afirmaccedilatildeo de que o sujeito natildeo
pertence ao mundo (cf TLP 5632) Natildeo eacute soacute o sujeito representante que eacute uma ilusatildeo
(cf NB 5816 p 118 e 201016 p 127) eacute o proacuteprio sujeito em geral que natildeo tem
existecircncia Agrave ideia de que o corpo humano como o meu corpo naturalmente dotado de
alma faz prova do sujeito contrapotildee Wittgenstein de que este corpo natildeo eacute mais de que
uma parte do mundo entre muitas outras partes estando ao mesmo niacutevel do corpo de
uma pedra ou de um animal (cf NB 2916 pp 121-122 e 121016 p 124) Tambeacutem
o sujeito possuidor de alma o sujeito psicoloacutegico natildeo tem existecircncia ou seja o eu no
sentido psicoloacutegico natildeo existe (cf TLP 5641) E quem pretenda ver no seu corpo uma
expressatildeo da sua alma engana-se pois entre eles natildeo haacute evidecircncia que suporte uma tal
inferecircncia Jaacute sobre o espiacuterito que pretensamente atribuiacutemos a outros corpos vivos soacute
podemos notar que chegamos a ele da mesma maneira falaz com que reconhecemos nas
expressotildees do nosso proacuteprio corpo o nosso espiacuterito (cf NB 151016 pp 125-126)
Como compreender entatildeo as mencionadas referecircncias impliacutecitas a um certo
sujeito do pensamento Se o sujeito natildeo existe como natildeo considerar paradoxal a
afirmaccedilatildeo que assinala distintamente uma certa posiccedilatildeo filosoacutefica de que ldquoEu sou o
meu mundo (O microcosmo)rdquo20 (TLP 563) Repare-se que natildeo eacute dito que laquoeu sou
mundoraquo o que faria com que o sujeito e o mundo fossem uma soacute e a mesma coisa
18 ldquoWir machen uns Bilder der Tatsachenrdquo (TLP 21) A traduccedilatildeo portuguesa (ldquoFazemo-nos imagens dos factosrdquo) foi alterada tendo em consideraccedilatildeo uma observaccedilatildeo criacutetica que o Professor Nuno Venturinha fez sobre esta traduccedilatildeo A alteraccedilatildeo efetuada eacute da minha exclusiva responsabilidade Cf VENTURINHA Nuno ldquoWittgenstein on Translation Sense-for-sense and Epistemological Issuesrdquo in Paulo Oliveira Alois Pichler e Arley Moreno (eds) Wittgenstein inon Translation UNICAMP Campinas 2019 pp 189-202 onde eacute sugerido ldquoFazemos para noacutes imagens dos factosrdquo (p 192)
19 ldquoIm Satz druumlckt sich der Gedanke sinnlich wahrnehmbar ausrdquo (TLP 31)
20 ldquoIch bin meine Welt (Der Mikrokosmos)rdquo (TLP 563)
18
significando que a existecircncia do mundo eacute a mesma do sujeito Nada mais com isto seria
dito para aleacutem do que se pode dizer com laquoo mundo eacute mundoraquo e portanto ao ser uma
tautologia nada significaria (cf TLP 4461) O que efetivamente eacute afirmado eacute que laquoo
mundo eacute o meu mundoraquo e eacute precisamente por esta razatildeo que o eu merece consideraccedilatildeo
filosoacutefica Mas o eu que tem cabimento filosoacutefico natildeo eacute o psicoloacutegico eacute o eu no sentido
metafiacutesico (cf TLP 5641) Eacute caso entatildeo para perguntar ldquoOnde encontrar no mundo
um sujeito metafiacutesicordquo21 (TLP 5633) A analogia do olho que natildeo se vecirc a si mesmo no
campo visual daacute a ideia do que se estaacute a falar quando se refere o sujeito metafiacutesico (cf
TLP 5633 e 56331) Este sujeito eacute como se fosse o olho que misteriosamente se
percebe a ver sem se encontrar a si no que vecirc Sabe que o mundo existe mas ele mesmo
natildeo tem existecircncia Com efeito ele natildeo eacute parte do mundo e justamente por natildeo ter a
possibilidade de existecircncia a sua natureza eacute um misteacuterio No entanto ele eacute uma
condiccedilatildeo necessaacuteria agrave existecircncia do mundo (cf NB 2816 p 118 e 5816 p 119)
O mundo existe na medida em que o sujeito como ponto sem extensatildeo o
abrange faz dele uma imagem loacutegica de tal modo que ele mesmo eacute o limite do mundo
(cf TLP 5632 e 564) Daiacute que o mundo seja laquoo meu mundoraquo e os seus limites os
limites dados a partir da sua representaccedilatildeo pictoacuterica A expressatildeo seguinte resume esta
ideia de forma lapidar ldquoOs limites da minha linguagem significam os limites do meu
mundordquo22 (TLP 56) O mundo vai ateacute onde a linguagem consegue alcanccedilar A
totalidade das proposiccedilotildees elementares verdadeiras delimitam o mundo (cf TLP 426)
na medida em que soacute o que se pode pensar se pode dizer ele tem o alcance do que eacute
pensaacutevel (cf TLP 561) Assim como se afirma que o sujeito pensante natildeo existe
tambeacutem se pode dizer que o que existe deve-se ao pensamento do sujeito metafiacutesico A
este por seu turno chegamos a ele da mesma forma que aquele que se procura a si no
que vecirc supotildee o olho a partir do seu campo visual O mundo como pensamento do que
se apercebe a pensar nas proposiccedilotildees que anuncia eacute o mundo do meu pensamento eacute o
meu mundo
O pensamento de Wittgenstein conforma-se deste modo ao solipsismo o
mundo mais natildeo eacute que o meu pensamento o pensamento do sujeito metafiacutesico23 E para
21 ldquoWo in der Welt ist ein metaphysisches Subjekt zu merkenrdquo (TLP 5633)
22 ldquoDie Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Weltrdquo (TLP 56)
23 Se bem que a defesa de uma interpretaccedilatildeo cabalmente natildeo solipsista do TLP pareccedila difiacutecil de realizar Ernst Michael Lange no seu ldquoWittgenstein on Solipsismrdquo procura identificar nesta obra alguns dos
19
o pensamento soacute tem existecircncia o que eacute pensaacutevel e enquanto pensamento isto eacute
proposiccedilotildees sobre factos Aquilo que natildeo podemos pensar natildeo existe natildeo pertence ao
mundo O que natildeo se pode dizer sobre o que natildeo eacute pensaacutevel revela-se ao solipsista
quando sobre isso quer dizer alguma coisa e esbarra com o inexprimiacutevel (cf TLP 561 e
562) Ademais para Wittgenstein o solipsismo coincide com o puro realismo (cf TLP
564) Coincidecircncia esta que soacute aparentemente eacute insondaacutevel se recordarmos o que ele
entende por realidade ndash a existecircncia e a natildeo existecircncia de estados de coisas (cf TLP
206) Na verdade o pensamento sendo a proposiccedilatildeo com sentido pronuncia-se
precisamente sobre a realidade sobre a possibilidade de existecircncia ou natildeo existecircncia de
factos Logo o que o pensamento possa dizer com sentido sobre a realidade constitui
essa mesma realidade confirmando-se ou natildeo a existecircncia de estados de coisas O
pensamento eacute condiccedilatildeo constituinte da existecircncia do mundo A realidade natildeo existe fora
dos pensamentos posto que estes satildeo as imagens loacutegicas dos factos e os factos soacute tecircm
existecircncia na relaccedilatildeo agraves suas imagens Digamos que a coincidecircncia acima referida
poderia ter a seguinte formulaccedilatildeo alternativa laquoo meu pensamento eacute pura realidaderaquo24
fatores incompatiacuteveis com o solipsismo segundo a sua conceccedilatildeo tradicional Ele comeccedila por sublinhar as diferenccedilas do eventual solipsismo de Wittgenstein relativamente ao de Schopenhauer cuja filosofia na sua obra The World as Will and Representation influenciou o TLP em vaacuterios aspetos sem duacutevida quanto ao seu ponto de vista solipsista mas tambeacutem sobre a vontade O modo diverso como cada um encara o sujeito eacute um fator apontado como importante para afastar as suas visotildees particulares do solipsismo para Wittgenstein mas natildeo para Schopenhauer natildeo existe o sujeito incarnado num corpo pensante ou representador contudo ambos concordam num sujeito que eacute accedilatildeo e esta vontade Depois de indicar duas razotildees hermenecircuticas externas para uma leitura antisolipsista do TLP Lange concentra em quatro falhas de Wittgenstein com o solipsismo a defesa dessa leitura (Cf LANGE Ernst Michael ldquoWittgenstein on Solipsismrdquo in Hans-Johann Glock and John Hyman (eds) A Companion to Wittgenstein pp 166-167) No nosso entender essas falhas natildeo potildeem em causa o seu ponto de vista solipsista quanto muito destacam o que ele tem de especiacutefico O solipsismo do TLP resume-se efetivamente e apesar de a tradiccedilatildeo solipsista natildeo a testemunhar na formulaccedilatildeo que ldquoo mundo eacute o meu mundordquo natildeo sendo de todo clara a pretensatildeo de Lange de ver nela uma expressatildeo iroacutenica e criacutetica Ademais Lange encara a proacutepria expressatildeo desta formulaccedilatildeo como uma violaccedilatildeo dos limites da linguagem redundando assim numa expressatildeo sem-sentido mas ao mesmo tempo omite que o TLP estaacute carregado de expressotildees que dizem o que natildeo pode ser dito mas apenas mostrado e que neste sentido essa expressatildeo deve ser discutida no contexto mais vasto desta obra e do meacutetodo seguido pelo seu autor A expressa referecircncia de Wittgenstein agrave natildeo existecircncia do sujeito que para ele mais natildeo eacute que um ponto sem extensatildeo limite do mundo natildeo resulta como Lange sugere num solipsismo sem sujeito mas antes num solipsismo cujo sujeito eacute metafiacutesico Por uacuteltimo a identificaccedilatildeo do solipsismo com o puro realismo natildeo eacute uma contradiccedilatildeo que soacute se dissolve negando o solipsismo se atendermos que o que eacute puro realismo eacute o mundo que existe e este eacute nem mais nem menos o ldquomeu mundordquo o mundo do sujeito que o compreende como seu limite Sobre o tema do solipismo em Wittgenstein ver tambeacutem VENTURINHA Nuno Loacutegica Eacutetica Gramaacutetica Wittgenstein e o Meacutetodo da Filosofia Imprensa Nacional-Casa da Moeda Lisboa 2010 pp 151-156 e VENTURINHA Nuno ldquoWittgenstein Reads Nietzsche The Roots of Tractarian Solipsismrdquo in E Ramharter (ed) Unsocial Sociabilities Wittgensteinrsquos Sources Parerga Berlin 2011 pp 59-74
24 O eu do meu pensamento o eu transcendental eacute o seu proacuteprio pensamento a exprimir-se em proposiccedilotildees pelo que o que elas dizem eacute dito como expressatildeo do eu que assim pensa ldquoEacute contudo claro que lsquoA crecirc que prsquo lsquoA pensa prsquo lsquoA diz prsquo satildeo da forma lsquo rsquoprsquo diz prsquo []rdquo ldquoEs ist aber klar daszlig A glaubt daszlig p A denkt p A sagt p von der Form p sagt p []rdquo (TLP 5542) Se por um lado a realidade eacute
20
O Poder do Pensamento
A expressatildeo do pensamento a imagem que fazemos dos factos parece apontar
para uma vontade um querer representar o mundo A proacutepria proposiccedilatildeo que se refere a
outra proposiccedilatildeo denota uma vontade autorreferencial Impotildee-se novamente a pergunta
haveraacute no mundo um sujeito senhor de si e por conseguinte com vontade proacutepria A
resposta de Wittgenstein eacute inequiacutevoca ldquoO sujeito eacute o sujeito volitivordquo25 (NB 41116
p 128) e a sua vontade eacute uma tomada de posiccedilatildeo perante o mundo (cf NB 41116 p
128) E eacute por que a vontade existe que existe o eu como centro do mundo e portador da
eacutetica Assim natildeo podemos dizer do sujeito volitivo o mesmo que dizemos do sujeito
que representa ou seja que ele natildeo existe (cf NB 5816 pp 118-119)
Assinale-se poreacutem que ao contraacuterio do que possa ser apercebido pelo senso
comum e coincidindo neste ponto com a posiccedilatildeo de Schopenhauer a vontade natildeo eacute o
que determina a accedilatildeo motora como por exemplo a accedilatildeo de escrever proposiccedilotildees
Efetivamente natildeo eacute enquanto determinaccedilatildeo da accedilatildeo que damos conta da vontade mas
por referecircncia agrave representaccedilatildeo da accedilatildeo realizada como um ato de vontade (cf NB
41116 p 128) Wittgenstein faz recurso ao exemplo seguinte para o ilustrar Um
homem que fosse completamente incapaz da accedilatildeo motora e cujos pensamentos fossem
comunicados a outrem que por eles para o bem ou para o mal seria influenciado natildeo
deixaria de manifestar uma vontade de caraacutecter eacutetico (cf NB 21716 p 114) Esse
homem tolhido dos movimentos motores vecirc na accedilatildeo de outrem a realizaccedilatildeo da sua
vontade expressa nos pensamentos que lhe anunciou a accedilatildeo de outrem eacute tida como
realizaccedilatildeo do seu ato de vontade Mas de facto este exemplo como Wittgenstein
reconhece incorre no erro de confundir o ato de vontade com o desejo O pensamento
desse homem limita-se a formular um desejo e esse outrem a agir de acordo com a sua
proacutepria vontade Na realidade a sua accedilatildeo natildeo existe como um ato de vontade pois
como tivemos ocasiatildeo de ver logo na abertura deste capiacutetulo ldquoO ato de vontade natildeo eacute
uma experiecircnciardquo26 (NB 91116 p131) Natildeo podemos fazer dele uma imagem loacutegica
constituiacuteda pelo meu pensamento do mundo e ldquoo mundo eacute o meu mundordquo ldquodie Welt meine Welt istrdquo (TLP 5641) o mundo do eu que o pensa por outro lado o eu eacute justamente o mundo por ele pensado ldquoEu sou o meu mundo (O microcosmo)rdquo ldquoIch bin meine Welt (Der Mikrokosmos)rdquo (TLP 563) Eacute poreacutem errado concluir que o eu e o mundo satildeo um e a mesma coisa O que os separa eacute como veremos de seguida o facto de o eu ter vontade de o eu ser portador de eacutetica
25 ldquoDas Subjekt ist das wollende Subjektrdquo (NB 41116 p 182)
26 ldquoDer Willensakt ist keine Erfahrungrdquo (NB 91116 p184)
21
como se de um facto do mundo se tratasse Para Wittgenstein a accedilatildeo eacute jaacute o querer este
eacute imediato agrave accedilatildeo pois ao agir quero A vontade tem na accedilatildeo o seu objeto Ao contraacuterio
do desejo querer eacute agir (cf NB 41116 pp 129-131) A existecircncia do sujeito volitivo
eacute assim a sua accedilatildeo a sua vontade como facto No exemplo atraacutes mencionado o ato de
escrita proposicional eacute a proacutepria vontade do sujeito metafiacutesico E sendo as proposiccedilotildees
com sentido o pensamento o pensar eacute precisamente o ato de as escrever ou ler a
vontade que lhe confere forma loacutegica
Mas se a accedilatildeo natildeo eacute uma determinaccedilatildeo da minha vontade senatildeo a proacutepria
vontade podemos dizer que a accedilatildeo eacute do sujeito que ela eacute o seu querer Face agrave
conclusatildeo anterior natildeo eacute mais possiacutevel dizer que o pensamento eacute um exerciacutecio da
vontade que prepara a accedilatildeo com vista a decidir como agir em que a accedilatildeo voluntaacuteria eacute
consentacircnea com a decisatildeo A deliberaccedilatildeo natildeo determina segundo a vontade a accedilatildeo
Na verdade de acordo com esta perspetiva parece que nada separa o sujeito volitivo da
accedilatildeo ele eacute enquanto age A vontade natildeo eacute uma coisa que o sujeito possua mas com a
qual forma uma identidade E a possiacutevel referecircncia agrave minha vontade soacute pode querer
dizer o meu desejo Eacute o proacuteprio Wittgenstein que confessa natildeo saber o que eacute a sua
vontade Com efeito eacute como se ela fosse uma vontade alheia de que estamos
dependentes que se pode chamar de Deus destino ou mundo E do mesmo modo no
que diz respeito agrave consciecircncia eacute como se fosse a voz dessa vontade alheia (cf NB
8716 pp 110-111) O mundo eacute de facto independente da vontade do sujeito a sua
vontade que melhor seria chamaacute-la desejo natildeo tem nele qualquer interferecircncia Se o
que eacute desejado acontece tal se deve apenas aos acidentes do destino (como foi o caso
no exemplo dado da realizaccedilatildeo do desejo do homem entrevado) Natildeo existe pois um
nexo causal entre a minha vontade e o mundo (cf TLP 6373 e 6374) A minha
vontade soacute pode ser a vontade de mundo o mundo tal qual ele eacute e como eacute em que tudo
acontece fortuita e independentemente do meu desejo Por tudo isto se a minha
representaccedilatildeo eacute o mundo se o estado de coisas tem possibilidade de existecircncia enquanto
no espaccedilo loacutegico entatildeo a minha vontade a vontade de mundo eacute a vontade de
representaccedilatildeo de pensamento (cf NB 171016 p 126) Uma vontade que de todo natildeo
22
admite o natildeo querer pensar pois ldquoO mundo e a vida satildeo umrdquo27 (TLP 5621) ldquo(E neste
sentido o homem sem vontade natildeo viveria)rdquo28 (NB 21716 p 114)
Natildeo obstante Wittgenstein concebe um eu independente Se o mundo eacute
independente da minha vontade o eu pode tambeacutem tornar-se independente do mundo
ldquoHaacute duas divindades o mundo e o meu Eu independenterdquo29 (NB 8716 p 111) O que
o faz independente e o constitui como eu eacute ele ser essencialmente apenas o bem e o mal
que emana do sujeito da accedilatildeo em si mesma gratificante ou punitiva O mundo ao ser o
que eacute e nada mais natildeo eacute em si mesmo bom nem mau O sentido do mundo na sua
relaccedilatildeo com o bem e o mal natildeo eacute dado pelo mundo mas eacute-lhe antes exterior Seja o que
for que nele acontecer eacute fortuito e do mesmo valor o que eacute o mesmo que dizer que natildeo
tem qualquer valor Eacute tatildeo-soacute o sujeito que misteriosamente eacute portador da eacutetica somente
ele pode querer e valorizar (cf NB 2816 pp117-118 e 5816 p119 TLP 641 e
6423) Mas assim como o sujeito a eacutetica eacute uma condiccedilatildeo do mundo e tambeacutem como
ele eacute transcendente (cf NB 24716 p 114 e TLP 6421) E se a sua vontade natildeo
determina o mundo mas apenas o sentido do mundo assumindo uma posiccedilatildeo perante
ele entende Wittgenstein que esse sentido se pode chamar de Deus e daiacute ao contraacuterio
do que muitas vezes se pensa Ele natildeo ser revelado no mundo (cf NB 11616 p 108 e
TLP 6432) Tambeacutem daqui facilmente se conclui que a feacute natildeo eacute uma experiecircncia natildeo
pertence ao mundo (cf NB 91116 p 131) Sobre a origem da feacute no sentido do mundo
pode sobre dizer-se tanto quanto sobre o inescrutaacutevel sujeito metafiacutesico ou seja nada
Uma vez que a eacutetica o bem e o mal natildeo pertence ao mundo natildeo eacute possiacutevel
pensar a eacutetica enunciar proposiccedilotildees da eacutetica pois ela natildeo eacute um facto de que se faccedila uma
imagem loacutegica O que ser queira significar com uma proposiccedilatildeo da eacutetica natildeo se pode
declarar como verdadeiro ou falso Natildeo eacute possiacutevel pensar o que eacute transcendente
Exatamente o mesmo se pode dizer das proposiccedilotildees da esteacutetica que para Wittgenstein
constitui uma mesma unidade com a eacutetica Quer umas quer outras ao referirem-se ao
que natildeo tem a possibilidade de existecircncia nada podem dizer Tambeacutem natildeo eacute possiacutevel
que a vontade determine juiacutezos de valor se como vimos ela natildeo eacute um fenoacutemeno
psicoloacutegico que instrumentaliza a accedilatildeo mas uma vontade de representaccedilatildeo do mundo
27 ldquoDie Welt das Leben sind Einsrdquo (TLP 5621)
28 ldquoUnd in diesem Sinne waumlre allerdings der Mensch ohne Willen nicht lebendig)rdquo (NB 21716 p 114)
29 ldquoEs gibt zwei Gottheiten die Welt und mein unabhaumlngiges Ichrdquo (NB 8716 p 169)
23
tal qual ele eacute no seu acontecer acidental (cf TLP 6421 e 6423) Perante isto o que
seja uma vida ou um mundo feliz natildeo eacute algo que se possa descrever ou prescrever
mesmo que se possa dizer que o mundo de um homem feliz eacute bom e a de um homem
infeliz mau (cf TLP 643 e cf NB 30716 p 116)
24
Capiacutetulo 2 ndash A Expressatildeo do Pensamento
As (pseudo) declaraccedilotildees da metafiacutesica natildeo servem para a descriccedilatildeo dos estados de coisas nem os existentes (nesse caso seriam declaraccedilotildees verdadeiras) nem os inexistentes (nesse caso seriam pelo menos declaraccedilotildees falsas) Elas servem para a expressatildeo da atitude geral de uma pessoa em relaccedilatildeo agrave vida (ldquoLebenseinstellung Lebensgefuumlhlrdquo)30
A Expressatildeo do Pensamento e o Sentido
Posto que no entendimento do Wittgenstein do TLP o pensamento eacute a
proposiccedilatildeo com sentido (sinnvolle Satz) (cf TLP 4) eacute essencial saber para melhor
esclarecer este seu entendimento o que faz com que uma proposiccedilatildeo tenha sentido e o
que a contrario sensu faz com que ela natildeo o tenha Assim o que primeiramente
queremos indagar eacute sobre o que o filoacutesofo quer dizer com a expressatildeo proposicional do
pensamento ter sentido (sinnvolle) Julgamos que o seu entendimento geral sobre isto
pode resumir-se no breve raciociacutenio que de seguida se expotildee Dado que como imagem
loacutegica dos factos ldquoA proposiccedilatildeo representa a existecircncia e a natildeo-existecircncia de estados de
coisasrdquo31 (TLP 41) entatildeo ldquoO sentido da proposiccedilatildeo eacute a sua concordacircncia ou a sua natildeo-
concordacircncia com as possibilidades da existecircncia e da natildeo-existecircncia de estados de
coisasrdquo32 (TLP 42) Ou seja o sentido da proposiccedilatildeo como representaccedilatildeo dos factos eacute
a concordacircncia ou natildeo concordacircncia dessa representaccedilatildeo com os factos Por outro lado
se eacute possiacutevel que estados de coisas existam como eacute possiacutevel que natildeo existam para que
a proposiccedilatildeo possa fazer sentido e assim possa haver lugar a pensamento basta ela
representar uma destas possibilidades Depois ao confrontaacute-la com os factos ficamos a
saber se a proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa Enfim o que confere sentido agrave proposiccedilatildeo eacute
30 ldquoThe (pseudo)statements of metaphysics do not serve for the description of states of affairs neither existing ones (in that case they would be true statements) nor non-existing ones (in that case they would be at least false statements) They serve for the expression of the general attitude of a person towards life (ldquoLebenseinstellung Lebensgefuumlhlrdquo)rdquo (CARNAP Rudolf ldquoThe Elimination of Metaphysics Through Logical Analysis of Languagerdquo Arthur Pap (trad do alematildeo) in Alfred J Ayer (Ed) Logical Positivism The Free Press New York 1959 p 78)
31 ldquoDer Satz stellt das Bestehen und Nichtbestehen der Sachverhalte darrdquo (TLP 41)
32 ldquoDer Sinn des Satzes ist seine Uumlbereinstimmung und Nichtuumlbereinstimmung mit den Moumlglichkeiten des Bestehens und Nichtbestehens der Sachverhalterdquo (TLP 42)
25
a possibilidade da sua verdade residindo o seu sentido nos factos (cf TLP 2221-2224
302 e 406 e NB 211014 p 30 e 261014 p 33) O sentido da proposiccedilatildeo eacute a
possibilidade da verdade do que se pensa porquanto o que se pensa tenha a
possibilidade de concordar ou natildeo concordar com a realidade
As proposiccedilotildees natildeo satildeo os proacuteprios factos mas uma sua projeccedilatildeo enquanto
possibilidade da sua existecircncia ou natildeo existecircncia O que eacute projetado na proposiccedilatildeo eacute
unicamente a forma do facto um seu modelo uma sua figuraccedilatildeo como que concebida
de modo experimental (cf TLP 401 4021 e 4031 NB 151014 pp 24-25) Nesta
experimentaccedilatildeo em que se projeta o facto a proposiccedilatildeo natildeo tem de ser verdadeira tem
unicamente de ter a possibilidade da verdade ou da falsidade (cf TLP 4024) O que lhe
confere esta possibilidade eacute o que tem em comum com os factos isto eacute a sua forma
Sendo a forma dos factos a forma loacutegica essa deve ser a forma de representaccedilatildeo
pictoacuterica para que deste modo constitua uma sua imagem loacutegica33 Por esta razatildeo
quando dos factos atraveacutes da proposiccedilatildeo se faz uma imagem loacutegica esta tem a
possibilidade de ser verdadeira ou falsa Ao fim e ao cabo o que eacute descrito na
proposiccedilatildeo se ela for verdadeira eacute como as coisas se relacionam logicamente entre si Eacute
por que eacute uma imagem da realidade que partilha com ela a forma loacutegica que a
proposiccedilatildeo pode ser verdadeira quando natildeo falsa Ela representa uma situaccedilatildeo possiacutevel
no espaccedilo loacutegico (cf TLP 217 218 2181 2202 e 406 e NB 201014 p 28)
Para que a proposiccedilatildeo advenha pensamento isto eacute proposiccedilatildeo com sentido
(sinnvolle Satz) ela tem de poder concordar ou natildeo concordar com a realidade tem que
ter a forma loacutegica da realidade Como soacute os factos podem expressar sentido as
proposiccedilotildees que os representam tem apenas a possibilidade de o exprimir caso o seu
sentido seja concordante com o dos factos caso exista o que elas representam (cf TLP
313 e 3142) Ora eacute justamente enquanto possibilidade de exprimir o sentido dos factos
que atraveacutes da proposiccedilatildeo se pode ficar a conhecer uma situaccedilatildeo possiacutevel e assim
compreender a proposiccedilatildeo sem saber se ela eacute verdadeira ou falsa (cf TLP 4021 e
4024) Mesmo que a situaccedilatildeo possiacutevel dada pelo sentido da proposiccedilatildeo seja falsa isso
natildeo inviabiliza a sua compreensatildeo uma vez que esta natildeo depende da sua verdade ou
33 Ao dizer-se que a forma loacutegica eacute a forma do mundo assume-se a priori que o mundo tem loacutegica e deste facto depende previamente toda a verdade e falsidade (cf NB 181014 p 27) Somente a circunstacircncia de a loacutegica ser a priori torna possiacutevel a representaccedilatildeo dos factos pelo pensamento pois este natildeo pode pensar nada de iloacutegico quando o seu modo proacuteprio de representar eacute na forma loacutegica (cf TLP 303 e 54731) O mundo tem existecircncia porque o lugar espacial eacute quanto aacute sua forma da mesma ordem loacutegica que o lugar loacutegico
26
falsidade mas antes da possibilidade de uma delas34 A proposiccedilatildeo com sentido eacute aquela
que ensaia a realidade descrevendo-a segundo a forma loacutegica que a caracteriza A
compreensatildeo da proposiccedilatildeo antes mesmo de se verificar a sua verdade exige apenas
que o modo de expressatildeo do pensamento e a realidade comunguem da forma loacutegica
Como o pensamento natildeo tem outro modo de expressatildeo que natildeo seja o loacutegico ndash assim
nos assevera Wittgenstein em TLP 303 e 54731 ndash as proposiccedilotildees tecircm um sentido que
eacute inteligiacutevel independentemente da sua concordacircncia com a realidade E diz-nos ainda
que nada do que a proposiccedilatildeo natildeo diga eacute necessaacuterio para a sua completa compreensatildeo
O sentido da proposiccedilatildeo eacute autossuficiente para efeitos da sua compreensatildeo ainda que
possa ser incompleta a imagem que daacute dos factos (cf TLP 5156)
Relativamente ao pensamento que se mostra em proposiccedilotildees negadas ou
proposiccedilotildees negativas o seu sentido decorre do sentido das proacuteprias proposiccedilotildees que
vecircm a ser negadas35 Significando isto tambeacutem que se a negaccedilatildeo de certas proposiccedilotildees
natildeo tiver sentido natildeo o teratildeo igualmente as proacuteprias proposiccedilotildees negadas A negaccedilatildeo
diz-nos como as coisas natildeo se passam por referecircncia agraves coisas tal qual elas ocorrem O
mesmo facto estaacute na base da proposiccedilatildeo e da sua negaccedilatildeo (cf TLP 40621) Estas
pressupotildeem-se mutuamente de tal maneira que a inteligibilidade de uma torna
necessaacuteria a da outra (cf TLP 40641 e 55151) Mas se ambas tecircm sentido entatildeo estatildeo
em contradiccedilatildeo entre si natildeo podendo as duas ser verdadeiras (cf TLP 55512 e NB
91114 pp 45-46)36 Quando uma proposiccedilatildeo eacute falsa ela mesma nega a sua verdade
ao dizer como as coisas se passam sem que elas efetivamente se passem assim da
mesma maneira se uma proposiccedilatildeo negada eacute falsa eacute porque ela diz como as coisas natildeo
se passam e contudo as coisas passam-se exatamente desse modo Atente-se que
34 Como soacute a proposiccedilatildeo pode ter sentido (sinnvolle) isto eacute contingentemente verdadeira ou falsa Wittgenstein diz-nos na secccedilatildeo 4464 que somente a proposiccedilatildeo eacute possiacutevel reservando a impossibilidade para a contradiccedilatildeo e a certeza para a tautologia Embora o filoacutesofo apenas mencione a tautologia como sendo sem sentido (sinnlos) (TLP 4461) concordamos com Georg Henrik von Wright que considera igualmente sem sentido a contradiccedilatildeo por ambas terem uma relaccedilatildeo unipolar com a verdade a tautologia eacute sempre verdadeira e a contradiccedilatildeo sempre falsa (cf WRIGHT Georg Henrik von ldquoRemarks on Wittgensteinrsquos Use of the Terms lsquoSinnrsquo lsquosinnlosrsquo lsquounsinningrsquo lsquowarhrsquo and lsquoGedankersquo in the Tractatusrdquo in Alois Pichler and Simo Saumlaumltela (eds) Wittgenstein The Philosopher and his Works University of Bergen Bergen 2005 p 91)
35 Cf ldquoNotas Ditadas a G E Moore na Noruega Abril 1914rdquo in NB p 171 ldquoAufzeichnungen die G E Moore in Norwegen Nach Diktat Niedergeschrieben Hat April 1914rdquo in NB p 220
36 Assim eacute porque ldquoQualquer proposiccedilatildeo que contradiz uma outra nega-ardquo ldquoJeder Satz der einem anderen widerspricht verneint ihnrdquo (TLP 51241)
27
sendo a proposiccedilatildeo negada ela mesma uma proposiccedilatildeo quando falsa torna-se
verdadeira se novamente negada
A Expressatildeo do Pensamento e o Sem-Sentido
Julgamos poder encontrar fundamento para o que distingue a proposiccedilatildeo com
sentido da sem-sentido na sequecircncia das proposiccedilotildees 2021 a 20231 do TLP De acordo
com ela eacute a substacircncia do mundo formada pelos seus objetos que torna possiacutevel
projetar uma imagem do mundo desde que ela por mais imaginada e distante da
realidade que seja mostre a forma firme desses objetos Como imagem projetada do
mundo a proposiccedilatildeo com sentido eacute formada a partir da configuraccedilatildeo dos objetos na sua
forma substantiva e firme Natildeo seria pois possiacutevel agrave proposiccedilatildeo ter sentido caso o
mundo natildeo tivesse substacircncia ou entatildeo o seu sentido dependeria de uma outra
proposiccedilatildeo ser verdadeira sem que a sua verdade se pudesse fundar na realidade
substantiva37 Parece-nos que daqui se pode concluir que num mundo cujos objetos tecircm
substacircncia satildeo proposiccedilotildees sem-sentido (unsinning) aquelas que natildeo representam
situaccedilotildees que envolvem a forma subsistente e firme dos objetos Tais proposiccedilotildees jaacute natildeo
satildeo mais uma imagem do mundo natildeo representam mais o estado de coisas natildeo tecircm
37 O TLP segue uma versatildeo proacutepria ainda que natildeo muito distante do atomismo loacutegico de Bertrand Russell Ambos defendem que se chega aos constituintes baacutesicos da realidade (ldquoaacutetomosrdquo) atraveacutes da anaacutelise loacutegica Para Wittgenstein a anaacutelise loacutegica de qualquer proposiccedilatildeo permite estabelecer uma combinaccedilatildeo de funccedilotildees-verdade de proposiccedilotildees elementares (ldquoaacutetomosrdquo) que por correspondecircncia aos factos traduzem configuraccedilotildees de objetos simples e substantivos (que nas proposiccedilotildees tecircm ldquonomesrdquo como designaccedilatildeo) e por esta razatildeo satildeo indecomponiacuteveis em novas proposiccedilotildees Eacute da seguinte forma que Ian Proops resume as principais caracteriacutesticas do atomismo loacutegico de Wittgenstein ldquoi) Toda proposiccedilatildeo tem uma anaacutelise final uacutenica que revela ser uma funccedilatildeo-verdade das proposiccedilotildees elementares (TLP 325 4221 451 5) (ii) Essas proposiccedilotildees elementares afirmam a existecircncia de estados de coisas atoacutemicos (421) (iii) As proposiccedilotildees elementares satildeo mutuamente independentes - cada uma pode ser verdadeira ou falsa independentemente da verdade ou falsidade das outras (4211 5134) (iv) As proposiccedilotildees elementares satildeo combinaccedilotildees imediatas de siacutembolos semanticamente simples ou nomes (4221) (v) Os nomes referem-se a itens totalmente desprovidos de complexidade os chamados objetos (202 322) (vi) estados de coisas atoacutemicos satildeo combinaccedilotildees desses objetos simples (201)rdquo ldquo(i) Every proposition has a unique final analysis that reveals it to be a truth-function of elementary propositions (TLP 325 4221 451 5) (ii) These elementary propositions assert the existence of atomic states of affairs (421) (iii) Elementary propositions are mutually independentmdasheach one can be true or false independently of the truth or falsity of the others (4211 5134) (iv) Elementary propositions are immediate combinations of semantically simple symbols or lsquonamesrsquo (4221) (v) Names refer to items wholly devoid of complexity so-called lsquoobjectsrsquo (202 322) (vi) Atomic states of affairs are combinations of these simple objects (201)rdquo (PROOPS Ian ldquoLogical Atomism in Russell and Wittgensteinrdquo in Oskari Kuusela and Marie McGinn (eds) The Oxford Handbook of Wittgenstein Oxford University Press Oxford 2011 p 215) Ora satildeo estes objetos simples que na sua conexatildeo constituem os factos que datildeo substacircncia ao mundo e permitem estabelecer funccedilotildees-verdade das proposiccedilotildees elementares pois de outro modo ldquoSeria entatildeo impossiacutevel projetar uma imagem do mundo (verdadeira ou falsa)rdquo ldquoEs waumlre dann unmoumlglich ein Bild der Welt (wahr oder falsch) zu entwerfenrdquo (TLP 20212)
28
mais como referecircncia os factos A determinaccedilatildeo da verdade ou falsidade das
proposiccedilotildees deixa pois de ser possiacutevel de realizar A possibilidade da existecircncia do
estado de coisas que eacute representado pela proposiccedilatildeo eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para que ela
faccedila sentido (cf TLP 403 e 406) Encontramos aqui de forma clara o realismo do seu
solipsismo
Quando por exemplo Wittgenstein nos diz que ldquo[] natildeo pode haver
proposiccedilotildees da eacuteticardquo38 (TLP 642) quer ele significar que as proposiccedilotildees relativas agrave
eacutetica satildeo sem-sentido Ou seja elas ao referirem-se ao que estaacute fora do mundo ao que eacute
transcendental (cf TLP 6421) deixam obviamente de ser uma imagem do mundo de
ter a possibilidade de serem verdadeiras ou falsas A ideia com origem na psicologia
de que nestes casos as proposiccedilotildees devem ter para poderem ter a possibilidade de ser
verdadeiras um sentido que estabeleccedila uma relaccedilatildeo de crenccedila do sujeito ao objeto
transcendente ignoram que o proacuteprio sujeito eacute metafiacutesico e que a alma eacute uma ilusatildeo (cf
TLP 5541 a 55421)39 Tudo o que uma proposiccedilatildeo possa dizer em relaccedilatildeo ao sujeito
poderia ter sentido natildeo fosse o facto da natildeo pertenccedila do sujeito ao mundo natildeo permitir
legitimar a verdade ou a falsidade deste tipo de proposiccedilotildees Por este mesmo motivo
todas as proposiccedilotildees que se referem ao que estaacute fora do mundo como sejam segundo o
filoacutesofo aleacutem da eacutetica e do sujeito a vontade e o sentido do mundo satildeo proposiccedilotildees
sem-sentido Enfim eacute sem-sentido (unsinning) toda a expressatildeo do pensamento que tem
por objetos o que natildeo eacute parte do mundo E deste modo eacute sem-sentido a expressatildeo do
pensamento que tem por objeto como acontece na psicologia e em certo tipo de
reflexatildeo filosoacutefica o proacuteprio pensamento para aleacutem do que ele mostra nas proposiccedilotildees
Esta eacute uma das razotildees pelas quais o filoacutesofo afirma que os problemas que a filosofia
tradicional pretende resolver natildeo satildeo verdadeiros problemas pois a sua discussatildeo
redunda em proposiccedilotildees sem-sentido ignorando a loacutegica da nossa linguagem (cf TLP
4003)
38 ldquo[] es auch keine Saumltze der Ethik gebenrdquo (TLP 642)
39 Com efeito seja o que for que se possa referir na relaccedilatildeo ao sujeito eacute algo indefiniacutevel ldquoToda a proposiccedilatildeo que diz algo indefiniacutevel acerca de uma coisa eacute uma proposiccedilatildeo de sujeito-predicado []rdquo (ldquoNotas sobre Loacutegicardquo in NB p 157) ldquoJeder Satz der etwas Undefinierbares uumlber ein Ding sagt ist ein Subjekt-Praumldikat-Satz []rdquo (ldquoAufzeichnungen uumlber Logikrdquo in NB p 208)
29
Assim o sem-sentido (unsinning) das proposiccedilotildees revela-se numa qualquer falta
de denotaccedilatildeo por referecircncia aos objetos que formam a substacircncia do mundo40 Excluiacuteda
que estaacute como vimos anteriormente a possibilidade da expressatildeo iloacutegica ou incompleta
do pensamento para que uma proposiccedilatildeo no modo como eacute pensada seja sem-sentido e
natildeo permita a sua compreensatildeo eacute porque algumas das partes que a constituem natildeo
mostram aquilo a que no mundo se referem por falta de denotaccedilatildeo (cf TLP 54733)
Os nomes com denotaccedilatildeo como sinais simples dos objetos do pensamento satildeo por
isso fundamentais na articulaccedilatildeo da proposiccedilatildeo para que se possa precisar o seu sentido
(cf TLP 323) Consequentemente uma proposiccedilatildeo sem-sentido natildeo mostra nada que
se possa chamar de verdadeiro ou de falso (cf TLP 4063) eacute sem-sentido a proposiccedilatildeo
que natildeo eacute determinada pela bipolaridade verdadeiro ou falso
Em geral toda a expressatildeo do pensamento que enuncia proposiccedilotildees sobre o que
natildeo se deixa pensar eacute sem-sentido E natildeo eacute possiacutevel pensar diz-nos Wittgenstein no
que natildeo seja um objeto em conexatildeo com outros objetos ou seja um estado de coisas
(cf TLP 20121) Eacute por referecircncia a situaccedilotildees que as proposiccedilotildees adquirem o seu
sentido Por essa razatildeo jaacute o dissemos uma proposiccedilatildeo sem-sentido a nada faz
referecircncia na realidade com base na qual se possa verificar a sua verdade ou falsidade
(cf TLP 4063) Recorrendo a um exemplo dado por Wittgenstein natildeo eacute possiacutevel
pensar aquilo a que se refere a proposiccedilatildeo laquoSoacutecrates eacute idecircnticoraquo Nela a palavra
laquoidecircnticoraquo como adjetivo natildeo ocorre como sinal de identidade entre objetos quando eacute
essa a sua funccedilatildeo simboacutelica Daiacute que a mencionada palavra natildeo tenha nesta proposiccedilatildeo
qualquer denotaccedilatildeo A identidade de um objeto no caso a identidade de Soacutecrates eacute
expressa natildeo pelo sinal de identidade mas pela identidade do sinal simples laquoSoacutecratesraquo
(cf TLP 54733 e 553) Mas para o filoacutesofo eacute igualmente sem-sentido a proposiccedilatildeo
que enuncia a identidade entre objetos pois esta natildeo eacute uma conexatildeo entre objetos E
quanto agrave proposiccedilatildeo que estabelece a identidade de um objeto consigo mesmo ao ser
40 Este eacute o aspeto essencial de uma proposiccedilatildeo sem-sentido (unsinning) natildeo ser nem verdadeira nem falsa por correspondecircncia ao estado de coisas substantivas agrave conexatildeo de objetos firmes e subsistente entre si Natildeo eacute possiacutevel atraveacutes da sua anaacutelise loacutegica chegar a funccedilotildees-verdade de proposiccedilotildees elementares Essa eacute a razatildeo pela qual a tautologia que eacute necessariamente verdadeira eacute sem sentido (sinnlos) mas natildeo sem-sentido (unsinning) (cf TLP 4461 e 44611) Pode haver proposiccedilotildees que sejam simultaneamente sem sentido e sem-sentido esse eacute o caso da proposiccedilatildeo laquoSoacutecrates eacute idecircnticoraquo cujo sem sentido decorre de uma malformaccedilatildeo gramatical Poreacutem as proposiccedilotildees que embora gramaticalmente bem formadas denotem objetos fora do mundo isto eacute objetos insubstanciais como satildeo o caso das proposiccedilotildees da eacutetica ou esteacutetica e da psicologia satildeo proposiccedilotildees sem-sentido Julgamos que a consideraccedilatildeo deste aspeto por parte de Georg Henrik von Wright tornaria mais claro o seu importante texto ldquoRemarks on Wittgensteinrsquos Use of the Terms lsquoSinnrsquo lsquosinnlosrsquo lsquounsinningrsquo lsquowarhrsquo and lsquoGedankersquo in the Tractatusrdquo (in Alois Pichler and Simo Saumlaumltela (eds) Wittgenstein The Philosopher and his Works)
30
uma tautologia ela nada significa (cf TLP 553 a 55303) Em suma as proposiccedilotildees
que usem o adjetivo laquoidecircnticoraquo satildeo sem-sentido simplesmente porque se referem ao que
natildeo se deixa pensar isto eacute ao que natildeo eacute uma conexatildeo de objetos num estado de coisas
Assim natildeo denotando uma relaccedilatildeo entre coisas o uso do referido adjetivo para
descrever essa relaccedilatildeo eacute simplesmente sem-sentido
Esse eacute tambeacutem o caso do que se pretenda dizer sobre a proacutepria linguagem e o
sentido do que nela se articula A imagem loacutegica representa atraveacutes da forma loacutegica
que eacute a sua forma de representaccedilatildeo pictoacuterica um estado de coisas Poreacutem ela natildeo pode
por sua vez representar na forma loacutegica a sua forma de representaccedilatildeo pictoacuterica mas
apenas mostraacute-la (cf TLP 2172 2174 e 412) A forma loacutegica de representaccedilatildeo
pictoacuterica natildeo eacute ela mesma um objeto em conexatildeo com outros objetos para que dela se
possa fazer uma imagem A sua inexistecircncia impossibilita a sua representaccedilatildeo pois natildeo
haacute objetos a serem denotados Mas embora a forma loacutegica natildeo seja representaacutevel na
proposiccedilatildeo ela eacute todavia exibida por ela (cf TLP 4121) Daqui decorre que satildeo sem-
sentido as proposiccedilotildees sobre as propriedades internas de objetos e estados de coisas
bem como sobre as relaccedilotildees internas entre estados de coisas (cf TLP 4122 e 4124)
Pois tudo isto faz parte da forma loacutegica e daacute-se a mostrar nas proacuteprias proposiccedilotildees E o
que nos diz Wittgenstein eacute que ldquoO que pode ser mostrado natildeo pode ser ditordquo41 (TLP
41212) Por esta razatildeo eacute sem-sentido o que se possa dizer sobre o sentido de uma
proposiccedilatildeo o que mais uma vez natildeo invalida que o possamos mostrar
Deste modo sendo uma forma loacutegica um conceito formal natildeo pode ser usado
contrariamente aos conceitos propriamente ditos para na proposiccedilatildeo expressar os
objetos que lhe pertencem (cf TLP 4126) Se por exemplo tem sentido a proposiccedilatildeo
laquoA eacute vermelhoraquo jaacute natildeo o tem a proposiccedilatildeo laquoO vermelho eacute uma corraquo Satildeo assim sem-
sentido proposiccedilotildees como laquoA eacute um objetoraquo laquoHaacute objetosraquo laquo1 eacute um nuacutemeroraquo ou laquoHaacute
apenas um zeroraquo Entre os conceitos formais incluem-se ainda entre muitas outras as
palavras laquofactoraquo laquoestado de coisasraquo laquorelaccedilatildeoraquo laquotautologiaraquo e laquocontradiccedilatildeoraquo O
emprego destas palavras como se fossem conceitos propriamente ditos redunda nas
palavras de Wittgenstein em ldquopseudo-proposiccedilotildees sem-sentidordquo42 (TLP 41272) Sobre
estas proposiccedilotildees natildeo eacute possiacutevel saber sobre a sua verdade ou falsidade Mas se numa
41 ldquoWas gezeigt werden kann kann nicht gesagt werdenrdquo (TLP 41212)
42 ldquounsinnige Scheinsaumltzerdquo (TLP 41272)
31
linguagem simboacutelica designarmos estes conceitos como variaacuteveis de que satildeo seus
valores os nomes dos objetos que lhe pertencem entatildeo diz-nos ele eacute possiacutevel o seu uso
correto (cf TLP 4127 e 41271)
A circunstacircncia das proposiccedilotildees totalmente gerais como construccedilotildees loacutegicas de
factos natildeo empregarem nomes ou outros sinais denotativos da realidade poder-nos-ia
levar a concluir que estas proposiccedilotildees satildeo desprovidas de sentido Elas com efeito natildeo
permitem como eacute exigido agraves proposiccedilotildees com sentido uma coordenaccedilatildeo dos sinais
simples ou nomes com o que eacute designado Contudo estas proposiccedilotildees representam
expressotildees com formas que satildeo comuns a vaacuterias proposiccedilotildees e que satildeo tomadas por
variaacuteveis proposicionais de que satildeo valores estas mesmas proposiccedilotildees (cf TLP 331 a
3314) As proposiccedilotildees totalmente gerais tecircm deste modo os sentidos possiacuteveis das
proposiccedilotildees com sentido por elas compreendidas ao nelas denotarem os nomes que
correspondem a cada uma das variaacuteveis dessas proposiccedilotildees (cf TLP 45)43 Aleacutem disso
as proposiccedilotildees elementares satildeo a base a partir da qual se generalizam todas as demais
proposiccedilotildees incluindo as proposiccedilotildees totalmente gerais (cf TLP 4411 e 452) de tal
modo que a delimitaccedilatildeo do mundo dado pela totalidade das proposiccedilotildees elementares eacute
precisamente a mesma que eacute dada pelas proposiccedilotildees totalmente gerais (cf TLP 45262)
Satildeo estas as razotildees fundamentais pelas quais podemos compreender as proposiccedilotildees
totalmente gerais Estas referem-se efetivamente ao mundo ainda que em si mesmas
natildeo denotem as coisas do mundo natildeo faccedilam delas uma referecircncia direta O mundo estaacute
impliacutecito no que dizem em geral do estado de coisas que eacute explicitado quando as
proposiccedilotildees gerais satildeo convertidas por escolha de nomes que denotam objetos
subentendidos naquilo que dizem em geral na expressatildeo de um estado de coisas em
particular
A questatildeo do sem-sentido pode tambeacutem ser considerada em relaccedilatildeo agraves
proposiccedilotildees loacutegicas que Wittgenstein diz serem tautologias e que como tais nada
significam (cf TLP 61 e 611) O que estas proposiccedilotildees mostram eacute as propriedades
43 Por mais generalizadas que forem as proposiccedilotildees elas natildeo perdem o seu contacto com a realidade dos objetos substantivos ldquoSe a proposiccedilatildeo totalmente geral natildeo estaacute completamente desmaterializada entatildeo uma proposiccedilatildeo natildeo se desmaterializa atraveacutes da generalizaccedilatildeo como eu julgava Quer eu afirme algo de determinada coisa ou de todas as coisas que existem a afirmaccedilatildeo eacute igualmente materialrdquo (NB 231014 p 31) ldquoWenn der ganz allgemeine Satz nicht ganz entmaterialisiert ist so wird ein Satz durch die Verallgemeinerung wohl uumlberhaupt nicht entmaterialisiert wie ich glaubte Ob ich von einem bestimmten Ding oder von allen Dingen die es gibt etwas aussage die Aussage ist gleich materiellrdquo (NB 231014 p 106)
32
formais da linguagem e consequentemente do mundo e fazem-no de tal modo que
sem qualquer projeccedilatildeo representadora da realidade podem mostrar serem verdadeiras
em si mesmas A sua verdade ou falsidade natildeo se decide como no caso das outras
proposiccedilotildees por confronto com a realidade mas satildeo exibidas pela proacutepria proposiccedilatildeo
loacutegica a experiecircncia natildeo a confirma nem a refuta (cf TLP 4462 6113 e 61222)44
Todavia as proposiccedilotildees da loacutegica pressupotildeem o mundo e as proposiccedilotildees que o
representam pois agrave loacutegica soacute interessa a realidade Elas estatildeo ligadas ao mundo atraveacutes
das proposiccedilotildees com sentido muito embora nada tenham que ver com a sua verdade ou
falsidade visam somente determinar as propriedades loacutegicas dessas proposiccedilotildees
submetendo-as a uma anaacutelise completa de modo a identificar as proposiccedilotildees
elementares isto eacute aquelas proposiccedilotildees que sendo uma verdade de facto afirmam a
existecircncia de estados de coisas e que por isso mesmo natildeo se podem contradizer entre si
(cf TLP 421 e 4211)45 Dado que o que interessa agrave loacutegica eacute a realidade dada pelas
proposiccedilotildees elementares podemos afirmar que as proposiccedilotildees sem-sentido satildeo
logicamente inanalisaacuteveis quando se tem em vista chegar precisamente a essas
proposiccedilotildees elementares Quando um ou mais dos elementos que compotildeem a
proposiccedilatildeo natildeo tem correspondecircncia com objetos cuja configuraccedilatildeo caracteriza
situaccedilotildees representaacuteveis a forma desses elementos nada teraacute em comum com a forma
loacutegica dos objetos que substanciam a realidade Assim essas proposiccedilotildees natildeo seratildeo de
todo as imagens loacutegicas dos factos passiacuteveis de serem verdadeiras
44 Cf ldquoExcertos de Cartas de Wittgenstein a Russell 1912-20rdquo in NB p 184 CL ldquoLetter to B Russell November or December 1913rdquo p 56
45 Ver igualmente TLP 5557 61233 6124 6126 e 61264 e NB 51014 p 19
33
A Expressatildeo do Pensamento e a Verdade
Nos NB Wittgenstein coloca o problema da verdade como sendo o da
possibilidade de coordenaccedilatildeo da proposiccedilatildeo com a realidade (cf NB 240914 p15)
Mas tambeacutem diz que nunca conseguiu descobrir a relaccedilatildeo entre elas ldquoEu disse sempre
que a verdade eacute uma relaccedilatildeo entre a proposiccedilatildeo e o facto mas nunca consegui descobrir
tal relaccedilatildeordquo46 (cf NB 271014 p 34) Portanto o problema da verdade natildeo parece ser
desvendar uma relaccedilatildeo de facto senatildeo a sua possibilidade loacutegica como conexatildeo entre a
imagem loacutegica e o estado de coisas da qual depende aquela poder ser uma projeccedilatildeo
deste seja ela verdadeira ou falsa Esta possibilidade de relaccedilatildeo comeccedila por ser a que a
proposiccedilatildeo estabelece por meio dos sinais que os nomeiam com os objetos que satildeo
parte do estado de coisas de que ela eacute imagem loacutegica Ora logo no iniacutecio dos NB
Wittgenstein estabelece a identidade loacutegica entre os dois em que o sinal e o que eacute por
ele designado tecircm exatamente o mesmo significado o sinal substitui perfeitamente o
designado e este natildeo mostra mais do que aquele (cf NB 40914 p 12) Mas um
pouco mais agrave frente nesta mesma obra clarifica melhor essa identidade baseando-a na
relaccedilatildeo interna sob a forma loacutegica entre um e o outro (cf NB 261014 p 33) Assim
a possibilidade da verdade eacute uma questatildeo relativa agrave possibilidade de uma identidade
interna fruto da sua relaccedilatildeo loacutegica entre a proposiccedilatildeo a sua denotaccedilatildeo e a realidade
Este modo de colocar o problema da verdade exclui sem mais a possibilidade de
a verdade ser algo dado a priori Wittgenstein assegura perentoriamente que ldquoNatildeo haacute
uma imagem verdadeira a priorirdquo47 (TLP 2225) A verdade da imagem depende
sempre dos factos de que fazemos imagem Somente a realidade pode comprovar a
verdade da projeccedilatildeo que dela fazemos nas proposiccedilotildees48 Esta conceccedilatildeo de verdade eacute
firmemente criticada por Frege cuja obra juntamente com a de Bertrand Russell eacute
reconhecida por Wittgenstein como uma referecircncia importante do seu proacuteprio
pensamento Para Frege a verdade natildeo consiste na correspondecircncia entre a imagem de
46 ldquoIch sagte immer die Wahrheit ist eine Beziehung zwischen dem Satz und Sachverhalt konnte aber niemals eine solche Beziehung ausfindig machenrdquo (NB 271014 p 108)
47 ldquoEin a priori wahres Bild gibt es nichtrdquo (TLP 2225)
48 Mais uma vez deparamos aqui com o realismo que Wittgenstein diz caracterizar o seu solipsismo (cf TLP 564)
34
algo e esse algo de que eacute imagem a verdade natildeo eacute uma questatildeo de representaccedilatildeo
simboacutelica em que se possa atribuir valor de verdade ao que representa por
correspondecircncia ao representado O argumento que no seu entender destroacutei esta
conceccedilatildeo de verdade eacute de que esta correspondecircncia natildeo eacute feita entre coisas da mesma
natureza condiccedilatildeo necessaacuteria para que haja a possibilidade da sua coincidecircncia e da
consequente afirmaccedilatildeo da verdade O que representa simbolicamente natildeo eacute da mesma
natureza da coisa representada a primeira eacute uma ideia e a segunda uma coisa diferente
de uma ideia A realidade e a ideia de que dela se faccedila satildeo coisas distintas Qualquer
comparaccedilatildeo que procure uma correspondecircncia entre as duas natildeo permite uma
correspondecircncia total pois a imagem ou a ideia sob a forma de proposiccedilotildees no seu
intuito de representaccedilatildeo nunca chega a ser uma representaccedilatildeo perfeita da realidade
reduzindo-se a atribuiccedilatildeo da verdade agrave observaccedilatildeo de um determinado criteacuterio
arbitraacuterio que natildeo garante a verdade completa das proposiccedilotildees A verdade das
proposiccedilotildees eacute para Frege a verdade do seu sentido e o pensamento eacute nem mais nem
menos do que as proposiccedilotildees com sentido ndash precisamente o mesmo entendimento que
dele tem Wittgenstein Poreacutem ao inveacutes do que eacute pugnado por este filoacutesofo o sentido
das proposiccedilotildees natildeo eacute o que elas representam natildeo tem por referecircncia a realidade a sua
verdade natildeo se verifica por correspondecircncia com os factos49 O pensamento o sentido
das proposiccedilotildees natildeo eacute uma imagem das coisas ou ideia nem uma coisa do mundo mas
algo que constitui uma terceira esfera independente que eacute apreendido pela consciecircncia
no sentido de que eacute trazido agrave consciecircncia pelo pensar e que como auto-evidecircncia se
pode reconhecer como verdade imutaacutevel e eterna50
Em Frege o pensamento sendo aprioriacutestico natildeo pode ser mais contraacuterio agrave noccedilatildeo
de pensamento em Wittgenstein fundada na representaccedilatildeo pictoacuterica da realidade
Parecem concordar relativamente agrave sua natureza imaterial ao facto de natildeo ter existecircncia
real que natildeo seja as proacuteprias proposiccedilotildees como sua manifestaccedilatildeo mas divergem
profundamente quanto agrave sua origem A conceccedilatildeo wittgensteiniana do pensamento como
imagem loacutegica da realidade opotildee-se radicalmente agrave ideia de que o pensamento eacute algo
que assoma misteriosamente agrave consciecircncia vindo de uma terceira esfera totalmente
autoacutenoma em relaccedilatildeo agrave realidade e agraves imagens dela O realismo de Wittgenstein nesta
49 Cf FREGE Gottlob ldquoThe Thought A logical Inquiryrdquo Mind New Series Vol 65 No 259 1956 pp 290-292
50 Cf idem ibidem pp 302 e 307
35
mateacuteria natildeo se coaduna como o transcendentalismo de Frege Naturalmente esta
divergecircncia essencial traduz posiccedilotildees filosoacuteficas inconciliaacuteveis no que diz respeito ao
que eacute a verdade das proposiccedilotildees Esta para Wittgenstein natildeo eacute de todo uma evidecircncia
que sobreveacutem agrave consciecircncia com o pensamento mas antes uma possibilidade dada pelo
sentido da proposiccedilatildeo cujo confronto com os factos pode decidir sobre a sua muacutetua
concordacircncia ou verdade ou discordacircncia ou falsidade Ele no entanto concede que se
natildeo fosse a realidade ter substacircncia a possibilidade da verdade de uma proposiccedilatildeo
dependeria da verdade de outra proposiccedilatildeo (cf TLP 20211) Nesta circunstacircncia
somente a verdade a priori poderia fundar a verdade das demais proposiccedilotildees O
pensamento teria assim que evidenciar a sua proacutepria verdade ldquoSoacute assim poderiacuteamos
saber a priori que um pensamento eacute verdadeiro se do proacuteprio pensamento (sem objeto
de comparaccedilatildeo) a sua verdade fosse reconheciacutevelrdquo51 (cf TLP 305) Mas a realidade
tem efetivamente a substacircncia dos seus objetos e por outro lado uma proposiccedilatildeo natildeo
pode afirmar a sua proacutepria verdade (cf TLP 4442) nem a sua verdade nela se pode
mostrar ldquoSe eu por exemplo disser lsquoMeier eacute parvorsquo entatildeo natildeo podes dizer se ela eacute
verdadeira ou falsa pelo facto de teres olhado para esta proposiccedilatildeordquo52 Tirando as
proposiccedilotildees loacutegicas que patenteiam a sua verdade ou falsidade natildeo haacute nada que garanta
a verdade das demais proposiccedilotildees mesmo que se apresentem a si mesmas como
autoevidentes (cf TLP 51363)
De assinalar que o argumento de Frege para intentar o derrube da conceccedilatildeo de
verdade como conformaccedilatildeo da imagem agrave realidade parece de facto centrar-se no
problema da verdade tal qual ele eacute posto por Wittgenstein O que eacute para ele
problemaacutetico eacute como vimos justamente a possibilidade da relaccedilatildeo de representaccedilatildeo dos
factos e de designaccedilatildeo das coisas respetivamente pelas proposiccedilotildees e pelos nomes
Poreacutem Frege simplesmente conclui pela falsidade do problema ao recusar
veementemente que a verdade possa alguma vez resultar de uma conformaccedilatildeo da
imagem ao facto quando estes tem naturezas distintas Natildeo eacute possiacutevel uma
correspondecircncia perfeita entre eles para que uma representaccedilatildeo possa ser considerada
verdadeira Para ele a questatildeo da verdade reside no seu reconhecimento nos
51 ldquoNur so koumlnnten wir a priori wissen daszlig ein Gedanke wahr ist wenn aus dem Gedanken selbst (ohne Vergleichsobjekt) seine Wahrheit zu erkennen waumlrerdquo (TLP 305)
52 ldquoExcertos de Cartas de Wittgenstein a Russell 1912-20rdquo in NB p 184 ldquoWenn ich zB sage lsquoMeier ist dummlsquo so kannst Du dadurch daszlig Du diesen Satz anschaust nicht sagen ob er wahr oder falsch istrdquo (CL ldquoLetter to B Russell November or December 1913rdquo p 56)
36
pensamentos a priori Jaacute a posiccedilatildeo realista de Wittgenstein manteacutem-no ligado agrave
possibilidade de resoluccedilatildeo do problema da verdade da representaccedilatildeo loacutegica
Relembremos que o que ele pretende natildeo eacute estabelecer a relaccedilatildeo objetiva entre a
proposiccedilatildeo e o facto mas sim a sua relaccedilatildeo interna como possibilidade de uma
identidade loacutegica
Wittgenstein designa por forma de representaccedilatildeo pictoacuterica ou se tiver a forma
da realidade forma loacutegica a possibilidade da conexatildeo precisa dos objetos num estado
de coisas ser dada pela conexatildeo precisa entre os elementos da sua imagem em que estes
elementos se correlacionam com agravequeles objetos segundo uma determinada relaccedilatildeo de
representaccedilatildeo pictoacuterica (cf TLP 2031-218) O que a imagem tem em comum com os
factos para poder representar o seu sentido eacute precisamente a forma loacutegica Eacute esta que
permite a comparaccedilatildeo entre eles donde se pode verificar a verdade ou falsidade da
imagem pela sua concordacircncia ou natildeo concordacircncia com os factos (cf TLP 22 2221-
2224) Deve-se isto ao facto de a proposiccedilatildeo soacute poder ser verdadeira ou falsa como
descriccedilatildeo de um estado de coisas como imagem loacutegica da realidade (cf TLP 406)
Todavia como jaacute anteriormente enfatizamos a proposiccedilatildeo natildeo pode descrever a forma
loacutegica mas unicamente mostraacute-la pois ldquoO que se espelha na linguagem ela natildeo pode
representarrdquo53 (TLP 4121) Quer tambeacutem isto dizer que o que permite a comparaccedilatildeo
que verifica a verdade ou a falsidade da proposiccedilatildeo exprime-se na proacutepria proposiccedilatildeo
Pelo que natildeo eacute possiacutevel descrever o meacutetodo de comparaccedilatildeo que atesta a concordacircncia
ou natildeo concordacircncia da proposiccedilatildeo com o facto Eis deste modo resumido a resposta
que Wittgenstein encontrou para o problema da verdade Nela os pensamentos satildeo
projeccedilotildees da realidade cuja verdade nunca eacute a priori ainda que a possibilidade da forma
loacutegica seja conhecida a priori (cf TLP 633) Com efeito a possibilidade do
pensamento eacute o de pensar a realidade o que evidentemente depende de a possibilidade
da realidade ser pensaacutevel Esta uacuteltima possibilidade decorre justamente do
conhecimento taacutecito da possibilidade da forma loacutegica independentemente da
experiecircncia Este conhecimento a priori inexprimiacutevel eacute assim uma condiccedilatildeo de
possibilidade da proacutepria verdade54
53 ldquoWas sich in der Sprache spiegelt kann sie nicht darstellenrdquo (TLP 4121)
54 Dada a natureza aprioriacutestica de ambos pode-se estabelecer um certo paralelo entre a forma loacutegica no Wittgenstein do TLP e os juiacutezos sinteacuteticos de Kant na Criacutetica da Razatildeo Pura Ambas as coisas satildeo condiccedilotildees a priori de possibilidade de conhecimento e permitem a descriccedilatildeo verdadeira do estado de coisas posto que a realidade ou a experiecircncia dela satildeo da mesma ordem da que eacute dada por aquelas
37
Uma observaccedilatildeo final sobre a comparaccedilatildeo da proposiccedilatildeo com os factos com
base na qual se pode verificar a sua verdade ou a sua falsidade Ela pressupotildee que a
proposiccedilatildeo mostre em que circunstacircncias pode ser considerada verdadeira e isto eacute dado
pelo seu sentido (cf TLP 4063) Eacute a partir dos nomes que designam os objetos e da
relaccedilatildeo que estabelecemos entre eles que a proposiccedilatildeo descreve a realidade Ou seja
comparar a realidade com a proposiccedilatildeo eacute comparaacute-la com a sua descriccedilatildeo como relaccedilatildeo
interna entre nomes O que fica no entanto por descrever por impossibilidade loacutegica eacute
o meacutetodo de comparaccedilatildeo que permite dizer se uma proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa O
que se pode afirmar unicamente eacute que esse meacutetodo se baseia antes de mais na
correlaccedilatildeo dos elementos da imagem com os objetos e depois na possibilidade da
conexatildeo entre objetos numa dada situaccedilatildeo poder ser representada pela conexatildeo dos
elementos da imagem Deste modo ldquoA proposiccedilatildeo eacute verdadeira quando existe o que ela
representardquo55 (NB 31114 p 43) isto eacute quando se verifique uma identidade loacutegica
entre o que tem lugar loacutegico e espacial
condiccedilotildees (Para uma discussatildeo aprofundada do apriorismo e do argumento transcendental na obra de Wittgenstein por comparaccedilatildeo com o de Kant ver HACKER P M S Wittgenstein Comparisons and Context Oxford University Press Oxford 2013 pp 31-53) Jaacute o a priori em Frege eacute o domiacutenio proacuteprio da verdade primitiva negando em oposiccedilatildeo a Wittgenstein e Kant a possibilidade de verdades com base na experiecircncia (O seguinte artigo eacute bastante elucidativo sobre o apriorismo de Frege BURGE Tyler ldquoFrege on Apriorityrdquo in Paul Boghossian and Christopher Peacock (eds) New Essays on the A Priori Clarendon Press Oxford 2000 pp 11-42)
55 ldquoDer Satz ist wahr wenn es das gibt was er vorstelltrdquo (NB 31114 p 115)
38
Capiacutetulo 3 ndash O Impensaacutevel e a Filosofia
Cada um destes objetos e mil outros semelhantes sobre os quais aliaacutes o meu olhar vagueia com uma indiferenccedila compreensiacutevel podem subitamente a qualquer momento momento esse que de modo nenhum estaacute no meu poder evocar assumir para mim um caraacutecter tatildeo sublime e tatildeo comovente que todas as palavras me parecem demasiado pobres para o descrever E mesmo a imagem distintiva dum objeto ausente pode efetivamente adquirir a misteriosa funccedilatildeo de se encher ateacute agrave borda com este silencioso mas repentino crescendo do fluxo dum sentimento divino56
A Possibilidade da Existecircncia como Condiccedilatildeo do Pensamento
Discutimos anteriormente a possibilidade da existecircncia do pensamento
concluindo por essa possibilidade radicar na sua expressatildeo como sinal de uma
proposiccedilatildeo com sentido Interessa-nos agora sublinhar como para Wittgenstein a
possibilidade da existecircncia do mundo eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do proacuteprio
pensamento O pensamento pode pensar unicamente o que tem a possibilidade de
existecircncia Uma vez que o mundo eacute a totalidade dos estados de coisas que existem
assim determinando tambeacutem os que natildeo existem e ambos constituindo a realidade (cf
TLP 204 205 e 206) entatildeo soacute eacute possiacutevel pensar o mundo isto eacute a existecircncia ou a natildeo
existecircncia de estados de coisas Daiacute natildeo se poder pensar em nada que natildeo seja a
possibilidade de uma conexatildeo entre coisas (cf TLP 20121) Mas recordemos o que eacute
para Wittgenstein a existecircncia Diz-nos ele que a possibilidade de uma existecircncia eacute
dada quer pelo lugar espacial quer pelo lugar loacutegico (cf TLP 3411) No espaccedilo loacutegico
o mundo satildeo os factos como imagem da existecircncia e da natildeo existecircncia de estados de
coisas (cf TLP 113 2 211 e 2141) Neste espaccedilo a imagem de um estado de coisas
determina a possibilidade da sua existecircncia ela conteacutem a possibilidade do estado de
coisas que representa Neste sentido para que o estado de coisas possa ser possiacutevel
basta ser pensaacutevel (cf TLP 2203 3001 e 302) Assim a possibilidade de existecircncia
de um estado de coisas tal qual eacute pensado ou a possibilidade de existecircncia do que eacute
56 HOFMANNSTHAL Hugo von A Carta de Lord Chandos ndash ou da incapacidade da linguagem dizer o mundo Padrotildees Culturais Editora Lisboa 2008 pp 41-42
39
pensaacutevel depende da sua concordacircncia com a realidade (cf TLP 221) Eacute a
possibilidade desta concordacircncia que torna possiacutevel a sua existecircncia O que determina o
mundo eacute assim o que existe e soacute existe o que verifica a concordacircncia do pensaacutevel com
a realidade Desta maneira o mundo circunscreve-se ao que eacute pensaacutevel Mas eacute
igualmente verdade que apenas eacute possiacutevel pensar o que tem a possibilidade de
existecircncia ou de natildeo existecircncia
Para que uma proposiccedilatildeo tenha sentido e ocupe um lugar no espaccedilo loacutegico para
que ela represente a existecircncia e a natildeo existecircncia de estados de coisas deve mostrar as
suas coordenadas loacutegicas (cf TLP 34 e 341) Satildeo estas coordenadas que representam
o estado de coisas na proposiccedilatildeo Wittgenstein estabelece o seguinte paralelismo a este
respeito ldquoSe o ponto no espaccedilo natildeo existisse entatildeo tambeacutem natildeo existiriam as
coordenadas e se as coordenadas existem entatildeo existe igualmente o ponto ndash Eacute assim
na loacutegicardquo57 (NB 21615 p102) Satildeo as coordenadas loacutegicas de uma proposiccedilatildeo que
possibilitam a existecircncia daquilo que a proposiccedilatildeo representa Satildeo elas que efetivamente
permitem conceber a relaccedilatildeo de representaccedilatildeo da proposiccedilatildeo com a realidade Ora as
coordenadas loacutegicas de uma proposiccedilatildeo satildeo o que na proposiccedilatildeo estabelece a relaccedilatildeo
interna entre esta e as coisas do mundo Para ser uma imagem de um estado de coisas
devem os elementos de uma proposiccedilatildeo estar correlacionados com as coisas a que se
referem Elas satildeo o que na proposiccedilatildeo elementar se correlaciona com as coisas de um
modo que
Um nome estaacute em vez de uma coisa um outro em vez de outra e entre si eles estatildeo ligados Assim o todo apresenta o estado de coisas como uma imagem viva58 (TLP 40311)
As coordenadas loacutegicas referem-se pois ao que eacute possiacutevel conhecer na realidade os
seus objetos na conexatildeo com outros objetos e eacute sobre como estes satildeo e natildeo o que satildeo
que a proposiccedilatildeo se pronuncia (cf TLP 3221) Estas coordenadas fazem com que a
proposiccedilatildeo tenha sentido ao tornaacute-la uma referecircncia da possibilidade de existecircncia de
estados de coisas O sentido da proposiccedilatildeo refere-se pois agrave existecircncia de estados de
57 ldquoWenn der Punkt im Raume nicht existiert dann existieren auch seine Koordinaten nicht und wenn die Koordinaten existieren dann existiert auch der Punkt ndash So ist es in der Logikrdquo (NB 210615 p162)
58 ldquoEin Name steht fuumlr ein Ding ein anderer fuumlr ein anderes Ding und untereinander sind sie verbunden so stellt das Ganze ndash wie ein lebendes Bild ndash den Sachverhalt vorrdquo (TLP 40311)
40
coisas sendo sem-sentido a referecircncia agrave sua essecircncia As coordenadas loacutegicas mais
uma vez soacute facultam o pensamento da possibilidade de existecircncia
Como o pensamento do estado de coisas eacute uma imagem da conexatildeo loacutegica
dessas coisas decorre daqui a possibilidade da existecircncia de uma relaccedilatildeo entre as
coisas Natildeo a relaccedilatildeo em si mesma mas antes a existecircncia de uma relaccedilatildeo
Tem de ser possiacutevel a conexatildeo loacutegica entre as coisas representadas e tal seraacute sempre o caso se as coisas estiverem realmente representadas Atenccedilatildeo aquela conexatildeo natildeo eacute uma relaccedilatildeo mas somente a existecircncia de uma relaccedilatildeo59 (NB 41114 p 43)
Wittgenstein com esta distinccedilatildeo destaca a ideia a que jaacute haacute pouco aludimos de que o
pensamento somente pode dizer como satildeo as coisas e natildeo o que elas satildeo (cf TLP
3221) Ele unicamente autoriza a verificaccedilatildeo da existecircncia sem contudo nada poder
dizer sobre a essecircncia que seja passiacutevel de ser verdadeiro ou falso A verdade ou
falsidade satildeo categorias que soacute se aplicam ao que tem a possibilidade de existecircncia ou
de natildeo existecircncia Assim eacute com a proposiccedilatildeo com sentido enquanto representaccedilatildeo de
estado de coisas Na proposiccedilatildeo a conexatildeo loacutegica entre os seus elementos deve ser
possiacutevel para as coisas que ela representa para que assim se possa verificar a possiacutevel
existecircncia dessa conexatildeo Esta possibilidade resulta de uma certa relaccedilatildeo entre os
elementos da proposiccedilatildeo e as coisas por ela representada (cf NB 51114 p 43)
Podemos perceber melhor a mencionada relaccedilatildeo ao fazermos o seguinte exerciacutecio que
nos eacute proposto por Wittgenstein
A essecircncia do sinal proposicional torna-se muito clara se em vez de composto por sinais escritos o pensarmos composto de objetos espaciais (como mesas cadeiras livros)
59 ldquoDie logische Verbindung muszlig natuumlrlich unter den repraumlsentierten Dingen moumlglich sein und dies wird immer der Fall sein wenn die Dinge wirklich repraumlsentiert sind Wohlgemerkt jene Verbindung ist keine Relation sondern nur das Bestehen einer Relationrdquo (NB 41114 p 115)
41
A posiccedilatildeo espacial reciacuteproca destas coisas exprime entatildeo o sentido da proposiccedilatildeo60 (TLP 31431)
A relaccedilatildeo aqui sugerida entre os elementos da proposiccedilatildeo e as coisas eacute uma relaccedilatildeo
direta de modo que por um lado os elementos como sinais simples fazem as vezes
das coisas espaciais por outro lado a posiccedilatildeo espacial reciacuteproca das coisas eacute dada pela
conexatildeo loacutegica dos elementos O sentido desta proposiccedilatildeo corresponde a uma certa
existecircncia espacial
Resumindo a possibilidade do pensar deve-se ao facto de que tudo o que se
possa dizer eacute sobre o mundo e eacute este como possibilidade da existecircncia que possibilita o
dizer mas o que se possa dizer determina por sua vez a proacutepria possibilidade loacutegica do
existente
A linguagem estaacute em relaccedilotildees internas com o mundo eacute por isso que ela e estas relaccedilotildees determinam a possibilidade loacutegica dos factos Se tivermos um sinal inteiramente significativo ele tem entatildeo de estar numa determinada relaccedilatildeo interna com uma estrutura Sinal e relaccedilatildeo determinam claramente a forma loacutegica do designado61 (NB 25415 p 65)
Soacute se pode pensar o mundo como possibilidade de existecircncia mas esta possibilidade eacute
condiccedilatildeo necessaacuteria a todo o pensar O pensamento pensa a possibilidade da existecircncia e
o que existe soacute existe porque foi pensado como tal possibilidade Podemos pois
afirmar que o fundamento da existecircncia eacute o pensamento na mesma medida em que a
possibilidade da existecircncia eacute condiccedilatildeo necessaacuteria ao proacuteprio pensamento eles
implicam-se mutuamente Em tudo isto voltamos a reencontrar o solipsismo de
Wittgenstein
Quando eacute que podemos entatildeo dizer que um facto existe Quando a proposiccedilatildeo
como sua imagem eacute verdadeira ldquoA proposiccedilatildeo eacute verdadeira quando existe o que ela
60 ldquoSehr klar wird das Wesen des Satzzeichens wenn wir es uns statt aus Schriftzeichen aus raumlumlichen Gegenstanden (etwa Tischen Stuhlen Buumlchern) zusammengesetzt denken Die gegenseitige raumlumliche Lage dieser Dinge druumlckt dann den Sinn des Satzes ausrdquo (TLP 31431)
61 ldquoDa die Sprache in internen Relationen zur Welt steht so bestimmt sie und diese Relationen die logische Moumlglichkeit der Tatsachen Haben wir ein bedeutungsvolles Zeichen so muszlig es in einer bestimmten internen Relation zu einem Gebilde stehen Zeichen und Relation bestimmen eindeutig die logische Form des Bezeichnetenrdquo (NB 24415 p 134)
42
representardquo62 (NB 31114 p 43) Um facto tem existecircncia quando o pensamento
enquanto possibilidade de algo existir eacute verdadeiro E ele eacute verdadeiro quando como
em outros momentos jaacute o dissemos ao comparar a proposiccedilatildeo com a realidade se apura
a concordacircncia da proposiccedilatildeo com a possibilidade da existecircncia de estados de coisas (cf
TLP 405 e 42) Efetivamente satildeo as possibilidades de verdade das proposiccedilotildees
elementares que determinam as possibilidades da existecircncia pois se elas satildeo
verdadeiras entatildeo os estados de coisas existem caso contraacuterio os estados de coisas natildeo
existem (cf TLP 421 425 e 43) Consequentemente o mundo que eacute descrito
completamente por todos os estados de coisas existentes eacute nem mais nem menos do que
a totalidade das proposiccedilotildees elementares verdadeiras (cf TLP 426)
A Impossibilidade de Pensar a Existecircncia
A proposiccedilatildeo verdadeira daacute-nos conta da existecircncia do que ela representa O
sentido de uma tal proposiccedilatildeo corresponde a um estado de coisas existente Lembremo-
nos poreacutem que para Wittgenstein nada se pode dizer sobre o sentido de uma
proposiccedilatildeo (cf TLP 4121) O que quer que disseacutessemos sobre ele natildeo passaria de uma
pseudoproposiccedilatildeo uma proposiccedilatildeo sem-sentido Podemos descrever uma situaccedilatildeo mas
natildeo podemos descrever o que descrevemos da situaccedilatildeo Ao sabermos que uma
proposiccedilatildeo eacute verdadeira ficamos a saber que existe algo no mundo que corresponde ao
seu sentido todavia natildeo eacute possiacutevel conferir sentido ao que assim eacute dado como
existente O sentido da proposiccedilatildeo que corresponde a um estado de coisas existente natildeo
pode ele mesmo ter um sentido dado pela linguagem Ou seja o pensamento que tem
como uacutenico objeto geral a possibilidade da existecircncia eacute incapaz de pensar a proacutepria
existecircncia Ele pensa a possibilidade da existecircncia mas natildeo a existecircncia ela mesma
Nada mais podemos conhecer senatildeo a existecircncia Apenas nos eacute possiacutevel conhecer como
as coisas satildeo e natildeo o que elas satildeo ideia que jaacute tiacutenhamos feito notar (cf TLP 3221)
Efetivamente ao pensarmos consideramos unicamente a existecircncia ou a natildeo existecircncia
do que estamos a pensar como possibilidade e natildeo como realidade existente ou natildeo
existente Razatildeo pela qual natildeo nos eacute possiacutevel compreender o sentido do mundo o que
leva Wittgenstein a concluir que ldquoO sentido do mundo tem que estar fora do mundordquo63
62 ldquoDer Satz ist wahr wenn es das gibt was er vorstelltrdquo (NB 31114 p 115)
63 ldquoDer Sinn der Welt muszlig auszligerhalb ihrer liegenrdquo (TLP 641)
43
(TLP 641) Pois eacute certo que se o existente tem um sentido natildeo o podemos encontrar
no mundo pois ele natildeo eacute passiacutevel de ser pensado A impossibilidade de pensar a
existecircncia eacute a impossibilidade de pensar o sentido da existecircncia
Se o quisermos tornar mais claro e preciso o que acabamos de dizer merece trecircs
breves consideraccedilotildees A primeira tem que ver com a afirmaccedilatildeo de que a existecircncia eacute
firmada pela verdade das proposiccedilotildees com sentido Estamos obviamente a pensar nas
proposiccedilotildees elementares que descrevem como se passa a conexatildeo entre coisas Quando
a proposiccedilatildeo se refere a factos negativos cujo sentido descreve como natildeo se passa o
estado de coisas a sua verdade natildeo daacute prova de qualquer existecircncia mas pelo contraacuterio
da natildeo existecircncia Ao aludir ao mesmo facto esta proposiccedilatildeo verdadeira equivale agrave
respetiva proposiccedilatildeo falsa que o descreve na afirmativa A verdade da proposiccedilatildeo que se
refere a um facto negativo tem o mesmo significado que a falsidade da proposiccedilatildeo que
segundo a mesma estrutura loacutegica projeta pela positiva o mesmo facto Estamos pois
perante uma proposiccedilatildeo que se verdadeira determina a natildeo existecircncia do facto Poreacutem
quando falsa firma justamente a sua existecircncia Assim deveriacuteamos dizer das
proposiccedilotildees relativas aos factos negativos que elas firmam a existecircncia quando se
constata a sua falsidade A segunda consideraccedilatildeo pretende sublinhar que a conclusatildeo de
que eacute impossiacutevel pensar a existecircncia tambeacutem se aplica agrave natildeo existecircncia Uma proposiccedilatildeo
falsa eacute tatildeo impensaacutevel quanto uma proposiccedilatildeo verdadeira Com efeito o que eacute
impossiacutevel de pensar eacute o sentido da proposiccedilatildeo seja ele verdadeiro ou falso Eacute por que o
seu sentido eacute impensaacutevel que quando verdadeiro ou falso a existecircncia ou natildeo
existecircncia satildeo igualmente impensaacuteveis Por isso natildeo nos eacute possiacutevel de facto pensar
quer a existecircncia quer a natildeo existecircncia Se porventura indagarmos sobre o sentido da
natildeo existecircncia enfrentaremos a mesma impossibilidade que defrontamos quando
perguntamos pelo sentido dela Eacute-nos igualmente impossiacutevel saber qual o sentido que
tem a natildeo existecircncia Assim a haver algum sentido para natildeo existecircncia ele natildeo se
encontra no mundo mas fora dele Enfim os sentidos de uma e da outra soacute podem estar
para aleacutem do mundo A frase de Wittgenstein de que ldquoO sentido do mundo tem que
estar fora do mundordquo motiva a terceira e uacuteltima consideraccedilatildeo O significado que temos
vindo a usar da palavra sentido refere-se ao sentido da proposiccedilatildeo na maneira como
Wittgenstein o define ldquoO sentido da proposiccedilatildeo eacute a sua concordacircncia ou natildeo
concordacircncia com as possibilidades da existecircncia e da natildeo existecircncia de estados de
44
coisasrdquo64 (TLP 42) Ora dada a impossibilidade de conferir ao mundo este sentido
proposicional ao dizermos que o sentido do mundo estaacute fora de mundo estamos a
negar que o seu sentido se possa estabelecer por concordacircncia ou natildeo concordacircncia com
as possibilidades da existecircncia e da natildeo existecircncia Mas entatildeo a que noccedilatildeo de sentido
se refere Wittgenstein quando fala do laquosentido do mundoraquo Natildeo eacute certamente a do
sentido da proposiccedilatildeo que se coteja com a realidade O que estaacute em causa como
analisaremos adiante eacute uma nova dimensatildeo de sentido de ordem eacutetica e esteacutetica
Mas voltemos mais uma vez ao sentido da proposiccedilatildeo Ainda que ele natildeo se
deixe dizer o sentido eacute no entanto mostrado pela proacutepria proposiccedilatildeo Eacute por isso que
somos capazes de o compreender e saber da sua veracidade O facto de nada podemos
dizer sobre uma determinada forma loacutegica de uma proposiccedilatildeo com sentido natildeo impede
contudo que fiquemos a saber atraveacutes do que ela mostra se ela se refere ao que pode
ter existecircncia Isto significa entatildeo que natildeo podemos afirmar por via de outras
proposiccedilotildees a existecircncia de propriedades e relaccedilotildees internas que sejam espelhadas por
uma proposiccedilatildeo (cf TLP 4122 4124 e 4125) Mas tambeacutem quer dizer que os
conceitos formais mostrados nas proposiccedilotildees natildeo podem ser ditos e assim integrar
proposiccedilotildees como se de conceitos propriamente ditos se tratassem (cf TLP 4126) Ao
contraacuterio das proposiccedilotildees que usam estes uacuteltimos conceitos aquelas que usem conceitos
formais natildeo descrevem uma situaccedilatildeo possiacutevel de existecircncia ou natildeo existecircncia A
revelaccedilatildeo dos conceitos formais natildeo autoriza o seu uso na linguagem sob pena de se
enunciarem proposiccedilotildees sem-sentido Em suma o que a proposiccedilatildeo mostra torna-a
inteligiacutevel mas essa inteligibilidade eacute inexprimiacutevel
A linguagem nos limites da sua funccedilatildeo de descriccedilatildeo do mundo que funda a
existecircncia baliza o mundo (cf TLP 56) O mundo eacute assim tudo o que existe
circunscrevendo-se aos sentidos verdadeiros de todas as proposiccedilotildees elementares que
projetam a realidade empiacuterica (cf TLP 5561) Os limites do mundo satildeo os limites do
que eacute mostrado no que eacute dito nas proposiccedilotildees sobre o qual natildeo nos eacute possiacutevel dizer seja
o que for com sentido Mas a linguagem mostra mais do que apenas a existecircncia ou natildeo
existecircncia e as suas formas loacutegicas As proposiccedilotildees mostram-nos igualmente que o
limite exterior ao mundo eacute o sujeito para quem laquoo mundo eacute o meu mundoraquo e o si
proacuteprio eacute o microcosmo do seu mundo (cf TLP 563 5632 e 5641) As proposiccedilotildees
64 ldquoDer Sinn des Satzes ist seine Uumlbereinstimmung und Nichtuumlbereinstimmung mit den Moumlglichkeiten des Bestehens und Nichtbestehens der Sachverhalterdquo (TLP 42)
45
exibem aquele que as enuncia do mesmo modo que o olho que vecirc sabe-se a ver mas natildeo
se encontra a si no que vecirc e assim natildeo tem a possibilidade de existecircncia ou natildeo
existecircncia (cf TLP 5633) Este sujeito que as proposiccedilotildees mostram deste modo eacute um
sujeito volitivo que quer representar o mundo que na accedilatildeo de enunciaccedilatildeo de
proposiccedilotildees eacute a vontade de mundo de ser o seu mundo Pois eacute a sua vontade que
determina o sentido a possibilidade de existecircncia ou de natildeo existecircncia do que
representa Natildeo que ela determine o mundo pois ele eacute-nos jaacute dado no seu modo
definido de se apresentar mas deve-se a ela o sentido que se verdadeiro firma a
existecircncia e se falso a natildeo existecircncia (cf TLP 6373 NB 151016 p 125) O sujeito
destaca-se entatildeo como aquele que atraveacutes do pensamento eacute capaz de ficar a saber
tanto o que existe quanto o que natildeo existe E eacute assim que o mundo que eacute como eacute se
comeccedila a erguer como o laquomeu mundoraquo Um mundo que eacute exposto pelo pensamento e
nisso aponta para um sujeito que natildeo eacute parte dele mas que o faz seu ao querer
determinar a existecircncia Essa mesma existecircncia que define o microcosmo que constitui
o sujeito e que o pensamento natildeo eacute capaz de exprimir
A Impossibilidade de Pensar o Extramundano
Vimos que o sujeito volitivo e o sentido do mundo pertencem ao extramundano
Acerca deles nada podemos dizer que faccedila sentido que seja passiacutevel de ser verdadeiro
ou falso Natildeo satildeo menos impensaacuteveis que a existecircncia ou a natildeo existecircncia Porque
somente podemos pensar o mundo o que esteja para laacute dele eacute logicamente impossiacutevel
de pensar Todavia jaacute o referimos a impossibilidade de o pensar natildeo significa que o
que eacute possiacutevel pensar o mundo como representaccedilatildeo loacutegica natildeo o possa de algum modo
mostrar As proposiccedilotildees mostram o sujeito como limite do mundo sobressaindo como
vontade de o representar e tomar perante ele uma posiccedilatildeo (cf NB 41116 p 128) Ora
o sentido do mundo revela-se nesta tomada de posiccedilatildeo no que ela tem de eacutetico-esteacutetico
(cf NB 11616 p 108) Mas se o sentido do mundo eacute dado pelos valores eacuteticos estes
natildeo se podem exprimir na linguagem cujas proposiccedilotildees tatildeo-soacute podem descrever a
existecircncia ou natildeo existecircncia de estados de coisas referidos ao mundo (Cf TLP 641 e
642) Eacute atraveacutes da vontade do sujeito representar o mundo isto eacute a accedilatildeo de
representaccedilatildeo enunciada pela proposiccedilatildeo com sentido que ele no que diz mostra a sua
posiccedilatildeo eacutetica perante o mundo Tal como o sujeito a eacutetica eacute transcendental e por isso
46
natildeo eacute possiacutevel o pensamento eacutetico embora seja possiacutevel o pensamento que mostra a
eacutetica (cf TLP 6421)
Chegados a este ponto parece-nos claro que Wittgenstein entende que as
proposiccedilotildees com sentido ao dizerem o mundo mostram natildeo soacute o mundo mas tambeacutem
o extramundano Poreacutem o que eacute mostrado pelas proposiccedilotildees pode ter modos diversos de
se mostrar Acede-se ao sentido de uma proposiccedilatildeo atraveacutes da sua compreensatildeo e agrave sua
verdade pelo que ficamos a saber sobre a forma loacutegica do mundo jaacute o sujeito eacute-nos
mostrado na accedilatildeo de representaccedilatildeo do mundo Mas de que modo acedemos agrave eacutetica Natildeo
atraveacutes dos factos jaacute que eles satildeo como satildeo sem que entre eles haja qualquer hierarquia
(cf TLP 5556 e 55561) Mas antes atraveacutes da vontade de descriccedilatildeo do mundo que
espelha perante ele uma posiccedilatildeo eacutetica Se bem que
Se o bom ou o mau querer tem um efeito sobre o mundo soacute o pode ter sobre os limites do mundo natildeo sobre os factos sobre o que natildeo eacute representado atraveacutes da linguagem mas pode somente ser mostrado na linguagem65 (NB 5716 p 109)
Nos limites do mundo encontra-se precisamente tudo o que eacute mostrado pela linguagem
que o representa Apenas nestes limites no que eacute mostrado na proposiccedilatildeo com sentido
pode aquela vontade ter algum efeito O bem ou o mal apenas dizem respeito ao sujeito
como limite do mundo e natildeo ao mundo O eacutetico procede do sujeito metafiacutesico no ato de
representaccedilatildeo loacutegica do mundo (cf NB 2816 pp 117-118 e 5816 pp 118-119 TLP
5641) E eacute neste ato que o sentido das proposiccedilotildees adquire um sentido eacutetico natildeo
redutiacutevel ao sentido proposicional As proposiccedilotildees mostram esse sentido eacutetico quando
descrevem factos que satildeo accedilotildees que tecircm uma espeacutecie de recompensa ou castigo eacutetico
isto eacute satildeo ou natildeo satildeo apraziacuteveis para o sujeito que as enuncia (cf TLP 6422) Essas
descriccedilotildees dadas pelos sentidos das proposiccedilotildees mostram deste modo particular as
diferenccedilas de valor que os factos do mundo tecircm para o sujeito As proposiccedilotildees
verdadeiras que afirmam a existecircncia podem evidenciar um sujeito que natildeo lhe eacute
indiferente que a valoriza Neste sentido eacute sempre possiacutevel contrapor ao mau do que
existe o bom do que por oposiccedilatildeo natildeo existe mas poderia existir A proposiccedilatildeo que
65 ldquoWenn das gute oder boumlse Wollen eine Wirkung auf die Welt hat so kann es sin nur auf die Grenzen der Welt haben nicht auf die Tatsachen auf das was durch die Sprache nicht abgebildet sondern nur in der Sprache gezeigt werden kannrdquo (NB 5716 pp 167-168)
47
por ser falsa nega a existecircncia do que descreve pode natildeo obstante mostrar o valor do
que nega na condiccedilatildeo de que a proposiccedilatildeo oposta a proposiccedilatildeo que a nega
corresponder a uma accedilatildeo que gratifica ou pune Ou seja a possibilidade de existecircncia ou
natildeo existecircncia de estado de coisas contida numa proposiccedilatildeo pode ser igualmente a
possibilidade de ela espelhar o valor do que existe ou natildeo existe
A impossibilidade de pensar o eacutetico inviabiliza a eacutetica cognoscitiva pois natildeo nos
eacute possiacutevel saber se as proposiccedilotildees eacuteticas satildeo verdadeiras ou falsas e justamente por
isso elas satildeo sem-sentido E consequentemente tambeacutem a eacutetica deontoloacutegica ou
prescritiva redunda em proposiccedilotildees sem-sentido Natildeo eacute pois de estranhar que
Wittgenstein rejeite completamente toda a eacutetica baseada nas consequecircncias positivas ou
negativas das accedilotildees com base nas quais se baseiem preceitos eacuteticos (cf TLP 6422)
Segundo ele natildeo satildeo as consequecircncias das accedilotildees mas as proacuteprias accedilotildees eacute que podem
ser agradaacuteveis ou desagradaacuteveis
Tem que existir uma espeacutecie de recompensa eacutetica e castigo eacutetico mas estes tecircm que estar na proacutepria accedilatildeo (E eacute oacutebvio que a recompensa tem que ser algo de agradaacutevel e o castigo algo de desagradaacutevel)66 (TLP 6422)
A accedilatildeo como que tem uma ressonacircncia eacutetica sob a forma de uma espeacutecie de afetividade
eacutetica o gostar ou o natildeo gostar das accedilotildees A posiccedilatildeo eacutetica mostra-se assim nesta
valoraccedilatildeo afetiva Satildeo precisamente estes afetos que satildeo mostrados nas proposiccedilotildees que
descrevem as accedilotildees valoradas Daiacute que possamos dizer que a impossibilidade de pensar
o eacutetico eacute simultaneamente a impossibilidade de pensar o afetivo Tambeacutem este estaacute para
aleacutem do mundo De referir que as accedilotildees satildeo somente gratificantes ou punitivas devido
ao seu impacto eacutetico Eacute o eacutetico que faz com que as accedilotildees natildeo sejam indiferentes para o
sujeito e as proposiccedilotildees que as descrevem mostrem essa espeacutecie de afetividade eacutetica Eacute
esta que faz com que o meu mundo possa ter diferenccedilas valorativas
Em suma o mundo eacute o que eacute pensaacutevel mas enquanto tal mostra-nos o
impensaacutevel E assim eacute o meu mundo o mundo e o que ele mostra nos seus limites O
66 ldquoEs muszlig zwar eine Art von ethischem Lohn und ethischer Strafe geben aber diese muumlssen in der Handlung selbst liegen (Und das ist auch klar daszlig der Lohn etwas Angenehmes die Strafe etwas Unangenehmes sein muszlig)rdquo (TLP 6422)
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mundo dado por todas as proposiccedilotildees elementares mostra de modos diversos o que
estaacute para laacute dele e sobre o qual nada podemos saber de verdadeiro ou falso o sujeito
como vontade e a sua posiccedilatildeo eacutetica-esteacutetica perante o mundo que de algum modo
confere sentido ao mundo A isto se deve a afirmaccedilatildeo de Wittgenstein de que apesar do
mundo ser como eacute ldquoEnquanto todo tem que ter por assim dizer um crescente e um
minguanterdquo67 (TLP 643) O bem e o mal que satildeo mostrados nos limites do mundo isto
eacute nos limites da linguagem alteram o mundo de tal maneira que ldquoO mundo de um
homem feliz eacute diferente do dum infelizrdquo68 (TLP 643) Um homem eacute feliz quando o seu
mundo eacute dado sobretudo por proposiccedilotildees que mostram situaccedilotildees do seu agrado que satildeo
afetivamente gratificantes Inversamente o desagrado com o seu mundo torna um
homem infeliz Assim o impacto eacutetico do mundo tal qual eacute torna o meu mundo feliz ou
infeliz Em todo o caso sendo a eacutetica inefaacutevel natildeo saberemos dizer porque somos
felizes ou infelizes porque eacute que as situaccedilotildees do mundo satildeo do nosso agrado ou
desagrado E pelo mesmo motivo quando percebemos o sentido da vida eacute impossiacutevel
dizer em que eacute que ele consiste (cf TLP 6521) A crenccedila em Deus parece ter aqui o seu
fundamento na inefabilidade do sentido da vida do eacutetico (cf NB 8716 p 110)
A Impossibilidade de Pensar o Pensamento
Um dos resultados a que chegamos no Capiacutetulo 1 foi que o pensamento soacute tem
existecircncia enquanto eacute exprimido no signo proposicional natildeo pertencendo ao mundo o
pensamento que desse modo exprime a imagem dos factos Contudo atraveacutes do signo
proposicional mostra-se jaacute o pensamento Mas como eacute que se daacute esta expressatildeo De
que maneira se traduz a imagem loacutegica no signo proposicional O que nos eacute dito por
Wittgenstein eacute que existe uma correspondecircncia entre os objetos do pensamento e os
elementos do signo proposicional (cf TLP 32) E que a imagem se distingue da
proposiccedilatildeo consoante os diferentes sistemas de descriccedilatildeo do mundo das imagens do
mundo sem que nesses sistemas se diga alguma coisa acerca das proacuteprias imagens (cf
TLP 6341 e 6342) Qual seja poreacutem o meacutetodo que faz corresponder a imagem ao
signo a conexatildeo entre os objetos do pensamento agrave conexatildeo dos elementos do signo
proposicional natildeo eacute possiacutevel ao pensamento exprimir Pois desde logo a imagem natildeo eacute
67 ldquoSie muszlig sozusagen als Ganzes abnehmen oder zunehmenrdquo (TLP 643)
68 ldquoDie Welt des Gluumlcklichen ist eine andere als die des Ungluumlcklichenrdquo (TLP 643)
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representaacutevel mas somente mostrada na proposiccedilatildeo e como tal natildeo tem sequer a
possibilidade de ser pensaacutevel (cf TLP 2172 4121 e 41212) Quer isto entatildeo dizer
que natildeo eacute possiacutevel ao pensamento exprimir o modo como ele proacuteprio se exprime
porque eacute impossiacutevel pensar o proacuteprio pensamento
Esta impossibilidade decorre do facto do pensamento ser a proposiccedilatildeo com
sentido e o seu sentido natildeo ser suscetiacutevel de ser pensado (cf TLP 4022 e 41212) Com
efeito o que faz com que uma proposiccedilatildeo seja pensamento eacute ela ter sentido e natildeo ser
meramente sinal Eacute ela como sinal percetiacutevel pelos sentidos representar
simbolicamente estados de coisas (cf TLP 332) E assim tem sentido a proposiccedilatildeo
que pode concordar ou natildeo concordar com a realidade (cf TLP 42) com o sentido dos
factos que representa (cf TLP 2221) Daiacute que o sentido da proposiccedilatildeo possa ser
verdadeiro ou falso se o que ele representa concorda ou natildeo concorda com a realidade
Por consequecircncia toda a proposiccedilatildeo que natildeo tenha esta possibilidade eacute uma proposiccedilatildeo
sem-sentido isto eacute impensaacutevel Esta possibilidade eacute de facto a da concordacircncia ou natildeo
concordacircncia da forma loacutegica da proposiccedilatildeo com o que eacute representado Poreacutem a proacutepria
forma loacutegica de representaccedilatildeo ou imagem loacutegica da realidade natildeo se pode representar a
si mesma E deste modo ela natildeo eacute representaacutevel pela proposiccedilatildeo mas eacute antes por ela
espelhada (cf TLP 412) A proposiccedilatildeo com sentido mostra o pensamento mas este
natildeo pode ser dito pela proposiccedilatildeo sob pena de redundar numa proposiccedilatildeo sem-sentido
Por outro lado eacute justamente por que a proposiccedilatildeo tem sentido que a podemos
compreender pois ela mostra independentemente de ser verdadeira ou falsa a situaccedilatildeo
em vista (cf TLP 4021 e 4024) E naturalmente eacute por que a podemos compreender
que somos capazes de a comparar com o facto correspondente e saber da sua verdade ou
falsidade A proposiccedilatildeo mostra o seu sentido isto eacute mostra o que diz sobre os factos
(cf TLP 4022 e 4461) quando o compreendemos e verificamos a sua correspondecircncia
agrave realidade Sendo o pensamento a proposiccedilatildeo que mostra o seu sentido (cf TLP 4 e
4022) entatildeo ele proacuteprio eacute mostrado na sua compreensatildeo por via da qual podemos
saber da sua verdade ou falsidade Assim o sentido mostra-se na medida em que eacute
compreendido e nessa mesma medida mostra igualmente o pensamento na proposiccedilatildeo
com sentido Resumidamente o pensamento mostra-se na compreensatildeo do sentido da
proposiccedilatildeo
Mas natildeo eacute somente por compreendermos o seu sentido que a proposiccedilatildeo eacute
pensamento Eacute porque com a sua compreensatildeo pensamos o seu sentido projetando-o
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sobre os factos que lhe correspondem (cf TLP 311) O pensamento mostra-se
igualmente na comparaccedilatildeo do que compreendemos na proposiccedilatildeo com o sentido dos
factos que daacute conta da sua concordacircncia ou natildeo concordacircncia da verdade ou falsidade
da proposiccedilatildeo Poreacutem dado ser-nos impossiacutevel pensar o pensamento natildeo podemos
como jaacute antes vimos conhecer o meacutetodo de comparaccedilatildeo ou projeccedilatildeo e sendo assim o
modo como se chega agrave verdade ou falsidade das proposiccedilotildees O que nos eacute mostrado
com o sentido da proposiccedilatildeo eacute que ele eacute verdadeiro ou falso e como uma proposiccedilatildeo
natildeo pode afirmar a sua proacutepria verdade (cf TLP 4442) o que assim eacute mostrado eacute-nos
dado pelo pensamento Sobre o problema da verdade ou da falsidade do que pensamos
soacute o pensamento o pode resolver no confronto com a realidade apesar de nada poder
dizer sobre o modo como ele mesmo o resolve
Mas que uma proposiccedilatildeo como expressatildeo da imagem loacutegica dos factos possa
ser falsa parece levantar-nos dificuldades de entendimento ldquoA dificuldade eacute esta como
pode existir a forma p se natildeo haacute nenhum estado de coisas desta forma E em que
consiste realmente esta formardquo69 (NB 291014 p 36) Como eacute possiacutevel fazer uma
imagem de como as coisas natildeo se passam Wittgenstein chama-lhe o laquomisteacuterio da
negaccedilatildeoraquo70 Embora o pensamento seja a imagem loacutegica dos factos (cf TLP 3) estes
podem ser factos positivos ou factos negativos Os primeiros correspondem agrave existecircncia
de estados de coisas enquanto os segundos agrave sua natildeo existecircncia (cf TLP 206) Aos
factos positivos como as coisas se passam contrapotildeem-se os factos negativos o campo
de possibilidades de como as coisas natildeo se passam O pensamento eacute a imagem loacutegica
dos factos mas tanto dos positivos quanto dos negativos A proposiccedilatildeo representa quer
a existecircncia dos primeiros quer a natildeo existecircncia dos segundos (cf TLP 41) Por esse
motivo qualquer proposiccedilatildeo com sentido referente a factos positivos ou negativos se
verdadeira a sua negaccedilatildeo eacute falsa e se falsa eacute verdadeira a proposiccedilatildeo que a nega Em
qualquer um dos casos eacute o mesmo facto positivo ou negativo que serve de referecircncia agrave
proposiccedilatildeo e agravequela que a nega (cf TLP 40621) Ainda assim poder-se-aacute manter a
duacutevida sobre como o pensamento eacute imagem do que natildeo tem existecircncia se
69 ldquoDie Schwierigkeit ist die wie kann es die Form von p geben wenn es keinen Sachverhalt dieser Form gibt Und worin besteht diese Form dann eigentlichrdquo (NB 291014 p 110)
70 ldquoHaacute aqui um misteacuterio profundo Eacute o misteacuterio da negaccedilatildeo as coisas natildeo se passam assim e contudo podemos dizer como natildeo satildeordquo (NB 151114 p 49) ldquoHier ist ein tiefes Geheimnis Es ist Geheimnis der Negation Es verhaumllt sich nicht so und doch koumlnnen wir sagen wie es sich nicht verhaumlltrdquo (NB 151114 p 120)
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incorretamente por esta imagem se considerar o reflexo imediato natildeo concebido dos
factos O pensamento quando representa os factos imagina-os faz deles imagens que
satildeo como que hipoacuteteses ou experimentos que podem ou natildeo ser verdadeiros isto eacute
concordarem ou natildeo concordarem com os factos (cf TLP 2225 401 e 4031) Razatildeo
pela qual as proposiccedilotildees projetam os factos como situaccedilotildees possiacuteveis (cf TLP 311)
pois elas tecircm somente a possibilidade de exprimir o seu sentido (cf TLP 313) E a
possibilidade da existecircncia e da natildeo existecircncia de estados de coisas depende de o
sentido da proposiccedilatildeo poder concordar ou natildeo concordar com esse estado de coisas (cf
TLP 42) Assim o misteacuterio das proposiccedilotildees que descrevem como as coisas natildeo satildeo eacute o
misteacuterio do pensamento que natildeo se deixa pensar mas que por via dessas proposiccedilotildees
se mostra como imaginaccedilatildeo como imagens loacutegicas concebidas tanto do existente
quanto do natildeo existente (cf TLP 21 NB 271014 p 34 e 11114 p 39) Podemos
entatildeo chamar imaginaccedilatildeo ao pensamento que faz imagens dos factos sejam elas sobre
a existecircncia de conexotildees entre coisas ou sobre conexotildees natildeo existentes entre coisas71
Talvez pudeacutessemos ficar a saber como funciona o pensamento se soubeacutessemos
enunciar as formas do pensar ou as leis loacutegicas com que opera Neste caso a linguagem
ao enunciar as suas proacuteprias propriedades loacutegicas expressaria as proacuteprias formas de
pensamento Caberia entatildeo agraves proposiccedilotildees loacutegicas dizer as leis que governam o
pensamento Contudo Wittgenstein eacute perentoacuterio quando diz que as proposiccedilotildees loacutegicas
natildeo dizem nada natildeo tecircm sentido (cf TLP 543 611 e 4461) e que eacute impossiacutevel agrave
linguagem dizer alguma coisa sobre si mesma (cf TLP 3332 e 4124) Como
tautologias que satildeo (cf TLP 61) estas proposiccedilotildees natildeo dizem mas mostram as
propriedades loacutegicas da linguagem isto eacute do pensamento do mundo como eacute pensado
(cf TLP 612 e 6122) e a sua verdade eacute reconheciacutevel nas proacuteprias tautologias (cf TLP
6113) Ou seja tais propriedades embora sejam exibidas pelas proposiccedilotildees natildeo podem
ser por sua vez enunciadas em proposiccedilotildees com sentido uma vez que elas natildeo
representam estados de coisas de que se possa asserir a sua verdade ou falsidade E as
71 O natildeo existente poreacutem eacute sempre imaginado (pensado) por relaccedilatildeo com as coisas do mundo Elas as suas formas deveratildeo estar presentes em tudo o que eacute pensado mesmo quando eacute sobre como as coisas natildeo se passam no mundo ldquoEacute oacutebvio que um mundo imaginado por muito diferente que seja do real tem que ter algo ndash uma forma ndash em comum com o realrdquo ldquoEs ist offenbar daszlig auch eine von der wirklichen noch so verschieden gedachte Welt Etwas ndash eine Form ndash mit der wirklichen gemein haben muszligrdquo (TLP 2022) e ldquoEsta forma firme consiste precisamente em objetosrdquo ldquoDiese feste Form besteht eben aus den Gegenstaumlndenrdquo (TLP 2023) Assim numa proposiccedilatildeo parecem ser as conexotildees logicamente possiacuteveis e natildeo os objetos dessas conexotildees que podem ser negadas satildeo elas o misteacuterio da negaccedilatildeo o produto da imaginaccedilatildeo que pode natildeo ter correspondecircncia com o que se passa entre as coisas do mundo
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proposiccedilotildees loacutegicas que se referem a outras proposiccedilotildees loacutegicas apenas as demonstram
gerando novas tautologias (cf TLP 6126) que como tais mais uma vez nada dizem
ainda que mostrem diferentes leis loacutegicas
A seguinte afirmaccedilatildeo de Wittgenstein parece-nos poder sintetizar bem a ideia de
que natildeo podendo noacutes dizer seja o que for sobre o pensamento o que dele nos eacute dado
saber eacute mostrado pela proposiccedilatildeo ldquoA proposiccedilatildeo exprime o que eu natildeo sei mas o que
tenho de saber para em geral o conseguir dizer nela o mostrordquo72 (NB 241014 p 32)
Natildeo podemos de facto fazer uma imagem loacutegica do pensamento como se de um
estado de coisas se tratasse Mas a existecircncia da proposiccedilatildeo exprime o pensamento
justamente o que eu natildeo sei enquanto expressatildeo proposicional que faculta a
compreensatildeo do seu sentido e a verificaccedilatildeo da sua verdade ou falsidade ou seja aquilo
que eu tenho de saber para poder enunciaacute-la Deste modo a proposiccedilatildeo que nos mostra
o seu sentido mostra-nos igualmente o pensamento expresso no sinal proposicional
que ao imaginar os factos nos permite a sua compreensatildeo e a confirmaccedilatildeo da validade
do que compreendemos face aos factos que ela representa E natildeo obstante o que a
proposiccedilatildeo mostra sobre o pensamento natildeo eacute passiacutevel de ser enunciado e atestada a sua
verdade (cf TLP 41212)
A Impossibilidade do Pensamento Filosoacutefico
Que papel eacute afinal reservado agrave filosofia quando eacute impossiacutevel pensar o
pensamento o sujeito a existecircncia ou a natildeo existecircncia de estados de coisas (assim como
a essecircncia delas) e o extramundano Continuaraacute a ter sentido o pensamento filosoacutefico
Seraacute a sua histoacuteria um logro de que somos resgatados pelo pensamento wittgensteiniano
dos seus primeiros tempos Anunciar-nos-aacute ele a morte da filosofia Poderaacute ser o TLP a
derradeira obra filosoacutefica que acaba precisamente por revelar-nos a impossibilidade do
pensamento filosoacutefico Natildeo seraacute entatildeo esta proacutepria obra como projeto filosoacutefico sem
sentido Nela fala-se do pensamento do sujeito da existecircncia e do extramundano mas
como compreender que o faccedila enquanto filosofia para negar a possibilidade de sobre
eles se falar Como considerar o seu pensamento como filosoacutefico quando acaba por
72 ldquoDer Satz druumlckt aus was ich nicht weiszlig was ich aber doch wissen muszlig um ihn uumlberhaupt aussagen zu koumlnnen das zeige ich in ihmrdquo (NB 241014 p 107)
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negar a possibilidade de filosofar sobre alguns dos temas nucleares da tradiccedilatildeo
filosoacutefica Pretenderaacute ela redefinir o acircmbito de pensamento filosoacutefico
Para melhor compreendermos a posiccedilatildeo a que chega Wittgenstein sobre o papel
da filosofia talvez nos seja uacutetil comeccedilarmos por ver na penuacuteltima secccedilatildeo do TLP em
jeito de ilaccedilatildeo final a retirar da sua obra em que consiste o meacutetodo filosoacutefico por ele
considerado como correto
O meacutetodo correto da Filosofia seria o seguinte soacute dizer o que pode ser dito ie as proposiccedilotildees das ciecircncias naturais ndash e portanto sem nada que ver com a Filosofia ndash e depois quando algueacutem quisesse dizer algo de metafiacutesico mostrar-lhe que nas suas proposiccedilotildees existem sinais aos quais natildeo foram dados uma denotaccedilatildeo A esta pessoa o meacutetodo pareceria ser frustrante ndash uma vez que natildeo sentiria que estaacutevamos a ensinar Filosofia ndash mas este seria o uacutenico meacutetodo estritamente correto73 (TLP 653)
De acordo com esse meacutetodo somente as proposiccedilotildees das ciecircncias naturais podem ter
sentido limitar-se ao que eacute pensaacutevel e por isso natildeo tecircm problemas de denotaccedilatildeo ou
seja referirem-se ao que natildeo tem a possibilidade de existecircncia ou de natildeo existecircncia
Esses problemas por seu turno jaacute ocorrem nas proposiccedilotildees metafiacutesicas cuja veracidade
natildeo pode ser verificada por comparaccedilatildeo com a realidade A metafiacutesica um dos
domiacutenios mais proacuteprios e tradicionais do pensamento filosoacutefico deixaria com este
meacutetodo por mais estranho que parecesse de ter pertinecircncia filosoacutefica Assim se
supostamente se entendesse que a filosofia eacute essencialmente metafiacutesica entatildeo poder-se-
ia concluir natildeo sem alguma perplexidade que o seu meacutetodo filosoacutefico aniquila a
proacutepria filosofia
Mas se natildeo eacute metafiacutesica a filosofia tambeacutem natildeo eacute uma ciecircncia da natureza nem
sequer elas se podem considerar naquilo a que se referem ao mesmo niacutevel (cf TLP
4111) Agrave filosofia cabe-lhe delimitar o que eacute pensaacutevel e a partir do que fica para aleacutem
deste limite o que eacute indiziacutevel (cf TLP 4114 e 4115) O seu meacutetodo eacute pois restringir
o que se diz apenas ao que pode ser dito Ora satildeo as ciecircncias naturais que estabelecem
73 ldquoDie richtige Methode der Philosophie waumlre eigentlich die Nichts zu sagen als was sich sagen laumlszligt also Satze der Naturwissenschaft ndash also etwa was mit Philosophie nichts zu tun hat ndash und dann immer wenn ein anderer etwas Metaphysisches sagen wollte ihm nachzuweisen daszlig er gewissen Zeichen in seinen Saumltzen keine Bedeutung gegeben hat Diese Methode waumlre fuumlr den anderen unbefriedigend ndash er hatte nicht das Gefuumlhl daszlig wir ihn Philosophie lehrten ndash aber sie waumlre die einzig streng richtigerdquo (TLP 653)
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as proposiccedilotildees verdadeiras (cf TLP 411) mas eacute a filosofia que delimita o domiacutenio
sobre o qual se pode enunciar proposiccedilotildees com a possibilidade de serem verdadeiras (cf
TLP 4113) Nas suas ldquoNotas Sobre Loacutegicardquo Wittgenstein faz duas afirmaccedilotildees que
ajudam a melhor esclarecer a diferenccedila e a relaccedilatildeo entre a filosofia e a ciecircncia ldquoA
filosofia natildeo oferece imagens da realidaderdquo74 e ldquoA filosofia eacute a doutrina da forma
loacutegica das proposiccedilotildees cientiacuteficas (natildeo apenas das proposiccedilotildees primitivas)rdquo75 A
primeira das afirmaccedilotildees exclui da filosofia a enunciaccedilatildeo de proposiccedilotildees sobre a
realidade pois esse eacute o objeto proacuteprio das ciecircncias da natureza A segunda estabelece
como campo proacuteprio da atuaccedilatildeo da filosofia a loacutegica aplicada agraves proposiccedilotildees cientiacuteficas
e elementares As proposiccedilotildees loacutegicas satildeo o modo peculiar de mostrar de maneira
sistemaacutetica sem nada dizer as formas loacutegicas dessas proposiccedilotildees As proposiccedilotildees natildeo-
loacutegicas ao mostrarem o que dizem sobre o mundo mostram igualmente sem o dizer as
formas loacutegicas do mundo as quais satildeo expostas de modo analiacutetico e tautoloacutegico pelas
proposiccedilotildees loacutegicas76 Acontece poreacutem que o pensamento eacute o mais das vezes
disfarccedilado pela proacutepria linguagem (cf TLP 4002) o que faz com que uma certa criacutetica
da linguagem seja congeacutenita a todo o filosofar Com ela procura-se chegar agrave forma
loacutegica real da proposiccedilatildeo por detraacutes da sua forma aparente (cf TLP 40031) Em
siacutentese o que eacute distintivo da atividade filosoacutefica eacute ldquo[] a clarificaccedilatildeo loacutegica dos
pensamentosrdquo77 (TLP 4112) isto eacute a criacutetica da linguagem com vista agrave exibiccedilatildeo da
loacutegica real do que se diz desde que se possa pensar Nisto presume-se que ldquoTudo o que
pode de todo ser pensado pode ser pensado com clarezardquo78 (TLP 4116) ou seja
reduzido agrave sua forma loacutegica real Fica pois fora do acircmbito proacuteprio da filosofia o
impensaacutevel o inefaacutevel a metafiacutesica Mas esta conceccedilatildeo do que eacute a filosofia tambeacutem nos
74 ldquoNotas Sobre Loacutegica 1913rdquo in NB p 155 ldquoDie Philosophie gibt keine Bilder der Wirklichkeitrdquo (ldquoAufzeichnungen uumlber Logik 1913rdquo in NB p 206)
75 ldquoNotas Sobre Loacutegica 1913rdquo in NB p 155 ldquoDie Philosophie ist die Lehre von der logischen Form wissenschaftlicher Satze (nicht nur der Grundgesetze)rdquo (ldquoAufzeichnungen uumlber Logik 1913rdquo in NB p 207)
76 Cf Notas Ditadas a GE Moore na Noruega ndash Abril 1914 in NB p 160 ldquoAufzeichnungen die G E Moore in Norwegen Nach Diktat Niedergeschrieben Hat April 1914rdquo in NB p 209
77 ldquo[hellip] die logische Klaumlrung der Gedankenrdquo (TLP 4112)
78 ldquoAlles was uumlberhaupt gedacht werden kann kann klar gedacht werdenrdquo (TLP 4116)
55
permite perceber porque eacute que para Wittgenstein muito do pensamento filosoacutefico
tradicional pondera sobre falsos problemas e eacute sem-sentido (cf TLP 4003)79
O que julgar sobre as proposiccedilotildees do TLP agrave luz desta conceccedilatildeo da Filosofia e do
seu meacutetodo correto Eacute indiscutiacutevel que muitas satildeo as proposiccedilotildees desta obra que se
referem ao que natildeo tem denotaccedilatildeo Proposiccedilotildees que ao serem sem-sentido de facto
satildeo pseudoproposiccedilotildees isto eacute ldquo[] que quando analisadas deveriam dizer o que
todavia apenas mostramrdquo80 (NB 201014 p 28) Portanto o que enunciam nada diz
sobre os factos que possa ter a possibilidade de ser verdadeiro ou falso e assim ao
dizerem mostram um suposto sentido que os factos natildeo tecircm a possibilidade de exprimir
pelo que o que dizem eacute sem-sentido e como tal eacute como nada dissessem O que elas
efetivamente mostram eacute precisamente o que deveriam dizer mas natildeo dizem por natildeo
poder ser dito sobre os factos quando soacute sobre estes eacute possiacutevel pensar Os exemplos
seguintes mais ou menos escolhidos ao acaso ilustram minimamente algumas das
pseudoproposiccedilotildees sem-sentido que se encontram no TLP
O que eacute o caso o facto eacute a existecircncia de estados de coisas81 (TLP 2) O objeto eacute simples82 (TLP 202) Na proposiccedilatildeo o pensamento pode ser de tal modo expresso que aos objetos do pensamento correspondem os elementos do sinal proposicional83 (TLP 32)
A Filosofia natildeo eacute uma doutrina mas uma atividade84 (TLP 4112)
79 De realccedilar que como laquoclarificaccedilatildeo loacutegica dos pensamentosraquo a filosofia desenvolve-se enquanto investigaccedilatildeo loacutegica ou das formas loacutegicas as uacutenicas que Wittgenstein considera como leis pois tudo o mais eacute regido pelo acaso (cf TLP 63) As leis loacutegicas satildeo relativas agraves formas loacutegicas do mundo e natildeo aos diferentes sistemas de o descrever (cf TLP 6341 e 6342) Daiacute que soacute existem necessidades ou impossibilidades loacutegicas (cf TLP 637 e 6375) ldquoQue o sol nasceraacute amanhatilde eacute uma hipoacutetese quer dizer natildeo sabemos se nasceraacuterdquo ldquoDaszlig die Sonne morgen aufgehen wird ist eine Hypothese und das heiszligt wir wissen nicht ob sie aufgehen wirdrdquo (TLP 636311) A consequecircncia epistemoloacutegica eacute oacutebvia ldquoA conceccedilatildeo moderna do mundo fundamenta-se na ilusatildeo de que as chamadas leis da natureza satildeo a explicaccedilatildeo dos fenoacutemenos da naturezardquo ldquoDer ganzen modernen Weltanschauung liegt die Taumluschung zugrunde daszlig die sogenannten Naturgesetze die Erklaumlrungen der Naturerscheinungen seienrdquo (TLP 6371) Uma crenccedila na explicaccedilatildeo cientiacutefica que ainda por cima eacute hegemoacutenica pois acredita-se ser a uacutenica possiacutevel e que por ser exaustiva completa natildeo deixa nada por esclarecer (cf TLP 6372)
80 ldquoScheinsaumltze sind solche die wenn analysiert das was sie sagen sollten doch nur wieder zeigenrdquo (NB 201014 p 104)
81 ldquoWas der Fall ist die Tatsache ist das Bestehen von Sachverhaltenrdquo (TLP 2)
82 ldquoDer Gegenstand ist einfachrdquo (TLP 202)
83 ldquoIm Satze kann der Gedanke so ausgedruumlckt sein daszlig den Gegenstaumlnden des Gedankens Elemente des Satzzeichens entsprechenrdquo (TLP 32)
56
O sentido da proposiccedilatildeo eacute a sua concordacircncia ou a sua natildeo concordacircncia com as possibilidades da existecircncia e da natildeo existecircncia de estados de coisas85 (TLP 42)
O sujeito natildeo pertence ao mundo mas eacute um limite do mundo86 (TLP 5632) A Loacutegica eacute transcendental87 (TLP 613)
A Eacutetica eacute transcendental88 (TLP 6421) A soluccedilatildeo do enigma da vida no tempo e no espaccedilo estaacute fora do tempo e do espaccedilo89 (TLP 64312) (E eacute oacutebvio que a recompensa tem de ser algo de agradaacutevel e o castigo algo de desagradaacutevel)90 (TLP 6422) Deus natildeo se revela no mundo91 (TLP 6432)
Como eacute faacutecil detetar existem problemas de denotaccedilatildeo em todos estes exemplos
Palavras como laquoobjetoraquo laquosujeitoraquo laquomundoraquo laquovidaraquo laquoexistecircnciaraquo laquoEacuteticaraquo laquoLoacutegicaraquo
laquotemporaquo laquoespaccediloraquo laquoagradaacutevelraquo laquodesagradaacutevelraquo laquoDeusraquo laquosentidoraquo laquopensamentoraquo e
laquoFilosofiaraquo natildeo representam no contexto das proposiccedilotildees onde satildeo empregues seja o
que for da realidade e naturalmente as proposiccedilotildees que as empregam natildeo tecircm a
possibilidade de ser verdadeiras ou falsas Todas elas querem dizer o que natildeo podem
dizer isto eacute o impensaacutevel
Este facto pode precipitar-nos na consideraccedilatildeo de que o TLP eacute uma obra
contraditoacuteria ou absurda pois parece natildeo praticar o meacutetodo filosoacutefico que ela proacutepria
reputa como correto No final de contas as doutrinas filosoacuteficas por que pugna
assentam em pseudoproposiccedilotildees sem-sentido Teraacute pois de haver uma razatildeo
fundamental para que Wittgenstein proceda deste forma Eacute o proacuteprio filoacutesofo que na
84 ldquoDie Philosophie ist keine Lehre sondern eine Taumltigkeitrdquo (TLP 4112)
85 ldquoDer Sinn des Satzes ist seine Uumlbereinstimmung und Nichtuumlbereinstimmung mit den Moumlglichkeiten des Bestehens und Nichtbestehens der Sachverhalterdquo (TLP 42)
86 ldquoDas Subjekt gehoumlrt nicht zur Welt sondern es ist eine Grenze der Weltrdquo (TLP 5632)
87 ldquoDie Logik ist transzendentalrdquo (TLP 613)
88 ldquoDie Ethik ist transzendentalrdquo (TLP 6421)
89 ldquoDie Loumlsung des Raumltsels des Lebens in Raum und Zeit liegt auszligerhalb von Raum und Zeitrdquo (TLP 64312)
90 ldquo(Und das ist auch klar daszlig der Lohn etwas Angenehmes die Strafe etwas Unangenehmes sein muszlig)rdquo (TLP 6422)
91 ldquoGott offenbart sich nicht in der Weltrdquo (TLP 6432)
57
uacuteltima secccedilatildeo do TLP reconhece que as suas proposiccedilotildees satildeo sem-sentido e que elas
satildeo uma ilusatildeo de que nos devemos ver livres se verdadeiramente chegarmos a
compreender o que ele nos quis dizer
As minhas proposiccedilotildees satildeo elucidativas pelo facto de que aquele que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido quando por elas se elevou para laacute delas (Tem que por assim dizer deitar fora a escada depois de ter subido por ela)
Tem de transcender estas proposiccedilotildees depois vecirc o mundo a direito Acerca daquilo de que se natildeo pode falar tem que se ficar em silecircncio92 (TLP 654)
As questotildees capitais que satildeo naturalmente suscitadas por estas afirmaccedilotildees satildeo as
seguintes De que maneira as proposiccedilotildees sem-sentido podem ser elucidativas Como eacute
que essas elucidaccedilotildees se compreendidas podem permitir laquotranscender estas
proposiccedilotildeesraquo e fazer com que nos remetamos ao silecircncio As possiacuteveis respostas a estas
questotildees podem ser organizadas em torno do confronto de duas posiccedilotildees interpretativas
a posiccedilatildeo que agrave luz do mencionado meacutetodo filosoacutefico estritamente correto considera as
elucidaccedilotildees como uma espeacutecie de reductio ad absurdum com o intuito radical de
provar a impossibilidade de todo o pensamento filosoacutefico de tipo metafiacutesico e a posiccedilatildeo
que considera as elucidaccedilotildees como clarificaccedilotildees do inefaacutevel mostrado nas proposiccedilotildees
sem-sentido cujo uacutenico meacutetodo filosoacutefico correto obriga-nos a abandonar e a remeter
ao silecircncio93
Devemos a Cora Diamond mas tambeacutem a James Conant a responsabilidade de
encetar a defesa sistemaacutetica da primeira posiccedilatildeo que tem sido abraccedilada por muitos
outros acadeacutemicos e que veio questionar a hegemonia interpretativa da segunda
92 ldquoMeine Satze erlaumlutern dadurch daszlig sie der welcher mich versteht am Ende als unsinnig erkennt wenn er durch sie ndash auf ihnen ndash uumlber sie hinausgestiegen ist (Er muszlig sozusagen die Leiter wegwerfen nachdem er auf ihr hinaufgestiegen ist) Er muszlig diese Saumltze uumlberwinden dann sieht er die Welt richtig Wovon man nicht sprechen kann daruumlber muszlig man schweigenrdquo (TLP 654)
93 Nuno Venturinha equaciona por outras palavras mas com o mesmo sentido estas duas posiccedilotildees interpretativas opostas ldquoEssa lsquosuperaccedilatildeorsquo (Uumlberwindung) foi classicamente interpretada pelos comentadores wittgensteinianos em termos gerais de duas formas antagoacutenicas i) como equivalendo agrave eliminaccedilatildeo mesma do plano metafiacutesico dado o seu sem-sentido ii) como correspondendo agrave apercepccedilatildeo da insustentabilidade de qualquer discurso sobre instacircncias metafiacutesicas em virtude de estas poderem ser meramente alvo de um contactordquo (VENTURINHA Nuno Loacutegica Eacutetica Gramaacutetica Wittgenstein e o Meacutetodo da Filosofia pp 213-214) Cf igualmente VENTURINHA Nuno ldquoEthics Metaphysics and Nonsense in Wittgensteinrsquos Tractatusrdquo Wittgenstein-Studien 1 2010 p 2
58
posiccedilatildeo Num artigo inaugural Cora Diamond faz as seguintes afirmaccedilotildees referindo-se
a Wittgenstein do TLP que segundo entendemos podem resumir o resultado mais
significativo da sua posiccedilatildeo interpretativa
[] natildeo eacute realmente a sua perspetiva que haja caracteriacutesticas da realidade que natildeo podem ser postas em palavras mas que se mostram a si mesmas O que eacute a sua perspetiva eacute que essa maneira de dizer pode ser uacutetil ou mesmo por momentos essencial mas no final ela eacute para ser dispensada e honestamente considerada como realmente sem-sentido totalmente sem-sentido sobre a qual no fim natildeo vamos pensar que corresponde a uma verdade inefaacutevel Falar de caracteriacutesticas da realidade em conexatildeo com o que se mostra a si mesmo na linguagem eacute usar um tipo muito estranho de linguagem figurativa Isso tambeacutem se aplica lsquoao que se mostra a si mesmorsquo94
Assim quando Wittgenstein diz que as proposiccedilotildees mostram o seu sentido (cf TLP
4022) ou mostram a forma loacutegica (cf TLP 4121) e como tal o que mostram natildeo pode
ser dito (cf TLP 41212) isto eacute natildeo podemos sobre isso enunciar proposiccedilotildees ou
enunciar proposiccedilotildees com palavras que a isso mesmo se referem (como satildeo as de
laquosentidoraquo e laquoforma loacutegicaraquo) entatildeo isto que ele diz natildeo pode efetivamente ser dito e soacute
o diz certamente a tiacutetulo de observaccedilotildees laquotransitoacuteriasraquo supostamente necessaacuterias para
evidenciar o seu sem-sentido mas que depois devem ser integralmente excluiacutedas95 E a
sua falta de sentido natildeo pode ser de todo motivo para que algo sobreviva a esta
exclusatildeo como se aquilo que ele diz que as proposiccedilotildees mostram fosse uma certa coisa
inexprimiacutevel Nada eacute efetivamente mostrado por estas proposiccedilotildees Natildeo haacute nas
proposiccedilotildees sem-sentido um sentido que a proacutepria linguagem natildeo alcanccedila Daiacute que
aquilo que o TLP queira dizer sobre por exemplo um problema filosoficamente tatildeo
importante quanto o pensamento (e central nesta obra) aiacute definido como laquoproposiccedilatildeo
94 ldquo[hellip] it is not not really his view that there are features of reality that cannot be put into words but show themselves What is his view is that that way of talking may be useful or even for a time essential but is in the end to be let go of and honestly taken to be real nonsense plain nonsense which we are not in the end to think of as corresponding to an ineffable truth To speak of features of reality in connection with what shows itself in language is to use a very odd kind of figurative language That goes also for lsquowhat shows itselfrsquordquo (DIAMOND Cora ldquoThrowing Away the Ladderrdquo Philosophy Vol 63 No 243 1988 pp 7-8)
95 A expressatildeo ldquoobservaccedilotildees lsquotransitoacuteriasrsquordquo eacute referida por Cora Diamond neste mesmo texto para caracterizar o modo como Frege procurou distinguir lsquofunccedilotildeesrsquo de lsquoobjetosrsquo visando ajudar agrave compreensatildeo destes termos apercebendo-se no entanto que eles natildeo satildeo suscetiacuteveis de ser pensados e devem pois ser excluiacutedos do vocabulaacuterio filosoacutefico O que se possa entatildeo dizer para discriminar estes conceitos deve ser considerado como observaccedilotildees lsquotransitoacuteriasrsquo (Cf idem ibidem pp 8-9)
59
com sentidoraquo (TLP 4) eacute totalmente destituiacutedo de sentido pois o pensamento ele
mesmo natildeo eacute algo sobre o qual possamos dizer ou natildeo dizer alguma coisa96 Para quem
as compreender corretamente as proposiccedilotildees desta obra satildeo elucidativas justamente
porque denunciam a ilusatildeo de compreensatildeo que elas mesmas geram Eacute enfim o proacuteprio
pensamento filosoacutefico que eacute por elas denunciado97
Mas se a doutrina filosoacutefica do TLP eacute uma ilusatildeo premeditada engendrada para
que nos desembaracemos dela e de todo o pensamento filosoacutefico entatildeo teremos que ver
o papel desempenhado neste empreendimento pelo que ela nos prescreve sobre o uacutenico
meacutetodo filosoacutefico estritamente correto Estamos com isto a presumir que este meacutetodo
participa na encenaccedilatildeo de efeito calculado para nos libertar da alienaccedilatildeo filosoacutefica
Poreacutem o que nos eacute proposto pela Cora Diamond eacute que o consideremos como o meacutetodo
do seu autor mas natildeo desta sua obra98 E que o papel que ele na realidade desempenha
nessa obra eacute por assim dizer o de ajudar a emancipar o seu leitor dos encantamentos
ardilosos do pensamento filosoacutefico O preceito de dizer apenas o que pode ser dito
expotildee a obra ao absurdo de ela mesma dizer sistematicamente o que natildeo poderia dizer
mas diz O meacutetodo estritamente correto de Wittgenstein como uma luz que ilumina o
caminho percorrido promove a clarividecircncia do leitor Este pode assim perceber melhor
a intenccedilatildeo do seu autor que deste modo se desvincula inequivocamente das suas
proacuteprias proposiccedilotildees filosoacuteficas e ao mesmo tempo demonstra a ilusatildeo de todo o
pensamento filosoacutefico
96 Cora Diamond obviamente inclui nas proposiccedilotildees sem-sentido do TLP as proposiccedilotildees eacuteticas e loacutegicas Pelo que satildeo sem-sentido as proposiccedilotildees que aiacute estabelecem que toda a necessidade ou impossibilidade eacute loacutegica assim como o satildeo tambeacutem as proposiccedilotildees que disso tiram consequecircncias (cf idem ibidem p 24) Relativamente agraves proposiccedilotildees eacuteticas Diamond defende que elas satildeo na sua intenccedilatildeo diferentes das proposiccedilotildees sem-sentido do TLP e da filosofia A atratividade das proposiccedilotildees eacuteticas natildeo desaparece como acontece com estas uacuteltimas com o desfazer da ilusatildeo do seu sentido Elas preservam de certo modo ldquo[] a capacidade de nos fazer sentir que elas expressatildeo o sentido que cremos determinarrdquo ldquo[] their capacity to make us feel that they express the sense we want to makerdquo (DIAMOND Cora ldquoEthics Imagination and The Method of Wittgensteinrsquos Tractatusrdquo in Alice Crary and Read Rupert (eds) The New Wittgenstein Routledge New York 2000 p 161)
97 Nas proacuteprias palavras de Cora Diamond ldquoO meu ponto entatildeo acerca de como ler Wittgenstein eacute que ele natildeo pretende que entendamos o que pode ser observado do ponto de vista da investigaccedilatildeo filosoacutefica (onde o que pode ser observado a partir daiacute natildeo pode ser posto na linguagem com o resultado de que as proposiccedilotildees de seu livro satildeo absurdas)rdquo ldquoMy claim then about how we are to read Wittgenstein is that he does not intent us to grasp what can be seen from the point of view of philosophical investigation (where what can be seen from there cannot be put into language with the result that the propositions of his book are nonsense)rdquo (Idem ibidem p160)
98 Cf idem ibidem pp 156-157
60
Esta posiccedilatildeo interpretativa que eacute mencionada como laquoleitura resolutaraquo do TLP99
tem como principal ponto de vista a conceccedilatildeo austera da proposiccedilatildeo sem-sentido por
oposiccedilatildeo agrave conceccedilatildeo substantiva fruto de uma laquoleitura irresolutaraquo James Conant tendo
por base o pensamento de Frege desenvolve investigaccedilatildeo aprofundada sobre estas duas
conceccedilotildees diacutespares onde procura fundamentar a prevalecircncia da conceccedilatildeo austera na
interpretaccedilatildeo do TLP100 Segundo ele ambas coincidem na possibilidade do mero sem
sentido embora soacute a conceccedilatildeo austera a considere como uacutenica possibilidade Pois a
conceccedilatildeo substantiva para aleacutem do mero sem sentido que se refere agrave proposiccedilatildeo
ininteligiacutevel que de todo natildeo mostra nada considera ainda a possibilidade do sem-
sentido substancial em proposiccedilotildees cujos elementos inteligiacuteveis que a compotildee violam a
sintaxe loacutegica Aleacutem disso cada uma destas conceccedilotildees tem um entendimento
diferenciado do que Wittgenstein entende por elucidaccedilatildeo Enquanto a substancial a
encara como o mostrar algo que natildeo pode ser dito a austera afirma que isso eacute uma
ilusatildeo que a elucidaccedilatildeo desfaz ao evidenciar que nada com sentido eacute mostrado no que
natildeo pode ser dito Esta uacuteltima de facto nega que a proposiccedilatildeo sem-sentido possa
apesar de natildeo expressar o pensamento ser como que um vislumbre ou uma insinuaccedilatildeo
Eacute isto o que essencialmente a separa da conceccedilatildeo substancialista afirmar que assim
como a proposiccedilatildeo com sentido (sinnvoll) mostra no que diz o seu sentido a
proposiccedilatildeo sem-sentido (Unsinn) se bem que nada possa dizer pode ainda assim
mostrar algo de inefaacutevel De acordo com a leitura resoluta nada haacute de inefaacutevel nessas
proposiccedilotildees elas soacute servem para nos elucidar que satildeo simplesmente sinais
proposicionais que ao contraacuterio dos com sentido nada simbolizam Natildeo existem
diferentes tipos de sinnlos mas somente o mero sem sentido o reconhecimento da falha
total do dizer ou mesmo do sugerir seja o que for101
O mais destacado defensor da conceccedilatildeo substantiva do sem-sentido P M S
Hacker alega que de facto existem vaacuterias verdades no TLP que satildeo sugeridas em
99 Deve-se a Thomas Ricketts a designaccedilatildeo original desta posiccedilatildeo interpretativa como laquoresolutaraquo e a Warren Goldfarb a sua primeira referecircncia escrita (cf GOLDFARB Warren ldquoMetaphysics and Nonsense On Cora Diamondrsquos The Realistic Spiritrdquo Journal of Philosophical Research 22 1997 p 64) Esta informaccedilatildeo tem origem na nota 2 constante no texto CONANT James and Cora Diamond ldquoOn Reading The Tractatus Resolutely ndash Reply to Meredith Williams and Peter Sullivanrdquo in Max Koumllbel and Bernhard Weiss (eds) Wittgensteinrsquos Lasting Significance Routledge New York 2004 p 87
100 Cf CONANT James ldquoElucidation and Nonsense in Frege and Early Wittgensteinrdquo in Alice Crary and Rupert Read (eds) The New Wittgenstein Routledge New York 2000 pp 174-217
101 Cf idem ibidem pp 176-178 e 191
61
proposiccedilotildees sem-sentido que efetivamente natildeo podem ser ditas mas que ainda assim
aparentemente as transmitem Entende que esta obra natildeo eacute um projeto destinado a
surpreender o seu leitor apanhado na ilusatildeo da compreensatildeo do que a dado passo se
apercebe ser completamente ininteligiacutevel Como se estivesse por assim dizer perante
uma espeacutecie de encenaccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo dissimulada que o leva ateacute certo momento
a ter em consideraccedilatildeo e a tomar como seacuterias ideias armadilhadas sem-sentido Tudo
isto para provar a impossibilidade do pensamento filosoacutefico102 A interpretaccedilatildeo que
discorda desta visatildeo como a de Hacker deveraacute dar uma resposta positiva agrave seguinte
questatildeo ldquo[] podemos apreender verdades que natildeo podem sequer ser pensadasrdquo103 Soacute
se admitirmos que nesta obra se comunicam verdades inefaacuteveis eacute que poderemos
contrariar uma leitura resoluta da obra
O eixo sobre o qual giram estas duas conceccedilotildees opostas do sem-sentido eacute a
relaccedilatildeo entre laquodizerraquo (sagen) e laquomostrarraquo (zeigen) Para James Conant e Cora Diamond
as uacutenicas proposiccedilotildees que mostram alguma coisa satildeo as proposiccedilotildees com sentido as
tautologias e as contradiccedilotildees Jaacute as proposiccedilotildees sem-sentido natildeo dizem nem mostram
nada ou melhor mostram tatildeo-soacute ao elucidarem-nos que natildeo dizem nada104 Por sua
parte P M S Hacker argumenta que as proposiccedilotildees sem-sentido mostram mais do que
nada dizerem mostram o que natildeo podem dizer ao tentar dizecirc-lo Nas suas palavras
ldquoNeste sentido pode-se dizer que satildeo um lsquosem-sentido esclarecedorrsquordquo105 Tome-se
como exemplo a pseudoproposiccedilatildeo laquoA eacute um objetoraquo em que a palavra laquoobjetoraquo sendo
um conceito formal eacute usada como se fosse um conceito propriamente dito isto eacute como
um nome predicativo Ela eacute sem duacutevida uma proposiccedilatildeo sem-sentido poreacutem o
conceito formal aiacute usado eacute como se fosse uma variaacutevel que compreende em si como
seus valores diferentes conceitos propriamente ditos que o mostram quando usados em
proposiccedilotildees com sentido A seguinte observaccedilatildeo dos NB espelha bem o que se pretender
aclarar
102 Cf HACKER P M S ldquoWas He Trying To Whistle Itrdquo in The New Wittgenstein Alice Crary and Rupert Read (eds) Routledge New York 2000 pp 353-394
103 ldquo[hellip] can one apprehend truths which cannot even thinkrdquo (idem ibidem p 355)
104 Cf CONANT James and Diamond Cora ldquoOn Reading The Tractatus Resolutely ndash Reply to Meredith Williams and Peter Sullivanrdquo pp 51-52
105 ldquoIn this sense it can be said to be lsquoilluminating nonsensersquordquo (HACKER P M S ldquoWas He Trying To Whistle Itrdquo p 364)
62
O que a pseudoproposiccedilatildeo lsquohaacute n coisasrsquo quer exprimir mostra-se na linguagem atraveacutes da presenccedila de n nomes proacuteprios com uma referecircncia distinta (Etc)106 (NB 281014 p 34)
O sentido determinado das vaacuterias proposiccedilotildees que integram nomes proacuteprios como
referecircncias distintas natildeo eacute passiacutevel de ser dito embora possa ser mostrado na
pseudoproposiccedilatildeo laquohaacute n coisasraquo Do mesmo modo a pseudoproposiccedilatildeo laquoA eacute um
objetoraquo mostra o sentido determinado das diferentes proposiccedilotildees que fazem referecircncias
distintas atraveacutes dos respetivos nomes proacuteprios Mas entatildeo como eacute que se explica que o
que estas proposiccedilotildees mostram eacute sem-sentido Porque numa proposiccedilatildeo o conceito
laquoobjetoraquo natildeo ocorre como uma variaacutevel mas como um substantivo e isto infringe as
regras da sintaxe loacutegica Neste caso natildeo eacute possiacutevel saber se a proposiccedilatildeo eacute verdadeira
ou falsa saber qual eacute o seu real sentido Mas diz-nos Hacker a infraccedilatildeo das regras da
sintaxe loacutegica natildeo significa uma impossibilidade ou necessidade loacutegica ou metafiacutesica107
Quer isto tambeacutem dizer que as proposiccedilotildees sem-sentido natildeo satildeo iloacutegicas Apenas
podemos concluir que essa infraccedilatildeo impossibilita a enunciaccedilatildeo de proposiccedilotildees com
sentido Pode-se assim falhar essas regras como o faz Wittgenstein no TLP com o
intuito de transmitir o que natildeo se pode dizer mas que se pode mostrar no que ainda
assim se tenta dizer Assim para Hacker o silecircncio a que nos remete Wittgenstein no
fim desta obra por forccedila do uacutenico meacutetodo filosoacutefico correto (cf TLP 654 e 653) eacute
povoado por verdades inefaacuteveis enquanto para a conceccedilatildeo austera ele eacute absolutamente
vazio
Esta interpretaccedilatildeo eacute naturalmente posta em causa por James Conant acusando-a
de colocar Wittgenstein numa posiccedilatildeo de um imbecil ao defender que haacute coisas que natildeo
podem ser ditas mas sobre as quais se insiste em expor o que eacute que elas satildeo Ora
segundo ele somente as proposiccedilotildees com sentido podem mostrar aquilo que dizem
pois aquelas proposiccedilotildees que dizem aquilo que natildeo pode ser dito natildeo mostram
absolutamente nada senatildeo o seu sem-sentido108 A esta acusaccedilatildeo podemos noacutes
contrapor que o que mostram as proposiccedilotildees que tentam dizer o que natildeo pode ser dito
subentende o que mostram as proposiccedilotildees que dizem o que pode ser dito Que a
106 ldquoWas der Scheinsatz lsquoes gibt n Dingersquo ausdrucken will zeigtsich in der Sprache durch das Vorhandensein von n Eigennamen mit verschiedener Bedeutung (Etc)rdquo (NB 281014 p 109)
107 Cf HACKER P M S ldquoWas He Trying To Whistle Itrdquo pp 364-367
108 Cf CONANT James ldquoElucidation and Nonsense in Frege and Early Wittgensteinrdquo p 206 (note 68)
63
possibilidade de compreensatildeo das pseudoproposiccedilotildees sem-sentido tem origem na
compreensatildeo do que eacute manifestado nas proposiccedilotildees com sentido Que o que eacute assim
compreendido uma vez que natildeo pode ser dito pode ser de alguma maneira mostrado
em proposiccedilotildees que o tentam dizer sem o poderem dizer E natildeo o podem dizer
porquanto jaacute o sabemos natildeo tecircm a possibilidade de concordar ou natildeo-concordar com as
possibilidades da existecircncia ou natildeo-existecircncia de estados de coisas (cf TLP 42) Isto eacute
natildeo tecircm a possibilidade de serem verdadeiras ou falsas Por si mesmas elas satildeo
ininteligiacuteveis natildeo fosse uma compreensatildeo determinada do sentido das proposiccedilotildees que
em si estatildeo subentendidas e o que elas dizem nada mostraria
Assim a pseudoproposiccedilatildeo sem-sentido ao tentar dizer o que natildeo pode dizer
mostra vamos-lhe assim chamar um sentido natildeo-proposicional significando isto um
sentido natildeo representaacutevel na linguagem dos sentidos do que pode ser e eacute dito Note-se
que esse sentido quando eacute o proacuteprio sentido da proposiccedilatildeo natildeo mostra mais do que a
proacutepria proposiccedilatildeo mostra mas com recurso ao simbolismo formal As verdadeiras
pseudoproposiccedilotildees sem-sentido satildeo aquelas que mostram o sentido natildeo-proposicional
compreendido nos sentidos proposicionais Assim a compreensatildeo de que temos vindo a
falar natildeo consiste na compreensatildeo dos sentidos das proacuteprias proposiccedilotildees subjacentes
agravequelas pseudoproposiccedilotildees sentidos esses que dependem exclusivamente da
possibilidade dos estados de coisas se passarem conforme as proposiccedilotildees dizem que
eles se passam Ela na verdade refere-se ao sentido mostrado pelos sentidos das
proposiccedilotildees e eacute este que natildeo eacute igualmente suscetiacutevel de ser enunciado em novas
proposiccedilotildees com sentido Ele natildeo pode ser dito uma vez que a forma proposicional natildeo
pode representar o sentido natildeo-proposicional limitada que estaacute a representar o mundo
os seus estados de coisas
Eacute por esta razatildeo que sendo o mundo descrito por todas as proposiccedilotildees
elementares verdadeiras (cf TLP 426) e por todas as proposiccedilotildees que concordam com
estas (cf TLP 44 e 5) o sentido natildeo-proposicional por elas mostrado eacute o sentido do
mundo Na mesma medida em que o sentido natildeo-proposicional natildeo nos eacute dado pelo
estado de coisas mas pelas proposiccedilotildees que o descrevem ldquoO sentido do mundo tem que
estar fora do mundordquo109 (TLP 641) Portanto a uacutenica ilusatildeo que as pseudoproposiccedilotildees
sem-sentido podem criar eacute serem confundidas com proposiccedilotildees com sentido Essa
109 ldquoDer Sinn der Welt muszlig auszligerhalb ihrer liegenrdquo (TLP 641)
64
ilusatildeo eacute a escada a que se refere a secccedilatildeo 654 do TLP da qual nos podemos libertar
deitando fora a escada quando nos apercebemos que o que compreendemos nas
proposiccedilotildees eacute o que elas mostram isto eacute o seu sentido natildeo-proposicional Bem cientes
de que eacute um sentido que natildeo confere a possibilidade de saber se eacute verdadeiro ou falso
porquanto ele natildeo representa o sentido que os factos exprimem Ele realmente nada
nos diz sobre como eacute o mundo e o que mostra refere-se ao sentido do mundo que estaacute
para aleacutem da verdade e da falsidade
O modo como eacute mostrado o sentido de uma proposiccedilatildeo consiste como vimos na
possibilidade do signo proposicional simbolizar estados de coisas na possibilidade da
descriccedilatildeo que faz de como as coisas se passam corresponder a como elas efetivamente
ocorrem No que diz respeito ao sentido natildeo-proposicional o signo proposicional
simboliza o que natildeo pode simbolizar o que eacute mostrado pelos sentidos das proposiccedilotildees
que podemos de algum modo compreender mas nunca saber se eacute verdadeiro ou falso
Assim na pseudoproposiccedilatildeo sem-sentido laquoA eacute um objectoraquo as diferentes proposiccedilotildees
que referem diversos nomes de coisas suscitam a sua compreensatildeo numa mesma
unidade de sentido que nos pode criar a ilusatildeo de que cada uma dessas coisas satildeo esse
sentido mas de facto natildeo temos modo de saber se satildeo ou natildeo satildeo Melhor seria dizer
que natildeo eacute sequer uma questatildeo de saber que estaacute em causa Por isso mesmo o que assim
se diz natildeo pode ser dito como se ao dizecirc-lo fosse possiacutevel determinar se o seu sentido eacute
verdadeiro ou falso A existecircncia ou a natildeo existecircncia natildeo constituem para ela uma
possibilidade Mas entatildeo para que serve um sentido que natildeo pode ser verdadeiro nem
falso Porquecirc dizecirc-lo Eacute claro que as pseudoproposiccedilotildees sem-sentido natildeo servem para
nada a natildeo ser exporem o sem-sentido do que elas procuram revelar sobre o que os
pensamentos com sentido mostram Nisto consiste o seu papel de elucidaccedilatildeo que as
torna depois totalmente dispensaacuteveis Facto diga-se que natildeo compromete o que eacute
mostrado pelas proposiccedilotildees com sentido mas somente a sua consideraccedilatildeo pela
linguagem
Como temos vindo a observar isto passa-se sob diferentes modos de
compreensatildeo com todas as proposiccedilotildees metafiacutesicas O sujeito mostra-se nas
proposiccedilotildees como aquele que as enuncia que manifesta a vontade de atraveacutes delas
representar o mundo conferir-lhe um sentido que permite saber o que tem existecircncia e o
que natildeo tem existecircncia e deste modo tornaacute-lo o laquomeu mundoraquo (cf TLP 563-5633
6373 e 5641) Nesta vontade de representaccedilatildeo do mundo o sujeito atraveacutes das
65
proposiccedilotildees que enuncia toma uma posiccedilatildeo eacutetica-esteacutetica perante ele As accedilotildees que as
proposiccedilotildees descrevem como que gratificam ou castigam o sujeito que as descreve de
tal modo que os factos do mundo que tecircm todos o mesmo valor passam a estar para ele
investidos de maior ou menor importacircncia conferindo-lhes assim caraacutecter eacutetico-esteacutetico
(cf TLP 5641 641 e 6422 NB 5716 p 109 e 41116 p 128) Mas tanto o sujeito
quanto a eacutetica e a esteacutetica natildeo pertencem ao mundo satildeo dados pelos sentidos natildeo-
proposicionais mostrados pelas proposiccedilotildees com sentido O mesmo acontece com o
pensamento O pensamento eacute mostrado na proposiccedilatildeo pela compreensatildeo do seu sentido
e no modo como ficamos a saber se ele eacute verdadeiro ou falso mas tambeacutem na
imaginaccedilatildeo dos factos especialmente os negativos e no uso de conceitos formais (cf
TLP 21 2121 2225 311 4022 41212 4126 e 4461 NB 271014 p 34 e
11114 p 39)
Julgamos que deste modo Wittgenstein cumpre o que no Proacutelogo do TLP
apresenta como um dos seus desiacutegnios principais
O livro tambeacutem desenharaacute a linha da fronteira do pensamento ou melhor ainda ndash natildeo do pensamento uma vez que para desenhar a linha de fronteira do pensamento deveriacuteamos ser capazes de pensar ambos os lados desta linha (deveriacuteamos ser capazes de pensar aquilo que natildeo se deixa ser pensado) Assim a linha da fronteira soacute poderaacute ser desenhada na linguagem e o que jaz para laacute da fronteira seraacute simplesmente natildeo-sentido110 (TLP Proacutelogo pp 27-28)
O pensamento natildeo pode pensar o impensaacutevel e a uacutenica forma de se desenhar a sua linha
de fronteira para laacute da qual se encontra o impensaacutevel eacute perceber aquilo que a
linguagem diz mas natildeo pode dizer pois o que natildeo pode ser dito eacute o que natildeo podemos
pensar (cf TLP 561) Os limites da linguagem satildeo essa linha de fronteira que demarca
o que se diz com sentido do que se diz sem ele Nesses limites encontra-se o que a
proacutepria linguagem nos mostra e que tentamos exprimir como fosse possiacutevel dar um
sentido proposicional ao inexprimiacutevel Como se o pensamento fosse capaz de pensar os
dois lados da sua linha de fronteira Mas eacute esta ilusatildeo que justamente quando desfeita
110 ldquoDas Buch will also dem Denken eine Grenze ziehen oder vielmehr ndash nicht dem Denken sondern dem Ausdruck der Gedanken Denn um dem Denken eine Grenze zu ziehen muumlszligten wir beide Seiten dieser Grenze denken koumlnnen (wir muumlszligten also denken koumlnnen was sich nicht denken laumlszligt) Die Grenze wird also nur in der Sprache gezogen werden koumlnnen und was jenseits der Grenze liegt wird einfach Unsinn seinrdquo (TLP Vorwort p 9)
66
(laquoelucidadaraquo) nos permite clarificar o que natildeo eacute possiacutevel pensar O mundo eacute sem mais
esse todo limitado pelo que existe pelo que pensamos com verdade sobre ele Eacute isto que
torna Wittgenstein um miacutestico (cf TLP 644 e 645) porque sendo o mundo como eacute eacute
da ordem do miacutestico e natildeo da filosofia o que o mundo mostra e que natildeo se deixa
pensar (cf TLP 6522) E quanto agrave ciecircncia ela natildeo pode resolver enigmas que por
estarem fora do mundo natildeo residem nos factos quando estes soacute pertencem ao problema
e natildeo agrave soluccedilatildeo (cf TLP 64312 e 64321) Apenas para quem se torna claro o sentido
silencioso da vida (o sentido natildeo-proposicional) se dissolve estes enigmas natildeo por ter
encontrado a sua soluccedilatildeo mas por ter desaparecido o problema (cf TLP 6521) A
filosofia eacute sem duacutevida impotente mas tambeacutem prescindiacutevel para nos conduzir a esse
sentido eacutetico e esteacutetico da vida
67
Notas Conclusivas
1
O TLP junto com os NB satildeo no nosso entender um estudo sistemaacutetico sobre o
pensamento e as suas possibilidades segundo uma peculiar visatildeo filosoacutefica solipsista e
logicista De acordo com ela o pensamento constitui a realidade e o mundo eacute o que de
verdadeiro pensamos sobre ele Ele natildeo pode senatildeo pensar o mundo como possibilidade
de existecircncia ou natildeo existecircncia de factos e isso eacute toda a realidade que se conhece O
mundo eacute dado a partir daqui pelo que tem existecircncia Nesta perspetiva o pensamento eacute
condiccedilatildeo necessaacuteria agrave existecircncia do mundo na medida exata em que este se deixa pensar
como possibilidade de existecircncia O pensamento que apenas ocorre como pensamento
do mundo depende desta possibilidade Ela necessita no entanto que o que pensamos
dos factos que compotildeem o mundo eacute capaz de com eles concordar ou natildeo concordar
Wittgenstein considera que a comparaccedilatildeo que aqui se impotildee entre factos e a sua
representaccedilatildeo soacute eacute possiacutevel porque ambos partilham da mesma forma loacutegica Assim o
pensamento representa os factos em imagens loacutegicas que expressa atraveacutes da linguagem
cujas formas loacutegicas das proposiccedilotildees se verdadeiras concordam com a dos factos ou
sendo falsas natildeo concordam Ora satildeo as proposiccedilotildees loacutegicas que mostram as formas
loacutegicas dessas proposiccedilotildees e chega-se a essas formas por via da sua anaacutelise loacutegica
Desta maneira qualquer proposiccedilatildeo eacute dada como uma funccedilatildeo de verdade das
proposiccedilotildees elementares assim chamadas por ao corresponderem a factos atoacutemicos
natildeo mais ser possiacutevel analisaacute-las ou decompocirc-las logicamente e serem independentes
entre si Chega-se deste modo agrave estrutura loacutegica do mundo
2
Esta visatildeo filosoacutefica parte de uma posiccedilatildeo ontoloacutegica onde eacute evidente toda uma
composiccedilatildeo de uma argumentaccedilatildeo transcendental (1) a possibilidade do pensamento
depende da existecircncia de objetos simples que conferem substacircncia ao mundo e cuja
configuraccedilatildeo estabelece estados de coisas (2) os estados de coisas satildeo os fatos de que eacute
possiacutevel o sujeito metafiacutesico fazer imagens loacutegicas (3) como expressatildeo do pensamento
68
a imagem loacutegica daacute lugar agrave proposiccedilatildeo como combinaccedilatildeo loacutegica de nomes que
correspondem a objetos substantivos (4) esta representaccedilatildeo dos factos eacute concebida na
forma loacutegica que eacute possuiacuteda a priori (5) uma vez que a mesma forma loacutegica caracteriza
a priori os factos eacute possiacutevel comparaacute-los com a sua representaccedilatildeo e verificar a sua
concordacircncia ou natildeo concordacircncia concluindo pela verdade ou falsidade do
pensamento (7) o mundo eacute dado pela totalidade de proposiccedilotildees verdadeiras e assim ldquoo
mundo eacute o meu mundordquo isto eacute tudo o que eacute pensado em concordacircncia com os factos
(8) as proposiccedilotildees loacutegicas que caracterizam as proposiccedilotildees verdadeiras mostram a
forma loacutegica do mundo (9) o sentido eacutetico-esteacutetico do mundo estaacute fora do mundo
provindo do sujeito metafiacutesico
3
O psiacutequico eacute inteiramente excluiacutedo desta visatildeo filosoacutefica natildeo consentindo que
haja um eu psicoloacutegico relevante filosoficamente O seu solipsismo que se espelha na
foacutermula ldquoo mundo eacute o meu mundordquo eacute relativo a um eu filosoacutefico natildeo encarnado e limite
exterior e independente do mundo mas cuja vontade eacute a accedilatildeo de o pensar e perante o
qual misteriosamente como seu reflexo afetivo assume uma posiccedilatildeo eacutetico-esteacutetica
Assim se o pensamento tem um agente ele soacute pode ser o sujeito metafiacutesico que ao
pensar o mundo como possibilidade de existecircncia o constitui como existente como o
mundo que existe para mim (ldquoo meu mundordquo) Poreacutem o pensamento que pensa o
mundo natildeo faz parte dele porque natildeo tem outra possibilidade de existecircncia que natildeo seja
unicamente a sua proacutepria expressatildeo sobre a forma substantiva de signos linguiacutesticos
Daiacute ser impossiacutevel ao pensamento pensar-se a si mesmo pensar sobre como forma a
imagem do mundo como o imagina e faz corresponder essa imagem ao signo
linguiacutestico (a sua forma de expressatildeo) bem como pensar o sentido do que expressa na
linguagem e o modo como concluiacute que ele eacute verdadeiro ou falso E no que diz respeito
ao pensamento sobre as propriedades ou formas loacutegicas da linguagem natildeo estamos ante
um pensamento sobre as leis do pensar pois as proposiccedilotildees loacutegicas que as mostram satildeo
meras tautologias e como tais sem sentido
69
4
Para o Wittgenstein deste periacuteodo eacute impensaacutevel o psiacutequico como eacute tudo o que
natildeo tem substacircncia porquanto uma proposiccedilatildeo que lhe faccedila referecircncia natildeo pode
submeter-se agrave verificaccedilatildeo da sua verdade ou falsidade por natildeo ter a possibilidade de ser
respetivamente concordante ou natildeo concordante com os factos com certas conexotildees de
objetos subsistentes e firmes A expressatildeo do impensaacutevel redunda em proposiccedilotildees sem-
sentido quando apenas os factos autorizam o pensamento e conferem sentido agraves suas
proposiccedilotildees Vecirc-se aqui o realismo do seu solipsismo Assim eacute sem-sentido o
pensamento que se exprima sobre o sujeito metafiacutesico e o que diga respeito agrave sua
subjetividade seja o pensamento e os seus conceitos formais a afetividade a vontade
ou as valoraccedilotildees eacuteticas-esteacuteticas A existecircncia o mundo o seu sentido eacute deste modo
impossiacutevel de pensar por o ser tambeacutem o sentido do que eacute exprimido pelo pensamento e
as valoraccedilotildees que ele origina Daiacute que a crenccedila no sentido do mundo possa ser vista
como uma questatildeo de feacute em Deus
5
Mas assim toda a sua argumentaccedilatildeo ontoloacutegica e transcendental natildeo passa de
pseudopensamento que o seu proacuteprio meacutetodo filosoacutefico acusaria de fazer recurso a
sinais falhos de denotaccedilatildeo designando o que em conexatildeo com outras coisas natildeo tem a
possibilidade de existecircncia ou natildeo existecircncia Ao pensamento cabe-lhe tatildeo-soacute enunciar
as proposiccedilotildees das ciecircncias naturais que descrevem os factos do mundo tal qual eles
satildeo sobrepujando os limites do pensaacutevel qualquer imagem da essecircncia do estado de
coisas O que determina esses limites eacute a possibilidade daquilo que se pensa ser
verdadeiro volver-se parte do mundo o pensamento do que natildeo tem a possibilidade de
constituir o mundo eacute sem-sentido eacute pseudopensamento o que esteja para aleacutem dos
limites do mundo estaacute para aleacutem dos limites do pensaacutevel Todavia a possibilidade de
ser verdadeiro que inere a todo o pensamento depende de um criteacuterio de verdade que eacute
ele mesmo impensaacutevel Alega Wittgenstein que eacute por concordacircncia ou natildeo
concordacircncia da forma loacutegica das proposiccedilotildees com a forma loacutegica dos factos que se
70
decide a verdade ou falsidade das primeiras Ora esta comparaccedilatildeo e o modo como se
processa satildeo uma ocorrecircncia que se diria do foro psiacutequico Todavia por um lado a
forma loacutegica do que se pensa o pensamento eacute incapaz de exprimir como eacute por outro
lado igualmente inexprimiacutevel a forma como se processa a referida comparaccedilatildeo como a
imagem loacutegica se projeta no facto que representa de maneira a constituir um criteacuterio de
avaliaccedilatildeo da sua congruecircncia O que delimita o pensamento eacute deste modo um misteacuterio
para o proacuteprio pensamento Como consequecircncia o mundo que existe limitado ao que de
verdade se pensa natildeo tem sentido para o proacuteprio pensamento Eacute nisto essencialmente
que julgamos que Wittgenstein reconhece a presenccedila do miacutestico
O que eacute miacutestico eacute que o mundo exista natildeo como o mundo eacute111 (TLP 644)
Miacutestico eacute sentir o mundo como um todo limitado112 (TLP 645)
6
Esta circunstacircncia suscita natural perplexidade perante uma filosofia que
aparentemente se fortifica numa certa visatildeo metafiacutesica que eacute afinal uma ilusatildeo de que a
verdadeira filosofia se deve libertar ldquo(Tem que por assim dizer deitar fora a escada
depois de ter subido por ela)rdquo113 (TLP 654) De que forma eacute que se pode entender uma
filosofia cujo desfecho eacute negar-se a si mesma Como explicar que Wittgenstein diga
que ldquoO pensamento eacute a proposiccedilatildeo com sentidordquo114 (TLP 4) e depois venha dizer que
para quem o tenha compreendido deve reconhecer que o que disse eacute sem-sentido e soacute
desse ponto de vista o que disse eacute elucidativo Eacute como se ele persuadisse o leitor da sua
filosofia para depois o defraudar e desse modo iroacutenico o despertar para a verdadeira
filosofia que renuacutencia a toda e qualquer metafiacutesica Nesse caso as proposiccedilotildees da sua
filosofia que natildeo tenham a possibilidade de ser verdadeiras ou falsas satildeo para
abandonar por serem totalmente vazias de conteuacutedo significante Elas serviram
exclusivamente para enquanto absurdo delimitar a expressatildeo do pensamento desenhar
111 ldquoNicht wie die Welt ist ist das Mystische sondern daszlig sie istrdquo (TLP 644)
112 ldquoDas Gefuumlhl der Welt als begrenztes Ganzes ist das mystischerdquo (TLP 645)
113 ldquo(Er muszlig sozusagen die Leiter wegwerfen nachdem er auf ihr hinaufgestiegen ist)rdquo (TLP 654)
114 ldquoDer Gedanke ist der sinnvolle Satzrdquo (TLP 4)
71
na linguagem a sua linha de fronteira como era sua intenccedilatildeo enunciada no proacutelogo do
TLP Natildeo se pode pois levar a seacuterio o que a mencionada proposiccedilatildeo da secccedilatildeo 4 do
TLP diz sobre o que eacute o pensamento natildeo havendo denotaccedilatildeo para as palavras
laquopensamentoraquo e laquosentidoraquo para o que elas simbolizam essa proposiccedilatildeo eacute sem-sentido
Mas tambeacutem natildeo podemos dizer sem sucumbir novamente no sem-sentido ldquoO sinal
proposicional eacute um factordquo (TLP 314) uma vez que a palavra laquofactoraquo eacute um conceito
formal privado de denotaccedilatildeo e isto apesar de os signos proposicionais serem coisas
firmes e subsistentes cuja existecircncia eacute possiacutevel atestar Nesta perspetiva ao assim
falarmos eacute como se estiveacutessemos possuiacutedos de uma espeacutecie de deliacuterio dissociados que
estamos da realidade quando afirmamos o que natildeo tem de todo a possibilidade de
existecircncia
7
Ora na verdade natildeo se trata de deliacuterio posto que eacute a proacutepria realidade que
segundo as proposiccedilotildees com sentido que a descrevem mostra o que natildeo se pode dizer
sem incorrer na expressatildeo sem-sentido Eacute de caracter aforiacutestico a poderosa observaccedilatildeo
de Wittgenstein de que ldquoO que pode ser mostrado natildeo pode ser ditordquo115 (TLP 41212)
e pelos vistos eacute precisamente isso que acontece com a expressatildeo do pensamento no
que diz ela mostra a esfera do inefaacutevel A comeccedilar pelo que se exprime na linguagem
ldquoO que se exprime na linguagem noacutes natildeo podemos exprimir atraveacutes delardquo116 (TLP
4121) Logo sobre o sentido das proposiccedilotildees ao ser por elas mostrado (cf TLP
4022) nada se pode dizer com sentido o mesmo acontecendo com a forma loacutegica que eacute
exibida nas proposiccedilotildees loacutegicas (cf TLP 4121) Por outro lado o sentido mostrado na
linguagem mostra de maneiras muito diversas um sentido que ela natildeo pode dizer por
ser um sentido natildeo-proposicional ou seja natildeo enunciaacutevel em proposiccedilotildees com sentido
Eacute o caso do sujeito metafiacutesico Ele surge por assim dizer como o olho que se percebe a
ver mas natildeo se vecirc a si mesmo no que vecirc (cf TLP 5633 e 56331) Uma analogia com a
situaccedilatildeo de quem se vecirc na accedilatildeo que eacute vontade de enunciar proposiccedilotildees que descrevem e
delimitam o mundo mas que natildeo eacute por elas descrito uma vez que ldquoO sujeito pensante
115 ldquoWas gezeigt werden kann kann nicht gesagt werdenrdquo (TLP 41212)
116 ldquoWas sich in der Sprache ausdruumlckt koumlnnen wir nicht durch sie ausdruckenrdquo (TLP 4121)
72
natildeo existerdquo117 (TLP 5631) as proposiccedilotildees enunciadas mostram o seu agente embora
natildeo possam expressar-se sobre ele De igual modo a descriccedilatildeo do mundo acarreta para
quem o descreve impactos afetivos sob a forma de recompensa e castigo que o levam a
tomar diante dele uma posiccedilatildeo eacutetica-esteacutetica que a linguagem mais uma vez eacute
incapaz de sobre isso pronunciar-se com sentido (cf TLP 642-6422) Daiacute que ldquoO
sentido do mundo tem que estar fora do mundordquo118 (TLP 641) um sentido que
evidentemente eacute natildeo-proposicional O proacuteprio pensamento que vaacute para aleacutem da sua
expressatildeo em signos proposicionais eacute mostrado sem que sobre isso ele mesmo se possa
exprimir na imaginaccedilatildeo dos estados de coisas especialmente os que com ela
discordam na sua conversatildeo em signos no uso de conceitos formais na transmissatildeo e
compreensatildeo do sentido da linguagem ou no modo como se conclui pela sua verdade ou
falsidade
8
Ou seja o logicismo de Wittgenstein rejeita que os fenoacutemenos psiacutequicos possam
ser pensados mas por seu turno o que pode ser pensado mostra de alguma maneira
esses fenoacutemenos E ele soacute os mostra certamente porque algueacutem tem a possibilidade de
os perceber e por esse motivo ter a ilusatildeo que deles pode falar119 O que parece
esbarrar com o seu logicismo natildeo eacute que o psiacutequico se mostre na expressatildeo do
pensamento mas antes que este possa sobre ele dizer alguma coisa que tenha a
possibilidade de existecircncia de ser um facto do mundo Natildeo se afigura de todo que o que
esteja em causa na sua filosofia seja uma negaccedilatildeo do psiacutequico senatildeo uma
117 ldquoDas denkende vorstellende Subjekt gibt es nichtrdquo (TLP 5631)
118 ldquoDer Sinn der Welt muszlig auszligerhalb ihrer liegenrdquo (TLP 641)
119 Eacute completamente obscuro como eacute percebido o que a linguagem mostra Wittgenstein ao afirmar o poder de evidenciar da linguagem estaacute a pressupor que de algum modo nos apercebemos do mostrado Eacute por este motivo que os signos linguiacutesticos simbolizam porque mostram o seu sentido Na secccedilatildeo 311 do TLP eacute afirmado que a projeccedilatildeo de uma certa situaccedilatildeo eacute dada pelos sentidos da proposiccedilatildeo e que o meacutetodo de projeccedilatildeo desse sentido eacute o pensamento Eacute este que confere e reconhece sentido aos signos proposicionais e se eles mostram o seu sentido eacute porque o pensamento o articula e percebe (cf GILBERT Christopher ldquoThe Role of Thoughts in Wittgensteinrsquos Tractatusrdquo Linguistics and Philosophy Volume 21 Issue 4 1998 pp 344-347) No entanto a sua filosofia natildeo se interessa pela dinacircmica como o sentido eacute pensado afastando-se totalmente do que eacute a atividade psiacutequica Daiacute natildeo ser possiacutevel pensar o sentido do exprimido pelo pensamento E pela mesma razatildeo satildeo impensaacuteveis quaisquer outros conteuacutedos (ontoloacutegicos metafiacutesicos ou eacuteticos-esteacuteticos) que esse sentido suscite a quem o pense
73
impossibilidade de falar sobre ele que aconselha o silecircncio ldquoAcerca daquilo de que se
natildeo pode falar tem que se ficar caladordquo120 (TLP 654) E soacute neste sentido podemos
dizer que a filosofia do seu primeiro periacuteodo eacute antipsicologista121 Existe quem no
entanto se oponha a esta leitura substantiva do mostrar que defenda que se o mostrar
natildeo pode ser dito natildeo eacute porque haja alguma coisa inefaacutevel que ela ainda assim mostra
algo que tenha um sentido que escapa agrave compreensatildeo linguiacutestica mas natildeo a um outro
tipo de compreensatildeo O silecircncio impotildee-se por natildeo se poder falar daquilo que eacute
absolutamente ausente Esta eacute a designada ldquoleitura resolutardquo do TLP que tem como seus
principais arautos Cora Diamond e James Conant Para ela o logicismo de Wittgenstein
natildeo deixa qualquer abertura para o psiacutequico Quem por seu lado defende a leitura
substancialista como P M S Hacker contrapotildee que as proposiccedilotildees sem-sentido
mostram o que natildeo podem dizer ou seja o que eacute mostrado pelas proposiccedilotildees com
sentido O que elas mostram assim o interpretamos eacute o sentido natildeo-proposicional
exibido pelo sentido proposicional Quando Wittgenstein afirma que o sentido do
mundo estaacute fora do mundo natildeo estaacute a referir-se ao sentido proposicional mas a outro
tipo de sentido que natildeo serve para decidir a existecircncia ou natildeo existecircncia do que seja
exatamente por estar fora do mundo natildeo obstante ter sido o mundo a revelaacute-lo Nuno
Venturinha em defesa da leitura substancialista vale-se da LE conferecircncia dada por
Wittgenstein em Cambridge a 17 de Novembro de 1929 para demonstrar que sete anos
apoacutes a publicaccedilatildeo do TLP o filoacutesofo persevera na ideia de que a eacutetica eacute indescritiacutevel
mas mais do que nada eacute algo de ordem supernatural que eacute exteriorizado a partir dos
sentimentos do eu122 Em nota de rodapeacute Venturinha cita um excerto desta conferecircncia
onde ressalta a importacircncia que Wittgenstein atribui agraves expressotildees sem-sentido123
120 ldquoWovon man nicht sprechen kann daruumlber muszlig man schweigenrdquo (TLP 654)
121 Teodor Negru ao defender o antipsicologismo metodoloacutegico do TLP parece ignorar que muito embora a linguagem natildeo possa senatildeo expressar o que tem valor loacutegico de verdade ou falsidade ela ao mostrar o seu sentido pode mostrar igualmente o psiacutequico assim como a sua relaccedilatildeo com o ontoloacutegico e o epistemoloacutegico A conclusatildeo a que chega omite completamente a dicotomia dizermostrar essencial agrave compreensatildeo da filosofia da linguagem de Wittgenstein desta altura O antipsicologismo do TLP pode ser de facto metodoloacutegico se a sua anaacutelise se limitar ao que eacute possiacutevel dizer com sentido omitindo o que ela mostra de qualquer conteuacutedo inefaacutevel (Cf NEGRU Teodor ldquoAnti-Psychologistic Landmarks of Wittgensteinrsquos Philosophy in the Tractatus Logico-Philosophicusrdquo in Cristoph Jaumlger and Winfried Loumlffler Epistemology Contexts Values Disagreement Papers of the 34th International Wittgenstein Symposium The Austrian Ludwig Wittgenstein Society Kirchberg am Wechsel 2011 Vol XIX pp 219-220)
122 Cf VENTURINHA Nuno Loacutegica Eacutetica Gramaacutetica Wittgenstein e o Meacutetodo da Filosofia pp 291-306 Cf tambeacutem VENTURINHA Nuno ldquoBeyond the World Beyond Significant Languagerdquo in V A Munz K Puhl amp J Wang (eds) Language and World ndash Part One Essays on the Philosophy of
74
[] estas expressotildees sem-sentido natildeo eram sem-sentido porque eu natildeo tinha ainda encontrado a expressatildeo correta mas que o seu sem-sentido era a sua verdadeira essecircncia Porque tudo o que eu queria fazer com elas era apenas ir para aleacutem do mundo e isto quer dizer para aleacutem da linguagem significante124 (LE p 79)
9
O que mostram as proposiccedilotildees com sentido natildeo pode ser dito senatildeo em
proposiccedilotildees sem-sentido pois tudo o que elas mostram natildeo pertence ao mundo
contingente e evidentemente o que se diga sobre isso eacute insuscetiacutevel de ser verificada a
sua verdade ou falsidade Deste modo o pensamento mostra o impensaacutevel mostra o que
estaacute do lado de laacute do que eacute possiacutevel dizer ndash o extramundano Ou aquilo que eacute pensaacutevel
manifesta o que natildeo tem a possibilidade de existecircncia onde se inclui o pensamento da
proacutepria existecircncia O que ele mostra eacute pois do domiacutenio da metafiacutesica Resulta assim
claro que eacute impossiacutevel o pensamento metafiacutesico que eacute impensaacutevel conferir sentido
semacircntico ao sentido transcendental do mundo Esta conclusatildeo e os seus efeitos fizeram
com que Alain Badiou lhe tivesse consagrado um estudo com o tiacutetulo A Antifilosofia de
Wittgenstein125 Para ele o TLP faz equivaler a filosofia agrave negaccedilatildeo do pensamento Ao
cair no paradoxo de pensar o que natildeo se deixa pensar ela toma o sem-sentido como
sentido fala sobre o que pode ser mostrado mas natildeo pode ser dito Esta ilusatildeo enferma
e atraiccediloa o pensamento filosoacutefico ao ponto de ser um natildeo-pensamento razatildeo pela qual
se exige o silenciamento da filosofia Eacute portanto antifilosoacutefico Assim na leitura de
Badiou a filosofia soacute pode ser para Wittgenstein um ato antifilosoacutefico de expressatildeo do
miacutestico sob a forma arqui-esteacutetica de um puro mostrar inefaacutevel126 E o que ela mostra eacute
Wittgenstein Proceedings of the 32nd International Wittgenstein-Symposium Ontos Frankfurt 2010 pp 387-399
123 Cf Loacutegica Eacutetica Gramaacutetica Wittgenstein e o Meacutetodo da Filosofia p 301 nota 26
124 ldquo[] these nonsensical expressions were not nonsensical because I had not yet found the correct expression but their nonsensicality was their very essence For all I wanted to do with them was just to go beyond the world and that is to say beyond significant languagerdquo (LE p 78) a traduccedilatildeo aqui usada sofreu alteraccedilotildees onde as palavras laquononsensicalraquo e laquononsensicalityraquo satildeo traduzidas por laquosem-sentidoraquo em vez de laquosem sentidoraquo e laquonatildeo-sentidoraquo
125 Cf BADIOU Alain Wittgensteinrsquos Antiphilosophy Bruno Bosteels (trad e introd) Verso London New York 2017 p 181
126 Cf idem ibidem pp 77-81
75
o sentido divino das verdades que constituem o mundo A sua antifilosofia considera o
sentido inexprimiacutevel tiacutepico da feacute religiosa superior a todas as possiacuteveis verdades127
10
A possibilidade da verdade do que eacute exprimido pelo pensamento determina a
possibilidade do proacuteprio pensamento Aquela possibilidade tem poreacutem um fundamento
ontoloacutegico que eacute o mundo ter substacircncia ser constituiacutedo por objetos simples que
subsistem para aleacutem da sua configuraccedilatildeo contingente Sem este fundamento um
pensamento ter sentido dependeria da verdade de outro pensamento (cf TLP 20211) o
criteacuterio de verdade residiria no proacuteprio pensamento ele natildeo precisaria senatildeo de si
mesmo para ser verdadeiro Gottlob Frege defende que esse criteacuterio consiste na auto-
evidecircncia da sua verdade a priori128 Com este criteacuterio de verdade manifestamente jaacute
natildeo seria possiacutevel traccedilar a mesma fronteira entre pensamentos com sentido e sem-
sentido e diluir-se-ia aliaacutes a separaccedilatildeo entre o mundo e o extramundano uma vez que
o pensamento pertenceria em todo o caso agrave esfera transcendental Como eacute evidente
Wittgenstein opotildee-se radicalmente a esta posiccedilatildeo O que eacute singular eacute que o fundamento
ontoloacutegico da sua verdade natildeo resiste agrave aplicaccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo filosoacutefico
ldquoestritamente corretordquo que nos recomenda silecircncio sobre o que se natildeo pode falar129
Nos termos desse meacutetodo afirmar esse fundamento eacute sem-sentido quando ele natildeo tem a
possibilidade de ser verdadeiro ou falso Esta situaccedilatildeo natildeo escapa poreacutem ao paradoxo
a possibilidade da verdade tem um fundamento ontoloacutegico que natildeo tem a possibilidade
de ser verdadeiro O paradoxo desmancha-se quando se exclui este fundamento daquilo
127 Cf idem ibidem pp 112-116
128 Cf FREGE Gottlob ldquoThe Thought A logical Inquiryrdquo pp 289-31
129 O que forma a substacircncia do mundo que subsiste para aleacutem do seu acontecer contingente satildeo os objetos (cf TLP 2021e 2024) Eacute a substacircncia que determina a sua forma firme que somente eacute cognosciacutevel como forma de conexatildeo entre objetos (cf TLP 20122 2023 e 20231) Logo natildeo eacute possiacutevel pensar na substacircncia isto eacute nos objetos individualmente considerados fora da sua conexatildeo com os estados de coisas (cf TLP 20121) Quer isto dizer que de acordo com esta visatildeo ontoloacutegica qualquer proposiccedilatildeo sobre os objetos individuais que conferem a forma firme ao mundo eacute sem-sentido Natildeo eacute pois possiacutevel dizer fora dos estados de coisas seja o que for sobre eles que tenha a possibilidade de ter valor de verdade O proacuteprio pensamento desses estados onde se podem vir a conhecer os objetos em conexatildeo soacute eacute possiacutevel porque ambos partilham a mesma forma loacutegica (cf TLP 22) Poreacutem esta possibilidade ontoloacutegica eacute igualmente impensaacutevel na medida em que a forma loacutegica mostra-se no que se diz mas exatamente por esse motivo ela mesma eacute indiziacutevel (cf TLP 2172 e 412)
76
que tem a possibilidade de existecircncia ou natildeo existecircncia e se o remete estritamente para
o campo miacutestico Mas assim sendo o mundo passa a ser constituiacutedo por verdades
transcendentais e o sentido do mundo afinal fundamenta o sentido que lhe eacute dado pela
expressatildeo do pensamento Portanto o seu realismo afigura-se ser um realismo miacutestico
Ainda que posta na condicional a seguinte observaccedilatildeo do TLP parece refletir este seu
misticismo essencial
Se um deus cria um mundo em que certas proposiccedilotildees satildeo verdadeiras entatildeo ele cria simultaneamente um mundo no qual todas as proposiccedilotildees que delas se seguem satildeo verdadeiras E do mesmo modo ele natildeo poderia criar um mundo em que a proposiccedilatildeo laquopraquo eacute verdadeira sem ter criado os seus objetos130 (TLP 5123)
E quem sabe se no fundo natildeo teraacute sido isto que levou Wittgenstein a afirmar em 1931
que
O inexprimiacutevel (o que considero misterioso e natildeo sou capaz de exprimir) talvez seja o pano-de-fundo a partir do qual recebe sentido seja o que for que eu possa exprimir131(CV 1931 p 33)
11
Neste contexto onde a possibilidade da verdade parece assentar num
fundamento miacutestico o pensamento eacute um verdadeiro misteacuterio semelhante ao misteacuterio do
sentido do mundo Natildeo se deixa pensar tanto o processo psicoloacutegico que conduz agrave
verificaccedilatildeo da verdade do que se pensa quanto o fundamento ontoloacutegico da
possibilidade do pensamento Assim tambeacutem ele como a loacutegica (cf TLP 613) eacute
transcendental Esta poreacutem ao contraacuterio do pensamento natildeo depende da experiecircncia
do mundo para que se possa concluir que as suas proposiccedilotildees satildeo verdadeiras como
130 ldquoWenn ein Gott Welt erschafft worin gewisse Saumltze wahr sind so schafft er damit auch schon eine Welt in welcher alle ihre Folgesaumltze stimmen Und aumlhnlich koumlnnte er keine Welt schaffen worin der Satz p wahr ist ohne seine saumlmtlichen Gegenstaumlnde zu schaffenrdquo (TLP 5123)
131 ldquoThe inexpressible (what I find enigmatic amp cannot express) perhaps provides the background against which whatever I was able to express acquires meaningrdquo ldquoDas Unaussprechbare (das was mir geheimnisvoll erscheint und ich nicht auszusprechen vermag) gibt vielleicht den Hintergrund auf dem das was ich aussprechen konnte Bedeutung bekommtrdquo (CV 1931 p 23)
77
tautologias que satildeo elas mostram sem nada dizer as propriedades formais da
linguagem que satildeo verdadeiras em si mesmas (cf TLP 543 612 e 6113) E o que elas
assim mostram por anaacutelise das proposiccedilotildees com sentido nada tem que ver com a
verdade ou falsidade destas uacuteltimas proposiccedilotildees natildeo lhe importa se o mundo eacute como
elas o descrevem (cf TLP 5553 e 61233) Em contrapartida o modo de descriccedilatildeo das
proposiccedilotildees com sentido tem de obedecer forccedilosamente agraves formas loacutegicas (cf TLP
54731) natildeo eacute possiacutevel a expressatildeo do pensamento que natildeo obedeccedila agrave gramaacutetica ou
sintaxe loacutegica Uma certeza que se tem sobre o pensamento eacute que este segue regras
gramaticais Mas se a loacutegica eacute necessaacuteria ao pensamento ela natildeo serve todavia para
atraveacutes da linguagem fundamentar a sua relaccedilatildeo com o mundo nem a possibilidade de
ser verdade o que diz sobre ele A gramaacutetica que determina a forma de expressatildeo do
pensamento natildeo a resgata do que diz sem-sentido nomeadamente sobre o proacuteprio
pensamento
78
PARTE II ndash A FENOMENOLOGIA DO PENSAMENTO
79
Capiacutetulo 4 ndash O Pensamento e a Gramaacutetica
Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual Tatildeo certo como uma folha nunca eacute completamente igual a uma outra assim tambeacutem o conceito de folha foi formado graccedilas ao abandono dessas diferenccedilas individuais por um esquecimento do elemento diferenciador e suscita entatildeo a representaccedilatildeo como se existisse na natureza fora das folhas algo que fosse laquoa folharaquo algo como uma forma original segundo a qual todas as folhas seriam tecidas desenhadas recortadas coloridas frisadas e pintadas mas por matildeo desajeitada de tal maneira que nenhum exemplar tivesse sido executado de modo correto e fiaacutevel como a coacutepia fiel da forma originaacuteria132
O Pensamento e a Linguagem
Cerca de 10 anos apoacutes a conclusatildeo do TLP periacuteodo que encerra em si um
relativamente longo interregno na sua produccedilatildeo filosoacutefica Wittgenstein volta a falar-
nos sobre o tema do pensamento na sua obra Observaccedilotildees Filosoacuteficas (PR) Com ela
regressa agrave questatildeo da ligaccedilatildeo do pensamento agrave linguagem E a ideia de que soacute temos
acesso ao pensamento atraveacutes do que ele manifesta de que somente a linguagem pode
dizer alguma coisa do proacuteprio pensamento Mas de acordo com o TLP o que a
linguagem mostra do pensamento a proacutepria linguagem natildeo o pode dizer sob pena de
enunciar proposiccedilotildees sem-sentido Assim a proacutepria consideraccedilatildeo do pensamento eacute
paradoxal pois natildeo podemos compreender o pensamento senatildeo por via da linguagem e
contudo eacute impossiacutevel pensaacute-lo atraveacutes da linguagem O que parece claro todavia eacute que
natildeo haacute outro modo de aceder ao pensamento senatildeo por via da proacutepria linguagem pois
sendo ele indissociaacutevel da linguagem acaba por ser ela que o mostra Daiacute natildeo ter
cabimento a pretensatildeo de saber se haacute pensamento sem linguagem se na infacircncia aquele
eacute preacutevio a esta e condiccedilatildeo da sua aprendizagem Eacute no entanto precisamente esta
questatildeo que Wittgenstein aborda logo nas primeiras observaccedilotildees que tece na obra que o
traz de volta agrave filosofia O filoacutesofo parece conceber aqui o pensamento para aleacutem da
linguagem A crianccedila para aprender uma certa linguagem natildeo tem de aprender a pensar
o pensamento jaacute estaacute pressuposto nessa aprendizagem Soacute se aprende uma linguagem ao
132 NIETZSCHE Friedrich ldquoAcerca da Verdade e da Mentirardquo in O Nascimento da Trageacutedia e Acerca da Verdade e da Mentira Obras Escolhidas Reloacutegio de Aacutegua Editores Lisboa 1997 p 220
80
comeccedilar a pensar nela (cf PR 5) Assim parece ser possiacutevel o pensamento sem se ter
apreendido uma linguagem Embora se possa dizer que o pensamento anterior agrave
linguagem aguarda pela aprendizagem de uma liacutengua para se poder manifestar O
pensamento preacute-linguiacutestico eacute inexpressivo Mas para Wittgenstein isso natildeo quer
significar que o pensamento se resuma a conteuacutedos linguiacutesticos
Obviamente os processos de pensamento de um homem comum consistem numa miscelacircnea de siacutembolos dos quais os estritamente linguiacutesticos talvez formem apenas uma pequena parte133 (PR 5)
Numa clara evoluccedilatildeo relativamente agrave sua obra de juventude o filoacutesofo admite que o
pensamento tenha como conteuacutedo toda uma diversidade de siacutembolos linguiacutesticos e natildeo
linguiacutesticos Por esta razatildeo ele natildeo necessita da linguagem das palavras para poder
representar o mundo e nesse sentido eacute possiacutevel a uma crianccedila representaacute-lo sem que
para isso tenha aprendido a falar E de facto a crianccedila que ainda natildeo domine a fala natildeo
deixa de algum modo de se expressar e intencionar Por outro lado para aquele que jaacute
eacute capaz de articular uma linguagem o mundo natildeo eacute dado apenas pelo que esta
representa dele mas tambeacutem por outras formas de representaccedilatildeo simboacutelica
Muito embora Wittgenstein desta nova fase natildeo reduza o pensamento agrave sua
expressatildeo linguiacutestica a verdade eacute que sendo a linguagem que o permite expressar de
forma articulada apenas ela lhe poderia conferir algum sentido Poreacutem o pensamento eacute
incapaz de explicar a sua proacutepria expressatildeo fundamentar o uso que faz da linguagem
atraveacutes da linguagem como se fosse possiacutevel dobrar-se sobre si e articular os seus
proacuteprios processos de articulaccedilatildeo simboacutelica a linguagem natildeo eacute capaz de se explicar a si
mesma e de ensinar os seus usos Uma linguagem adquire-se efetivamente por
aprendizagem mas ela natildeo pode dizer-nos como ela mesma se aprende A
aprendizagem simboacutelica de uma linguagem natildeo eacute suscetiacutevel de ser compreendida A
explicaccedilatildeo do significado da palavra laquoAraquo serve a Wittgenstein para elucidar este facto
(cf PR 6) Se a referida explicaccedilatildeo eacute dada enquanto se aponta para uma certa coisa
atraveacutes da proposiccedilatildeo laquoA eacute istoraquo ela eacute simplesmente uma definiccedilatildeo ostensiva e natildeo uma
133 ldquoOf course the thought processes of an ordinary man consist of a medley of symbols of which the strictly linguistic perhaps form only a small partrdquo ldquoGewiszlig geht das Denken der gewoumlhnlichen Menschen in einer Mischung von Symbolen vor sich in der vielleicht die eigentlich sprachlichen nur einen geringen Teil bildenrdquo (PR 5)
81
explicaccedilatildeo do seu significado Ademais a compreensatildeo da proacutepria proposiccedilatildeo per se
exige que se conheccedila o significado de laquoAraquo Assim a definiccedilatildeo ostensiva natildeo explica
para quem natildeo o saiba o significado de laquoAraquo na proposiccedilatildeo por exemplo laquoA estaacute
doenteraquo A compreensatildeo desta proposiccedilatildeo envolve jaacute o conhecimento do significado do
sujeito da mesma O que sabemos eacute que esse conhecimento eacute condiccedilatildeo necessaacuteria agrave
compreensatildeo da proposiccedilatildeo e que a linguagem natildeo eacute capaz de explicaacute-lo Na verdade
natildeo sabemos o que leva as palavras da nossa linguagem a terem o significado que tecircm
Aprendemos a falaacute-las sem termos a noccedilatildeo de como aprendemos os seus significados
Damos unicamente conta de que a partir de certa altura passamos a usaacute-las para
expressar o que pensamos Daiacute que o filoacutesofo afirme que as expressotildees linguiacutesticas satildeo
arbitraacuterias (cf PR 5) Constatamos os usos que fazemos das palavras a partir dos quais
aliaacutes tentamos precisar a sua significaccedilatildeo mas natildeo sabemos o que determina esses
usos isto eacute o fundamento da significaccedilatildeo Ao desconhecermos como no pensamento se
constituem os siacutembolos linguiacutesticos a sua expressatildeo apresenta-se naturalmente
arbitraacuteria Em suma os significados que nos satildeo dados pelas palavras as proacuteprias
palavras natildeo o podem explicar
O que eacute notoacuterio eacute que o significado que as palavras tecircm surge no uso que delas
se faz nas proposiccedilotildees (cf PR 12 e 14) Quer isto dizer que o seu significado eacute revelado
com o sentido das proacuteprias proposiccedilotildees134 Como explicar entatildeo o sentido das
proposiccedilotildees Voltamos a enfrentar a mesma impossibilidade da linguagem se explicar a
si mesma Como signo linguiacutestico a proposiccedilatildeo eacute um meio para a representaccedilatildeo
simboacutelica que parece obedecer a regras de representaccedilatildeo sob a forma pictoacuterica dando
origem a como que um modelo do representado com a mesma multiplicidade que o
caracteriza Essas regras satildeo como instruccedilotildees para atraveacutes do signo figurar o
representado isto eacute proceder a descriccedilotildees ordenadoras do sentido da proposiccedilatildeo (Cf
PR 10 e 14) Ainda que assim se passe uma vez que eacute inexplicaacutevel o sentido dado pelo
signo linguiacutestico como ficamos a saber dessas instruccedilotildees Quando a crianccedila aprende a
falar pela primeira vez uma linguagem ela surge estreitamente ligada agrave accedilatildeo tal como a
134 Num texto escrito em 1929 para as atas da Joint Session of the Aristotelian Society and the Mind Association Wittgenstein afirma que eacute do acircmbito da sintaxe estabelecer as regras segundo as quais as palavras podem ser usadas nas proposiccedilotildees de modo a conferir-lhes sentido e assim prevenir a construccedilatildeo de pseudoproposiccedilotildees sem-sentido (cf SRLF pp 28-29) Subsistem duacutevidas sobre o texto realmente apresentado nesse evento Ver sobre isto VENTURINHA Nuno ldquoThe Ramsey Notes on Time and Mathematicsrdquo in Nuno Venturinha (ed) Wittgenstein After His Nachlass Palgrave Macmillan Basingstoke 2010 pp 175-181
82
manipulaccedilatildeo das alavancas de uma maacutequina estaacute ligada agrave sua operaccedilatildeo e essa ligaccedilatildeo eacute
constitutiva da proacutepria linguagem (cf PR 23)135 Isto leva Wittgenstein a dizer que a
ldquoLinguagem deve ter a mesma multiplicidade que um painel de controlo que
desencadeia as accedilotildees correspondentes agraves suas proposiccedilotildeesrdquo136 (PR 13) Pode-se dizer
que de certo modo as regras de representaccedilatildeo satildeo ordenadoras da accedilatildeo Eacute com este
propoacutesito que as proposiccedilotildees tecircm sentido E o mesmo acontece com as palavras elas
satildeo usadas nas proposiccedilotildees com esse mesmo fim (cf PR 15) Daqui se conclui
claramente a natureza intencional do uso da linguagem (cf PR 20 e 31) Mas tambeacutem
que esse uso se baseia na expectativa de encontrar uma ordem intencionada segundo
determinados esquemas conceptuais Que um certo padratildeo simboacutelico liga as palavras ao
estado de coisas no contexto de uma certa proposiccedilatildeo e nos coloca na posiccedilatildeo de quem
espera essa ligaccedilatildeo (cf PR 25 e 28) Uma expectativa que nada tem que ver com a
antecipaccedilatildeo de um certo acontecimento porvir que a pode confirmar ou contraditar mas
antes com o que vier a acontecer poder ser enquadraacutevel num certo esquema conceptual
pressuposto (cf PR 11)
Se natildeo eacute possiacutevel explicar o significado das palavras e o sentido das proposiccedilotildees
entatildeo as regras de representaccedilatildeo que os usos da linguagem mostram satildeo meras
convenccedilotildees gramaticais Como tais essas regras natildeo podem ser justificadas pela proacutepria
linguagem sob pena de se enunciar proposiccedilotildees incompreensiacuteveis Natildeo podemos
atraveacutes de uma proposiccedilatildeo que descreve o representado justificar que uma outra
proposiccedilatildeo eacute dele uma representaccedilatildeo fiaacutevel (cf PR 7) Nem tatildeo-pouco se pode dizer
que as convenccedilotildees satildeo necessaacuterias por serem determinadas por propriedades do
representado o que tornaria a convenccedilatildeo dispensaacutevel Mais ainda se as propriedades do
representado tornassem necessaacuterias as convenccedilotildees de representaccedilatildeo natildeo seria possiacutevel a
afirmaccedilatildeo dessas propriedades sem conceber a possibilidade da sua negaccedilatildeo o que
poria em causa as proacuteprias convenccedilotildees (cf PR 4) O que se pode dizer eacute que apesar da
sua arbitrariedade devemos agraves convenccedilotildees gramaticais ao ligarem os signos aos factos
a possibilidade de partilha de sentidos e de compreensatildeo muacutetua Satildeo elas que nos
135 Este facto exclui a possibilidade por ausecircncia de fundamento de que o significado das palavras possa ser imaginaccedilatildeo pura Um significado simplesmente imaginado natildeo tem conexatildeo agrave accedilatildeo natildeo eacute com ela comensuraacutevel (cf PR 12)
136 ldquoLanguage must have the same multiplicity as a control panel that sets off the actions corresponding to its propositionsrdquo ldquoDie Sprache muszlig von der Mannigfaltigkeit eines Stellwerks sein das die Handlungen veranlaszligt die ihren Saumltzen entsprechenrdquo (PR 13)
83
podem levar a concluir pela presenccedila do pensamento enquanto expressatildeo Mas tambeacutem
da ausecircncia de pensamento em quem fala sem saber o que diz Assim quando algueacutem
se exprime segundo outras regras gramaticais que natildeo as convencionadas natildeo podemos
dizer que as suas proposiccedilotildees satildeo sem-sentido mas apenas que elas tecircm um sentido para
noacutes incompreensiacutevel (cf PR 4 e 7) Eacute o que acontece muitas vezes com a linguagem
filosoacutefica que usa certas palavras em sentidos diversos do convencionado (cf PR 9)
Por tudo isto a anaacutelise loacutegica das proposiccedilotildees passa a ter como fim tornar
completamente clara a sua gramaacutetica O que eacute da filosofia estaacute assim confinado ao
estudo das possibilidades de representaccedilatildeo gramatical (cf PR 1) Mas satildeo as
proposiccedilotildees da linguagem comum e natildeo as de uma qualquer linguagem laquoidealraquo que satildeo
objeto da filosofia (cf PR 1 e 3)137 Wittgenstein faz notar que as proposiccedilotildees da sua
gramaacutetica satildeo do mesmo tipo das proposiccedilotildees da fiacutesica isto eacute procuram descrever os
mesmos factos que a fiacutesica descreve para explicaacute-los (cf PR 1 e 11) Aliaacutes a
linguagem comum eacute ela mesma uma linguagem fiacutesica oral e escrita o que a faz
comensuraacutevel com a realidade Neste sentido os usos metafiacutesicos que a filosofia possa
fazer das palavras da linguagem comum ao alterarem o seu significado tornam-se
incompreensiacuteveis natildeo sendo possiacutevel verificar a sua verdade ou falsidade (cf PR 60)
Por este mesmo motivo satildeo igualmente incompreensiacuteveis as representaccedilotildees de acircmbito
psicoloacutegico como sejam por exemplo da poacutes-imagem do facto percebido de
experimento do pensamento e de pensamento da proposiccedilatildeo (cf PR 1 e 17)
Assim soacute eacute possiacutevel a anaacutelise gramatical de proposiccedilotildees que se possam cotejar
com os fenoacutemenos com a experiecircncia imediata dos factos fiacutesicos com base na qual se
pode verificar a verdade ou a falsidade das proposiccedilotildees (cf PR 225) Donde resulta que
a anaacutelise gramatical das proposiccedilotildees eacute para Wittgenstein uma fenomenologia (cf PR
1) Com ela pretende-se esclarecer as regras de representaccedilatildeo linguiacutestica dos fenoacutemenos
de modo a verificar a correspondecircncia da representaccedilatildeo com o representado Mas
tambeacutem excluir da anaacutelise gramatical as proposiccedilotildees que satildeo sem-sentido por
impossibilidade de clarificar as suas regras de representaccedilatildeo A impossibilidade de
referecircncia fiacutesica de certas proposiccedilotildees como eacute o caso sublinha Wittgenstein de muitas
das proposiccedilotildees da epistemologia natildeo permite estabelecer a partir delas qualquer
137 O autor no entanto exclui das proposiccedilotildees da linguagem comum aquelas que expressam preferecircncia entre fenoacutemenos A linguagem que lhe interessa analisar eacute nas suas proacuteprias palavras ldquoabsolutamente imparcialrdquo (cf PR 53) Daiacute ele dizer que as proposiccedilotildees gramaticalmente relevantes serem do mesmo tipo das da fiacutesica (cf PR 1)
84
correspondecircncia com a experiecircncia imediata da realidade A sua verdade ou falsidade
deixa de poder ser determinada (cf PR 60) Como fenomenologia a gramaacutetica aplica-
se somente aos fenoacutemenos estabelecendo as possibilidades da sua representaccedilatildeo (cf
PR 1) E se a fenomenologia como a entende o filoacutesofo eacute pelo menos em parte uma
teoria da harmonia entre a linguagem e o fenoacutemeno entatildeo a gramaacutetica trata sobretudo
desta teoria Mas adverte-nos ele para o facto de que esta teoria fenomenoloacutegica natildeo eacute
uma questatildeo de preferecircncia por uma certa construccedilatildeo intelectiva mas eacute dada antes por
convenccedilotildees gramaticais (cf PR 4)
A Normatividade da Linguagem e a Conceitualidade dos Fenoacutemenos
A aplicaccedilatildeo da gramaacutetica pretende descrever os fenoacutemenos fazendo uso de
regras convencionadas que configuram as possibilidades de representaccedilatildeo da
linguagem Estas regras jaacute o vimos ligam de modo determinado os signos linguiacutesticos
agrave realidade Poreacutem essa ligaccedilatildeo pressupotildee que a realidade se pode descrever de acordo
com uma certa ordem ou normatividade Ou seja toda a proposiccedilatildeo espera que a
realidade que descreve seja conforme a uma dada ordem simboacutelica projetada Satildeo as
regras gramaticais que determinam as possibilidades de ordem da realidade Mas entatildeo
uma vez que essas possibilidades satildeo dadas por regras como caracterizar essa ordem
Para investigar esta questatildeo considere-se o seguinte exemplo Ao dizer-se que algo eacute
preto e natildeo eacute vermelho estaacute-se a supor que poderia ser vermelho que estas duas cores se
relacionam entre si como as demais cores de uma ordem possiacutevel de cores (cf PR 39)
Mas como eacute que atraveacutes da linguagem estabelecemos esta ordem Natildeo eacute como se ela
emanasse da realidade de tal modo que ao reconhecer uma cor teriacuteamos para ela uma
palavra para a designar Wittgenstein diz-nos que de facto natildeo eacute desse modo que
usamos a linguagem (cf PR 86) Isso eacute claro com a possibilidade de negaccedilatildeo de uma
proposiccedilatildeo Essa possibilidade natildeo envolve apenas igual possibilidade da sua afirmaccedilatildeo
mas sobretudo a possibilidade da afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo de uma qualquer outra
proposiccedilatildeo alternativa que pudesse descrever a mesma realidade (cf PR 41) Se fosse
por mero reconhecimento que a linguagem funcionasse natildeo seria possiacutevel a negaccedilatildeo da
proposiccedilatildeo laquoX eacute vermelhoraquo quando X fosse reconhecido como azul senatildeo a proposiccedilatildeo
laquoX eacute azulraquo Mas realmente usamos tambeacutem a linguagem para representar o que
podendo ser de outro modo natildeo corresponde agrave realidade Quando negamos a proposiccedilatildeo
85
laquoX eacute vermelhoraquo queremos efetivamente dizer que laquoX natildeo eacute vermelhoraquo que X podendo
ser vermelho natildeo o eacute uma vez que por exemplo laquoX eacute pretoraquo Se soacute pudeacutessemos
designar uma certa cor ao reconhececirc-la nunca nos poderiacuteamos referir a ela senatildeo
quando correspondesse ao estado de coisas Daiacute que tenhamos que ter agrave nossa
disposiccedilatildeo um espectro de cores a partir do qual podemos selecionar aquela que pode
ser a cor de certa coisa ou que pelo contraacuterio pode natildeo ser a sua cor
As proposiccedilotildees assevera Wittgenstein resultam da seleccedilatildeo de niacuteveis ou pontos
de padrotildees ou escalas (yardsticksMaszligstaumlbe) aplicados agrave realidade sendo que esses
padrotildees estatildeo previamente disponiacuteveis para aplicaccedilatildeo na enunciaccedilatildeo de proposiccedilotildees (cf
PR 42 e 43) Mesmo quando as proposiccedilotildees enunciam expectativas sobre certos factos
vindouros elas fazem-no com base em determinados niacuteveis de certos padrotildees que
podem vir ou natildeo a ser confirmados pelos factos em vista (cf PR 33) Pode-se entatildeo
dizer que a linguagem estaacute para a realidade como o sistema de coordenadas espaciais
estaacute para a descriccedilatildeo do que existe no espaccedilo (cf PR 46) As possibilidades de ordem
simboacutelica da realidade satildeo deste modo dadas por aplicaccedilatildeo de regras gramaticais que
organizam os signos linguiacutesticos segundo determinados padrotildees simboacutelicos Eacute
finalmente a aplicaccedilatildeo destas regras que pode conferir sentido agraves proposiccedilotildees e eacute este
sentido que uma vez comparado com a realidade pode tornar as proposiccedilotildees
verdadeiras ou falsas (cf PR 44) Assim no domiacutenio das cores eacute o seu espectro ou
melhor as regras que ligam cada uma das cores do espectro a determinados signos que
possibilitam o sentido de uma proposiccedilatildeo como laquoX eacute vermelhoraquo ou laquoX natildeo eacute pretoraquo
Satildeo elas que fazem com que uma proposiccedilatildeo tenha sentido Mas somente a experiecircncia
imediata de X poderaacute afirmar ou negar a verdade ou falsidade destas proposiccedilotildees De
referir ainda que os padrotildees podem por um lado ordenar a realidade na sua imensa
variedade fazendo com que qualquer fenoacutemeno se possa sempre compreender nalgum
dos seus pontos e por outro lado tornar possiacutevel a imaginaccedilatildeo do que natildeo tem
realidade Talvez por isso o filoacutesofo nos diga que a ldquoGramaacutetica confere agrave linguagem os
necessaacuterios graus de liberdaderdquo138 (PR 38)
As regras de representaccedilatildeo assentes em padrotildees parecem todavia ter limites Se
a cada ponto de um padratildeo pode corresponder apenas uma e tatildeo-soacute uma medida do
estado de coisas como explicar entatildeo que esta possa ser o resultado da combinaccedilatildeo de
138 ldquoGrammar gives language the necessary degrees of freedomrdquo ldquoDie Grammatik gibt der Sprache den noumltigen Freiheitsgradrdquo (PR 38)
86
outros pontos do mesmo padratildeo De facto natildeo posso ter simultaneamente duas cores no
mesmo lugar Poreacutem ainda que natildeo se possam ver ao mesmo tempo a cor de um certo
lugar pode ser o produto da combinaccedilatildeo de outras cores Eacute nesse sentido que a gradaccedilatildeo
de uma cor tem um grau maior ou menor de presenccedila dessa cor E natildeo obstante cada
um destes graus eacute incompatiacutevel entre si correspondendo a pontos mutuamente
exclusivos do mesmo padratildeo (cf PR 76) Natildeo eacute pois possiacutevel aos signos linguiacutesticos
ao corresponderem a um certo ponto de um padratildeo darem conta de que esse ponto pode
ser a combinaccedilatildeo de outros do mesmo padratildeo Esta possibilidade de contradiccedilatildeo de
dois ou mais pontos coincidirem num mesmo ponto por exemplo a mesma cor ser a
combinaccedilatildeo de duas ou mais cores soacute pode ser dada pelo que os signos significam
como siacutembolos (cf PR 78) Soacute atraveacutes deles eacute que se pode conhecer a forma de um
objeto no espaccedilo Efetivamente uma proposiccedilatildeo natildeo pode dizer de uma certa coisa que
ela tem e natildeo tem uma certa qualidade e tambeacutem natildeo eacute possiacutevel o produto loacutegico de
duas proposiccedilotildees que referindo-se a essa qualidade se contradigam entre si (cf PR
79) Mas por outro lado uma proposiccedilatildeo que afirme um certo grau de uma propriedade
contradiz todas as proposiccedilotildees que afirmem outros graus dessa mesma propriedade
sendo concomitantemente delas dependente na medida em que um grau eacute afirmado por
relaccedilatildeo a outros graus (cf PR 80)
Este facto o da linguagem assentar em padrotildees e na relaccedilatildeo interna
(coordenaccedilatildeo) que existe entre os pontos de um mesmo padratildeo nega totalmente a tese
defendida no TLP de que as proposiccedilotildees elementares satildeo independentes e natildeo se
contradizem entre si139 O mundo deixa de poder ser descrito pela totalidade de
proposiccedilotildees elementares uma vez que elas podem ou natildeo ser compatiacuteveis E na
verdade elas satildeo inconciliaacuteveis sempre que se atribuir a um mesmo objeto duas
qualidades que pertencendo ao mesmo padratildeo estejam coordenadas entre si (cf PR
84) Por essa razatildeo ldquoO conceito de uma lsquoproposiccedilatildeo elementarrsquo perde agora todo o seu
significado originalrdquo140 (PR 83) Agora a proposiccedilatildeo que expressa um ponto de
graduaccedilatildeo numa escala implica como se tivessem simultaneamente presentes todas as
139 Aleacutem de que natildeo se conhece um meacutetodo de anaacutelise loacutegica que por decomposiccedilatildeo das proposiccedilotildees da linguagem comum chega agraves proposiccedilotildees elementares concebidas como conexotildees de objetos simples os quais natildeo tecircm existecircncia fora dessas conexotildees (cf MEDINA Joseacute The Unity of Wittgensteinrsquos Philosophy ndash Necessity Intelligibility and Normativity State University of New York Press Albany 2002 pp 31-32)
140 ldquoThe concept of an lsquoelementary propositionrsquo now loses all of its earlier significancerdquo ldquoDer Begriff des Elementarsatzes verliert jetzt uumlberhaupt seine fruumlhere Bedeutungrdquo (PR 83)
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outras proposiccedilotildees que expressam os demais pontos dessa escala Eacute todo este conjunto
de proposiccedilotildees que segundo um certo padratildeo formam um sistema de proposiccedilotildees que eacute
comparado com a realidade (cf PR 82) O padratildeo que sustenta o referido sistema eacute
defende Medina um padratildeo de relaccedilotildees inferenciais materiais entre proposiccedilotildees cujas
regras de sintaxe satildeo especiacuteficas ao seu conteuacutedo
Na visatildeo de Wittgenstein o que eacute mais caracteriacutestico de uma proposiccedilatildeo eacute que ela estaacute fortemente conectada a outras proposiccedilotildees por meio de relaccedilotildees inferenciais Eacute por isso que as proposiccedilotildees formam sistemas A visatildeo da linguagem como um lsquoSatzsystemrsquo que Wittgenstein desenvolveu em 1929ndash30 eacute uma tentativa de elaborar essa perspetiva [insight] inferencial Nessa visatildeo as inter-relaccedilotildees que reuacutenem proposiccedilotildees em sistemas natildeo satildeo relaccedilotildees inferenciais formais mas relaccedilotildees de inferecircncia material relaccedilotildees inferenciais baseadas no conteuacutedo das proposiccedilotildees envolvidas Essa visatildeo inferencial permite um afastamento radical do formalismo do Tractatus141
As proposiccedilotildees deixaram de se relacionar entre si com base na sua estrutura loacutegica
interna ou em funccedilotildees de verdade como acontece no TLP para passarem a terem
relaccedilotildees inferenciais entre si relativas a um mesmo conteuacutedo referencial que daacute origem
a um sistema de regras Tambeacutem Stern de um ponto vista diverso se refere a estas
relaccedilotildees como constituindo um sistema de regras correspondendo a uma posiccedilatildeo que
ele chama de ldquoholismo loacutegicordquo que sucede ao ldquoatomismo loacutegicordquo do TLP142 Assim
quando algueacutem diz laquoEu natildeo tenho uma dorraquo natildeo se estaacute certamente a referir a uma
determinada sensaccedilatildeo de ausecircncia de dor mas antes ao padratildeo laquodorraquo que compreende
toda a gradaccedilatildeo da sua intensidade Ao dizecirc-lo estaacute a dar conta de que o seu estado atual
aferido no padratildeo laquodorraquo verifica a ausecircncia de dor A proposiccedilatildeo laquoEu natildeo tenho uma
dorraquo eacute tambeacutem verdadeira ao verificar por comparaccedilatildeo com a realidade que a
proposiccedilatildeo laquoEu tenho uma dorraquo eacute falsa Eacute neste sentido que a proposiccedilatildeo que descreve
o estado atual de uma propriedade envolve todas as outras proposiccedilotildees que negam
141 ldquoOn Wittgensteinrsquos view what is most characteristic of a proposition is that it is tightly connected to other propositions through inferential relations This is why propositions form systems The Satzsystem view of language that Wittgenstein developed in 1929ndash30 is an attempt to elaborate this inferentialist insight On this view the interrelations that bring propositions together into systems are not formal inferential relations but relations of material inference inferential relations that are based on the content of the propositions involved This inferentialist view constitutes a radical departure from the formalism of the Tractatusrdquo (MEDINA Joseacute ibidem p 42)
142 Cf STERN David G Wittgenstein on Mind and Language pp 99 e 120
88
outros graus possiacuteveis dessa propriedade Eacute por isso que todo um sistema de
proposiccedilotildees eacute confrontado com a realidade (cf PR 62 82 e 85)143
Eacute o sistema de proposiccedilotildees que permite determinar o grau de uma propriedade
de um certo objeto Mas seraacute que os conceitos gerais como sejam laquohomemraquo laquoaacutervoreraquo
laquolivroraquo e laquociacuterculoraquo podem ser propriedades de coisas cuja existecircncia natildeo depende
deles Segundo Wittgenstein Russell e Frege consideram o conceito como um tipo de
propriedade de uma coisa como esta fosse um substrato (cf PR 96) Frege inclusive
faz de algum modo corresponder o objeto e o conceito respetivamente ao sujeito e ao
predicado de uma proposiccedilatildeo (cf PR 93)144 Claramente esse natildeo eacute o entendimento de
Wittgenstein Ele faz notar antes de mais que se um conceito como o de laquociacuterculoraquo
pudesse ser usado unicamente como possibilidade de predicaccedilatildeo segundo um padratildeo
com diferentes niacuteveis correspondentes agrave sua posiccedilatildeo e dimensatildeo natildeo seria possiacutevel usaacute-
lo em proposiccedilotildees gerais como seja laquoUm ciacuterculo vermelho estaacute situado num
quadradoraquo (cf PR 89) A proacutepria circunstacircncia de ser sem sentido dar nomes aos
ciacuterculos traduz o facto de se perder com isso o poder de generalizaccedilatildeo do conceito e a
possibilidade de ele compreender em si todas as suas posiccedilotildees e dimensotildees (cf PR 90)
Eacute devido a este facto que enquanto conceito um ciacuterculo pode por exemplo estar
situado dentro ou fora de um quadrado Na verdade um conceito natildeo sendo um nome
de um corpo que se pode definir ostensivamente natildeo eacute igualmente uma propriedade
real portada por um corpo No que percebemos na experiecircncia os conceitos definem o
143 A este propoacutesito nos apontamentos de Friedrich Waismann sobre a conversa tida com Wittgenstein em 25 de Dezembro de 1929 podemos ler o seguinte ldquoEu prefiro agora dizer um sistema de proposiccedilotildees eacute colocado como um padratildeo contra a realidade O que eu quero dizer com isto eacute quando eu coloco um padratildeo contra um objeto espacial eu aplico todos os niacuteveis de graduaccedilatildeo simultaneamente Natildeo satildeo os niacuteveis individuais de graduaccedilatildeo que satildeo aplicados eacute toda a escala Se eu sei que o objeto alcanccedila o niacutevel de graduaccedilatildeo dez eu tambeacutem sei imediatamente que ele natildeo alcanccedila os niacuteveis onze doze etc As proposiccedilotildees dizem-me que o comprimento de um objeto forma um sistema um sistema de proposiccedilotildees Eacute todo este sistema que eacute comparado com a realidade natildeo uma proposiccedilatildeo singularrdquo ldquoI should now prefer to say a system of propositions is laid like a yardstick against reality What I mean by this is when I lay a yardstick against a spatial object I apply all the graduation marks simultaneously Itrsquos not the individual graduations marks that are applied itrsquos the whole scale If I know that the object reaches up to the tenth graduation mark I also know immediately that it doesnrsquot reach the eleventh twelfth etc The assertions telling me the length of an object form a system a system of propositions Itrsquos such a whole system which is compared with reality not a single propositionrdquo (PR p 317)
144 Wittgenstein chama a atenccedilatildeo para o facto de que a forma sujeito-predicado natildeo eacute uma forma loacutegica uacutenica havendo antes inuacutemeras formas loacutegicas distintas Que o uso das proposiccedilotildees na forma sujeito-predicado decorre somente do facto de ser essa a notaccedilatildeo adotada Como se quiseacutessemos representar apenas em ciacuterculos todas as figuras espaciais Nesse caso a cada figura diferente corresponderia um meacutetodo de projeccedilatildeo especiacutefico E o ciacuterculo que a representa nada poderia significar se natildeo soubeacutessemos o seu respetivo meacutetodo de projeccedilatildeo Seria o ciacuterculo e o meacutetodo de projeccedilatildeo que definiriam de cada vez a forma loacutegica proacutepria (cf PR 93)
89
proacuteprio objeto O que seria um ciacuterculo sem cor Ou uma cor sem forma Ou uma forma
sem posiccedilatildeo Enquanto propriedades de um objeto os conceitos integram a proacutepria
noccedilatildeo de objeto Satildeo as suas propriedades que definem o objeto natildeo sendo possiacutevel
descrevecirc-lo sem lhes atribuir alguma delas sob pena de se intentar a descriccedilatildeo do
inexistente Neste sentido eacute legiacutetimo afirmar que os fenoacutemenos enquanto experiecircncia
imediata de objetos tecircm na linguagem um caraacutecter conceitual E eacute a sua conceitualidade
que nos leva a concluir que ldquoO que pertence agrave essecircncia do mundo natildeo pode ser expresso
pela linguagemrdquo145 (PR 54) Assim contrariando a posiccedilatildeo ontoloacutegica do TLP o que eacute
representado pela linguagem natildeo satildeo os fenoacutemenos cujos objetos tecircm realidade
substantiva mas antes cujos objetos satildeo apenas unidades de sentido constituiacutedas pelos
proacuteprios conceitos que os caracterizam Como nos diz Hacker numa circunstacircncia
destas sobretudo agrave luz das ideias filosoacuteficas do TLP ldquo[] as teses do isomorfismo da
grande harmonia entre linguagem e realidade devem ser profundamente confusasrdquo146
Quanto aos proacuteprios conceitos eles podem ter uma descriccedilatildeo interna mas tambeacutem uma
descriccedilatildeo externa a partir dos usos que deles se faccedilam (cf PR 92 94 96 e 98)
Finalmente referir que o caraacutecter conceitual da linguagem sugere que os sistemas de
proposiccedilotildees usam como que esquemas conceituais que permitem determinar a sua
estrutura loacutegica147
145 ldquoWhat belongs to the essence of the world cannot be expressed by languagerdquo ldquoWas zum Wesen der Welt gehoumlrt kann die Sprache nicht ausdruumlckenrdquo (PR 54)
146 ldquo[hellip] the theses of isomorphism of the great harmony between language and reality must be deeply confusedrdquo (HACKER P M S Insight and Illusion ndash Themes in the Philosophy of Wittgenstein p 115)
147 Cf STERN David G Wittgenstein on Mind and Language p 100
90
Capiacutetulo 5 ndash O Pensamento e a Fenomenologia
Assim que um percepto individual para na alma esse eacute o primeiro comeccedilo da presenccedila de um universal (porque embora seja o particular que percebemos o ato de perceccedilatildeo envolve o universal por exemplo homem natildeo um homem Callias)148
O Pensamento a Fenomenologia e a Verificaccedilatildeo
No TLP as regras que estruturam a linguagem satildeo dadas pela anaacutelise que expotildee
atraveacutes da linguagem loacutegica a forma das proposiccedilotildees apresentadas como funccedilotildees
verdade de proposiccedilotildees elementares Jaacute tivemos oportunidade de expor brevemente o
motivo essencial que levou Wittgenstein a abandonar esta linguagem ideal e a ter que
enveredar por outro caminho O que agora importa referir eacute que para o filoacutesofo no
momento em que acaba de regressar agrave filosofia a linguagem comum continua como
naquela obra a natildeo ser apropriada para objeto desta investigaccedilatildeo pois ela admite
proposiccedilotildees sem-sentido e que o uso de um mesmo termo tenha diferentes significados
(cf SRLF pp 29-30) Uma linguagem imune a estes problemas uma laquolinguagem
primaacuteriaraquo teraacute no seu renovado entendimento dos primeiros tempos do ano de 1929 de
surgir natildeo da anaacutelise loacutegica da linguagem comum mas da inspeccedilatildeo do fenoacutemeno a
representar (cf SRLF p 30) Deveraacute ser a investigaccedilatildeo da multiplicidade loacutegica desta
linguagem fenomenoloacutegica a facultar as verdadeiras regras de representaccedilatildeo da
realidade Mas vejamos o que eacute um fenoacutemeno para Wittgenstein ldquoUm fenoacutemeno natildeo eacute
um sintoma de outra coisa eacute a realidaderdquo149 (PR 225) Quer ele dizer a sua experiecircncia
imediata Eacute atraveacutes da anaacutelise desta experiecircncia da sua descriccedilatildeo fenomenoloacutegica que
se chega a uma representaccedilatildeo imediata Cabe assim agrave fenomenologia150 assegurar a
148 ldquoAs soon as one individual percept has come to a halt in the soul this is the first beginning of the presence there of a universal (because although it is the particular that we perceive the act of perception involves the universal eg man not a man Callias)rdquo ldquoστάντος γὰρ τῶν ἀδιαφόρων ἑνός πρῶτον microὲν ἐν τῆι ψυχῆι καθόλου (καὶ γὰρ αἰσθάνεται microὲν τὸ καθ᾽ ἕκαστον ἡ δ᾽ αἴσθησις τοῦ καθόλου ἐστίν οἷον ἀνθρώπου ἀλλ᾽ οὐ Καλλίου ἀνθρώπου)rdquo (ARISTOTLE ldquoPosterior Analyticsrdquo in Posterior Analytics Topica Harvard University Press Cambridge 1960 100b17 p 259)
149 ldquoA phenomenon isnrsquot a symptom of something else it is the realityrdquo ldquoDas Phaumlnomen ist nicht Symptom fuumlr etwas anderes sondern ist die Realitaumltrdquo (PR 225)
150 Para uma comparaccedilatildeo da fenomenologia em Wittgenstein e em Edmund Husserl ver HINTIKKA Jaakko ldquoThe Idea of Phenomenology in Wittgenstein and Husserlrdquo in Wittgenstein Half-Truths and One-
91
representaccedilatildeo imediata do fenoacutemeno isto eacute uma representaccedilatildeo que natildeo introduza
qualquer hipoacutetese na descriccedilatildeo do fenoacutemeno (cf PR 225-226)151 Assim natildeo sucede
poreacutem com as proposiccedilotildees da linguagem comum que se desviam do que eacute dado
diretamente pela realidade quando a conjeturam e que por esse motivo carecem de
sentido e a sua verdade ou falsidade eacute inverificaacutevel (cf PR 225-226 e 228) Como soacute os
fenoacutemenos que nada tecircm de hipoteacutetico podem verificar uma proposiccedilatildeo152 unicamente
se pode averiguar a verdade ou a falsidade das proposiccedilotildees da linguagem
fenomenoloacutegica153 Poreacutem se eacute do domiacutenio da experiecircncia a verificaccedilatildeo da verdade ou
da falsidade de uma proposiccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer do seu sentido (cf PR 23)
Uma proposiccedilatildeo deve o seu sentido exclusivamente agrave possibilidade dessa verificaccedilatildeo a
qual eacute derivada das regras de representaccedilatildeo a que obedece Logo natildeo eacute porque uma
proposiccedilatildeo eacute falsa que ela deixa de ter sentido jaacute que o deve apenas agravequelas regras
Deste modo a gramaacutetica determina o que faz sentido dizer mas tambeacutem o que por
violaccedilatildeo das regras de representaccedilatildeo fenomeacutenica se diz sem-sentido
Contudo em Outubro de 1929 Wittgenstein parece mudar radicalmente de
ideias ao preterir a linguagem fenomenoloacutegica a favor da linguagem comum
A suposiccedilatildeo de que uma linguagem fenomenoloacutegica seria possiacutevel e que realmente diria o que devemos expressar na filosofia eacute - acredito - absurda Temos que nos dar bem com nossa linguagem comum e simplesmente entendecirc-
and-a-Half-Truths Springer Dordrecht 1996 pp 55-77 e MORGAN Matthew R ldquoHusserlian Aspects of Wittgensteinrsquos Middle Periodrdquo in Winfried Loumlffler and Paul Weingartner Knowledge and Belief ndash Papers of the 26th International Wittgenstein Symposium Austrian Ludwig Wittgenstein Society Kirchberg am Wechsel 2003 pp 245-247
151 No BT a linguagem fenomenologia eacute definida precisamente como ldquo[] a descriccedilatildeo da perceccedilatildeo sensorial imediata sem qualquer adiccedilatildeo hipoteacuteticardquo ldquo[] the description of immediate sense perception without any hypothetical additionrdquo ldquo[] Die Beschreibung der unmittelbaren Sinneswahrnehmung ohne hypothetische Zutatrdquo (BT 101 p 349)
152 Como se pode confirmar nesta observaccedilatildeo ldquoUm fenoacutemeno natildeo eacute um sintoma de outra coisa que por si soacute torna a proposiccedilatildeo verdadeira ou falsa eacute ele mesmo que verifica a proposiccedilatildeordquo ldquoA phenomenon isnrsquot a symptom of something else which alone makes the proposition true or false it itself is what verifies the propositionrdquo ldquoDas Phaumlnomen ist nicht Symptom fuumlr etwas anderes was den Satz erst wahr oder falsch macht sondern ist selbst das was ihn verifiziertrdquo (PR 225)
153 Estas proposiccedilotildees podem poreacutem provir de hipoacuteteses uma vez que Wittgenstein as considera leis de formaccedilatildeo de proposiccedilotildees (cf PR 228)
92
la corretamente Natildeo devemos ser por ela tentados a dizer o que eacute sem-sentido154
No mecircs seguinte volta a reafirmar a sua opccedilatildeo pela linguagem comum
Eu natildeo tenho em mente uma linguagem fenomenoloacutegica ou lsquolinguagem primaacuteriarsquo como costumava chamaacute-la como meu objetivo Jaacute natildeo a considero necessaacuteria Tudo o que eacute possiacutevel e necessaacuterio eacute separar o que eacute essencial do que natildeo eacute essencial na nossa linguagem155 (PR 1)
Para Hintikka e Hintikka assiste-se nesta altura a uma rutura definitiva com a
linguagem fenomenoloacutegica com a qual o filoacutesofo esteve desde sempre ateacute aiacute
comprometido passando a adotar a linguagem fiacutesica156 Esta conclusatildeo natildeo eacute partilhada
por Noeuml que faz notar que para Wittgenstein ldquoA nossa linguagem comum eacute tambeacutem
fenomenoloacutegicardquo157 ndash tambeacutem ela eacute capaz de representar a experiecircncia imediata158 Para
este autor Wittgenstein natildeo abandona o projeto filosoacutefico de construir uma linguagem
fenomenoloacutegica mas sim o projeto de a construir como uma linguagem formal com um
simbolismo devidamente apropriado que mostra a estrutura loacutegica do mundo como o
154 ldquoDie Annahme daszlig eine phaumlnomenologische Sprache moumlglich waumlre amp die eigentlich erst das sagen wuumlrde was wir in der Philosophie ausdruumlcken muumlssen || wollen ist ndash glaube ich ndash absurd Wir muumlssen mit unserer gewoumlhnlichen Sprache auskommen amp sie nur richtig verstehen Dh wir duumlrfen uns nicht von ihr verleiten lassen Unsinn zu redenrdquo (BEE MS 107 October 22 1929 p 176)
155 ldquoI do not have a phenomenological language or lsquoprimary languagersquo as I used to call it in mind as my goal I no longer hold it to be necessary All that is possible and necessary is to separate what is essential from what is inessential in our languagerdquo ldquoDie phaumlnomenologische Sprache oder primaumlre Sprache wie ich sie nannte schwebt mir jetzt nicht als Ziel vor ich halte sie jetzt nicht mehr fuumlr noumltig Alles was moumlglich und noumltig ist ist das Wesentliche unserer Sprache von ihrem Unwesentlichen zu sondernrdquo (PR 1 BEE MS 107 November 25 1929 p 205)
156 Cf HINTIKKA Merrill B and Hintikka Jaakko Investigating Wittgenstein Basil Blackwell Oxford 1986 pp 138-139 A linguagem loacutegica do TLP eacute para Hintikka igualmente considerada uma linguagem fenomenoloacutegica (cf HINTIKKA Jaakko ldquoWittgenstein as a Philosopher of Immediate Experiencerdquo in Wittgenstein Half-Truths and One-and-a-Half-Truths Springer Dordrecht 1996 pp 192-194)
157 ldquoUnsere gewoumlhnliche Sprache ist auch phaumlnomenologischrdquo (BEE MS 107 1929 p 3) Precisamente no mesmo sentido ldquoFica claro pelo exposto ndash o que eacute natural aliaacutes - que a linguagem fenomenoloacutegica eacute a mesma do nosso modo fiacutesico de expressatildeo comum e tem a vantagem de se poder expressar de maneira mais breve e menos sujeita a mal-entendidosrdquo ldquoAus dem vorigen geht hervor ndash was uumlbrigens selbstverstaumlndlich ist ndash daszlig die phaumlnomenologische Sprache das selbe darstellt wie unsere gewoumlhnliche physikalische Ausdrucksweise amp nur den Vorteil hat daszlig man mit ihr manches kuumlrzer amp mit geringerer Gefahr des Miszligverstaumlndnisses ausdruumlcken kannrdquo (BEE MS 105 1929 p 122)
158 Cf NOEuml Robert Alva ldquoWittgenstein Phenomenology and What It Makes Sense to Sayrdquo Philosophy and Phenomenology Research Vol LIV Nordm 1 1994 p 16
93
tinha feito no TLP159 Mais recentemente Venturinha considera que a viragem para a
linguagem comum e o consequente abandono da linguagem fenomenoloacutegica que
Hintikka imputa agrave filosofia de Wittgenstein desta fase tem que ver com o dualismo
imediatomediato com que ele caracteriza essas linguagens
Hintikka afirma que existe um fosso entre o que me eacute (imediatamente) dado e a sua expressatildeo (mediatizada) como se pudeacutessemos apreender algo sem que isso estivesse dado na linguagem e no pensamento ndash simultaneamente O dualismo do imediatomediato postulado por Hintikka eacute de facto baseado no antigo pressuposto de uma prioridade do pensamento sobre a linguagem de tal modo que poderiacuteamos ter uma experiecircncia imediata compreendendo-a fenomenologicamente embora natildeo pudeacutessemos expressaacute-la linguisticamente160
A linguagem fenomenoloacutegica seraacute supostamente a linguagem que supera esse fosso a
linguagem do pensamento que permite a representaccedilatildeo natildeo mediatizada da experiecircncia
imediata do fenoacutemeno Ora para Hintikka a linguagem comum para que se vira a
filosofia de Wittgenstein natildeo permite expressar essa experiecircncia e inviabiliza a
fenomenologia Venturinha pelo contraacuterio natildeo concebe uma apreensatildeo da experiecircncia
imediata que natildeo seja mediatizada nem uma linguagem que natildeo mediatize essa
experiecircncia161 Natildeo haacute para ele uma linguagem do pensamento que se distinga da
linguagem com que o pensamento se exprime No seu entender a fenomenologia eacute um
meacutetodo de clarificaccedilatildeo da gramaacutetica da descriccedilatildeo dos factos (cf PR 1)162 Nessa
medida natildeo eacute correto dizer que Wittgenstein abandonou a fenomenologia ao voltar-se
159 Cf idem ibidem p 17
160 ldquoHintikka maintains that there is a gap between what is (immediately) given to me and the (mediate) expression of that as if we could apprehend something without it already being given lsquoin language and in thoughtrsquo ndash simultaneously The dualism of the immediatemediate claimed by Hintikka is actually based on the old presupposition of a priority of thought to language in such a way that we could have an immediate experience understanding it phenomenologically even though we could not express this linguisticallyrdquo (VENTURINHA Nuno ldquoWittgenstein on Heraclitus and Phenomenologyrdquo in Ilse Somavilla e James M Thompson (eds) Wittgenstein and Ancient Thought Parerga Berlin 2012 pp 96-97)
161 Cf idem ibidem pp 97-98 Cf tambeacutem VENTURINHA Nuno Loacutegica Eacutetica Gramaacutetica Wittgenstein e o Meacutetodo da Filosofia pp 278-289
162 Cf VENTURINHA ldquoWittgenstein on Heraclitus and Phenomenologyrdquo pp 99-100
94
para a linguagem comum pois ela ldquo[] aparece como uma simples extensatildeo da nossa
linguagem ndash claramente em oposiccedilatildeo com o que afirma Hintikkardquo163
Esta defesa da continuidade da fenomenologia no pensamento filosoacutefico de
Wittgenstein parece no entanto enfrentar um obstaacuteculo na distinccedilatildeo que ele faz entre as
proposiccedilotildees da linguagem comum que como hipoacuteteses satildeo inverificaacuteveis e da
linguagem fenomenoloacutegica que como representaccedilotildees imediatas da experiecircncia
imediata satildeo propriamente verificaacuteveis Uma distinccedilatildeo que merece a concordacircncia dos
filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena que comungavam com o Wittgenstein de 1929-30 o
mesmo princiacutepio de verificaccedilatildeo do sentido natildeo obstante as diferenccedilas nalguns casos
significativas que os separavam quanto agrave sua aplicaccedilatildeo164 Para Wittgenstein o meacutetodo
de verificaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo determina o seu sentido ldquoComo uma proposiccedilatildeo eacute
verificada eacute o que dizrdquo165 (PR 166) e os dados da experiecircncia imediata satildeo o que
podem verificar o que ela diz166 Logo leis e proposiccedilotildees gerais mas tambeacutem
proposiccedilotildees empiacutericas como hipoacuteteses que satildeo satildeo insuscetiacuteveis de verificaccedilatildeo A
consideraccedilatildeo das proposiccedilotildees empiacutericas como hipoacuteteses deve-se agrave impossibilidade de as
verificar de maneira conclusiva por conseguinte de as verificar de todo (cf PR 226)
Sobre essa impossibilidade fala-nos Wittgenstein de acordo com as notas tomadas por
GE Moore na palestra que proferiu a 9 de fevereiro de 1931
Onde usamos lsquose entatildeorsquo eacute em hipoacuteteses A proposiccedilatildeo tem verificaccedilatildeo ou falsificaccedilatildeo definitiva pe lsquoParece-me que haacute um homem aquirsquo A hipoacutetese eacute como lsquoHaacute um homem aquirsquo em que a experiecircncia futura nos pode obrigar a mudar de hipoacutetese e o importante eacute que natildeo haacute verificaccedilatildeo definitiva hipoacutetese eacute uma regra de acordo com a qual as proposiccedilotildees satildeo construiacutedas
163 ldquo[] the phenomenological ndash in clear opposition to what Hintikka claims ndash appears as a mere extension of our languagerdquo (idem ibidem pp 101-102)
164 Cf HYMERS Michael ldquoGoing around the Vienna Circle Wittgenstein and Verificationrdquo Philosophical Investigations 283 2005 pp 205- 234
165 ldquoHow a proposition is verified is what it saysrdquo ldquoWie eine Satz verifiziert wird das sagt errdquo (PR 166)
166 Acredita Hacker que a tese de que o sentido de uma proposiccedilatildeo eacute a sua verificaccedilatildeo natildeo eacute considerada por Wittgenstein uma teoria da significaccedilatildeo sendo esse aliaacutes o entendimento de Schlick um dos filoacutesofos do Ciclo de Viena melhor considerado por Wittgenstein Seja como for depois dos anos 1929-30 Wittgenstein abandona totalmente esta tese (Cf HACKER P M S Insight and Illusion ndash Themes in the Philosophy of Wittgenstein p 143-145)
95
Suponha lsquoSempre que haacute nuvens choversquo ou lsquoTodos os homens satildeo mortaisrsquo A experiecircncia confirma essa hipoacutetese e podemos confirmar isso matando pessoas mas se natildeo formos bem-sucedidos isso natildeo prova que a hipoacutetese esteja errada167
Portanto quando Wittgenstein decide que a sua filosofia como gramaacutetica deve incidir
sobre a linguagem comum isto eacute sobre hipoacuteteses em detrimento das proposiccedilotildees
fenomenoloacutegicas parece mais uma vez querer deixar para traacutes a fenomenologia Mas
simultaneamente o filoacutesofo afirma que as hipoacuteteses tecircm tambeacutem conexatildeo que natildeo a de
verificaccedilatildeo com a realidade ao regularem a formaccedilatildeo de expectativas
Uma hipoacutetese eacute uma lei para formar proposiccedilotildees
Pode-se tambeacutem dizer Uma hipoacutetese eacute uma lei para formar expectativas Uma proposiccedilatildeo eacute por assim dizer uma seccedilatildeo especiacutefica de uma hipoacutetese168 (PR 228)
Assim natildeo as hipoacuteteses mas de acordo com elas as proposiccedilotildees formadas como
expectativas tecircm um sentido imediato confirmado pela experiecircncia imediata dos
fenoacutemenos
O essencial eacute que eu possa ser capaz de comparar a minha expectativa natildeo apenas com o que deve ser considerado como resposta definitiva (verificaccedilatildeo ou falsificaccedilatildeo) mas tambeacutem com a forma como as coisas estatildeo atualmente Isso por si soacute transforma a expectativa em uma imagem Ou seja deve fazer sentido agora169 (PR 229)
167 ldquoWhere we use lsquoif thenrsquo is in hypotheses Proposition has definite verification or falsification eg acuteThere seems to me to be a man herersquo Hypothesis is like lsquoThere is a man herersquo where future experience may compel us to change hypothesis and important thing is that there is no definite verification hypothesis is a rule according to which propositions are constructed Suppose lsquoWhenever there are clouds it rainsrsquo or lsquoAll men are mortalrsquo Experience bears out this hypothesis and we can confirm it by killing people but if we donrsquot succeed this doesnrsquot prove hypothesis wrongrdquo (STERN David G Brian Rogers and Gabriel Citron (eds) Wittgenstein Lectures Cambridge 1930ndash1933 ndash From the Notes of GE Moore Cambridge University Press Cambridge 2016 pp 118-119)
168 ldquoA hypothesis is a law for forming propositions You could say A hypothesis is a law for forming expectations A proposition is so to speak a particular cross-section of a hypothesisrdquo ldquoEine Hypothese ist ein Gesetz zur Bildung von Saumltzen Man koumlnnte auch sagen Eine Hypothese ist ein Gesetz zur Bildung von Erwartungen Ein Satz ist sozusagen ein Schnitt durch eine Hypothese in einem bestimmten Ortrdquo (PR 228)
96
Eacute deste maneira que a hipoacutetese laquoHaacute um homem aquiraquo pode servir de base agrave formaccedilatildeo da
proposiccedilatildeo verificaacutevel laquoParece-me que haacute um homem aquiraquo Conclui o filoacutesofo que na
verdade a linguagem fenomenoloacutegica natildeo se opotildee agrave linguagem comum desde que esta
descreva sem enviesamento a experiecircncia imediata170
Natildeo haacute como eu acreditava uma linguagem primaacuteria em contraste com a nossa linguagem lsquosecundaacuteriarsquo comum Mas a esse respeito pode-se falar em contraste com a nossa linguagem de uma linguagem primaacuteria desde que natildeo exprima nenhuma preferecircncia por certos fenocircmenos relativamente a outros teria que ser absolutamente factual por assim dizer171 (cf PR 53)
Abre-se deste modo a anaacutelise fenomenoloacutegica ou gramatical agrave linguagem comum na
medida em que a experiecircncia imediata se pode nela manifestar natildeo jaacute como sua
representaccedilatildeo imediata mas como possibilidade mediada dessa representaccedilatildeo172
Por isso Wittgenstein declara que ldquoA fenomenologia estabelece somente as
possibilidadesrdquo173 (PR 1) Eacute deste ponto de vista que de acordo com um sistema de
proposiccedilotildees a verificaccedilatildeo da verdade de uma proposiccedilatildeo se realiza por contraposiccedilatildeo a
todas as possibilidades conhecidas de proposiccedilotildees cuja verificaccedilatildeo pode ser falsa ou
que a verificaccedilatildeo da sua falsidade atende a todas as proposiccedilotildees cuja respetiva
verificaccedilatildeo pode atestar a sua verdade Ela fornece a gramaacutetica do que representamos a
ordem simboacutelica e os esquemas conceptuais donde procedem as possibilidades de
169 ldquoWhats essential is that I must be able to compare my expectation not only with what is to be regarded as its definitive answer (its verification or falsification) but also with how things stand at present This alone makes the expectation into a picture That is to say it must make sense nowrdquo ldquoEs ist das Wesentliche daszlig ich die Erwartung nicht nur mit dem muszlig vergleichen koumlnnen was als die endguumlltige Antwort (Verifikation oder Falsifikation) betrachtet wird sondern auch mit dem gegenwaumlrtigen Stand der Dinge Nur das macht die Erwartung zum Bild Dh Sie muszlig jetzt habenrdquo (PR 229)
170 Cf STERN David G Wittgenstein on Mind and Language pp 158-159
171 ldquoThere is notmdashas I used to believemdasha primary language as opposed to our ordinary language the secondary one But one could speak of a primary language as opposed to ours in so far as the former would not permit any way of expressing a preference for certain phenomena over others it would have to be so to speak absolutely impartialrdquo ldquoEs gibt nicht ndash wie ich fruumlher glaubte ndash eine primaumlre Sprache im Gegensatz zu unserer gewoumlhnlichen der sekundaumlren Aber insofern koumlnnte man im Gegensatz zu unserer Sprache von einer primaumlren reden als in dieser keine Bevorzugung gewisser Phaumlnomene vor anderen ausgedruumlckt sein duumlrfte sie muumlszligte sozusagen absolut sachlich seinrdquo (PR 53)
172 Cf THOMPSON James M Wittgenstein on Phenomenology and Experience An Investigation of Wittgensteinrsquos lsquoMiddle Periodrsquo Publication from the Wittgenstein Archives at the University of Bergen (WAB) Bergen 2008 pp 90-91
173 ldquoPhenomenology only establishes the possibilitiesrdquo ldquoDie Phaumlnomenologie stellt nur die Moumlglichkeiten festrdquo (PR 1)
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representaccedilatildeo isto eacute as regras de uso da linguagem As possibilidades assim
estabelecidas pela gramaacutetica devem ter a mesma multiplicidade loacutegica dos
fenoacutemenos174 Todavia quanto a estas possibilidades Medina sublinha que natildeo sendo
possiacutevel uma linguagem fenomenoloacutegica que seja a voz dos fenoacutemenos a nossa
linguagem comum mais natildeo faz do que nos pocircr a falar por eles
[] em 1929ndash30 Wittgenstein enfatizaraacute que natildeo podemos simplesmente deixar que os fenoacutemenos falem por si mesmos pois sendo eles mudos falamos noacutes por eles175
E noacutes falamos por eles atraveacutes das nossas convenccedilotildees gramaticais que projetam sobre a
realidade como se de uma mediccedilatildeo se tratasse um sistema inferencial de proposiccedilotildees
de tal maneira que a realidade eacute retratada por uma proposiccedilatildeo que eacute por assim dizer
uma medida numa escala176 Para Medina em concordacircncia com Hintikka na
impossibilidade de uma linguagem fenomenoloacutegica a gramaacutetica da linguagem comum
que se mede com a experiecircncia imediata soacute pode ser arbitraacuteria Ora Noeuml nega a direccedilatildeo
desta impossibilidade
Natildeo foi a impossibilidade de uma linguagem fenomenoloacutegica que convenceu Wittgenstein da arbitrariedade da gramaacutetica O inverso eacute a verdade177
Eacute a constataccedilatildeo de que a gramaacutetica da nossa linguagem eacute autoacutenoma relativamente agrave
realidade que leva Wittgenstein a prescindir da fenomenologia como meacutetodo de
investigaccedilatildeo dos fenoacutemenos mas natildeo da investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica enquanto
investigaccedilatildeo gramatical dos usos da linguagem que os descrevem178
174 Cf NOEuml Robert Alva ldquoWittgenstein Phenomenology and What It Makes Sense to Sayrdquo pp 8-9
175 ldquo[] in 1929ndash30 Wittgenstein will emphasize that we cannot simply let the phenomena speak for themselves for they are mute we speak for themrdquo (MEDINA Joseacute The Unity of Wittgensteinrsquos Philosophy ndash Necessity Intelligibility and Normativity p 40)
176 Cf MEDINA Joseacute ibidem p 46 Cf tambeacutem ENGELMANN Mauro Luiz Wittgensteinrsquos Philosophical Development Phenomenology Grammar Method and the Anthropological View p 44
177 ldquoIt was not the impossibility of a phenomenological language that convinced Wittgenstein of the arbitrariness of grammar The converse is the truerdquo (NOEuml Robert Alva ldquoWittgenstein Phenomenology and What It Makes Sense to Sayrdquo pp 24-25)
178 Cf NOEuml Robert Alva ldquoWittgenstein Phenomenology and What It Makes Sense to Sayrdquo p 25
98
A anaacutelise que Wittgenstein faz no PR dos fenoacutemenos do tempo espaccedilo e eu
que de seguida nos propomos apresentar exibe claramente as dificuldades e problemas
de usar a linguagem comum fiacutesica para descrever a experiecircncia imediata destes
fenoacutemenos Mas prova igualmente que natildeo obstante ser essa a linguagem usada pelo
filoacutesofo eacute viaacutevel estabelecer as possibilidades gramaticais de representaccedilatildeo desses
fenoacutemenos Determinar o que nas convenccedilotildees gramaticais da linguagem comum eacute e
natildeo eacute essencial diz respeito ou natildeo ao fenoacutemeno torna-se indispensaacutevel nesta forma
natildeo idealizada de fenomenologia
O Pensamento do Fenoacutemeno e o Tempo
A linguagem retira o seu fundamento do facto de que expressa o sentido que lhe
eacute dado pelos fenoacutemenos Soacute como representaccedilatildeo do mundo a linguagem tem cabimento
Por isso o pensamento que se expressa na linguagem pensa os fenoacutemenos Mas o modo
de pensaacute-los o modo da linguagem se aplicar aos fenoacutemenos eacute como a fita meacutetrica se
aplica agrave extensatildeo de uma mesa ou seja um sistema de proposiccedilotildees eacute por assim dizer
sobreposto ao fenoacutemeno e com ele comparado donde resulta uma medida dada na
proposiccedilatildeo que melhor o descreve A linguagem e o fenoacutemeno devem ser
comensuraacuteveis da mesma maneira espaacutecio-temporal que o eacute a fita meacutetrica e a extensatildeo
de uma mesa (cf PR 48) Eacute sempre num determinado espaccedilo e tempo que se tira e
verifica a medida Mas entatildeo como explicar o pensamento sobre o passado ou o
futuro Com o quecirc se comparam as proposiccedilotildees que expressam esse pensamento Se os
fenoacutemenos satildeo a experiecircncia imediata da realidade como verificar a verdade ou
falsidade das proposiccedilotildees que natildeo se referem ao momento presente O que estaacute aqui em
causa eacute essencialmente a possibilidade de comparaccedilatildeo das proposiccedilotildees com a memoacuteria
das experiecircncias a que se referem e os fenoacutemenos vindouros sobre os quais se formulam
expectativas Esta possibilidade tem poreacutem subjacente uma conceccedilatildeo fiacutesica do curso da
experiecircncia De acordo com ela o tempo eacute um conceito relativo ao movimento dos
corpos daquilo que eacute fiacutesico Diz respeito ao antes e ao depois do que estaacute ao instante
em processo de mudanccedila Presume pois que a nossa experiecircncia imediata se desenrola
igualmente da mesma forma que o tempo fiacutesico em que o presente eacute dado pelo que
continuamente muda sendo o que foi memoraacutevel e o que estaacute para vir expectaacutevel
Devemos aliaacutes agrave memoacuteria o apercebermo-nos do proacuteprio movimento das coisas fiacutesicas
99
e a possibilidade de formarmos expectativas sobre a sua evoluccedilatildeo Eacute como uma
corrente que por vezes chamamos o laquofluxo da vidaraquo que natural e imponderadamente o
mundo se nos apresenta (cf PR 48) E eacute em relaccedilatildeo a esse fluxo que verificamos as
nossas proposiccedilotildees179
No movimento o que estaacute presente deixa a todo o momento de o estar o que se
apresenta estaacute ininterruptamente em fuga Nisto uma imagem sucede a outra imagem
incessantemente Natildeo fosse a memoacuteria e natildeo teriacuteamos consciecircncia de que a imagem
presente eacute contiacutenua com a imagem que passou nem seria possiacutevel dar conta de uma
eventual unidade de sentido na evoluccedilatildeo das imagens que permitisse criar expectativas
acerca das imagens porvir Assim a memoacuteria torna as imagens passadas ordenadas de
um certo modo coevas das imagens imediatas agrave realidade180 A sua funccedilatildeo eacute pois
preservar a atualidade das imagens apesar de natildeo serem mais imagens imediatas da
realidade Ora se a memoacuteria permite-nos perceber o desenrolar do tempo no movimento
fiacutesico as imagens residentes na memoacuteria satildeo atemporais Essas imagens natildeo satildeo como
fossem fotografias da realidade de outrora que guardamos na gaveta e que sempre que
o desejamos recuperamos por assim dizer a sua presenccedila real e atraveacutes delas eacute como
se a olhaacutessemos de novo recordando a realidade por elas fixada A conceccedilatildeo fiacutesica do
tempo natildeo vigora no domiacutenio das imagens (cf PR 49) Eacute pois liacutecito dizer segundo as
proacuteprias palavras do filoacutesofo que
A memoacuteria e a realidade devem estar em um soacute espaccedilo Eu posso tambeacutem dizer a imagem e a realidade estatildeo em um soacute espaccedilo181 (PR 38)
A experiecircncia imediata eacute esse espaccedilo comum agrave realidade e agrave imagem Eacute com a
experiecircncia imediata que a proposiccedilatildeo se mede eacute nela que a proposiccedilatildeo verifica a sua
179 ldquoA corrente da vida ou a corrente do mundo flui e as nossas proposiccedilotildees satildeo por assim dizer verificadas apenas em instantesrdquo ldquoThe stream of life or the stream of the world flows on and our propositions are so to speak verified only at instantsrdquo ldquoDer Strom des Lebens oder der Strom der Welt fliacuteeszligt dahin und unsere Saumltze werden sozusagen nur in Augenblicken verifiziertrdquo (PR 48)
180 Cf ENGELMANN Mauro Luiz Wittgensteinrsquos Philosophical Development Phenomenology Grammar Method and the Anthropological View p 54
181 ldquoThe memory and the reality must be in one space I could also say the image and the reality are in one spacerdquo ldquoDie Erinnerung und die Wirklichkeit muumlssen in einem Raum sein Ich kann auch sagen Die Vorstellung und die Wirklichkeit sind in einem Raumrdquo (PR 38)
100
conformidade Tambeacutem a proposiccedilatildeo acerca do passado aacute semelhanccedila da proposiccedilatildeo
relativa ao presente mede-se com o fenoacutemeno Contudo para nessa experiecircncia se
discernir o movimento e conceber o tempo fiacutesico ela tem de permitir destacar a imagem
imediata da imagem memorada Para se notar a sucessatildeo de imagens eacute preciso que as
imagens sucedidas natildeo se confundam com a imagem que sucede O filoacutesofo acaba pois
por conceder que possa existir uma qualquer forma temporal no mundo das imagens
muito embora radicalmente diferente do tempo fiacutesico (cf PR 50) No entanto se as
proposiccedilotildees que descrevem a situaccedilatildeo presente podem ser verificadas pela experiecircncia
imediata dessa situaccedilatildeo as proposiccedilotildees que se referem ao passado denotam meramente
uma crenccedila que nenhuma fonte histoacuterica suscetiacutevel de experiecircncia imediata pode
decidir a sua verdade ou falsidade A condiccedilatildeo geral para a verificaccedilatildeo das proposiccedilotildees
eacute dada por Wittgenstein sob a forma de interrogaccedilatildeo ldquoNatildeo eacute tudo o que quero dizer
entre a proposiccedilatildeo e a sua verificaccedilatildeo natildeo haacute intermediaacuterios negociando esta
verificaccedilatildeordquo182 (PR 56) Logo a crenccedila substitui-se agrave verdade ou falsidade das
proposiccedilotildees quando estas remetem para factos jaacute ocorridos e dos quais eacute impossiacutevel ter
experiecircncia imediata a natildeo ser das proacuteprias fontes histoacutericas Mas adverte
Wittgenstein que soacute se acredita no que imaginamos ter alguma forma de verificaccedilatildeo (cf
PR 59)
A mencionada condiccedilatildeo geral para a verificaccedilatildeo das proposiccedilotildees suporta
igualmente a conclusatildeo de que as proposiccedilotildees que se referem ao futuro natildeo podem ser
verificadas senatildeo como uma resposta do futuro volvido presente Daiacute que naturalmente
as proposiccedilotildees de expectativa ou desejo aquando da sua enunciaccedilatildeo e enquanto assim
permanecerem natildeo podem ser confirmadas sendo outras proposiccedilotildees a dar conta da
realidade emergente (cf PR 26) Espera-se ou deseja-se precisamente o que ao
momento eacute diverso da realidade Na verdade as proposiccedilotildees de expectativa satildeo como
uma busca por algo que se conhece e por conseguinte se antecipa e pretende que
venha a ser realidade (cf PR 28) Eacute como se a sua verificaccedilatildeo fosse continuamente
diferida ateacute ao momento em que a realidade respondendo-lhe se substitui agrave expectativa
confirmando-a ou negando-a A realizaccedilatildeo da expectativa de p significa apenas p e a sua
natildeo realizaccedilatildeo ~p (cf PR 25 e 26) E eacute claro que a realidade dada por p eacute totalmente
182 ldquoIsnrsquot all that I mean between the proposition and its verification there is no go-between negotiating this verificationrdquo ldquoIst nicht alles was ich meine daszlig es zwischen dem Satz und seiner Verifikation nicht noch ein Mittelglied gibt das diese Verifikation vermitteltrdquo (PR 56)
101
independente da expectativa de p e o que eacute verificado eacute p ou ~p e natildeo a expectativa de
p
Assim para Wittgenstein a realidade eacute simplesmente a experiecircncia do tempo
presente (cf PR 54 e 56) Ela eacute a experiecircncia imediata dos fenoacutemenos Para tornar mais
claro o que quer significar com esta conclusatildeo ele faz uso do caso da peliacutecula de filme
projetada na tela Atraveacutes deste caso estabelece uma analogia entre a relaccedilatildeo da
peliacutecula de filme com a imagem projetada e a relaccedilatildeo dos factos fiacutesicos com a sua
experiecircncia imediata (cf PR 51) Ao contraacuterio da peliacutecula que se desenrola na bobine
para ser projetada o filme que se desenrola na tela natildeo tem um antes e um depois
apenas a imagem projetada Do mesmo modo o passado e o futuro ocorrem com a
sucessatildeo dos factos fiacutesicos mas natildeo na experiecircncia imediata desses factos Esta tal
como o filme na tela eacute constituiacuteda somente pelo presente Por este motivo a linguagem
que apenas se pode referir agrave realidade natildeo pode dizer que no mundo tudo flui embora
isso se possa depreender da proacutepria aplicaccedilatildeo da linguagem isto eacute das proposiccedilotildees que
representam a realidade (cf PR 47 e 54)183 Mas se assim eacute dizer que a realidade ou a
experiecircncia imediata dela eacute tatildeo-soacute o presente torna o seu sentido redundante pois ao
dizer-se que ela eacute presente pressupotildee-se que ela poderia ser o passado ou futuro ndash o que
natildeo eacute o caso A experiecircncia imediata eacute um o espaccedilo sem limite sem outro espaccedilo que o
contenha e por conseguinte a linguagem que apenas intenta a sua descriccedilatildeo natildeo tem a
possibilidade de uma aplicaccedilatildeo exterior a esse espaccedilo de maneira a poder relatar o que
nele se passa da mesma forma que o fazemos relativamente ao movimento fiacutesico Este
mesmo facto permite concluir que a linguagem natildeo pode expressar a essecircncia do
mundo ainda que a essecircncia da linguagem as suas regras de representaccedilatildeo gramatical
possa ser uma sua figuraccedilatildeo Eacute pois do acircmbito proacuteprio da filosofia descrever a essecircncia
do mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo das regras de representaccedilatildeo identificando deste modo o
que natildeo pode ser dito E a linguagem soacute pode dizer o que eacute verificaacutevel pela experiecircncia
imediata Se tomarmos como referecircncia o tempo fiacutesico aparente o laquopresenteraquo eacute tudo o
que podemos conhecer O mesmo eacute dizer que soacute podemos conhecer os fenoacutemenos Eis
183 Para uma discussatildeo aprofundada da relaccedilatildeo entre a fenomenologia em Wittgenstein e a ideia atribuiacuteda a Heraclito de que ldquotudo fluirdquo e de que ldquonatildeo se pode pisar duas vezes no mesmo riordquo ver STERN David G ldquoHeraclitusrsquo and Wittgensteinrsquos River Images Stepping Twice into the Same Riverrdquo The Monist ndash An International Quarterly Journal of General Philosophical Inquiry Vol 74 Nordm 4 1991 pp 579-604 NOEuml Robert Alva ldquoWittgenstein Phenomenology and What It Makes Sense to Sayrdquo ibidem pp 1-42 e VENTURINHA Nuno ldquoWittgenstein on Heraclitus and Phenomenologyrdquo pp 85-110
102
o que parece ser segundo Wittgenstein a uacuteltima consequecircncia do solipsismo (cf PR
54)
Mas se o fenoacutemeno natildeo tem tempo jaacute a linguagem eacute uma expressatildeo temporal do
pensamento A possibilidade de descriccedilatildeo da linguagem reside apenas no facto dos seus
signos pertencerem agrave fiacutesica No mesmo sentido a linguagem enquanto signo falado e
escrito desenrola-se no tempo fiacutesico Na metaacutefora da peliacutecula de filme projetada na tela
o signo linguiacutestico eacute algo na peliacutecula de filme que enquanto se desenrola de modo a
projetaacute-lo tem como ele uma natureza fugaz O desenrolar da fala no filme eacute
movimento na medida que as proposiccedilotildees ditas se substituem a outras acabadas de
dizer deixando atraacutes de si toda uma sucessatildeo ordenada de proposiccedilotildees enunciadas e
fazendo eventualmente adivinhar agrave sua frente outras proposiccedilotildees a enunciar (cf PR 69
70 e 75) As proposiccedilotildees que ao descrever a realidade fisicamente se sucedem
evidenciam por si mesmas o tempo fiacutesico e remetem-nos ao tempo da memoacuteria As
proposiccedilotildees que se referem ao tempo descrevem precisamente esse tempo da memoacuteria
(cf PR 75) E esse tempo natildeo eacute uma ilusatildeo como natildeo eacute tambeacutem o tempo fiacutesico da
sucessatildeo de proposiccedilotildees Tudo isto eacute assim porque apesar do fenoacutemeno natildeo estar no
tempo ele conteacutem tempo (cf PR 69 e 75) Ele mesmo natildeo tem um antes e um depois
de um agora que se atualiza indefinidamente mas conteacutem todos esses momentos a que
as proposiccedilotildees se referem Mas natildeo eacute sem equiacutevocos que a linguagem cujo tempo eacute
fiacutesico descreve os fenoacutemenos que estatildeo fora desse tempo O que faz com que
Wittgenstein se interrogue ldquoMas como pode uma linguagem fiacutesica descrever o
fenomenalrdquo184 (PR 68)
O Pensamento do Fenoacutemeno o Espaccedilo e a lsquoMinharsquo Experiecircncia
A resposta que o filoacutesofo daacute a esta questatildeo eacute firme e clara
184 ldquoBut how can a physical language describe the phenomenalrdquo ldquoWie kann aber eine physikalische Sprache das Phaumlnomen beschreibenrdquo (PR 68)
103
Os piores erros filosoacuteficos surgem sempre quando tentamos aplicar a nossa linguagem ndash fiacutesica ndash comum na aacuterea do imediatamente dado185 (PR 57)
A epistemologia ao dedicar muitas das suas proposiccedilotildees a situaccedilotildees fisicamente
impossiacuteveis natildeo tem certamente em vista a verdade ou a falsidade dessas proposiccedilotildees
Abundam aliaacutes no discurso filosoacutefico muitas proposiccedilotildees sobre as quais natildeo se procura
saber da sua verdade ou falsidade (cf PR 60) Assim se passa com as proposiccedilotildees
filosoacuteficas que se referem agrave experiecircncia imediata como sendo a experiecircncia de um
indiviacuteduo algo que ele possui ndash a laquominha experiecircnciaraquo Ora natildeo eacute possiacutevel aceder agrave
experiecircncia do outro para em oposiccedilatildeo afirmar que esta experiecircncia e natildeo essa outra eacute
minha Soacute se conhece sem mais a experiecircncia e esta soacute apresenta o outro fisicamente
individualizado indiviacuteduo entre indiviacuteduos fiacutesicos e jamais o apresenta como algo
separado pela sua proacutepria experiecircncia Wittgenstein daacute alguns exemplos de usos da
linguagem que ao assumirem a individuaccedilatildeo pela experiecircncia satildeo sem sentido Esses
exemplos descrevem a circunstacircncia de que os meus dados dos sentidos ou do sentir natildeo
satildeo os de outros ou os deles natildeo satildeo os meus Dizer que laquoEu tenho uma dor de dentesraquorsquo
ou que laquoEle tem uma dor dentesraquo envolve a possibilidade loacutegica de distinguir uma da
outra dor de dentes mas como comparaacute-las Como diferenciaacute-las por exemplo quanto
agrave intensidade Natildeo posso colocar-me no lugar do outro e dizer que a dor de dentes que
tive eacute agora a dessoutro como se diz-nos o filoacutesofo estivesse a dizer que a carteira que
esteve na minha matildeo estaacute agora na dele Mas igualmente sem sentido eacute a proposiccedilatildeo
laquoEu sinto a minha dor dentesraquo como fizesse sentido dizer laquoEu natildeo sinto a dor de dentes
que tenhoraquo Poder-se-aacute no entanto argumentar que apenas as dores de cada um porque
somente cada um as sente permitem verificar a proposiccedilatildeo laquoEu estou com doresraquo e que
as dores de mais ningueacutem podem verificaacute-la O que aqui ao fim e ao cabo estaacute em
causa eacute a proposiccedilatildeo laquoEu natildeo posso sentir a tua dor de dentesraquo Mas esta proposiccedilatildeo ao
admitir a possibilidade de sentir a dor de dentes na boca de outrem eacute sem sentido ou
mesmo absurda (cf PR 61 62 e 63)
Enfim nada na experiecircncia dada no sentimento de dor permite distinguir que ele
eacute laquomeuraquo (cf PR 63)186 A situaccedilatildeo eacute bem diferente quando na proposiccedilatildeo laquoEu estou
185 ldquoThe worst philosophical errors always arise when we try to apply our ordinary ndash physical ndash language in the area of the immediately givenrdquo ldquoDie aumlrgsten philosophischen Irrtuumlmer entstehen immer wenn man unsere gewoumlhnliche ndash physikalische ndash Sprache im Gebiet des unmittelbar Gegebenen anwenden willrdquo (PR 57)
104
com doresraquo ela refere-se natildeo ao sentimento de dor mas antes ao facto de ser a minha
boca que a pronuncia ou a certos comportamentos caracteriacutesticos ligados a um corpo
que me individualiza Esta mesma proposiccedilatildeo pronunciada por uma outra boca
distingue a dor como propriedade de um corpo alheio Do mesmo modo na proposiccedilatildeo
laquoEle estaacute com doresraquo o laquoeleraquo diz respeito a um outro corpo cujos comportamentos
correspondem agrave sua dor Mas natildeo nos iludamos com a possibilidade da experiecircncia de
um certo padratildeo de comportamentos de um outro corpo ser uma manifestaccedilatildeo da sua
dor de uma interioridade de que natildeo temos experiecircncia O erro estaacute em considerar
determinadas configuraccedilotildees de comportamentos de outros corpos como manifestaccedilotildees
de sentimentos Eacute por este motivo que para Wittgenstein a proposiccedilatildeo laquoEle estaacute com
doresraquo tem exatamente o mesmo sentido quer os comportamentos padratildeo supostamente
indiquem que ele tem efetivamente dores quer esses comportamentos correspondam
apenas a uma dissimulaccedilatildeo Se esse padratildeo de comportamentos eacute ou natildeo uma
manifestaccedilatildeo de sentimentos tal natildeo eacute dado verificar na experiecircncia imediata Ela natildeo
autoriza que o mesmo quadro de comportamentos que o meu corpo revela quando sinto
dores uma vez presente em outro corpo possa na verdade implicar que esse corpo sente
as mesmas dores que eu senti (cf PR 64 e 65) A semelhanccedila de comportamentos entre
corpos que morfoloacutegica e fisiologicamente se parecem natildeo permite inferir a partir do
ponto de vista da experiecircncia de um desses corpos a partilha de uma experiecircncia
semelhante nem sequer que ambos satildeo capazes da experiecircncia que satildeo dotados de uma
interioridade por detraacutes de um corpo As analogias ao fazerem inferecircncia do conhecido
para o desconhecido como fosse possiacutevel deduzir da experiecircncia o que natildeo temos
experiecircncia satildeo uma armadilha do pensamento Ela cria a ilusatildeo de se poder desta
maneira conhecer o que natildeo eacute contemplado na experiecircncia imediata dos fenoacutemenos
Wittgenstein recorre ironicamente agrave analogia para avisar os incautos sobre justamente
os perigos de certo tipo de analogia ldquoOs filoacutesofos que acreditam que se pode por assim
dizer ampliar a experiecircncia atraveacutes do pensamento devem lembrar-se que se pode
transmitir discurso atraveacutes do telefone mas natildeo sarampordquo187 (PR 66)
186 Sublinhe-se a recusa de Wittgenstein de que os sentimentos possam ser princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo obstante em qualquer dos casos de maneira alguma a sua investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica potildee em causa a experiecircncia dos sentimentos
187 ldquoPhilosophers who believe you can in a manner of speaking extend experience by thinking ought to remember that you can transmit speech over the telephone but not measlesrdquo ldquoDie Philosophen die glauben daszlig man im Denken die Erfahrung gleichsam ausdehnen kann sollten daran denken daszlig man durch Telefon die Rede aber nicht die Masern uumlbertragen kannrdquo (PR 66)
105
Eacute assim sem-sentido toda a proposiccedilatildeo que atribui a si ou a outros uma dor um
sentimento Nada na experiecircncia do sentimento permite radicar a noccedilatildeo de lsquoeursquo Essa
experiecircncia natildeo mostra algueacutem separado e senhor do que sente Ela natildeo individualiza Eacute
claro que o sentimento eacute percecionado e no caso do sentimento de dor essa perceccedilatildeo eacute
desagradaacutevel Assim da mesma maneira que imaginamos que este sentimento nos
pertence tambeacutem imaginamos que ele possa ser pertenccedila de outros que outros possam
ter a mesma perceccedilatildeo desagradaacutevel de dor Mas eacute igualmente imaginaacutevel que uma
cadeira possa ter dores muito embora se possa considerar tal imagem como um
disparate uma fantasia sem qualquer aderecircncia agrave realidade Wittgenstein ldquo[] acredita
que eacute claro que dizemos que outras pessoas tecircm dores no mesmo sentido que dizemos
que uma cadeira natildeo as temrdquo188 (PR 65) Esse sentido comum eacute dado pela imaginaccedilatildeo
mas natildeo pela experiecircncia Imaginamos sem nunca poder verificar que o sentimento eacute
possiacutevel em outros corpos separados deste corpo que sente Mas a este propoacutesito o
filoacutesofo lanccedila um repto agrave nossa imaginaccedilatildeo como seria a experiecircncia num corpo que
fosse composto por dois organismos separados (cf PR 66) Estamos obviamente
perante uma situaccedilatildeo fantaacutestica que nem a experiecircncia nem a inferecircncia analoacutegica que
fazemos a partir dela nos permitem conceber a natureza de uma tal experiecircncia No
entanto a situaccedilatildeo deixa-nos na duacutevida quanto agrave possibilidade da individuaccedilatildeo corpoacuterea
e consequentemente da ligaccedilatildeo do sentimento a um corpo Muito provavelmente
deixaria de haver razatildeo para o uso do laquoeuraquo e dos restantes pronomes pessoais O espaccedilo
da imaginaccedilatildeo analoacutegica ou da fantasia natildeo constitui fundamento para tomar como
verdade o que a experiecircncia natildeo confirma Natildeo admira pois que a investigaccedilatildeo
fenomenoloacutegica-gramatical natildeo sustente o pensamento de que existe a experiecircncia
pessoal assim como de tempo delimitado e como veremos mais adiante de campo
visual homogeacuteneo (cf PR 66)
Uma objeccedilatildeo que se pode alegar contra a ideia de que o eu natildeo eacute algo de que se
tenha experiecircncia eacute que a experiecircncia do espaccedilo visual parece partir sempre de um
mesmo corpo que abarca e integra esse espaccedilo Deste ponto de vista o eu corresponde
ao corpo ao todo indiviso e agraves suas partes que a todo o momento pode integrar na
proximidade mais imediata dir-se-ia mesmo iacutentima de quem olha o seu campo de
visatildeo Esse todo inteiro donde se lanccedila o olhar torna-se naturalmente corpo proacuteprio
188 ldquo[] believe itrsquos clear we say other people have pains in the same sense as we say a chair has nonerdquo ldquo[hellip] glaube es ist klar daszlig man in demselben Sinne sagt daszlig andere Menschen Schmerzen haben in welchem man sagt daszlig ein Stuhl keine hatrdquo (PR 65)
106
diverso de outros corpos presentes no mesmo campo visual Mas para Wittgenstein o
corpo e os dois olhos que vecircm ou a sua posiccedilatildeo natildeo satildeo justificaccedilatildeo para divisar um
sujeito que representa o espaccedilo visual (cf PR 71)189 O olho que por hipoacutetese natildeo
tivesse a faculdade de se ver a si mesmo e ao corpo de que faz parte natildeo poderia
localizar-se no espaccedilo visual apesar de natildeo deixar por esse motivo de visualizar o
espaccedilo A visatildeo do espaccedilo natildeo necessita de um corpo proacuteprio como fosse atraveacutes dele
que o espaccedilo eacute visualizado Jaacute a ideia de que eacute atraveacutes do globo ocular que se tem a
visatildeo do mundo eacute da mesma ordem da visatildeo do mundo atraveacutes de uma janela Nessa
ordem de ideias o olhar fixo por detraacutes de uma janela focado apenas no que se passa
para aleacutem dela e que natildeo se pode ver a si mesmo apenas vecirc atraveacutes da janela Poreacutem eacute
certamente escusado dizer que natildeo eacute a janela que nos permite ver e que ela natildeo eacute corpo
proacuteprio Ora o mesmo pode ser dito sobre o que se designa por globo ocular ou corpo
proacuteprio (cf PR 72)
No entanto poder-se-aacute ainda argumentar que a proacutepria noccedilatildeo de espaccedilo parece
requerer um corpo proacuteprio Ela surge na profundidade da visatildeo projetada a partir de um
ponto de vista dado pelo que olha donde se vislumbram objetos de dimensatildeo variaacutevel e
mais ou menos afastados entre si relativamente a esse ponto Mas tambeacutem surge no
movimento desse corpo com a perceccedilatildeo de aproximaccedilatildeo ou de afastamento de outros
corpos de aumento ou de diminuiccedilatildeo da sua dimensatildeo O que Wittgenstein diz acerca
destes argumentos eacute de que eles nada mais fornecem que ldquopuras informaccedilotildees
geomeacutetricasrdquo e que apenas dizem respeito aos objetos (cf PR 73) Nenhum sujeito estaacute
contido ou pressuposto na geometria do espaccedilo visual Natildeo obstante a noccedilatildeo de espaccedilo
eacute ainda suscitada pelo volver do corpo necessaacuterio para enxergar os objetos fora de um
determinado campo de visatildeo Seja para onde for que ele se vire ele estaacute absolutamente
inserido no espaccedilo que continuamente o cerca e cobre Eacute a possibilidade das alteraccedilotildees
do campo de visatildeo permitidas pelo volver do corpo que estaacute na base desta noccedilatildeo O
189 A exigecircncia de uma descriccedilatildeo tanto quanto possiacutevel exata da experiecircncia imediata dos fenoacutemenos requer que se atenda somente agrave experiecircncia e agraves possibilidades de representaccedilatildeo da linguagem excluindo quaisquer outros elementos que nisso introduzam hipoacuteteses A objetividade eacute essencial ao conhecimento dos fenoacutemenos para que possam revelar a verdadeira estrutura gramatical da nossa linguagem Daiacute que Wittgenstein negue a necessidade de referecircncia a um sujeito e a um corpo para a compreensatildeo da forma do fenoacutemeno do espaccedilo mas tambeacutem do tempo e das cores Estes fenoacutemenos devem ser descritos de modo independente do sujeito ou da sua subjetividade Supotildee-se que a experiecircncia imediata eacute uma experiecircncia que corresponde de modo transparente agrave realidade e que a objetividade eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria agrave possibilidade de expor claramente a sua estrutura e de ser verdadeiro o que dela se falar Estaacute pois completamente posta de parte o que eacute particular na experiecircncia privada da realidade (Cf ENGELMANN Mauro Luiz Wittgensteinrsquos Philosophical Development Phenomenology Grammar Method and the Anthropological View pp 20-22)
107
espaccedilo eacute deste modo constituiacutedo por todas as possibilidades de campos visuais
distintos sendo contiacutenua a sua sucessatildeo Para o filoacutesofo a noccedilatildeo de espaccedilo seria
essencialmente diferente sem o sentimento da capacidade de volver o corpo (cf PR 73)
Um olho imoacutevel ou a visatildeo de olhos fechados natildeo faria ideia do espaccedilo agrave sua volta (cf
PR 73 e 74) Natildeo eacute unicamente o visual que sustenta a noccedilatildeo comum de espaccedilo mas
esses sentimentos residentes no corpo em movimento (cf PR 74) Satildeo eles jaacute o vimos
que parecem destacar o eu por oposiccedilatildeo ao outro Mas tambeacutem jaacute sabemos que a anaacutelise
fenomenoloacutegica-gramatical natildeo encontra qualquer fundamento para o eu de base
afetiva O espaccedilo visual natildeo conteacutem um sujeito mas somente objetos Por isso entende
Wittgenstein que a proacutepria expressatildeo laquoespaccedilo visualraquo eacute equiacutevoca ao pressupor que a
visatildeo eacute de um oacutergatildeo ocular como se esta precisasse de um dono E sendo assim ela eacute
inapropriada agrave linguagem fenomeacutenica (cf PR 74)
Uma derradeira objeccedilatildeo assinala a construccedilatildeo subjetiva do espaccedilo visual De
facto mais ningueacutem consegue ver o meu nariz como eu o vejo A visatildeo espacial eacute neste
sentido minha pertenccedila E o ver eacute uma construccedilatildeo do sujeito que vecirc O sujeito pode ateacute
natildeo ser os objetos que vecirc (o corpo proacuteprio e os seus membros) mas decerto eacute o que eacute
capaz da construccedilatildeo subjetiva dos objetos em geral O eu eacute pois o que ao separar o que
eacute visto da sua visatildeo ao descobrir-se a si no olhar intencional subjetiva o espaccedilo visual
Ou seja o sujeito eacute aquele cuja visatildeo naturalmente subjetiva o espaccedilo Em resposta a
esta objeccedilatildeo Wittgenstein sublinha que tomando como base o espaccedilo visual o que eacute
construiacutedo eacute o espaccedilo objetivo contra o qual aquele eacute designado de subjetivo (cf PR
71) A ideia da subjetividade do espaccedilo visual ergue-se a partir da presunccedilatildeo da
objetividade do espaccedilo (laquoa coisa em siraquo) e de que haacute um sujeito separado do objeto pela
impossibilidade de o ver tal qual ele eacute senatildeo segundo o seu proacuteprio modo de o ver (laquoa
coisa para siraquo) Mas na verdade natildeo haacute nada na experiecircncia que permita afirmar esse
espaccedilo objetivo que serviria agrave distinccedilatildeo de uma subjetividade Tudo a que temos acesso
eacute agrave experiecircncia do espaccedilo visual Natildeo haacute pois outros objetos que natildeo sejam os dessa
experiecircncia sobre a qual fazemos a sua representaccedilatildeo E faz notar o filoacutesofo a
experiecircncia imediata natildeo conteacutem qualquer contradiccedilatildeo e natildeo necessita de qualquer
explicaccedilatildeo (cf PR 74) Conclui assim Wittgenstein ldquoO que eacute essencial eacute que a
108
representaccedilatildeo do espaccedilo visual eacute a representaccedilatildeo de um objeto e ela natildeo conteacutem
qualquer sugestatildeo de um sujeitordquo190 (PR 71)
O uso comum da linguagem obedece frequentemente agrave estrutura sintaacutetica
sujeito-objeto e contudo o sujeito natildeo tem qualquer presenccedila na experiecircncia imediata
dos fenoacutemenos Quando escrutinado o seu uso pela anaacutelise fenomenoloacutegica o sujeito
como vimos eacute reduzido a uma mera hipoacutetese que distorce a verdadeira estrutura loacutegica
do mundo Aquela estrutura sintaacutetica natildeo eacute a representaccedilatildeo correta da estrutura loacutegica
dos fenoacutemenos E no que diz respeito ao fenoacutemeno do espaccedilo visual este natildeo eacute o
espaccedilo fiacutesico que o eu apreende mas o espaccedilo como eacute dado na experiecircncia imediata
isto eacute como configuraccedilotildees de objetos fenomeacutenicos onde o sujeito natildeo tem presenccedila
Thompson resume do seguinte modo a conclusatildeo a que chega Wittgenstein
Ele estaacute convencido de que com a adoccedilatildeo do que foi chamado de linguagem lsquomenos-eursquo [I-less] daremos um passo gigantesco no sentido de reconhecer um perigo oculto na estrutura da sintaxe Por outro lado o fato de podermos navegar com sucesso nas nossas vidas diaacuterias sem a lsquoestrutura do Eu-sujeitorsquo serve para demonstrar o seu papel supeacuterfluo e portanto natildeo essencial na nossa linguagem191
As proposiccedilotildees da linguagem comum que descrevem o fenomeacutenico teratildeo pois de
prescindir do uso do sujeito Essa eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a verificaccedilatildeo da sua
verdade ou falsidade
190 ldquoThe essential thing is that the representation of visual space is the representation of an object and contains no suggestion of a subjectrdquo ldquoDas Wesentliche ist daszlig die Darstellung des Gesichtsraums ein Objekt darstellt und keine Andeutung eines Subjekts enthaltrdquo (PR 71)
191 ldquoHe is convinced that with the adoption of what has become referred to as the ldquoI-lessrdquo language we will have taken a giant step towards recognizing a danger hidden in the syntax structure Conversely that we can successfully navigate our daily lives without the ldquoI-subject structurerdquo serves to demonstrate its superfluous hence non-essential role in our languagerdquo (THOMPSON James M Wittgenstein on Phenomenology and Experience An Investigation of Wittgensteinrsquos lsquoMiddle Periodrsquo p 96)
109
Capiacutetulo 6 ndash O Pensamento e a Eacutetica
E no entanto atraacutes de um siacutembolo por mais trivial que ele seja por mais apta que seja a ratio analoacutegica para ser analisada nunca estaacute um facto mas um anseio compreensivo que pode ser infinito uma tensatildeo que pode natildeo conhecer afrouxamento Embora ldquoDeus eacute nosso pairdquo implique um sistema analoacutegico a anaacutelise da sua ratio natildeo conhece limites pois supotildee uma visatildeo com origem numa afinidade192
A Inefabilidade da Experiecircncia do Pensamento
O pensamento natildeo eacute um fenoacutemeno ele natildeo eacute um facto fiacutesico de que se possa ter
experiecircncia imediata Natildeo existe pois uma fenomenologia do pensamento Logo natildeo
se pode testar a veracidade das proposiccedilotildees que a ele se refiram Tais proposiccedilotildees satildeo
logicamente sem-sentido Contudo temos a experiecircncia da representaccedilatildeo dos
fenoacutemenos de que faz parte a proacutepria linguagem Esta na medida em que eacute expressa por
signos linguiacutesticos escritos ou orais estaacute ao mesmo niacutevel de outros fenoacutemenos de que
naturalmente temos experiecircncia Eacute precisamente este facto que os torna comensuraacuteveis
isto eacute passiacuteveis de serem comparados de tal maneira que o fenoacutemeno da linguagem
pode representar outros fenoacutemenos No entanto eacute ao simboacutelico que cabe a funccedilatildeo de
representaccedilatildeo estabelecer uma ligaccedilatildeo determinada dos signos aos fenoacutemenos Mas ao
contraacuterio do signo linguiacutestico o simboacutelico natildeo eacute ele mesmo um fenoacutemeno Se eacute
inegaacutevel que deles tenhamos experiecircncia o significado das palavras e o sentido das
proposiccedilotildees natildeo satildeo objetos de experiecircncia imediata Satildeo efetivamente os fenoacutemenos
que nos mostram o pensamento na sua intenccedilatildeo de representar simbolicamente a
realidade Poreacutem a linguagem simboacutelica eacute incapaz de se pronunciar com sentido sobre a
experiecircncia do simboacutelico Esta eacute a razatildeo pela qual eacute sem-sentido o que se possa dizer
sobre o pensamento
No mesmo alinhamento de ideias do TLP as PR concluem pela impossibilidade
de pensar o pensamento E como vimos anteriormente esta conclusatildeo natildeo eacute abalada
pelos resultados da investigaccedilatildeo da aprendizagem primaacuteria da linguagem da formaccedilatildeo
original do significado das palavras e do sentido das proposiccedilotildees A linguagem natildeo eacute
192 MOLDER Maria Filomena Siacutembolo Analogia e Afinidade Ediccedilotildees Vendaval Lisboa 2009 p 55
110
capaz de expressar como eacute que atraveacutes dessa aprendizagem passamos a usar de maneira
determinada as palavras Natildeo eacute possiacutevel pocircr em palavras o modo como se constituiacuteram
os seus significados E o mesmo tambeacutem podemos dizer da formaccedilatildeo original do
sentido das proposiccedilotildees (cf PR 5 6 12 e 14) No entanto como eacute salientado por
Wittgenstein a aprendizagem de uma linguagem natildeo eacute possiacutevel sem comeccedilarmos a
pensar nela (cf PR 5) Mas desde logo essa aprendizagem tem lugar numa experiecircncia
de pensamento inefaacutevel que sobre ela o proacuteprio pensamento natildeo eacute capaz de expressar-
se com sentido Na verdade tambeacutem a aprendizagem natildeo eacute do domiacutenio da experiecircncia
imediata dos factos naturais com base na qual podemos verificar a verdade ou a
falsidade do que sobre ela possamos dizer
A impossibilidade de se falar sobre a experiecircncia do pensamento deve-se ao
facto dessa experiecircncia natildeo ser imediata agrave realidade natural ou fiacutesica A linguagem diz-
nos Wittgenstein soacute tem sentido quando se refere ao mundo agrave experiecircncia imediata
dele (cf PR 7 e 47) O que lhe outorga sentido eacute o mundo que ela representa e uma vez
que o sentido eacute o que a torna compreensiacutevel ela nada mais pode representar senatildeo
mundo Assim a experiecircncia do pensamento ou simboacutelica natildeo pertence ao mundo E ao
estar fora dele essa experiecircncia eacute inexprimiacutevel Ela poreacutem tem origem na experiecircncia
imediata da realidade Eacute essa experiecircncia que possibilita a experiecircncia simboacutelica
linguiacutestica ou natildeo linguiacutestica (cf PR 5) Como os usos da linguagem referem-se sempre
ao mundo eacute a experiecircncia dele que nos permite experimentar o pensamento como
expressatildeo linguiacutestica Esta ideia era jaacute expressa no TLP com a seguinte formulaccedilatildeo ldquoO
pensamento eacute a proposiccedilatildeo com sentidordquo (TLP 4) A experiecircncia de que os signos
linguiacutesticos representam de modo determinado o mundo eacute a experiecircncia do pensamento
Uma experiecircncia em que o pensamento ocorre num processo articulado de uso de
signos ldquoEu soacute chamo um processo articulado a um pensamento pode-se entatildeo dizer lsquosoacute
o que tem uma expressatildeo articuladarsquordquo193 (PR 32) Ele apresenta-se deste modo como
uma noccedilatildeo que diz respeito agrave possibilidade de os signos simbolizarem a realidade Essa
possibilidade eacute a do sentido de a proposiccedilatildeo concordar ou natildeo concordar com o sentido
dado na sua experiecircncia imediata Eacute o sentido imediatamente experimentado da
realidade que permite verificar a verdade ou a falsidade do sentido das proposiccedilotildees
193 ldquoI only call an articulated process a thought you could therefore say lsquoonly what has an articulated expressionrsquordquo ldquoGedanken nenne ich erst den artikulierten Vorgang man koumlnnte also sagen erst das was einen artikulierten Ausdruck hatrdquo (PR 32)
111
Esta possibilidade de verificaccedilatildeo natildeo eacute todavia o que torna necessaacuterio que a
linguagem para que a possamos compreender soacute se possa referir ao mundo
Se eu disser que a representaccedilatildeo deve tratar do meu mundo entatildeo natildeo se pode dizer que lsquode outra forma eu natildeo poderia verificaacute-larsquo mas lsquouma vez que de outra forma nem comeccedilaria a ter sentido para mimrsquo194 (PR 34)
O sentido do que dizemos eacute inextricaacutevel da accedilatildeo inserida e implicada no mundo Na
aprendizagem da linguagem o seu sentido adquire-se em estreita ligaccedilatildeo com ela (cf
PR 23) Os signos linguiacutesticos comeccedilam por assim se constituir enquanto representaccedilatildeo
primaacuteria da realidade Deste modo natildeo eacute a possibilidade de verificaccedilatildeo do que se diz
junto da realidade que faz com que a linguagem soacute se possa a ela referir mas tudo o que
se possa dizer com sentido jaacute estaacute a ela ligado necessariamente A possibilidade de
verificaccedilatildeo decorre dessa ligaccedilatildeo original Eacute justamente porque a linguagem se funda
nessa ligaccedilatildeo que eacute possiacutevel a verificaccedilatildeo da veracidade das proposiccedilotildees O pensamento
soacute eacute capaz de determinar a verdade ou falsidade do que expressa porque essa expressatildeo
tem um sentido fundado na realidade Se eacute o pensamento que na relaccedilatildeo agrave realidade
desenvolve o sentido dos usos da linguagem tatildeo-somente a experiecircncia do pensamento
pode concluir pelo sentido proacuteprio ao real tal qual ele eacute imediatamente experimentado
Mas entatildeo como eacute que o pensamento procede a essa verificaccedilatildeo Como eacute que
ele conclui que o que pensa e expressa na linguagem eacute verdadeiro ou falso Segundo
Wittgenstein apenas satildeo necessaacuterios para esse efeito o pensamento e o facto pensado
Natildeo eacute precisa como defende Russell a intervenccedilatildeo de uma terceira ocorrecircncia na
forma de eventual reconhecimento no facto do que sobre ele se pensa para explicar a
concordacircncia ou natildeo concordacircncia entre ambos (cf PR 21) Nas proacuteprias palavras do
filoacutesofo a ldquo[] comparaccedilatildeo natildeo consiste no confronto da representaccedilatildeo com o que eacute
representado e atraveacutes dessa confrontaccedilatildeo experimentar um fenoacutemeno o qual como eu
disse ele mesmo natildeo pode ser previamente descritordquo195 Por outro lado se a verificaccedilatildeo
194 ldquoIf I say that the representation must treat of my world then you cannot say since otherwise I could not verify it but lsquosince otherwise it wouldnt even begin to make sense to merdquo ldquoWenn ich sage die Darstellung muszlig von meiner Welt handeln so kann man nicht sagen weil ich sie sonst nicht verifizieren kann sondern weil sie sonst von vornherein keinen Sinn fuumlr mich hatrdquo (PR 34)
195 ldquo[hellip] comparison doesnrsquot consist in confronting the representation with what it represents and through this confrontation experiencing a phenomenon which as I have said itself could not be described in advancerdquo ldquo[hellip] das Vergleichen besteht nicht darin bei der Konfrontierung der Darstellung mit dem
112
ocorre no pensamento agrave loacutegica natildeo interessa de todo o pensamento da proposiccedilatildeo (cf
PR 17) Conquanto seja a experiecircncia do pensamento do pensado que decide se uma
proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa sobre essa experiecircncia nada se pode dizer com sentido
posto que esse sentido tem a sua base no fenoacutemeno na experiecircncia imediata dos factos
(cf PR 23) Como antes vimos a linguagem natildeo eacute capaz de conferir sentido agrave
experiecircncia do pensamento ainda que esta surja com a experiecircncia imediata do mundo
Assim tal como natildeo eacute possiacutevel dizer algo com sentido sobre o sentido de uma
proposiccedilatildeo tambeacutem estaacute para aleacutem das possibilidades da linguagem dizer algo
compreensiacutevel sobre como o pensamento conclui que uma dada proposiccedilatildeo eacute verdadeira
ou falsa Mas isto natildeo eacute nenhuma novidade que o TLP natildeo nos tenha jaacute adiantado
A Inefabilidade da Experiecircncia Eacutetica
Soacute sobre a experiecircncia imediata do mundo se pode dizer algo com sentido
Somente o fenoacutemeno autoriza os usos da linguagem A linguagem tem para cada um de
noacutes a sua gestaccedilatildeo no seio do mundo e naturalmente soacute a ele diz respeito soacute sobre ele
pode exercer a sua funccedilatildeo de representaccedilatildeo Uma funccedilatildeo em que eacute evidente a relaccedilatildeo
consentacircnea entre os signos linguiacutesticos e a accedilatildeo mas oculta a relaccedilatildeo entre os signos e
os seus sentidos Que no mundo uma certa coisa possa representar outra coisa isso natildeo
eacute parte do mundo Embora se possa perceber que no mundo essas coisas se
correspondem nele natildeo podemos perceber que uma representa a outra com um
determinado conteuacutedo simboacutelico Por isso natildeo podemos recorrer agrave linguagem para
descrever a representaccedilatildeo simboacutelica A linguagem eacute logicamente incapaz de falar acerca
da experiecircncia que natildeo seja imediata agrave realidade Esta eacute a razatildeo fundamental para que
Wittgenstein de modo coerente com o pensamento das PR e sem se distanciar da
posiccedilatildeo que defendeu sobre este assunto no TLP afirme em 1929 na Conferecircncia
sobre Eacutetica (LE) que sobre a eacutetica ldquoParece-me oacutebvio que nada que alguma vez
conseguiacutessemos pensar ou dizer deve ser a coisardquo196 (LE p 59)197 Natildeo soacute a
Dargestellten ein Phaumlnomen zu erleben das ndash wie gesagt ndash selbst von vornherein nicht beschreibbar warrdquo (PR 23)
196 ldquoIt seems to me obvious that nothing we could ever think or say should be the thingrdquo (LE p 40)
197 Este eacute o motivo pelo qual a eacutetica natildeo pode ser ensinada nem tem sentido a teoria eacutetica como resposta a problemas eacuteticos (cf CHRISTENSEN Anne-Marie S ldquoWittgenstein and Ethicsrdquo in Oskari Kuusela and Marie McGinn (eds) The Oxford Handbook of Wittgenstein Oxford University Press Oxford 2011 pp
113
experiecircncia de representaccedilatildeo simboacutelica mas tambeacutem a eacutetica podem surgir da
experiecircncia imediata dos fenoacutemenos A partir dela eacute possiacutevel que assome uma
experiecircncia que se vive num outro plano que excede a forma dos fenoacutemenos um plano
portanto mediato cuja natureza eacute supersensiacutevel e sem duacutevida veemente o suficiente para
que a linguagem intente em vatildeo mas incansavelmente expressaacute-la
Na tentativa de definir laquogrosso modoraquo a eacutetica Wittgenstein sugere que se
encontre o que haacute de comum entre as seguintes expressotildees de sinoniacutemia aproximada
Ora em vez de dizer lsquoa Eacutetica eacute a investigaccedilatildeo geral daquilo que eacute bomrsquo eu poderia ter dito lsquoa Eacutetica eacute a investigaccedilatildeo acerca daquilo que eacute valioso ou acerca daquilo que eacute realmente importantersquo ou podia ter dito lsquoa Eacutetica eacute a investigaccedilatildeo sobre o sentido da vida ou sobre o que faz valer a pena viver ou sobre o modo certo de viverrsquo198 (LE p 51)
Aquilo que estas expressotildees referem como objeto de investigaccedilatildeo tem genericamente
que ver com a experiecircncia do modo de vida isto eacute com a experiecircncia ou vivecircncia eacutetica
Tendo a eacutetica por este motivo uma aceccedilatildeo mais ampla envolvendo igualmente a
esteacutetica (cf LE pp 49 e 51) Assim para tornar mais claro do que eacute que efetivamente
estaacute a falar quando se refere agrave eacutetica o filoacutesofo recorre a alguns casos da sua proacutepria
experiecircncia eacutetica na expectativa de que eles tragam agrave memoacuteria do leitor a vivecircncia
pessoal das mesmas experiecircncias ou similares Essa parece ser condiccedilatildeo absolutamente
necessaacuteria para que o leitor possa compreender o que haacute de eacutetico nessas experiecircncias
visto que as expressotildees verbais que as descrevem satildeo sem-sentido (cf LE p 63)
796-797) Ulrich Arnswald encara esta impossibilidade de uma teoria eacutetica da seguinte forma ldquoA Conferecircncia sobre Eacutetica de Wittgenstein baseia-se ainda mais na consideraccedilatildeo de que a capacidade de definir proposiccedilotildees eacuteticas requer uma teoria da eacutetica Contudo isso soacute seria possiacutevel se houvesse um criteacuterio ou medida para provar as proposiccedilotildees como adequadas ou inadequadas possiacuteveis ou impossiacuteveis Para avaliar tais proposiccedilotildees elas teriam que fazer parte de um sistema de declaraccedilotildees autorreferenciais pois apenas esse tipo de sistema pode demonstrar um criteacuterio com uma base logicamente justificaacutevel Portanto as proposiccedilotildees soacute fazem sentido se fizerem declaraccedilotildees sobre fatos no mundordquo ldquoWittgensteinrsquos Lecture on Ethics is further founded on the consideration that the ability to define ethical propositions requires a theory of ethics Yet this would only be possible if there were a criterion or measure to prove the propositions as either suitable or unsuitable as possible or impossible To evaluate such propositions they would have to be part of a system of self-referential statements for only that kind of system can demonstrate a criterion with a logically justifiable basis Hence propositions only make sense if they make statements about facts in the worldrdquo (ARNSWALD Ulrich ldquoThe Paradox of Ethics mdash lsquoIt leaves everything as it isrsquordquo in Ulrich Arnswald (ed) In Search of Meaning ndash Ludwig Wittgenstein on Ethics Mysticism and Religion Universitaumltsverlag Karlsruhe Karlsruhe 2009 p 3)
198 ldquoNow instead of saying lsquoEthics is the inquiry into what is goodrsquo I could have said lsquoEthics is the inquiry into what is valuable or into what is really importantrsquo or I could have said lsquoEthics is the inquiry into the meaning of life or into what makes life worth living or into the right way of livingrsquordquo (LE p 38)
114
Somente atraveacutes da evocaccedilatildeo das proacuteprias experiecircncias eacuteticas pode o filoacutesofo ter
esperanccedila de que por essa via o leitor perceba o que estaacute em causa no eacutetico ou esteacutetico
e a impossibilidade de dizer seja o que for sobre ele Eacute na vivecircncia dessas experiecircncias
que ocorre o eacutetico e que se defronta com a exigecircncia de silecircncio perante o que eacute
inexprimiacutevel
Os dois primeiros exemplos dados por Wittgenstein descrevem experiecircncias que
se podem considerar apraziacuteveis A primeira dessas experiecircncias eacute considerada por ele
como sendo a sua ldquoexperiecircncia par excellencerdquo Ela eacute indicada pela seguinte expressatildeo
ldquo[] fico assombrado com a existecircncia do mundordquo199 (LE p 63) O que haacute de
surpreendente nesta experiecircncia eacute o facto extraordinaacuterio de que algo exista O segundo
caso tem que ver com ldquo[] a experiecircncia de nos sentirmos em absoluta seguranccedilardquo 200
(LE p 65) ou seja o sentimento de que natildeo haacute completamente nada que de alguma
forma constitua uma ameaccedila Quer num caso quer no outro o que eacute dito faz um uso
improacuteprio da linguagem Na primeira proposiccedilatildeo eacute feito um uso das palavras
laquoespantarraquo e laquoexistecircnciaraquo que natildeo concorda com os respetivos significados (cf LE pp
65 e 67) Ora somente nos espantamos com aquilo que por ser insoacutelito natildeo estaacutevamos
em qualquer caso agrave espera de encontrar Mas de facto o mundo estaacute sempre aiacute sem
nunca se furtar ao nosso olhar sem que seja sequer concebiacutevel nos subtrair a ele Nada
haacute de extraordinaacuterio na sua existecircncia como haveria se deparaacutessemos por exemplo
com um homem com 3 metros de altura O espanto ocorre com aquilo que nunca foi
visto antes e no caso o mundo nunca abandonou o nosso horizonte de visatildeo nem
conseguimos imaginar o que eacute deixar de vecirc-lo Neste sentido natildeo podemos dizer que o
mundo existe como se fosse concebiacutevel que ele natildeo existisse O mesmo problema se
passa com o uso da palavra laquoseguranccedilaraquo na segunda proposiccedilatildeo (cf LE pp 67 e 69)
Natildeo tem sentido dizer laquoseguranccedila absolutaraquo pois no que importa ou se estaacute seguro ou
natildeo se estaacute seguro no que respeita a determinadas ameaccedilas e nunca a toda e qualquer
ameaccedila Estar em seguranccedila eacute estar escudado de certas ameaccedilas mas natildeo de todas elas
Sendo assim o que nos pode levar ao uso incorreto destas palavras nas duas
proposiccedilotildees Sabendo que essas palavras natildeo comportam usos como os que fazemos
nas mencionadas proposiccedilotildees porquecirc eacute que mesmo assim recorremos a elas como se
tivessem algum sentido
199 ldquo[hellip] I wonder at the existence of the worldrdquo (LE p 41)
200 ldquo[hellip] the experience of feeling absolutely saferdquo (LE p 41)
115
Percebemos que natildeo satildeo assim tatildeo raros certos usos improacuteprios da linguagem
quando Wittgenstein nos lembra que eles atravessam todo o discurso eacutetico e religioso
(cf LE p 69) Para ele ldquoPrima facie todas estas expressotildees parecem ser apenas
siacutemilesrdquo201 (LE p 69) Esses usos procuram unicamente sugerir semelhanccedilas com os
significados proacuteprios das palavras Natildeo satildeo propriamente os seus significados que se
quer dizer mas antes como se fossem eles dada a sua relaccedilatildeo de semelhanccedila com o
que se quer dizer A suposta semelhanccedila entre o que se diz e o que se quer dizer mas
natildeo se pode dizer por natildeo ser cabiacutevel na linguagem aproxima-os sem nunca os reduzir
ao mesmo Nessa aproximaccedilatildeo tem-se apenas em vista a evocaccedilatildeo ou sugestatildeo de
determinada experiecircncia eacutetica ou religiosa Com ela natildeo se pode pretender descrever
essa experiecircncia Ele daacute alguns exemplos (cf LE p 69) Quando dizemos que o
comportamento de uma certa pessoa eacute um comportamento eticamente certo natildeo usamos
a palavra laquocertoraquo com o mesmo significado que encontramos no seu uso corrente por
exemplo quando dizemos que estas calccedilas tecircm o tamanho adequado para certa pessoa
vestir Ao dizer-se que uma certa pessoa eacute boa com a palavra laquoboaraquo mais uma vez natildeo
se quer significar o mesmo que ela significa ao dizer-se que essa pessoa eacute boa a jogar
futebol conquanto seja este uacuteltimo o seu significado proacuteprio Que a vida de um homem
eacute valiosa dizemo-lo com certeza sabendo que o significado proacuteprio da palavra
laquovaliosaraquo natildeo lhe eacute apropriada como o eacute quando dizemos que uma peccedila de joelharia eacute
valiosa Em todos estes casos o uso de certas palavras natildeo pretende transmitir o seu
significado proacuteprio senatildeo para desse modo por semelhanccedila sugerir certas experiecircncias
para as quais natildeo existem palavras que as descrevam
Eacute assim que se passa com todos os termos que se referem a Deus Eles satildeo
usados como siacutemiles ou alegoricamente
Porque quando falamos de Deus e que Ele vecirc tudo e quando nos ajoelhamos para lhe rezar todos os nossos termos e accedilotildees parecem ser partes de uma grande e elaborada alegoria que O representa como um ser humano com grande poder cuja graccedila tentamos merecer etc etc202 (LE p 69)
201 ldquoAll these expressions seem prima facie to be just similesrdquo (LE p 42)
202 ldquoFor when we speak of God and that he sees everything and when we kneel and prey to him all our terms and actions seem to be parts of a great and elaborate allegory which represents him as a human being of great power whose grace we try to win etc etcrdquo (LE p 42)
116
Deus eacute o nome que damos para designar o que estaacute por detraacutes daquelas experiecircncias
inefaacuteveis sublimes ou ominosas agraves quais alegoricamente aludimos A narrativa
religiosa representa essas experiecircncias sobrenaturais com recurso a termos cujo
significado eacute proacuteprio agraves experiecircncias naturais passiacuteveis do sentido transmitido pela
linguagem203 Satildeo por isso narrativas que decorrem agrave escala de possibilidades de uso
da linguagem humana por isso agrave escala do mundo para sugerir por similitude
experiecircncias que lhe escapam completamente por impossibilidade de descrever o que
estaacute para aleacutem do mundo Daiacute que estas alegorias sirvam igualmente para descrever
aquelas duas experiecircncias pessoais com que Wittgenstein procurou evocar no leitor a
experiecircncia eacutetica (cf LE p 71) O assombro perante a existecircncia do mundo leva-nos agrave
ideia de que soacute Deus pode ter criado o mundo o sentimento de seguranccedila absoluta soacute
pode ter origem no Deus tutelar e todo poderoso O filoacutesofo propotildee ainda uma terceira
experiecircncia pessoal desta feita uma experiecircncia negativa relativa ao sentimento de
culpa que a alegoria religiosa atribui ao pecado aos atos e omissotildees condenados por
Deus (cf LE p 71)
Que fique pois claro que natildeo eacute o recurso a siacutemiles na construccedilatildeo daquelas
proposiccedilotildees que faz com que elas sejam necessariamente sem-sentido O uso de certas
palavras que pretendem significar por siacutemile as experiecircncias eacuteticas e religiosas soacute
redunda em proposiccedilotildees incompreensiacuteveis devido agrave relaccedilatildeo de semelhanccedila lhe faltar o
facto que a comprove (cf LE pp 71 e 73) Um facto pode ser descrito usando-se termos
que significam outros factos visto que se podem estabelecer semelhanccedilas entre eles
Mas as experiecircncias eacuteticas e religiosas natildeo satildeo factos se bem que o possam ser as
experiecircncias imediatas do mundo que as suscitam E nisto vecirc Wittgenstein um
paradoxo
203 A iacutentima relaccedilatildeo entre a eacutetica e a religiatildeo em Wittgenstein eacute por ele reconhecida deste modo ldquoO que eacute bom tambeacutem eacute divino Por mais estranho que tal possa parecer essa afirmaccedilatildeo resume a minha eacutetica Soacute algo de sobrenatural pode expressar o sobrenaturalrdquo (CV 1929 p 15) ldquoWhat is good salso divine Queer as it sounds that sums up my ethics Only something supernatural can express the Supernaturalrdquo (CV 1929 p 5e) ldquoWenn etwas gut ist so ist es auch goumlttlich Damit ist seltsamerweise meine Ethik zusammengefaszligt Nur das uumlbernatuumlrliche kann das Uumlbernatuumlrliche ausdruumlckenrdquo (CV 1929 p 5) Sobre a relaccedilatildeo dos manuscritos que servem de base a estas afirmaccedilotildees e as fontes do texto da conferecircncia ver VENTURINHA Nuno Loacutegica Eacutetica Gramaacutetica Wittgenstein e o Meacutetodo da Filosofia pp 291-293 e ldquoBeyond the World Beyond Significant Languagerdquo pp 387-399
117
E serei ainda mais incisivo ao dizer que ldquoeacute paradoxal que uma experiecircncia um facto deva parecer ter um valor sobrenaturalrdquo204 (LE 73)
Um paradoxo para o qual ele natildeo vecirc outra saiacuteda senatildeo a de estar perante um milagre
Que a experiecircncia do mundo seja sentida como suprema e indescritiacutevel eacute algo da ordem
do milagre E o que eacute desta ordem natildeo pode ser investigado cientificamente de maneira
a desmontaacute-la e a concluir que afinal ela tem uma ordem natural ou entatildeo que a sua
descoberta aguarda por progressos cientiacuteficos que a tornem possiacutevel (cf LE pp 73 e
75) Como se a ciecircncia pudesse descrever mais do que eacute dado pela experiecircncia imediata
dos factos Compreende-se assim que Wittgenstein diga que eacute absurdo afirmar que ldquo
lsquoA ciecircncia provou que natildeo existem milagresrsquo rdquo205 (LE p 75) Deixa de ser cientiacutefico
toda a pesquisa que natildeo se limita aos factos E o que chamamos de milagre corresponde
a uma experiecircncia que extravasa os factos em que os factos natildeo servem de maneira
nenhuma para dar testemunho dela Assim o espanto perante a existecircncia do mundo eacute
tatildeo-soacute a experiecircncia de se estar diante de um milagre o milagre da sua existecircncia Que
eacute ao fim e ao cabo para Wittgenstein o milagre da existecircncia da proacutepria linguagem (cf
LE pp 75 e 77) A existecircncia de signos linguiacutesticos que simbolicamente representam o
mundo mas sobre cujo simbolismo a proacutepria linguagem nada pode dizer Enfim o que
chamamos de milagre eacute a experiecircncia da impossibilidade do pensamento se pensar a si
proacuteprio e por isso mesmo natildeo poder pensar sobre a existecircncia do mundo isto eacute sobre
o que pensa sobre o mundo
Todas as proposiccedilotildees que empreendem a descriccedilatildeo do eacutetico ou religioso
procuram contrariar esta experiecircncia de impossibilidade ou simplesmente natildeo
respeitam o silecircncio que ela exige por necessidade imperiosa de expressar o que natildeo se
deixa expressar Eacute tal o assombro o iacutempeto gerado por essas experiecircncias que eacute para a
grande maioria de noacutes impossiacutevel deixar de falar delas A este respeito a
impossibilidade de ficar calado parece sobrepor-se agrave impossibilidade de falar Mas em
vatildeo se fala sobre a experiecircncia eacutetica pois de maneira nenhuma o que se possa dizer lhe
faz jus O que se diga sem-sentido no mundo natildeo adquire num passo de maacutegica sentido
no que estaacute para aleacutem dele soacute porque intenta a sua representaccedilatildeo Isto mostra uma
204 ldquoAnd I will make my point still more acute by saying lsquoIt is the paradox that an experience a fact should seem to have supernatural valuersquo rdquo (LE p 43)
205 ldquo lsquoScience has proved that there are no miraclesrsquo rdquo (LE p 43)
118
tendecircncia do ser humano para tentar exceder os limites da linguagem e no entanto
ldquoEste correr contra as paredes da nossa prisatildeo eacute perfeita e absolutamente sem
esperanccedilardquo206 (LE p 81) Natildeo se pense poreacutem que Wittgenstein despreza estes
esforccedilos infundados Antes pelo contraacuterio quanto ao desejo de dizer alguma coisa
acerca do significado uacuteltimo da vida do bem ou valor absoluto
Aquilo que ela diz nada acrescenta ao nosso conhecimento em qualquer sentido Mas eacute o testemunho de uma tendecircncia da mente humana que eu pessoalmente natildeo posso deixar de respeitar profundamente e que nunca me ocorreria ridiculizar207 (LE p 81)
Este seu profundo respeito pelo impulso incontido para expressar verbalmente a
experiecircncia eacutetica e religiosa denota que o filoacutesofo conhece bem o anseio desesperado de
dizer ao mundo com a maacutexima premecircncia o que realmente tem valor
O Pensamento dos Valores
As experiecircncias eacuteticas e religiosas tecircm pois valor absoluto O que lhes confere
esse estatuto satildeo sem mais as proacuteprias experiecircncias elas tecircm valor por si mesmas A
impressatildeo distintiva e intensa que as caracteriza vale absolutamente Natildeo podemos
contudo entender que por esse motivo essas experiecircncias se devem ao sujeito e que
por conseguinte o seu valor absoluto decorre unicamente da subjetivaccedilatildeo das
experiecircncias imediatas da realidade Seria entatildeo esta subjetivaccedilatildeo que as tornaria
milagrosas tatildeo especiais que o seu valor seria incomensuraacutevel Mas como vem exposto
nas PR e sobre o qual jaacute refletimos anteriormente as experiecircncias natildeo satildeo de um
sujeito ningueacutem pode dizer que elas satildeo laquoAs minhas experiecircnciasraquo E nesse sentido
natildeo eacute a subjetivaccedilatildeo que estaacute na origem do bem e do mal O Wittgenstein da LE potildee
esta questatildeo segundo um enfoque sensivelmente diferente mas com consequecircncias
idecircnticas
206 ldquoThis running against the walls of our cage is perfectly absolutely hopelessrdquo (LE p 44)
207 ldquoWhat it says does not add to our knowledge in any sense But it is a document of a tendency in the human mind which I personally cannot help respecting deeply and I would not for my life ridicule itrdquo (LE p 44)
119
Mas o que quero dizer eacute que um estado mental na medida em que significamos com esse termo um facto que podemos descrever natildeo eacute bom ou mau em qualquer sentido eacutetico208 (LE p 57)
De uma perspetiva fenomenoloacutegica ou gramatical o uacutenico estado da mente
relevante eacute aquele que projeta atraveacutes de signos linguiacutesticos sentido sobre os factos na
intenccedilatildeo de os descrever E na descriccedilatildeo dos factos natildeo se encontra senatildeo factos e entre
estes natildeo existe qualquer hierarquia de valor eles satildeo completamente neutros
relativamente ao bem e ao mal A descriccedilatildeo de um assassinato eacute equivalente agrave descriccedilatildeo
da queda de uma pedra (cf LE p 59) Eacute oacutebvio que estes factos natildeo tecircm um igual
impacto emocional Satildeo comuns as emoccedilotildees fortes e penalizadoras que se podem gerar
com a descriccedilatildeo de um assassinato Mas elas natildeo satildeo de um sujeito pelo menos de um
sujeito situado no mundo A experiecircncia emocional natildeo tem pertenccedila E neste domiacutenio
a LE natildeo alega como no TLP que o sentido eacutetico eacute mostrado por uma espeacutecie de
recompensa ou castigo eacutetico de tipo afetivo gerado pelas proposiccedilotildees que descrevem
certos factos (cf TLP 6422) Somente interessa a descriccedilatildeo dos factos e natildeo os estados
da mente que geram uma putativa valoraccedilatildeo afetiva Por seu turno natildeo eacute estabelecida
qualquer determinaccedilatildeo destes estados emocionais sobre as experiecircncias sobrenaturais
Os sentimentos de seguranccedila absoluta ou de culpa ou o espanto perante a existecircncia do
mundo todos exemplos evocativos da experiecircncia eacutetica dados pelo filoacutesofo natildeo
parecem ter na forma como satildeo apresentados uma natureza tipicamente emocional
Natildeo seratildeo portanto as reaccedilotildees emocionais aos factos que estaratildeo na base do eacutetico e
religioso Os sentimentos a que os exemplos se referem natildeo tecircm a sua causa no mundo
ainda que possam ocorrer a propoacutesito do mundo E daiacute surgirem como milagres como
algo indescritiacutevel inexplicaacutevel
Soacute aparentemente esta conclusatildeo colide com o que Waismann relata como sendo
uma observaccedilatildeo de Wittgenstein a 17 de setembro de 1930
No final da minha palestra sobre eacutetica falei na primeira pessoa penso que isso eacute algo muito essencial Aqui natildeo haacute mais nada a ser declarado tudo o que posso fazer eacute avanccedilar como indiviacuteduo e falar na primeira pessoa 209
208 ldquoBut what I mean is that a state of mind so far as we mean by that a fact which we can describe is in no ethical sense good or badrdquo (LE p 39)
120
O que Wittgenstein diz na sua uacuteltima afirmaccedilatildeo da LE eacute de um ponto de vista pessoal
que natildeo o filosoacutefico dando o seu proacuteprio testemunho humano sobre a tendecircncia da
mente humana para verbalizar a eacutetica210 Soacute desse ponto de vista individual como
testemunho se pode falar da experiecircncia eacutetica mas desde que natildeo se reconheccedila nela
mais de que um valor relativo a si proacuteprio e nunca como um valor universal cuja
experiecircncia pessoal eacute uma sua expressatildeo particular No mesmo sentido apenas como
experiecircncia pessoal a accedilatildeo humana pode ganhar dimensatildeo moral manifestando dessa
forma o que a pessoa valoriza ou repudia As declaraccedilotildees eacuteticas com o sentido das quais
sejam congruentes as accedilotildees de uma comunidade humana apenas mostram que as
pessoas concordam de acordo com a sua proacutepria experiecircncia no valor dessas praacuteticas
morais mas isso mais uma vez natildeo lhes confere valor absoluto A eacutetica natildeo eacute uma
questatildeo pessoal ou de escolha de uma comunidade de seres humanos Esse eacute o domiacutenio
proacuteprio dos valores relativos211
Por conseguinte o que caracteriza o que tem valor absoluto eacute que natildeo eacute
determinado pelo sujeito mas tambeacutem natildeo o eacute mais pelos factos E todavia o valor
absoluto tem caraacutecter imperativo impotildee-se incondicionalmente e apesar de serem
inconsequentes sustenta juiacutezos de valor absoluto Mas jaacute o vimos o fundamento para
esse valor natildeo pode ser expresso na linguagem pois ela natildeo pode representar mais do
que os factos tal e qual eles se apresentam e eles tecircm uma apresentaccedilatildeo fiacutesica
completamente neutros agrave eacutetica
[] o bom absoluto caso fosse um estado de coisas suscetiacutevel de ser descrito seria algo que toda a gente independentemente dos seus gostos e inclinaccedilotildees iria necessariamente efetivar ou sentir-se culpado por natildeo o fazer E quero dizer que um tal estado de coisas eacute uma quimera Nenhum estado de coisas
209 ldquoAt the end of my lecture on ethics I spoke in the first person I think that this is something very essential Here there is nothing to be stated anymore all I can do is to step forth as an individual and speak in the first personrdquo (WAISMANN Friedrich Wittgenstein and the Vienna Circle conversations recorded by F Waismann Brian McGuinness (ed) Basil Blackwell Oxford 2013 p 117)
210 A afirmaccedilatildeo em causa eacute a seguinte ldquoMas eacute o testemunho de uma tendecircncia da mente humana que eu pessoalmente natildeo posso deixar de respeitar profundamente e que nunca me ocorreria ridicularizarrdquo (LE p 81) ldquoBut it a document of a tendency in the human mind which I personally cannot help respecting deeply and I would not form my life ridicule itrdquo (LE p 44)
211 Cf CHRISTENSEN Anne-Marie S ldquoWittgenstein and Ethicsrdquo pp 809-812
121
conteacutem em si mesmo aquilo a que gostaria de chamar o poder coercivo de um juiacutezo absoluto212 (LE p 61)
Que certos factos devam ser de determinados modos por imperativo absoluto natildeo o
pode fundamentar os proacuteprios factos que satildeo como satildeo completamente alheios ao
dever ou agrave obrigaccedilatildeo213 E como a linguagem soacute pode descrever os factos jamais ela
pode explicar porque satildeo eles assim como satildeo ou porque devem eles ser desse ou de
outro modo A impossibilidade de pensar natildeo se restringe agrave expressatildeo do pensamento
mas inclui igualmente o eacutetico e o religioso A linguagem natildeo soacute natildeo eacute capaz de se
explicar a si proacutepria de falar sobre a experiecircncia do pensamento como tambeacutem natildeo lhe
eacute possiacutevel conferir sentido ao que tem valor absoluto Nem mesmo o recurso linguiacutestico
do siacutemile tatildeo useiro e vezeiro neste campo eacute capaz de ajudar agrave sua compreensatildeo pois
natildeo eacute possiacutevel comparar dois termos quando apenas um deles o que serve de
referecircncia eacute um facto O siacutemile soacute tem sentido entre o que faz parte do mundo A
possibilidade de ainda assim se poder evocar certa experiecircncia eacutetica ou religiosa como
quem aponta para algo recocircndito que assim transparece ao olhar natildeo significa que a
linguagem a possa descrever
Natildeo obstante isto natildeo excluiacute a possibilidade de a linguagem poder referir-se aos
valores Certamente natildeo aos valores eacuteticos mas antes aos valores relativos E em
termos relativos o uso das palavras que denotam valores como seja a palavra laquobomraquo
natildeo se refere agrave eacutetica ldquoDe facto a palavra lsquobomrsquo no sentido relativo significa
simplesmente satisfazer um certo padratildeo predeterminadordquo214 (LE p 53) Assim o uso
212 ldquo[hellip] the absolute good if it is a describable state of affairs would be one which everybody independent of his tastes and inclinations would necessarily bring about or feel guilty for not bringing about And I want to say that such a state of affairs is a chimera No state of affairs has in itself what I would like to call the coercive power of an absolute judgerdquo (LE p 40)
213 Sugere Hans Oberdiek que uma vez que quaisquer que sejam os estados de coisas eles satildeo igualmente desejaacuteveis entatildeo a eacutetica natildeo tem finalidades Assim a ser a vida seria vazia para aleacutem do bem e do mal Poreacutem Wittgenstein apenas afirma que a eacutetica natildeo reside nos fatos mas natildeo a despoja do bem e do mal absolutos pelo contraacuterio eacute justamente do valor absoluto que se trata O bem e o mal que Oberdiek refere estatildeo implicados na vida isto eacute nas suas finalidades praacuteticas estes tambeacutem satildeo valores mas poreacutem relativos aos interesses e aos objetivos de quem vive satildeo determinados por razotildees praacuteticas No entanto eacute com razatildeo que afirma que o poder coercivo da eacutetica segundo Wittgenstein natildeo eacute de todo argumentaacutevel como se fosse possiacutevel escolher a eacutetica que nos coage efetivamente eacute sem um fundamento inteligiacutevel que ela se nos impotildee (Cf OBERDIEK Hans ldquoWittgensteinrsquos Ethics Boundaries and Boundary Crossingsrdquo in Hans-Johann Glock and John Hyman (eds) Wittgenstein and Analytic Philosophy ndash Essays for P M S Hacker Oxford University Press Oxford 2009 pp 184-186)
214 ldquoIn fact the word lsquogoodrsquo in the relative sense simply means coming up to a certain predetermined standardrdquo (LE p 38)
122
destas palavras pressupotildee apenas a existecircncia de padrotildees a verificar Sublinhe-se no
entanto que estes padrotildees natildeo satildeo valores absolutos O valor que tem a aproximaccedilatildeo ao
padratildeo ou a sua realizaccedilatildeo natildeo se deve ao seu valor absoluto Estes padrotildees parecem ter
mais que ver com estados de coisas desejaacuteveis e que por essa razatildeo constituem
finalidades Alguns exemplos dados por Wittgenstein eacute bom andar agasalhado pois
evita os distuacuterbios fiacutesicos provocados por uma constipaccedilatildeo um certo caminho eacute melhor
do que outro porque o percurso sendo mais curto leva menos tempo a percorrer uma
pessoa eacute boa pianista quando a partir de uma partitura difiacutecil toca piano com destreza
(cf LE p 53) De facto os juiacutezos de valor relativo satildeo comuns na linguagem corrente
aplicando-se a uma grande variedade de situaccedilotildees os padrotildees teacutecnicos sustentam juiacutezos
de valor de certo e errado os padrotildees praacuteticos permitem juiacutezos de valor de bem ou mal
os padrotildees de harmonia levam a juiacutezos de valor de perfeiccedilatildeo entre outros Em todos
eles o que se avalia eacute a aproximaccedilatildeo ou distanciaccedilatildeo do estado de coisas atual ao estado
de coisas padratildeo Algo que como resultado de uma comparaccedilatildeo a linguagem
naturalmente descreve e atribui valor no sentido em que mais proacuteximo ou mais distante
do padratildeo eacute preferiacutevel ao seu contraacuterio A finalidade determina a preferecircncia
Eacute por essa razatildeo que Wittgenstein afirma que
[] todo juiacutezo de valor relativo eacute uma mera afirmaccedilatildeo de factos e pode por isso ser emitido de tal forma que perde qualquer aparecircncia de um juiacutezo de valor []215 (LE p 55)
Ao aterem-se aos factos da realidade os enunciados de juiacutezo de valor relativo parecem
ser despojados de valor pois neles apenas fica impliacutecita a preferecircncia o ser melhor ou
pior Eacute do foro proacuteprio dos factos que entre dois caminhos que conduzem ao mesmo
destino em idecircnticas condiccedilotildees de circulaccedilatildeo a distacircncia a percorrer num deles eacute
inferior agrave do outro Mas esta evidecircncia assim expressa na linguagem pode subentender
que o caminho mais curto eacute melhor do que o mais longo para quem queira chegar
prontamente a esse destino A finalidade seja ela interesses objetivos ou padrotildees que
aqui subjaz aos resultados da comparaccedilatildeo determina o seu valor relativo Para quem
pretenda chegar rapidamente ao destino a estrada mais curta tem um valor superior ao
215 ldquo[hellip] every judgment of relative value is a mere statement of facts and can therefore be put in such a form that it loses all the appearance of a judgment of value [hellip]rdquo (LE p 39)
123
da estrada mais longa Mas seja qual for a finalidade que relativiza o valor ela soacute pode
ser mostrada atraveacutes dos proacuteprios juiacutezos de valor relativo O que fundamenta a
finalidade natildeo o pode mostrar a linguagem Os factos constatados pelos juiacutezos de valor
relativo resultam todos em proposiccedilotildees que em si mesmas natildeo tecircm nem expressam
valor E por seu turno os estados da mente que alegadamente possam determinar as
finalidades como eacute o caso do desejo ou do pensamento do apraziacutevel ou do
desagradaacutevel natildeo satildeo no sentido eacutetico bons ou maus uma vez que nos termos da sua
fenomenologia as suas supostas manifestaccedilotildees comportamentais mais natildeo satildeo que
factos passiacuteveis de serem descritos pela linguagem em proposiccedilotildees neutras ao valor ndash
como aliaacutes todas elas satildeo (cf LE pp 57 e 59) Se a afetividade e o pensamento
determinam o padratildeo de valor a linguagem estaacute impossibilitada de o dizer Mas em LE
perante a inefabilidade do valor Wittgenstein natildeo volta a afirmar como no TLP o seu
misticismo Parece que tudo se resume sem que isso envolva uma inclinaccedilatildeo miacutestica
ao que eacute dito no derradeiro paraacutegrafo do TLP ldquoAcerca daquilo de que se natildeo pode falar
tem que se ficar em silecircnciordquo (TLP 654)216
216 A filosofia eacutetica de Wittgenstein vem a influenciar vaacuterios filoacutesofos analiacuteticos no sentido do desenvolvimento de teorias eacuteticas natildeo-cognitivistas e tambeacutem com a sua filosofia mais tardia cognitivistas Ver sobre este assunto ARRINGTON Robert L ldquoWittgenstein and Ethicsrdquo in Hans-Johann Glock and John Hyman (eds) A Companion to Wittgenstein John Wiley amp Sons Ltd Oxford 2017 pp 605-661
124
Capiacutetulo 7 ndash O Pensamento e a Matemaacutetica
A Anaacutelise pura coloca agrave nossa disposiccedilatildeo uma seacuterie de processos que nos garantem infalibilidade abre-nos mil caminhos diferentes com os quais nos podemos comprometer com toda a confianccedila temos a certeza de natildeo encontrar obstaacuteculos mas de todas esses caminhos qual deles nos levaraacute mais rapidamente ao objetivo Quem nos diraacute qual escolher Precisamos de uma faculdade que nos faccedila ver o objetivo agrave distacircncia e essa faculdade eacute a intuiccedilatildeo Eacute necessaacuterio que o explorador escolha a sua rota natildeo eacute menos assim para ele que segue seus passos e quer saber porque os escolheu217
O Pensamento o Nuacutemero e a Intuiccedilatildeo
Ao investigar o que eacute representado pelos nuacutemeros Wittgenstein ab initio potildee
em confronto duas posiccedilotildees distintas sendo uma delas perfilhada pela sua filosofia da
matemaacutetica (cf PR 99)218 Ambas concordam com a ideia de que soacute faz sentido falar
em nuacutemeros quando estes se referem a extensotildees de conceitos isto eacute ao nuacutemero de
objetos compreendidos num conceito Poreacutem uma posiccedilatildeo argumenta que os nuacutemeros
dependem sempre dos conceitos a que se referem enquanto a outra defende a
autonomia dos nuacutemeros relativamente aos conceitos sendo a sua relaccedilatildeo apenas
contingente agrave determinaccedilatildeo da sua extensatildeo e como tal natildeo essencial nem aos
conceitos nem aos nuacutemeros De acordo com esta uacuteltima posiccedilatildeo o que caracteriza o
nuacutemero eacute fundamentalmente a classe de objetos a que se refere sendo o conceito que a
designa mero expediente para a representaccedilatildeo numeacuterica Logo os conceitos natildeo tecircm
qualquer cabimento na matemaacutetica Pelo contraacuterio para a primeira das posiccedilotildees
217 ldquoLrsquoAnalyse pure met agrave notre disposition une foule de proceacutedeacutes dont elle nous garantit lrsquoinfaillibiliteacute elle nous ouvre mille Chemins diffeacuterents ougrave nous pouvons nous engager en toute confiance nous somme assures de nrsquoy pas rencontrer drsquoobstacles mais de tous ces chemins quel est celui qui nous megravenera le plus promptement au but Qui nous dira lequel il faut choisir Il nous faut une faculteacute qui nous fasse voir le but de loin et cette faculteacute crsquoest lrsquointuition Elle est neacutecessaire agrave lrsquoexplorateur pour choisir sa route elle ne lrsquoest pas moins agrave celui qui marche sur ses traces et qui veut savoir pourquoi il lrsquoa choisierdquo (POINCAREacute Henry La Valeur de la Science Flammarion Champs 1970 p 36)
218 Parece que o que estaacute em confronto eacute a sua proacutepria posiccedilatildeo com a teoria intuitiva dos nuacutemeros do formalista David Hilbert (cf FRASCOLLA Pasquale Wittgensteinrsquos Philosophy of Mathematics Routledge London 1994 p 50)
125
referidas natildeo faz sentido separar a extensatildeo do conceito Soacute desse modo argumenta ela
pode a extensatildeo de um conceito representar a realidade219
Natildeo haacute pois duvida de que os ldquoNuacutemeros satildeo imagens das extensotildees dos
conceitosrdquo220 (PR 100) Contudo estas imagens como todas as outras que se tomam
por objetos a que se atribui nomes soacute tecircm sentido no uso que delas fazemos nas
proposiccedilotildees (cf PR 100)
Eu quero dizer que os nuacutemeros soacute podem ser definidos a partir de formas proposicionais independentemente da questatildeo que proposiccedilotildees satildeo verdadeiras ou falsas221 (PR 102)
E como veremos de seguida o seu uso emancipa os nuacutemeros relativamente aos
conceitos que assim se libertam deles assumindo um estatuto de independecircncia
Suponha-se um conjunto de objetos compreendidos num mesmo conceito por terem em
comum certas propriedades Eacute evidente que a sua extensatildeo pode ser expressa por uma
disjunccedilatildeo isto eacute por exemplo sendo estes objetos em nuacutemero de 4 este nuacutemero pode
ser igualmente dado pela operaccedilatildeo de adiccedilatildeo de cada um deles como uma unidade ou de
grupos de 2 desses objetos previamente agrupados em duas unidades (1 + 1 + 1+ 1 = 4
ou 2 + 2 = 4) Neste caso a operaccedilatildeo de adiccedilatildeo aplica-se aos nuacutemeros sob o mesmo
conceito natildeo parecendo possiacutevel aplicaacute-la a extensotildees de conceitos diferentes Parece
pois natildeo fazer sentido por exemplo somar 2 ciacuterculos e 2 maccedilas Mas no uso que
fazemos dos nuacutemeros eles satildeo efetivamente dissociados dos conceitos O que aiacute
219 A diferenccedila essencial entre estas duas posiccedilotildees tem origem no facto de que para Hilbert os signos numeacutericos satildeo a representaccedilatildeo imediata das propriedades dadas intuitivamente pela sequecircncia de objetos discretos (por exemplo a manipulaccedilatildeo combinatoacuteria da sequecircncia de traccedilos concretos) enquanto para Wittgenstein a combinaccedilatildeo desses objetos soacute satildeo representaacuteveis por signos numeacutericos na medida em que estes entram em caacutelculos segundo determinadas estruturas loacutegicas que se projetam normativamente sobre aqueles objetos satildeo as regras gramaticais que de acordo com Wittgenstein permitem agrave aritmeacutetica ser aplicada como caacutelculo autoacutenomo sobre a manipulaccedilatildeo de objetos satildeo essas regras de caacutelculo que como padratildeo decidem se os caacutelculos satildeo realizados corretamente (cf ibidem pp 50-53)
220 ldquoNumbers are pictures of extensions of conceptsrdquo ldquoDie Zahlen sind Bilder der Begriffsumfaumlngerdquo (PR 100)
221 ldquoI want to say numbers can only be defined from propositional forms independently of the question which propositions are true or falserdquo ldquoIch will sagen die Zahlen koumlnnen nur definiert werden aus Satzformen unabhaumlngig davon welche Saumltze wahr oder falsch sindrdquo (PR 102) Estas formas proposicionais ao constituiacuterem um sistema matemaacutetico levam o filoacutesofo a concluir que ldquoNatildeo haacute nuacutemeros fora de um sistemardquo ldquoThere is no number outside a systemrdquo ldquoEs gibt keine Zahl auszligerhalb eines Systemsrdquo (PR 188)
126
importa eacute se a possibilidade de os somar tem sentido e natildeo se a proposiccedilatildeo eacute verdadeira
ou falsa E de facto a soma eacute realizada sem atender agrave circunstacircncia dos objetos
adicionados natildeo se compreenderem no mesmo conceito (cf PR 102) A operaccedilatildeo de
adiccedilatildeo de quaisquer nuacutemeros tem por si mesma sentido natildeo necessitando para isso de
representar objetos
Se perguntarmos Mas o que eacute que entatildeo lsquo5 + 7 = 12rsquo significa ndash que tipo de significado ou ponto eacute deixado a esta expressatildeo ndash a resposta eacute que esta equaccedilatildeo eacute uma regra para signos que especiacutefica que signo eacute o resultado da aplicaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo particular (adiccedilatildeo) a dois outros signos particulares222 (PR 103)
Ao destacarmos das proposiccedilotildees correntes que usam signos numeacutericos as relaccedilotildees
entres eles reconhecemos que essas relaccedilotildees como esquemas numeacutericos satildeo
independentes dessas proposiccedilotildees e que elas configuram numa aparente tautologia uma
operaccedilatildeo de adiccedilatildeo E que tambeacutem o seu sentido eacute independente do sentido conceptual
das proposiccedilotildees donde foram destacadas (cf PR 103) A estrutura dessas relaccedilotildees eacute
soberana relativamente agrave estrutura das proposiccedilotildees na qual ela tenha sido reconhecida
As proposiccedilotildees aritmeacuteticas natildeo precisam para ter sentido das proposiccedilotildees correntes e
quando muito satildeo usadas como aplicaccedilotildees a estas proposiccedilotildees (cf PR 106)
Wittgenstein sublinha que o teorema da adiccedilatildeo ou outra proposiccedilatildeo aritmeacutetica eacute
reconhecida nessas proposiccedilotildees mas natildeo eacute por via delas ou da anaacutelise dos seus
conceitos que chegamos a esse teorema (cf PR 103 e 107) Mas antes com base na
compreensatildeo imediata (insight) das relaccedilotildees internas das estruturas das proposiccedilotildees
aritmeacuteticas dos seus processos de caacutelculo de resultados (cf PR 104 e 107) Chega-se
deste modo agrave conclusatildeo de que o nuacutemero quando subordinado a um conceito eacute apenas
uma caracteriacutestica do sentido da proposiccedilatildeo (cf PR 105) E que os nuacutemeros satildeo na
realidade o que eacute representado nas proposiccedilotildees aritmeacuteticas nos esquemas de nuacutemeros
(cf PR 107) Sendo assim natildeo tem sentido tratar a extensatildeo como um nuacutemero
compreendido num conceito mas antes considerar o nuacutemero como uma propriedade
interna da extensatildeo (cf PR 119)
222 ldquoIf we ask But what then does lsquo5 + 7 = 12rsquo mean ndash what kind of significance or point is left for this expression ndash the answer is this equation is a rule for signs which specifies which sign is the result of applying a particular operation (addition) to two other particular signsrdquo ldquoWenn man fragt Was heiszligt dann aber 5 + 7 = 12 - was fuumlr ein Sinn oder Zweck bleibt dann fuumlr diesen Ausdruck ndash so ist die Antwort Diese Gleichung ist eine Zeichenregel die angibt welches Zeichen entsteht wenn man eine bestimmte Operation (die Addition) auf zwei andere bestimmte Zeichen anwendetrdquo (PR 103)
127
Eacute aqui pertinente atentar sobre o que TLP nos diz sobre a matemaacutetica
Considerando igualmente que os nuacutemeros satildeo conceitos que sobrevecircm das operaccedilotildees
aritmeacuteticas (cf TLP 6021e 6022) adianta ainda que as proposiccedilotildees matemaacuteticas natildeo
satildeo uma expressatildeo do pensamento (cf TLP 621) Significando isto nos termos do
proacuteprio TLP que a proposiccedilatildeo matemaacutetica natildeo representa a existecircncia e a natildeo existecircncia
de estados de coisas e que por isso mesmo o seu sentido natildeo eacute a sua concordacircncia ou a
sua natildeo concordacircncia com as possibilidades dessa existecircncia ou natildeo existecircncia Se o
sentido dado pela proposiccedilatildeo pensada eacute uma sua projeccedilatildeo sobre os factos esse natildeo eacute o
caso da proposiccedilatildeo matemaacutetica cujo sentido eacute indiferente ao estado de coisas Eis como
Wittgenstein ilustra este facto nas PR
Se tu quiseres saber o que uma proposiccedilatildeo significa podes sempre perguntar lsquoComo eacute que sabes issorsquo Seraacute que sei que haacute 6 permutaccedilotildees de 3 elementos da mesma maneira que sei que haacute 6 pessoas neste quarto Natildeo Logo a primeira proposiccedilatildeo eacute de tipo diferente do da segunda223 (PR 114)
Mas entatildeo se natildeo satildeo uma expressatildeo do pensamento quer dizer natildeo satildeo proposiccedilotildees
cujo sentido eacute validado pelos factos de onde vem o sentido das proposiccedilotildees
matemaacuteticas Quer o TLP quer as PR indicam que ele vem das proacuteprias proposiccedilotildees
matemaacuteticas e que temos dele conhecimento por compreensatildeo imediata ou intuiccedilatildeo isto
eacute que elas satildeo em si mesmas compreensiacuteveis (cf TLP 6233 e 62341 cf PR 104 e
107) Natildeo julguemos no entanto que esta intuiccedilatildeo radique num processo de caacutelculo
devido ao pensamento Muito embora este processo acompanhe a intuiccedilatildeo e natildeo
obstante soacute exista enquanto aplicaccedilatildeo de si mesmo no espaccedilo e no tempo dos signos
ou seja no espaccedilo gramatical ele natildeo eacute uma experiecircncia imediata de um facto que o
pensamento possa expressar (cf TLP 62331 e PR 109) Daiacute que Wittgenstein
adotando os termos kantianos afirme que as equaccedilotildees aritmeacuteticas satildeo proposiccedilotildees
sinteacuteticas a priori (cf PR 108) Satildeo pois proposiccedilotildees cujo conhecimento natildeo resulta da
experiecircncia nem nela eacute justificaacutevel O seu caraacutecter apodiacutetico impede a sua
demonstraccedilatildeo analiacutetica Pela mesma razatildeo elas natildeo satildeo tautologias (cf PR 108) As
223 ldquoIf you want to know what a proposition means you can always ask lsquoHow do I know thatrsquo Do I know that there are 6 permutations of 3 elements in the same way in which I know there are 6 people in this room No Therefor the first proposition is of a different kind from the secondrdquo ldquoWenn man wissen will was ein Satz bedeutet so kann man immer fragen wie weiszlig ich das Weiszlig ich daszlig es 6 Permutationen von 3 Elementen gibt auf die gleiche Weise wie daszlig 6 Personen im Zimmer sind Nein Darum ist jener Satz von anderer Art als dieserrdquo (PR 114)
128
tautologias tal como satildeo apresentadas no TLP surgem de proposiccedilotildees analiacuteticas isto eacute
satildeo proposiccedilotildees sem sentido que traduzem simbolicamente proposiccedilotildees elementares
verdadeiras em qualquer estado de coisas do mundo No caso das equaccedilotildees aritmeacuteticas
pelo contraacuterio satildeo elas por si mesmas que a priori permitem chegar quando elas
relacionam nuacutemeros a proposiccedilotildees com sentido Como eacute que sabemos que dois
conjuntos de traccedilos satildeo iguais Justamente por terem o mesmo nuacutemero de traccedilos
Devemos agrave noccedilatildeo preacutevia de identidade dos signos numeacutericos o facto de a
reconhecermos nos dois conjuntos referidos De que outro modo a que poderiacuteamos
saber sem as noccedilotildees preacutevias de adiccedilatildeo e igualdade de signos numeacutericos que dois
conjuntos de traccedilos um com 5 traccedilos e outro com 7 traccedilos satildeo o mesmo nuacutemero total
de traccedilos existente num conjunto de 12 traccedilos (cf PR 103 e 106) Na verdade natildeo
necessitamos do signo de igualdade para percebermos que os dois primeiros conjuntos
de traccedilos satildeo no todo iguais em nuacutemero ao do outro conjunto Percebemo-lo natildeo apenas
em virtude de uma comparaccedilatildeo visual mas porque ela mostra que dois dos conjuntos de
traccedilos tecircm a mesma denotaccedilatildeo de um terceiro (cf TLP 6232) O que eacute dado na
comparaccedilatildeo satildeo duas proposiccedilotildees que mostram significados substituiacuteveis entre si (cf
TLP 623) Assim
Parece-me que soacute se pode comparar as equaccedilotildees matemaacuteticas com proposiccedilotildees significantes natildeo com tautologias Pois uma equaccedilatildeo conteacutem precisamente este elemento assertivo ndash o signo de igual ndash que natildeo eacute projetado para mostrar algo Uma vez que o que se mostra a si mesmo mostra-se a si mesmo sem o signo de igual224 (PR 120)
Neste sentido conclui Wittgenstein que numa equaccedilatildeo matemaacutetica ao contraacuterio de
numa tautologia o signo de igual natildeo tem qualquer significado que natildeo seja o de
apontar para a relaccedilatildeo entre os significados do que eacute expresso agrave sua direita e agrave sua
esquerda (cf PR 120)
224 ldquoIt seems to me that you may compare mathematical equations only with significant propositions not with tautologies For an equation contains precisely this assertoric element ndash the equals sign ndash which is not designed for showing something Since whatever shows itself shows itself without equals signrdquo ldquoDie Gleichungen der Mathematik kann man so scheint es mir nur mit sinnvollen Saumltzen vergleichen nicht mit Tautologien Denn die Gleichung enthaumllt eben dieses aussagende Element ndash das Gleichheitszeichen ndash das nicht dazu bestimmt ist etwas zu zeigen Denn was sich zeigt das zeigt sich ohne das Gleichheitszeigenrdquo (PR 120)
129
Para o filoacutesofo os esquemas da aritmeacutetica satildeo como as construccedilotildees geomeacutetricas
(cf PR 111) Natildeo satildeo mais do que formas loacutegicas estruturas segundo as quais
procedemos a caacutelculos Formas que mostram uma gramaacutetica de nuacutemeros cujas regras
aritmeacuteticas ao articulaacute-los permitem distinguir os diferentes tipos de nuacutemeros (cf PR
108) Os caacutelculos natildeo satildeo mais que a aplicaccedilatildeo destas regras atraveacutes da qual se ela for
correta chegamos a resultados que em caso algum podem ser errados ou funcionarem
como hipoacuteteses fiacutesicas suscetiacuteveis de serem postas agrave prova empiacuterica Os caacutelculos natildeo
estatildeo errados soacute porque se pretende partilhar 11 maccedilas entre 4 pessoas de modo a que
cada uma delas fique com um nuacutemero igual de maccedilas ndash a pretensatildeo esbarra antes de
mais natildeo com uma impossibilidade fiacutesica mas sim com uma impossibilidade loacutegica
por isso natildeo haacute qualquer hipoacutetese a testar quando os caacutelculos determinam que nesta
partilha 3 pessoas ficam com 3 maccedilas e a outra pessoa apenas com duas (cf PR 111)
Mas sendo assim para que servem as proposiccedilotildees aritmeacuteticas Em consonacircncia com o
jaacute observado na sua primeira obra publicada estas proposiccedilotildees sem sentido servem para
transitar logicamente de uma para outra proposiccedilatildeo com sentido (cf TLP 6211 e PR
114) Assim a proposiccedilatildeo que enuncia laquoEu dividi 11 maccedilas por 4 pessoasraquo permite
inferir outra que conclui que laquoUma dessas pessoas ficou com 2 maccedilas e as restantes
com 3 maccedilasraquo ou pode-se inferir a proposiccedilatildeo laquoExiste pelo menos uma caixa rotulada
em duplicadoraquo a partir da proposiccedilatildeo laquoEu rotulei cada uma de 7 caixas com uma
permutaccedilatildeo de a b e craquo (cf PR 114)
Quanto agraves equaccedilotildees algeacutebricas ao contraacuterio das proposiccedilotildees aritmeacuteticas
parecem na sua funccedilatildeo ser gerais natildeo fossem elas poreacutem apenas regras de sintaxe (cf
PR 115 e 121) Assim uma proposiccedilatildeo matemaacutetica algeacutebrica ao ser uma regra de
sintaxe com o seu proacuteprio sentido eacute em si mesma verdadeira ou falsa (cf PR 122) Eacute
justamente o seu sentido geral verdadeiro ou falso que nos eacute dado completamente
determinado agrave compreensatildeo imediata O sentido definitivo destas proposiccedilotildees
matemaacuteticas requer pois que os valores possiacuteveis das suas variaacuteveis estejam
completamente determinados Note-se que esta determinaccedilatildeo natildeo eacute empiacuterica mas antes
passiacutevel de ser matematicamente provada (cf PR 122) Somente assim eacute possiacutevel a
compreensatildeo intuitiva do sentido determinado pelas regras sintaacuteticas da matemaacutetica
Para Wittgenstein estaacute fora do acircmbito da matemaacutetica toda a proposiccedilatildeo cuja
compreensatildeo natildeo eacute imediata ou eacute um produto do raciociacutenio ou pensamento (cf PR 121
e 122)
130
O Pensamento o Infinito e a Induccedilatildeo
Esta eacute a razatildeo pela qual o infinito natildeo tem cabimento nas equaccedilotildees matemaacuteticas
Natildeo eacute possiacutevel compreender as regras de sintaxe que dependem deste conceito
precisamente porque natildeo eacute possiacutevel determinar completamente o seu valor (cf PR
121) O infinito natildeo eacute um nuacutemero mas uma noccedilatildeo que parece pretender representar o
que natildeo tem fim como se houvesse um caminho que nos laacute levasse sem que nunca laacute
chegaacutessemos mas que ao percorrecirc-lo sucessivamente dele nos aproximasse Mas para
Wittgenstein ldquo[] natildeo haacute um caminho para o infinito nem mesmo um sem fimrdquo225 (PR
123) O infinito eacute algo que se compreende de certo modo nos conceitos loacutegicos e nas
equaccedilotildees matemaacuteticas Com isto deixa igualmente de ter sentido falar da totalidade dos
nuacutemeros a qual se teria em vista ao percorrer a seacuterie sem fim de nuacutemeros A totalidade
dos nuacutemeros eacute como o infinito um mero conceito que corresponde a uma determinada
compreensatildeo das expressotildees matemaacuteticas (cf PR 123 e 124)226 O conceito loacutegico (1
z 1+z) mostra que os seus objetos satildeo jaacute dados ao serem por si determinados (cf PR
125) E no que mostra percebemos o infinito sem que tenhamos de percorrer um trilho
para assim darmos conta de que ele natildeo tem fim e se estende ao infindo
Generalizaccedilotildees como eacute o caso da totalidade dos nuacutemeros natildeo se podem aplicar agrave
matemaacutetica simplesmente porque natildeo existem infinitos nuacutemeros Natildeo percebemos uma
proposiccedilatildeo cujo sentido natildeo tem fim Portanto os valores que verificam uma dada
equaccedilatildeo algeacutebrica tecircm sempre de ser um conjunto finito Natildeo podemos confirmar todos
os nuacutemeros que verificam uma equaccedilatildeo quando na realidade natildeo existem todos os
nuacutemeros (cf PR 126 127 e 128) Mas entatildeo natildeo eacute possiacutevel generalizar as proposiccedilotildees
225 ldquo[hellip] there is no path to infinity not even an endless onerdquo ldquo[] Es gibt keinen Weg zur Unendlichkeit auch nicht den endlosenrdquo (PR 123)
226 Neste ponto importa frisar o que A W Moore destaca com muita oportunidade sobre o que eacute matemaacutetica para Wittgenstein caacutelculos e natildeo prosa Para ele a matemaacutetica consiste inteiramente em algoritmos sendo-lhe improacutepria a introduccedilatildeo de conceitos e da sua articulaccedilatildeo que natildeo seja sob a forma de procedimentos algoriacutetmicos Assim pode acontecer como em outras situaccedilotildees com os conceitos laquoinfinitoraquo e laquototalidaderaquo mas tambeacutem com o conceito de laquonuacutemeroraquo cujo sentido se situe ao niacutevel das proposiccedilotildees natildeo-matemaacuteticas Eacute deste modo que segundo Moore a matemaacutetica pode vir a ser infetada pela prosa E eacute por assim dizer como combate a esta infeccedilatildeo (no sentido de confusatildeo) que Wittgenstein desenvolve a sua filosofia da matemaacutetica (Cf MOORE A W ldquoWittgensteinrsquos Later Philosophy of Mathematicsrdquo in Hans-Johann and John Hyman (eds) A Companion to Wittgenstein John Wiley amp Sons Ltd Oxford 2017 pp 323-330) Este eacute um motivo pelo qual para o filoacutesofo a matemaacutetica natildeo satildeo caacutelculos loacutegicos que ocorrem em sistemas axiomaacuteticos com recurso a quantificadores mas sim caacutelculos funcionais do geacutenero de caacutelculos de equaccedilotildees (cf MARION Mathieu et Mitsuhiro Okada ldquoWittgenstein et le lien entre la signification drsquoun eacutenonceacute matheacutematique et as preuverdquo in Philosophiques La peacuteriode intermeacutediaire de Wittgenstein Volume 39 Numeacutero 1 2012 pp 107-114)
131
aritmeacuteticas Claro que sim mas enquanto indicadas por induccedilatildeo Esta eacute ldquo[] a
expressatildeo da generalizaccedilatildeo aritmeacuteticardquo227 (PR 129) que natildeo pode ela mesma ser
expressa numa proposiccedilatildeo (cf PR 129) Por conseguinte a compreensatildeo da
generalizaccedilatildeo de laquotodos os nuacutemerosraquo ou do laquoinfinitoraquo que haacute pouco referiacuteamos eacute dada
por induccedilatildeo nas proacuteprias equaccedilotildees matemaacuteticas Elas mostram-nos por induccedilatildeo a
generalizaccedilatildeo
O que vemos por induccedilatildeo eacute a possibilidade conceptual que fundamenta a
generalizaccedilatildeo Considere-se as representaccedilotildees de espaccedilo e tempo infinitos que parecem
estar pressupostas na proacutepria noccedilatildeo de infinito (cf PR 136) Seraacute que percebemos um
espaccedilo fiacutesico infinito um espaccedilo sem descontinuidade Na realidade nunca observamos
descontinuidades no nosso campo visual e portanto afigura-se-nos que o espaccedilo fiacutesico
eacute infinito (cf PR 137) De igual modo o que percebemos do tempo eacute o desenrolar
incessante das coisas de que temos memoacuteria um tempo que parece natildeo ter princiacutepio
nem fim E contudo os factos natildeo nos permitem outras experiecircncias que natildeo sejam as
de segmentos de tempo e campos visuais confinados O infinito soacute pode ser outro tipo
de experiecircncia no caso a experiecircncia das propriedades dos conceitos de espaccedilo e
tempo Soacute os objetos tecircm extensatildeo natildeo os conceitos em si tudo o que tem extensatildeo eacute
finito e nessa medida contraacuterio ao que eacute infinito Eacute como intensotildees que se percebe que
existe nestes conceitos gerais a possibilidade de qualquer experiecircncia finita de tempo e
espaccedilo mas que eles natildeo fixam limites agrave realidade (cf PR 138) De facto tanto o
tempo quanto o espaccedilo de que temos experiecircncia eacute finito mas essa experiecircncia mostra-
nos que o tempo e o espaccedilo satildeo ilimitados justamente porque essa experiecircncia do finito
natildeo implica qualquer limitaccedilatildeo a outras experiecircncias finitas Qualquer campo de visatildeo
atual estaacute sempre aberto para todas as possibilidades de campos de visatildeo o tempo de
que temos memoacuteria pressupotildee jaacute todas as possibilidades de futuro (cf PR 140) O
mesmo se passa com a divisibilidade infinita Qualquer nuacutemero de partes a que se
chegue por divisibilidade de um todo por mais longe que ela se leve ele seraacute sempre
finito Poreacutem o conceito de divisibilidade como conceito geral tem em si a
possibilidade de facto de qualquer divisibilidade (cf PR 139) O tempo o espaccedilo ou
uma seacuterie infinita de nuacutemeros natildeo satildeo realidades infinitas mas o infinito eacute uma
propriedade que caracteriza estes conceitos Ele eacute uma ldquoqualidade interna da formardquo
227 ldquo[hellip] the expression for arithmetical generalityrdquo ldquo[hellip] der Ausdruck fuumlr die arithmetische Allgemeinheitrdquo (PR 129)
132
destes conceitos A possibilidade conceptual do infinito natildeo reside nos factos senatildeo nas
possibilidades dos seus objetos expressas no simbolismo Essas possibilidades
encontram-se como aplicaccedilotildees da matemaacutetica nas proposiccedilotildees que descrevem os
factos (Cf PR 143 e 144)
A possibilidade infinita que caracteriza estes conceitos natildeo pressupotildee de modo
algum a possibilidade real de uma extensatildeo infinita nem eacute de todo restringida pelas
possibilidades finitas (cf PR 139) A possibilidade do conceito infinito natildeo eacute a
possibilidade do que pode se atualizar Eacute a possibilidade do que eacute conceptualmente
concebiacutevel228 Assim uma equaccedilatildeo tem a possibilidade de colocar em relaccedilatildeo quaisquer
nuacutemeros mas natildeo de colocar em relaccedilatildeo todos os nuacutemeros entre si (cf PR 141) Numa
seacuterie de objetos natildeo existe uma multiplicidade infinita de objetos numa dada direccedilatildeo
senatildeo que nessa direccedilatildeo haacute a possibilidade de existir uma multiplicidade infinita de
objetos Fica mais uma vez claro que o infinito natildeo eacute um nuacutemero um derradeiro
limite eacute a possibilidade ilimitada de nuacutemeros Uma seacuterie infinita de nuacutemeros eacute
precisamente essa possibilidade como aliaacutes podemos perceber distintamente na
possibilidade interminaacutevel de valores da variaacutevel z do conceito loacutegico (1 z 1+z) (cf
PR 142) Daiacute que Wittgenstein defina a generalizaccedilatildeo em matemaacutetica como ldquo[] uma
direccedilatildeo uma seta apontando ao longo da seacuterie gerada por uma operaccedilatildeordquo229 (PR 142)
A generalizaccedilatildeo matemaacutetica natildeo eacute pois um produto do pensamento senatildeo da induccedilatildeo
que a exprime como possibilidade infinita Atraveacutes dela compreende-se a possibilidade
de qualquer posiccedilatildeo numa determinada direccedilatildeo Natildeo haacute na induccedilatildeo wittgensteiniana um
228 O infinito natildeo eacute concebiacutevel como algo que alguma vez seja atual mas eacute da sua essecircncia conceptual ser a possibilidade que nunca vem a ser realidade ou melhor este conceito refere-se agrave possibilidade cuja atualidade eacute impossiacutevel eacute por assim dizer esteacuteril Ele aliaacutes prova que a possibilidade pode ser conceptualmente independente da atualidade A W Moore considera que neste aspeto existe semelhanccedila entre as conceccedilotildees de Wittgenstein e Aristoacuteteles ambos admitem a existecircncia da possibilidade sem que a mesma se atualize havendo uma relaccedilatildeo iacutentima entre a possibilidade e o tempo (cf MOORE A W ldquoWittgenstein and Infinityrdquo in Oskari Kuusela and Marie McGinn (eds) The Oxford Handbook of Wittgenstein Oxford University Press Oxford 2011 pp 109-110) Deste modo o infinito representa precisamente o facto de natildeo se conhecer um fim por mais longe que ela se leve a uma sequecircncia de objetos Este entendimento do infinito significa para Wittgenstein que ele eacute unicamente concebiacutevel como parte de uma regra ldquoSe queremos dizer que o infinito eacute um atributo da possibilidade natildeo da realidade ou a palavra lsquoinfinitorsquo acompanha sempre a palavra lsquopossibilidadersquo e similar ndash entatildeo isso eacute o mesmo que dizer a palavra lsquoinfinitorsquo eacute sempre uma parte de uma regrardquo ldquoIf we wish to say infinity is an attribute of possibility not of reality or the word lsquoinfinitersquo always goes with the word lsquopossibilityrsquo and the like - then this amounts to saying the word lsquoinfinitersquo is always a part of a rulerdquo (PR p 313) ldquoWenn wir sagen moumlchten die Unendlichkeit ist eine Eigenschaft der Moumlglichkeit nicht der Wirklichkeit oder das Wort unendlich gehoumlre immer zum Wort moumlglich und dergleichen - so kommt das darauf hinaus zu sagen das Wort unendlich sei immer ein Teil einer Regelrdquo (PR p 313)
229 ldquo[hellip] a direction an arrow pointing along the series generated by an operationrdquo ldquo[hellip] eine Richtung ein Pfeil der der Operationsreihe entlang weistrdquo (PR 142)
133
raciociacutenio que generaliza os casos particulares Ela apenas mostra a possibilidade
infinita dada na proacutepria proposiccedilatildeo matemaacutetica
O Pensamento a Proposiccedilatildeo Matemaacutetica e o Meacutetodo de Prova
Como podemos ter a certeza de que uma proposiccedilatildeo matemaacutetica tem sentido
Seraacute que esta questatildeo tem ela mesmo sentido Podemos perguntar pelo sentido da
proposiccedilatildeo se natildeo soubermos de algum modo que a pode ter Como procurar o seu
sentido quando natildeo se sabe o sentido que se procura A este propoacutesito Wittgenstein
estabelece uma analogia entre a expediccedilatildeo matemaacutetica e a expediccedilatildeo polar (cf PR
161) Assim como seria absurda qualquer expediccedilatildeo polar que natildeo estivesse certa do seu
objetivo e do seu curso tambeacutem o seria qualquer expediccedilatildeo matemaacutetica improvisada
Contudo ao contraacuterio da expediccedilatildeo polar a expediccedilatildeo matemaacutetica natildeo pode ter como
destino uma hipoacutetese a qual poderaacute ou natildeo ser confirmada uma vez que laacute se chegue
(cf PR 161) A expediccedilatildeo matemaacutetica natildeo busca uma verificaccedilatildeo empiacuterica Mesmo
quando ela conclua pela justeza da hipoacutetese isso natildeo eacute uma sua demonstraccedilatildeo O que se
procura eacute o sentido geral da proposiccedilatildeo matemaacutetica o qual vai para aleacutem de um
qualquer nuacutemero finito de conjeturas passiacuteveis de serem confirmadas pela experiecircncia
Assim fica claro que natildeo eacute possiacutevel delinear um plano loacutegico para investigar o sentido
desconhecido de uma proposiccedilatildeo matemaacutetica Nem se esse sentido desconhecido se der
a conhecer quando tenha sido provado pois para isso jaacute envoltos num raciociacutenio
circular precisar-se-ia do plano Assim sendo para que esse planeamento seja viaacutevel na
medida em que o seu sentido natildeo eacute inteiramente dado na proposiccedilatildeo matemaacutetica o seu
conhecimento deve-nos ser de outro modo revelado (cf PR 148) O sentido da
proposiccedilatildeo matemaacutetica natildeo eacute como a sua verdade ou falsidade que uma vez conhecido
o seu sentido resultam totalmente claras na proacutepria proposiccedilatildeo matemaacutetica Daiacute que
Wittgenstein declare que a prova do sentido de uma proposiccedilatildeo eacute radicalmente diferente
da prova da sua verdade (cf PR 149 e 150)
De nada serviria ao planeamento de uma expediccedilatildeo polar saber o seu destino
sem ter modo de saber como laacute chegar que rumo tomar para o atingir Aparentemente o
mesmo se pode dizer do sentido da proposiccedilatildeo matemaacutetica cujo meacutetodo de prova natildeo
fazemos a miacutenima ideia de como o ficar a saber Eacute caso para se dizer
134
[] Onde natildeo se pode procurar por uma soluccedilatildeo natildeo se pode tambeacutem perguntar e isto significa Onde natildeo haacute um meacutetodo loacutegico para encontrar a soluccedilatildeo a questatildeo tambeacutem natildeo faz sentido230 (PR 149)
Da sua prova depende inteiramente o que significa uma proposiccedilatildeo matemaacutetica (cf PR
154)231 Eacute atraveacutes dela que podemos saber a situaccedilatildeo que estaacute em causa se a proposiccedilatildeo
for falsa ou verdadeira Natildeo haacute pois razatildeo para perguntar pelo sentido da proposiccedilatildeo
matemaacutetica quando natildeo dispomos de um meacutetodo loacutegico para o provar Aliaacutes esse
problema nem sequer se coloca E natildeo tem qualquer cabimento contar com algo como
um acesso misterioso e surpreendente a esse meacutetodo
Isto eacute onde soacute podemos esperar que a soluccedilatildeo surja de alguma espeacutecie de revelaccedilatildeo natildeo existe sequer um problema A revelaccedilatildeo natildeo corresponde a nenhuma questatildeo232 (PR 149)
O tipo de revelaccedilatildeo a que Wittgenstein aqui se refere eacute por ele ilustrada nos seguintes
termos ldquoAo facto de termos recebido um novo sentido [como quem recebe um novo
oacutergatildeo sensorial] eu chamaria revelaccedilatildeordquo233 (PR 149) Percebe-se melhor agora que
quando haacute pouco se disse que o sentido da proposiccedilatildeo matemaacutetica tinha que nos ser
revelado de outro modo que natildeo fosse apenas pelo que nos era mostrado pela proacutepria
proposiccedilatildeo Wittgenstein natildeo estava obviamente a referir-se a uma revelaccedilatildeo
fantaacutestica sem precedente Por outro lado se pode haver vaacuterios caminhos alternativos
para chegar ao destino de uma expediccedilatildeo polar natildeo podem existir vaacuterios meacutetodos
loacutegicos para provar o sentido de uma proposiccedilatildeo matemaacutetica Em matemaacutetica o
caminho eacute jaacute o objetivo o sentido eacute dado pelo meacutetodo pelo que um novo meacutetodo eacute jaacute
230 ldquo[hellip] Where you canrsquot look for an answer you canacutet ask either and that means Where therersquos no logical method for finding a solution the question doesnrsquot make sense eitherrdquo ldquoWo man nicht suchen kann da kann man auch nicht fragen und das heiszligt Wo es keine logische Methode des Findens gibt da kann auch die Frage keinen Sinn habenrdquo (PR 149)
231 Frascolla chama a esta tese a teoria da verificabilidade do significado (cf FRASCOLLA Wittgensteinrsquos Philosophy of Mathematics p 50)
232 ldquoThat is where we can only expect the solution from some sort of revelation there isnrsquot even a problem A revelation doesnrsquot correspond to any questionrdquo ldquoD h dort Wo die Loumlsung nur von einer Art Offenbarung erwartet kann ist auch kein Problem Einer Offenbarung entspricht keine Fragerdquo (PR 149)
233 ldquoOur being given a new sense I would call revelationrdquo ldquoUns einen neuen Sinn geben das wurde ich Offenbarung nennenrdquo (PR 149)
135
um novo sentido234 Logo a compreensatildeo de uma proposiccedilatildeo matemaacutetica pressupotildee o
conhecimento do meacutetodo que a prova (cf PR 155) O sentido que natildeo nos eacute mostrado
pela proposiccedilatildeo mas que nos eacute por assim dizer revelado fora dela eacute o seu meacutetodo
loacutegico de a provar
Mas se temos que procurar um meacutetodo loacutegico de prova soacute eacute concebiacutevel a
procura sistemaacutetica e essa ocorre somente dentro de um sistema (cf PR 150 e 157) Ou
seja a proposiccedilatildeo matemaacutetica soacute ganha o seu sentido no interior de um sistema O
meacutetodo teraacute pois de ser consistente com o sistema em que por ele se indaga Deste
modo o problema criacutetico da matemaacutetica eacute o acesso a um sistema onde se possa
encontrar um meacutetodo capaz de provar a proposiccedilatildeo E eacute um problema porque
Em matemaacutetica natildeo podemos falar de sistemas em geral mas somente no interior dos sistemas Eles satildeo precisamente aquilo sobre o qual natildeo podemos falar E assim tambeacutem aquilo que natildeo podemos procurar235 (PR 152)
Pode-se procurar um meacutetodo num sistema mas nunca procurar um sistema onde
encontrar um meacutetodo como se fosse possiacutevel demonstrar o sistema suscetiacutevel de se
encontrar a prova da proposiccedilatildeo Natildeo existe algo como uma metamatemaacutetica de acordo
com a qual se poderia proceder agrave prova da demonstrabilidade da proposiccedilatildeo matemaacutetica
(cf PR 153) ldquoA chamada prova de demonstrabilidade eacute uma induccedilatildeo para reconhecer
o que eacute reconhecer um novo sistemardquo236 (PR 160) Na verdade toda a proposiccedilatildeo tem o
seu proacuteprio sistema pelo qual eacute impossiacutevel procurar O que efetivamente eacute possiacutevel
procurar eacute pela expressatildeo simboacutelica natildeo escrita ou escrita de um sistema (cf PR 152)
234 O sentido de uma proposiccedilatildeo matemaacutetica ser determinado pelo seu meacutetodo de prova pelo que a mesma proposiccedilatildeo tem tantos sentidos quantas as diferentes provas que dela se fizer eacute uma ideia que perdura ao longo da sua filosofia da matemaacutetica Essa ideia eacute para Goldfarb responsaacutevel pela sua filosofia natildeo merecer o melhor acolhimento junto dos filoacutesofos da matemaacutetica pondo ele mesmo em duacutevida que Wittgenstein a considere como vaacutelida em geral (cf GOLDFARB Warren ldquoMoorersquos Notes and Wittgensteinrsquos Philosophy of Mathematics The Case of Mathematical Inductionrdquo in David G Stern (ed) Wittgenstein in the 1930s Between the Tractatus and Investigations Cambridge University Press Cambridge 2018 pp 248-249)
235 ldquoIn mathematics we cannot talk of systems in general but only within systems They are just what we canrsquot talk about And so too what we canrsquot search forrdquo ldquoMan kann in der Mathematik nicht allgemein von Systemen sondern nur in Systemen reden Sie sind gerade das wovon man nicht reden kann Also auch das was man nicht suchen kannrdquo (PR 152)
236 ldquoThe so-called proof of provability is an induction to recognize which is to recognize a new systemrdquo ldquoDer sogenannte Beweis der Beweisbarkeit ist eine Induktion deren Erkenntnis die Erkenntnis eines neuen Systems istrdquo (PR 160)
136
O matemaacutetico que estaacute a procurar por uma soluccedilatildeo possui um sistema nalgum tipo de simbolismo psiacutequico em imagens lsquona sua cabeccedilarsquo e esforccedila-se por colocaacute-lo no papel Uma vez que isso esteja feito o resto eacute faacutecil Mas se ele natildeo tem nenhum tipo de sistema que seja escrito ou natildeo em siacutembolos entatildeo ele tambeacutem natildeo pode procurar por uma soluccedilatildeo mas na melhor das hipoacuteteses aproximar-se dela237 (PR 151)
Ou o matemaacutetico dispotildee do sistema ou natildeo dispotildee dele e neste uacuteltimo caso eacute vatilde a
procura pelo sistema E quando dispotildee do sistema o que se procura eacute a sua traduccedilatildeo em
siacutembolos escritos Mas o que eacute que significa ldquopossuir um sistemardquo Significa que o
matemaacutetico dispotildee de um qualquer ldquosimbolismo psiacutequico em imagens lsquona sua
cabeccedilarsquordquo Mas como eacute que se possui um sistema Natildeo eacute certamente como vimos pelo
facto de o procurarmos Donde surgem entatildeo as imagens que satildeo esse simbolismo
psiacutequico E o que eacute que opera a sua traduccedilatildeo em siacutembolos escritos Wittgenstein natildeo
parece aqui responder diretamente a nenhuma destas questotildees Contudo eacute o proacuteprio
filoacutesofo que afirma logo no iniacutecio da sua obra PR
Claro os processos de pensamento de um homem comum consistem numa miscelacircnea de siacutembolos dos quais os estritamente linguiacutesticos talvez formem apenas uma pequena parte238 (PR 5)
Assim parece que Wittgenstein nada teria a objetar agrave ideia de que o sistema eacute
disponibilizado pelos processos de pensamento Poreacutem discordaria certamente com a
ideia de que estes processos satildeo intencionais ao ponto de a matemaacutetica ser uma
expressatildeo do pensamento O sistema natildeo eacute uma criaccedilatildeo do pensamento conveniente agrave
prova matemaacutetica Os processos de pensamento fornecem o simbolismo mas o sistema
eacute soberano porque dado a priori e natildeo eacute certamente determinado pelas necessidades
237 ldquoThe mathematician who is looking for a solution then has a system in some sort of psychic symbolism in images lsquoin his headrsquo and endeavours to get it down on paper Once thatrsquos done the rest is easy But if he has no kind of system either in written or unwritten symbols then he canrsquot search for a solution either but at least can only grope aroundrdquo ldquoDer suchende Mathematiker hat dann ein System in irgendwelchen psychischen Symbolen Vorstellungen im Kopf und trachtet es aufs Papier zu bringen Hat er das getan so ist das uumlbrige leicht Hat er aber kein System weder in geschriebenen noch in ungeschriebenen Symbolen dann kann er auch nicht nach einer Loumlsung suchen sondern houmlchstens herumtappenrdquo (PR 151)
238 ldquoOf course the thought processes of an ordinary man consist of a medley of symbols of which the strictly linguistic perhaps form only a small partrdquo ldquoGewiszlig geht das Denken der gewoumlhnlichen Menschen in einer Mischung von Symbolen vor sich in der vielleicht die eigentlich sprachlichen nur einen geringen Teil bildenrdquo (PR 5)
137
de prova das proposiccedilotildees matemaacuteticas Como tal Wittgenstein lembra-nos que a
matemaacutetica natildeo eacute descrita como se fizesse a descriccedilatildeo de um facto pelos seus proacuteprios
signos mas eacute feita por eles ela mesma eacute o facto e natildeo a sua descriccedilatildeo (cf PR 157)
Razatildeo tambeacutem pela qual quer as proposiccedilotildees quer o meacutetodo loacutegico da sua prova
matemaacutetica estatildeo limitados agraves possibilidades loacutegicas dos sistemas de que se dispotildee Eacute
nos termos dessas possibilidades que se podem provar as proposiccedilotildees matemaacuteticas
E o que eacute afinal um sistema para Wittgenstein De uma forma metafoacuterica e
concisa eis como ele o define ldquoUm sistema eacute por assim dizer um mundordquo239 (PR
152) A sua definiccedilatildeo direta e mais precisa podemos noacutes colocaacute-la com base no que
sobre isso afirma Wittgenstein nos seguintes termos eacute uma seacuterie formal governada por
um sistema de regras de sintaxe que determinam o caacutelculo e desse modo o significado
dos seus signos (cf PR 152 e 154) Vejam-se as trecircs principais caracteriacutesticas de um
sistema assim definido Primeira para que seja um sistema o sistema de regras tem de
ser completo querendo tambeacutem isto dizer que o sentido dos signos eacute totalmente
determinado pelo sistema (cf PR 154) Consequentemente a alteraccedilatildeo das regras
denota uma alteraccedilatildeo da sintaxe e do significado ou seja que estamos perante um novo
sistema Daiacute que a matemaacutetica seja completa e todos os seus sentidos sejam totalmente
compreendidos (cf PR 154) Segunda porquanto eacute de acordo com as regras da seacuterie
que as interaccedilotildees do caacutelculo produzem os seus sucessivos membros as regras devem ser
conhecidas previamente (cf PR 150 151 e 154) Satildeo elas que a priori se possuem
quando se possui um sistema Eacute o seu conhecimento que permite descortinar o meacutetodo
de prova matemaacutetica Logo as questotildees consistentes com um sistema de regras que se
possui nunca satildeo problemas matemaacuteticos por resolver (cf PR 159) Terceira uma vez
que os sistemas satildeo completos quando no mesmo espaccedilo eles satildeo necessariamente
independentes entre si As eventuais conexotildees entre sistemas natildeo estatildeo pois no mesmo
espaccedilo desses mesmos sistemas (cf PR 158) Ou entatildeo uma vez que natildeo eacute necessaacuterio
que todos estejam no mesmo espaccedilo (cf PR 162) as conexotildees podem existir entre
sistemas que se encontram em espaccedilos diferenciados
A procura de um meacutetodo loacutegico ou procedimento de decisatildeo num sistema eacute
comparada por Wittgenstein ao desenrolar de um noacute entrelaccedilado que por fim se desfaz
completamente (cf PR 156) O meacutetodo que normalmente eacute seguido eacute libertar
239 ldquoA system is so to speak a worldrdquo ldquoEin System ist sozusagen eine Weltrdquo (PR 152)
138
progressivamente os fios com pontas dos laccedilos que os prendem ateacute que natildeo haja mais o
que desenlaccedilar Imagine-se todavia que este noacute natildeo se desenreda seguindo este
meacutetodo pois de cada vez que se tenta compreender o que desenlaccedilar e se tenta o seu
desenlace o noacute natildeo parece ficar menos entrelaccedilado natildeo resultando claro como eacute que o
fio estaacute entretecido Natildeo se conseguindo perceber a estrutura de enlaccedilamento do noacute natildeo
se pode divisar um meacutetodo atraveacutes do qual se procure desfaze-lo Seria caso para se
concluir que natildeo se estaria perante um noacute pois um noacute eacute deslaccedilaacutevel Do mesmo modo o
divisar de um meacutetodo matemaacutetico capaz de uma soluccedilatildeo soacute eacute possiacutevel quando se
compreende a estrutura do problema agrave luz de um sistema Mas Wittgenstein chama a
atenccedilatildeo para o facto de que com a aplicaccedilatildeo do meacutetodo matemaacutetico natildeo sucede o
mesmo que com a aplicaccedilatildeo progressiva do meacutetodo de desenlace do noacute em que se fica a
conhececirc-lo cada vez mais agrave medida que o vamos deslaccedilando (cf PR 156) Pois os
signos matemaacuteticos satildeo desde logo resolvidos mostram tudo o que tecircm a mostrar de
uma soacute vez e com a sua prova nada de novo se mostra nem se aprende Os usos da
palavra laquoproblemaraquo satildeo deste modo diferentes na matemaacutetica e no domiacutenio praacutetico
onde o problema eacute o da dificuldade de compreender ou fazer ldquoEu natildeo vejo como eacute que
os signos que noacutes proacuteprios criamos para expressar certa coisa satildeo supostos criar-nos
problemasrdquo240 (PR 156) Ora o problema matemaacutetico eacute o da prova o de procurar o
meacutetodo capaz de fazer a prova de uma proposiccedilatildeo matemaacutetica em caso algum
constituindo esta mesma um problema O problema eacute o de decidir de acordo com um
sistema a regra a ser aplicada em cada um dos seus diferentes passos encadeados (cf
PR 149) de tal modo que no uacuteltimo passo dado fique demonstrada a verdade ou
falsidade de uma proposiccedilatildeo matemaacutetica (cf PR 162) No modo como eacute vista por
Wittgenstein a prova estaacute para a proposiccedilatildeo provada como o corpo estaacute para a sua
superfiacutecie (cf PR 162) A proposiccedilatildeo matemaacutetica soacute tem significado porque eacute
sustentada na prova
Se satildeo as regras baacutesicas de um sistema que autorizam a prova matemaacutetica estas
regras natildeo satildeo elas mesmas passiacuteveis de prova jaacute que natildeo se pode negar o que eacute dado
por definiccedilatildeo (cf PR 163) Como negar que 2 = 2 Dada a regra da adiccedilatildeo como negar
que 2 + (3 + 4) = (2 + 3) + 4 Mas tambeacutem natildeo se pode provar mesmo recorrendo agrave
prova recursiva que a + (b + c) = (a + b) + c A prova recursiva desta regra indica a
240 ldquoI donrsquot see how the signs which we ourselves have made for expressing a certain thing are supposed to create problems for usrdquo ldquoIch sehe nicht ein wie die Zeichen die wir uns selbst gemacht haben um Gewisses auszudruumlcken uns Probleme aufgeben solltenrdquo (PR 156)
139
possibilidade infinita da sua aplicaccedilatildeo sob a forma espiral mas essa possibilidade natildeo eacute
uma prova em que a regra seja demonstrada como teacutermino de uma cadeia de equaccedilotildees
(cf PR 163 e 164) Esta regra eacute uma definiccedilatildeo natildeo eacute o resultado final de uma prova
matemaacutetica Sendo assim como ficamos a saber que eacute correta a expressatildeo de uma lei
associativa Porquanto a sua proacutepria expressatildeo o mostra quer seja ela uma expressatildeo
aritmeacutetica ou algeacutebrica (cf PR 165) Toda a regra de um sistema eacute a sua proacutepria prova
que natildeo se pode nem negar nem afirmar Mas de que modo eacute que ela mostra a sua
proacutepria prova Por induccedilatildeo E se perguntarmos como eacute que a podemos verificar apenas
se pode dizer que a verificaccedilatildeo de uma definiccedilatildeo eacute o que ela proacutepria diz Mais a
compreensatildeo indutiva de uma definiccedilatildeo natildeo eacute uma expressatildeo algeacutebrica do que se induz
de certas expressotildees aritmeacuteticas (cf PR 166) A expressatildeo algeacutebrica de uma regra de
um sistema natildeo eacute uma generalizaccedilatildeo de certas expressotildees aritmeacuteticas Ela mesma eacute o
seu proacuteprio sentido mostrado por induccedilatildeo a qual eacute uma prova de generalizaccedilatildeo (cf PR
168) Mas se eacute por induccedilatildeo que se prova uma definiccedilatildeo o mesmo natildeo podemos afirmar
de uma proposiccedilatildeo algeacutebrica ldquoUm esquema algeacutebrico deriva o seu sentido a partir do
modo como eacute aplicadordquo241 (PR 167) O que pode provar uma proposiccedilatildeo matemaacutetica eacute
outra proposiccedilatildeo matemaacutetica ateacute que tal natildeo seja mais possiacutevel por se estar perante uma
definiccedilatildeo (cf PR 167 e 169) Por isso uma proposiccedilatildeo matemaacutetica dada por definiccedilatildeo eacute
uma estipulaccedilatildeo Assim toda a equaccedilatildeo ganha o seu sentido com as estipulaccedilotildees que
permitem a sua prova e consequentemente ldquoO sistema de proposiccedilotildees algeacutebricas
corresponde a um sistema de induccedilotildeesrdquo242 (PR 167) Eacute a induccedilatildeo que deste modo
possibilita a aplicaccedilatildeo da aacutelgebra agrave aritmeacutetica A prova de generalizaccedilatildeo dada por
induccedilatildeo eacute a raiz da generalizaccedilatildeo da equaccedilatildeo matemaacutetica E por seu turno eacute a sua
generalizaccedilatildeo que possibilita a correta aplicaccedilatildeo aritmeacutetica da equaccedilatildeo (cf PR 168)243
241 ldquoAn algebraic schema derives its sense from the way in which it is appliedrdquo ldquoDas algebraische Schema erhaumllt seinen Sinn durch die Art seiner Anwendungrdquo (PR 167)
242 ldquoThe system of algebraic propositions corresponds to a system of inductionsrdquo ldquoDas System von algebraischen Saumltzen entspricht einem System von Induktionenrdquo (PR 167)
243 Vemos em tudo isto a consequecircncia natural da conceccedilatildeo que Wittgenstein tem da matemaacutetica que vem mais tarde a assumir de forma expressa (cf RFM I 168 e RFM II 38) como uma construccedilatildeo e natildeo uma descoberta colocando-o em oposiccedilatildeo com o pensamento tiacutepico dos matemaacuteticos e dos filoacutesofos (cf MOORE A W ldquoWittgensteinrsquos Later Philosophy of Mathematicsrdquo pp 321-322) O seu construtivismo opotildee-se ao platonismo dominante no pensamento sobre a matemaacutetica eacute a prova que confere sentido agrave proposiccedilatildeo matemaacutetica negando que ela antes de ter condiccedilotildees para encontrar um meacutetodo de prova possa fazer qualquer sentido rejeita que uma proposiccedilatildeo matemaacutetica possa assentar em entidades abstratas ontologicamente independentes do pensamento matemaacutetico que possam ter algum significado que natildeo advenha do puro caacutelculo (cf MARION Mathieu et Mitsuhiro Okada ldquoWittgenstein et le lien entre la signification drsquoun eacutenonceacute matheacutematique et as preuverdquo pp 101-106)
140
O meacutetodo de prova matemaacutetica consiste assim num determinado processo de
caacutelculo realizado a partir de estipulaccedilotildees cujo resultado eacute a proposiccedilatildeo matemaacutetica a
provar quando ela eacute verdadeira ou outra que a nega por ela ser falsa Sublinhe-se
poreacutem que justamente por serem diferentes tipos de proposiccedilotildees a negaccedilatildeo de uma
proposiccedilatildeo aritmeacutetica (como seja por exemplo 2 + 3 sup1 4 nega 2 + 3 = 4) natildeo significa o
mesmo que a negaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo natildeo-matemaacutetica Na negaccedilatildeo da primeira
contiacutenua a estabelecer-se uma relaccedilatildeo positiva (2 + 3 gt 4) ou indeterminada (2 + 3 sup1 4)
entre os dois lados da equaccedilatildeo mas natildeo eacute possiacutevel como na negaccedilatildeo da segunda fazer
dela uma imagem (cf PR 200 201 e 203) Da condiccedilatildeo de encontrar um meacutetodo de
prova que ateste a verdade ou falsidade de uma proposiccedilatildeo matemaacutetica depende o facto
de ela ter sentido Quando essa condiccedilatildeo natildeo se verifique isso soacute pode querer dizer que
a proposiccedilatildeo natildeo tem sentido Mas seja como for isso depende de ela suscitar uma
compreensatildeo imediata E se haacute essa compreensatildeo entatildeo eacute porque a proposiccedilatildeo eacute dada
por um sistema de siacutembolos seja ele escrito ou natildeo escrito em que podemos procurar o
seu meacutetodo de prova A sua natildeo compreensatildeo imediata natildeo eacute um momento transitoacuterio
para uma compreensatildeo ulterior facultada pela sua prova matemaacutetica Como se natildeo nos
fosse possiacutevel estabelecer uma conexatildeo entre os dois lados de uma equaccedilatildeo ateacute que dela
fizeacutessemos prova Uma equaccedilatildeo de que natildeo temos uma compreensatildeo imediata natildeo tem
uma suposta conexatildeo subjacente entre os seus dois lados a ser descoberta pela prova Se
essa conexatildeo existe eacute porque os seus siacutembolos permitem estabelececirc-la e ela existe na
medida em que possuiacutemos de algum modo esses siacutembolos e as conexotildees entre eles (cf
PR 174) Daiacute que Wittgenstein afirme
A conexatildeo entre siacutembolos que existe mas natildeo pode ser representada mediante transformaccedilotildees simboacutelicas eacute um pensamento que natildeo pode ser pensado Se a conexatildeo estiver laacute entatildeo deve ser possiacutevel vecirc-la244 (PR 174)
E natildeo pode ser pensado porque a linguagem matemaacutetica opera precisamente com
transformaccedilotildees simboacutelicas Satildeo estas transformaccedilotildees e a possibilidade de atraveacutes delas
provar o sentido de uma proposiccedilatildeo matemaacutetica que permitem dizer que ldquo[] lsquoUma
244 ldquoA connection between symbols which exist but cannot be represented by symbolic transformations is a thought that cannot be thought If the connection is there then it must be possible to see itrdquo ldquoEine Verbindung zwischen Symbolen die besteht sich aber nicht durch symbolische Uumlbergaumlnge darstellen laumlszligt ist ein Gedanke der sich nicht denken laumlszligt Ist die Verbindung da so muszlig sie sich einsehen lassenrdquo (PR 174)
141
proposiccedilatildeo matemaacutetica eacute um apontador para uma compreensatildeo intuitivarsquo rdquo245 (PR 174)
A compreensatildeo imediata de uma proposiccedilatildeo matemaacutetica tem pois o seu fundamento na
experiecircncia da conexatildeo determinada entre siacutembolos Mas o mesmo podemos dizer da
induccedilatildeo atraveacutes da qual compreendemos nessas proposiccedilotildees a generalizaccedilatildeo Satildeo os
proacuteprios conceitos matemaacuteticos e equaccedilotildees que tecircm em si por compreensatildeo imediata da
induccedilatildeo a possibilidade de generalizaccedilatildeo
245 ldquo[hellip] lsquoA mathematical proposition is a pointer to an insightrsquo rdquo ldquo[hellip] der mathematische Satz ist eine Anweisung auf eine Einsicht rdquo (PR 174)
142
Notas Conclusivas
1
No regresso agrave atividade filosoacutefica depois de a ter interrompido durante cerca de
10 anos Wittgenstein percebe que natildeo tinha razatildeo quando afirmou no proacutelogo agrave obra
que ditou o seu abandono temporaacuterio da filosofia ter com ela resolvido todos os
problemas filosoacuteficos O problema da incompatibilidade das cores com que se defronta
em 1929 e jaacute aflorado pelo seu amigo Frank P Ramsey na sua recensatildeo do TLP
publicada em 1923 na revista Mind parece abalar seriamente a estrutura ontoloacutegico-
loacutegica dessa obra O seu atomismo loacutegico de acordo com o qual os factos atoacutemicos satildeo
condiccedilatildeo de verificaccedilatildeo da veracidade das proposiccedilotildees elementares sobre as quais se
estruturam logicamente em funccedilotildees de verdade as proposiccedilotildees complexas com que se
descreve o mundo natildeo eacute harmonizaacutevel com a realidade das cores O que de acordo com
ela pode acontecer contraria a independecircncia muacutetua das proposiccedilotildees elementares
configurando uma impossibilidade loacutegica no mesmo espaccedilo e ao mesmo tempo
coexistirem duas ou mais cores Essa independecircncia eacute contudo essencial ao
desenvolvimento da sua loacutegica que parte do pressuposto ontoloacutegico de que os objetos
satildeo simples e ocorrem em conexatildeo consubstanciando factos que satildeo unidades baacutesicas
do mundo a que correspondem de modo figurativo e de um para um as proposiccedilotildees
elementares da loacutegica O problema da incompatibilidade das cores eacute o da contradiccedilatildeo
loacutegica de duas ou mais proposiccedilotildees elementares poderem na realidade descrever o
mesmo fato atoacutemico246
246 Sobre o enquadramento deste problema e dos seus posteriores desenvolvimentos na obra de Wittgenstein ver JACQUETTE Dale ldquoWittgenstein and the Color Incompatibility Problemrdquo History of Philosophy Quarterly Vol 7 Nordm 3 1990 pp 353-365
143
2
A primeira abordagem de Wittgenstein para solucionar este problema volta a natildeo
confiar na linguagem comum uma vez que ela eacute dada a pseudoproposiccedilotildees e a termos
ambiacuteguos insistindo antes na necessidade de elaborar uma simbologia imune ao sem-
sentido como era o caso da linguagem loacutegica do TLP com recurso jaacute natildeo agrave anaacutelise
loacutegica da linguagem corrente mas agrave investigaccedilatildeo loacutegica dos proacuteprios fenoacutemenos (cf
SRLF p 30) Seria essa investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica a sustentar uma nova linguagem
pura porque ajustada precisamente agrave descriccedilatildeo da forma loacutegica da experiecircncia imediata
dos fenoacutemenos A fenomenologia desta primeira abordagem seria capaz de identificar as
proposiccedilotildees elementares e descrever a sua estrutura (cf SRLF pp 30-31) Wittgenstein
parece nesta altura ainda acreditar que assim poderia resgatar a ontologia do TLP
3
Em Outubro de 1929 Wittgenstein cede finalmente agrave linguagem comum
deixando de acreditar que seja possiacutevel uma linguagem fenomenoloacutegica O sinal que daacute
eacute certamente de abdicaccedilatildeo de uma linguagem primaacuteria seja ela fenomenoloacutegica ou
formal cujo estatuto se afirmava por oposiccedilatildeo agrave linguagem comum considerada
secundaacuteria O que o decidiu teraacute sido o facto de ser absurda e natildeo necessaacuteria uma
linguagem fenomenoloacutegica A confusatildeo desta linguagem com uma suposta linguagem
do pensamento capaz de expressar a experiecircncia imediata dos fenoacutemenos uma
linguagem portanto que ao contraacuterio da linguagem comum natildeo mediatiza os dados
imediatos da experiecircncia eacute para Nuno Venturinha uma inequiacutevoca ilusatildeo ndash toda a
linguagem mediatiza o que representa e natildeo existe uma experiecircncia imediata cuja
denotaccedilatildeo natildeo seja mediatizada pela linguagem247 A cedecircncia agrave linguagem comum
onde se distinga o que eacute essencial e natildeo essencial na descriccedilatildeo que faz do fenoacutemeno
natildeo tem pois para Wittgenstein como consequecircncia necessaacuteria o abandono do projeto
247 VENTURINHA Nuno ldquoWittgenstein on Heraclitus and Phenomenologyrdquo p 96
144
fenomenoloacutegico A investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute um desiacutegnio que pode ser levado a
cabo pela linguagem comum
4
Perceber ateacute que ponto a linguagem comum pode descrever os fenoacutemenos
respeitando o imediatamente dado pela experiecircncia depende da inteligibilidade do seu
modo proacuteprio de mediaccedilatildeo ou representaccedilatildeo Qual a origem e como se desenvolve a
aquisiccedilatildeo da linguagem seratildeo seguramente questotildees importantes para clarificar essa sua
capacidade de representar o mundo No TLP defende-se que a linguagem eacute originada
pelo pensamento jaacute que eacute atraveacutes dela que ele se exprime Se isto significa que a
compreensatildeo da linguagem envolve necessariamente a compreensatildeo do pensamento
entatildeo teraacute de ser a proacutepria linguagem comum uma vez que uma linguagem do
pensamento caso exista eacute inexpressiva a mostrar o modo como o pensamento se
expressa Ou seja teraacute de ser o pensamento mediante a linguagem com que se exprime
a explicar-se a si mesmo Como a linguagem soacute tem sentido quando se refere agraves
experiecircncias imediatas dos fenoacutemenos tal como satildeo apreendidos sensorialmente e o
pensamento natildeo eacute um fenoacutemeno natildeo eacute entatildeo possiacutevel agrave linguagem exprimir-se sobre o
pensamento E o que ele expressa atraveacutes da linguagem somente os signos escritos ou
orais satildeo fenoacutemenos sobre os quais a linguagem se pode manifestar Pelo contraacuterio
quanto ao que os signos significam ou dito de outro modo agrave experiecircncia do simboacutelico
ela nada pode dizer Em siacutentese natildeo haacute uma fenomenologia do pensamento e por
conseguinte o pensamento eacute impensaacutevel A este respeito a conclusatildeo a que se chega eacute a
mesma do TLP
5
A aprendizagem da linguagem pela crianccedila tambeacutem natildeo nos ajuda a perceber
como se constitui o significado das palavras ou o sentido das proposiccedilotildees Natildeo eacute
igualmente possiacutevel agrave linguagem falar dessa aprendizagem justamente porque natildeo
sendo ela um fenoacutemeno nunca dela se tem experiecircncia imediata Daiacute que a memoacuteria
dessa aprendizagem natildeo permite justificar a formaccedilatildeo do sentido do que exprimimos
145
por palavras e o mesmo acontece com o significado que as palavras tecircm Eacute natural que
essa aprendizagem da linguagem seja sempre realizada com o envolvimento do
pensamento mas novamente a experiecircncia do pensamento eacute inefaacutevel O que
percebemos eacute que o sentido do que vamos apreendendo a dizer estaacute intimamente ligado
agrave accedilatildeo humana e ao contexto onde ela ocorre E eacute essa ligaccedilatildeo original e essencial ao
mundo que determina que os usos da linguagem apenas tecircm sentido quando a ele se
referem Com esta forma de aprendizagem da linguagem aprende-se igualmente a
pensar a verdade ou a falsidade do que tem a possibilidade de ser dito com todo o
sentido O pensamento da verdade ou falsidade eacute aprendido nessa relaccedilatildeo primaacuteria da
linguagem com o mundo com a experiecircncia desta aprendizagem o pensamento adquire
o poder para decidir a verdade ou falsidade de tudo o que pode exprimir com sentido
Esse poder dissipa-se logo que os usos da linguagem percam de vista o mundo isto eacute
deixem de ter sentido Ora se eacute claro que por impossibilidade de pensar o pensamento
a expressatildeo simboacutelica da linguagem se nos apresenta arbitraacuteria pelo mesmo motivo natildeo
se mostra menos arbitraacuteria a decisatildeo entre a verdade e a falsidade de uma proposiccedilatildeo
com sentido
6
Resta assim a linguagem como fenoacutemeno onde se percebem usos de formas
sonoras ou grafadas que a proacutepria linguagem comum designa por signos consistindo em
palavras e na sua articulaccedilatildeo em proposiccedilotildees que substituem ou fazem a vez de outros
fenoacutemenos A fenomenologia da linguagem descreve esses usos de modo a mostrar a
sua forma loacutegica Ora o que eacute notoacuterio nessa descriccedilatildeo eacute que as palavras satildeo usadas de
acordo com regras e que satildeo essas regras que facultam aos signos a sua simbologia Satildeo
regras de representaccedilatildeo que conferem significado agraves palavras e sentido agraves proposiccedilotildees
Satildeo elas que a crianccedila apreende na relaccedilatildeo ativa com o mundo vindo assim este a
estruturar-se segundo uma ordem simboacutelica em que a representaccedilatildeo de um fenoacutemeno
fica agrave partida determinada pelas possibilidades de uso das palavras em conformidade
com essas regras Uma fenomenologia que desta maneira eacute gramatical E uma
investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica que eacute afinal uma investigaccedilatildeo gramatical
146
7
O facto de natildeo ser possiacutevel justificar como ficamos a saber o significado das
palavras deixa tambeacutem sem fundamento as regras que instituem esse significado A
linguagem natildeo se consegue fundamentar a si proacutepria pois a justificaccedilatildeo das regras
gramaticais soacute pode ser realizada com base noutras regras estas mesmas a serem
justificadas por outras ainda numa seacuterie interminaacutevel de justificaccedilotildees Wittgenstein diz
que as regras da linguagem satildeo convenccedilotildees gramaticais mas acrescenta que satildeo
convenccedilotildees arbitraacuterias a gramaacutetica eacute arbitraacuteria As regras gramaticais ligam de uma
certa maneira os signos aos fenoacutemenos mas essa ligaccedilatildeo natildeo eacute determinada pelos
fenoacutemenos pelo contraacuterio satildeo as proacuteprias regras a determinar essa ligaccedilatildeo O mundo eacute
representado segundo as possibilidades de uma ordem simboacutelica mas esta ordem eacute em
si mesma autoacutenoma relativamente ao mundo
8
Sobre a natureza das regras gramaticais Wittgenstein caracteriza-a por analogia
com escalas de medida ou padrotildees Tambeacutem com estas regras se firmam padrotildees
simboacutelicos que estabelecem uma certa relaccedilatildeo interna (coordenaccedilatildeo) entre signos
dando origem a um sistema de signos cada um deles adquirindo o seu significado por
relaccedilatildeo determinada aos outros signos do mesmo sistema Em consequecircncia natildeo eacute mais
possiacutevel com este sistema assegurar que as proposiccedilotildees elementares satildeo independentes
entre si inviabilizando um aspeto essencial da loacutegica do TLP Eacute jaacute um sistema de
proposiccedilotildees que agrave semelhanccedila de um instrumento de medida eacute aplicado agrave realidade de
tal modo que a realidade eacute descrita como se de uma mediccedilatildeo se tratasse por uma das
proposiccedilotildees do sistema Ao aplicaacute-lo dispotildee-se a priori de todas as possibilidades de
ordem simboacutelica para descriccedilatildeo da realidade pelo que se por exemplo a descriccedilatildeo
segundo uma das possibilidades for falsa isto permite inferir que pelo menos uma das
outras possibilidades eacute verdadeira Estabelecem-se deste modo relaccedilotildees inferenciais
entre as proposiccedilotildees do mesmo sistema248
248 Cf MEDINA Joseacute The Unity of Wittgensteinrsquos Philosophy ndash Necessity Intelligibility and Normativity p 42
147
9
Outra das conclusotildees principais a que chega a sua fenomenologia da linguagem
eacute que os objetos que integram os fenoacutemenos de que se tem experiecircncia imediata natildeo satildeo
definidos pelas suas propriedades reais mas por conceitos relativos a propriedades
formais Assim a noccedilatildeo que se tem de um objeto decorre dos conceitos formais que a
caraterizam Completa-se deste jeito o desabamento da ontologia do TLP a loacutegica ou a
gramaacutetica jaacute natildeo precisa de objetos com substacircncia Para ela um objeto eacute apenas uma
unidade de sentido composta pelos conceitos formais que o definem Se a descriccedilatildeo de
um fenoacutemeno eacute apenas determinada pelas regras gramaticais tambeacutem a definiccedilatildeo de um
objeto depende tatildeo-soacute dos conceitos formais que o constituem como noccedilatildeo
10
Com esta nova visatildeo filosoacutefica a atividade da filosofia centra-se sobre a
determinaccedilatildeo das possibilidades gramaticais de representaccedilatildeo dos fenoacutemenos ldquoA
fenomenologia estabelece somente as possibilidadesrdquo249 (PR 1) Satildeo gramaticalmente
possiacuteveis todas as proposiccedilotildees que tecircm a possibilidade de verificaccedilatildeo da sua verdade ou
falsidade junto agrave experiecircncia imediata da realidade fiacutesica Eacute essa possibilidade de
verificaccedilatildeo que distingue as proposiccedilotildees com sentido das que por natildeo terem essa
possibilidade satildeo sem-sentido Elas satildeo sem-sentido por natildeo ser possiacutevel clarificar as
suas regras de representaccedilatildeo uma vez que natildeo existe uma ligaccedilatildeo dos signos aos
fenoacutemenos Agrave filosofia cabe-lhe entatildeo delimitar as proposiccedilotildees cujas regras
gramaticais possibilitam a verificaccedilatildeo da sua verdade ou falsidade daquelas que natildeo tecircm
essa possibilidade Natildeo obstante se ter deixado cair os principais fundamentos
ontoloacutegico-loacutegicos do TLP o pensamento continua a natildeo se poder exprimir de outro
modo que natildeo seja atraveacutes de proposiccedilotildees com sentido isto eacute que estatildeo de acordo com
uma gramaacutetica e o papel aqui atribuiacutedo agrave filosofia natildeo eacute diferente do que lhe tinha sido
atribuiacutedo nessa obra demarcar a linha de fronteira entre o que o pensamento pode
exprimir e o que eacute por ele inexprimiacutevel
249 ldquoPhenomenology only establishes the possibilitiesrdquo ldquoDie Phaumlnomenologie stellt nur die Moumlglichkeiten festrdquo (PR 1)
148
11
Para a sua filosofia o imediatamente dado pelos sentidos eacute a experiecircncia que
natildeo se distingue da realidade ndash o fenoacutemeno eacute a realidade se algo separa o fenoacutemeno da
realidade a sua experiecircncia por sua parte mostra-a sem mediaccedilotildees ndash a realidade eacute a sua
experiecircncia imediata esta natildeo a transforma eacute-lhe absolutamente transparente Natildeo
existem aqui questotildees epistemoloacutegicas a serem discutidas nem aspetos psicoloacutegicos a
ter em conta na experiecircncia Se a realidade eacute algo mais do que a experiecircncia dela a
filosofia nada sobre isso pode dizer com sentido pois a experiecircncia imediata eacute toda a
realidade que se conhece A essecircncia da realidade eacute tatildeo impensaacutevel quanto a esfera
psiacutequica Os usos filosoacuteficos das palavras na metafiacutesica arredam-nos para fora do campo
da gramaacutetica e tornam sem-sentido as proposiccedilotildees que usam essas palavras Eacute isso
tambeacutem que acontece com os usos comuns os usos como lhe chama Wittgenstein da
linguagem fiacutesica que satildeo feitos das palavras laquotemporaquo laquoespaccediloraquo e laquoeuraquo Na experiecircncia
imediata dos fenoacutemenos natildeo se verifica o tempo fiacutesico que eacute o do movimento dos
corpos onde o presente a cada instante passa a passado para que o futuro se volva
presente na experiecircncia imediata estamos perante o atemporal ou melhor perante
todos os momentos de tempo Tambeacutem a experiecircncia dos outros natildeo eacute algo de que se
possa ter experiecircncia imediata portanto a experiecircncia natildeo distingue um eu por oposiccedilatildeo
a outros eus eacute falsa a individuaccedilatildeo pela experiecircncia o indiviacuteduo subjetivo natildeo existe
Mas tambeacutem natildeo existe na experiecircncia imediata o espaccedilo visual que eacute o espaccedilo fiacutesico
constituiacutedo pela visatildeo de um corpo que se vecirc como corpo proacuteprio a ver outros corpos
espalhados pelo seu campo de visatildeo o que eacute imediatamente dado eacute simplesmente a
experiecircncia de espaccedilo geomeacutetrico onde se situam diferentes objetos
12
A experiecircncia imediata da realidade pode suscitar outras experiecircncias mediatas
com uma natureza supersensiacutevel onde se singulariza pela sua mobilizaccedilatildeo interior e ateacute
pelo seu caraacutecter sobrenatural como se fosse um milagre a experiecircncia eacutetico-esteacutetica
Obviamente a gramaacutetica que apenas diz respeito aos fenoacutemenos exclui como sem-
sentido toda a proposiccedilatildeo que se refira a esta experiecircncia A teoria eacutetica ou esteacutetica natildeo
tem em rigor qualquer razatildeo de ser a expressatildeo do eacutetico ou do esteacutetico eacute impensaacutevel
149
A possibilidade que eacute ao mesmo tempo uma esperanccedila de lhe fazer referecircncia ainda
que com recurso a expressotildees sem-sentido eacute a evocaccedilatildeo de vivecircncias com essa
natureza Tipicamente a referecircncia agraves experiecircncias eacutetico-esteacuteticas eacute feita por siacutemiles que
se lhe referem por relaccedilatildeo de semelhanccedila com um certo facto Poreacutem os siacutemiles soacute
fazem sentido quando estabelecem semelhanccedilas entre fenoacutemenos mas nunca entre um
fenoacutemeno e aquilo que natildeo o eacute como se a experiecircncia imediata pudesse ou natildeo
confirmar essas semelhanccedilas De resto se satildeo inefaacuteveis os valores absolutos da eacutetica ou
da esteacutetica o mesmo natildeo se passa com os valores relativos Pois estes satildeo referentes a
situaccedilotildees de comensuraccedilatildeo do que eacute dado pela experiecircncia imediata ao serviccedilo de uma
finalidade da vida praacutetica Ao contraacuterio do TLP por razotildees gramaticais compreensiacuteveis
a afetividade natildeo tem aqui relaccedilatildeo com os valores e estaacute tambeacutem ausente a inclinaccedilatildeo
miacutestica presente naquela obra
13
A fenomenologia da linguagem matemaacutetica natildeo necessita de que as proposiccedilotildees
matemaacuteticas sejam verificaacuteveis na experiecircncia imediata da realidade fiacutesica senatildeo da
proacutepria experiecircncia imediata dos seus signos a matemaacutetica eacute constituiacuteda pelos seus
proacuteprios signos (cf PR 157) e natildeo eacute um fenoacutemeno cuja experiecircncia o pensamento
possa expressar Isto significa que as proposiccedilotildees matemaacuteticas natildeo satildeo uma expressatildeo
do pensamento como jaacute o TLP o enunciava (cf TLP 621) O seu sentido soacute depende
do proacuteprio fenoacutemeno linguiacutestico do caacutelculo como aplicaccedilatildeo de si mesmo e da sua
intuiccedilatildeo isto eacute de ele ser em si mesmo compreensiacutevel Por isso Wittgenstein reconhece
o caraacutecter apodiacutetico da matemaacutetica Desde logo porque os nuacutemeros natildeo satildeo extensotildees de
conceitos apenas se referindo aos objetos por eles compreendidos Mas eles natildeo satildeo soacute
independentes relativamente aos conceitos como tambeacutem o satildeo no que respeita agrave
contagem de objetos cuja relaccedilatildeo eacute meramente contingente Os nuacutemeros surgem das
relaccedilotildees entre signos determinadas por estruturas ou formas loacutegicas segundo as quais se
processam os caacutelculos e que traduzem propriedades internas das extensotildees Estas
estruturas ou formas loacutegicas de articulaccedilatildeo dos nuacutemeros satildeo as regras que constituem a
sua gramaacutetica sendo o caacutelculo aritmeacutetico a aplicaccedilatildeo exata dessas regras Quanto agraves
equaccedilotildees algeacutebricas satildeo regras de sintaxe com o seu proacuteprio sentido e em si mesmas
verdadeiras ou falsas Satildeo as regras sintaacuteticas da matemaacutetica que tornam as suas
150
proposiccedilotildees imediatamente compreensiacuteveis (intuitivas) Poreacutem a compreensatildeo imediata
do seu sentido soacute eacute possiacutevel quando jaacute dispomos de um meacutetodo loacutegico que as prova eacute a
possibilidade de um meacutetodo de prova no interior de um sistema gramatical com regras
baacutesicas dadas por definiccedilatildeo (natildeo passiacuteveis de prova) que faz com que imediatamente
compreendamos o seu sentido E por outro lado a prova de uma proposiccedilatildeo
matemaacutetica eacute a prova da sua verdade ou falsidade Finalmente o infinito natildeo sendo um
nuacutemero pois soacute se conhecem nuacutemeros finitos e natildeo todos os nuacutemeros natildeo entra no
caacutelculo numeacuterico ou algeacutebrico No entanto a possibilidade do infinito serve para numa
prova por induccedilatildeo exprimir a generalizaccedilatildeo matemaacutetica
151
PARTE III ndash A GRAMAacuteTICA DO PENSAMENTO
152
Capiacutetulo 8 ndash O Pensamento Filosoacutefico
Existem entatildeo dois tipos de pensamento cada um legiacutetimo e necessaacuterio agrave sua maneira pensamento calculista e pensamento meditativo Este pensamento meditativo eacute o que temos em mente quando dizemos que o homem contemporacircneo estaacute fugindo do pensamento [hellip] No entanto qualquer um pode seguir o caminho do pensamento meditativo agrave sua maneira e dentro de seus proacuteprios limites Porquecirc Porque o homem eacute um pensamento isto eacute um ser meditativo250
O Modo de Pensamento Filosoacutefico
Wittgenstein reflete no seu modo proacuteprio de pensamento filosoacutefico num texto
com o tiacutetulo ldquoPhilosophyrdquo que eacute parte da sua obra The Big Typescript TS 213 (BT) O
paraacutegrafo que inaugura esse texto fala-nos sobre o que condiciona esse modo de
pensamento
Como tenho dito frequentemente a filosofia natildeo me leva a nenhuma renuacutencia jaacute que eu natildeo me abstenho de dizer algo mas antes a abandonar uma certa combinaccedilatildeo de palavras sem sentido Noutro sentido contudo a filosofia requer efetivamente uma renuacutencia mas a do sentimento natildeo a do intelecto E talvez seja isso que a torna tatildeo difiacutecil para muitos Pode ser difiacutecil natildeo usar uma expressatildeo tal como eacute difiacutecil reter as laacutegrimas ou a explosatildeo de raiva251 (BT 86 p 300)
250 ldquoThere are then two kinds of thinking each justified and needed in its own way calculative thinking and meditative thinking This meditative thinking is what we have in mind when we say that contemporary man is in flight-from-thinking [hellip] Yet anyone can follow the path of meditative thinking in his own manner and within his own limits Why Because man is a thinking that is a meditative beingrdquo (HEIDEGGER Martin Discourse on Thinking John M Anderson e E Hans Freund (Trad) Harper Torchbooks New York 1966 pp 46-47)
251 ldquoAs I have often said philosophy does not lead me to any renunciation since I do not abstain from saying something but rather abandon a certain combination of words as senseless In another sense however philosophy does require a resignation but one of feeling not of intellect And maybe that is what makes it so difficult form many It can be difficult not to use an expression just as it is difficult to hold back tears or an outburst of ragerdquo (BT 86 p 300e) ldquoWie ich oft gesagt habe fuumlhrt die Philosophie mich zu keinem Verzicht da ich mich nicht entbreche etwas zu sagen sondern eine gewisse Wortverbindung als sinnlos aufgebe In anderem Sinne aber erfordert die Philosophie dann eine
153
Se o seu filosofar o leva ao abandono de expressotildees do pensamento sem-sentido isso
natildeo eacute de modo algum uma renuacutencia senatildeo a consequecircncia natural desse seu modo
proacuteprio de pensamento ldquo[] que por assim dizer voa sobre o mundo e o deixa tal como
eacute ndash observando-o de cima em voordquo252 (CV 1930 p 18) Segundo o filoacutesofo eacute este o
modo distinto de apreender o mundo sob o aspeto da eternidade (sub specie
aeternitatis) Esse modo de pensamento panoracircmico como que nos obriga a ver o
mundo da perspetiva correta ndash a que pensa o mundo como quem o contempla de fora e
com ele se maravilha como se assistisse como nos eacute dito no TLP a um milagre o
milagre da existecircncia do mundo O mundo tal qual ele eacute dir-se-ia mesmo que ele eacute uma
peccedila de teatro e o filoacutesofo o seu espectador encantado com o que vecirc pela primeira vez
Sugere Wittgenstein a Engelmann um amigo seu arquiteto que eacute possivelmente esta
perspetiva panoracircmica que acaba por natildeo o deixar publicar uma seleccedilatildeo dos seus
manuscritos depois de estes ocasionalmente lhe terem parecido merecedores de
conhecimento puacuteblico (cf CV 1930 pp 17-18) A ela que o faz por assim dizer
despertar de um entusiasmo gerado com o seu envolvimento afetivo com esses
manuscritos que lhe turva o olhar e o ilude ao ver neles uma obra de arte O enlevo
primordial com o mundo surge deste despertar com origem no suacutebito desapego no total
despojamento afetivo em relaccedilatildeo ao mundo Nele se descobre o mundo sub specie
aeterni O mesmo geacutenero de descoberta diz-nos Wittgenstein com que somos
surpreendidos na arte pois tambeacutem ela nos obriga a adotar uma perspetiva correta agrave
partida desinteressada mas aberta ao inesperado encantatoacuterio (cf CV 1930 p 18) Eacute
este desapego que eacute exigido ao filoacutesofo cujo pensamento natildeo pode ceder de nenhum
modo aos iacutempetos vigorosos de expressatildeo afetiva que eacute capaz de viver sob o reinado
absoluto do intelecto E eacute justamente por que nem todo o pensamento filosoacutefico eacute
imune aos poderosos efeitos da afetividade mesmo quando se tem essa pretensatildeo que a
filosofia enuncia amiuacutede proposiccedilotildees sem-sentido Que certa filosofia natildeo toma como
verdade o mundo tal como eacute mas diferente mais de acordo com a vontade do filoacutesofo
Resignation aber des Gefuumlhls nicht des Verstandes Und das ist es vielleicht was sie Vielen so schwer macht Es kann schwer sein einen Ausdruck nicht zu gebrauchen wie es schwer ist die Traumlnen zuruumlckzuhalten oder einen Ausbruch der Wutrdquo (BT 86 p 300)
252ldquo[hellip] as it were flies above the world and leaves it the way it is contemplating it from above in its flightrdquo (CV 1930 p 7e) ldquo[hellip] der Weg des Gedankens der gleichsam uumlber die Welt hinfliege und sie si laumlszligt wie sie ist - sie von oben vom Fluge betrachtendrdquo (CV 1930 p 7) Existem vaacuterias alternativas para o final desta observaccedilatildeo Ver a este respeito VENTURINHA Nuno Loacutegica Eacutetica Gramaacutetica Wittgenstein e o Meacutetodo da Filosofia pp 351-352
154
Eacute a vontade que ao interpor-se entre o mundo e quem o olha forccedila um modo de
pensamento filosoacutefico determinado pelas suas exigecircncias eivadas pelo sentimento O
mundo natildeo eacute visto como eacute senatildeo como o querem ver Daiacute que as dificuldades de
compreensatildeo das coisas satildeo muitas vezes levantadas pela proacutepria vontade que
obstinada contraria o que eacute dado pelo intelecto como oacutebvio (cf BT 86 p 300)
Remova-se a accedilatildeo da vontade e com ela dissipar-se-atildeo as dificuldades de
compreensatildeo O filoacutesofo nada pode esperar das coisas sobre as quais pensa Assim o
trabalho do filoacutesofo eacute a todo o tempo sobre si mesmo sobre o modo como compreende
as coisas para que o seu pensamento sobre o mundo o deixe tal como ele eacute (cf BT 86
p 300) Eis assim o filoacutesofo ideal em que Wittgenstein se revecirc
O meu ideal eacute uma certa frieza Um templo que proporcione um fundo para as paixotildees sem com elas se imiscuir253 (CV 1929 p 15)
O pensamento filosoacutefico eacute naturalmente acompanhado pelos sentimentos como aliaacutes
sucede com tudo o que acontece na nossa vida mas deve por assim dizer elevar-se
acima deles alcandorando-se onde eles natildeo se faccedilam sentir A frieza que se lhe exige eacute
a da soberania do intelecto que natildeo ignora contudo as paixotildees mas coloca-as agrave
distacircncia suficiente para tambeacutem sobre elas poder pairar e observaacute-las livremente fora
do alcance dos seus impulsos Neste sentido o filoacutesofo natildeo deve distinguir por forccedila do
seu querer a importacircncia dos problemas filosoacuteficos que trata De um ponto de vista
meramente intelectual natildeo existem problemas essecircncias e universais que se opotildeem a
problemas natildeo essenciais (cf BT 86 p 301)
Segundo Wittgenstein eacute sempre possiacutevel identificar num pensamento filosoacutefico
permeaacutevel agrave afetividade uma falsa analogia que o rege de forma subentendida (cf BT
87 pp 302-303) Como jaacute tiacutenhamos reparado anteriormente a propoacutesito do eacutetico ou
esteacutetico eacute falsa a analogia que estabelece uma relaccedilatildeo de semelhanccedila quando lhe falta o
facto que a comprove E por essa razatildeo satildeo sem-sentido as suas proposiccedilotildees A
aceitaccedilatildeo destas falsas analogias na linguagem eacute para o filoacutesofo geradora de tensatildeo e
inquietaccedilatildeo significando isto ldquo(O caraacutecter perturbador da falta de clareza
253 ldquoMy ideal is a certain coldness A temple that sets the scene for passions without interfering with themrdquo (CV 1929 p 4e) ldquoMein Ideal ist eine gewisse Kuumlhle Ein Tempel der den Leidenschaften als Umgebung dient ohne in sie hineinzuredenrdquo (CV 1929 p 4)
155
gramatical)rdquo254 Elas na realidade nunca nos deixam ver claramente sobre o que eacute se
estaacute a falar pois jamais eacute possiacutevel verificar a semelhanccedila que estabelecem Cabe pois
ao filoacutesofo de pensamento panoracircmico libertar-nos do que na linguagem nos perturba
facultar-nos a expressatildeo linguiacutestica inofensiva sobre o que ateacute aiacute natildeo era possiacutevel
expressar sem peso na consciecircncia Nisto configura-se o entendimento da filosofia como
terapia255 Para tanto eacute fundamental que o filoacutesofo encontre as palavras certas sobre isso
que nos perturba aquelas que correspondem exatamente agrave sua fisionomia e que repotildee o
pensamento no caminho certo (cf BT 87 p 303)256 Essas palavras satildeo as que
patenteiam a exata fisionomia dos erros que tornam claras as analogias que estatildeo na
origem desses pensamentos A sua eficaacutecia depende do reconhecimento de que elas ao
descreverem esses pensamentos como falsas analogias satildeo a justa expressatildeo do
sentimento de quem as lecirc
Os Problemas Gramaticais
Chegamos assim agrave conclusatildeo de que os problemas filosoacuteficos satildeo para
Wittgenstein problemas gramaticais Mas o que eacute que caracteriza estes problemas para
que tenham um caraacutecter perturbador A que se devem as falsas analogias formuladas
pelas palavras que geram esses problemas O sentimento de que haacute algo de essencial no
mundo aleacutem da sua autoevidecircncia acidental e irrelevante (cf BT 91 pp 314-315) A
filosofia que veicula este sentimento de longa tradiccedilatildeo quer furtar-se a uma suposta
vivecircncia irrefletida e completamente imersa no quotidiano incapaz de observar como
254 ldquo(The upsetting character of grammatical unclarity)rdquo (BT 87 p 302e) ldquo(Der aufregende Charakter der grammatischen Unklarheit)rdquo (BT 87 p 302)
255 Esta visatildeo da filosofia com uma atividade terapecircutica nunca deixou de guiar a investigaccedilatildeo filosoacutefica de Wittgenstein que sempre encarou os problemas filosoacuteficos como se fossem doenccedilas a tratar ldquoO filoacutesofo trata uma questatildeo como uma doenccedilardquo ldquoDer Philosoph behandelt eine Frage wie eine Krankheitrdquo (PI 255) A terapia filosoacutefica procura dissolver os problemas que estatildeo na origem do caraacutecter perturbador da linguagem e desse modo alcanccedilar a tranquilidade psicoloacutegica Eacute como se de uma psicoterapia se tratasse em que a terapia soacute eacute psicoloacutegica porque uma vez que seja bem-sucedida a dissolver os problemas filosoacuteficos resolve os problemas psicoloacutegicos por aqueles provocados (Cf HACKER P M S Insight and Illusion ndash Themes in the Philosophy of Wittgenstein pp 154-155)
256 Em Cultura e Valor Wittgenstein expressa o papel do filoacutesofo-terapeuta do seguinte modo ldquoEu natildeo devia ser mais do que um espelho em que o meu leitor pudesse ver o seu proacuteprio pensamento com todas as suas disformidades para que assim auxiliado o pudesse pocircr em ordemrdquo (CV 1931 p 35) ldquoI must be nothing more than the mirror in which my reader sees his own thinking with all its deformities amp with this assistance can set it in orderrdquo (CV 1931 p 25e) ldquoIch soll nur der Spiegel sein in welchem mein Leser sein eigenes Denken mit allen seinen Unfoumlrmigkeiten sieht und mit dieser Hilfe zurecht richten kannrdquo (CV 1931 p 25)
156
tudo efetivamente se passa e muito menos de se interrogar sobre o facto de tudo se
passar como se passa das coisas serem como satildeo Eacute seu entendimento de que o mundo
aparente oculta a verdadeira realidade de que a aparecircncia eacute quanto muito uma sua
manifestaccedilatildeo O mundo natildeo eacute tal como espontaneamente o vemos mas como o
podemos ver se atentarmos sobre o que ele dissimula A sua funccedilatildeo eacute pois descobrir e
divulgar a essecircncia do mundo revelar o que eacute verdadeiramente importante na vida Esse
eacute o caso conforme o exemplo dado por Wittgenstein fazendo uso do aforismo de
Heraacuteclito de que tudo no mundo estaacute em fluxo (cf BT 91 p 314) Apesar de no dia-a-
dia a ideia de que tudo flui poder passar completamente despercebida ela eacute uma
dimensatildeo essencial do mundo Mas natildeo se julgue que esta inclinaccedilatildeo para descortinar o
que natildeo eacute evidente encontra-se apenas entre os filoacutesofos Considerando que o
sentimento que lhe daacute origem eacute muito comum pode-se mesmo afirmar que o ser
humano teraacute a tendecircncia para pensar desta maneira como pensamento a que se
familiarizou desde tempos ancestrais (cf BT 90 p 311) E de facto em muito do que eacute
dito pelos seres humanos percebe-se nitidamente o quanto isso exprime esse sentimento
o quanto a sua linguagem estaacute enredada com o que estaacute para aleacutem do mundo
autoevidente257
Eacute nesta forma de pensamento que Wittgenstein encontra os problemas
gramaticais Pois seja qual for a essecircncia do mundo dela a linguagem nada pode
expressar (cf BT 91 p 314) Ela natildeo pode dizer do mundo que nele tudo flui Heraacuteclito
natildeo tinha razatildeo ldquo(O homem que disse que natildeo se pode pisar o mesmo rio duas vezes
estava errado pode-se pisar o mesmo rio duas vezes)rdquo258 (BT 88 p 304) O mundo eacute
257 Eacute curioso que os comentadores de Wittgenstein nem sempre faccedilam notar que os problemas gramaticais natildeo satildeo apenas problemas que ocorrem no discurso filosoacutefico mas estatildeo tambeacutem entretecidos nos usos correntes da linguagem Natildeo satildeo pois soacute os filoacutesofos a carecerem de terapia filosoacutefica mas todos os que sofram do caraacutecter perturbador da linguagem da inclinaccedilatildeo para dela fazer usos metafiacutesicos Eacute muito comum os humanos deixarem que os sentimentos e a vontade distorccedilam o modo imediato e puramente intelectual de ver as coisas Jaacute Oskari Kuusela destaca precisamente este aspeto na filosofia de Wittgenstein para argumentar contra os usos quotidianos da linguagem poderem servir de padratildeo de normalidade a partir do qual se aferem os usos desviantes ou metafiacutesicos Entende ele que natildeo eacute possiacutevel definir a linguagem quotidiana de modo a servir de modelo de normalidade nem haacute casos particulares de usos quotidianos de palavras que estejam a salvo de confusotildees gramaticais Assim deslindar as regras de uso da linguagem natildeo se perspetiva ser uma tarefa faacutecil quando soacute dispomos de uma linguagem que eacute desvirtuada por haacutebitos de pensamento desacertados para descrever a proacutepria linguagem A incumbecircncia da filosofia eacute precisamente levar a cabo essa aacuterdua tarefa cujo sucesso depende de ela ser capaz de banir da linguagem a sua disposiccedilatildeo metafiacutesica (Cf KUUSELA Oskari The Struggle Against Dogmatism ndash Wittgenstein and the Concept of Philosophy pp 275-279)
258 ldquo(The man who said that one cannot step into the same river twice was wrong one can step into the same river twice)rdquo (BT 88 p 304e) ldquo(Der Mann der sagte man koumlnne nicht zweimal in den gleichen Fluszlig steigen sagte etwas Falsches man kann zweimal in den gleichen Fluszlig steigen)rdquo (BT 88 p 304)
157
completamente alheio ao que a linguagem diz sobre a sua essecircncia ou seja somente agrave
linguagem se devem tais asserccedilotildees Natildeo haacute erro quando se diz na linguagem
quotidiana que se atravessa vaacuterias vezes o mesmo rio posto que este eacute o uso proacuteprio da
linguagem o de descrever o mundo tal qual ele eacute sem a presunccedilatildeo de ele ser algo
diferente da sua experiecircncia E quanto ao sentimento que ocorre apenas quando
paramos para pensar no que acontece de que o instante eacute dado pelo que natildeo perdura
porque nos escapa continuamente O que podemos concluir da sensaccedilatildeo de que haacute algo
que no preciso momento em que se daacute a ver deixa de se ver Como se de uma peliacutecula
de um filme se tratasse em cuja projeccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel reter uma imagem na sucessatildeo
ininterrupta de imagens cada uma delas surgindo na tela a furtar-se subitamente ao
nosso olhar e deixando a sensaccedilatildeo de que existe um antes e um depois da sua passagem
(cf BT 91 p 315) Mas obviamente o que nos eacute dado a ver no mundo natildeo eacute uma
projeccedilatildeo de um filme O que se pode dizer do mundo eacute tatildeo soacute o que eacute evidente por si
mesmo E eacute este mundo autoevidente que confere sentido agrave linguagem pois ldquo[]
nenhuma linguagem eacute concebiacutevel que natildeo represente este mundordquo259 (BT 91 p 315)
O que ela possa significar eacute-lhe dado pelo significante e este natildeo pode ser o que
supostamente se esconde por detraacutes do evidente porquanto apenas ele pode significar
Assim os problemas filosoacuteficos surgem com o pensamento que natildeo reconhece os
limites da linguagem um pensamento que pretende exprimir certas experiecircncias que
vatildeo para aleacutem do mundo (cf BT 88 p 304) Eacute por este motivo por causa do que se diz
sem-sentido que os problemas filosoacuteficos satildeo gramaticais e que a filosofia consiste na
dissoluccedilatildeo desses problemas e do seu caraacutecter perturbador
Importa sublinhar no entanto que um problema filosoacutefico natildeo se dissolve
simplesmente por que se expotildee o seu problema gramatical se mostra que certas coisas
que se dizem satildeo sem-sentido A sua dissoluccedilatildeo envolve o reconhecimento de que o que
se diz sobre o mundo pretende exprimir um certo sentimento a vontade de que o mundo
seja tal e qual assim como se diz Ou seja o reconhecimento de que o que se diz sobre o
mundo eacute afinal o que se quer que ele signifique e natildeo o que ele na realidade significa O
problema subsiste natildeo enquanto permanecer o sentimento que lhe daacute origem mas
enquanto o que assim sente natildeo reconhecer que eacute impossiacutevel ao pensamento expressar
atraveacutes da linguagem o que natildeo eacute evidente por si mesmo Que por conseguinte a
259 ldquo[hellip] no language is conceivable that doesnrsquot represent this worldrdquo (BT 91 p 315e) ldquo[hellip] ist keine Sprache denkbar die nicht diese Welt darstelltrdquo (BT 91 p 315)
158
expressatildeo que veicula esse sentimento a manifestaccedilatildeo linguiacutestica da sua vontade nada
tem que ver com o mundo Mas tambeacutem que ao pensamento apenas eacute possiacutevel significar
o mundo que a linguagem soacute pode significar o significante autoevidente e
consequentemente eacute sem sentido o que ela expressa sobre a vontade e o sentimento que
a move Que o que assim se diz fala sem-sentido da vontade de quem o diz e como tal
nunca do mundo Unicamente este reconhecimento pode acabar com o mal-estar com
um certo uso da linguagem embora natildeo possa evitar a desilusatildeo com a impossibilidade
do pensamento metafiacutesico260 Daiacute que o filoacutesofo considere que este reconhecimento
apenas eacute possiacutevel junto daqueles que vivem esse mal-estar que ldquo[] vivem num estado
instintivo de insatisfaccedilatildeo com a linguagemrdquo261 (BT 90 p 311) Jaacute que os demais a
usam organicamente natildeo sendo minimamente perturbados por ela para renunciarem agrave
sua vontade na descriccedilatildeo do mundo Nunca reconheceriam por isso que haacute qualquer erro
no seu modo de pensamento
O Meacutetodo de Investigaccedilatildeo Gramatical
A questatildeo que eacute agora pertinente colocar eacute a de saber como proceder para
resolver os problemas gramaticais Jaacute se percebeu que na resoluccedilatildeo destes problemas
ldquoEstamos a trazer as palavras do seu uso metafiacutesico para o seu uso normal na
linguagemrdquo262 (BT 88 p 304) e que o seu uso normal por referecircncia ao mundo
autoevidente eacute o que lhe confere significado263 Eacute este o objetivo da investigaccedilatildeo
gramatical confinar a expressatildeo do pensamento aos limites da linguagem com sentido
(cf BT 88 p 304 e 90 p 312) Evidentemente a importacircncia desta investigaccedilatildeo eacute a
importacircncia do objetivo que ela prossegue Se a linguagem eacute importante se eacute a ela que
260 A terapia filosoacutefica pode conseguir resolver o problema da perturbaccedilatildeo gerada pela linguagem mas natildeo garante que a sua accedilatildeo altere os sentimentos e demova a vontade que originalmente motivaram os problemas gramaticais Afinal a atividade filosoacutefica como Wittgenstein a vecirc eacute estritamente intelectual o mais possiacutevel despojada de sentimentos e do querer
261 ldquo[hellip] live in an instinctive state of dissatisfaction with languagerdquo (BT 90 p 311e) ldquo[hellip] die in einer instinktiven Unbefriedigung mit der Sprache lebenrdquo (BT 90 p 311)
262 ldquoWersquore bringing words back from their metaphysical to their normal use in languagerdquo (BT 88 p 304e) ldquoWir fuumlhren die Woumlrter von ihrer metaphysischen wieder auf ihre normale Verwendung in der Sprache zuruumlckrdquo (BT 88 p 304)
263 Natildeo quer isto significar que a linguagem quotidiana natildeo padeccedila ela mesma de tendecircncias metafiacutesicas desviando-se do seu uso normal quando extravasa os limites do mundo dado nos fenoacutemenos autoevidentes
159
devemos o sentido do que acontece no mundo entatildeo a determinaccedilatildeo do uso normal que
se daacute agraves palavras do seu significado eacute absolutamente crucial para desse modo evitar
usos que fazem representaccedilotildees que natildeo tecircm sentido nem que com isso se destrua tudo o
que parece ter um interesse essencial tudo o que eacute idolatrado (cf BT 88 pp 304-305)
O que parece no fundo estar aqui em causa eacute a fundamentaccedilatildeo da proacutepria linguagem
Mas entatildeo como deve essa investigaccedilatildeo proceder para conhecer o uso normal das
palavras O que fazer para evitar o seu uso de caraacutecter perturbador e repor o uso normal
e pacificador Estas questotildees interrogam-se justamente sobre o meacutetodo de investigaccedilatildeo
gramatical sobre a forma de concretizar o seu objetivo
A investigaccedilatildeo gramatical eacute a investigaccedilatildeo da gramaacutetica das palavras isto eacute a
descriccedilatildeo das regras de uso que delas fazemos Eacute poreacutem o uso real da linguagem como
ela eacute diariamente falada que lhe interessa e natildeo o uso que lhe eacute dado no pensamento
refletido (cf BT 87 p 302) A investigaccedilatildeo dessas regras eacute a investigaccedilatildeo dos
significados comuns das palavras e dos sentidos das proposiccedilotildees Essas regras fazem
por isso parte da histoacuteria natural do homem do mesmo modo que se considera parte da
histoacuteria natural a descriccedilatildeo das regras dos jogos praticados pelos animais (cf BT 87 p
302) Assim por exemplo agrave histoacuteria natural do jogo de xadrez importa a descriccedilatildeo das
regras da sua praacutetica como se ignoraacutessemos as suas regras formais escritas Daiacute que as
regras que interessam a esta investigaccedilatildeo natildeo satildeo as mesmas regras que satildeo investigadas
na filologia a partir de fontes histoacutericas escritas (cf BT 88 p 305) A gramaacutetica que se
investiga natildeo eacute de todo a mesma As regras gramaticais que se tem em vista descrever
satildeo aquelas que governam a aplicaccedilatildeo praacutetica natildeo reflexiva de uma linguagem de tal
modo que com base nas mesmas regras de uso esta linguagem se poderia facilmente
traduzir noutras linguagens inventadas (cf BT 88 p 305) Assim comeccedila a conceccedilatildeo
do meacutetodo de investigaccedilatildeo gramatical ou seja a determinar as regras de uso das
palavras do mesmo modo que se estabelecem as regras de jogos que natildeo as tecircm escritas
Os selvagens tecircm jogos (eacute de qualquer forma como noacutes os chamamos) para os quais natildeo tecircm regras escritas nenhum registo de regras Imagine-se entatildeo a atividade de um explorador viajando ao longo dos territoacuterios dessas pessoas e estabelecendo listas de regras dos seus jogos Isto eacute completamente anaacutelogo ao
160
que o filoacutesofo faz ((Mas porque natildeo digo ldquoOs selvagens tecircm linguagens (eacute como noacutes ) natildeo tecircm gramaacutetica escritardquo))264 (BT 90 p 313)
Natildeo satildeo as regras formais da escrita e oralidade que se pretendem investigar mas as
regras a que obedece como se da praacutetica de um jogo se tratasse a articulaccedilatildeo
quotidiana das palavras Essas regras determinam a forma natural como representamos
as coisas e permitem nas palavras do filoacutesofo uma laquopresentaccedilatildeo perspiacutecuaraquo265 portanto
uma apresentaccedilatildeo clara do mundo da experiecircncia da sua autoevidecircncia do que nele
notoriamente eacute observaacutevel ou verificaacutevel Soacute deste modo o significado pode ter a sua
origem naquilo que pode significar o mundo evidente por si mesmo O que essa
apresentaccedilatildeo permite perceber eacute precisamente a conexatildeo evidente entre as coisas do
mundo (cf BT 89 p 308) E eacute na apresentaccedilatildeo dessa conexatildeo que se formam as regras
de uso das palavras e desse modo se constitui o sentido do que falamos e escrevemos
264 ldquoSavages have games (thatrsquos what we call them anyway) for which they have no written rules no inventory of rules Now letrsquos imagine the activity of an explorer travelling throughout the countries of these peoples and setting up lists of rules for their games This is completely analogous to what the philosopher does ((But why donrsquot I say lsquoSavages have languages (thatrsquos what we hellip) hellip have no written grammar helliprsquo))rdquo (BT 90 p 313e) ldquoDie Wilden haben Spiele (oder wir nennen es doch so) fuumlr die sie keine geschriebenen Regeln kein Regelverzeichnis besitzen Denken wir uns nun die Taumltigkeit eines Forschers die Laumlnder dieser Voumllker zu bereisen und Regelverzeichnisse fuumlr ihre Spiele anzulegen Das ist das ganze Analogon zu dem was der Philosoph tut ((Warum sage ich aber nicht Die Wilden haben Sprachen (oder wir hellip) hellip keine geschriebene Grammatik haben hellip))rdquo (BT 90 p 313)
265 ldquoO conceito de uma presentaccedilatildeo perspiacutecua eacute de importacircncia fundamental para noacutes Designa a nossa forma de apresentaccedilatildeo a maneira como vemos as coisas (Uma espeacutecie de Weltanschauung como eacute aparentemente tiacutepico de nosso tempo Spengler) Essa presentaccedilatildeo perspiacutecua fornece exatamente esse tipo de entendimento que consiste em ver as conexotildees Daiacute a importacircncia de encontrar elos de conexatildeordquo ldquoThe concept of a surveyable representation is of fundamental significance for us It designates our form of representation the way we look at things (A kind of lsquoWeltanschauungrsquo as is apparently typical of our time Spengler) This surveyable representation provides just that kind of understanding that consists in our ldquoseeing connectionsrdquo Hence the importance of finding connecting linksrdquo (cf BT 89 pp 307e-308e) ldquoDer Begriff der uumlbersichtlichen Darstellung ist fuumlr uns von grundlegender Bedeutung Er bezeichnet unsere Darstellungsform die Art wie wir die Dinge sehen (Eine Art der lsquoWeltanschauungrsquo wie sie scheinbar fuumlr unsere Zeit typisch ist Spengler) Diese uumlbersichtliche Darstellung vermittelt das Verstaumlndnis welches eben darin besteht daszlig wir die ldquoZusammenhaumlnge sehenrdquo Daher die Wichtigkeit des Findens von Zwischengliedernrdquo (cf BT 89 pp 307-308) Traduzimos a expressatildeo alematilde laquouumlbersichtlichen Darstellungraquo por ldquopresentaccedilatildeo perspiacutecuardquo por concordarmos com as razotildees que levam Christian Georg Martin como muitos outros autores a preferir esta traduccedilatildeo de Stanley Cavell (cf CAVELL Stanley ldquoThe Investigationsrsquo Everyday Aesthetics of Itselfrdquo in J Gibson and L Huemer (Eds) The Literary Wittgenstein London Routledge 2004 p 22) As razotildees evocadas podem resumir-se agrave ideia expressa de forma livre e a captar tatildeo-soacute o seu sentido geral de que natildeo parece apropriado que laquouumlbersichtlichen Darstellungraquo consista na representaccedilatildeo que clarifica a representaccedilatildeo do mundo e das regras a que obedece essa representaccedilatildeo mas antes que exibe as conexotildees que fazem com que a representaccedilatildeo diga respeito ao mundo representado clarificando desse modo as suas regras gramaticais ou querendo dizer o mesmo o seu sentido ou a falta dele (cf MARTIN Christian Georg ldquoWittgenstein on Perspicuous Presentations and Grammatical Self-Knowledgerdquo Nordic Wittgenstein Review Volume 5 Number 1 2016 pp 101-106) A presentaccedilatildeo aqui considerada eacute comparada por Wittgenstein a um tipo de visatildeo do mundo (Weltanschauung) em que dele se faz uma presentaccedilatildeo clara
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Nisto supotildee-se que as palavras foram originalmente criadas de acordo com a
presentaccedilatildeo perspiacutecua e que eacute segundo ela que a linguagem que o significado das
palavras faz parte da histoacuteria natural do homem266
Fica assim claro que a investigaccedilatildeo filosoacutefica levado a cabo por Wittgenstein
visa constituir a gramaacutetica da linguagem isto eacute com base em presentaccedilotildees perspiacutecuas
identificar as regras de uso da linguagem Diz-nos ele que esta investigaccedilatildeo propotildee-se
realizar o que se poderia de modo equivalente concretizar com a construccedilatildeo de uma
linguagem fenomenoloacutegica (cf BT 94 p 320) Com esta linguagem pretende-se ldquo[] a
descriccedilatildeo da perceccedilatildeo sensorial imediata sem nenhuma adiccedilatildeo hipoteacuteticardquo267 (BT 101
p 349) Mas o filoacutesofo que vecirc na gramaacutetica uma fenomenologia chama a atenccedilatildeo em
primeiro lugar para o facto de que perceccedilatildeo sensorial imediata eacute a realidade ou pelo
266 A importacircncia que aqui Wittgenstein atribui agrave presentaccedilatildeo perspiacutecua prolonga-se com raras e breves referecircncias a toda a sua obra poacutes-Tractatus Embora o que sobre ela diz ainda que seja bastante semelhante parece sofrer algumas modificaccedilotildees Veja-se o que consta nas PI ldquoUma das fontes principais de incompreensatildeo reside no facto de natildeo termos uma presentaccedilatildeo perspiacutecua do uso das nossas palavras A nossa gramaacutetica natildeo se deixa ver deste modo perspiacutecuo ndash A presentaccedilatildeo perspiacutecua facilita a compreensatildeo a qual de facto consiste em lsquovermos as conexotildeesrsquo Daiacute a importacircncia de se encontrar e de se inventar termos intermeacutedios O conceito de presentaccedilatildeo perspiacutecua tem para noacutes um significado fundamental Designa a nossa forma de presentaccedilatildeo a maneira como vemos as coisas (Eacute isto uma lsquovisatildeo do Mundorsquo)rdquo (PI 122 traduccedilatildeo alterada) ldquoEs ist eine Hauptquelle unseres Unverstaumlndnisses daszlig wir den Gebrauch unserer Woumlrter nicht uumlbersehen ndash Unserer Grammatik fehlt es an Uumlbersichtlichkeit ndash Die uumlbersichtliche Darstellung vermittelt das Verstaumlndnis welches eben darin besteht daszlig wir die lsquoZusammenhaumlnge sehenrsquo Daher die Wichtigkeit des Findens und des Erfindens von Zwischengliedern Der Begriff der uumlbersichtlichen Darstellung ist fuumlr uns von grundlegender Bedeutung Er bezeichnet unsere Darstellungsform die Art wie wir die Dinge sehen (Ist dies eine lsquoWeltanschauungrsquo)rdquo (PI 122) A interpretaccedilatildeo sobre o que Wittgenstein quer dizer com presentaccedilatildeo perspiacutecua natildeo eacute consensual Considerando apenas algumas das principais interpretaccedilotildees para P M S Hacker ela significa ldquo[] uma representaccedilatildeo pesquisaacutevel da gramaacutetica de uma expressatildeo []rdquo ldquo[] a surveyable representation of the grammar of an expression []rdquo (BAKER G and P M S Hacker Wittgenstein Understanding and Meaning Volume 1 of An Analytical Commentary on the Philosophical Investigations Part I ndash Essays Second Edition Extensively Revised by P M S Hacker Wiley-Blackwell Malden MA 2005 p 332) tambeacutem Hans Sluga a encara como uma representaccedilatildeo das regras gramaticais embora divirja de Hacker quanto agrave possibilidade dessa representaccedilatildeo ser completamente transparente estando ela limitada a uma visatildeo parcial da gramaacutetica (SLUGA Hans Wittgenstein Wiley-Blackwell Malden MA 2011 p 8) jaacute Gordon Backer tem um entendimento diferente ao considerar que o seu propoacutesito eacute expor aspetos negligenciados do uso de uma expressatildeo que natildeo potildeem em causa os aspetos jaacute presentes (cf BAKER Gordon ldquoPhilosophical Investigations sect 122 Neglected Aspectsrdquo in Gordon Baker Wittgensteinrsquos Method Wiley-Blackwell Malden MA 2004 pp 31-35) com a mesma linha de pensamento de Baker Oskari Kuusela afasta-se dela contudo quando defende a possibilidade de descriccedilotildees loacutegicas multidimensionais que admitem conceccedilotildees alternativas natildeo exclusivas (KUUSELA Oskari ldquoWittgensteinian Philosophical Conceptions and Perspicuous Representation the Possibility of Multidimensional Logical Descriptionsrdquo Nordic Wittgenstein Review Volume 3 Number 2 2014 pp 71-98) finalmente Nuno Venturinha entende que ldquoela eacute a visatildeo entrelaccedilada que importa ter das coisas reconhecendo como somos uma verdadeira lsquovisatildeo sinoacutepticarsquo rdquo (VENTURINHA Nuno Loacutegica Eacutetica Gramaacutetica Wittgenstein e o Meacutetodo da Filosofia p 340)
267 ldquo[hellip] the description of immediate sense perception without any hypothetical additionrdquo (BT 101 p 349e) ldquo[hellip] Die Beschreibung der unmittelbaren Sinneswahrnehmung ohne hypothetische Zutatrdquo (BT 101 p 349)
162
menos nada distingue uma da outra O que se designa por aparecircncia natildeo acrescenta nem
subtrai nada agrave realidade Tudo o que temos eacute o fenoacutemeno 268 Em segundo lugar uma
descriccedilatildeo eacute sempre uma reproduccedilatildeo que natildeo permite inferir a experiecircncia imediata da
realidade que representa natildeo obstante ela ser tanto quanto possiacutevel o que podemos ter
de mais fiel dessa experiecircncia Natildeo eacute possiacutevel falarmos dela para aleacutem do alcance da
nossa linguagem quotidiana (cf BT 101 pp 347-350) Portanto a fenomenologia da
linguagem natildeo poder ser a da sua gramaacutetica se na descriccedilatildeo da experiecircncia imediata se
considerar como adiccedilatildeo hipoteacutetica aquilo que separa a aparecircncia da realidade ou
impossibilita a inferecircncia dessa experiecircncia
Compreende-se entatildeo a razatildeo pela qual Wittgenstein exclui desta linguagem
sobre os fenoacutemenos perguntas consideradas fundamentais como ldquoO que eacute a
substacircnciardquo por serem perguntas que se fazem diz-nos ele quando sentados a uma
secretaacuteria supondo uma indagaccedilatildeo para aleacutem da evidecircncia da presentaccedilatildeo perspiacutecua
(cf BT 89 p 307) Elas e certas respostas que se lhe datildeo pertencem ao geacutenero de
pensamento filosoacutefico que estabelece por exemplo a lei da identidade que ao
determinar que algo eacute igual a si mesmo natildeo tem qualquer sentido quando dita na
linguagem quotidiana (cf BT 88 p 304 e 89 p 307) Por conseguinte as regras
gramaticais a que obedecem estes conceitos conferem-lhe sentidos que natildeo satildeo
presentaccedilotildees perspiacutecuas dos fenoacutemenos logo diferentes do seu uso comum Satildeo por
isso usos sem-sentido cujas conexotildees subjacentes devem naturalmente gerar
incompreensatildeo e ansiedade O quanto este facto pode ser perturbador eacute sublinhado pelo
filoacutesofo quando nos diz
268 Esta conceccedilatildeo do fenoacutemeno que natildeo distingue a aparecircncia da realidade esvazia o debate entre idealismo e realismo O que cada uma destas posiccedilotildees epistemoloacutegicas defende eacute para Wittgenstein gramaticalmente sem sentido Ao idealismo para quem o que existe o que tem realidade eacute unicamente a imagem mental do objeto e natildeo o objeto de que faz imagem para quem tudo o que conhecemos eacute o que aparece e o que aparece eacute tudo o que conhecemos como realidade pode-se dizer que o uso que faz das palavras laquoexisteraquo e laquoter realidaderaquo eacute sem duacutevida estranho por ter um significado diferente do seu uso normal A imagem mental do objeto eacute comparada pelo realismo a uma sua figura poreacutem essa comparaccedilatildeo eacute falsa jaacute que um objeto e a sua figura satildeo suscetiacuteveis de se ver o mesmo natildeo sendo possiacutevel no caso de um objeto e a sua imagem mental (cf BT 103 pp 354-355) Na fenomenologia na gramaacutetica a relaccedilatildeo relevante natildeo eacute entre o objeto e a sua imagem mental mas entre linguagem e realidade como experiecircncia imediata considerando-se que ambas existem enquanto parte dessa experiecircncia A realidade eacute apenas discerniacutevel por ser representada na linguagem e o que assim eacute representado soacute tem sentido por ser nela verificado
163
Lembre-se das dificuldades que as crianccedilas tecircm ao acreditarem (ou perceberem) que uma palavra pode realmente ter dois significados completamente diferentes269 (BT 90 p 312)
Resulta daqui que a atividade do filoacutesofo eacute identificar as regras que fundamentam o
significado das palavras em presentaccedilotildees perspiacutecuas e por consequecircncia esclarecer que
natildeo tecircm sentido outros significados que lhe queiram atribuir com base em regras que
tenham um fundamento exterior aos fenoacutemenos Ainda que mal comparado o filoacutesofo
tem um papel semelhante ao do cientista que descobre a ordem da realidade fiacutesica
Tambeacutem a ele lhe cabe esclarecer a ordem natural que rege o uso das palavras a
aplicaccedilatildeo da linguagem Mas esse papel deve ser exercido visando advertir para os usos
sem-sentido das palavras aqueles que natildeo tem lugar na referida ordem natural da
linguagem que eacute a ordem fenomeacutenica Wittgenstein estabelece um paralelo entre o que
o filoacutesofo faz e algueacutem que estabelece as regras naturais de funcionamento das reuniotildees
de um grupo de pessoas de que delas necessitam por natildeo as terem escritas
Entatildeo eles de facto veem um dos deles como presidente mas ele natildeo se senta agrave cabeccedila da mesa e natildeo tem marcas distintivas e isso torna as negociaccedilotildees difiacuteceis Essa eacute a razatildeo pela qual noacutes viemos e criamos uma ordem clara noacutes sentamos o presidente num siacutetio claramente identificaacutevel sentamos a sua secretaacuteria ao seu lado numa pequena mesa proacutepria e sentamos os outros membros titulares em duas linhas de ambos os lados da mesa etc etc270 (BT 89 p 307)
Ou seja o filoacutesofo uma vez que tome conhecimento das regras gramaticais de acordo
com elas potildee ordem nos usos das palavras que os ignoram muito embora delas
269 ldquoRemember what a hard time children have believing (or realizing) that a word really can have two completely different meaningsrdquo (BT 90 p 312e) ldquoErinnere Dich daran wie schwer es Kindern faumlllt zu glauben (oder einzusehen) daszlig ein Wort wirklich zwei ganz verschiedene Bedeutungen haben kannrdquo (BT 90 p 312)
270 ldquoThus they in fact view one of their own as president but he doesnrsquot sit at the head of the table and has no distinguishing marks and that makes negotiations difficult That is why we come along and create a clear order we seat de president at a clearly identifiable spot seat his secretary next to him at a little table of his own and seat the other full members in two rows on both sides of the table etc etcrdquo (BT 89 p 307e) ldquoSo betrachten sie tatsaumlchlich Einen von ihnen als Praumlsidenten aber er sitzt nicht oben an der Tafel ist durch nichts kenntlich und das erschwert die Verhandlung Daher kommen wir und schaffen eine klare Ordnung Wir setzen den Praumlsidenten an einen leicht kenntlichen Platz und seinen Sekretaumlr zu ihm an ein eigenes Tischchen und die uumlbrigen gleichberechtigten Mitglieder in zwei Reihen zu beiden Seiten des Tisches etc etcrdquo (BT 89 p 307)
164
careccedilam A sua atividade eacute assim tambeacutem pedagoacutegica e de regularizaccedilatildeo da praacutetica da
linguagem
Todavia os sentimentos muitas vezes impressivos que levam mesmo que com
desconforto a aplicaccedilotildees sem-sentido da linguagem natildeo desaparecem soacute porque se fica
a saber que se faz um uso natildeo natural das palavras Eacute tambeacutem necessaacuterio jaacute o vimos
que se reconheccedila que isto se deve exatamente a esses sentimentos e que por detraacutes
destes pensamentos estatildeo sempre falsas analogias A sensaccedilatildeo da passagem do tempo
no acontecer de um filme de que haacute pouco se falava decorre da confusatildeo entre o que eacute a
experiecircncia de visionamento do filme e o facto da peliacutecula do filme projetado ser
composta por uma sucessatildeo ordenada de imagens em que cada uma delas eacute precedida e
sucedida por outras imagens Quando se diz que o tempo flui estaacute-se a estabelecer uma
analogia ilusoacuteria entre o tempo da experiecircncia e o tempo fiacutesico Natildeo temos evidecircncia de
que o tempo do acontecimento da experiecircncia imediata da realidade seja o tempo do
movimento fiacutesico Este natildeo serve como inferecircncia daquele quanto mais natildeo seja porque
o tempo da experiecircncia natildeo eacute um facto que se possa comparar ao do movimento das
coisas O recurso ao siacutemile natildeo eacute no entanto por si mesmo problemaacutetico pois o proacuteprio
Wittgenstein a ele recorre com frequecircncia como quando compara a proposiccedilatildeo a uma
imagem ou a aplicaccedilatildeo da linguagem a um caacutelculo Poreacutem ele faz questatildeo de acentuar
de que natildeo se pode querer ir aleacutem do siacutemile que ele natildeo serve para se fazer inferecircncias
e tirar conclusotildees (cf BT 89 p 308) Finalmente para que o caraacutecter perturbador do
que se pensa sem-sentido se desvaneccedila ao reconhecimento de que o que deste modo se
diz se deve tatildeo-soacute agrave vontade deve igualmente juntar-se a perspetiva de que a
desmontagem da falsidade deste pensamento eacute sistemaacutetica e neste sentido permite
antever a exclusatildeo de todas aquelas estruturas causadoras de perturbaccedilatildeo271
271 ldquoPorque eacute que isso nos acalma depois de termos ficado tatildeo ansiosos Obviamente o que nos acalma eacute que vemos um sistema que (sistematicamente) exclui aquelas estruturas que sempre nos incomodaram aquelas com as quais natildeo conseguimos fazer nada e que ainda pensaacutevamos que tiacutenhamos que respeitar O estabelecimento de uma regra gramatical natildeo eacute semelhante a esse respeito agrave descoberta de uma explicaccedilatildeo em fiacutesica - por exemplo do sistema coperniciano Existe uma semelhanccedilardquo ldquoWhy it calms us after we have been so profoundly anxious Obviously what calms us is that we see a system that (systematically) excludes those structures that have always made us uneasy those we were unable to do anything with and that we still thought we had to respect Isnrsquot the establishment of such a grammatical rule similar in this respect to the discovery of an explanation in physics ndash for instance of the Copernican system There is a similarityrdquo (BT 89 p 307e) ldquoWarum die uns beruhigt nachdem wir so tief beunruhigt waren Was uns beruhigt ist offenbar daszlig wir ein System sehen das diejenigen Gebilde (systematisch) ausschlieszligt die uns immer beunruhigt haben mit denen wir nichts anzufangen wuszligten und die wir doch respektieren zu muumlssen glaubten Ist die Festsetzung einer solchen grammatischen Regel in dieser Beziehung nicht wie die Entdeckung einer Erklaumlrung in der Physik zB des Copernicanischen Systems Eine Aumlhnlickeit ist vorhandenrdquo (BT 89 p 307)
165
O meacutetodo de investigaccedilatildeo filosoacutefica que acabamos de apresentar brevemente
natildeo tem a pretensatildeo de percorrer todos os casos que verificam problemas gramaticais
para os resolver272 Basta-lhe apresentar os exemplos possiacuteveis e logo que assim se
entenda parar de apresentar mais exemplos pois com aqueles natildeo satildeo soacute esses
problemas particulares que ficam resolvidos mas todos os problemas gramaticais em
geral satildeo desse modo dissolvidos273 Alguns exemplos que demonstram o meacutetodo satildeo
suficientes para erradicar estes problemas e o seu caraacutecter perturbador Isto leva
Wittgenstein a concluir natildeo sem um certo tom de comprazimento que ldquoA verdadeira
272 Natildeo eacute dubitaacutevel que o pensamento de Wittgenstein no BT assume inteiramente um meacutetodo filosoacutefico Tal natildeo parece ser verdade quando se fala da sua filosofia posterior designadamente a que se apresenta nas PI Eacute aiacute dito ldquoNatildeo haacute um meacutetodo mas haacute na Filosofia de facto meacutetodos tal como haacute diversas terapiasrdquo ldquoEs gibt nicht eine Methode in der Philosophie wohl aber gibt es Methoden gleichsam verschiedene Therapienrdquo (PI 133) Em vez de um meacutetodo existem diferentes meacutetodos para solucionar como terapias os diversos problemas filosoacuteficos Este fato sustenta para James Conant a rutura do seu pensamento com o periacuteodo de transiccedilatildeo iniciado em 1929 que ele situa em 1937 por altura em que na Noruega Wittgenstein faz a revisatildeo agrave primeira parte da PI ficando ela numa versatildeo muito proacutexima da que veio a ser publicada (cf CONANT James ldquoWittgensteinrsquos Methodsrdquo in Oskari Kuusela and Marie McGinn (eds) The Oxford Handbook of Wittgenstein Oxford University Press Oxford 2011 pp 620-625) Conan vecirc mesmo o capiacutetulo ldquoPhilosophie Philosophyrdquo do BT reescrito nalguns dos seus paraacutegrafos ldquo[] o que seria necessaacuterio fazer eacute investigar as formas detalhadas pelas quais todo o trecho das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas que vai do sect89 a sect133 envolve uma cuidadosa reescrita do capiacutetulo Filosofia do The Big Typscript Tal investigaccedilatildeo revelaraacute que esse capiacutetulo foi reescrito pouco a pouco de uma maneira que gradualmente comeccedilou a purificaacute-lo do seu compromisso com a ideia de que o meacutetodo foi encontrado de uma vez por todas []rdquo ldquo[] what one would need to do is to investigate the detailed ways in which the entire stretch in Philosophical Investigations which runs from sect89 to sect133 involves a careful rewriting of the chapter lsquoPhilosophyrsquo in The Big Typescript Such an investigation will reveal that that chapter was rewritten bit by bit in a manner which gradually began to purge it of its commitment to the idea that the method has been found once and for all [hellip]rdquo (CONANT James ldquoWittgensteinrsquos Methodsrdquo p 642) Divergindo desta leitura e apesar do que eacute dito na secccedilatildeo 133 das PI Sebastian Wyss defende que os meacutetodos que satildeo referidos nesse paraacutegrafo satildeo orientados para a resoluccedilatildeo de problemas (problem-oriented methods) mas que estes tecircm origem num meacutetodo englobante (overarching method) cujas regras eacute possiacutevel discernir nessa obra (cf WYSS Sebastian ldquoDoes Wittgenstein have a Method The Challenges of Conant and Schulterdquo Nordic Wittgenstein Review Volume 4 Number 1 2015 pp 177-181 e 187-190)
273 ldquoAquela [descoberta] que acalma a filosofia para que natildeo seja mais atacada por perguntas que se colocam a si mesmas em questatildeo Em vez disso sabemos demonstrar um meacutetodo com a ajuda de exemplos e a seacuterie desses exemplos pode ser interrompida Natildeo eacute um problema singular que eacute resolvido ndash pelo contraacuterio os problemas satildeo resolvidos (preocupaccedilotildees removidas)rdquo ldquoThe one that quiets philosophy down so that it is no longer lashed by questions that call itself into question Instead we know demonstrate a method with the help of examples and the series of these examples can be broken off It is not a single problem that is solved ndash rather problems are solved (worries removed)rdquo (BT 92 p 316e) ldquoDie die Philosophie zur Ruhe bringt so daszlig sie nicht mehr von Fragen gepeitscht wird die sie selbst in Frage stellen Sondern es wird jetzt an Beispielen eine Methode gezeigt und die Reihe dieser Beispiele kann abgebrochen werden Richtiger hieszlige es aber Es werden Probleme geloumlst (Beunruhigungen beseitigt) nicht ein Problemrdquo (BT 92 p 316)
166
descoberta eacute aquela que me permite parar de fazer filosofia quando eu o quiserrdquo274 (BT
92 p 316)
O Progresso da Filosofia
A ideia bastante difundida de que a histoacuteria da filosofia natildeo verifica qualquer
progresso desde os filoacutesofos da Greacutecia antiga tem para Wittgenstein uma razatildeo de ser
ldquoEssa razatildeo eacute que a nossa linguagem permaneceu a mesma e continua a seduzir-nos a
colocar as mesmas questotildeesrdquo275 (BT 90 p 312) Elas andam obstinadamente agrave volta
dos misteacuterios que pretendem ver em conceitos como o de laquoserraquo laquoconhecimentoraquo
laquoverdaderaquo laquofalsidaderaquo laquopossiacutevelraquo laquocoisaraquo laquotemporaquo laquoespaccediloraquo entre muitos outros
Estes conceitos motivaram estruturas de pensamento que promoveram percursos falsos
que se tendem a percorrer sem nunca sequer se discutir seriamente a validade das
questotildees que lhe deram origem mas tambeacutem das orientaccedilotildees do seu prosseguimento O
que caracteriza o pensamento destes filoacutesofos eacute ele ldquo[] satisfazer o desejo pelo
transcendental pois ao acreditarem que vecircm o lsquolimite da compreensatildeo humanarsquo
acreditam obviamente que podem ver para aleacutem delerdquo276 (BT 90 p 312) E eacute para aleacutem
dele que uma palavra pode vir a adquirir vaacuterios significados cujos significantes natildeo satildeo
parte do mundo autoevidente Na verdade os significados que uma palavra pode ter
quando os significantes natildeo satildeo fenoacutemenos depende somente da vontade de quem os
define Veja-se como o filoacutesofo faz uma caricatura do que se passa
(Os filoacutesofos satildeo frequentemente como crianccedilas pequenas que primeiro rabiscam com os seus laacutepis linhas ao acaso num papel e depois perguntam a um adulto lsquoO que eacute istorsquo ndash Eis como isto aconteceu o adulto desenhou algo para uma crianccedila vaacuterias vezes e disse lsquoIsto eacute um homemrsquo lsquoIsto eacute uma casarsquo etc E
274 ldquoThe real discovery is the one that makes me able to stop doing philosophy when I want tordquo (BT 92 p 316e) ldquoDie eigentliche Entdeckung ist die die mich faumlhig macht mit dem Philosophieren aufzuhoumlren wann ich willrdquo (BT 92 p 316)
275 ldquoThat reason is that our language has remained constant and keeps seducing us into asking the same questionsrdquo (BT 90 p 312e) ldquoDer ist aber daszlig unsere Sprache sich gleich geblieben ist und uns immer wieder zu denselben Fragen verfuumlhrtrdquo (BT 90 p 312)
276 ldquo[hellip] satisfies a longing for the transcendental for in believing that they see the lsquolimit of human understandingrsquo they of course believe that they can see beyond itrdquo (BT 90 p 312e) ldquo[hellip] dies befriedigt im Uumlbrigen ein Verlangen nach dem Transzendenten denn indem sie die Grenze des menschlichen Verstandes zu sehen glauben glauben sie natuumlrlich uumlber ihn hinaus sehen zu koumlnnenrdquo (BT 90 p 312)
167
entatildeo a crianccedila desenha linhas tambeacutem e pergunta lsquoAgora o que eacute istorsquo)277 (BT 91 p 315)
As palavras passam assim a ter significados metafiacutesicos estranhos aos usos quotidianos
que delas se fazem enfim estranhas agrave vida agrave sua autoevidecircncia A forma do nosso
mundo eacute dada pelo modo espontacircneo de o vermos e este naturalmente aceita o mundo
como ele eacute sem ser acometido por interrogaccedilotildees que procuram justificaacute-lo no que se
pretende ver para aleacutem dele Jaacute a investigaccedilatildeo filosoacutefica tradicional ao querer justificar
o mundo entrega-se a conjeturas e explicaccedilotildees aparatosas e convulsas desenvolvendo-
se diz-nos Wittgenstein como se alvoroccedilada e erraticamente procurasse em vatildeo um
objeto numa gaveta cheia e desarrumada mas diriacuteamos noacutes firmemente segura de que
ele estaacute laacute dentro e portanto natildeo hesita em referir-se-lhe como se fosse algo evidente
(cf BT 92 p 316)
A filosofia autecircntica natildeo procura mais que a descriccedilatildeo da autoevidecircncia do
mundo e daiacute natildeo ter qualquer interesse em explicaacute-la e pelo que ela supostamente
oculta Aliaacutes o seu objetivo eacute precisamente confinar a expressatildeo do pensamento aos
limites da linguagem pondo a descoberto os usos que dela se fazem sem-sentido por
tentarem transpor esses limites (cf BT 90 p 312) Satildeo estas transgressotildees do uso
natural da linguagem que geram os noacutes no pensamento que o filoacutesofo recetivo a estes
factos gramaticais que lhe deixam impressotildees fortes e duradouras tem que desatar (cf
BT 90 p 311) Natildeo obstante a filosofia natildeo pode ela proacutepria atraveacutes de justificaccedilotildees e
retificaccedilotildees transgredir o que deste modo se diz (cf BT 89 p 308) Ao intentar
somente a sua descriccedilatildeo deixa intacto o que assim eacute dito E deste modo esta filosofia
natildeo traz novas descobertas elucidaccedilotildees originais ou mesmo novos pontos de vista ou
credos mas antes a luz que incide sobre o que eacute evidente por si mesmo mas que passa
despercebido O que essa luz realccedila eacute o mundo e por referecircncia a ele a tomada de
consciecircncia da desordem dos nossos conceitos (cf BT 89 p 309) A sua colocaccedilatildeo em
ordem exige apenas o respeito pelos limites da linguagem E ela natildeo pode dar lugar agrave
277 ldquo(Philosophers often are like children who first scribble random lines on a piece of paper with their pencils and then ask an adult lsquoWhat is thatrsquo - Herersquos how this happened the adult had drawn something for the child several times and had said lsquoThatrsquos a manrsquo lsquoThatrsquos a housersquo etc And then the child draws lines too and asks lsquoNow whatrsquos thatrsquo)rdquo (BT 91 p 315e) ldquo(Die Philosophen sind oft wie kleine Kinder || Den Philosophen geht es oft wie den kleinen Kindern die zuerst mit ihrem Bleistift beliebige Striche auf ein Papier kritzeln und dann den Erwachsenen fragen ldquowas ist dasrdquo ndash Das ging so zu Der Erwachsene hatte dem Kind oumlfters etwas vorgezeichnet und gesagt ldquodas ist ein Mannrdquo ldquodas ist ein Hausrdquo usw Und nun macht das Kind auch Striche und fragt was ist nun das)rdquo (BT 91 p 315)
168
resignaccedilatildeo senatildeo agrave satisfaccedilatildeo com a total resoluccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos (cf BT
89 p 310)278 Por isso o que Wittgenstein propotildee aos filoacutesofos eacute uma investigaccedilatildeo que
progrida tranquilamente mediante a verificaccedilatildeo metoacutedica dos factos linguiacutesticos (cf BT
92 p 316)
278 ldquoSe eu estiver certo os problemas filosoacuteficos devem ser realmente solucionaacuteveis sem deixar vestiacutegios em contraste com todos os outros Quando digo aqui estamos nos limites da linguagem isso soa sempre como se fosse necessaacuterio nesse momento a resignaccedilatildeo enquanto pelo contraacuterio ocorre uma satisfaccedilatildeo completa uma vez que nenhuma questatildeo permanece Os problemas satildeo resolvidos no sentido literal da palavra - dissolvidos como um pedaccedilo de accediluacutecar na aacuteguardquo ldquoIf I am right then philosophical problems really must be solvable without remainder in contrast to all others When I say Here we are at the limits of language that always sounds as if resignation were necessary at this point whereas on the contrary complete satisfaction comes about since no questions remains The problems are solved in the literal sense of the word ndash dissolved like a lump sugar in waterrdquo (BT 89 p 310e) ldquoWenn ich Recht habe so muumlssen sich philosophische Probleme wirklich restlos loumlsen lassen im Gegensatz zu allen andern Wenn ich sage Hier sind wir an der Grenze der Sprache so klingt das immer als waumlre hier eine Resignation noumltig waumlhrend im Gegenteil volle Befriedigung eintritt da keine Frage uumlbrig bleibt Die Problem werden im eigentlichen Sinne aufgeloumlst ndash wie ein Stuumlck Zucker im Wasserrdquo (BT 89 p 310)
169
Capiacutetulo 9 ndash O Pensamento a Linguagem e a Accedilatildeo
A resposta agrave pergunta que comunica a linguagem Eacute pois a seguinte Todas as linguagens se comunicam a si mesmas A linguagem deste candeeiro por exemplo natildeo comunica o candeeiro (porque a essecircncia espiritual do candeeiro na medida em que eacute comunicaacutevel natildeo eacute de modo algum o proacuteprio candeeiro) mas sim o candeeiro linguagem o candeeiro na comunicaccedilatildeo o candeeiro na expressatildeo Porque na linguagem se comporta assim a essecircncia linguiacutestica das coisas eacute a sua linguagem279
O Pensamento eacute a Sua Expressatildeo
Sob que ponto de vista se pode dizer que um autoacutemato uma maacutequina que
executa tarefas normalmente realizadas pelos seres humanos pensa Se ele dialogar
falando ou escrevendo se ele entender o que se possa dizer numa certa linguagem e se
fizer entender nessa mesma linguagem natildeo estaremos perante algo igualmente capaz de
pensamento Mas nesse caso pode-se concluir que o pensamento eacute um certo
mecanismo E pode esse mecanismo desenrolar-se sem que dele faccedila parte a
linguagem Em que consistiria entatildeo o pensamento independente da linguagem Natildeo
seraacute que pelo contraacuterio o que podem ter em comum homem e maacutequina eacute a linguagem
a possibilidade de articulaccedilatildeo automaacutetica de signos mas jamais o pensamento Mas
seraacute todavia possiacutevel a linguagem fora do pensamento Partindo do pressuposto de que
ela eacute uma parte manifesta do pensamento a analogia com o autoacutemato leva agrave suposiccedilatildeo
de que no ser humano o pensamento eacute um mecanismo Eacute ele que embora oculto faz
com que uma maacutequina possa ser como um ser humano capaz de linguagem Portanto
se conhecermos o mecanismo que origina a linguagem o que na maacutequina se conhece
por exposiccedilatildeo do seu funcionamento ficamos a saber como se processa o pensamento
Na analogia sugerida por Wittgenstein a comparaccedilatildeo eacute feita nos seguintes termos
279 BENJAMIM Walter Sobre Arte Teacutecnica Linguagem e Poliacutetica Maria Luz Mota Maria Ameacutelia Cruz e Manuel Alberto (trad) TW Adorno (pref) Reloacutegio DrsquoAgua Lisboa 1992 p 179
170
A ideia eacute pensar acreditar etc como atividades em que a proposiccedilatildeo ocorre mais ou menos como os cartotildees de perfuraccedilatildeo no funcionamento de um tear padratildeo280 (BT 48 p 165)
A proposiccedilatildeo estaacute para os cartotildees de perfuraccedilatildeo como o pensamento estaacute para o
funcionamento de um tear padratildeo Agrave sua semelhanccedila o pensamento seraacute um mecanismo
de que fazem parte as proposiccedilotildees de acordo com o qual elas satildeo usadas Assim
quando se enuncia laquoEu penso praquo (usando no exemplo dado pelo filoacutesofo o verbo
pensar em vez do acreditar) eacute como se estiveacutessemos a aludir a esse mecanismo pronto e
velado onde ocorre a proposiccedilatildeo laquopraquo (cf BT 48 pp 165-166) Estaacute-se pois a
considerar o pensamento como sendo um qualquer processo de produccedilatildeo que pode ser
realizado por uma maacutequina Daiacute a ideia comum que decorre da conceccedilatildeo do corpo
humano como sendo uma espeacutecie de maacutequina de que o pensamento eacute ldquo[] um processo
no ceacuterebro e sistema nervoso na mente na boca e laringe no papelrdquo281 (BT 52 p
173) Nestes termos o pensamento eacute uma atividade que se desenrola como a
engrenagem de uma maacutequina no espaccedilo fechado da nossa cabeccedila e que se manifesta
nos sons articulados da nossa boca ou na disposiccedilatildeo de signos escritos pela nossa matildeo
Mesmo quando o localizam na mente o pensamento natildeo deixa por isso de ser um
mecanismo ainda que seja um mecanismo eteacutereo (cf BT 53 p 175) Poreacutem ao
contraacuterio de um processo fiacutesico que eacute sempre possiacutevel de evidenciar neste caso natildeo eacute
mais possiacutevel descortinar o mecanismo que constitui o pensamento tornando-se um
processo secreto que somente daacute mostras de si como sua expressatildeo na linguagem
Digamos que se considera que o processo manifesto de formaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo
tem uma certa correspondecircncia ao processo de pensamento que ocorre misteriosamente
(cf BT 53 p 176) O que se possa saber sobre o pensamento teraacute assim de ser
descoberto com base na linguagem Apenas ela como uma sua ressonacircncia codificada
pode dizer alguma coisa sobre ele isto eacute sobre como o pensamento codifica mas
tambeacutem como descodifica o que lhe chega cifrado Natildeo haacute outra forma de acedermos ao
pensamento que natildeo seja o de inferir o que se quer conhecer a partir do conhecido
280 ldquoThe idea is thinking believing etc as activities in which the proposition occurs more or less like the punch cards in the workings of a pattern-loomrdquo (BT 48 p 165e) ldquoDie Idee ist Denken Glauben etc als Taumltigkeiten in denen der Satz vorkommt etwa wie die Karten in den Operationen des Musterwebstuhlsrdquo (BT 48 p 165)
281 ldquo[] a process in the brain and nervous system in the mind in the mouth and larynx on paperrdquo (BT 52 p 173e) ldquo[hellip] ein Vorgang im Gehirn amp Nervensystem im Geist im Mund amp Kehlkopf auf dem Papierrdquo (BT 52 p 173)
171
O que poreacutem nos leva a supor o pensamento dissimulado na linguagem eacute o
pressentimento de que uma certa atividade se desenrola de modo oculto e fugaz
quando falamos ou escrevemos (cf BT 48 p 166) A linguagem surge como a parte
evidente dessa atividade misteriosa que eacute o pensamento Uma atividade que julgamos soacute
poder ser um mecanismo a avaliar pela forma como a linguagem se estrutura e articula
Mas poderaacute realmente uma maacutequina pensar Natildeo seraacute que do mesmo modo que uma
maacutequina natildeo pode ter dores tambeacutem natildeo pode ter pensamentos Wittgenstein considera
que de um certo ponto de vista podemos afirmar que uma maacutequina pode ter dores (cf
BT 48 pp 166-167) Se considerada como um corpo que eacute capaz dos mesmos
comportamentos que os do corpo animal que nos levam ao reconhecimento da dor
entatildeo a maacutequina tambeacutem pode ter dores Ou seja na medida em que uma maacutequina pode
ser um corpo ou um corpo ser uma maacutequina o que identificamos como dor em
determinadas manifestaccedilotildees do corpo pode igualmente ser identificado numa maacutequina
que revele idecircnticas manifestaccedilotildees De uma outra perspetiva uma maacutequina jaacute natildeo
poderaacute ter dores se por isso se entender a experiecircncia da dor independentemente da
experiecircncia do corpo Natildeo sabemos o que seja esta experiecircncia de dor que natildeo seja a
nossa proacutepria experiecircncia E nesta em caso algum se distingue a experiecircncia de dor do
outro Da mesma maneira se passa com o pensamento Uma maacutequina eacute capaz de
pensamento quando reconhecemos que os signos linguiacutesticos com que se exprime tecircm
sentido sobretudo no contexto de um diaacutelogo Neste caso a maacutequina natildeo se diferencia
do corpo humano que articula uma certa linguagem Seraacute completamente diferente
quando o pensamento eacute considerado como experiecircncia independente da experiecircncia da
linguagem Sendo o pensamento uma experiecircncia que natildeo conhece outra experiecircncia
que natildeo seja a sua proacutepria nunca poderemos afirmar que uma maacutequina tem
pensamento Mas nesse caso importa notar que a consideraccedilatildeo de que os corpos satildeo
maacutequinas tambeacutem natildeo nos permite dizer que os corpos pensam mesmo que sejam
humanos
Haacute ainda a considerar a possibilidade do pensamento se suceder sem
necessariamente se expressar atraveacutes da linguagem ou da expressatildeo linguiacutestica ser
totalmente arbitraacuteria relativamente aos pensamentos O que aqui se equaciona eacute a
impossibilidade do conhecimento do pensamento por inferecircncia analoacutegica entre uma
maacutequina capaz da linguagem e o ser humano E se natildeo fizer sentido estabelecer
semelhanccedila entre o mecanismo onde se desenrola a linguagem e o pensamento num ser
172
humano uma vez que este e a linguagem podem natildeo ter relaccedilatildeo entre si podendo
qualquer um deles ocorrer de forma independente Como aceder entatildeo ao pensamento
inarticulado Embora natildeo seja expliacutecito a admitir que seja possiacutevel que com o
pensamento o ser humano possa criar para si proacuteprio imagens preacute-linguiacutesticas pelo
menos Wittgenstein acredita (e eacute como crenccedila que o admite) que assim possa acontecer
com as crianccedilas (cf BT 53 p 177) Jaacute relativamente agrave linguagem essa natildeo pode de
modo algum ocorrer fora do pensamento Referindo-se agrave sua inseparabilidade que surge
logo com a aprendizagem da linguagem diz-nos ele
[] toda a crianccedila que aprenda uma linguagem apenas a aprende se comeccedilar a pensar nela Comeccedilando imediatamente isto eacute natildeo existe nenhum estaacutegio preliminar no qual a crianccedila jaacute use a linguagem use-a com o propoacutesito de comunicaccedilatildeo por assim dizer mas natildeo pense ainda nela282 (BT 53 p 177)
Assim o filoacutesofo natildeo concebe a possibilidade da linguagem que natildeo seja pensada O
que torna possiacutevel uma certa conceccedilatildeo do pensamento alicerccedilada na ideia de que a
linguagem eacute uma sua manifestaccedilatildeo e que como tal daacute indicaccedilotildees sobre o que ele eacute
Compreendendo-se deste modo por que eacute que o pensamento encarado como um
processo fisioloacutegico e psicoloacutegico eacute uma ideia tatildeo comum pois isto facilmente se infere
da sua expressatildeo evidente a linguagem que se mostra como um processo loacutegica e
fisicamente articulado Fica por isso aparentemente salvaguardada a possibilidade da
analogia do pensamento com o mecanismo da maacutequina onde ocorre a linguagem
E natildeo obstante a defesa que Wittgenstein parece fazer da analogia do
pensamento com a maacutequina uma analogia que subjaz ao que se diz em geral ser o
pensamento serve-lhe apenas para melhor demonstrar a sua falsidade (cf BT 49 p
169) A gramaacutetica da palavra laquopensamentoraquo natildeo distingue um interior inacessiacutevel de
que temos apenas indicaccedilatildeo pelo que nele eacute exterior ou seja a linguagem (cf BT 54 p
178) O uso que damos agrave palavra refere-se somente ao exterior evidente que natildeo tem
interior Por este motivo ldquoNotavelmente uma das mais perigosas ideias eacute de que
282 ldquo[] every child who learns a language inly learns it by beginning think in it By beginning straight-off I mean there is no preliminary stage in which the child already uses the language uses it for the purpose of communication as it were but doesnrsquot yet think in itrdquo (BT 53 p 177e) ldquo[hellip] jedes Kind das die Sprache lernt sie nur in dieser Weise lernt daszlig es anfaumlngt in ihr zu denken Ploumltzlich anfaumlngt ich meine Es gibt kein Vorstadium in welchem das Kind die Sprache zwar schon gebraucht sozusagen zum Zweck der Verstaumlndigung gebraucht aber noch nicht in ihr denktrdquo (BT 53 p 177)
173
pensamos com as ou nas nossas cabeccedilasrdquo283 (BT 52 p 173) Segundo ela eacute nas nossas
cabeccedilas no seu interior que cremos firmemente que ocorre em segredo o processo
mecacircnico do pensamento que eacute uma atividade da mente tal como o falar eacute uma
atividade da boca Poreacutem diz-nos o filoacutesofo ldquoPensar natildeo eacute para ser comparado agrave
atividade de um mecanismo que vemos do exterior mas em cujos funcionamentos
internos ainda temos que penetrarrdquo284 (BT 52 p 173) Como se essa penetraccedilatildeo se
desse num corpo de tal modo que seria possiacutevel inferir a funccedilatildeo do pensamento a partir
da funccedilatildeo da linguagem O pensamento natildeo tem uma funccedilatildeo orgacircnica porque natildeo eacute
nada de orgacircnico nem se pode comparar com o que possa ser orgacircnico (cf BT 51 p
172) Como explicar entatildeo o que eacute o pensamento Ora a gramaacutetica natildeo estaacute interessada
na sua explicaccedilatildeo mas somente em descrever o que a palavra laquopensamentoraquo significa
(cf BT 49 p 168)
E eacute a gramaacutetica que nos permite dizer que a linguagem eacute a expressatildeo do
pensamento Sendo que aqui laquoexpressatildeoraquo natildeo significa nem o que anima o pensamento
nem o que eacute animado por ele Natildeo eacute a comunicaccedilatildeo que desencadeia o pensamento
como tambeacutem natildeo eacute a linguagem um seu resultado (cf BT 53 p 175) Com efeito a
linguagem natildeo eacute algo separado do pensamento algo que teria uma existecircncia proacutepria
sob a forma de siacutembolos que satildeo ou foram pensados de modo reservado Se assim fosse
como compreender o pensamento Ou no questionamento de Wittgenstein
Isto eacute dizer se um pensamento natildeo fosse jaacute articulado como poderia a sua expressatildeo por meio da linguagem articulaacute-lo Pelo contraacuterio um pensamento articulado eacute essencialmente uma proposiccedilatildeo285 (BT 53 p 175)
283 ldquoRemarkably one of the most dangerous ideas is that we think with or in our headsrdquo (BT 52 p 173e) ldquoEine der gefaumlhrlichsten Ideen ist merkwuumlrdigerweise daszlig wir mit dem Kopf oder im Kopf denkenrdquo (BT 52 p 173)
284 ldquoThinking is not to be compared to the activity of a mechanism that we see from the outside but into whose inner workings we have yet to penetraterdquo (BT 52 p 173e) ldquoDas Denken ist nicht mit der Taumltigkeit eines Mechanismus zu vergleichen den wir von auszligen sehen in dessen Inneres wir aber erst dringen muumlssenrdquo (BT 52 p 173)
285 ldquoThat is to say if a thought were not already articulated how could expressing it by means of language articulate it Rather an articulated thought is essentially a propositionrdquo (BT 53 p 175e) ldquoDh wenn der Gedanke nicht schon artikuliert waumlre wie koumlnnte der Ausdruck durch die Sprache ihn artikulieren Der artikulierte Gedanke aber ist in allem Wesentlichen ein Satzrdquo (BT 53 p 175)
174
Mesmo quando se pensa em silecircncio estaacute-se a falar de si para si da mesma maneira do
que seria falar para o outro proferindo ou escrevendo Por exemplo o processo de
caacutelculo que ocorre de modo reservado natildeo eacute diferente do que se ocorresse traccedilado em
papel Da mesma maneira a escrita que evolui no papel dando conta de um dado
processo de caacutelculo expotildee nem mais nem menos do que o seu modo especiacutefico de
pensamento O que se diz em silecircncio ou de forma audiacutevel ou legiacutevel eacute o que se pensa
Nada mais haacute no pensamento do que aquilo que se diz e enquanto eacute dito (cf BT 53 p
176) Ele natildeo eacute um processo secreto privado que se insinua na linguagem Natildeo tem
pois qualquer cabimento que esta sirva de base para a inferecircncia sobre como funciona o
pensamento O signo por assim dizer natildeo fala sobre o pensamento mas eacute o proacuteprio
pensamento a falar e o que ele diz natildeo eacute apenas o sentido imperfeito do que o
pensamento quer transmitir mas o seu sentido completo Como nos diz Wittgenstein
ldquoAfinal um pensamento eacute somente uma expressatildeo e natildeo pode haver magia escondida
atraacutes de uma expressatildeordquo286 (BT 15 p 52) Assim tudo o que haacute a saber sobre o
pensamento encontra-se na sua proacutepria expressatildeo independentemente da liacutengua em que
eacute expresso E o que ele expressa satildeo sentidos que as diferentes liacutenguas comunicam a seu
modo e satildeo precisamente esses sentidos comuns que possibilitam a traduccedilatildeo das
linguagens entre si (cf BT 53 p 177)
Ora a desmontagem desta falsa analogia do pensamento como um mecanismo e
o seu confinamento agrave linguagem tornam claro o modo errado como habitualmente se
entende que as palavras adquirem significado e as proposiccedilotildees sentido Coloca-se desta
maneira sob uma nova perspetiva o que se reconhece ser proacuteprio do pensamento
sobretudo a representaccedilatildeo da realidade e a compreensatildeo da linguagem
A Intencionalidade do Pensamento
Um dos aspetos mais essenciais do pensamento eacute a sua intencionalidade isto eacute o
facto da linguagem ter um caraacutecter referencial de sempre transmitir o sentido de alguma
coisa Mas para Wittgenstein entre tudo aquilo a que o pensamento se pode referir
somente interessa agrave filosofia aquilo que diz respeito agraves coisas do mundo exterior
286 ldquoAfter all a thought is just an expression and there can be no magic hidden behind an expressionrdquo (BT 15 p 52e) ldquoEin Gedanke ist ja bloszlig ein Ausdruck amp hinter dem kann kein Zauber steckenrdquo (BT 15 p 52)
175
Se um pensamento fosse uma diversatildeo privada por assim dizer e natildeo tivesse nada que ver com o mundo exterior ele para noacutes perderia todo o interesse (como digamos os sentimentos que acompanham um distuacuterbio estomacal) O que queremos saber eacute O que eacute que o pensamento tem a ver com o que acontece fora dele Porque afinal eacute soacute daiacute que deriva o seu significado quero dizer ndash a sua importacircncia287 (BT 83 p 286)
O pensamento possivelmente idealista que se tem a si mesmo e natildeo o mundo exterior
como objeto de pensamento (o pensamento autorreferencial) eacute aqui comparado pelo
filoacutesofo aos sentimentos com origem numa perturbaccedilatildeo interior naturalmente
irrelevante para a filosofia O pensamento que lhe interessa considerar eacute o que descreve
o mundo aquele que nos permite aprender como as coisas satildeo na realidade (cf BT 80
p 277) Mas como eacute que ocorre essa aprendizagem Como eacute que o pensamento nos daacute
a conhecer a realidade Eacute na resposta a estas questotildees que aparece a falsa analogia do
pensamento como um mecanismo interior e oculto que se daacute a conhecer pelo que
exterioriza atraveacutes da linguagem De acordo com ela a intenccedilatildeo natildeo eacute um fenoacutemeno
passiacutevel de ser conhecido do exterior mas apenas acessiacutevel ao sujeito que tem a
experiecircncia natildeo-fenomenal de significar algo (cf BT 81 p 281 e 64 p 223) A
intenccedilatildeo eacute assim colocada ao mesmo niacutevel de uma dor que obviamente soacute a pode
conhecer quem dela sofrer A este niacutevel natildeo se vecirc poreacutem como poderia ser inteligiacutevel
a intenccedilatildeo dar origem agrave descriccedilatildeo do mundo (cf BT 81 p 281)288 O que aqui parece
supor-se eacute que o pensamento pode ao olhar a experiecircncia da realidade determinar o seu
proacuteprio conteuacutedo a uma descriccedilatildeo significativa dessa experiecircncia Esse processo de
determinaccedilatildeo eacute o que conferiria intencionalidade ao pensamento Ele teria assim a
capacidade de se pensar a si mesmo como se de um facto se tratasse enquanto pensa a
experiecircncia da realidade E este pensar simultaneamente hetero e autorreferencial seria
287 ldquoIf a thought were a private amusement so to speak and didnrsquot have anything to do with the outsider world it would lack all interest for us (like say the feelings accompanying an upset stomach) What we want to know is What does a thought have to do with what happens outside it Because after all it is only from there that it derives its meaning I mean ndash its importancerdquo (BT 83 p 286e) ldquoWaumlre der Gedanke sozusagen eine Privatbelustigung und haumltte nichts mit der Auszligenwelt zu tun so waumlre er fuumlr uns ohne jedes Interesse (wie etwa die Gefuumlhle bei einer Magenverstimmung) Was wir wissen wollen ist Was hat der Gedanke mit dem zu tun was auszliger dem Gedanken vorfaumlllt Denn seine Bedeutung ich meine seine Wichtigkeit bezieht er ja nur daherrdquo (BT 83 p 286)
288 A relaccedilatildeo dos conteuacutedos da interioridade da intencionalidade e da sua exteriorizaccedilatildeo volta a ser desenvolvida nas PI Para uma anaacutelise cuidada desta problemaacutetica ver MARQUES Antoacutenio ldquoObservaccedilotildees Sobre a Intencionalidade nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas de Wittgensteinrdquo separata de Sujeito e Passividade coloacutequio realizado a 10 e 11 de Outubro de 2001 na Faculdade de Letras de Lisboa Colibri Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2001 pp 187-196
176
convergente no propoacutesito de descriccedilatildeo dessa experiecircncia Contudo esta
autorreferencialidade determinada a dar conta do mundo acontece sem que dela se
perceba mais do que o processo de expressatildeo proposicional do pensamento289 Aliaacutes
somente este permite inferir com base numa falsa analogia a sua intencionalidade
como uma espeacutecie de operador empiricamente inacessiacutevel que determina
teleologicamente a accedilatildeo Portanto natildeo podemos afirmar que existe uma experiecircncia
intencional de atribuiccedilatildeo de significado a algo descritiacutevel mas somente que noacutes agimos
desse modo que manifestamos os pensamentos intencionalmente (cf BT 81 p 282) O
que poreacutem assim manifestamos atraveacutes das nossas proposiccedilotildees natildeo deixa nada de fora
da sua compreensatildeo imediata nem essas proposiccedilotildees podem servir de base a
pensamentos que tragam novos sentidos ndash como o da ocorrecircncia do pensamento por
detraacutes da sua expressatildeo ou da intenccedilatildeo sem a expressar Efetivamente assim nos afianccedila
Wittgenstein as proposiccedilotildees soacute consentem inferecircncias que originam novas proposiccedilotildees
que natildeo extravasem o seu sentido (cf BT 69 p 239)
O que percebemos nas proposiccedilotildees que enunciamos eacute que procuram com
recurso a siacutembolos fazer descriccedilotildees vaacutelidas dos factos do mundo Elas falam-nos com
efeito acerca da realidade E eacute ela que parece ser o original (o modelo) que regula a
descriccedilatildeo que dela faz um retrato ou seja que de alguma forma aparenta estabelecer
com o original uma certa relaccedilatildeo de similitude Se satildeo os fenoacutemenos que supostamente
dirigem a formaccedilatildeo das proposiccedilotildees o modo como se faz a transposiccedilatildeo de uns nas
outras eacute completamente obscura e obviamente indescritiacutevel Apesar da regra de projeccedilatildeo
da imagem no facto natildeo transparecer na expressatildeo do pensamento que putativamente a
segue isso natildeo impede que se presuma a mencionada relaccedilatildeo de similitude uma vez
289 Na verdade esta autorreferencialidade natildeo ocorre a natildeo ser na linguagem apenas a linguagem tem a capacidade de se referir a si mesma de estabelecer raciociacutenios refletidos e encadeados ndash numa cadeia inferencial de proposiccedilotildees ndash que podem determinar o conteuacutedo da descriccedilatildeo da realidade Eacute esta possibilidade da linguagem se dobrar sobre si quando reflete sobre os seus objetos que nos leva a concluir pela intencionalidade do pensamento soacute ela tem a capacidade gramatical de fazer notar que ela mesma se refere a certos objetos ou intenciona a realidade Assim a despeito de funcionar senatildeo determinada por si mesma a linguagem intenta a representaccedilatildeo simboacutelica da realidade Uma representaccedilatildeo que a linguagem natildeo pode decidir se eacute verdadeira ou falsa se essa decisatildeo envolver sair de si mesma e daquilo que a determina E isto eacute tanto mais certo quanto o que determina os usos da linguagem eacute como defende Wittgenstein arbitraacuterio e independente da realidade Stefan Brandt procura precisamente mostrar que para Wittgenstein a relaccedilatildeo entre a mente e a linguagem e estas e o mundo ocorre dentro da linguagem de tal sorte que da mesma maneira que ela se refere em geral aos seus proacuteprios conteuacutedos a intencionalidade da linguagem percebe-se na referecircncia que ela proacutepria faz aos objetos das suas proposiccedilotildees (cf BRANDT Stefan ldquoWittgenstein on Intentionalityrdquo in Hans-Johann Glock and John Hyman (eds) A Companion to Wittgenstein Wiley-Blackwell Oxford 2017 pp 513-516)
177
que seja como for dela depende totalmente a possibilidade de descriccedilatildeo da realidade
(cf BT 62 p 218) Diga-se ademais que qualquer tentativa de justificaccedilatildeo de uma
regra de projeccedilatildeo implica aduzir recursivamente novas regras tambeacutem elas a carecerem
de justificaccedilatildeo (cf BT 63 p 219) Por outro lado tendo em conta que os signos podem
ser explicados e essa explicaccedilatildeo ser o seu sentido natildeo vecirc o filoacutesofo qualquer
necessidade de usar uma falsa analogia de acordo com a qual esse sentido ocorre no
interior de um processo psicoloacutegico uma atividade da mente que o traduz em signos
explicando assim a sua dimensatildeo simboacutelica (cf BT 64 pp 221-223) Por estes motivos
natildeo eacute correto afirmar que a intencionalidade do pensamento tem como causa o sentido
da realidade que quer transmitir mas antes que ele eacute certamente a razatildeo da sua
intencionalidade (cf BT 61 p 215)
Mas se satildeo os fenoacutemenos que motivam a intenccedilatildeo de os representar a sua
representaccedilatildeo por seu turno faz-se nas condiccedilotildees loacutegicas caracteriacutesticas da linguagem
usada para esse efeito ldquo[] [a] linguagem parece ser algo a que eacute dada uma estrutura e
em seguida sobreposta agrave realidaderdquo290 (BT 13 p 45) Esta traduccedilatildeo dos fenoacutemenos
segundo a estrutura da linguagem torna o sentido das proposiccedilotildees que os descrevem natildeo
uma experiecircncia mas uma mera estipulaccedilatildeo uma determinaccedilatildeo possiacutevel do uso das
palavras ajustado agrave sua descriccedilatildeo (cf BT 10 p 35) Daiacute que o pensamento de um
fenoacutemeno resulte sempre de uma decisatildeo sobre a melhor maneira de o descrever de
acordo com o sistema de sentidos dados na linguagem (cf BT 25 p 76 e 10 p 35) Na
verdade a possibilidade de descriccedilatildeo de um fenoacutemeno assenta antes de mais na forma
de representaccedilatildeo adotada Mas de acordo com esta forma existe uma hipoacutetese que
Wittgenstein refere como sendo uma lei de formaccedilatildeo de representaccedilotildees tipo a lei dada
por uma equaccedilatildeo de uma curva suscetiacutevel de ser alterada de modo a concordar com a
experiecircncia segundo a qual um fenoacutemeno admite vaacuterias possibilidades de representaccedilatildeo
(cf BT 32 pp 94-96) Somente no quadro dessa hipoacutetese se pode verificar a adesatildeo agrave
realidade de representaccedilotildees alternativas Assim na forma de representaccedilatildeo da
linguagem a hipoacutetese de descriccedilatildeo de um fenoacutemeno eacute determinada por uma certa ordem
de possibilidades de o significar (a mencionada lei) em que a possibilidade decidida
segundo essa ordem eacute verificada pela experiecircncia imediata desse fenoacutemeno A
proposiccedilatildeo eacute nestes termos uma possibilidade de dar sentido a um facto de acordo com
290 ldquo[] language seems to be something that is given a structure and then superimposed on realityrdquo (BT 13 p 45e) ldquo[hellip] und die Sprache etwas dem eine Struktur gegeben und das dann der Wirklichkeit aufgepaszligt wirdrdquo (BT 13 p 45)
178
a hipoacutetese da sua representaccedilatildeo Conclui-se entatildeo que a intencionalidade do
pensamento se efetua de acordo com as hipoacuteteses de representaccedilatildeo no interior do
sistema de linguagem que a expressa Eacute segundo essas hipoacuteteses que os factos adquirem
determinados sentidos que se sobrepotildeem agrave realidade
Wittgenstein parece sugerir que a ordem de possibilidades de sentido de um
fenoacutemeno a sua hipoacutetese de representaccedilatildeo eacute como se fosse uma sua medida em que a
proposiccedilatildeo que o descreve como possibilidade de representaccedilatildeo decidida eacute por assim
dizer uma determinada mediccedilatildeo a que se compara o fenoacutemeno
Eu disse que uma proposiccedilatildeo eacute colocada ao lado da realidade como uma medida E a medida como todos os siacutemiles de uma proposiccedilatildeo eacute um caso particular de uma proposiccedilatildeo E como uma medida natildeo determina nada desde que natildeo se meccedila com ela Mas medir eacute comparar (e precisa ser chamada de traduccedilatildeo)291 (BT 23 p 70)
De notar que somente neste sentido se pode compreender as referecircncias que a
linguagem faz ao que natildeo estaacute presente na experiecircncia imediata Quando por exemplo
dizemos que natildeo temos dores natildeo o podemos dizer como se disso tiveacutessemos
experiecircncia como se isso fosse um estado interior Mas antes o dizemos porque de
alguma forma dispomos de uma certa ordem de possibilidades de uso da palavra laquodorraquo
lsquoDorrsquo significa toda a reacutegua de mensuraccedilatildeo por assim dizer e natildeo uma das suas marcas de graduaccedilatildeo O que estaacute localizado numa certa marca eacute para ser expresso por uma proposiccedilatildeo292 (BT 29 p 84)
291 ldquoI said that a proposition is laid alongside reality like a yardstick And the yardstick like all similes for a proposition is a particular case of a proposition And like a yardstick neither does it determine anything so long as one doesnrsquot measure with it But measuring is comparing (and needs to be called translating)rdquo (BT 23 p 70e) ldquoIch sagte der Satz waumlre wie ein Maszligstab an die Wirklichkeit angelegt Und der Maszligstab ist wie alle Gleichnisse des Satzes ein besonderer Fall eines Satzes Und auch er bestimmt nichts solange man nicht mit ihm miszligt Aber Messen ist Vergleichen (und muszlig heiszligen Uumlbersetzen)rdquo (BT 23 p 70)
292 ldquolsquoPainrsquo means the entire measuring stick as it were and no tone of its graduation marks That it is located on a certain mark is to be expressed by a propositionrdquo (BT 29 p 84e) ldquolsquoSchmerzenrsquo heiszligt sozusagen der ganze Maszligstab und nicht einer seiner Teilstriche Daszlig er auf einem bestimmten Teilstrich steht ist durch einen Satz auszudruumlckenrdquo (BT 29 p 84)
179
A proposiccedilatildeo laquoNatildeo sinto doresraquo eacute digamos uma mediccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do instrumento
de medida ou um caso particular de uma lei que regula o uso da palavra laquodorraquo Essa
tambeacutem eacute a situaccedilatildeo das proposiccedilotildees que negam a existecircncia de uma certa cor
Se tudo o que vejo eacute uma coisa preta e eu digo que natildeo eacute vermelha como eacute que sei que natildeo estou a falar um absurdo ie que pode ser vermelha que existe o vermelho A natildeo ser que o vermelho seja simplesmente uma outra marca de graduaccedilatildeo numa medida na qual o preto estaacute situado Qual eacute a diferenccedila entre lsquoIsso natildeo eacute vermelhorsquo e lsquoIsso natildeo eacute abracadabrarsquo Obviamente eu devo saber que lsquopretorsquo ndash que descreve (ou ajuda a descrever) o estado de coisas atual ndash eacute o que eacute substituiacutevel por lsquovermelhorsquo numa descriccedilatildeo293 (BT 29 p 85)
A palavra laquocorraquo abrange como se de uma medida se tratasse o espectro de cores com
base na qual eacute possiacutevel projetar a realidade Quando dizemos que uma coisa eacute preta
nega-se que ela possa ser de outra qualquer cor da mesma maneira quando se nega que
ela seja vermelha admite-se que ela possa ser de cor diferente Por isso a proposiccedilatildeo
na afirmativa ou na negativa pressupotildee todas as possibilidades do descrito poder ser de
outro modo coerente com a medida aplicaacutevel com a hipoacutetese da sua descriccedilatildeo
Novamente isto tambeacutem significa que todas as possibilidades de descriccedilatildeo da realidade
satildeo jaacute dadas pelas possibilidades conferidas pela forma linguiacutestica de representaccedilatildeo
Eacute igualmente esta circunstacircncia que torna possiacutevel uma proposiccedilatildeo parecer jaacute
saber o que a faz verdadeira mesmo quando isso que aparenta saber natildeo estaacute presente
(cf BT 24 p 73) Ao dizer-se por exemplo que uma coisa natildeo eacute vermelha parece
saber-se que ela eacute de qualquer outra cor A proposiccedilatildeo assemelha-se assim a um plano
pois tambeacutem ele parece saber o que o realiza tal qual um desejo ou uma expectativa O
facto presente ou ausente eacute projetado conforme uma certa ordem de possibilidades de
sentido por assim dizer uma certa ciecircncia cartograacutefica dando origem a um plano
como se de uma carta topograacutefica se tratasse sob a forma de uma proposiccedilatildeo que eacute uma
293 ldquoIf all I is something black and I say it isnrsquot red how do I know that Irsquom not talking nonsense ie that it can be red that there is red Unless red is simple another graduation mark on a yardstick on which black is situated Whatrsquos the difference between lsquoThat isnrsquot redrsquo and lsquoThat isnrsquot abracadabrarsquo Obviously I must know that lsquoblackrsquo ndash which describes (or helps to describe) the actual state of affairs ndash is what is replaced by lsquoredrsquo in a descriptionrdquo (BT 29 p 85e) ldquoWenn ich nur etwas Schwarzes sehe und sage es ist nicht rot wie weiszlig ich daszlig ich nicht Unsinn rede dh daszlig es rot sein kann daszlig es Rot gibt Wenn nicht rot eben ein anderer Teilstrich auf dem Maszligstab ist auf dem auch schwarz einer ist Was ist der Unterschied zwischen ldquodas ist nicht rotrdquo und ldquodas ist nicht abrakadabrardquo Ich muszlig offenbar wissen daszlig ldquoschwarzrdquo welches den tatsaumlchlichen Zustand beschreibt (oder beschreiben hilft) das ist an dessen Stelle in der Beschreibung ldquorotrdquo stehtrdquo (BT 29 p 85)
180
possibilidade de o descrever E como toda a possibilidade sabe o que a atualiza
Portanto ela eacute um plano entre outros possiacuteveis que como tal pode ou natildeo
corresponder agrave disposiccedilatildeo do estado de coisas Por isso nos diz Wittgenstein que
ldquoPensar eacute fazer planosrdquo294 (BT 25 p 76) Mas entatildeo como verificar se o plano eacute fiel agrave
realidade O que tecircm eles em comum para poderem ser comparados O filoacutesofo
reconhece a ilusatildeo que incorreu no TLP ao considerar viaacutevel esta comparaccedilatildeo devido agrave
representaccedilatildeo pictoacuterica da linguagem partilhar a sua forma com os factos e poder daiacute
resultar uma certa semelhanccedila entre ambos (cf BT 43 p 141) Ao ser a proposiccedilatildeo
uma projeccedilatildeo da realidade o que com efeito ambas podem ter em comum adveacutem da
proacutepria intencionalidade do facto de a proposiccedilatildeo pretender representaacute-la Poreacutem natildeo
se pode afirmar sem que se esteja a forccedilar uma generalizaccedilatildeo que a realidade comunga
da sua forma de representaccedilatildeo Essa comunhatildeo natildeo eacute evidente mesmo quando se
considera que essa representaccedilatildeo tem origem numa imagem mental como se ela fosse
uma imagem pintada Pois uma imagem dessas nem sempre se refere a alguma coisa
que exista na realidade e ademais natildeo se pode provar que ela natildeo seja simplesmente
uma imagem mental de um sonho (cf BT 50 pp 170-171) Tambeacutem natildeo eacute possiacutevel
avaliar a concordacircncia de uma proposiccedilatildeo com a realidade atraveacutes da sua explicaccedilatildeo
ostensiva (cf BT 43 p 142 e 46 p 158) Dizer-se que uma dada proposiccedilatildeo concorda
ou natildeo concorda com um certo fenoacutemeno apontando para ele pressupotildee para que seja
possiacutevel a sua compreensatildeo que esse facto seja jaacute previamente articulado Deste modo
uma proposiccedilatildeo concorda ou natildeo concorda com um fenoacutemeno quando a proposiccedilatildeo que
o descreve concorda ou natildeo concorda com ela Mas entatildeo como ficamos noacutes a saber
que esta uacuteltima proposiccedilatildeo concorda ou natildeo concorda com o facto que descreve A
recorrecircncia indefinida desta explicaccedilatildeo resulta obviamente na impossibilidade da sua
explicaccedilatildeo Natildeo se pode portanto saber se uma proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa por
ser respetivamente concordante ou natildeo concordante com a realidade a que se refere
Nesta medida uma proposiccedilatildeo natildeo eacute o que pode ser verdadeiro ou falso a natildeo ser no
sentido em que se afirme a sua verdade ou falsidade laquolsquoprsquo eacute verdadeiroraquo ou laquolsquoprsquo eacute falsoraquo
(cf BT 18 p 61) Mas dizemos isto de maneira anaacuteloga a quando dizemos como de
um caacutelculo se tratasse que a proposiccedilatildeo laquo3 + 2 = 5raquo eacute verdadeira e a proposiccedilatildeo laquo3 + 2
= 6raquo eacute falsa A proposiccedilatildeo laquopraquo eacute verdadeira isto eacute concorda com o facto que descreve
de um modo semelhante que dois signos sejam eles por exemplo laquo5raquo e laquo3 + 2raquo satildeo
294 ldquoThinking is to make plansrdquo (BT 25 p 76e) ldquoDenken ist Plaumlne machenrdquo (BT 25 p 76)
181
concordantes entre si (cf BT 21 p 67) A concordacircncia destes uacuteltimos eacute fruto de um
caacutelculo e o que aqui se sugere eacute que eacute uma espeacutecie de caacutelculo que liga a proposiccedilatildeo agrave
realidade (cf BT 83 p 288) laquoA proposiccedilatildeo do facto p eacute verdadeira porque concorda
com a proposiccedilatildeo que descreve o facto praquo seraacute certamente um exemplo de proposiccedilatildeo
que estabelece essa ligaccedilatildeo Em suma toda a concordacircncia a harmonia entre a
linguagem e a realidade verifica-se no interior da proacutepria linguagem ldquoTudo eacute realizado
na linguagemrdquo295 (BT 80 p 279) Os usos da linguagem efetivamente natildeo nos dizem
o que torna uma proposiccedilatildeo concordante ou natildeo concordante com a realidade natildeo
obstante permitem comparar signos de modo a compreendermos a possibilidade de
harmonia entre eles (cf BT 12 p 38) A justificaccedilatildeo do conhecimento encontra-se
pois na proacutepria linguagem Ela eacute toda a possibilidade de conhecimento da realidade e eacute
nos seus proacuteprios termos que se firma esse conhecimento Na verdade apesar de o
podermos explicar eacute impossiacutevel a fundamentaccedilatildeo do conhecimento assim constituiacutedo
A harmonia da linguagem e do mundo eacute meramente simboacutelica e totalmente indiferente
ao valor como o satildeo todas as expressotildees de uma linguagem A intencionalidade do
pensamento natildeo diferencia o valor do que intenciona Por isso as proposiccedilotildees que
afirmam esta harmonia estatildeo exatamente ao mesmo niacutevel de todas as outras
proposiccedilotildees A uacutenica coisa que as distingue eacute o seu sentido296
Quanto aos pensamentos aos planos que se referem ao futuro natildeo soacute eles
parecem saber o que os torna verdadeiros como a sua verdade ou falsidade eacute
completamente independente do que venha a acontecer no futuro (cf BT 33 p 100 e
295 ldquoEverything is carried out in languagerdquo (BT 80 p 279e cf 81 pp 281 e 283) ldquoIn der Sprache wird alles ausgetragenrdquo (BT 80 p 279)
296 Segundo Tim Crane se no TLP a harmonia entre a linguagem e o mundo pressupunha entre eles uma relaccedilatildeo interna possiacutevel por partilharem a mesma forma loacutegica essa relaccedilatildeo eacute posteriormente dispensada Agrave relaccedilatildeo metafiacutesica entre a linguagem e o mundo sucede uma relaccedilatildeo gramatical por exemplo a proposiccedilatildeo ldquoA neve eacute brancardquo natildeo estabelece uma relaccedilatildeo entre a crenccedila de que a cor da neve eacute branca e o facto que descreve com base na qual se poderia concluir sobre a sua verdade ou falsidade mas que essa proposiccedilatildeo (crenccedila) eacute usada com o mesmo sentido que a proposiccedilatildeo ldquoA verdade de que a neve eacute branca eacute dada pelo facto da neve ser brancardquo (Cf CRANE Tim ldquoWittgenstein and Intentionalityrdquo (Revised 2013) The Harvard Review of Philosophy Volume XVII Issue 1 2010 pp 88-104 in httpsphilpapersorgarchiveCRAWAI-3pdf) P M S Hacker discorda de que natildeo exista uma relaccedilatildeo interna entre a linguagem e o mundo embora a nosso ver natildeo seja claro se ele se refere a mais do que a uma conexatildeo intencional da linguagem (cf HACKER P M S Wittgenstein Comparisons and Context pp 181-184) Se tudo se passa na linguagem como nos eacute dito no BT assim se passa com o mundo (o facto) o que se diz sobre o mundo (a proposiccedilatildeo) e a relaccedilatildeo de verdade ou falsidade entre eles De referir que um facto determinado eacute o que se diz sobre ele pelo que o que assim eacute dito se pode dizer de verdadeiro exceto quando se diga que o que se diz sobre o facto eacute falso mas quando falso eacute porque o facto eacute o que de outro modo se diz sobre ele e sobre isso se diga que eacute verdadeiro ou natildeo se diga que eacute falso
182
80 p 278) Assim uma proposiccedilatildeo de expectativa da mesma maneira que um plano jaacute
sabe o que a realiza justamente porque eacute a imagem dessa realizaccedilatildeo Mas estas
proposiccedilotildees natildeo se realizam do mesmo modo que a fome se sacia como se tratasse de
um suprimento de um estado interior de carecircncia (cf BT 76 p 264 77 p 268 e 82
pp 284-285) Elas natildeo satildeo descriccedilotildees dos factos passiacuteveis de vir a satisfazer certos
estados interiores prementes Ora nada haacute por detraacutes de uma proposiccedilatildeo de expectativa
pois ldquoA expressatildeo da expectativa eacute expectativardquo297 (BT 76 p 265) isto eacute a descriccedilatildeo
do facto esperado Mas a ocorrecircncia do que se julga ser o facto esperado natildeo eacute a
realizaccedilatildeo da expectativa mas simplesmente a ocorrecircncia desse facto A expressatildeo da
expectativa do facto natildeo tem nenhuma necessidade dele eacute somente expectativa Ela
parte da descriccedilatildeo da realidade imediata da sua mediccedilatildeo para assim poder apontar para
o facto esperado para outra marca na medida (cf BT 83 p 287) Por este motivo a
expressatildeo de um facto esperado eacute a expressatildeo de um facto ausente soacute possiacutevel de
expressar uma vez que se dispotildee de uma medida que se pode decidir por uma mediccedilatildeo
que natildeo corresponde agrave realidade imediata Estamos pois a referirmo-nos a um facto
imaginado que no momento de verificar a sua realizaccedilatildeo depende da memoacuteria sempre
tatildeo faliacutevel que dele se tenha Como se pode entatildeo estar seguro de que este facto eacute
aquele que vem a ser o caso (cf BT 77 p 268) Neste sentido a realizaccedilatildeo de uma
expectativa soacute pode ser jaacute parte da sua proacutepria expressatildeo (cf BT 77 p 269) A
expressatildeo de expectativa do facto p eacute realizada pelo facto p expresso numa proposiccedilatildeo
do tipo laquoEste facto eacute o facto esperadoraquo Ou seja a sua realizaccedilatildeo eacute para Wittgenstein
um passo no caacutelculo que vai da expectativa agrave sua realizaccedilatildeo da mesma maneira que do
produto de dois nuacutemeros chegamos a um certo resultado que realiza corretamente esta
operaccedilatildeo (cf BT 80 p 278) Eacute portanto o caacutelculo e natildeo um certo facto esperado que
se vem a consomar que determina a possiacutevel verdade ou falsidade da expectativa (ou do
desejo)
Este facto retira fundamento agrave ideia de que os seres humanos agem de acordo
com as suas expectativas que as suas accedilotildees podem ser determinadas pelos pensamentos
de antecipaccedilatildeo Uma proposiccedilatildeo de expectativa natildeo eacute uma manifestaccedilatildeo de um estado
interior de carecircncia cuja satisfaccedilatildeo eacute dada a conhecer atraveacutes da sua expressatildeo Natildeo tem
sentido que a accedilatildeo humana procure a realizaccedilatildeo de expectativas pois uma proposiccedilatildeo de
297 ldquoThe expression of expectation is expectationrdquo (BT 76 p 265e) ldquoDer Ausdruck der Erwartung ist die Erwartungrdquo (BT 76 p 265)
183
expectativa natildeo tem subjacente o propoacutesito da sua realizaccedilatildeo Esta eacute apenas um passo
num caacutelculo Posto que as expectativas se justificam com base em crenccedilas natildeo seratildeo
estas afinal que conformam a nossa accedilatildeo Mas nesse caso como ficamos a saber
aquilo em que acreditamos Talvez atraveacutes do que sentimos ldquoA crenccedila de que serei
queimado pelo fogo eacute da mesma natureza do medo de vir a ser queimadordquo298 (BT 55 p
180) No caso o motivo da crenccedila eacute o medo Contudo a mesma questatildeo renova-se
como ficamos a saber o que sentimentos pois uma proposiccedilatildeo que exprima este
sentimento natildeo tem como ser verificada Quando se diz que se sabe ter um sentimento a
partir do que se sente como demarcar o que se sente do que se diz saber sentir (cf BT
84 pp 290-291) As expressotildees de sentimento natildeo tecircm valor de verdade mesmo para
quem as enuncia jaacute que em caso algum admitem a duacutevida O que sentimos natildeo eacute pois
do domiacutenio do conhecimento mas antes da experiecircncia inefaacutevel Mas como ldquoPodemos
acreditar com palavrasrdquo299 (BT 84 p 289) pode haver razotildees para aquilo em que
acreditamos A crenccedila de que o fogo queima pode ter como razatildeo o facto de nunca ter
tido conhecimento de um qualquer caso em que o fogo natildeo queimasse No entanto natildeo
haacute a certeza de que natildeo venha a saber de algum caso desses A razatildeo invocada para esta
crenccedila eacute apenas uma conjetura considerada convincente Eacute aquilo a que se pode chamar
de uma boa razatildeo (cf BT 84 pp 292-293) O desconhecimento de qualquer exceccedilatildeo ao
facto do fogo queimar eacute o criteacuterio que determina a bondade da razatildeo Todavia natildeo eacute
possiacutevel fundamentar esse ou outro criteacuterio que se utilize Aleacutem do mais qualquer razatildeo
apontada para uma crenccedila nunca eacute a sua derradeira justificaccedilatildeo Pode-se sempre ateacute que
se decida a parar voltar a indagar da razatildeo para a razatildeo de uma crenccedila Conclui-se
portanto que ldquoUma boa razatildeo eacute aquela que assim parece serrdquo300 (BT 84 p 293) E eacute
por boas razotildees que temos as crenccedilas que temos Natildeo porque as razotildees pelas quais
acreditamos sejam a causa da crenccedila senatildeo porque elas satildeo a decorrecircncia de um
encadeamento articulado de pensamentos (cf BT 85 pp 296-297) Quer umas quer
outras assim como a relaccedilatildeo entre elas ocorrem no interior da linguagem
298 ldquoThe belief that fire will burn me is of the same nature as the fear that it will burn merdquo (BT 55 p 180e) ldquoDer Glaube daszlig mich das Feuer brennen wird ist von der Natur der Furcht daszlig es mich brennen wirdrdquo (BT 55 p 180)
299 ldquoOne can believe with wordsrdquo (BT 84 p 289e) ldquoMan kann in Worten glaubenrdquo (BT 84 p 289)
300 ldquoA good reason is one that looks thisrdquo (BT 84 p 293e) ldquoEin guter Grund ist einer der so aussiehtrdquo (BT 84 p 293)
184
E parecem ser as crenccedilas justificadas que nos levam a querer agir de certo modo
Isto natildeo de forma a que elas satildeo a causa do nosso modo de accedilatildeo mas antes que elas satildeo
diretamente a razatildeo da accedilatildeo301 Por um lado eacute destituiacutedo de sentido dizer-se que satildeo as
crenccedilas que nos levam a querer a experiecircncia de querer um certo modo de accedilatildeo (cf BT
85 pp 295-296) ter vontade de vontade eacute uma ideia incompreensiacutevel Por outro lado o
que chamamos vontade eacute jaacute o acontecer da accedilatildeo jaacute que uma relaccedilatildeo causal entre elas
natildeo passa de uma simples suposiccedilatildeo (cf BT 85 p 297) Tudo o que podemos conhecer
sobre a vontade soacute nos permite dizer que nada a separa da accedilatildeo302 Se bem que a accedilatildeo
natildeo eacute redutiacutevel agrave vontade a natildeo ser que se entenda que ela apenas diz respeito a todo o
proceder humano intencionado de acordo com o que pensamos segundo as suas
expressotildees de crenccedila Nesse caso soacute age quem o fizer com base em crenccedilas
justificadas303 Excluiacutea-se assim da accedilatildeo humana o comportamento impensado ou natildeo
intencionado Ou seja o que se considera accedilatildeo teraacute de ter origem na linguagem O
movimento suacutebito da matildeo que em contacto com um prato quente se furta agrave sensaccedilatildeo
insuportaacutevel de calor natildeo eacute neste sentido uma accedilatildeo (cf BT 85 p 295) Natildeo foram
crenccedilas justificadas que motivaram o movimento da matildeo Mas seratildeo elas que podem
inibir a accedilatildeo de com a matildeo agarrar num prato que se sabe estar a queimar
Ora se natildeo satildeo as crenccedilas justificadas que geram o modo como agimos embora
ajamos de acordo com elas como entatildeo explicar a determinaccedilatildeo da accedilatildeo O que eacute que
determina cada um dos movimentos coordenados e orientados de acordo com crenccedilas
se o que fazemos do modo como o fazemos natildeo eacute conduzido pela intencionalidade do
301 Wittgenstein natildeo concebe que a razatildeo da accedilatildeo seja o mesmo que a causa dela sendo que esta eacute uma mera conjetura empiacuterica enquanto aquela sobretudo enquanto razatildeo motivadora aduzida em contexto eacute o que sabemos estar de acordo com a accedilatildeo (cf HAUTHALER Nathan ldquoWittgenstein on Actions Reasons and Causesrdquo in Antoacutenio Marques e Nuno Venturinha (eds) Knowledge Language and Mind Wittgensteinrsquos Thought in Progress Walter de Gruyter BerlinBoston 2012 pp 95-113)
302 A rejeiccedilatildeo de Wittgenstein de uma perspetiva causal da vontade parece pocircr em causa a accedilatildeo voluntaacuteria por oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo involuntaacuteria Tudo indica ser para o filoacutesofo o contexto em que ocorre a accedilatildeo que inclui a ausecircncia ou presenccedila de surpresa a intenccedilatildeo a aprendizagem a diligecircncia e o desempenho a determinar se ela eacute voluntaacuteria ou involuntaacuteria (cf HYMAN John ldquoAction and The Willrdquo in Oskari Kuusela and Marie McGinn (eds) The Oxford Handbook of Wittgenstein Oxford University Press Oxford 2011 p 459 sobre este assunto ver igualmente GOacuteMEZ-ALONSO Modesto ldquoWittgenstein on the Will and Voluntary Actionrdquo in Jesuacutes Padilla Gaacutelvez (ed) Action Decision-Making and Forms of Life Walter de Gruyter BerlinBoston 2016 pp 77-108)
303 O aspeto essencial eacute que as accedilotildees humanas ocorrem de acordo com as crenccedilas justificadas que se tecircm Pode-se certamente ver nesta ideia a posiccedilatildeo pragmatista de que o pensamento e a accedilatildeo estatildeo inevitavelmente ligados de que a crenccedila eacute um haacutebito de accedilatildeo que verifica o seu significado Sobre as afinidades da uacuteltima filosofia de Wittgenstein com o pragmatismo ver BONCOMPAGNI Anna Wittgenstein and Pragmatism ndash On Certainty in the Light of Pierce and James Palgrave Macmillan London 2016 o capiacutetulo 4 desta obra eacute especialmente relevante no que concerne agrave mencionada relaccedilatildeo
185
pensamento Estas parecem ser interrogaccedilotildees sobre a causa da accedilatildeo sobre o que
incessantemente a anima Pergunta-se pela sua causa como se a accedilatildeo fosse o resultado
de um mecanismo como se ela fosse anaacuteloga ao movimento de um automoacutevel que tem
origem na sua mecacircnica Mais uma vez a falsa analogia do exterior em movimento por
forccedila da mecacircnica interior Jaacute o dissemos natildeo podemos conhecer o fenoacutemeno da
vontade nem como efeito nem como causa Ela mostra-se unicamente na praacutetica
humana intencional isto eacute naquela que eacute orientada por crenccedilas justificadas pela
linguagem A passagem seguinte do BT clarifica o que para Wittgenstein determina a
accedilatildeo
A regra - cuja aprendizagem origina a todo o momento o modo como agimos - eacute como causa raiz do nosso comportamento uma questatildeo de histoacuteria e eacute sem interesse para noacutes 304 (BT 41 p 133)
A nossa accedilatildeo eacute normativa eacute determinada por regras elas satildeo a ldquocausa raiz do nosso
comportamentordquo As questotildees essenciais passam entatildeo a ser de onde vecircm estas regras
Como eacute que as passamos a seguir De que modo as seguimos Como eacute que elas satildeo a
causa da nossa accedilatildeo As regras que o filoacutesofo refere natildeo tecircm origem bioloacutegica mas
construiacutedas e aprendidas socialmente e daiacute elas serem uma questatildeo histoacuterica cuja
investigaccedilatildeo natildeo tem para ele interesse filosoacutefico Essas regras identificamo-las quando
descrevemos genericamente o modo como atuamos em determinado contexto e essa
descriccedilatildeo geral constitui-se como hipoacutetese de accedilatildeo de cada vez que nos encontramos
num contexto semelhante Isto eacute ilustrado por Wittgenstein atraveacutes da praacutetica do jogo de
xadrez em que se diferencia as regras do jogo das regras que enformam o
comportamento procurando-se assim distinguir as regras expliacutecitas daquelas que satildeo
causa da accedilatildeo (cf BT 41 p 133) Temos como hipoacutetese que duas pessoas que estejam
frente-a-frente a jogar xadrez observam determinados comportamentos As regras do
jogo natildeo satildeo no entanto hipoacuteteses de accedilatildeo a confirmar a natildeo ser na medida em que a
sua violaccedilatildeo remete-os para a conformidade com elas As regras que determinam por
hipoacutetese os seus comportamentos natildeo pressupotildeem necessariamente o conhecimento
304 ldquoThe rule - the learning of which caused us just now to act in such and such a way - is as the root cause of our behaviour a matter of history and it is of no interest to usrdquo (BT 41 p 133e) ldquoDie Regel deren Erlernung uns veranlaszligte jetzt so und so zu handeln ist als Ursache unserer Handlungsweise Geschichte ohne Interesse fuumlr unsrdquo (BT 41 p 133)
186
expliacutecito das regras do jogo Satildeo os seus comportamentos e natildeo o que se diz saber
serem as regras do jogo que podem ou natildeo confirmar as regras que os enformam Por
isso eacute possiacutevel que o parceiro do jogo enuncie uma regra e natildeo lhe obedeccedila Ou entatildeo
natildeo tenha presente todas as suas regras quando estaacute a jogaacute-lo e no entanto os seus
comportamentos natildeo as violem Mesmo porque natildeo jogam o jogo tendo em conta a
explicaccedilatildeo dessas regras ou o modo como ficaram a saber delas Na verdade a forma
como aprendemos as regras de um jogo diluiacutesse quando as praticamos a sua explicaccedilatildeo
deixa a certa altura de ser tida em consideraccedilatildeo para a sua praacutetica E cada jogador
segundo os movimentos que decide fazer no jogo tem a sua proacutepria forma de as pocircr em
praacutetica tem a sua maneira particular de usar as regras Passa simplesmente a agir
determinado por elas (cf BT 42 p 140 e 41 p 133) Em conclusatildeo o jogo de xadrez
eacute apenas o contexto onde se observam certas regras que por hipoacutetese determinam o
comportamento dos seus jogadores E eacute deste modo latente que as regras uma vez
aprendidas em funccedilatildeo dos contextos de aplicaccedilatildeo e de acordo com as crenccedilas
justificadas determinam a accedilatildeo humana Uma vez que nos apoderamos das regras estas
passam a determinar o nosso proceder intencional De alguma maneira passamos a usar
as regras que causam o nosso comportamento de acordo com as nossas crenccedilas
racionais A comparaccedilatildeo destas regras agraves regras de um jogo tambeacutem permite evidenciar
o caraacutecter de jogo do contexto onde se daacute accedilatildeo humana Ao seguirmos regras de facto
eacute como estiveacutessemos a jogar um jogo onde as razotildees que suportam as crenccedilas segundo
as quais agimos satildeo dadas no interior desse jogo (cf BT 42 pp 139-140)
Eacute em certa medida tambeacutem assim que se pratica a linguagem humana e disso
falaremos na proacutexima sessatildeo deste capiacutetulo Importa poreacutem ressaltar que ainda que se
possa alegar razotildees para pensarmos o que pensamos razotildees por exemplo que
justificam as nossas crenccedilas natildeo eacute possiacutevel fundamentar porque eacute que pensamos desse
modo (cf BT 55 p 180) Os pensamentos sustentam pensamentos como se
executassem um caacutelculo sem razatildeo ou cuja razatildeo eacute outro caacutelculo sem fundamento eacute
uma transiccedilatildeo de um jogo para outro jogo sempre praticados na mesma esfera dos jogos
da Verdade-Falsidade (cf BT 55 p 181)
187
Se perguntarmos pela razatildeo por detraacutes de um ato individual de pensamento (ato de caacutelculo) a resposta que se obteacutem eacute a anaacutelise de um sistema a que pertence o ato305 (BT 55 p 182)
A intencionalidade do pensamento eacute incapaz de dar a si mesma um fundamento Eacute por
este motivo que natildeo haacute fundamento para justificaccedilatildeo das nossas crenccedilas Soacute se podem
dar razotildees para as razotildees que suportam as nossas crenccedilas sem que quaisquer dessas
razotildees sejam o seu fundamento O que pode levar agrave ilaccedilatildeo de que se afinal as
justificaccedilotildees das crenccedilas satildeo infundadas entatildeo tambeacutem o satildeo as accedilotildees concordantes
com essas crenccedilas Quer umas quer outras seratildeo arbitraacuterias Mas como explicar entatildeo
toda accedilatildeo dirigida por um propoacutesito Seraacute arbitraacuteria por exemplo a accedilatildeo de abertura de
uma torneira para que dela saia aacutegua A intenccedilatildeo diz-nos Wittgenstein natildeo estaacute contida
na accedilatildeo mas somente na sua expressatildeo linguiacutestica (cf BT 44 p 145) Eacute nas crenccedilas
justificadas que ela se pode encontrar E apesar de ser de acordo com elas que a accedilatildeo
ocorre natildeo satildeo elas mas as suas proacuteprias regras que a determinam Poderaacute isto
significar portanto que natildeo haacute intenccedilatildeo no uso das regras que enformam o
comportamento humano Que o uso dessas regras de acordo com crenccedilas com as suas
intenccedilotildees natildeo confere intencionalidade proacutepria agrave accedilatildeo humana
A resposta a estas questotildees acarreta a discussatildeo da compreensatildeo de proposiccedilotildees
Pois agir de acordo com crenccedilas justificadas de um certo modo concordante com
proposiccedilotildees parece supor a possibilidade da compreensatildeo das proposiccedilotildees que as
enunciam Exclua-se como seria de esperar o seu entendimento como um processo
psicoloacutegico atraveacutes do qual se daacute a traduccedilatildeo de um signo para a accedilatildeo uma vez que a
investigaccedilatildeo de tal processo oculto natildeo tem para Wittgenstein interesse filosoacutefico (cf
BT 4 p 13) Jaacute vimos que esses processos surgem por recurso a falsas analogias e por
isso as definiccedilotildees que os consideram satildeo inuacuteteis E poreacutem a possibilidade de
compreensatildeo de uma proposiccedilatildeo afigura-se necessaacuteria agrave sua aplicaccedilatildeo A concordacircncia
do uso de regras de accedilatildeo com as crenccedilas requer que se saiba o que fazer de acordo com
elas Da mesma maneira soacute se pode por exemplo explicar o que eacute seguir um comando
caso quem o segue saiba o que de acordo com ele eacute suposto fazer Wittgenstein nega
poreacutem essa necessidade
305 ldquoIf one asks for the reason behind an individual act of thought (act of calculation) the answer one gets is an analysis of a system to which the act belongsrdquo (BT 55 p 182e) ldquoWenn man nun nach dem Grund einer einzelnen Denkhandlung (Kalkuumllhandlung) fragt so erhaumllt man als Antwort die Auseinandersetzung eines Systems dem die Handlung angehoumlrtrdquo (BT 55 p 182)
188
Se lsquocompreender uma proposiccedilatildeorsquo significa agir de acordo com ela de uma maneira particular entatildeo a compreensatildeo natildeo pode ser a condiccedilatildeo loacutegica para agir de acordo com ela306 (BT 4 p 12)
Ou seja se eacute na accedilatildeo que se vecirc a compreensatildeo de uma proposiccedilatildeo entatildeo ela eacute
inseparaacutevel da accedilatildeo que a significa E logo natildeo pode ser uma sua condiccedilatildeo loacutegica
Parece assim surgir a possibilidade da identidade entre accedilatildeo e a compreensatildeo
Ele fez o que eu ordenei que ele fizesse ndash Porque eacute que algueacutem natildeo deveria dizer que aqui existe uma identidade de accedilatildeo e PALAVRAS Porque deveria eu colocar uma sombra entre esses dois Afinal noacutes temos um meacutetodo de projeccedilatildeo Soacute que haacute uma diferenccedila de identidade entre Eu fiz o que ele fez e eu fiz o que ele comandou307 (BT 24 p 75)
A accedilatildeo concordante com crenccedilas (ou um comando) natildeo eacute uma accedilatildeo de
reproduccedilatildeo de outra qualquer accedilatildeo em que ambas resultam idecircnticas mas antes que
estaacute acordo com o sentido dessas crenccedilas Este estar de acordo natildeo pressupotildee a
compreensatildeo preacutevia desse sentido de modo a que accedilatildeo possa ser com ela concordante
Nada medeia as crenccedilas (ou o comando) e a accedilatildeo (ou a sua execuccedilatildeo) (cf BT 4 p 14)
Mas tambeacutem natildeo quer dizer que a compreensatildeo das crenccedilas conteacutem a accedilatildeo com ela
concordante (cf BT 3 p 10) A compreensatildeo eacute a projeccedilatildeo ou traduccedilatildeo das crenccedilas na
accedilatildeo ldquo[] compreender eacute apenas um siacutembolo que eacute traduzido no processo de
execuccedilatildeordquo (BT 3 p 10)308 A accedilatildeo estaacute de acordo com certas crenccedilas justificadas se eacute
a sua compreensatildeo Quer isto dizer se eacute delas a sua projeccedilatildeo Na mesma medida em que
se afirma que existe de acordo com um determinado meacutetodo de projeccedilatildeo uma
identidade entre o que eu fiz e o que ele fez tambeacutem se pode dizer que existe identidade
306 ldquoIf lsquounderstanding a propositionrsquo means acting in accordance with it in a particular way then understanding cannot be the logical condition for our acting in accordance with itrdquo (BT 4 p 12e) ldquoWenn einen Satz verstehen heiszligt in bestimmter Weise nach ihm handeln dann kann das Verstehen nicht die logische Bedingung dafuumlr sein daszlig wir nach ihm handelnrdquo (BT 4 p 12)
307 ldquoHe did what I ordered him to do - Why shouldnt one say here that there is an identity of action and WORDS Why should I place a shadow between these two After all we do have a method of projection Except that theres a difference in identity between I did what he did and I did what he commandedrdquo (BT 24 p 75e) ldquoEr hat das getan was ich ihm befohlen habe ndash Warum soll man hier nicht sagen es sei eine Identitaumlt der Handlung amp der WORTE Wozu soll ich einen Schatten zwischen die beiden stellen Wir haben ja eine Projektionsmethode Nur ist es eine andere Identitaumlt Ich habe das getan was er getan hat amp ich habe getan das was er befohlen hatrdquo (BT 24 p 75)
308 Podemos dizer que a compreensatildeo como se de uma capacidade se tratasse se exerce na accedilatildeo no que fazemos com a proposiccedilatildeo (cf BRANDT Stefan ldquoWittgenstein on Intentionalityrdquo p 511)
189
entre as crenccedilas e as accedilotildees que satildeo delas a sua compreensatildeo Daiacute que agir de acordo
com crenccedilas queira dizer ser delas a sua compreensatildeo E deste modo eacute tambeacutem a
compreensatildeo da intenccedilatildeo contida nas crenccedilas Assim as regras que enformam o
comportamento humano satildeo usadas natildeo de modo a veicular intenccedilotildees mas de modo a
serem a sua compreensatildeo A accedilatildeo soacute eacute intencional na medida em que eacute a compreensatildeo
da intenccedilatildeo E como vontade a accedilatildeo eacute vontade de compreensatildeo Esta vontade mostra-se
nas regras que seguimos de modo a serem a compreensatildeo do que se pensa
E se natildeo houver uma compreensatildeo imediata de uma proposiccedilatildeo E se a
compreensatildeo de um comando exigir a sua interpretaccedilatildeo Nesse caso de facto a
interpretaccedilatildeo parece fazer a ponte entre o comando e a sua execuccedilatildeo Contudo quando a
interpretaccedilatildeo eacute necessaacuteria diz-nos o filoacutesofo eacute porque natildeo compreendemos a
proposiccedilatildeo e passamos agrave compreensatildeo de outras proposiccedilotildees que a interpretam (cf BT
4 p 15) Nessa circunstacircncia a proposiccedilatildeo interpretada comanda sem mediaccedilatildeo as
proposiccedilotildees de interpretaccedilatildeo constituindo elas a accedilatildeo que denota a sua compreensatildeo
Caso a proposiccedilatildeo interpretada seja um comando a compreensatildeo da respetiva
interpretaccedilatildeo ela mesma um comando eacute a sua execuccedilatildeo E se esta ocorrer depois de
certo tempo ter passado apoacutes o comando ter sido enunciado Significa isto que soacute
compreendemos o comando com a sua execuccedilatildeo O comando como a expectativa e a
crenccedila natildeo conteacutem tempo como se aguardasse por ser cumprido (cf BT 24 p 74) O
comando por executar natildeo aguarda com a sua execuccedilatildeo pela sua compreensatildeo Ele eacute
apenas um passo num caacutelculo
190
Capiacutetulo 10 ndash O Pensamento e a Gramaacutetica
[] suponho que em toda a sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por um certo nuacutemero de procedimentos que tecircm por funccedilatildeo esconjurar os seus poderes e perigos dominar o seu acontecimento aleatoacuterio esquivar-se da sua pesada e temiacutevel materialidade309
O Pensamento a Compreensatildeo e a Significaccedilatildeo
Vimos que a intencionalidade da linguagem a potildee em estreita conexatildeo com a
accedilatildeo humana Mas ela mesma tambeacutem eacute accedilatildeo escrita e falada Neste sentido o que
acabamos de dizer sobre a accedilatildeo pode igualmente aplicar-se agrave linguagem se a accedilatildeo eacute
compreensatildeo da linguagem e a linguagem eacute accedilatildeo entatildeo a linguagem pode compreender-
se a si mesma Ela tem simultaneamente forma intencional e a possibilidade de
compreensatildeo de si proacutepria Mas de que maneira eacute que a compreensatildeo do que se escreve
ou fala significa a accedilatildeo de escrever ou de falar de acordo com isso Como eacute que esta
accedilatildeo pode significar Por outro lado seraacute possiacutevel a compreensatildeo da linguagem que natildeo
seja atraveacutes da accedilatildeo humana Poderaacute a sua compreensatildeo radicar naquilo de que eacute
significado No fundo a questatildeo essencial eacute saber como eacute que a linguagem tem a
possibilidade de significar Possibilidade que aparentemente estaacute relacionada com a
intenccedilatildeo natural da linguagem representar o mundo ela adquiriraacute a sua significaccedilatildeo ao
pretender reproduzir simbolicamente a realidade
Eacute aliaacutes na relaccedilatildeo dos signos com a realidade significante que parece ocorrer a
aprendizagem da linguagem das palavras pela crianccedila Eacute mediante as explicaccedilotildees que
lhe damos que a crianccedila aprende esta linguagem Satildeo-lhe explicadas as relaccedilotildees de
significaccedilatildeo isto eacute de como umas coisas representam outras Contudo assinala o
filoacutesofo essa explicaccedilatildeo envolve jaacute uma linguagem
309 FOUCAULT Michel A Ordem do Discurso ndash Aula Inaugural no Collegravege de France pronunciada em 2 de Dezembro de 1970 Laura Fraga de Almeida (trad) Nuno Nabais (trad rev) Reloacutegio DrsquoAacutegua Editores Lisboa 1997 p 9 ldquo[hellip] je suppose que dans toute socieacuteteacute la production du discours est agrave la fois controcircleacutee seacutelectionneacutee organiseacutee et redistribueacutee par un certain nombre de proceacutedures qui ont pour rocircle den conjurer les pouvoirs et les dangers den maicirctriser leacuteveacutenement aleacuteatoire den esquiver la lourde la redoutable mateacuterialiteacuterdquo (FOUCAULT Michel Lrsquoordre du discours ndash Leccedilon inaugurale au Collegravege de France prononceacutee le 2 de deacutecembre 1970 Eacuteditions Gallimard 1971 pp 10-11)
191
A explicaccedilatildeo de uma linguagem (dos signos de uma linguagem) leva-nos somente de uma linguagem a outra [] Eacute somente atraveacutes de explicaccedilotildees que uma crianccedila aprende uma linguagem por via de outra A linguagem das palavras atraveacutes da linguagem dos gestos310 (BT 40 p 130)
Na explicaccedilatildeo da linguagem das palavras a uma crianccedila ela aprende essa linguagem
atraveacutes de outra mesmo que esta uacuteltima nunca lhe tenha sido explicada previamente
Assim se passa sempre que por exemplo lhe apontam com a matildeo para um certo objeto
e dizem laquoIsto eacute uma lsquomesarsquoraquo A linguagem das palavras eacute aqui aprendida na relaccedilatildeo
direta com a linguagem dos gestos ostensivos Uma linguagem cuja aprendizagem natildeo
se afigura ter origem na expressatildeo verbal mas na comunicaccedilatildeo humana por expressotildees
corporais que conduz a crianccedila a conformar-lhe os seus gestos De notar que ningueacutem
explica deliberadamente agrave crianccedila esta linguagem e ela proacutepria natildeo eacute capaz de a
explicar mesmo depois de a ter aprendido a compreender (cf BT 2 p 8 e 40 p 130)
O que se pode concluir eacute que qualquer explicaccedilatildeo da linguagem feita de palavras pela
que eacute feita de gestos eacute sempre realizada no interior do simbolismo (cf BT 40 p 131)
Nesta perspetiva a compreensatildeo dos signos compostos de palavras soacute eacute possiacutevel a partir
de signos primaacuterios como sejam os gestos ostensivos e as imagens mentais (cf BT 13
p 40) Por exemplo a palavra laquovermelhoraquo um signo secundaacuterio eacute dada a compreender
ao apontar-se para uma amostra de cor vermelha um signo primaacuterio Logo compreende
o significado desta palavra quem for capaz de uma accedilatildeo com ela concordante apontar
para coisas de cor vermelha Esta accedilatildeo eacute um signo da sua compreensatildeo posto que se
saiba o seu significado A subsistecircncia do significado ostensivo de uma palavra uma vez
aprendido supotildee-se que seja sob a forma de imagem mental que acompanha a palavra
que desse modo passaraacute a ser o signo primaacuterio (cf BT 4 p 14 e 38 p 118) Eacute deste
modo que o significado das palavras e o sentido das proposiccedilotildees surgem como
experiecircncias da sua expressatildeo as quais consistiriam num suposto processo interno
designado por pensamento (cf BT 38 pp 117-119)
310 ldquoThe explanation of a language (of the signs of a language) merely leads us from one language to another [hellip] Its only through explications that a child learns one language by means of another The language of words through the language of gesturesrdquo (BT 40 p 130e) ldquoDie Erklaumlrung einer Sprache (der Zeichen einer Sprache) fuumlhrt uns nur von einer Sprache in eine andere [hellip] Auch das Kind lernt durch Erklaumlrungen nur eine Sprache vermittels einer anderen Die Wortsprache durch die Gebaumlrdenspracherdquo (BT 40 p 130)
192
Jaacute sabemos que para Wittgenstein o caraacutecter metafiacutesico desta ideia faz dela um
equiacutevoco pois nada separa o pensamento da linguagem Da mesma maneira que nada se
pode dizer sobre o que uma pessoa sente ou vecirc tambeacutem natildeo eacute possiacutevel justificar o
significado a partir de imagens mentais (cf BT 42 p 138 e 10 pp 33-34) Aliaacutes
como seria possiacutevel destrinccedilar imagens da realidade de imagens do que natildeo tem
existecircncia na realidade como as de um sonho (cf BT 50 pp 170-171) Sendo estas
imagens memoacuterias poder-se-aacute confiar na sua fiabilidade As palavras natildeo evocam
imagens mentais elas simplesmente traduzem-se em accedilotildees com elas concordantes (cf
BT 42 p 136) Mesmo a ideia de que satildeo os signos primaacuterios a conferir o significado
de signos secundaacuterios natildeo tem para Wittgenstein razatildeo de ser A aprendizagem
ostensiva das palavras natildeo serve para explicar as palavras que natildeo tecircm conexatildeo a
objetos reais e portanto natildeo podem servir de amostras do seu significado E neste
caso como se forma a memoacuteria-imagem
Na verdade o filoacutesofo assevera que ldquoO modo como aprendemos a linguagem
natildeo estaacute contido no seu uso (Tal como a causa natildeo estaacute contida no seu efeito)rdquo311 (BT
41 p 132) Usamos a linguagem independentemente do modo como a aprendemos e eacute
por isso que quando a usamos natildeo nos lembramos como a aprendemos (cf BT 37 p
115) Embora se possa sempre substituir um signo ostensivo de um objeto por um
nome as explicaccedilotildees ostensivas natildeo ajudam a compreender os usos que dele fazemos na
linguagem Natildeo eacute por exemplo possiacutevel recorrer a estas explicaccedilotildees para justificar o
uso de nomes quando os objetos que designam natildeo estatildeo presentes na nossa
experiecircncia imediata (cf BT 41 p 134) Mas sobretudo a essas explicaccedilotildees eacute
completamente estranho o facto do significado de um nome natildeo ser o seu portador isto
eacute aquilo para que se aponta com a matildeo ou que tem uma placa aposta com o nome (cf
BT 8 p 27) Wittgenstein faz aqui notar a diferenccedila jaacute antes sublinhada por Frege312
entre significado e referecircncia
311 ldquoThe way we learn language is not contained in its use (Just as a cause isnrsquot contained in its effect)rdquo (BT 41 p 132e) ldquoDie Weise des Lernens der Sprache ist in ihrem Gebrauch nicht enthalten (Wie die Ursache eben nicht in ihrer Wirkung)rdquo (BT 41 p 132)
312 Cf FREGE Gottlob ldquoSense and Referencerdquo The Philosophical Review Volume 57 Issue 31948 pp 209-230
193
Aqui tambeacutem temos a confusatildeo do significado e do portador de uma palavra O objeto para o qual aponto quando digo lsquoistorsquo eacute o portador do nome natildeo o seu significado [] O significado da palavra lsquoamarelorsquo natildeo eacute a existecircncia de um fragmento amarelo Isto eacute o que gostaria de dizer acerca da palavra lsquosignificadorsquo313 (BT 78 p 273)
Eacute possiacutevel dois ou mais nomes terem o mesmo significado (a laquoEstrela da manhatilderaquo e a
laquoEstrela da tarderaquo tem o mesmo significado laquoVeacutenusraquo) e poreacutem natildeo terem o mesmo
portador (pois natildeo eacute necessaacuterio que a laquoEstrela da manhatilderaquo e a laquoEstrela da tarderaquo se
refiram ao planeta Veacutenus) ou tendo o mesmo portador dois ou mais nomes podem natildeo
ter o mesmo significado A explicaccedilatildeo da referecircncia de um nome eacute a explicaccedilatildeo da sua
conexatildeo a uma certa coisa atraveacutes da qual se ensina o seu significado Poreacutem nem a
referecircncia de um nome eacute dele refeacutem pois a mesma referecircncia pode ter diferentes nomes
nem a explicaccedilatildeo do nome pela referecircncia eacute a uacuteltima determinaccedilatildeo no seu uso (cf BT 8
pp 27-28) Daiacute que ldquoUma explicaccedilatildeo eacute sempre apenas uma alusatildeordquo314 (BT 9 p 30) O
que ela unicamente faz eacute mostrar um certo uso de um signo para desse modo inculcar o
seu significado Mediante essa explicaccedilatildeo sugere-se apenas o seu entendimento Pois
afinal a explicaccedilatildeo satildeo usos que fazemos de um signo para suscitar a sua compreensatildeo
O que se pretende eacute ensinar a traduccedilatildeo de um signo noutro signo Mas essa
compreensatildeo por seu turno soacute eacute possiacutevel uma vez que jaacute se entenda o proacuteprio uso de
signos ldquo[] uma explicaccedilatildeo toma lugar apenas dentro da linguagem cuja natureza eacute jaacute
compreendidardquo315 (BT 9 p 31) A compreensatildeo ocorre como parte da linguagem cujo
uso eacute familiar E a linguagem de que somos iacutentimos eacute a linguagem das palavras sendo
que apenas designamos outras coisas como linguagens por analogia agravequela linguagem
(cf BT 45 p 155)
313 ldquoHere we also have the confusion of the meaning and the bearer of a word For the object to which I point when I say lsquothatrsquo is the bearer of the name not its meaning [hellip] The meaning of the word lsquoyellowrsquo is not the existence of a yellow patch That is what I would like to say about the word lsquomeaningrsquordquo (BT 78 p 273e) ldquoAuch haben wir hier die Verwechslung zwischen der Bedeutung und dem Traumlger eines Wortes Denn der Gegenstand auf den ich bei dem Worte den zeige ist der Traumlger des Namens nicht seine Bedeutung [hellip] Die Bedeutung des Wortes gelb ist nicht die Existenz eines gelben Flecks Das ist es was ich uumlber das Wort Bedeutung sagen moumlchterdquo (BT 78 p 273)
314 ldquoAn explanation is always just an allusionrdquo (BT 9 p 30e) ldquoDe Erklaumlrung immer nur eine Andeutungrdquo (BT 9 p 30)
315 ldquo[] an explanation takes place only within a language whose nature is already understoodrdquo (BT 9 p 31e cf BT 16e p 58) ldquo[hellip] die Erklaumlrung nur innerhalb der schon ihrem Wesen nach verstandenen Sprache geschiehtrdquo (BT 9 p 31)
194
Na verdade as palavras as partes de proposiccedilotildees e as proacuteprias proposiccedilotildees soacute
tecircm sentido no contexto de proposiccedilotildees pois soacute o que eacute proposiccedilatildeo eacute compreensiacutevel (cf
BT 1 p 2) Apenas do seu sentido eacute possiacutevel dar uma explicaccedilatildeo Daiacute que Wittgenstein
diga ldquoSaber o sentido de uma proposiccedilatildeo soacute pode significar ser capaz de responder agrave
pergunta lsquoQual eacute o seu sentidorsquordquo316 (BT 3 p 9) E a resposta a ser dada recorre ao
sentido de outras proposiccedilotildees capazes de aludirem ao sentido desconhecido dessa
proposiccedilatildeo Eacute nesta oacutetica que a explicaccedilatildeo do significado de uma palavra pode clarificar
a sua compreensatildeo suprimindo eventuais equiacutevocos (cf BT 9 pp 30-31) De facto as
explicaccedilotildees da linguagem satildeo parte do nosso modo de pensamento Mas elas natildeo estatildeo
continuamente a sustentar o sentido do que dizemos como o dizemos elas sobretudo
possibilitam a compreensatildeo do que dizemos quando natildeo eacute claro o seu sentido
(E temos que permanecer firmes em sustentar que uma explicaccedilatildeo natildeo nos interessa como uma causa contiacutenua do nosso uso de signos mas somente enquanto a podemos usar no nosso caacutelculo)317 (BT 41 p 134)
A que devemos entatildeo os significados e sentidos da linguagem uma vez que eles natildeo
satildeo imagens mentais experiecircncias nem explicaccedilotildees ainda que ostensivas Seratildeo o seu
efeito Seraacute que de acordo com uma teoria causal do significado este eacute o efeito de um
signo Opondo-se a esta possibilidade o filoacutesofo argumenta
Eu acredito que podemos responder agrave teoria causal do significado dizendo simplesmente que ndash se algueacutem eacute empurrado e cai noacutes natildeo chamamos a queda o significado de empurrar318 (BT 10 p 35)
316 ldquoTo know what a proposition says can only mean being able to answer the question What is its senserdquo (BT 3 p 9e) ldquoWissen was der Satz besagt kann nur heiszligen die Frage beantworten koumlnnen was sagt errdquo (BT 3 p 9)
317 ldquo(And we have to remain firm in maintaining that an explanation doesnt interest us as a continuous cause of our use of signs but only is so far as we can use it in our calculus)rdquo (BT 41 p 134e) ldquo(Und wir muumlssen nur daran festhalten daszlig die Erklaumlrung als fortwirkende Ursache unseres Gebrauchs von Zeichen uns nicht interessiert sondern nur sofern wir von ihr in unserm Kalkuumll Gebrauch machen koumlnnen)rdquo (BT 41 p 134)
318 ldquoI believe that we can respond to the causal theory of meaning simply by saying that ndash if someone is pushed and falls down we do not call the falling down the meaning of the pushrdquo (BT 10 p 35e) ldquoIch glaube auf die kausale Theorie der Bedeutung kann man einfach antworten daszlig wir wenn Einer einen Stoszlig erhaumllt und umfaumlllt das Umfallen nicht die Bedeutung des Stoszliges nennenrdquo (BT 10 p 35)
195
Para ele os significados satildeo meras estipulaccedilotildees parte de um sistema que por si mesmo
estabelece todos os sentidos possiacuteveis (cf BT 10 p 35 e 45 p 155) Um signo soacute
significa segundo as relaccedilotildees internas de um sistema de linguagem Relaccedilotildees que
configuram um sistema de proposiccedilotildees ligado a um sistema de significados (cf BT 46
p 157) Os usos que fazemos das palavras deste sistema determinam os sentidos da
linguagem Mas o que se diz com sentido eacute sempre uma possibilidade de dizer decidida
entre todas as possibilidades que estatildeo nele disponiacuteveis (cf BT 25 p 76)319 Eacute assim
que fazemos na linguagem uma descriccedilatildeo de um estado de coisas a escolher palavras
descartando outras como se escolhecircssemos utensiacutelios de uma caixa de ferramentas (cf
BT 6 p 18) cuja articulaccedilatildeo melhor retrata a realidade Eacute tambeacutem assim que
compreendemos a linguagem a compreender esta proposiccedilatildeo por oposiccedilatildeo a todas as
outras ldquoE eacute este contraste que o signo expressardquo320 (BT 134 p 478) A consequecircncia eacute
evidente ldquoA compreensatildeo de uma frase significa a compreensatildeo de uma linguagemrdquo321
(BT 25 p 76) Mas esta uacuteltima eacute a compreensatildeo das possibilidades da sua aplicaccedilatildeo Eacute
ela que nos faz perceber quando dizemos alguma coisa privada de sentido Assim se
passa quando usamos a linguagem de uma maneira que natildeo a compreendemos porque
natildeo percebemos qual eacute a sua intenccedilatildeo ldquoEu uso a palavra com um propoacutesito e portanto
natildeo sem um sentidordquo322 (BT 19 p 63) O que confere sentido agrave linguagem eacute a sua
intencionalidade e consequentemente qualquer combinaccedilatildeo natildeo intencional de
palavras carece de sentido E assim acontece quando as palavras satildeo usadas fora do
jogo-de-linguagem Pois somente atraveacutes deste jogo os seus usos podem revelar a sua
intenccedilatildeo o que por meio deles imaginamos queremos e agimos (cf BT 19 p 63) As
palavras satildeo usadas num caacutelculo que determina esses usos como movimentos neste jogo
(cf BT 20 p 65) Ficamos a compreender os usos da linguagem ao sabermos as
intenccedilotildees desse caacutelculo aplicado nos jogos-de-linguagem (cf BT 1 pp 3-4) Por fim
haacute igualmente proposiccedilotildees que satildeo absurdas porque o uso que fazem das palavras natildeo
319 Repare-se que as possibilidades alternativas de sentido dadas na linguagem satildeo indiferentes para os fatos a descrever mas natildeo o satildeo para quem a eles se refere pois a sua forma de os ver depende da decisatildeo de escolha entre essas alternativas (cf HACKER P M S ldquoMetaphysics From Ineffability to Normativityrdquo p 225)
320 ldquoAnd it tis this contrast that signs expressrdquo (BT 134 p 478e) ldquoUnd diesen Gegensatz druumlcken eben Zeichen ausrdquo (BT 134 p 478)
321 ldquoTo understand a sentence means to understand a languagerdquo (BT 25 p 76e) ldquoEine Satz verstehen heiszligt eine Sprache verstehenrdquo (BT 25 p 76)
322 ldquoI use the word for a purpose and therefore not without a senserdquo (BT 19 p 63e) ldquoIch brauche das Wort zu einem Zwek amp darum nicht unsinnigrdquo (BT 19 p 63)
196
tem sentido nem deixa de o ter ele eacute impensaacutevel (cf BT 27 p 80) O exemplo dado
pelo filoacutesofo eacute a afirmaccedilatildeo de que a substacircncia eacute indestrutiacutevel Natildeo sabendo do que eacute
que estamos a falar quando nos referimos agrave substacircncia a natildeo ser a uma entidade
metafiacutesica natildeo eacute possiacutevel na verdade compreender senatildeo com base numa falsa
analogia o que eacute a sua destruiccedilatildeo Ora para evitar a confusatildeo destas proposiccedilotildees com
as do sistema da linguagem entende ele que eacute imperiosa a sua exclusatildeo
As Regras Gramaticais
Um dos argumentos nucleares da filosofia da linguagem de Wittgenstein eacute os
usos da linguagem seguirem regras gramaticais Este argumento suscita interrogaccedilotildees
sobre o que eacute para o filoacutesofo primeiro uma regra gramatical e segundo segui-la
Trataremos de imediato a primeira destas interrogaccedilotildees deixando a segunda para a
proacutexima secccedilatildeo deste capiacutetulo Se como vimos satildeo os usos da linguagem que conferem
significado aos signos linguiacutesticos e estes usos seguem regras gramaticais entatildeo
ldquoAfinal o significado de um signo estaacute nas regras que prescrevem o seu usordquo323 (BT
30 p 90) Quando se pergunta sobre o que eacute uma regra gramatical estaacute-se a questionar
sobre como eacute que ela determina o significado de uma palavra A possibilidade de
resposta encontra-se no fenoacutemeno da linguagem como um facto situado no espaccedilo e no
tempo jaacute que a sua consideraccedilatildeo natildeo factual eacute tida pelo filoacutesofo como absurda (cf BT
16 pp 57-58) Isto quer dizer que eacute nos proacuteprios usos da linguagem que se podem
encontrar as regras mas tambeacutem que ldquoEu natildeo posso produzir uma regra de qualquer
outra maneira senatildeo atraveacutes da sua expressatildeo []rdquo324 (BT 42 p 140) As regras
gramaticais natildeo tecircm outra origem aleacutem dos usos que se datildeo agraves palavras325 Daiacute que os
323 ldquoAfter all the meaning of a sign lies in the rules that prescribe its userdquo (BT 30 p 90e) ldquoDie Bedeutung eines Zeichens liegt ja in den Regeln die seinen Gebrauch vorschreibenrdquo (BT 30 p 90)
324 ldquoI cannot produce a rule in any other way than through its expression [hellip]rdquo (BT 42 p 140e) ldquoEine Regel kann ich nicht anders geben als durch ihren Ausdruck [hellip]rdquo (BT 42 p 140)
325 Eacute errado supor que a regra gramatical constitua uma verdade necessaacuteria metafiacutesica ou loacutegica mas tambeacutem que ela seja uma verdade contingente Sobre este assunto P M S Hacker escreve o seguinte ldquoObviamente as regras natildeo satildeo verdadeiras ou falsas Mas natildeo haacute nada de incomum em dizer que a afirmaccedilatildeo de uma regra eacute verdadeira (por exemplo que eacute verdade que o rei no xadrez se move um quadrado de cada vez) Dizer que uma proposiccedilatildeo gramatical eacute verdadeira eacute dizer simplesmente que uma regra de gramaacutetica ocorre dessa maneirardquo ldquoOf course rules are not true or false But there is nothing unusual about saying of the statement of a rule that it is true (eg that it is true that the chess king moves one square at a time) To say of a grammatical proposition that is true is simply to say that a rule of grammar runs thusrdquo (HACKER P M S ldquoMetaphysics From Ineffability to Normativityrdquo p 222) Eacute Hacker que em defesa da natildeo descontinuidade da filosofia do BT relativamente agraves PI provando que as
197
usos da linguagem se conformam a regras na medida em que esses usos as seguem Dito
de outro modo satildeo os proacuteprios usos da linguagem que evidenciam as regras que
seguem
Mas se eacute no uso da linguagem como fenoacutemeno espaacutecio-temporal que se
aplicam as regras jaacute a proacutepria regra nada tem em si do fenoacutemeno que eacute dela uma sua
aplicaccedilatildeo especiacutefica
O que eu chamo uma lsquoregrarsquo natildeo deve conter nada acerca do tempo ou espaccedilo particular (ou mesmo geral) para a sua aplicaccedilatildeo e natildeo deve referir-se a pessoas particulares (ou pessoas em geral) eacute para servir tatildeo-soacute como instrumento de representaccedilatildeo326 (BT 57 p 193)
A regra natildeo eacute por conseguinte uma proposiccedilatildeo empiacuterica sobre o uso da linguagem
embora toda proposiccedilatildeo empiacuterica seja uma aplicaccedilatildeo de uma regra (cf BT 57 p 189)
Eacute justamente por ser dela uma aplicaccedilatildeo que os usos da linguagem deixam perceber a
regra que seguem E o que Wittgenstein percebe eacute que a regra tem a natureza de um
instrumento que se utiliza para representar a realidade da mesma maneira que
utilizamos um instrumento de medida com uma dada unidade de medida para
determinar a sua grandeza (cf BT 57 p 189) Esta semelhanccedila loacutegica da regra
gramatical com o instrumento de medida permite encarar a proposiccedilatildeo como a
expressatildeo da mediccedilatildeo por aplicaccedilatildeo do instrumento de medida Ele compara tambeacutem a
regra a um caminho num jardim ou aos quadrados de um tabuleiro de xadrez (cf BT
57 pp 191-192) Ou ainda agrave planta de uma casa que eacute usada para a descrever por
palavras numa proposiccedilatildeo empiacuterica (cf BT 57 p 193) Poreacutem a sua analogia
arquetiacutepica satildeo as regras de um jogo agrave qual voltaremos adiante O que caracteriza todos
estes exemplos eacute a sua natureza convencionada baseada no assentimento social que
principais ideias sobre a gramaacutetica natildeo diferem entre estas duas obras diz tambeacutem ser inequiacutevoco que em conformidade com o pensamento de Wittgenstein das PI as regras gramaticais ou as proposiccedilotildees gramaticais que as expressam natildeo satildeo teses hipoacuteteses opiniotildees e dogmatismos (cf HACKER P M S Wittgenstein on Grammar Theses and Dogmatism Philosophical Investigations Volume 35 Issue 1 2012 pp 13-17)
326 ldquoWhat I am calling a lsquorulersquo must not contain anything about a particular (or even general) time or place for its application and must not refer to particular people (or people in general) it is to serve only as instrument of representationrdquo (BT 57 p 193e) ldquoWas ich lsquoRegelrsquo nenne soll nichts von einer bestimmten (oder auch unbestimmten) Zeit oder einem Ort der Anwendung enthalten sich auf keine bestimmten (oder unbestimmten) Personen beziehen sondern nur Instrument der Darstellung seinrdquo (BT 57 p 193)
198
firma regras Eacute como convenccedilotildees sociais que as regras servem para apoiar a
compreensatildeo das proposiccedilotildees da linguagem A sua adoccedilatildeo adveacutem do facto de que o que
eacute descrito pelas formas proposicionais se ajusta convenientemente agrave multiplicidade que
caracteriza a nossa vida (cf BT 57 p 193)
A tentativa de definiccedilatildeo do que eacute uma regra gramatical deve ter em consideraccedilatildeo
que o conceito de regra como todos os conceitos da linguagem incluindo os de
linguagem e proposiccedilatildeo tem contornos difusos Natildeo eacute possiacutevel traccedilar limites exatos ao
que se pode compreender num conceito O filoacutesofo socorre-se do conceito de monte de
areia para ilustrar o problema da indeterminaccedilatildeo da definiccedilatildeo conceptual (cf BT 34 p
108) Faraacute sentido dizer-se que soacute se estaacute perante um monte de areia quando ele verifica
um intervalo determinado de volume miacutenimo e maacuteximo Seraacute este o conceito que se usa
normalmente A resposta eacute obviamente negativa pois natildeo existe como para todos os
conceitos forma de o delimitar atendendo ao uso que dele fazemos O que percebemos
eacute que alguns casos se compreendem e outros natildeo na extensatildeo de um conceito Para cada
novo caso cabe-nos decidir de algum modo que natildeo de acordo com um criteacuterio ou
procedimento geral se o devemos considerar ao abrigo de um conceito (cf BT 15 p
55) Embora se possa admitir que um determinado criteacuterio ou procedimento sirva para
distinguir certos casos particulares como estando ou natildeo compreendidos num dado
conceito a aplicaccedilatildeo de um criteacuterio ou procedimento geral poderia levar a considerar
como parte do conceito casos que dele seriam excluiacutedos no seu uso quotidiano (cf BT
15 p 55) Evita-se assim chamar regra ao que usualmente natildeo eacute desse modo
considerado Uma regra eacute simplesmente aquilo que decidimos considerar como regra
isto eacute aquilo para o qual usamos a palavra laquoregraraquo Na realidade usamos esta palavra
sem termos a necessidade de a explicar de explicitar as regras do seu uso e por outro
lado os usos que fazemos das palavras natildeo necessitam da definiccedilatildeo do conceito de
regra para as usarmos como as usamos (cf BT 15 p 54) Neste sentido a sua definiccedilatildeo
natildeo melhora a compreensatildeo que dela temos
De facto uma definiccedilatildeo que delimitasse de vaacuterias maneiras o conceito clarificaria o significado da palavra em todas as proposiccedilotildees para que
199
pudeacutessemos compreender melhor todas as proposiccedilotildees em que ela aparecia Obviamente que natildeo327 (BT 15 p 56)
A vagueza conceptual natildeo diminui a funccedilatildeo expressiva das palavras Uma definiccedilatildeo
exata de um conceito natildeo eacute a expressatildeo da sua compreensatildeo nem determina o seu uso
(cf BT 58 p 197) Pois em rigor um conceito na forma como o usamos caracteriza-
se justamente por ter limites imprecisos O que implica natildeo ser possiacutevel estabelecer
casos limite de um conceito Quer entatildeo isto dizer que um conceito eacute indefiniacutevel Que
uma definiccedilatildeo de um conceito eacute sempre arbitraacuteria E nesse sentido que natildeo nos eacute
possiacutevel precisar o que entendemos por regra gramatical Face a estas questotildees
Wittgenstein defende que ldquoO que importa eacute definir uma palavra do modo como a
queremos significarrdquo328 (BT 58 p 201) Jaacute antes tiacutenhamos visto que o filoacutesofo entende
que o significado de uma palavra eacute dado por outras que a explicam Assim para ele
uma regra gramatical eacute o que determina o significado de um signo linguiacutestico (cf BT
45 p 151) E quanto agrave imprecisatildeo da definiccedilatildeo conceptual ela faz parte da linguagem
e natildeo eacute por isso que quando queremos saber o significado de um conceito a definiccedilatildeo
natildeo tem o que precisamos para a sua compreensatildeo (cf BT 58 p 200)329
Poreacutem uma coisa eacute certa quando se pretende estabelecer um conceito geral a
proacutepria generalizaccedilatildeo eacute indeterminada Mas a sua indeterminaccedilatildeo natildeo eacute loacutegica uma vez
que a palavra laquogeneralizarraquo eacute predeterminada pelas suas proacuteprias regras gramaticais
que instituem o seu espaccedilo loacutegico (cf BT 15 p 50) A loacutegica de um conceito natildeo
participa da sua indeterminaccedilatildeo conceptual Natildeo podemos livremente alterar o espaccedilo
327 ldquoIndeed would a definition that delimited the concept in various ways clarify the meaning of the word in all propositions so that we would better understand all the propositions in which it appeared Obviously notrdquo (BT 15 p 56e) ldquoJa wuumlrde uns eine Definition die den Begriff nach verschiedenen Seiten begrenzte die Bedeutung des Wortes in allen Saumltzen klarer machen sodaszlig wir auch alle Saumltze in denen es vorkommt besser verstehen wuumlrden Offenbar neinrdquo (BT 15 p 56)
328 ldquoWhat matters is to define a word the way we mean itrdquo (BT 58 p 201e) ldquoEs kommt darauf an es so zu definieren wie wir das Wort meinenrdquo (BT 58 p 201)
329 A vagueza concetual e a consequente falta de exatidatildeo das regras gramaticais ponderada no BT eacute motivo para Alois Pichler defender que estaacute presente nesta obra uma tensatildeo natildeo resolvida entre as abordagens agrave linguagem como caacutelculo e a antropoloacutegica A despeito de o caacutelculo ser no BT a forma de aplicar as regras gramaticais e ele operar com regras exatas a praacutetica humana faz com que as palavras sejam usadas com tal imprecisatildeo que potildee em causa essa aplicaccedilatildeo A abordagem antropoloacutegica que vem a afirmar-se nos escritos filosoacuteficos de Wittgenstein posteriores ao BT daacute prioridade agraves praacuteticas humanas que efetivamente revelam o uso de conceitos vagos e significados e uma compreensatildeo amorfos (Cf PICHLER Alois ldquoWittgenstein on Understanding Language Calculus and Practicerdquo in David G Stern (ed) Wittgenstein in the 1930s Between the Tractatus and the Investigations Cambridge University Press Cambridge 2018 pp 45-60)
200
loacutegico de um conceito como se por exemplo as figuras geomeacutetricas natildeo tivessem jaacute
determinadas apesar da indeterminaccedilatildeo das formas das coisas reais Eacute deste modo que
uma regra gramatical consiste do ponto de vista loacutegico ou gramatical no conjunto de
regras que determinam o seu uso linguiacutestico De facto em loacutegica sendo ela normativa
natildeo existem conceitos vagos mas antes com significados rigorosamente delimitados
(nisso coincidindo com Frege ndash cf BT 15 p 55) Diz-nos no entanto Wittgenstein
Mas isso natildeo significa que a loacutegica represente a linguagem incorretamente ou que ela represente uma linguagem ideal A sua tarefa eacute retratar uma realidade colorida e turva como um desenho a caneta e tinta330 (BT 15 p 56)
A loacutegica se tomada como uma linguagem ideal natildeo pretende melhorar a linguagem
corrente nem sequer constituir uma referecircncia para a qual esta deva tender Entende o
filoacutesofo que a loacutegica soacute tem interesse na medida em que eacute ldquo[] um instrumento para a
descriccedilatildeo aproximada da realidaderdquo331 (BT 58 p 198) Eacute um instrumento que de
forma semelhante a um instrumento de medida estabelece um caacutelculo exato isto eacute
ldquo[] um processo que segue regras fixasrdquo332 (BT 58 p 203) de descriccedilatildeo da realidade
suscetiacutevel ele mesmo de uma descriccedilatildeo exata (cf BT 58 p 198) Assim com a anaacutelise
loacutegica ou gramatical investiga-se os usos que no dia-a-dia fazemos da linguagem as
regras seguidas pelas proposiccedilotildees que enunciamos habitualmente Deste modo
Wittgenstein criacutetica a loacutegica que se ocupa de si mesma como uma linguagem ideal
colocando-se para aleacutem das imperfeiccedilotildees da linguagem corrente por natildeo lhe interessar
os usos comuns que dela fazemos (cf BT 58 pp 204-205)
O facto dos conceitos se caracterizarem por uma certa vagueza que natildeo permite
confinar os limites do seu uso tem como consequecircncia a investigaccedilatildeo loacutegica ou
gramatical natildeo conseguir estabelecer regras que asseguram uma descriccedilatildeo precisa da
330 ldquoBut this doesnt mean that logic represents language incorrectly or that it represents an ideal language Its task is to portray a colourful blurred reality as a pen-and-ink drawingrdquo (BT 15 p 56e) ldquoDas heiszligt aber nicht daszlig nun die Logik die Sprache falsch darstellt oder eine ideale Sprache Sie portraitiert die farbige verschwommene Wirklichkeit als Federzeichnung das ist ihre Aufgaberdquo (BT 15 p 56)
331 ldquo[hellip] an instrument for the approximate description of realityrdquo (BT 58 p 198e) ldquo[] ein Instrument der annaumlhernden Beschreibung der Wirklichkeit []rdquo (BT 58 p 198)
332 ldquo[hellip] a process that follows fixed rulesrdquo (BT 58 203e) ldquo[hellip] als Vorgang nach festgesetzten Regelnrdquo (BT 58 203)
201
realidade Eacute assim que por exemplo as formas geomeacutetricas que encontramos na
realidade satildeo descritas apenas aproximadamente pelas figuras geomeacutetricas do plano (cf
BT 58 p 202) Tambeacutem descrevemos a partir de um esquema de cores bem
delimitadas as diferentes cores que encontramos numa tela de pintura natildeo obstante natildeo
estarem bem circunscritas as transiccedilotildees entre elas (cf BT 58 p 202) Do mesmo modo
quando afirmamos que uma certa grandeza tem por exemplo um valor exato de peso
ou de extensatildeo aferida no devido instrumento de medida esse valor na realidade eacute
mais ou menos (ungefaumlhr) a medida dessa grandeza pois efetivamente a aplicaccedilatildeo do
instrumento de medida natildeo permite ter a certeza de que uma certa medida eacute um soacute valor
senatildeo que eacute um intervalo indefinido de valores (cf BT 34 pp 105-107)
Por outro lado a investigaccedilatildeo gramatical prosseguida por Wittgenstein natildeo visa
como eventualmente seria de esperar fazer um levantamento de todas as regras a que
obedecem os nossos enunciados linguiacutesticos
Eu natildeo estou a levar a cabo o estabelecimento de uma lista de regras que regulam todos os nossos atos de fala natildeo mais do que um jurista tenta fazer leis para todas as accedilotildees humanas333 (BT 58 p 197)
O filoacutesofo estabelece a este respeito uma comparaccedilatildeo entre as regras de tracircnsito e as
regras gramaticais (cf BT 58 p 201) Da mesma maneira que natildeo haacute um conjunto de
regras que ordenem todos os movimentos de veiacuteculos e pedestres mas apenas uma
regulaccedilatildeo que proiacutebe e permite certos movimentos de traacutefico tambeacutem natildeo existe um
conjunto ideal de regras gramaticais Daiacute que a investigaccedilatildeo gramatical natildeo tenha a
pretensatildeo de estabelecer as regras que ordenam a totalidade dos usos da linguagem
Mesmo porque pode natildeo ser possiacutevel para certas proposiccedilotildees saber as regras que
observam as palavras que a compotildeem334 O levantamento de regras de acordo com as
333 ldquoI am not undertaking the establishment of a list of rules that regulates all our speech acts any more than a jurist tries to make laws for all human actionsrdquo (BT 58 p 197e) ldquoIch mache mich nicht anheischig ein Regelverzeichnis aufzustellen das alle unsere Sprachhandlungen regelt sowenig ein Jurist es versucht fuumlr saumlmtliche Handlungen der Menschen Gesetze zu gebenrdquo (BT 58 p 197)
334 Eacute por que a linguagem funciona normativamente que eacute possiacutevel perceber regras de uso das palavras pelo que a descriccedilatildeo desses usos e a clarificaccedilatildeo dessas regras natildeo satildeo necessaacuterios ao normal funcionamento da linguagem A gramaacutetica natildeo eacute necessaacuteria agrave praacutetica da linguagem esta natildeo deixa de seguir o seu livre curso porque em certos casos natildeo eacute possiacutevel descrevecirc-la e fixar as suas regras Por outro lado dada a complexidade da linguagem soacute podemos esperar que a Gramaacutetica por abstraccedilatildeo e natildeo menos por formulaccedilatildeo geral se aproxime sucessivamente das normas linguiacutesticas (Cf SCHROEDER
202
quais se age pode segundo Wittgenstein ser efetivado de duas maneiras (cf BT 58 p
199)335 Numa as regras surgem como hipoacuteteses da mesma maneira que na
investigaccedilatildeo cientiacutefica a partir da observaccedilatildeo e do exame da accedilatildeo Na outra inquire-se
o agente sobre a regra segundo a qual ele age Se nem o exame da accedilatildeo nem a
explicaccedilatildeo do seu agente nos permitir patentear a regra que a guia natildeo eacute possiacutevel
determinaacute-la A impossibilidade de fixaccedilatildeo de regras pode inclusivamente advir do
facto de um conceito natildeo ter um significado fixo jaacute que o descrevem ou definem
diversamente (ldquoflutuando entre vaacuterios significadosrdquo) alterando o sentido das
proposiccedilotildees que o usam o seu significado pode mesmo sofrer alteraccedilotildees ao longo do
tempo variando assim as regras de uso do conceito (cf BT 58 p 197-199) Por esta
razatildeo o filoacutesofo declara
Podemos dizer vamos investigar a linguagem em relaccedilatildeo agraves suas regras Se aqui e ali natildeo houver regras entatildeo esse eacute o resultado da nossa investigaccedilatildeo336 (BT 58 p 199)
Mas que isto natildeo sirva para concluir que fica posto em causa o seu projeto de
investigaccedilatildeo gramatical Pois com efeito nem toda a proposiccedilatildeo resulta
necessariamente de uma possiacutevel regra gramatical porque nesse caso previno-nos
Wittgenstein essas regras seriam dogmas
Devo dizer que para este ou aquele caso nenhuma regra foi estabelecida Certamente se eacute assim Mas devo dizer algo como Natildeo existe uma lista de regras para a nossa linguagem e todo o empreendimento de criar uma eacute absurdo ndash Mas estaacute claro que isso natildeo faz sentido pois afinal estabelecemos regras com sucesso e precisamos apenas de evitar dogmas (Qual eacute a natureza
Severin ldquoGrammar and Grammatical Statementsrdquo in Hans-Johann Glock and John Hyman A Companion to Wittgenstein Wiley Blackwell Oxford 2017 pp 258-260)
335 Gostariacuteamos aqui de sublinhar que em qualquer uma das duas maneiras estamos perante a explicitaccedilatildeo de uma crenccedila justificada sobre quais satildeo as regras de constituiccedilatildeo do significado das palavras
336 ldquoWe can say Lets investigate language with regard to its rules If here and there it doesnt have any rules then that is the result of our investigationrdquo (BT 58 p 199e) ldquoWir koumlnnen sagen Untersuchen wir die Sprache auf ihre Regeln hin Hat sie dort und da keine Regeln so ist das das Resultat unsrer Untersuchungrdquo (BT 58 p 199)
203
de um dogma Natildeo eacute a afirmaccedilatildeo de que existe uma proposiccedilatildeo naturalmente necessaacuteria para todas as regras possiacuteveis)337 (BT 58 p 196)
Noutro lugar sublinha ainda que as proposiccedilotildees gramaticais natildeo satildeo leis naturais para o
uso de palavras que como hipoacuteteses como proposiccedilotildees empiacutericas satildeo testadas na
realidade (cf BT 37 p 115)338 Tudo o que a investigaccedilatildeo gramatical pode fazer eacute
estabelecer listas de regras para o uso de conceitos a partir dos seus jogos de linguagem
das transaccedilotildees linguiacutesticas bem-sucedidas mediante as quais os interlocutores se
entendem entre si (cf BT 58 p 200)
O Seguir Regras Gramaticais
Com a aprendizagem da linguagem passamos a seguir as regras de seu uso a
usar as palavras nas proposiccedilotildees de acordo com essas regras sem que o modo da sua
aprendizagem esteja contido nesse uso (cf BT 41 p 132) Mas nesse caso como eacute que
usamos as palavras segundo essas regras Adquirimos com essa aprendizagem a
capacidade de nos exprimirmos atraveacutes da linguagem de tal modo que atraveacutes dela
337 ldquoShould I say that for this or that case no rule has been established Certainly if thatrsquos the way it is But should I say such thing as There is no list of rules for our language and the whole venture of setting one up is nonsense ndash But itacutes clear that this isnrsquot nonsensical for after all we do successfully set up rules and we just have to refrain from setting up dogmas (Whatrsquos the nature of a dogma Isnrsquot it the assertion that therersquos a naturally necessary proposition for every possible rule)rdquo (BT 58 p 196e) ldquoSoll ich sagen daszlig fuumlr diesen und diesen Fall keine Regel aufgestellt ist Gewiszlig wenn es sich so verhaumllt Soll ich aber also sagen es gibt kein Regelverzeichnis unserer Sprache und das ganze Unternehmen eins aufzustellen ist Unsinn ndash Aber es ist ja klar daszlig es nicht unsinnig ist denn wir stellen ja mit Erfolg Regeln auf und wir muumlssen uns nur enthalten Dogmen aufzustellen (Was ist das Wesen eines Dogmas Ist es nicht die Behauptung eines naturnotwendigen Satzes uumlber alle moumlglichen Regeln)rdquo (BT 58 p 196)
338 Eacute pois notoacuterio que no pensamento de Wittgenstein do periacuteodo 1929-33 as regras gramaticais tal como Hacker defende natildeo satildeo nem dogmas nem teorias (cf HACKER P M S Wittgenstein on Grammar Theses and Dogmatism pp 15-16) A este propoacutesito Oskari Kuusela sustenta que Wittgenstein entende as regras como descriccedilotildees dos usos da linguagem que poreacutem natildeo determinam necessariamente esses usos evitando deste modo o dogmatismo Mas natildeo sendo as regras dogmas o que a filosofia possa afirmar sobre a gramaacutetica natildeo deixa de ter caraacutecter geral Ora segundo a sua interpretaccedilatildeo as regras satildeo modos de presentaccedilatildeo (imagens protoacutetipos modelos) do fenoacutemeno da linguagem que como objetos de comparaccedilatildeo tecircm o poder de clarificar a sua aplicaccedilatildeo geral sem que contudo constituam um ideal (preconceccedilatildeo) a que a linguagem deva necessariamente conformar-se As regras gramaticais natildeo satildeo assim carateriacutesticas do fenoacutemeno da linguagem senatildeo modos claros e exatos de o apresentar e como regras exatas que satildeo que nada decidem sobre a exatidatildeo ou inexatidatildeo da linguagem garantem o devido rigor agrave loacutegica Deste modo entende Kuusela eacute mais faacutecil compreender a comparaccedilatildeo com o intuito de clarificaccedilatildeo dos usos das palavras a um caacutelculo em que se procede agrave aplicaccedilatildeo de regras ou a um jogo de linguagem (Cf KUUSELA Oskari ldquoFrom Metaphysics and Philosophical Theses to Grammar Wittgensteinrsquos Turnrdquo pp 113-133)
204
transmitimos certos sentidos que outros igualmente familiarizados com ela tecircm a
capacidade de os compreender Eacute essa capacidade partilhada pelos membros de uma
comunidade linguiacutestica que explica o facto de nos exprimirmos de uma forma
compreensiacutevel Eacute ela que permite o uso com sentido das palavras isto eacute o uso das
palavras de acordo com regras Ao referirmo-nos poreacutem a esta capacidade apontamos
para uma qualidade humana de que natildeo se tem notiacutecia dela senatildeo quando a supomos
como a razatildeo da praacutetica da linguagem ser como eacute Uma qualidade oculta que natildeo
correspondendo a um estado consciente (cf BT 35 p 111 e 36 p 114) aparentemente
se manifesta nos usos que se fazem das palavras Como se a praacutetica da linguagem
tivesse que se dever a algo latente para a qual criamos uma palavra que a nomeia apesar
de absolutamente nada podermos saber sobre a sua qualidade Conclui por isso
Wittgenstein
Em filosofia estamos sempre em perigo de criar uma mitologia de simbolismo ou de psicologia Em vez de simplesmente dizer o que todos sabem e tecircm que admitir339 (BT 35 p 111)
E incorremos sempre nesse perigo quando por necessidade de explicaccedilatildeo criamos uma
falsa analogia considerando que tudo eacute efeito de uma causa seja esta conhecida ou
oculta (cf BT 36 p 114)
Natildeo obstante natildeo deixa de ser intrigante que possamos sem preparaccedilatildeo preacutevia
ou mediaccedilatildeo compor uma frase articulando determinadas palavras com sentido
Donde nos vecircm prontamente as palavras que usamos e as regras que comandam
misteriosamente a sua articulaccedilatildeo Eacute o proacuteprio Wittgenstein que questiona a sua
proveniecircncia
[] como podemos estar cientes de todas as regras quando usamos uma palavra com um certo significado considerando que as regras afinal constituem o significado340 (BT 39 p 121)
339 ldquoIn philosophy one is always in danger of creating a mythology of symbolism or of psychology Instead of simply saying what everybody knows and has to admitrdquo (BT 35 p 111e) ldquoMan ist in der Philosophie immer in der Gefahr eine Mythologie des Symbolismus zu geben oder der Psychologie Statt einfach zu sagen was jeder weiszlig und zugeben muszligrdquo (BT 35 p 111)
205
Ou ainda em termos retoacutericos
Se a gramaacutetica que lida com palavras eacute essencial ao seu significado terei de ter todas as regras gramaticais de uma palavra na minha cabeccedila para que ela tenha algum significado para mim341 (BT 37 p 115)
Logo depois desta uacuteltima interrogaccedilatildeo ele ensaia comparar a palavra a uma roda ou um
pistatildeo de um mecanismo que desconhece todos os movimentos que lhe satildeo permitidos e
o que governa esses movimentos Todavia faz notar que as proposiccedilotildees gramaticais natildeo
satildeo proposiccedilotildees empiacutericas que como hipoacuteteses descrevem leis mecacircnicas que se vecircm a
descobrir por repeticcedilatildeo de um padratildeo ao longo do tempo nem as regras gramaticais
podem falhar como pode acontecer com os controlos mecacircnicos Este eacute o motivo do seu
interesse filosoacutefico nesta mateacuteria natildeo se centrar na proposiccedilatildeo como parte de um
mecanismo (cf BT 48 p 165) Talvez o que se passa seja simplesmente possuirmos o
conhecimento das regras gramaticais que acompanham a expressatildeo da linguagem e que
garante a sua compreensatildeo imediata Quem sabe se natildeo eacute a aplicaccedilatildeo desse
conhecimento que chamamos de pensamento e se natildeo eacute ele que efetivamente
acompanha as nossas proposiccedilotildees Natildeo seraacute afinal o pensamento que instantaneamente
se exprime atraveacutes da linguagem cuja compreensatildeo imediata a ele igualmente se deve
O pensamento configurar-se-ia deste modo como o processo mental atraveacutes do qual
ocorrem os exerciacutecios da linguagem Eacute consentacircnea com esta perspetiva a ideia de que o
significado das palavras reside nas respetivas imagens mentais que na consciecircncia as
acompanham que satildeo elas que permitem antever todas as possibilidades do seu uso
que a sucessatildeo dessas imagens natildeo permite ter consciecircncia senatildeo da parte do
pensamento que em cada momento se efetiva esvanecendo-se apressadamente uma
parte para que outra se faccedila notar Mas tudo isto como jaacute se sabe o filoacutesofo resume a
uma falsa analogia (cf BT 38 p 118) Nela se compreende tambeacutem a ideia de que o
340 ldquo[] how we can be aware of all the rules when we use a word with a certain meaning considering that the rules after all constitute the meaningrdquo (BT 39 p 121e) ldquo[hellip] wie wir uns denn aller Regeln bewuszligt sind wenn wir ein Wort in einer bestimmten Bedeutung gebrauchen und doch die Regeln die Bedeutung ausmachenrdquo (BT 39 p 121)
341 ldquoIf grammar which deals with words is essential to their meaning do I have to have all the grammatical rules for a word in my head if it is to have any meaning for merdquo (BT 37 p 115e) ldquoWenn die Grammatik die von den Woumlrtern handelt fuumlr ihre Bedeutung wesentlich ist muszlig ich die grammatischen Regeln die von einem Wort handeln alle im Kopf haben wenn es fuumlr mich etwas bedeuten sollrdquo (BT 37 p 115)
206
significado de uma palavra estaacute ligado agrave sua imagem memorada como se ela estivesse
inscrita algures na mente como repositoacuterio frequentemente precaacuterio da nossa
experiecircncia passada A questatildeo eacute como mostrar uma imagem mental sobretudo de algo
que natildeo esteja presente Como podemos justificar que uma dada palavra estaacute ligada a
uma certa memoacuteria-imagem (cf BT 42 p 138) De qualquer forma natildeo parece haver
duacutevida que na leitura em voz alta ldquoNenhum ato de memoacuteria nada medeia entre o signo
escrito e o somrdquo342 (BT 42 p 139) quando nos pedem para imaginar um ciacuterculo
vermelho seguimos as palavras que enformam o pedido mesmo sem imagens mentais
(cf BT 42 p 138) Uma vez mais isto natildeo ocorre assim por que o sentido expresso na
linguagem irrompe suacutebita e irrefletidamente de um saber gramatical subentendido
Compreender ou significar algo natildeo eacute uma questatildeo de um ato de apreender a gramaacutetica instantaneamente e por assim dizer natildeo-discursivamente Como se algueacutem pudesse engoli-la inteira343 (BT 38 p 120)
Eacute verdade que aprendemos a linguagem mas esta aprendizagem natildeo se constitui num
conhecimento de que dispomos porventura de forma subliminar nos usos que dela
fazemos
Sobre o modo como seguimos regras como com isso pretendemos significar ou
compreender algo Wittgenstein exorta-nos a abandonar a ideia de que eacute o pensamento
como processo velado que investe a linguagem de sentido e a ater-nos estritamente aos
seus usos
Mas natildeo vamos falar sobre lsquosignificar algorsquo como um processo indefinido que natildeo conhecemos muito bem mas sobre o uso (atual) lsquopraacuteticorsquo da palavra sobre as accedilotildees que levamos a cabo com ela344 (BT 46 p 157)
342 ldquoNo act of memory nothing mediates between the written sign and the soundrdquo (BT 42 p 139e) ldquoKein Akt des Gedaumlchtnisses nichts vermittelt zwischen dem geschriebenen Zeichen und dem Lautrdquo (BT 42 p 139)
343 ldquoIn understanding or meaning something it isnt a matter of an act of grasping the grammar instantaneously and so to speak non-discursively As if one could swallow it down wholerdquo (BT 38 p 120e) ldquoEs handelt sich beim Verstehen meinen nicht um einen Akt des momentanen sozusagen nicht diskursiven Erfassens der Grammatik Als koumlnnte man sie gleichsam auf einmal herunterschluckenrdquo (BT 38 p 120)
207
Para o filoacutesofo apenas a accedilatildeo tem pertinecircncia filosoacutefica Por exemplo natildeo eacute verdade
que um macaco natildeo fala porque natildeo pensa mas simplesmente ele natildeo fala (cf BT 47
p 163) Do mesmo modo podemos noacutes dizer que eacute falso que os seres humanos falam
porque pensam pois apenas falam e quanto muito eacute isso que chamamos pensamento
Os atos de linguagem do mesmo modo que outros atos que caracterizam os animais em
geral desenrolam-se sem necessidade de serem acompanhados do pensamento de um
processo recocircndito de que esses atos satildeo manifestaccedilatildeo ldquoComandar perguntar narrar
conversar satildeo atividades que satildeo tatildeo naturais quanto andar beber brincarrdquo345 (BT 47
p 163) Eles satildeo simplesmente modos diferenciados de agir Neste sentido a praacutetica
corrente da linguagem natildeo depende da explicitaccedilatildeo ou formulaccedilatildeo das regras de uso que
segue (cf BT 45 pp 150-151) embora se possa analisar a linguagem como um
processo que segue regras natildeo eacute porque algueacutem tem presente essas regras que eacute capaz
de significar e compreender o significado (cf BT 38 p 120 e 39 p 122) na realidade
as regras satildeo geradas com a sua expressatildeo (cf BT 42 p 140) e a sua formulaccedilatildeo eacute do
domiacutenio proacuteprio da gramaacutetica natildeo da praacutetica da linguagem comum Eacute aliaacutes o
levantamento dessas regras que permite agrave gramaacutetica descrever a linguagem como um
caacutelculo isto eacute como um processo de aplicaccedilatildeo de regras de uso de palavras nas
proacuteprias palavras do filoacutesofo ldquoEu vejo a linguagem e a gramaacutetica como um caacutelculo ie
como um processo que segue regras fixasrdquo346 (BT 58 p 203) O sentido surge
justamente de usarmos as palavras e as proposiccedilotildees como parte de um caacutelculo (cf BT
20 p 65 e 35 p 110) E eacute como caacutelculo que a linguagem se assemelha a um jogo que
ela pode ser vista como um jogo de linguagem (cf BT 19 p 63 e 35 p 110)347 Mas
344 ldquoBut lets not talk about meaning something as an indefinite process that we dont know very well but about the (actual) practical use of the word about the actions that we carry out with itrdquo (BT 46 p 157e) ldquoAber reden wir doch nicht vom Meinen als einem unbestimmten amp uns nicht genau bekannten Vorgang sondern vom (tatsaumlchlichen) lsquopraktischenrsquo Gebrauch des Wortes von den Handlungen die wir mit ihnen ausfuumlhrenrdquo (BT 46 p 157)
345 ldquoCommanding asking narrating chatting are activities that are as natural as walking drinking playingrdquo (BT 47 p 163e) ldquoBefehlen fragen erzaumlhlen plauschen sind so natuumlrliche Handlungen wie gehen trinken spielenrdquo (BT 47 p 163)
346 ldquoI view language and grammar as a calculus ie as a process that follows fixed rulesrdquo (BT 58 p 203e) ldquoIch betrachte die Sprache und Grammatik unter dem Gesichtspunkt als Kalkuumll dh als Vorgang nach festgesetzten Regelnrdquo (BT 58 p 203)
347 Pode-se objetar que eacute pouco apropriada a comparaccedilatildeo das regras gramaticais a regras de um jogo que eacute questionaacutevel que quando praticamos a linguagem eacute como se estiveacutessemos a jogar um jogo de linguagem pois como reconhece Wittgenstein falta-lhe a competiccedilatildeo entre jogadores e a dimensatildeo luacutedica que caraterizam o jogo como normalmente eacute entendido Mas ao mesmo tempo o filoacutesofo enfatiza a similitude das regras do jogo e das regras gramaticais e a importacircncia de atraveacutes das primeiras melhor se ficar a conhecer as segundas Sobre isto acrescenta ainda ldquoEm geral eacute melhor olhar para as regras dos
208
jogamos esse jogo sem que necessariamente saibamos que estamos a calcular Da
mesma maneira que natildeo se tem de ter presente o conceito de regra quando se aplica
regras natildeo eacute de todo necessaacuterio ter o de caacutelculo para podermos jogar A proacutepria
filosofia para descrever os caacutelculos natildeo precisa do conceito de caacutelculo
A filosofia tem que ver com caacutelculos no mesmo sentido que tem que ver com pensamentos (ou com proposiccedilotildees e linguagens) Mas se tivesse que ver essencialmente com o conceito de caacutelculo ou seja com o conceito de caacutelculo antes de haver quaisquer caacutelculos individuais entatildeo haveria uma metafilosofia E isso natildeo existe (Tudo o que temos a dizer poderia ser apresentado para que isto parecesse um pensamento orientador)348 (BT 15 p 54)
Ela para a sua atividade natildeo precisa deste conceito nem essa atividade eacute uma
metafilosofia que procura explicaacute-lo aleacutem do uso que na linguagem fazemos dele O
mesmo se pode dizer sobre o conceito de pensamento pois agrave filosofia soacute lhe interessa a
sua gramaacutetica jamais o que o constitui Satildeo os pensamentos dados nas proposiccedilotildees e
natildeo o pensamento como conceito abstrato que eacute por ela visado E se por exemplo os
usos que fazemos da palavra laquopensamentoraquo a ligam agrave de laquocaacutelculoraquo isso nada mais diz
sobre os conceitos dessas palavras que natildeo seja esse proacuteprio uso que se pode descrever
Sobre o seguimento de regras consideremos por uacuteltimo o que se expocircs no
capiacutetulo anterior sobre como Wittgenstein concebe a intencionalidade da linguagem
jogos sem um julgamento preconcebido ou preconceito quanto agrave analogia entre gramaacutetica e jogos e sem ser dirigido apenas pelo instinto infaliacutevel de que haacute aqui uma relaccedilatildeo E aqui novamente deve-se simplesmente relatar o que se vecirc e natildeo ter medo de que ao fazecirc-lo se esteja a pocircr em causa uma visatildeo importante ou a perder tempo com algo supeacuterfluordquo ldquoIn general it is better to look at the rules of games without a preconceived judgement or prejudice as to the analogy between grammar and games and without being driven solely by the infallible instinct that there is a relationship here And here again on should simply report what one sees and not be afraid that in doing so one is undermining an important view or wasting ones time with something superfluousrdquo (BT 56 p 188e) ldquoEs ist uumlberhaupt besser ohne ein gefaszligtes Urteil oder Vorurteil uumlber die Analogie zwischen Grammatik und Spiel und nur getrieben von dem sicheren Instinkt daszlig hier eine Verwandtschaft vorliegt die Spielregeln zu betrachten Und hier wieder soll man einfach berichten was man sieht und nicht fuumlrchten daszlig man damit eine wichtige Anschauung untergraumlbt oder auch seine Zeit mit etwas Uumlberfluumlssigem verliertrdquo (BT 56 p 188)
348 ldquoPhilosophy has to do with calculi in the same sense as it has to do with thoughts (or with propositions and languages) But if it had to do essentially with the concept of a calculus ie with the concept of a calculus before there were any calculations then there would be a metaphilosophy And that doesnt exist (Everything we have to say could be presented so that this appeared as a guiding thought)rdquo (BT 15 p 54e) ldquoDie Philosophie hat es auch in demselben Sinn mit Kalkuumllen zu tun wie sie es mit Gedanken zu tun hat (oder mit Saumltzen und Sprachen) Haumltte sies aber wesentlich mit dem Begriff des Kalkuumlls zu tun also mit dem Begriff des Kalkuumlls vor allen Kalkuumllen so gaumlbe es eine Metaphilosophie Und die gibt es nicht (Man koumlnnte alles was wir zu sagen haben so darstellen daszlig das als ein leitender Gedanke erschiene)rdquo (BT 15 p 54)
209
Segundo ele eacute nas proacuteprias expressotildees linguiacutesticas que reside a sua intencionalidade
natildeo existe intenccedilatildeo fora dessas expressotildees A intenccedilatildeo natildeo se encontra na projeccedilatildeo que
do sentido percebido da realidade fazemos nas proposiccedilotildees que a descrevem muito
embora o sentido da realidade seja certamente a razatildeo pela qual pensamentos
intencionalmente pois soacute pensamos quando o que dizemos tem sentido Quando o
fazemos quando nos expressamos na linguagem temos razotildees para acreditar que o que
dizemos representa a realidade isto eacute a accedilatildeo de escrever ou falar sobre ela eacute
concordante com essas crenccedilas justificadas com o que dizemos acreditar por boas
razotildees antes ou depois dessa accedilatildeo Essas crenccedilas de acordo com as quais dizemos que
nos pronunciamos podem ser proposiccedilotildees gramaticais que estabelecem regras de uso
das palavras ou seja o seu significado Elas esclarecem as razotildees pelas quais
articulamos as palavras de determinado modo Portanto seguir regras gramaticais eacute
deste ponto de vista estar de acordo com crenccedilas justificadas Mas natildeo nos podemos
esquecer que por um lado tanto as proposiccedilotildees que descrevem a realidade como as
que como crenccedilas esclarecem o seu sentido seguem regras gramaticais e por outro
lado estar uma proposiccedilatildeo de acordo com outra natildeo determina qualquer relaccedilatildeo causal
entre as duas Tambeacutem finalmente natildeo se pode atribuir agrave vontade humana a accedilatildeo que
intencionalmente articula palavras de modo determinado pois para Wittgenstein essa
vontade natildeo se distingue da accedilatildeo A gramaacutetica que praticamos resulta de um processo
de aprendizagem sobre o qual natildeo temos memoacuteria mas que a partir de certa altura
passou a determinar o uso que fazemos das palavras em funccedilatildeo do contexto em que as
aplicamos Assim seguir regras gramaticais eacute simplesmente agir em conformidade
com elas sem ter necessariamente presente que elas nos guiam Somente quando se
questiona porque se usam as palavras como as usamos somos levados a expor as razotildees
com as quais essa accedilatildeo eacute concordante a praacutetica das regras gramaticais eacute nesta
perspetiva a compreensatildeo que temos das crenccedilas justificadas sobre o modo como
usamos as palavras Julgamos ser esta leitura a que melhor respeita o que Wittgenstein
no BT entende por seguir regras gramaticais Ela eacute proacutexima da interpretaccedilatildeo dada por
John McDowell sobre este assunto no pensamento filosoacutefico de Wittgenstein da
segunda fase a qual nega que seja necessaacuteria a interpretaccedilatildeo para a compreensatildeo de um
signo linguiacutestico situaccedilatildeo que cria o dilema descrito na secccedilatildeo 201 das PI349 e que deu
349 Sobre as origens deste dilema remontar ao BT ver STERN David G ldquoThe Origins of the Rule-Following Considerations and the Development of Wittgensteinrsquos Philosophy in the 1930srdquo O que nos faz pensar Volume 22 Nordm 33 2013 pp 142-163
210
origem a um trabalho influente de Saul Kripke sobre o seguimento de regras350 Para
McDowell eacute a comunidade linguiacutestica que sustenta que a compreensatildeo do que se diz
seja a captaccedilatildeo instantacircnea do seu significado (ldquoGrasping the whole use in a flashrdquo)351
Se considerarmos que no BT a compreensatildeo de uma proposiccedilatildeo eacute a accedilatildeo que a traduz
(cf BT 3 p 10) digamos que esta captaccedilatildeo instantacircnea a que se refere McDowell faz-
se notar em comunidade na accedilatildeo concordante com a proposiccedilatildeo enunciada Esta
posiccedilatildeo opotildee-se sem duacutevida a uma leitura platonista ou quase-platonista de um Crispin
Wright para quem o significado e a sua compreensatildeo dependem da decisatildeo que os
estipula a decisatildeo que eacute necessaacuteria para por exemplo passar do comando agrave sua
execuccedilatildeo352 Para um platonista soacute algo natildeo manifesto como o conteuacutedo das palavras e
dos pensamentos pode superar o hiato entre uma regra e a sua aplicaccedilatildeo Concordamos
pois com David H Finkelstein que defende que para Wittgenstein quando as regras
se inserem nas nossas vidas nada medeia entre elas e a sua aplicaccedilatildeo e se existe um
hiato entre elas ele deve-se apenas agrave falta de compreensatildeo que se resolve por vezes
por via da interpretaccedilatildeo353 Posto isto de outro modo seguir as regras gramaticais eacute
praticaacute-las e o que quisermos saber sobre como as seguimos soacute do ldquointeriorrdquo da
linguagem o podemos ficar a saber nada que lhe seja exterior determina o significado e
a sua compreensatildeo354
350 Cf KRIPKE Saul Wittgenstein on Rules and Private Language Harvard University Press Cambridge MA 1982 pp 1-150
351 Cf MCDOWELL John ldquoWittgenstein on Following a Rulerdquo in Alexander Miller and Crispin Wright (Eds) Rule-Following and Meaning Chesham Acumen Publishing Limited 2002 pp 64 e 69-80 (originalmente publicado in Synthese Volume 58 No 3 Essays on Wittgensteins Later Philosophy Mar 1984 pp 325-363)
352 Cf WRIGHT Crispin Wittgenstein on the Foundations of Mathematics Gerald Duckworth amp Co Ltd London March 1980 pp 480 Considerar ainda ldquoWittgensteinrsquos rule-following considerations and the central project of theoretical linguisticsrdquo in A George (ed) Reflections on Chomsky Basil Blackwell Oxford 1989 pp 233-264 ldquoKripkersquos Account of the Argument Against Private Languagerdquo The Journal of Philosophy LXXXI Nordm 12 1994 pp 759-778 Rails to Infinity Harvard University Press Cambridge MA 2001 pp 496 353 Cf FINKELSTEIN David H ldquoWittgenstein on Rules and Platonismrdquo in Alice Crary and Rupert Read The New Wittgenstein Routledge London 2000 pp 68-69
354 Cf STROUD Barry ldquoMeaning and Understandingrdquo in Oskari Kuusela and Marie McGinn The Oxford Handbook of Wittgenstein Oxford University Press Oxford 2011 pp 294-310
211
O Sistema Gramatical
A investigaccedilatildeo gramatical eacute o que explica os usos dos signos linguiacutesticos com
recurso ao uso desses mesmos signos sob a forma de proposiccedilotildees gramaticais
Wittgenstein garante que essa explicaccedilatildeo natildeo depende de nada mais do que do proacuteprio
sistema gramatical a que chegamos por via da investigaccedilatildeo do sistema de regras que
determina o sentido das proposiccedilotildees e o significado das palavras Por isso afirma
ldquoSomente ao explicar um sistema de gramaacutetica podemos falar de frasesrdquo355 (BT 15 p
50) e ldquoO que eacute a proposiccedilatildeo eacute determinado pela gramaacutetica Isto eacute dentro da
gramaacuteticardquo356 (BT 18 p 62) O sistema ao originar proposiccedilotildees permite justificar umas
por outras que as explicam sem necessidade de qualquer outra referecircncia que lhe seja
exterior A sua autoexplicaccedilatildeo denota a sua autonomia relativamente agrave realidade que o
cerca357 Se eacute verdade que a gramaacutetica faz com que a linguagem seja pictoacuterica disso natildeo
355 ldquoOnly explaining a system of grammar can we speak of sentencesrdquo (BT 15 p 50e) ldquoVom Satz kann nur in der Erklaumlrung eines grammatischen Systems die Rede seinrdquo (BT 15 p 50)
356 ldquoWhat a proposition is is determined by grammar That is within grammarrdquo (BT 18 p 62e) ldquoWas ein Satz ist wird durch die Grammatik bestimmt Dh innerhalb der Grammatikrdquo (BT 18 p 62)
357 Wittgenstein abandona pelo menos desde as primeiras versotildees das PI a ideia de um sistema de proposiccedilotildees autossuficiente capaz de conferir sentido ao que dizemos e de assegurar a sua compreensatildeo Esta circunstacircncia eacute razatildeo para David Stern que encara aquele sistema como uma teoria cientiacutefica introduzir uma terceira fase caraterizada por um holismo praacutetico que sucede ao holismo loacutegico com iniacutecio em 1929 momento de viragem relativamente ao atomismo loacutegico do TLP com o holismo praacutetico a linguagem passa a ser concebida como aplicaccedilatildeo de regras gramaticais que dependem do contexto de praacuteticas partilhadas (cf STERN David G ldquoThe lsquoMiddle Wittgensteinrsquo From Logical Atomism to Practical Holismrdquo pp 203-226) Stern defende esta sua tese de enquadramento do pensamento de Wittgenstein em trecircs fases distintas contra os que vecircm apenas duas fases com um ponto de viragem entre elas no ano de 1929 assim como aqueles que tecircm uma visatildeo unitaacuteria da sua filosofia (cf STERN David G ldquoWittgenstein in the 1930srdquo pp 126-151 STERN David G ldquoIntroduction Wittgenstein Between the Tractatus and the Investigationsrdquo in David G Stern (ed) Winttgenstein in The 1930s ndash Between the Tractatus and the Investigations Cambridge University Press Cambridge 2018 pp 1-12 STERN David G ldquoHow Many Wittgensteinsrdquo in Alois Pichler and Simo Saumlaumltelauml (eds) Wittgenstein The Philosopher and his Works From ontos verlag Publications of the Austrian Ludwig Wittgenstein Society - New Series Volume 2 2016 pp 205-229) Seguindo as indicaccedilotildees de Stern satildeo defensores de um Wittgenstein a duas fases Hacker e Glock (cf HACKER P M S Insight and Illusion Themes in the Philosophy of Wittgenstein HACKER P M S Wittgenstein on Grammar Theses and Dogmatism GLOCK Hans-Johann ldquoThe Development of Wittgensteinrsquos Philosophyrdquo in Hans-Johann Glock (ed) Wittgenstein A Critical Reader Wiley-Blackwell Oxford 2001 pp 1-25 GLOCK Hans-Johann ldquoPerspectives on Wittgenstein An Intermittently Opinionated Surveyrdquo in Guy Kahane Edward Kanterian and Oskari Kuusela (eds) Wittgenstein and his Interpreters Wiley-Blackwell Oxford 2007 pp 37ndash65) jaacute a visatildeo unitaacuteria eacute protagonizada por Diamond Conant Kuusela e Cahill (cf DIAMOND Cora ldquoCriss-Cross Philosophyrdquo in Erich Ammereller and Eugen Fischer (eds) Wittgenstein at Work Method in the Philosophical Investigations Routledge London 2004 pp 201ndash220 CONANT James ldquoMild Mono-Wittgensteinianismrdquo in Alice Crary (ed) Wittgenstein and the Moral Life Essays in Honor of Cora Diamond MIT Press Cambridge MA 2007 pp 31ndash142 CONANT James ldquoWittgensteinrsquos Methodsrdquo pp 620ndash645 KUUSELA Oskari The Struggle Against Dogmatism Wittgenstein and the Concept of Philosophy KUUSELA Oskari ldquoThe Development of Wittgensteinrsquos Philosophyrdquo in Oskari Kuusela and Marie McGinn (eds) The Oxford Handbook of Wittgenstein Oxford University Press Oxford 2011
212
se depreende que seja a realidade a determinar as imagens da linguagem mas pelo
contraacuterio o modo como ela eacute retratada eacute determinado pela proacutepria gramaacutetica (cf BT 45
pp 152-153) Neste aspeto parece oacutebvia a comparaccedilatildeo dos sistemas de linguagem com
os de medida uma vez que tambeacutem estes determinam o modo de mensurar a realidade
Poreacutem enquanto os sistemas de medida satildeo concebidos em conexatildeo com a realidade o
mesmo natildeo podemos dizer do sistema gramatical
Pois aqui natildeo eacute uma questatildeo de conexatildeo com a realidade que manteacutem a gramaacutetica no caminho certo A lsquoconexatildeo da linguagem com a realidadersquo digamos por meio de definiccedilotildees ostensivas natildeo torna a gramaacutetica inevitaacutevel (natildeo justifica a gramaacutetica) Para a gramaacutetica sempre permanece um caacutelculo flutuando livremente no espaccedilo um caacutelculo que pode ser estendido com certeza mas natildeo suportado A lsquoconexatildeo com a realidadersquo apenas amplia a linguagem ela natildeo a forccedila a fazer nada358 (BT 112 p 386)
Natildeo haacute duacutevida que escolhemos as palavras quando construiacutemos um enunciado e natildeo
houvesse um sistema gramatical natildeo haveria como explicar a escolha que se fizesse (cf
BT 45 pp 152-153) Mas ao escolher certas palavras preterindo outras embora tal
possa ser determinado por relaccedilatildeo agrave realidade essa relaccedilatildeo soacute pode expandir as
possibilidades expressivas da linguagem facultadas pelo sistema gramatical existente O
uso que se faz das palavras estaacute jaacute determinado pela gramaacutetica quando escolhemos usaacute-
las E de facto escolhemos usaacute-las precisamente por causa do uso que delas fazemos A
praacutetica da linguagem pode efetivamente ser motivada pela realidade mas essa praacutetica eacute
efetuada nos seus proacuteprios termos
Desta maneira a relaccedilatildeo da linguagem com a realidade natildeo eacute de representaccedilatildeo
se por ela se entender patentear ou mostrar a realidade como ela aparece Quando nos
referimos agrave realidade falamos a seu respeito muito embora o que falamos nos seja dado
pp 597ndash619 CAHILL Kevin The Fate of Wonder Wittgensteinrsquos Critique of Metaphysics and Modernity Columbia University Press New York 2011)
358 ldquoFor here itrsquos not a matter of a connection with reality that keeps grammar on track The lsquoconnection of language with realityrsquo say by means of ostensive definitions doesnrsquot make grammar inevitable (doesnrsquot justify grammar) For grammar always remains a calculus floating freely in space a calculus that can be extended to be sure but not supported The lsquoconnection with realityrsquo merely extends language it doesnacutet force it to do anythingrdquo (BT 112 p 386e) ldquoDenn hier handelt es sich nicht um eine Verbindung mit der Wirklichkeit die nun die Grammatik in ihrer Bahn haumllt Die Verbindung der Sprache mit der Wirklichkeit etwa durch die hinweisenden Definitionen macht die Grammatik nicht zwangslaumlufig (rechtfertigt die Grammatik nicht) Denn diese bleibt immer nur ein frei im Raume schwebender Kalkuumll der zwar erweitert aber nicht gestuumltzt werden kann Die Verbindung mit der Wirklichkeit erweitert nur die Sprache aber zwingt sie zu nichtsrdquo (BT 112 p 386)
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por um sistema totalmente dela independente O que tem como consequecircncia que
apesar do que dela dizemos ter uma natureza pictoacuterica eacute errado concluir que eacute uma sua
imagem ou uma imagem que a representa mas antes uma imagem que reflete o proacuteprio
sistema de linguagem A representatividade que normalmente se atribui agrave expressatildeo
linguiacutestica ignora que as regras a que ela obedece natildeo respondem perante a realidade
Mais uma vez qualquer erro consiste em esquecer que satildeo todas as regras que caracterizam um jogo uma linguagem e que essas regras natildeo respondem a uma realidade no sentido de que satildeo controladas por ela e que poderiacuteamos ter duacutevidas se uma determinada regra eacute necessaacuteria ou correta (Comparar com o problema da consistecircncia na geometria natildeo-Euclidiana)
A gramaacutetica natildeo responde a nenhuma realidade (A gramaacutetica natildeo eacute responsaacutevel pela realidade)359 (BT 56 p 184)
Usamos as palavras para significar a realidade mas satildeo as proposiccedilotildees gramaticais e
natildeo a realidade que justificam o uso das palavras Todas as proposiccedilotildees que se possam
enunciar estatildeo ligadas a um sistema de significaccedilatildeo que lhes confere sentido (cf BT 46
p157) e assim a realidade adquire os sentidos dessas proposiccedilotildees Sentidos que poreacutem
partem de um sistema gramatical independente de qualquer realidade Natildeo podemos
inclusivamente afirmar que existe uma correspondecircncia entre as palavras e as coisas
Mas o significado da palavra natildeo consiste em algo correspondente a ela exceto digamos no caso de um nome e do objeto que ele nomeia mas nesse caso o portador do nome eacute meramente uma continuaccedilatildeo do caacutelculo ou seja da linguagem E natildeo eacute como dizer lsquoEsta histoacuteria aconteceu realmente natildeo foi mera invenccedilatildeorsquo360 (BT 112 p 385)
359 ldquoAgain and again any mistake consists in forgetting that it is all its rules that characterize a game a language and that these rules are not answerable to a reality in the sense that they are controlled by it and that we could have doubts whether a particular rule is necessary or correct (Compare the problem of consistency in non-Eucledian geometry) Grammar is not answerable to any reality (Grammar is not accountable to reality)rdquo (BT 56 p 184e) ldquoMein Fehler besteht hier immer wieder darin daszlig ich vergesse daszlig erst alle Regeln das Spiel die Sprache charakterisieren und daszlig diese Regeln nicht einer Wirklichkeit verantwortlich sind so daszlig sie von ihr kontrolliert wuumlrden und so daszlig man von einer Regel bezweifeln koumlnnte daszlig sie notwendig oder richtig waumlre (Vergleiche das Problem der Widerspruchsfreiheit der Nicht-euklidischen Geometrie) Die Grammatik ist keiner Wirklichkeit verantwortlich (Die Grammatik ist der Wirklichkeit nicht Rechenschaft schuldig)rdquo (BT 56 p 184)
360 ldquoBut the meaning of the word doesnt consist in somethings corresponding to it except say in the case of a name and the object it names but in that case the bearer of the name is merely a continuation of the calculus ie language And it is not like saying lsquoThis story really happened it wasnt mere
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As coisas que as palavras nomeiam fazem parte das regras do jogo de linguagem e
portanto elas integram o caacutelculo de quem o joga Natildeo existe o significado das coisas
fora do significado gerado no caacutelculo e esse significado tem uma relaccedilatildeo arbitraacuteria com
as coisas Eacute sempre de caacutelculo que se trata ldquoA gramaacutetica eacute para noacutes um caacutelculo puro
(natildeo a aplicaccedilatildeo do caacutelculo agrave realidade)rdquo361 (BT 112 p 385) A praacutetica da linguagem
natildeo eacute um caacutelculo instanciado uma combinaccedilatildeo de regras por assim dizer foacutermulas
praticadas na relaccedilatildeo agrave realidade Wittgenstein diz ter sido esse o seu erro assim como o
de Russell e Ramsey quando usou como o fez no TLP o conceito atomista de anaacutelise
loacutegica dos factos (cf BT 112 p 385)
Esta eacute a razatildeo por que as palavras natildeo tecircm por relaccedilatildeo agrave realidade significados
incorretos uma vez que satildeo as regras que constituem os seus significados e estas natildeo
estatildeo certas nem erradas As palavras podem ter qualquer significado mas uma vez que
o tenham satildeo as regras que lho datildeo Natildeo existem significados anteriores agraves regras que
as possam explicar ldquoAssim essas regras satildeo arbitraacuterias porque satildeo as regras que
primeiro datildeo sentido ao signordquo362 (BT 56 p 185) Se eacute atraveacutes de regras que
justificamos os usos que fazemos das palavras jaacute as regras elas mesmas satildeo
infundadas363
inventionrsquordquo (BT 112 p 385e) ldquoAber die Bedeutung des Wortes besteht ja nicht darin daszlig ihm etwas entspricht Auszliger etwa wo es sich um Namen und benannten Gegenstand handelt aber da setzt der Traumlger des Namens nur den Kalkuumll fort also die Sprache Und es ist nicht so wie wenn man sagt diese Geschichte hat sich tatsaumlchlich zugetragen sie war nicht bloszlige Erfindungrdquo (BT 112 p 385)
361 ldquoGrammar is for us pure calculus (not the application of a calculus to reality)rdquo (BT 112 p 385e) ldquoDie Grammatik ist fuumlr uns ein reiner Kalkuumll (Nicht die Anwendung eines auf die Realitaumlt)rdquo (BT 112 p 385)
362 ldquoThus these rules are arbitrary because it is the rules that first give meaning to the signrdquo (BT 56 p 185e) ldquoDaher sind diese Regeln willkuumlrlich weil die Regeln erst dem Zeichen die Bedeutung gebenrdquo (BT 56 p 185)
363 Assinale-se poreacutem que a natureza humana a cultura e a tradiccedilatildeo e as regularidades empiacutericas limitam a arbitrariedade das regras gramaticais (cf FORSTER Michael N ldquoThe Autonomy of Grammarrdquo in Hans-Johann Glock and John Hyman (eds) A Companion to Wittgenstein Wiley Blackwell Oxford 2017 pp 274-276) para um desenvolvimento mais alargado sobre a arbitrariedade e natildeo arbitrariedade das regras gramaticais ver FORSTER Michael N Wittgenstein on Arbitrariness of Grammar Princeton University Press Oxford 2004 p 247
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Agora quando se fala em arbitrariedade das regras gramaticais isso soacute pode significar que a justificaccedilatildeo inerente agrave gramaacutetica como tal natildeo existe para a gramaacutetica364 (BT 56 p 185)
Poreacutem natildeo obstante os significados das palavras serem arbitraacuterios isso natildeo quer dizer
que as proposiccedilotildees que usam essas palavras sejam arbitraacuterias e natildeo possam ser
comparadas com a realidade (cf BT 56 p 186) Wittgenstein compara as regras
gramaticais aos procedimentos que adotamos para medir a realidade fiacutesica como seja a
fixaccedilatildeo da unidade de medida tambeacutem esta unidade eacute arbitraacuteria mas natildeo o satildeo os
resultados das medidas da realidade determinados com base nela Conclui assim pela
vantagem de ver as regras como convenccedilotildees ldquoGanhamos em comparar as regras
gramaticais a acordosrdquo365 (BT 56 p 186) Pois o que caracteriza a convenccedilatildeo na
aceccedilatildeo que lhe daacute o filoacutesofo eacute precisamente ela natildeo ser determinada pela realidade mas
antes ser soberana relativamente a ela (cf BT 56 pp 186-187) Deste modo natildeo
podemos argumentar que aquilo a que nos referimos a partir das convenccedilotildees
gramaticais ainda que possam ser consideradas representaccedilotildees que se lhe adequam
serve para as fundamentar
lsquoAs regras da gramaacutetica satildeo arbitraacuteriasrsquo significa eu natildeo chamo as regras para representar algo uma convenccedilatildeo que pode ser justificada por proposiccedilotildees proposiccedilotildees que descrevem o que eacute representado e mostram que uma representaccedilatildeo eacute adequada As convenccedilotildees da gramaacutetica natildeo podem ser justificadas por uma descriccedilatildeo do que eacute representado Qualquer descriccedilatildeo desse tipo jaacute pressupotildee as regras da gramaacutetica Isto eacute o que conta como um absurdo dentro da gramaacutetica que deve ser justificado natildeo pode contar como fazendo sentido na gramaacutetica das proposiccedilotildees justificadoras e assim por diante366 (BT 56 p 188)
364 ldquoNow when one talks about arbitrariness of grammatical rules this can only mean that the justification that is inherent in grammar as such doesnt exist for grammarrdquo (BT 56 p 185e) ldquoWenn man nun von der Willkuumlrlichkeit der grammatischen Regeln spricht so kann das nur bedeuten daszlig es die Rechtfertigung die in der Grammatik als solcher liegt nicht fuumlr die Grammatik gibtrdquo (BT 56 p 185)
365 ldquoWell profit by comparing grammatical rules to agreementsrdquo (BT 56 p 186e) ldquoGrammatische Regeln wird man mit Vorteil Uumlbereinkommen vergleichenrdquo (BT 56 p 186)
366 ldquolsquoThe rules of grammar are arbitraryrsquo means I dont call the regulations for representing something a convention that can be justified by propositions propositions that describe is represented and show that a representation is adequate The conventions of grammar cant be justified by a description of what is represented Any description of that kind already presupposes the rules of grammar That is what counts as nonsense within the grammar that is to be justified canacutet count as making sense in the grammar of the justifying propositions and so onrdquo (BT 56 p 188e) ldquoDie grammatischen Regeln sind willkuumlrlich
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Em vez de serem as proposiccedilotildees sobre a realidade a justificarem as proposiccedilotildees
gramaticais satildeo as regras gramaticais que tornam possiacuteveis as proposiccedilotildees em geral A
ser assim como entatildeo saber o que faz com que uma proposiccedilatildeo seja verdadeira ou
falsa Se o sistema gramatical eacute autoacutenomo relativamente agrave realidade se o uso que se faz
das palavras para representar a realidade eacute totalmente independente dela como decidir
sobre a veracidade do que ela representa A gramaacutetica faculta a comparaccedilatildeo das
proposiccedilotildees com os factos mas o que as torna verdadeiras ou falsas estaacute completamente
fora do que ela permite precisar
A uacutenica coisa que natildeo pertence agrave gramaacutetica eacute o que torna uma proposiccedilatildeo verdadeira ou falsa Essa eacute a uacutenica coisa com que a gramaacutetica natildeo se preocupa Tudo o que eacute requerido para comparar a proposiccedilatildeo com os factos pertence agrave gramaacutetica Ou seja todos os requisitos para a compreensatildeo (Todos os requisitos para o sentido)367 (BT 12 p 38)
Todavia no contexto gramatical as palavras laquoverdadeiroraquo e laquofalsoraquo satildeo usadas em
proposiccedilotildees de acordo com certas regras e eacute de acordo com elas que se desenvolvem
jogos de linguagem em torno dessas palavras (cf BT 18 p 61) Normalmente elas
aparecem em proposiccedilotildees que afirmam ou negam a verdade ou falsidade de outras
proposiccedilotildees ou seja funccedilotildees de verdade que indicam o valor de verdade das
proposiccedilotildees Mas dizer que uma certa proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa quando
comparada aos factos eacute tatildeo-soacute dizer que ela eacute ou natildeo o caso sem que a gramaacutetica possa
justificar o seu valor de verdade
Pode-se certamente argumentar que usamos a linguagem com propoacutesitos que
escolhemos as palavras em funccedilatildeo dos seus usos terem efeitos desejados e por
heiszligt Ich nenne die Vorschriften der Darstellung keine Konvention die sich durch Saumltze rechtfertigen laumlszligt Saumltze welche das Dargestellte beschreiben und zeigen daszlig die Darstellung adaumlquat ist Die Konventionen der Grammatik lassen sich nicht durch eine Beschreibung des Dargestellten rechtfertigen Jede solche Beschreibung setzt schon die Regeln der Grammatik voraus Dh was in der zu rechtfertigenden Grammatik als Unsinn gilt kann in der Grammatik der rechtfertigenden Saumltze auch nicht als Sinn gelten uurdquo (BT 56 p 188)
367 ldquoThe only thing that doesnrsquot belong to grammar is what makes a proposition true or false Thatrsquos the only thing grammar is not concerned with Everything thatrsquos required for comparing the proposition with the facts belongs to grammar That is all the requirements for understanding (All the requirements for sense)rdquo (BT 12 p 38e) ldquoZur Grammatik gehoumlrt nur das nicht was die Wahrheit und Falschheit eines Satzes ausmacht Nur darum kuumlmmert sich die Grammatik nicht Zu ihr gehoumlren alle Bedingungen des Vergleichs des Satzes mit den Tatsachen Das heiszligt alle Bedingungen des Verstaumlndnisses (Alle Bedingungen des Sinnes)rdquo (BT 12 p 38)
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conseguinte que lhe subjaz a intencionalidade Isso merece a concordacircncia do filoacutesofo
ldquoEu uso a palavra para um propoacutesito e portanto natildeo sem sentidordquo368 (BT 19 p 63)
conquanto afirme igualmente que esse propoacutesito natildeo tem qualquer interesse para ele (cf
BT 44 p 146) e o que lhe interessa eacute a ldquo[] linguagem como um fenocircmeno natildeo como
uma maacutequina que cumpre um propoacutesito especiacuteficordquo369 (BT 44 p 149) O que ele
todavia natildeo acolhe de todo eacute a ideia de que a linguagem como meio ao serviccedilo de fins
tem a estrutura necessaacuteria para com o uso das palavras se ajustar convenientemente agraves
finalidades e essa seja a justificaccedilatildeo da gramaacutetica
As regras gramaticais natildeo satildeo aquelas (escusado seraacute dizer empiacutericas) regras de acordo com as quais a linguagem deve ser construiacuteda para cumprir o seu propoacutesito Para ter um efeito particular Em vez disso satildeo a descriccedilatildeo de como a linguagem faz isso ndash seja laacute o que for isso que faz Isto eacute a gramaacutetica natildeo descreve a maneira como a linguagem produz efeito mas apenas o jogo da linguagem as accedilotildees linguiacutesticas370 (BT 44 p 145)
E a quem pretenda ver na linguagem uma funccedilatildeo social Wittgenstein diz
Natildeo poderia eu olhar para a linguagem como uma instituiccedilatildeo social que estaacute sujeita a certas regras porque de outra forma natildeo seria eficaz Mas eis aqui o problema eu natildeo posso fazer essa uacuteltima afirmaccedilatildeo eu natildeo posso dar qualquer
368 ldquoI use the word for a purpose and therefore not without a senserdquo (BT 19 p 63e) ldquoIch brauche das Wort zu einem Zweck amp darum nicht unsinnigrdquo (BT 19 p 63)
369 ldquo[hellip] language as a phenomenon not as a machine that fulfils a particular purposerdquo (BT 44 p 149e) ldquo[hellip] Sprache als Phaumlnomen nicht als die Maschine die einen bestimmten Zweck erfuumllltrdquo (BT 44 p 149)
370 ldquoGrammatical rules are not those (it goes without saying empirical) rules in accordance with which language has to be constructed to fulfil its purpose In order to have a particular effect Rather they are the description of how language does it - whatever it does That is grammar doesnt describe the way language takes effect but only the game of language the linguistic actionsrdquo (BT 44 p 145e) ldquoDie grammatischen Regeln sind nicht diejenigen (natuumlrlichen erfahrungsmaumlszligigen) Regeln nach denen die Sprache gebaut sein muszlig um ihren Zweck zu erfuumlllen Um diese Wirkung zu haben Vielmehr sind sie die Beschreibung davon wie die Sprache es macht ndash was immer sie macht Dh die Grammatik beschreibt nicht die Wirkungsweise der Sprache sondern nur das Spiel der Sprache die Sprachhandlungenrdquo (BT 44 p 145)
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justificaccedilatildeo das regras nem mesmo uma como esta Eu soacute posso descrevecirc-las como um jogo que as pessoas jogam371 (BT 44 p 145)
Efetivamente usamos intencionalmente as palavras procuramos com a sua articulaccedilatildeo
operar por assim dizer em maacutequinas que realizam propoacutesitos mas o modo como as
usamos a sua gramaacutetica natildeo eacute de jeito algum determinado nem pela sua engrenagem
nem pelos fins que ela serve
A linguagem eacute parte de um mecanismo (ou pelo menos pode ser entendido dessa maneira) Com a sua ajuda influenciamos as accedilotildees de outras pessoas e somos influenciadas por elas Como parte de um mecanismo pode-se dizer que a linguagem tem um propoacutesito Mas a gramaacutetica natildeo se preocupa com o propoacutesito da linguagem e se ela o cumpre Natildeo mais do que a aritmeacutetica com os usos da adiccedilatildeo372 (BT 44 p 146)
Assim do ponto de vista gramatical a ligaccedilatildeo das palavras agraves accedilotildees eacute arbitraacuteria (cf BT
45 p 152) o jogo de linguagem eacute arbitraacuterio Wittgenstein daacute-nos vaacuterios exemplos
ilustrativos desta arbitrariedade Quando justificamos as accedilotildees pelas palavras que
aparentemente as motivaram apenas estamos a justificar os usos que damos agraves palavras
Quem afirme por exemplo que trouxe uma flor de cor vermelha por ter sido essa a cor
de flor que lhe pediram natildeo estaacute a justificar a sua accedilatildeo mas tatildeo-somente o uso da
palavra laquovermelhoraquo a fazer pois uma afirmaccedilatildeo gramatical (cf BT 45 p 153) O que
se afirma pode estar errado por natildeo ter justificaccedilatildeo como estaacute errado quem disser que 5
x 7 eacute 64 e contudo pode produzir a consequecircncia desejada a justificaccedilatildeo gramatical eacute
371 ldquoCouldnt I look at language as a social institution that is subject to certain rules because otherwise it wouldnt be effective But heres the problem I cannot make this last claim I cannot give any justification of the rules not even like this I can only describe them as a game that people playrdquo (BT 44 p 145e) ldquoKoumlnnte ich nicht die Sprache als soziale Einrichtung betrachten die gewissen Regeln unterliegt weil sie sonst nicht wirksam waumlr Aber hier liegt es dieses Letzte kann ich nicht sagen eine Rechtfertigung der Regeln kann ich auch so nicht geben Ich koumlnnte sie nur als ein Spiel das die Menschen spielen beschreibenrdquo (BT 44 p 145)
372 ldquoLanguage is part of a mechanism (or at least it can be understood that way) With its help we influence the actions of other people and are influenced by them As part of a mechanism one can say language has a purpose But grammar isnt concerned with the purpose of language and whether it fulfils it Any more than arithmetic is with the uses of additionrdquo (BT 44 p 146e) ldquoDie Sprache ist Teil eines Mechanismus (oder zumindest kann man sie so aufgefaszligt werden) Mit ihrer Hilfe beeinflussen wir die Handlungen anderer Menschen amp werden wir beeinfluszligt Als Teil des Mechanismus kann man sagen hat die Sprache einen Zweck Aber die Grammatik kuumlmmert sich nicht um den Zweck der Sprache amp ob sie ihn erfuumlllt Sowenig wie die Arithmetik um die Anwendung der Additionrdquo (BT 44 p 146)
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diversa da pragmaacutetica (cf BT 56 p 185) Tanto a culinaacuteria quanto a gramaacutetica seguem
regras mas soacute esta uacuteltima se assemelha a um jogo e parece proceder por caacutelculos ao
contraacuterio da primeira natildeo visa a produccedilatildeo de um determinado efeito praacutetico cozinha-
se mal quando se seguem preceitos diversas dos previstos nas receitas de culinaacuteria mas
natildeo haacute nada de errado com a praacutetica de regras gramaticais que natildeo sejam as esperadas
(cf BT 56 pp 185-187)
Importa poreacutem natildeo esquecer que na oacutetica de quem pratica o jogo de
linguagem seguindo as suas regras ele natildeo eacute arbitraacuterio usa as palavras prosseguindo
propoacutesitos
As palavras que algueacutem pronuncia numa ocasiatildeo especiacutefica natildeo satildeo arbitraacuterias na medida em que satildeo apenas essas palavras que significam o que ele quer dizer na liacutengua que ele quer (ou tem) para falar isto eacute na medida em que estas regras gramaticais se aplicam precisamente a estas palavras E o que ele quer dizer ou seja o jogo gramatical que ele estaacute jogando natildeo eacute arbitraacuterio na medida em que ele pode acreditar que esta eacute a uacutenica maneira de alcanccedilar o seu propoacutesito373 (BT 44 pp 148-149)
Eacute justamente por que o jogo de linguagem natildeo eacute arbitraacuterio para quem o joga que ele eacute
jogado Contudo o efeito do que possamos significar sobre os nossos desiacutegnios natildeo
encontra fundamento na gramaacutetica as intenccedilotildees que presidem ao que enunciamos natildeo
lhe interessam E deste ponto de vista a praacutetica da linguagem vive uma espeacutecie de
ilusatildeo
373 ldquoThe words that someone utters on a specific occasion are not arbitrary in so far as it is just these words that mean what he wants to say in the language that he wants (or has) to speak ie in so far as these grammatical rules apply precisely to these words And what he means ie the grammatical game he is playing is not arbitrary in so far as he may believe that this is the only way to achieve his purposerdquo (BT 44 pp 148e-149e) ldquoDie Worte die Einer bei gewisser Gelegenheit sagt sind insofern nicht willkuumlrlich als gerade diese in der Sprache die er sprechen will (oder muszlig) das meinen was er sagen will dh als gerade fuumlr sie diese grammatischen Regeln gelten Was er aber meint dh das grammatische Spiel das er spielt ist insofern nicht willkuumlrlich als er etwa seinen Zweck nur so glaubt erreichen zu koumlnnenrdquo (BT 44 pp 148-149)
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Capiacutetulo 11 ndash A Matemaacutetica como Sistema Gramatical
Os sistemas garantidos sempre seduziram as almas anelantes Totalmente inclusivos mas simples nobres puros luminosos estaacuteveis rigorosos verdadeiros ndash poderaacute haver refuacutegio mais ideal do que o oferecido por tal sistema aos espiacuteritos atormentados pelo caraacutecter turvo e contingente do mundo das coisas sensiacuteveis374
A Matemaacutetica eacute um Sistema Infundado
Tal como a linguagem natural a matemaacutetica eacute tambeacutem um caacutelculo com base em
signos que se desenrola num jogo Quer isto dizer que eacute um sistema que consiste
unicamente em caacutelculos (cf BT 137 p 494) isto eacute nos movimentos de caacutelculo como
se fossem movimentos num jogo que se pratica de acordo com regras completamente
arbitraacuterias que determinam o uso de signos
Eacute porque a matemaacutetica eacute um caacutelculo e portanto natildeo eacute realmente acerca de nada que natildeo haacute qualquer metamatemaacutetica375 (BT 108 p 372) Um caacutelculo natildeo nos pode dar conhecimentos fundamentais sobre a matemaacutetica376 (BT 109 p 376)
A falta de fundamento das regras faz com que o caacutelculo matemaacutetico se realize por si e
para si mesmo mero caacutelculo pelo caacutelculo em que as proposiccedilotildees matemaacuteticas satildeo
destituiacutedas do sentido cuja verdade ou falsidade eacute contingente Eacute certo que ele procede
na busca de soluccedilotildees para problemas mas da mesma maneira que se procura resolver
um problema no jogo de xadrez Em ambos os casos os problemas soacute satildeo problemas
porque em primeiro lugar satildeo gerados pelo proacuteprio jogo e em segundo lugar admitem
374 JAMES William As Variedades da Experiecircncia Religiosa ndash Um Estudo da Natureza Humana Helena Briga Nogueira e Margarida Periquito (trad) Reloacutegio DrsquoAacutegua Editores Lisboa 2018 (ediccedilatildeo original de 1902) p 345
375 ldquoBecause mathematics is a calculus and therefore is really about nothing there isnt any metamathematicsrdquo (BT 108 p 372e) ldquoWeil die Mathematik ein Kalkuumll ist und daher wesentlich von nichts handelt gibt es keine Metamathematikrdquo (BT 108 p 372)
376 ldquoA calculus cannot give us fundamental insights into mathematicsrdquo (BT 109 p 376e) ldquoDer Kalkuumll kann uns nicht prinzipielle Aufschluumlsse uumlber die Mathematik gebenrdquo (BT 109 p 376)
221
soluccedilatildeo no caacutelculo a realizar no quadro das suas regras Eacute por esta razatildeo que um
problema matemaacutetico natildeo tem a mesma natureza que um problema de um jogo de teacutenis
ou de um jogo de bilhar (cf BT 108 pp 372-373) Os seus problemas natildeo satildeo
matemaacuteticos mas problemas fiacutesicos Nestes jogos os seus movimentos que seguem as
suas respetivas regras satildeo experiecircncias fiacutesicas que podem correr bem ou mal
resolvendo ou natildeo os problemas em causa Eles natildeo procedem de acordo com passos
num caacutelculo em que a soluccedilatildeo de um problema depende somente das regras que se
seguem Seguir as regras devidas natildeo resulta nestes jogos necessariamente na soluccedilatildeo
do problema Vaacuterios satildeo os comportamentos compatiacuteveis com as regras destes jogos
embora apenas alguns deles assegurem a soluccedilatildeo Ou seja a comparaccedilatildeo da linguagem
da matemaacutetica a um jogo soacute faz sentido quando este funciona atraveacutes de caacutelculos e
como tal independentes da realidade fiacutesica Mas mesmo quando eles procedem por
caacutelculos divergem da matemaacutetica quanto ao que os mobiliza os jogos ganham-se ou
perdem-se enquanto a matemaacutetica investiga a verdade ou a falsidade (cf BT 108 pp
372 e 374)
Assim o caacutelculo que constitui a matemaacutetica natildeo serve para a fundamentar pois
ele natildeo significa nada nem sequer eacute um conceito com que a matemaacutetica opere sendo
apenas fruto da descriccedilatildeo que dele fazemos (cf BT 66 p 231 e 109 p 376) Mas natildeo
se pense tambeacutem como o fez Frege e Russell que a loacutegica pode fundar a matemaacutetica
que atraveacutes do caacutelculo loacutegico se chega agraves suas verdades fundamentais (cf BT 109 p
376) Qualquer caacutelculo procede por regras e estas satildeo arbitraacuterias ele natildeo serve de
fundamento a nada377 Eacute tambeacutem errada a ideia de que afinal o que fundamenta a
matemaacutetica eacute a sua aplicaccedilatildeo agrave realidade (cf BT 112 p 385)378 Como se tudo o que
377 Disto parece natural concluir que a matemaacutetica eacute uma invenccedilatildeo tal como o eacute qualquer jogo de caacutelculo arquitetado por seres humanos Os caacutelculos e os procedimentos de decisatildeo satildeo totalmente determinados por um sistema de regras autoacutenomo O que se faz de acordo com o sistema tem a forma das estipulaccedilotildees axiomaacuteticas e regras de operaccedilatildeo que o constituem Portanto a matemaacutetica eacute uma invenccedilatildeo formal E todo o enunciado que respeite a forma do sistema eacute passiacutevel de ser verdadeiro ao ter a possibilidade de ser provado com base em certos procedimentos de aplicaccedilatildeo das suas regras Para Victor Rodych ao juntar o caraacutecter sintaacutetico da matemaacutetica agrave sua ausecircncia de fundamento uma vez que a sua aplicaccedilatildeo eacute totalmente independente designadamente do mundo dos fenoacutemenos muito embora possa ser nele aplicaacutevel a filosofia da matemaacutetica de Wittgenstein do periacuteodo intermeacutedio caracteriza-se por um forte formalismo (cf RODYCH Victor Wittgenstein on Mathematical Meaningfulness Decidability and Application Notre Dame Journal of Formal Logic Volume 38 Number 2 1997 pp 199-203)
378 Se bem que a realidade empiacuterica natildeo sirva de fundamento agrave matemaacutetica na medida em que as suas proposiccedilotildees em nada dependem dela para serem verdadeiras ou falsas eacute contudo a matemaacutetica que fornece as normas que permitem a sua descriccedilatildeo quantitativa (cf SCHROEDER Severin ldquoMathematical Propositions as Rules of Grammarrdquo Grazer Philosophische Studien - International Journal for Analytic Philosophy Volume 89 Issue 1 2014 pp 26-29)
222
podemos afirmar sobre a realidade com base na sua aplicaccedilatildeo fosse a razatildeo essencial da
sua existecircncia como se a matemaacutetica adviesse realidade nessa aplicaccedilatildeo Ela natildeo eacute algo
que dispomos previamente tendo a sua aplicaccedilatildeo em vista cuja construccedilatildeo foi pensada
para todas as possibilidades de uso praacutetico correspondendo a sua estrutura loacutegica agrave do
mundo pela simples razatildeo de que ldquoO caacutelculo eacute a sua proacutepria aplicaccedilatildeordquo379 (BT 112 p
385) Por isso qualquer ponto de vista exterior agrave sua aplicaccedilatildeo eacute gramatical e como tal
daacute-nos tatildeo-somente conta das suas formas loacutegicas das formas de caacutelculo num sistema
O signo de uma regra eacute um signo de um caacutelculo como qualquer outro signo o seu trabalho natildeo eacute sugerir (uma aplicaccedilatildeo particular) mas ser usado no caacutelculo de acordo com um sistema380 (BT 133 p 470)
E quanto ao seu uso em questotildees praacuteticas ele baseia-se segundo Wittgenstein em
hipoacuteteses fiacutesicas completamente alheias ao caacutelculo (cf BT 112 p 382)
Esta conclusatildeo esbarra todavia com o senso comum de que os nuacutemeros
cardinais satildeo conceitos fundamentais da matemaacutetica e de que eles se explicam por
correspondecircncia a classes de objetos concretos com uma ou mais unidades Mas para o
filoacutesofo o nuacutemero natildeo eacute um conceito de que dependa a matemaacutetica pois as operaccedilotildees
aritmeacuteticas que realiza com nuacutemeros tambeacutem as realiza com outros conceitos natildeo
numeacutericos aleacutem disso as regras satildeo tudo o que eacute necessaacuterio como fundamento dos
nuacutemeros cardinais (cf BT 109 p 376) Eacute efetivamente o proacuteprio caacutelculo aritmeacutetico
que os justifica E como vimos ele eacute a sua proacutepria aplicaccedilatildeo e se aplicado em casos
praacuteticos concretos tal natildeo significa uma extensatildeo do caacutelculo senatildeo seguir as regras
gramaticais que instituem a aritmeacutetica (cf BT 112 pp 382-384) A aplicaccedilatildeo concreta
do caacutelculo natildeo cria um novo caacutelculo Assim quando por exemplo afirmamos que 2
maccedilas adicionadas a 2 maccedilas eacute igual a 4 maccedilas a igualdade que permite reconhecer a
regra de substituiccedilatildeo de laquo2 maccedilas + 2 maccedilasraquo por laquo4 maccedilasraquo eacute indiferente se aplicada a
maccedilas ou a qualquer outro tipo de objeto ndash eacute isto que significa que a aritmeacutetica eacute a sua
379 ldquoThe calculus is its own applicationrdquo (BT 112 p 385e) ldquoDer Kalkuumll ist seine eigene Anwendungrdquo (BT 112 p 385)
380 ldquoThe sign of a rule is a sign of a calculus like any other sign its job isnt to suggest (a particular application) but to be used in the calculus according to a systemrdquo (BT 133 p 470e) ldquoDas Zeichen einer Regel ist ein Zeichen eines Kalkuumlls wie jedes andere seine Aufgabe ist nicht suggestiv (auf eine Anwendung hin) zu wirken sondern im Kalkuumll nach einem System gebraucht zu werdenrdquo (BT 133 p 470)
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proacutepria aplicaccedilatildeo (cf BT 112 p 383) Por outro lado os nuacutemeros laquo2raquo e laquo4raquo encontram
o seu fundamento nas regras que os utilizam no caso na regra que firma a equaccedilatildeo laquo2 +
2 = 4raquo da mesma forma satildeo as regras que determinam o modo de contagem e caacutelculo
no aacutebaco russo natildeo obstante este natildeo usar numerais (cf BT 115 p 393) Aliaacutes como
jaacute referido o modo como se denota o caacutelculo eacute a natildeo ser por razotildees praacuteticas
irrelevante pois ele eacute constituiacutedo apenas pelas regras que segue as quais podem operar
com diferentes signos Mas Wittgenstein vai mais longe atendendo agrave total autonomia
do caacutelculo e a arbitrariedade das suas regras ele afirma ldquoPara mim um caacutelculo eacute tatildeo
bom quanto outrordquo381 (BT 116 p 400) fazendo notar que esta sua posiccedilatildeo distingue a
sua filosofia da aritmeacutetica da de outros autores que lhe satildeo contemporacircneos382
Eacute neste sentido que Wittgenstein compara a aritmeacutetica agrave geometria
O ponto da observaccedilatildeo de que a aritmeacutetica eacute um tipo de geometria eacute simplesmente que as construccedilotildees aritmeacuteticas satildeo autoacutenomas como as
381 ldquoFor me one calculus is as good as anotherrdquo (BT 116 p 400e) ldquoEiner ist fuumlr mich so gut wie der andererdquo (BT 116 p 400)
382 Esta sua posiccedilatildeo sobre os fundamentos da matemaacutetica e o sentido das suas proposiccedilotildees esteve na origem de duas posiccedilotildees filosoacuteficas distintas que advogam ser cada uma delas a proacutepria posiccedilatildeo de Wittgenstein A disputa entre elas foi inaugurada em 1963 com uma redefiniccedilatildeo de realismo proposta por Michael Dummett ldquo[] o realista sustenta que os significados das declaraccedilotildees da classe disputada natildeo estatildeo diretamente ligados ao tipo de evidecircncia que sobre eles possamos ter mas consistem no modo da sua determinaccedilatildeo como verdadeiros ou falsos por estados de coisas cuja existecircncia natildeo depende de termos evidecircncias dela O anti-realista insiste pelo contraacuterio que os significados dessas declaraccedilotildees estatildeo diretamente ligados ao que contamos como evidecircncia deles de tal maneira que uma declaraccedilatildeo da classe disputada se for de todo verdade pode ser verdadeira apenas em virtude de algo que poderiacuteamos conhecer e deveriacuteamos contar como evidecircncia da sua verdaderdquo ldquo[hellip] the realist holds that the meanings of statements of the disputed class are not directly tied to the kind of evidence for them that we can have but consist in the manner of their determination as true or false by states of affaires whose existence is not dependent on our possession of evidence for them The anti-realist insists on the contrary that the meanings of these statements are tied directly to what we count as evidence for them in such a way that a statement of the disputed class if true at all can be true only in virtue of something of which we could know and which we should count as evidence for its truerdquo (DUMMETT Michael Truth and Other Enigmas Duckworth London 1978 p 146) A posiccedilatildeo realista eacute identificada na matemaacutetica como sendo platonismo por defender uma realidade transcendente e independente de quem lhe faz referecircncia e das evidecircncias natildeo transcendentes a posiccedilatildeo anti-realista natildeo admite outra realidade que natildeo seja dada pela evidecircncia da necessidade loacutegica do sistema matemaacutetico Julgo ser aqui oportuno sublinhar que do meu ponto de vista qualquer tentativa de enquadrar convenientemente a filosofia da matemaacutetica de Wittgenstein natildeo deve ignorar como jaacute antes tiacutenhamos vistos a sua proximidade agrave visatildeo construtivista da matemaacutetica O formalismo e a autonomia do sistema na sua filosofia do periacuteodo de transiccedilatildeo parecem indicar que a matemaacutetica eacute uma construccedilatildeo humana uma convenccedilatildeo (Sobre as posiccedilotildees filosoacuteficas em confronto ver FRASCOLLA Pasquale ldquoRealism Anti-Realism Quietism Wittgensteinrsquos Stancerdquo Grazer Philosophische Studien - International Journal for Analytic Philosophy Volume 89 Issue 1 2014 pp 11-21 e MARION Mathieu ldquoWittgenstein and Antirealismrdquo in Hans‐Johann Glock and John Hyman (eds) A Companion to Wittgenstein Wiley Blackwell Oxford 2017 pp 332-345)
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geomeacutetricas e que portanto garantem sua aplicabilidade por assim dizer383 (BT 112 p 382)
A aplicaccedilatildeo a objetos espaciais das regras que determinam a geometria dos planos
linhas e pontos natildeo confirma nem infirma essas regras mas antes soacute evidecircncia a sua
proacutepria gramaacutetica a proposiccedilatildeo que descreve a geometria desses objetos faacute-lo de acordo
com regras gramaticais que natildeo respondem perante eles e por conseguinte eacute uma
proposiccedilatildeo de sintaxe (cf BT 114 p 391) Ora a aritmeacutetica tal como a geometria eacute
um sistema gramatical autoacutenomo384 que subsiste por si mesmo isto eacute que natildeo se
justifica senatildeo em si proacuteprio e portanto cuja aplicaccedilatildeo eacute o caacutelculo pelo caacutelculo Como
tal todas as expressotildees de caacutelculo natildeo necessitam de mais nada para serem relevantes
do que a prova da sua verificabilidade no sistema que as suporta isto eacute
[] algo como uma apresentaccedilatildeo da forma geral do meacutetodo para resolver problemas ndash digamos problemas de multiplicaccedilatildeo ndash que nos permite reconhecer a forma geral das proposiccedilotildees que torna possiacutevel verificar385 (BT 110 p 378)
Eacute o reconhecimento desta forma geral das proposiccedilotildees que permite saber que uma certa
proposiccedilatildeo matemaacutetica eacute suscetiacutevel de ser verificada antes mesmo de se proceder agrave sua
verificaccedilatildeo Contudo importa referir que este reconhecimento natildeo justifica o caacutelculo
que conteacutem essa certa proposiccedilatildeo (por exemplo 17 x 23 = 391) a qual se a isso
podemos designar de justificaccedilatildeo reside unicamente nas regras gramaticais que se
decide seguir (cf BT 110 p 379) Por outro lado a autonomia do sistema gramatical
pressupotildee que o seu sistema de regras seja consistente que as regras de que eacute feito natildeo
se contradigam umas agraves outras sob pena de ter de admitir-se que a estrutura gramatical
383 ldquoThe point of the remark that arithmetic is a kind of geometry is simply that arithmetical constructions are autonomous like geometrical ones and that therefore they guarantee their applicability themselves so to speakrdquo (BT 112 p 382e) ldquoDer Sinn der Bemerkung daszlig die Arithmetik eine Art Geometrie sei ist eben daszlig die arithmetischen Konstruktionen autonom sind wie die geometrischen und daher sozusagen ihre Anwendbarkeit selbst garantierenrdquo (BT 112 p 382)
384 ldquoPois a gramaacutetica eacute um caacutelculordquo ldquoFor grammar is a calculusrdquo (BT 116 p 409e) ldquoDenn die Grammatik ist ein Kalkuumllrdquo (BT 116 p 409)
385 ldquo[hellip] something like a presentation of the general form of the method for solving problems - say multiplication problems - which enables us to recognize the general form of the propositions it makes it possible to checkrdquo (BT 110 p 378e) ldquo[hellip] dann etwa eine Darstellung der allgemeinen Form der Loumlsungsmethode etwa der Multiplikationsaufgaben die die allgemeine Form der Saumltze erkennen laumlszligt deren Kontrolle sie moumlglich machtrdquo (BT 110 p 378)
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natildeo tem um fundamento loacutegico (cf BT 111 pp 380-81) Diz-nos o filoacutesofo que a
gramaacutetica da palavra laquoregraraquo natildeo admite que um conjunto de regras pertencentes a um
mesmo sistema se contradigam caso assim fosse essa palavra teria um significado
diferente e natildeo seria mais possiacutevel um sistema composto por um conjunto de regras E
quanto ao facto de que eacute possiacutevel vir-se a descobrir que um certo sistema gramatical
esconde em si axiomas ou regras que se relevam contraditoacuterias isso natildeo deve abalar o
sistema se mesmo assim for possiacutevel assegurar a sua consistecircncia com recurso a uma
outra regra que remova a contradiccedilatildeo (cf BT 111 pp 380-81)
O Sistema Determina as Provas Matemaacuteticas
Eacute o sistema gramatical que assegura inteiramente as provas de proposiccedilotildees
matemaacuteticas e ldquoPortanto natildeo eacute suficiente dizer lsquop eacute demonstraacutevel devemos dizer
demosntraacutevel de acordo com um sistema particularrdquo386 (BT 122 p 431) E ao provar-
se uma proposiccedilatildeo a sua negaccedilatildeo soacute eacute falsa na relaccedilatildeo com o sistema donde surtiu a
prova (BT 121 pp 427 e 429) Daiacute que as proposiccedilotildees natildeo satildeo hipoacuteteses a serem
testadas como o satildeo as hipoacuteteses cientiacuteficas pelos factos fiacutesicos A sua verificaccedilatildeo
empiacuterica natildeo constitui de modo algum uma prova da sua verdade387 Mas no entanto
tal como essas hipoacuteteses o que se pretende provar eacute agrave partida completamente
descritiacutevel segundo o sistema onde se insere (cf BT 119 p 421) O mesmo natildeo se pode
dizer da sua prova uma vez que soacute a podemos descrever com a sua descoberta388 Jaacute a
386 ldquoSo it is not enough to say p is provable we must say provable according to a particular systemrdquo (BT 122 p 431e) ldquoEs genuumlgt also nicht zu sagen p ist beweisbar sondern es muszlig heiszligen beweisbar nach einem bestimmten Systemrdquo (BT 122 p 431)
387 Enquanto nas proposiccedilotildees que descrevem a realidade eacute a sua experiecircncia imediata que serve para verificar se o seu sentido eacute verdadeiro ou falso nas proposiccedilotildees matemaacuteticas eacute o sistema onde elas se inserem que atraveacutes da possibilidade de provar de acordo com as suas regras a sua verdade ou falsidade lhes confere sentido Quando nos referimos ao sentido destes dois geacuteneros de proposiccedilotildees natildeo estamos portanto a falar do mesmo sentido ainda que ambos obedeccedilam a um princiacutepio de verificaccedilatildeo satildeo diferentes as condiccedilotildees de verificaccedilatildeo de cada um deles Uma vez que estas condiccedilotildees natildeo satildeo minimamente comparaacuteveis satildeo elas que conferem um sentido proacuteprio a cada um dos geacuteneros de proposiccedilotildees Assim se uma proposiccedilatildeo matemaacutetica eacute sem sentido por natildeo ser a expressatildeo de um pensamento ela tem sentido enquanto expressatildeo consistente com um sistema matemaacutetico agrave luz do qual inversamente a expressatildeo do pensamento eacute sem sentido (cf RODYCH Victor Wittgenstein on Mathematical Meaningfulness Decidability and Application pp 204-205)
388 Wittgenstein vem a defender para eliminar todo o elemento subjetivo da matemaacutetica que a descoberta de um procedimento de decisatildeo natildeo tem origem psicoloacutegica mas sim nas convenccedilotildees aceites pela comunidade (cf RODYCH Victor Wittgenstein on Mathematical Meaningfulness Decidability and Application pp 206-207)
226
proposiccedilatildeo a provar natildeo eacute descoberta mas como que construiacuteda pela sua prova na
medida em que esta lhe determina o seu sentido matemaacutetico e desse modo integra a
sua gramaacutetica Antes da sua laquoconstruccedilatildeoraquo poderemos ter apenas um vislumbre desse
sentido dado na linguagem corrente (Cf BT 121 pp 426 e 428) Poreacutem quando nos
questionamos sobre o seu sentido matemaacutetico isso soacute eacute possiacutevel porque conhecemos o
meacutetodo da sua procura pois ldquoSomente onde haacute um meacutetodo para uma soluccedilatildeo existe uma
questatildeo []rdquo389 (BT 122 p 430) Esse meacutetodo eacute dado pelo caacutelculo que correlaciona a
proposiccedilatildeo com a sua prova natildeo obstante existirem diversos geacuteneros de provas
matemaacuteticas (cf BT 121 p 429 e 124 p 437)390
O Wittgenstein do TS 213 centra a sua atenccedilatildeo em especial nas provas por
induccedilatildeo para ao destacar o seu papel na aritmeacutetica melhor distinguir nas provas
algeacutebricas a sua base em leis fornecidas pelo sistema No fundo o que se pretende eacute
esclarecer que provas matemaacuteticas permitem efetivamente afirmar a verdade ou
falsidade das proposiccedilotildees matemaacuteticas Um aspeto essencial da prova por induccedilatildeo eacute que
Uma lsquoproposiccedilatildeo da matemaacuteticarsquo que foi provada por induccedilatildeo natildeo eacute uma lsquoproposiccedilatildeorsquo no mesmo sentido em que eacute a resposta a uma questatildeo matemaacutetica a menos que se possa recorrer a essa induccedilatildeo num sistema de verificaccedilotildees391 (BT 120 p 423)
389 ldquoOnly where there is a method for a solution is there a question [hellip]rdquo (BT 122 p 430e) ldquoNur wo eine Methode der Loumlsung ist ist eine Frage [hellip]rdquo (BT 122 p 430)
390 O sentido sugerido pela proposiccedilatildeo matemaacutetica por provar emana do proacuteprio sistema com base no qual ela se forma Eacute a possibilidade de um meacutetodo de prova dado pelas regras do sistema que permite conhecer o seu sentido antes mesmo de se saber o que prova esse meacutetodo Ou seja natildeo eacute necessaacuterio saber se uma proposiccedilatildeo matemaacutetica eacute verdadeira ou falsa para a compreender eacute justamente a sua compreensatildeo que permite procurar no sistema pela sua prova Eacute o conhecimento do meacutetodo geral de prova que faz com todas as proposiccedilotildees que pertenccedilam a um dado sistema possam ter agrave partida sentido ainda que este possa vir a ser negado pela aplicaccedilatildeo do proacuteprio meacutetodo Por outro lado quando natildeo se sabe o sistema que sustenta uma certa proposiccedilatildeo matemaacutetica natildeo se conhece as regras de caacutelculo que se lhe aplica de modo a constituir-se um meacutetodo que a possa provar Nesta circunstacircncia nenhum sentido acompanha essa proposiccedilatildeo para que ela possa ser compreensiacutevel natildeo passando pois de uma mera conjetura matemaacutetica a precisar de um qualquer outro sistema que agrave sua luz a torne finalmente compreensiacutevel e objeto suscetiacutevel de aplicaccedilatildeo da lei do terceiro excluiacutedo (Cf FRASCOLLA Pasquale Wittgensteinrsquos Philosophy of Mathematics pp 60-70 RODYCH Victor ldquoMathematical Sense Wittgensteinrsquos Syntactical Structuralismrdquo in Herbert Hrachovec amp Alois Pichler (eds) Wittgenstein and the Philosophy of Information Proceedings of the 30th International Ludwig Wittgenstein-Symposium in Kirchberg 2007 Walter de Gruyter 2008 pp 95-96)
391 ldquoA lsquoproposition of mathematicsrsquo that has been proved by induction is not a lsquopropositionrsquo in the same sense as the answer to a mathematical question unless one can ask for this induction in a system of checksrdquo (BT 120 p 423e) ldquoDer Satz der Mathematik welcher durch eine Induktion bewiesen ist ndash so
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Sempre que se pergunta pela verdade de uma certa proposiccedilatildeo matemaacutetica como seja a
x b = b x a pode-se responder com a verificaccedilatildeo da sua verdade quando por exemplo
se constata que 25 x 64 = 160 e 64 x 25 = 160 Eacute deste modo que como verificaccedilatildeo de
uma proposiccedilatildeo algeacutebrica a prova indutiva eacute dela prova Mas eacute uma prova que natildeo faz
prova da sua universalidade verificar a sua verdade seja qual for o meacutetodo de
verificaccedilatildeo natildeo eacute provaacute-la (cf BT 126 p 444 e 128 p 449) O caacutelculo que se realiza
de acordo com o meacutetodo de verificaccedilatildeo apenas nos permite saber da viabilidade da
induccedilatildeo Contudo por mais que se verifique a verdade de uma proposiccedilatildeo por
combinaccedilatildeo particular de vaacuterias provas indutivas estas natildeo fazem dela prova392 A
questatildeo da universalidade natildeo estaacute em causa na prova indutiva o seu meacutetodo natildeo
permite concluir pela verdade ou falsidade de uma proposiccedilatildeo universal Tudo o que
pode afirmar de uma cadeia de equaccedilotildees que se calculam por induccedilatildeo eacute se a cadeia eacute
correta ou comprovada por estar de acordo com certas regras (cf BT 130 p 460)
Ora quando se procede por induccedilatildeo a provas recursivas elas mostram a
verificaccedilatildeo de equaccedilotildees algeacutebricas para aqueles nuacutemeros cardinais usados no seu
caacutelculo e parecem sugerir que se verificam igualmente para todo e qualquer nuacutemero
incluindo os que natildeo integraram ou nunca viratildeo a integrar o caacutelculo (quanto mais natildeo
seja por natildeo ser possiacutevel considerar todos os nuacutemeros) inferindo-se assim a natureza
geral dessas equaccedilotildees ldquo(Uma prova que transmite a ideia de que eacute assim que deve ser
com todos os nuacutemeros)rdquo393 (BT 129 p 452) Todavia quanto agrave inferecircncia
matemaacutetica Wittgenstein natildeo podia ser mais claro depois de dizer que na matemaacutetica
ao inveacutes da psicologia natildeo existem sintomas acrescenta ldquoNa matemaacutetica nada pode ser
inferido que natildeo possa ser vistordquo394 (BT 123 p 435) Logo a conclusatildeo eacute inevitaacutevel
aber daszlig man nach dieser Induktion nicht in einem System von Kontrollen fragen kann ndash ist nicht lsquoSatzrsquo in dem Sinne in welchem es die Antwort auf eine mathematische Frage istrdquo (BT 120 p 423)
392 Cf RODYCH Victor Wittgenstein on Mathematical Meaningfulness Decidability and Application pp 210-211
393 ldquo(A proof conveying the insight that lsquothats the way it must be with all numbersrsquo)rdquo (BT 129 p 452e) ldquo(Der uns die Einsicht vermittelt daszlig es mit allen Zahlen so gehen muszlig)rdquo (BT 129 p 452)
394 ldquoIn mathematics nothing can be inferred that cannot be seenrdquo (BT 123 p 435e) ldquoMan koumlnnte auch so sagen Es kann sich in der Mathematik nicht auf etwas schlieszligen lassen was sich nicht sehen laumlszligtrdquo (BT 123 p 435)
228
O conceito de generalidade (e de recursatildeo) usado nessas provas natildeo tem maior generalidade do que pode ser lido imediatamente dessas provas395 (BT 130 p 460)
E que fique claro que a generalidade apenas pode ser constituiacuteda pela prova de
generalidade (cf BT 134 p 474) Por outro lado as formas algeacutebricas calculadas em
nuacutemeros expressam o caacutelculo algeacutebrico mas natildeo justificam as proacuteprias formas
Significa isto que as regras que justificam os caacutelculos aritmeacuteticos natildeo servem para
provar os caacutelculos algeacutebricos O sistema de provas recursivas natildeo se desenvolve no
interior do sistema de provas algeacutebricas Daiacute que as leis matemaacuteticas natildeo sofram
reduccedilotildees por efeito das provas indutivas O que a prova recursiva prova eacute afinal o
termo geral de uma seacuterie de provas ou seja a forma ou padratildeo segundo o qual se rege o
fluxo de provas396 (cf BT 130 p 462 131 p 464 e 133 p 468)
Em suma em aacutelgebra as provas indutivas natildeo substituem as leis matemaacuteticas
com base nas quais se procede a operaccedilotildees com letras
Eacute claro que a prova recursiva lida essencialmente com nuacutemeros Mas de que me servem eles para mim se eu quiser operar puramente de forma algeacutebrica Ou ainda A prova recursiva soacute deve ser usada se eu quiser justificar com ela um passo num caacutelculo numeacuterico397 (BT 135 p 480)
Mais as leis algeacutebricas como a lei associativa natildeo satildeo usadas nos caacutelculos numeacutericos
A natildeo ser quando se procura verificar se estes caacutelculos confirmam leis algeacutebricas e aiacute
parece levantar-se uma ponte entre a aacutelgebra e a aritmeacutetica (cf BT 135 p 481) E de
facto assim parece ser sempre que os caacutelculos algeacutebricos se afiguram seguir as regras
de caacutelculo aritmeacutetico Todavia Wittgenstein alerta-nos ldquoE mesmo quando a aacutelgebra usa
395 ldquoThe concept of generality (and of recursion) used in these proofs has no greater generality than can be read immediately from these proofsrdquo (BT 130 p 460e) ldquoDer Begriff der Allgemeinheit (und der Rekursion) der in diesen Beweisen gebraucht wird ist nicht allgemeiner als er aus diesen Beweisen unmittelbar herauszulesen istrdquo (BT 130 p 460)
396 Cf FRASCOLLA Pasquale Wittgensteinrsquos Philosophy of Mathematics pp 72 e 74-78
397 ldquoOf course the recursive proof deals essentially with numbers But of what concern are they to me if I want to operate purely algebraically Or again The recursive proof is only to be used if I want to justify a step in a number-calculation with itrdquo (BT 135 p 480e) ldquoDer Rekursionsbeweis hat es ndash natuumlrlich ndash wesentlich mit Zahlen zu tun Aber was gehen mich die an wenn ich rein algebraisch operieren will Oder Der Rekursionsbeweis ist nur dann zu benuumltzen wenn ich durch ihn einen Uumlbergang in einer Zahlenrechnung rechtfertigen willrdquo (BT 135 p 480)
229
notaccedilatildeo aritmeacutetica eacute um caacutelculo totalmente diferente e natildeo pode ser derivado do
caacutelculo aritmeacuteticordquo398 (BT 135 p 480) A prova de uma proposiccedilatildeo algeacutebrica natildeo pode
ser feita por verificaccedilatildeo recursiva com base em caacutelculos aritmeacuteticos por natildeo ser
possiacutevel a esses caacutelculos substituir-se para esse efeito ao caacutelculo algeacutebrico As provas
por induccedilatildeo natildeo servem de provas algeacutebricas uma vez que natildeo eacute possiacutevel atraveacutes delas
concluir pela universalidade de uma proposiccedilatildeo algeacutebrica Os caacutelculos recursivos
impotildeem a qualquer momento a inferecircncia conjetural para generalizar uma tal
proposiccedilatildeo Poreacutem a induccedilatildeo natildeo estaacute compreendida nas regras de caacutelculo algeacutebrico e
soacute o que estaacute de acordo com esse caacutelculo serve para demonstrar uma proposiccedilatildeo
algeacutebrica A sua prova funciona segundo caacutelculos dedutivos Por tudo isto somente nas
proposiccedilotildees algeacutebricas se pode chegar a elas num encadeamento de regras que as
provam ou natildeo Daiacute estas proposiccedilotildees terem um tipo de generalizaccedilatildeo que as aritmeacuteticas
natildeo podem verificar (cf BT 136 pp 487-488)
O Sistema eacute Algoriacutetmico
Em matemaacutetica nada mais haacute do que os resultados de puros caacutelculos que
Wittgenstein considera equivalentes aos seus processos (cf BT 136 p 487) Os
algoritmos constituem completamente a matemaacutetica como sistema gramatical399 Os
nuacutemeros por exemplo tecircm o sentido que lhes eacute conferido pelo sistema de nuacutemeros
sendo que as suas propriedades satildeo resultados algoriacutetmicos que natildeo se podem de outro
modo antecipar (cf BT 136 pp 485 e 487) Assim todos os nuacutemeros que verificam
uma regra geral como eacute o caso dos nuacutemeros primos soacute se ficam a saber uma vez dela
derivados Aqui a palavra laquotodosraquo ou laquototalidaderaquo refere-se agravequeles nuacutemeros suscetiacuteveis
dela serem derivados e natildeo pressupotildee que se saiba quais satildeo esses nuacutemeros qual eacute a sua
extensatildeo Eacute apenas uma referecircncia geral que eacute ela mesma um signo com que operam os
algoritmos Do mesmo modo a regra de periodicidade de uma fraccedilatildeo como seja 1 divide 3
398 ldquoAnd even when algebra uses arithmetical notation its a totally different calculus and it canacutet be derived from the arithmetical onerdquo (BT 135 p 480e) ldquoUnd die Algebra auch wenn sie sich der arithmetischen Notation bedient ist ein ganz anderer Kalkuumll und nicht aus dem arithmetischen abzuleitenrdquo (BT 135 p 480)
399 Mas satildeo as regras sob a forma de proposiccedilotildees matemaacuteticas que determinam os algoritmos de acordo com certos procedimentos de decisatildeo Severin Schroeder sugere que para Wittgenstein as proposiccedilotildees matemaacuteticas satildeo regras gramaticais se entendermos por gramaacutetica o que na atividade matemaacutetica ou no seu discurso decide o que tem sentido ou falta dele (cf SCHROEDER Severin ldquoMathematical Propositions as Rules of Grammarrdquo p 35)
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natildeo eacute um substituto para a sua extensatildeo mas um signo por direito proacuteprio (cf BT 132
p 466) A sua periodicidade natildeo aponta para uma extensatildeo decimal infinita mas antes
mostra um padratildeo que se repete de forma permanente e que se constitui como signo E
tal como a periodicidade a ldquo[] recursatildeo nada mostra aleacutem de si proacutepria []rdquo400 (BT
129 p 453) algo que se repete um assim sucessivamente que na prova recursiva eacute
dado por um termo geral de uma seacuterie de provas (cf BT 133 p 468)
A visatildeo da matemaacutetica como sistema algoriacutetmico rejeita a ideia de que laquotodosraquo
ou laquototalidaderaquo e laquoinfinitoraquo sejam conceitos que se refiram a extensotildees numeacutericas
impossiacuteveis de abarcar ou alcanccedilar como se essa impossibilidade fosse loacutegica
Aqui o que eacute chamado de lsquoimpossibilidade loacutegicarsquo estaacute sendo confundido com a impossibilidade fiacutesica Pois achamos que damos um sentido agrave expressatildeo verificando a exatidatildeo de todos os termos do produto infinito porque tomamos a expressatildeo lsquoinfinitamente muitosrsquo como designando um nuacutemero extremamente grande E quando ouvimos falar da lsquoimpossibilidade de verificar um nuacutemero infinito de proposiccedilotildeesrsquo temos em mente a impossibilidade de verificar um grande nuacutemero de proposiccedilotildees digamos quando natildeo temos tempo suficiente401 (BT 136 p 484)
Em matemaacutetica estes signos natildeo tecircm extensatildeo nem tecircm nada que ver com o tempo e o
espaccedilo Natildeo haacute nada por vir num caacutelculo tudo nele estaacute jaacute presente ele natildeo opera com
signos que satildeo possibilidades numeacutericas ldquo[] um caacutelculo natildeo diz de nenhum signo que
ele eacute meramente possiacutevel []rdquo402 (BT 137 p 495) Enfim estes signos natildeo satildeo
numeacutericos
400 ldquo[] recursion shows nothing but itself [hellip]rdquo (BT 129 p 453e) ldquo[hellip] Rekursion in Wahrheit nur sich selber zeigt [hellip]rdquo (BT 129 p 453)
401 ldquoHere what is called lsquological impossibilityrsquo is being confused with physical impossibility For we think we have given a sense to the expression lsquochecking the correctness of all terms of the infinite productrsquo because we take the expression lsquoinfinitely manyrsquo as designating an enormously large number And when we hear of lsquothe impossibility of checking an infinite number of propositionsrsquo we have in mind the impossibility of checking a very large number of propositions say when we dont have enough timerdquo (BT 136 p 484e) ldquoHier wird logische mit physischer Moumlglichkeit verwechselt Denn dem Ausdruck alle Glieder des unendlichen Produktes auf ihre Richtigkeit pruumlfen glaubt man Sinn gegeben zu haben weil man das Wort unendlich viele fuumlr die Bezeichnung einer riesig groszligen Zahl haumllt Und bei der Unmoumlglichkeit die unendliche Zahl von Saumltzen zu pruumlfen schwebt uns die Unmoumlglichkeit vor eine sehr groszlige Anzahl von Saumltzen zu pruumlfen wenn wir etwa nicht die noumltige Zeit habenrdquo (BT 136 p 484)
402 ldquo[hellip] a calculus does not say of any sign that is merely possible [hellip]rdquo (BT 137 p 495e) ldquo[hellip] der Kalkuumll sagt von keinem Zeichen daszlig es nur moumlglich waumlre [hellip]rdquo (BT 137 p 495)
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E uma lsquoclasse infinitarsquo natildeo eacute uma classe que conteacutem mais membros do que uma finita no sentido comum da palavra lsquomaisrsquo E se dissermos que um nuacutemero infinito eacute maior que um nuacutemero finito isso natildeo torna os dois comparaacuteveis porque nessa afirmaccedilatildeo a palavra lsquomaiorrsquo tem um significado diferente do que tem digamos na proposiccedilatildeo lsquo5 eacute maior do que 4rsquo403 (BT 137 p 491)
A laquoclasse infinitaraquo e a laquoclasse finitaraquo satildeo apenas categorias loacutegicas diferentes com que
se opera no caacutelculo matemaacutetico tendo cada uma delas as suas proacuteprias regras de uso O
natildeo reconhecimento deste facto pela teoria dos conjuntos de Cantor leva Wittgenstein a
criticaacute-la veementemente
Quando a teoria dos conjuntos apela para a impossibilidade humana de uma simbolizaccedilatildeo direta do infinito ela introduz a mais grosseira que se possa imaginar interpretaccedilatildeo errada do seu proacuteprio caacutelculo404 (BT 137 p 495)
Passa-se algo de semelhante com os nuacutemeros irracionais que consistem em
fraccedilotildees decimais indefinidas isto eacute com uma expansatildeo infinita decimal A habitual
conceccedilatildeo por extensatildeo dos nuacutemeros racionais leva agrave consideraccedilatildeo dos nuacutemeros
irracionais como fazendo igualmente parte dessa mesma conceccedilatildeo
A conceccedilatildeo incorreta da palavra lsquoinfinitorsquo e do papel da lsquoexpansatildeo infinitarsquo na aritmeacutetica dos nuacutemeros reais leva-nos a pensar que haacute uma notaccedilatildeo uniforme
403 ldquoAnd an lsquoinfinite classrsquo is not a class that contains more members than a finite one in the ordinary sense of the word lsquomorersquo And if we say that an infinite number is greater than a finite one that doesnt make the two comparable because in that statement the word lsquogreaterrsquo has a different meaning that it has say in the proposition lsquo5 is greater than 4rsquordquo (BT 137 p 491e) ldquoUnd es ist nicht die unendliche Klasse eine Klasse die mehr Glieder im gewoumlhnlichen Sinn des Wortes mehr enthaumllt als die endlichen Und wenn man sagt daszlig eine unendliche Zahl groumlszliger ist als eine endliche so macht das die beiden nicht vergleichbar weil in dieser Aussage das Wort groumlszliger eine andere Bedeutung hat als etwa im Satz 5 groumlszliger als 4rdquo (BT 137 p 491)
404 ldquoWhen set theory appeals to the human impossibility of a direct symbolization of the infinite it thereby introduces the crudest imaginable misinterpretation of its own calculusrdquo (BT 137 p 495e) ldquoDie Mengenlehre wenn sie sich auf die menschliche Unmoumlglichkeit eines direkten Symbolismus des Unendlichen beruft fuumlhrt dadurch die denkbar krasseste Miszligdeutung ihres eigenen Kalkuumlls einrdquo (BT 137 p 495)
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para os nuacutemeros irracionais (ou seja a notaccedilatildeo da extensatildeo infinita por exemplo de fraccedilotildees decimais infinitas)405 (BT 138 p 498)
Contudo a natureza algoriacutetmica da matemaacutetica determina a falsidade dessa conceccedilatildeo e
na verdade que eles satildeo duas categorias loacutegicas de nuacutemeros diferentes e cada uma delas
diferentes ainda da dos nuacutemeros cardinais
No que diz respeito aos nuacutemeros irracionais a minha investigaccedilatildeo diz apenas que eacute incorreto (ou enganoso) falar de nuacutemeros irracionais contrastando-os como um tipo de nuacutemero com nuacutemeros cardinais e nuacutemeros racionais porque os chamados lsquonuacutemeros irracionaisrsquo satildeo na verdade diferentes tipos de nuacutemeros ndash tatildeo diferentes um do outro quanto os nuacutemeros racionais satildeo diferentes de cada um desses tipos406 (BT 139 p 502)
Nenhum nuacutemero racional finito eacute idecircntico a um nuacutemero irracional Um nuacutemero
irracional como eacute o caso de π ou radic2 distingue-se especificamente por ter uma
expansatildeo infinita decimal irregular e portanto sem que essa expansatildeo obedeccedila a um
termo geral ou lei Neste sentido as regras de uso destes nuacutemeros natildeo satildeo as mesmas
dos nuacutemeros racionais Poreacutem apesar dos nuacutemeros irracionais terem casas decimais
infinitas as suas regras de uso permitem sempre chegar a resoluccedilotildees finitas como aliaacutes
acontece sempre com todas os caacutelculos matemaacuteticos que operam de algum modo com
a categoria loacutegica laquoinfinitoraquo (cf BT 140 p 504)
Importa finalmente enfatizar que aleacutem dos algoritmos constituiacuterem a
matemaacutetica eles natildeo tecircm significado (cf BT 137 p 494) Por essa razatildeo natildeo obstante
uma proposiccedilatildeo matemaacutetica tenha o sentido dado pela sua demonstraccedilatildeo na medida em
405 ldquoThe incorrect conception of the word lsquoinfinitersquo and of the role of lsquoinfinite expansionrsquo in the arithmetic of the real numbers seduces us into thinking that there is a uniform notation for irrational numbers (namely the notation of the infinite extension eg of infinite decimal fractions)rdquo (BT 138 p 498e) ldquoDurch die falsche Auffassung des Wortes unendlich und der Rolle der unendlichen Entwicklung in der Arithmetik der reellen Zahlen wird man zu der Meinung verfuumlhrt es gaumlbe eine einheitliche Notation der irrationalen Zahlen (naumlmlich eben die der unendlichen Extension zB der unendlichen Dezimalbruumlche)rdquo (BT 138 p 498)
406 ldquoAs far as the irrational numbers are concerned my investigation says only that it is incorrect (or misleading) to speak of irrational numbers by contrasting them as a type of number with cardinal numbers and rational numbers because what are called lsquoirrational numbersrsquo are actually different types of numbers - as different from each other as the rational numbers are different from each of these typesrdquo (BT 139 p 502e) ldquoWas die irrationalen Zahlen betrifft so sagt meine Untersuchung nur daszlig es falsch (oder irrefuumlhrend) ist von Irrationalzahlen zu sprechen indem man sie als Zahlenart den Kardinalzahlen und Rationalzahlen gegenuumlberstellt weil man Irrationalzahlen in Wirklichkeit verschiedene Zahlenarten nennt ndash voneinander so verschieden wie die Rationalzahlen von jeder dieser Artenrdquo (BT 139 p 502)
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que ela consiste no seu modo particular de prova de atribuiccedilatildeo de signos esta como
algoritmo nada significa (cf BT 136 p 488) Ou seja a verdade atestada pela
demonstraccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo eacute vazia de significado O sistema gramatical da
matemaacutetica concede atraveacutes da prova das suas proposiccedilotildees a verdade ou a falsidade
mas natildeo afirma nem nega qualquer sentido que natildeo seja matemaacutetico As proposiccedilotildees
matemaacuteticas satildeo deste modo desprovidas do sentido que se constitui por relaccedilatildeo com a
realidade
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Capiacutetulo 12 ndash O Pensamento Religioso
No final desse conciliaacutebulo um velho gritou subitamente ldquoDe manhatilde quando vier o Sol vamos sair das cabanas cuspir nas matildeos e estendecirc-las para o Solrdquo [] Perguntei o que significava aquilo porque eacute que o faziam porque eacute que sopravam ou cuspiam nas matildeos Em vatildeo ndash ldquosempre fizemos istordquo diziam Era impossiacutevel receber qualquer explicaccedilatildeo e tive a noccedilatildeo clara de que efetivamente eles soacute sabem que o fazem mas natildeo o que fazem Mas tambeacutem noacutes realizamos cerimoacutenias ndash acendemos a aacutervore de Natal escondemos ovos da Paacutescoa etc ndash sem ter uma consciecircncia clara do que fazemos407 Na verdade eacute importante que eu tambeacutem tenha que laquodarr meraquo apropriar do desprezo dos outros por mim como uma parte essencial e significativa do mundo visto do meu lugar408
O Pensamento Explicativo natildeo Fundamenta a Verdade
A filosofia de Wittgenstein recordemo-nos eacute uma terapia dos usos da
linguagem que satildeo sem-sentido isto eacute daquilo que natildeo se pode pensar mas que o
sentimento assistido pela vontade nos leva a pensar Uma terapia do ldquo[] caraacutecter
perturbador da falta de clareza gramatical)rdquo409 (BT 87 p 302) Mas a sua eficaacutecia
depende do reconhecimento do erro e de que somente o sentimento nos leva agrave
contradiccedilatildeo de pensar o impensaacutevel Deste ponto de vista Wittgenstein procura com a
sua filosofia o que ele mesmo observa na abertura das Observaccedilotildees Sobre o ldquoRamo
Douradordquo de Frazer (RFGB)
Deve-se comeccedilar pelo erro e convertecirc-lo agrave verdade
407 JUNG Carl Gustav Memoacuterias Sonhos Reflexotildees [Tiacutetulo original Erinnerungen Traume Gedanken (1962)] Traduccedilatildeo do alematildeo de Antoacutenio de Sousa Ribeiro Reloacutegio DrsquoAacutegua Editores Lisboa 2019 p 267
408 RFGB p 51 ldquoJa es ist wichtig dass ich auch die Verachtung des Andern fuumlr mich darr mir zu eigen machen muss als einen wesentlichen und bedeutsamen Teil der Welt von meinem Ort gesehenrdquo (RFGB p 50) ldquoIt is indeed important that I must also make my own the contempt that anyone may have for me as an essential and significant part of the world as seen by merdquo (RFGB p 135)
409 ldquo([hellip] upsetting character of grammatical unclarity)rdquo (BT 87 p 302e) ldquo([hellip] aufregende Charakter der grammatischen Unklarheit)rdquo (BT 87 p 302)