a filosofia de deleuze
Post on 24-Jul-2015
155 Views
Preview:
TRANSCRIPT
A FILOSOFIA DE DELEUZE
Luiz B. L. OrlandiUnicamp e Puc-SP
Índice
I. O filósofo e seu tempo..........................................................................2
II. A filosofia de Deleuze..........................................................................5
A experiência dos encontros ...................................................
Sentir e pensar nos encontros.................................................
Sentir e pensar de outro modo nos encontros........................
A intensificação nos encontros...............................................
A disparação intensiva nos encontros....................................
A proliferação intensiva..........................................................
Como percorrer os encontros conceituais deleuzeanos?.....
Ética dos encontros..................................................................
III. Dez conceitos........................................................................................22
Atual e virtual...........................................................................
Complicação..............................................................................
Corpo..........................................................................................
Corpo sem órgãos......................................................................
Devir............................................................................................
Hecceidade..................................................................................
Linha de fuga..............................................................................
Multiplicidade............................................................................
Plano de imanência....................................................................
Síntese disjuntiva........................................................................
IV. Percursos e influências..........................................................................26
V. Bibliografia..............................................................................................30
VI. Dados a respeito do autor do ensaio......................................................32
* * *
1
I. O filósofo e o seu tempo
Gilles Deleuze nasceu em Paris no dia 18 de janeiro de 1925, às 2:45. Recordando a
infância 1, diz que sua mãe era “a melhor das mulheres” e que seu pai, engenheiro, era um
“homem delicado, benevolente e charmoso”. Por ser proprietário de uma empresa de
impermeabilização de telhas, diz-se que a família era burguesa e apavorada com a corrosão
financeira dos anos 30: à crise econômica, somavam-se as medidas populares tomadas pelo
Front Populaire (1936-1937). Enfraquecido seu próprio negócio, o pai passou a trabalhar
para outra empresa. Nessa tensa atmosfera, marcada por lutas sociais, reacionarismo, anti-
semitismo e guerra é que Gilles vivia sua infância, assim como seu irmão, Georges
Deleuze, um pouco mais velho que ele. A respeito do irmão, Gilles mostra-se discretíssimo
nas entrevistas. Mas, sem dúvida, o destino de Georges trouxe para muito perto de Gilles
uma dor que se espalha com a invasão nazista: é que Georges, cursando o secundário no
Liceu Carnot, em Paris, e participando, como outros jovens, do movimento de Resistência,
foi preso e morto no trem que o conduzia ao campo de concentração de Auschwitz.
A ocupação nazista já provocara no adolescente Gilles uma descoberta: “deixei de
ser idiota”, diz. É que, crescendo numa família “inculta” e sendo um “jovem extremamente
medíocre” nos primeiros anos escolares, “sem interesse algum”, sua oportunidade de
“acordar” dependia da complexidade de outros encontros, como ainda conceituará sua
filosofia. Esse acordar não ficou só na oposição aos intoleráveis. Por exemplo, à beira-mar,
em Deauville, onde, por um tempo, os meninos ficaram sob os cuidados de uma dona de
pensão, foi-lhe “marcante” ver pessoas que olhavam o mar pela primeira vez, imersas na
experiência do “prodigioso”, do “esplêndido”, do “inimaginável”, do “sublime e
grandioso”. Admirou uma “jovem de Limousin” contemplando o mar durante horas. Tanto
esse ver que vê Visões quanto o ouvir que ouve Audições precisa dos outros. “Quando se é
acordado num certo momento, a gente é acordado por alguém”, diz ele ao recordar a bela
voz com que Pierre Halbwachs, então professor em Deauville, lia com entusiasmo aos
1 As anotações entre aspas são extraídas das letras E (Enfance – Infância), F (Fidélité – Fidelidade) e P (Professeur – Professor) de “L’Abécédaire de Gilles Deleuze”, entrevista a Claire PARNET realizada por P. A. Boutang em 1988 e transmitida em série televisiva a partir de novembro de 1995 pela TV-ART, Paris: Vídeo Edition Montparnasse, 1996. Sobre o esquerdismo de Deleuze, ver letra G (Gauche – Esquerda).
2
alunos, e a ele em particular, textos de Baudelaire, de Anatole France, de Gide... encontros
que lhe abriram o mundo da literatura e o impressionaram enormemente 2.
Descobre a filosofia nas aulas do professor Vial, em 1943, no Liceu Carnot, naquela
Paris invadida 3. Ouviu que havia “coisas estranhas”, os conceitos, as idéias de Platão, e isto
lhe pareceu “muito vivo”, “animado”, algo que era “para mim”, diz. Desde então, nunca
mais teve problemas escolares: em letras e filosofia, “tornei-me muito bom aluno”. Entre
1944 e 1948, cursou filosofia na Sorbonne. Admirava seus professores e ganhava novos
amigos 4. Nessa Paris da Libertação, aos 22 anos, em 1947, sob a direção de Hippolyte e
Canguilhem, Deleuze obtém seu Diploma de Estudos Superiores sobre David Hume (1711-
1776), estudo que ganhará excepcional acolhida acadêmica 5. Em 1948, passa pelo
concurso que lhe dá o direito de ensinar história da filosofia no secundário e na
universidade. Neste momento, Jean-Paul Sartre (1905-1980) traz a ele novos ares e novas
maneiras de pensar 6. Entre 1948 e 1957, lecionou no Liceu de Amiens (uma “cidade
livre”), no de Orléans (uma “cidade severa”) e no Louis-le-grand em Paris. Depois, e já
casado com Fanny (Denise Paule) Grandjouan em 1956 7, torna-se assistente na Sorbonne
em história da filosofia entre 1957 e 1960, e pesquisador ligado ao Centro Nacional de
Pesquisas Científicas (CNRS) até 1964; ensina na Faculdade de Lyon entre 1964 e 1969.
É admirável sua capacidade de trabalho nesses anos 8. No intervalo dessas obras, em
1962, teve seu primeiro encontro com Michel Foucault (1924-1984). Considerava-o o
maior pensador atual, o maior filósofo moderno, dedicando-lhe o livro Foucault (1986).
2 Dois anos antes de sua morte, Deleuze diz que a literatura, atravessada por uma vida, pode levar a linguagem a uma “reviravolta”, a um “limite”, a um “fora ou a um avesso que consiste em Visões e Audições que já não pertencem a língua alguma” e que “não são fantasmas, mas Idéias que o escritor vê e ouve nos interstícios, nos desvios de linguagem”. Cf. “A literatura e a vida »” (1993), em Critique et clinique (1993). 3 Ele vê que há os indiferentes à situação política, que há os partidários do governo que se rendeu à Alemanha nazista em 1940; mas ele também sente a presença dos “jovens resistentes”, os rumores que espalham a história de Guy Moquet, fuzilado em 1941 pelos ocupantes; e no ano seguinte, em 1944, sentirá os rumores que comunicam o massacre praticado pelos nazistas na cidade de Oradour-sur-Glane vitimando mais de 600 civis no dia 10/06/1944, incluindo mulheres e crianças. 4 Professores como Ferdinand Alquié, Georges Canguilhem, Maurice de Gandillac, Jean Hippolyte. Além dos amigos que já tinha (Michel Tournier e os irmãos Claude e Jacques Lanzmann), ganha outros, como Michel Butor, Olivier Revault d’Allones, Jean-Pierre Bamberger e François Châtelet, a quem homenageará com o livro Péricles e Verdi – A filosofia de François Châtelet (1988).5 Empirismo e subjetividade (1953).6 Ver « Il a été mon maître » (1964), em A Ilha deserta (2002).7 Os filhos Julien Deleuze e Emilie Deleuze nascem em 1960 e 1964, respectivamente.8 Além de dois importantes artigos sobre Bergson na década de 50, publica Nietzsche e a filosofia (1962), A filosofia crítica de Kant (1963), a primeira edição de Proust e os signos (1964; a 2ª ed. virá em 1976), o pequeno Nietzsche (1965), O Bergsonismo (1966) e Apresentação de Sacher-Masoch (1967).
3
Ambos reformularam o modo de pensar a relação dos intelectuais com o poder. Unia-os
forte admiração mútua, raríssimo exemplo de fecunda ligação de diferenças intelectuais
entre pensadores vivos 9. A partir de 1969 até sua aposentadoria em 1987, Deleuze sentiu-
se um professor feliz ao ministrar, na Universidade de Paris VIII-Vincennes, cursos que se
tornaram famosos, muitos dos quais correm pela Internet.
Seja nas obras já referidas, seja nos cursos, Deleuze já impunha sua maneira própria
de mover-se em estudos filosóficos e literários. Mas a prova disso é incontestável em
Diferença e repetição (1968), a obra que estabelece com exaustivo rigor a problemática de
uma filosofia da diferença, prova secundada de um modo disciplinado por Espinosa e o
problema da expressão (1968), e, de um modo livre, por Lógica do sentido (1969), além do
pequeno Espinosa (1970), ampliado em Espinosa – Filosofia prática (1981).
Antes dessa ampliação, e já com os devires colhidos nos encontros de Maio de
1968, temos a veemente radicalização dessa filosofia em obras que contaram com a
importantíssima colaboração de Félix Guattari (1930-1992), e que ressoam nos mais
variados campos culturais: O Anti-Édipo (1972), Mil platôs (1980) e O que é a filosofia?
(1991), três grandes e distintos movimentos da série Capitalismo e Esquizofrenia.
Salientemos ainda o bloco de obras que dão testemunho dos encontros que Deleuze
intensificou entre filosofia e artes 10, assim como o das obras que coletam diálogos,
entrevistas e artigos escritos ao longo de uma vida filosófica e eticamente atenta ao seu
mundo 11.
Mas quando o corpo, doente, já não pode reiterar a vitalidade dos encontros, uma
velha tarefa grita sua urgência: a de conceber a própria morte e afirmar alguma potência
num lance final. Deleuze suicida-se em Paris no dia 4 de novembro de 1995 12.
* * *
9 Para avaliar o alcance desse respeito mútuo, cf. também Michel Foucault, “Theatrum philosophicum”, Paris: Critique, novembro de 1970, nº 282, republicado, primeiramente, em M. Foucault, Dits et Écrits, Paris: Gallimard, 1994, tomo II, texto 80, pp. 75-99, e, depois, no cinqüentenário daquela revista: Critique, agosto-setembro de 1996, nº 591-592, pp. 703-726.10 Além dos referidos Proust e Sacher-Masoch, temos: Kafka – Por uma literatura menor (com Guattari – 1975), Superpositions (com Carmelo Bene – 1979), Francis Bacon: Lógica da sensação (1984), Cinema 1. A imagem-movimento (1983), Cinema 2. A imagem-tempo (1985). Por que não incluir A dobra. Leibniz e o Barroco (1988)? E por que não Péricles e Verdi (1988)? Incluo O esgotado (1992) e Crítica e clínica (1993).11 Diálogos (com Claire Parnet – 1977 e 2ª ed. 1996), Conversações – 1972-1990 (1990), A Ilha deserta e outros textos 1953-1974 (2002) e Dois regimes de loucos – 1975-1995 (2003).12 Sobre homenagens póstumas, ver Cadernos de Subjetividade, São Paulo: Educ, nº especial, Gilles Deleuze (Org. por Peter Pál Pelbart e Suely Rolnik), junho de 1996.
4
II. A filosofia de Deleuze
A experiência dos encontros
No conjunto dos seus escritos, entrevistas e aulas, Deleuze consolidou
conceitualmente uma determinada filosofia da experiência: a experiência da
complexidade dos encontros. Do abstrato ponto de vista dos ismos, essa filosofia não
se define como um “empirismo” vulgar e nem como um “dogmatismo”, pois ela quer
evitar tanto o “erro” empirista de “deixar exterior o separado” quanto o erro dogmático
de “sempre preencher o que separa”. O que ela quer assinalar é “o ponto ‘crítico’ em
que a diferença, como diferença, exerce a função de reunir” É no sentido de um
diferencial capaz de reunir heterogêneos que ela se define como “empirismo
transcendental” 13. Se acharmos que uma tal filosofia complica as coisas, ela nos
responderá que a complicação já está nos próprios encontros. Em nossos estados de
vivência comum, nesses estados de não-filosofia, sentimos que uma admiração, um
espanto ou um susto em face de algo é uma experiência complexa que nos lança para
dimensões não contidas nesse algo, mas que nele insistem.
Todo encontro ordinário está exposto a uma reviravolta instantânea que pode
projetar tudo para fora dos eixos. É como se a própria vida se sentisse abalada por esse
vinco em que uma experiência ordinária é dobrada junto a outra, a extraordinária.
Pressentimos que a efetiva complexidade da experiência dos encontros depende do que
se passa nessa dobra, razão pela qual manteremos nosso ânimo aberto à sua
explicitação. Cada um sente e exprime a seu modo essa ocorrência simultânea de
linhas divergentes, a estranha dobradura na qual os juntados experimentam seu próprio
vínculo como sendo aquilo que os lança num tempo fora dos eixos: o fantasma que
aparece a Hamlet, revelando que sua mãe e seu tio assassinaram seu pai, é um lance
complicando sua situação, a sensação de um eu rachado e de um tempo que não se
reconcilia consigo mesmo. É o que diz a singular expressão de Shakespeare: “o tempo
está fora dos gonzos” 14. Deleuze leva esta e outras “fórmulas poéticas” ao encontro de
subversões kantianas. Neste caso, a subversão consiste em pensar o tempo como
“forma autônoma”, forma “imutável da mudança e do movimento”, a forma pura da
determinação pela qual o eu penso determina o eu sou. Com isso, esse “eu” ganha a
13 Différence et repetition, pp. 221 e 187. Tr. br. : 1ª ed., pp. 278-279 e 237 ; 2ª ed., pp. 244 e 209. 14 Shakespeare, Hamlet, I, 5 (“The time is out of joint”).
5
rachadura que não se nota na fórmula cartesiana do cogito: “penso, logo existo” 15. É
a complexidade da experiência pedindo passagem.
Por que esse flerte com uma subversão kantiana? Quando Deleuze cria ou
apreende uma ressonância como essa entre Hamlet e Kant, vemos que a complexidade
da experiência dos encontros insinua-se também na elaboração conceitual. É que essa
ressonância “romântica”, criada entre o filósofo e o personagem literário, passa por
referências a combinações de um novo conceito de tempo. Essas combinações ocorrem
num plano que se erige à medida que um filósofo é tomado pela criação dos seus
conceitos. Portanto, pensar conceitualmente os encontros exige dedicação aos próprios
encontros conceituais. Sem essa dedicação não se entra em filosofia alguma, dedicação
que é também a do “empirismo”, pois ele “trata o conceito como o objeto de um
encontro, como um aqui-agora” 16; e Zourabichvili acerta ao dizer que “a exposição
dos conceitos é a única garantia de um encontro com um pensamento” 17.
Para Deleuze e Guattari, ao lado da arte e da ciência, o pensamento
filosófico é uma das “três grandes formas” ou “vias” de pensar. Sem hierarquia,
elas são basicamente definidas pela comum tarefa de “enfrentar o caos”. Mas cada
uma erige seu próprio e distinto plano de exercício do seu modo de pensar.
Enquanto a arte pensa “por sensações”, traçando um “plano de composição”,
enquanto a ciência pensa “por funções”, traçando um “plano de coordenadas”, a
filosofia, ao enfrentar a caótica dos encontros, traça um “plano de imanência” que
se erige à medida que ela “pensa por conceitos” 18. Portanto, o aprendizado
filosófico da complexidade da experiência nos expõe a uma dupla impregnação: a da
própria caótica dos encontros seja lá com o que for e a do vai-e-vem vertiginoso,
“voltiginoso” 19, que os conceitos exibem nos variados encontros mútuos a que são
levados por problemas a que têm de corresponder.
15 Gilles Deleuze, “Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la philosophie kantienne” (1986). Ver Critique et clinique, pp. 40-49. Tr. br. pp. 36-44. Ver também Deleuze e Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?, Exemplo 1, pp 29-31 ; tr. br. pp. 37-40.16 Différence et répétition, p. 3. Tr. br. : 1ª ed., p. 17 ; 2ª ed., p. 17.17 François Zourabichvili, Le vocabulaire de Deleuze, Paris : Ellipses, 2003, Introdução, item 218 Qu’est-ce que la philosophie ?, pp. 186, 187 ; tr. br., 253, 254.19 Em Ave, Palavra (12/20), voltiginoso é um intensificador que Guimarães Rosa põe em companhia de peresperto numa expressão que diz uma visão de colibris: “depois, mudam com a luz, bruxos pretos, uns sacis de perespertos, voltiginosos, elétricos, com valores instantâneos”. Cf. Nilce Sant’Ana Martins, O Léxico de Guimarães Rosa, São Paulo: Edusp, 2001.
6
Esses problemas não são verborragias, como os tais eternos problemas da
filosofia, que seriam sanáveis por uma higienização da linguagem. São problemas que
ganham sua objetiva verdade numa pragmática dos encontros20. Com efeito, em O que
é a filosofia?, os conceitos ganham sentido por corresponderem dinamicamente a
problemas que lhes transferem uma força de autoposição, de modo que eles,
irredutíveis à arbitrariedade subjetiva ou ao simples engajamento discursivo do
filósofo, implicam um modo de invenção sensível ao caráter problemático dos
encontros. Desde o primeiro livro de Deleuze, esse caráter efetivamente problemático
está numa relação de imanência com a circunstancialidade dos encontros e já se
insinua na idéia de que os encontros constitutivos do próprio sujeito implicam relações
exteriores aos termos relacionados21. Em outro escrito, Deleuze deixa ver que a própria
“voz” incide na “dinâmica” dos encontros conceituais:
“a filosofia é a arte de inventar os próprios conceitos, de criar novos conceitos dos quais temos necessidade para pensar nosso mundo e nossa vida. Deste ponto de vista, os conceitos têm velocidades e lentidões, movimentos, dinâmicas que se estendem ou se contraem através do texto: eles não remetem a personagens, mas são eles próprios personagens, personagens rítmicos. Eles se completam ou se separam, confrontam-se, estreitam-se como lutadores ou como apaixonados” 22 .
Sentir e pensar nos encontros
Isso nos leva a perguntar por conceitos deleuzeanos que nos ajudem a
pensar o que se passa na dobra de complicação dos encontros, a pensar aquilo que nos
liga à experiência dos encontros, às circunstâncias de suas ocorrências, ao que nos abre
ao seu jogo de forças, ao que nos absorve em suas tensões etc. Lembremo-nos de uma
das frases ditas por Deleuze ao recordar sua infância: quando se é acordado num certo
momento, a gente é acordado por alguém. A cada instante, um problemático alvoroço
de encontros vai golpeando o meio da nossa imersão vital. O encontro com alguém ou
algo de fora propicia e até mesmo impõe, por vezes muito violentamente, a experiência
de variações não simplesmente autodeterminadas. O encontro não é só importante para
acordar a gente, para nos fazer sentir nossa situação de outro modo, pois ele também
20 Eis a primeira regra que Deleuze extrai de Henri-Louis Bergson (1859-1941): “Aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas”. Le Bergsonisme, p. 3. Tr. br., p. 8.21 Empirisme et subjectivité, p. 109-110 . Tr. br., p. 110-111.22 Deleuze, “Ce que la voix apporte au texte” (1987) – “O que a voz proporciona ao texto” (1987), em Deux régimes de fous, Paris: Minuit, 2003, p. 303.
7
ocorre na experiência de outros verbos do viver, como imaginar, memorar, falar... e
também pensar, caso este que nos interessa particularmente, pois o próprio encontro
com o pensamento de um filósofo acaba nos dando o que pensar, acaba nos forçando a
pensar a própria diferença que o atrai e que nos contamina.
Dentre as linhas que nos ligam à experiência dos encontros, duas delas gozam
de um privilégio que se reitera há séculos. Trata-se de sentir e pensar. Quando Deleuze
retoma conceitualmente os encontros, notamos que ele elabora uma singular relação
entre sentir e pensar. O que o atrai nessa nova elaboração? O que o atrai é aquilo que
determina seu destino, sua fortuna, seu fado, sua sorte na história da filosofia: a
problemática da diferença embutida nos encontros. A relação entre sentir e pensar foi
reelaborada graças a essa nova problemática, justamente porque se tornou possível
notar o quanto, nos encontros, algo impunha a cada uma dessas linhas uma fissura até
então insuficientemente tematizada. A mera pluralidade dos sentidos não diz o drama
que se passa quando, ao romper a própria tecedura do sentir, uma fissura propaga-se
como raio e vem fissurar o pensar, o imaginar etc. Isto impõe a Deleuze a tarefa de
corresponder conceitualmente a essa dramaturgia. A fórmula resumidora disso é esta:
“eis-nos forçados a sentir e a pensar a diferença”23. Então, a pergunta pelo que se passa
na dobra de complicação dos encontros deve agora se aproximar de outra pergunta:
aquela interessada no modo pelo qual certa idéia de diferença atua nessa dramaturgia
em que sentir e pensar são ditos afetados por uma fissura que, duplicando-os, impõe
uma revisão de suas relações.
Com efeito, Deleuze contraria toda uma tradição que, segundo ele, erigiu uma
imagem dita “dogmática” do que significa pensar. Como “forma da representação”,
essa imagem simplifica o problema: algo impressiona nossos sentidos, nossa
percepção o apreende, e nosso pensar o representa a partir do esforço voluntário, do
“exercício natural de uma faculdade”; essa faculdade de pensar estaria por si mesma,
desde o seu íntimo, dotada de uma “afinidade com o verdadeiro”, de modo que o
pensador, enquanto tal, se caracterizaria por uma “boa vontade”, assim como seu
pensamento se caracterizaria por uma “natureza reta”, atribuindo-se os erros e
desacertos a paixões, a uma falta de métodos etc.24. Trata-se de subverter essa forma,
23 Différence et répétition, p. 293. Tr. br., 1ª. ed. p. 363; 2ª ed. p. 320.24 Différence et répétition, p. 171. Tr. br.: 1ª ed., p. 218; 2ª ed., p. 192.
8
essa imagem representativa ou recognitiva que escamoteia o que efetivamente se passa
quando sou levado a sentir, a pensar etc. E como Deleuze faz isso? Ele o faz,
chamando a atenção para a própria experiência de encontros que, disparando a
sensibilidade, disparam o pensar. Em aliança com Proust, ele dizia que “o pensamento
nada é sem algo que force a pensar, que faça violência ao pensamento” 25.
Isto não quer dizer que, no encontro, não haja consciência do algo encontrado:
pode ser fulano, que reconheço pelo semblante ou pela voz, pode ser determinada
favela, que reconheço por ter vivido em seu labirinto etc. Do mesmo modo, no
encontro, aquele que percebe esse algo tem consciência de o estar apreendendo com
alegria ou dor. Porém, se o encontro ficasse apenas nisso, nesse nível da consciência
de algo e na consciência dos sentimentos pessoais, então não se poderia,
rigorosamente, chamá-lo de fundamental, do ponto de vista da problemática que nos
ocupa. Digamos que um encontro desse tipo, isto é, nesse nível, é não só inevitável
como necessário, útil etc. do ponto de vista da sobrevivência, dos passeios, da vida em
geral. Ele está presente em qualquer circunstância e funciona na comum apreensão das
situações. São encontros extensivos.
Sentir e pensar de outro modo
Como o plano de organização dos encontros extensivos não esgota a
problemática dos encontros, precisamos retomar a pergunta: concretamente, que ocorre
nos encontros que Deleuze considera fundamentais, encontros que põem em jogo uma
outra experiência de exercício das faculdades de sentir, de memorar, de imaginar, de
pensar etc? Num encontro dito fundamental, o que se passa é um processo complexo:
suponhamos que eu, neste aqui e agora, neste atual presente em que vivo, esteja
saboreando a qualidade sensível deste gostoso e leve bolinho chamado madalena,
como aquela de Proust, por exemplo; e suponhamos que, como Proust, esse encontro
gustativo com a madalena desencadeie em mim uma alegria tão singularmente intensa
que não posso atribuí-la apenas a isto que me foi dado neste encontro, a esta qualidade
sensível do bolinho na minha boca; assim como não posso explicá-la recorrendo a
lembranças do vivido por mim no passado. Por que? Porque essa intensa alegria, que
só pode ser sentida, abre-me a estados aos quais sou involuntariamente lançado;
25 Proust et les signes, p. 117. Tr. br., p. 94.
9
impõe-me atmosferas que transbordam situações vividas; abre-me a virtualidades que
insistem naquilo que me foi dado no encontro, mas que não aparecem no próprio dado.
Ora, um encontro desse tipo não é um encontro qualquer. Vejamos. É certo que
também aqui, como nos encontros extensivos, temos consciência dos partícipes:
ficamos alegres ou levamos um susto quando encontramos “Sócrates, o templo ou o
demônio”; e temos consciência de estarmos apreendendo a presença dessas
companhias “sob tonalidades afetivas diversas, admiração, amor, ódio, dor”. Ou seja:
mesmo um encontro fundamental comporta as séries das diferenças extensivas que,
num encontro marcadamente extensivo, são aparentemente as únicas; vale dizer:
nunca estamos totalmente livres do “senso comum”, de modo que nos reconhecemos
contentes ao saborear a madalena, que ela é um “sensível na recognição”, isto é, que
conta com o acordo pelo qual os sentidos (visão, paladar etc), em seu exercício
empírico, reportam-se a um “objeto” (a madalena) “que pode ser lembrado, imaginado,
concebido”. De repente, porém, a intensidade da alegria fissura a linha do sentir,
escapa das ligações recognitivas comandadas pelo senso comum, com o que a linha do
pensar é também fissurada, pondo em nocaute o voluntarismo e a boa vontade do
pensador. E até uma lágrima pode saltar, forçando-nos a perguntar pelo que se passa
nesse estranho instante que lanceta passado e futuro simultaneamente.
Paradoxo: a filosofia é um modo de pensar por conceitos, mas o pensamento
não seria suficiente, por si, para chegar à necessidade do que é pensado ou à própria
necessidade de pensar. O que é preciso ocorrer para que haja essa dupla necessidade?
Eis como Deleuze encaminha a resposta numa frase que escancara sua filosofia à
intromissão do fora, isto é, ao acaso do encontro: “não contemos com o pensamento
para assentar a necessidade relativa do que ele pensa; contemos, ao contrário, com a
contingência de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de realçar e erigir a
necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar”. É o cuidado com
essa abertura aos encontros que justifica o combate pela “destruição da imagem de um
pensamento que pressupõe a si próprio” e que se julga capaz de fixar um fundamento
das coisas. E uma outra afirmação acrescenta mais um ponto nesse combate: “há no
mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um encontro
fundamental e não de uma recognição”.
10
Primeiro, não sabemos ainda como opera esse algo. Por isso, não antecipamos
o seu nome. Mas, pela frase, desconfiamos que essa alguma coisa não se esgota como
objeto para o pensamento de um sujeito pronto e recognitivo, já que é posta como
objeto de um encontro fundamental. Por que fundamental? Porque, em primeiro lugar,
esse estranho objeto cintila na fissura da linha sentir. Essa fissura é tal que o vetor
determinante nessa linha deixa de ser aquele dominado pelo senso comum, ou seja,
não é mais aquele do seu exercício empírico (exercício ordinário, embora importante),
aquele pelo qual a qualidade sensível do dado é recebida pelo sentido (a simples
doçura da madalena presente ao paladar); o vetor agora determinante é o da
“sensibilidade” elevada à “enésima potência”, sensibilidade que nasce
momentaneamente na linha do sentir, que nasce por força do que provocou a fissura e
daquilo que nela cintila, cintilação que insiste no dado, embora não apareça como o
dado (a intensidade da alegria, no exemplo da madalena de Proust). É a esse estranho
objeto de um encontro fundamental que Deleuze dá o nome de “signo” 26 .
A intensificação nos encontros
Por que dissemos que esse objeto, o signo, é estranho? Por uma razão
aparentemente simples, mas que mostra a preocupação nietzscheana de Deleuze de
colocar seus conceitos a serviço do caso: então, se algo não suscitar alguma estranheza
na própria experiência de encontrá-lo, já não posso conceituá-lo como signo. Com
efeito, se eu consigo submeter esse algo a uma identificação na situação do encontro,
se posso tomá-lo como semelhante a seja lá o que for, se consigo confrontá-lo com
outra coisa que penso ser-lhe oposta ou se me é dado encontrar uma analogia entre ele
e outro fenômeno, então esse algo já estará de antemão enredado por macro-operações
que o submetem ao meu senso comum, ao meu poder (ilusório ou não) de representá-
lo. Eu o submeto à imagem representativa do pensamento, ao grande jogo dessa
“quádrupla sujeição”, como diz Deleuze, “em que só pode ser pensado como diferente
o que é idêntico, semelhante, análogo e oposto”, esses quatro guardiões da
representação 27. Mas quando a estranheza de algo me pega, sinto sem esoterismos a
26 Différence et répétition, p. 182. Tr. br.: 1ª ed., p. 231; 2ª ed., p. 203.27 “O Eu penso é o princípio mais geral da representação, isto é, a fonte destes elementos e a unidade de todas estas faculdades: eu concebo, eu julgo, eu imagino, eu me recordo, eu percebo - como os quatro ramos do Cogito. E, precisamente sobre estes ramos, é crucificada a diferença. Quádrupla sujeição, em que só pode ser pensado como diferente o que é idêntico, semelhante, análogo e oposto; é sempre em
11
fragilidade desse poder de sujeitar e de fazer de cada coisa um diverso no meio de
outros, ou de tomá-la como parte de um funcionamento extensivo qualquer etc. Então,
ela me pega como signo, provocando variações em meu poder de ser afetado,
forçando-me a sentir, a memorar, a imaginar... a pensar de outro modo, quer dizer, sem
o apoio dos dispositivos de simplificação dos meus encontros, dispositivos de fixação
de identidades, de semelhanças, de oposições e de analogias.
Na reconstrução conceitual deleuzeana, o próprio encontro é pensado como
relação complexa, uma relação que comporta linhas heterogêneas. Conforme o que se
passa nessas linhas, o próprio encontro varia: é marcado como extensivo, quando as
diferenças empíricas são dadas a afecções e percepções que o pensamento representa
por meio de categorias sobrepostas; mas ele pode ser marcado como encontro
intensivo, quando “fluxos de intensidades” passam pelas linhas. Experimentados como
vibrações de “corpos sem órgãos” 28, esses fluxos abrem afectos e perceptos, isto é,
outros modos de sentir e perceber, e disparam no próprio pensar um “pensamento por
demais intenso” 29, lançado num “trabalho rizomático” em meio a “percepção de
coisas, de desejos”, em meio a “percepções moleculares”, ‘”micro-fenômenos’”,
‘”micro-operações’”... um “mundo de velocidades e de lentidões sem forma, sem
sujeito, sem rosto”, mobilizado pelo “ziguezague de uma linha” ou pela “’correia do
chicote de um carroceiro em fúria’” 30.
É de um ponto de vista ético, como veremos, que os autores valorizam
extremamente os encontros intensivos. Mas é também do ponto de vista do exercício
do pensamento. Com efeito, ao mesmo tempo em que afirmam que o “essencial” está
nas “forças, nas densidades e nas intensidades”, e não “nas formas e nas matérias”, é
preciso entender o seguinte: a seleção valorativa do intensivo ressoa com uma
tendência filosófica “moderna”, esta “idade do cósmico”, dizem. Pois bem, em
Deleuze e Guattari, essa tendência quer exigir mais do próprio ato de pensar. Por que?
Porque se trata de “elaborar material de pensamento” para captar “forças não
relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna objeto de representação”. Ver Différence et répétition, p. 180. Tr. br.: 1ª ed., p. 228-229; 2ª ed., p. 201. 28 Mille plateaux, p. 200. Tr. br., Vol. 3, Platô 9, p. 25.29 Mille plateaux, p. 164. Tr. br., Vol. 2, p. 87.30 Mille plateaux, p. 347. Tr. br., Vol. 3, p. 76-77. Neste ponto, os autores passam por Misérable miracle, obra de Henri Michaux (1899-1984).
12
pensáveis em si mesmas”. O “problema” filosófico dessa tendência não é o de um
“começo” e muito menos o de uma “fundação-fundamento”. Trata-se, isto sim, de um
“problema de consistência ou de consolidação: como consolidar o material, torná-lo
consistente, para que ele possa captar”, no plano de imanência que ele erige à medida
que traça seus conceitos, “essas forças não sonoras, não visíveis, não pensáveis?”
Neste ponto, esta filosofia retoma seus encontros dionisíacos com as artes.
Dionisíacos, porque não se trata simplesmente de uma comunicação extensiva entre
idéias ou conceitos dominadores e fragmentos de arte postos a serviço de teses
filosóficas. Trata-se de uma comunicação por encontros intensivos 31.
A disparação intensiva nos encontros
Empregamos a palavra intensidade, pressupondo que ela exprima um conceito,
mas não temos ainda uma idéia dele. Sabemos que ele opera na determinação do signo
como aquilo que, intensificando o sentir, nos força a pensar. E já devemos destacar
um detalhe. Dizer que ele nos força a pensar já é dizê-lo portador de uma “relação da
força com a força”. Essa relação, ou cruzamento de forças, implica “o elemento
diferencial da força” (força dominante / força dominada) que Deleuze, em seus
encontros com Nietzsche, liga à idéia de “vontade potência” 32. Afirmar que esse
elemento diferencial é a nietzscheana vontade de potência quer dizer o seguinte: é
como elemento diferencial que essa vontade está “em seu mais elevado grau”, em “sua
forma intensa ou intensiva” 33. Neste momento, salientemos que é como “princípio
‘intensivo’”, como “princípio de intensidade pura”, que a idéia de vontade de potência
se desprende do “gosto” nietzscheano pela energética, do interesse pela física das
“quantidades intensivas”, e opera na idéia de um diferenciador da diferença e de um
critério de seleção dos encontros, seleção duplamente orientada: tanto na direção de
uma ética, como veremos, quanto em prol de um pensar mais exigente, pois que
31 Mille plateaux, pp. 422, 423. Tr. br., pp. 158, 159. “Mesmo o ritornelo torna-se ao mesmo tempo molecular e cósmico, Debussy... A música moleculariza a matéria sonora, mas torna-se assim capaz de captar forças não sonoras como a Duração, a Intensidade. Tornar a Duração sonora. Lembremo-nos da idéia de Nietzsche: o eterno retorno como pequena cantilena, como ritornelo, mas que capta as forças mudas e impensáveis do Cosmo. Saímos, portanto, do canto e dos agenciamentos para entrar na idade da Máquina, imensa mecanosfera, plano de cosmicização das forças a serem captadas”.32 Nietzsche et la philosophie, p. 7. Tr. br., p. 5. Essa relação ou cruzamento de forças implica “o elemento diferencial da força” (força dominante / força dominada) que Deleuze liga à idéia de “vontade potência”.33 “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, p. 166-167. Tr. br., p.158.
13
coligado ao esforço por “desprender a forma superior de tudo o que é”, ou seja, “a
forma de intensidade” 34.
No caso do signo, sua forma superior (a que não se reduz às qualidades
sensíveis de uma de suas faces) é justamente aquela pela qual a intensificação do sentir
força o ato de pensar. Por que isso ocorre? Por que se desprende essa forma intensiva
superior? Nessa filosofia, não podemos buscar a causa dessa superioridade num
transcendente externo ou interno ao sujeito pensante. Então, temos de buscar na
própria imanência dos encontros a operação pela qual as diferenças disparam por
intensificação. Nessa imanência dos encontros, qualquer coisa pode ser signo, desde
que seja portadora de um sistema de diferenças ou de diferenciações complexas em
que haja uma disparação intensiva. Algo é signo quando ocorre por disparação num
“sistema dotado de dissimetria”, num sistema em que há “disparatadas ordens de
grandeza”. Deleuze diz ainda que o signo (ou o fenômeno) “fulgura no intervalo” dos
“disparates”, pondo aí a vibrar uma estranha “comunicação”. Propriamente falando, o
“signo é um efeito” de séries divergentes, efeito composto de “dois aspectos: um pelo
qual, enquanto signo” (propriamente dito) “ele exprime a dissimetria produtora; o
outro” (seu aspecto de dado atual) “pelo qual ele tende a anular” a própria dissimetria
produtora 35. È sob este último aspecto que ele ainda deixa um flanco aberto a macro-
apropriações redutoras do seu impacto, como quando se diz que aquela intensa alegria
proustiana, no exemplo já referido, remetia tão-só a encontros extensivos ocorridos no
passado vivido. Nos encontros extensivos, o vivido quer dizer apenas “qualidades
sensíveis”. Mas, quando disparado, o vivido quer dizer “o ‘intensivo’” numa
processualidade em que primam devires, “passagens de intensidade” 36. Por implicar
intensificações e passagens de intensidade em fluxos e cortes de fluxos (“já que cada
intensidade está necessariamente em relação com uma outra, de tal modo que alguma
coisa passe”), o “estado vivido” não é necessariamente “subjetivo” e nem “individual”,
mas pleno desse “movimento”, ou “jogo”, que é o das “intensidades, das quantidades
intensivas”, como outros também “viram” 37.34 “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, p. 171.Tr. br., p. 161-162. 35 Différence et répétition, p. 31. Tr. br. : 1ª ed., p. 50 ; 2ª ed., p. 44.36 “Capitalisme et schizophrénie” (1972), em L’Île déserte, p. 331. Tr. br. p. 301.37 Como Klossowski e Lyotard. Ver “Pensée nômade”, em L’Île déserte, p. 358-360. Tr., p. 324-326.
14
A proliferação intensiva
Depois dessa breve passagem por alguns pontos da teoria deleuzeana do signo,
tendo grifado o jogo dos encontros, reteremos o seguinte: em cada caso pensado,
Deleuze encontra a necessidade e os meios de sua criação filosófica na disparação de
encontros intensivos. O paradoxal centro nervoso dessa disparação é uma síntese de
linhas heterogêneas, é uma síntese disjuntiva. Paradoxal, porque, em cada caso, a
articulação disparadora é ameaçada por bordas grudadas à própria síntese: de um lado,
são bordas que entulham os encontros extensivos com um excesso de opiniões e de
comunicativismo irrisório; de outro, são bordas que trazem para muito perto a caótica
das intensidades, que, todavia, não podem ser simplesmente suprimidas, sob pena de
não se estar à altura da problemática da diferença. Por isso, para Deleuze, “falar da
criação” é estar “traçando seu caminho entre duas impossibilidades” 38. Por um lado,
não é possível levar a crítica da representação a ponto de simplesmente suprimir o
extensivo. Por outro lado, se o acaso é o mais necessário, então, nos encontros, as
articulações criativas precisam das intensidades, mesmo com a ameaça de sua caótica:
“dir-se-ia que a luta contra o caos” é inseparável de certa “afinidade” com este
“inimigo”, pois ficar na mesmice já é perder a luta 39 .
Que nome dar ao estranho ato que dispara todas as articulações cuidadas por
essa filosofia em seus encontros? É o mesmo do qual os signos são efeitos. É também
ele que encontramos na construção de todos os conceitos deleuzeanos. E nada existiria
ou apareceria sem o paradoxal contágio mútuo dos heterogêneos, sem essa relação dita
síntese disjuntiva, sem esse impalpável díspar, portanto. Desde o bom encontro teórico
de Deleuze com a renovação do problema da individuação por Gilbert Simondon,
díspar aparece, mas “sem a condição de um mínimo de semelhança entre as séries”;
aparece como “’precursor sombrio’”, estabelecendo “comunicação” intensiva entre
“séries disparates”, desencadeando “acoplamentos, ressonâncias internas”,
“movimentos forçados”, assim como a “constituição de eus passivos e de sujeitos
larvares no sistema, e a formação de puros dinamismos espacio-temporais” etc. 40.
Díspares também operam como “elementos últimos do inconsciente” 41. Díspar
38 Pourparlers, p. 182. Tr. br., p. 166. 39 Qu’est-ce que la philosophie?, p. 191. Tr. br., p. 261.40 Différence et répétition, pp. 156, 356. Tr. br.: 1ª ed., pp. 199, 437; 2ª ed., pp. 174, 384.41 L’Anti-Oedipe, p. 386. Tr. br., p. 410.
15
aparece como “elemento paradoxal que percorre as séries” divergentes, fazendo-as
“ressoar, comunicar e ramificar”, e ainda comandando “a todas as retomadas e
transformações, a todas as redistribuições”; isto faz com que Deleuze o pense, nesse
momento, como o “lugar de uma questão” numa conexão especial com a idéia de
problema: “o problema é determinado pelos pontos singulares que correspondem às
séries, mas a questão [é determinada] “por um ponto aleatório que corresponde à casa
vazia, ao elemento móvel”, sendo que o complexo questão-problema (que está no
paradigma do par virtual-atual) caracteriza o “modo do acontecimento” como
“problemático” 42. Pensar díspar como lugar de uma questão é uma fórmula retomada
de outro modo em Mil platôs. Trata-se de uma incidência decisiva no sistema
conceitual deleuzeano, pois não acentua díspar apenas em função de ressonâncias. No
platô denominado “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra”, Deleuze distingue
as ciências “teoremáticas” (geometria euclidiana, por exemplo, voltada para as
“constantes”) das ciências “problemáticas” ou “nômades” (como a geometria
arquimediana). Díspar opera fortemente nessa distinção 43. O que aí notamos é um
desdobramento de díspar como operador de liberações, como disparação de estados
intensivos, estados que aguçam no aprendiz o estar à espreita da disparada de linhas
de fuga. Esse desdobramento era como que previsível desde o emprego de uma
“tautologia” que definia díspar como “diferença de intensidade”. Tautologia, porque
“toda intensidade é diferencial, é diferença em si mesma”. Há um diferenciar
“infinitamente desdobrado” em mudanças de fases ou estados que, citando Rosny,
Deleuze anota como seqüência de proliferações quebradiças: “toda intensidade é E-E’,
em que o próprio E remete a e-e’, e e’ remete a ’ “ 44 .
Como paciente dos encontros intensivos, como sujeito larvar do seu próprio
sistema, mantendo-se à espreita dos díspares, é que o pensador pode vir a pensar e a
42 Logique du sens, pp. 72, 69. Tr. br., pp. 59, 57.43 “Como elemento da ciência nômade, o díspar remete a material-forças, mais do que à matéria-forma. Já não mais se trata, exatamente, de extrair constantes a partir de variáveis, mas de pôr as próprias variáveis em estado de variação contínua. Se há ainda equações, são adequações, inequações, equações diferenciais irredutíveis à forma algébrica, e inseparáveis por sua vez de uma intuição sensível da variação. Captam ou determinam singularidades da matéria em vez de constituir uma forma geral. Operam individuações por acontecimentos ou hecceidades, e não por ‘objeto’ como composto de matéria e forma; as essências vagas são tão-somente hecceidades”. Mille plateaux, p. 458. Tr. br., Vol. 5, p. 36-37.44 Différence et répétition, p. 387. Tr. br.: 1ª ed., p. 356; 2ª ed., p. 314.
16
criar nos seus conceitos as variações que correspondam aos problemáticos dinamismos
espacio-temporais não submetidos a uma forma prévia. Pode-se dizer que essa
intensificação do pensar implica uma “involução” a sínteses passivas. Implicaria uma
“regressão” que não remontasse “a um princípio” 45. É que “a ‘regressão’ é
malcompreendida enquanto não se vê nela a ativação de um sujeito larvar, único
paciente capaz de sustentar as exigências de um dinamismo sistemático”46. Implicando
disparações, esse duplo movimento corresponde a um problema que circula pelo
sistema deleuzeano, problema fecundado justamente pela complexidade dos encontros,
mas que também percute na própria elaboração dos conceitos 47.
Um problema desse tipo cria uma boa relação entre o filósofo Deleuze e o
animal não edipianizado. Por exemplo, a idéia de marcar um “território”, este
“domínio do ter”, situação que nos diz respeito, mas que já concernia os animais.
Marcar um território não se reduz a funcionalidades. É que, por meio de “posturas,
cantos, cores”, são atingidas linhas de uma “arte em estado puro”. Além disso, um
“território só vale em relação a um movimento através do qual se sai dele”. Ou seja,
não há território sem “desterritorialização”, isto é, “sem um vetor de saída do
território; e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo
tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte”. E os animais participam
disso, porque “emitem signos” e “reagem a signos”, e “produzem signos”. E tanto
quanto o “escritor” e o “filósofo”, o animal “é o ser à espreita, um ser,
fundamentalmente, à espreita” 48.
Como percorrer os encontros conceituais deleuzeanos?
Esta pergunta não é meramente didática e só dirigida aos que nunca leram
algum escrito desse filósofo. Ela sempre retorna a cada texto lido por um iniciante ou
relido por um experimentado pesquisador. Não apresentamos um guia turístico que dê
a ela uma resposta. Apontamos aquilo que pulsa em qualquer detalhe dessa filosofia da
experiência da complexidade dos encontros: a pulsação díspar como operação
45 Mille plateaux, p. 326. Tr. br., Vol. 4, p. 56.46 L’Île déserte, p. 136. Tr. br., p. 133. Ver ainda Différence et répétition, 128-140. 47 Eis como François Zourabichvili enuncia esse problema: “como, para além de Bergson, articular as duas dinâmicas inversas e não obstante complementares da existência, de um lado a atualização de formas e de outro a involução que destina o mundo a redistribuições incessantes?”. Ver Le Vocabulaire de Deleuze, Verbete “Corpo sem órgãos”. 48 L’abécédaire de Gilles Deleuze, Letra A como Animal.
17
amortecida ou proliferada nos encontros e implicada na criação dos próprios conceitos
deleuzeanos. Como elemento sem identidade, a pulsação díspar dispara também em
nós, aprendizes, a sensação de que o sistema deleuzeano é um labirinto. E a pergunta
retorna: não encontraríamos por aí uma espécie de fio de Ariadne, como aquele que
guiou Teseu na labiríntica aventura em que venceu o monstro?
Em filosofia, digamos que o monstro é o pensamento do filósofo... monstro,
sim, por razões que ele recria a seu modo, que não nos confirmam em nossas opiniões,
nem mesmo naquelas baseadas em outros filósofos. A monstruosidade aparece na
forma de velozes e intempestivos encontros de noções, idéias afiadas num afã de se
distinguirem umas das outras, mas que se dedicam, ao mesmo tempo, a se ajudarem
mutuamente em estranhas concatenações. Só quando a leitura se sente afirmativamente
afetada por uma força nascida do seu encontro com o texto, é que o estudioso percebe
que não precisa matar o monstro, mas impregnar-se dele, aliar-se com suas travessuras
e, com isso, vencer em si mesmo seu inevitável estado de lentidão. Isto quer dizer que
o fio de Ariadne não nos espera à porta do labirinto deleuzeano. Por que?
Referindo-se à literatura, Deleuze conecta a "obra de arte moderna", essas
"obras problemáticas", ao "abandono da representação", passando a ser decisiva uma
importante questão presente em sua filosofia: a da construção de um sistema de
diferenças irredutíveis a um centro ou a uma convergência. Neste momento, ele se alia
a Umberto Eco em torno do “problema da Obra Aberta” 49. Ele se alia para dizer que
“a obra de arte 'clássica' é vista sob várias perspectivas e está sujeita a várias
interpretações, mas que a cada ponto de vista ou interpretação não corresponde ainda
uma obra autônoma, compreendida no caos de uma grande-obra. A característica da
obra de arte 'moderna' aparece como a ausência de centro ou de convergência" 50.
Achamos que também a filosofia deleuzeana está em ressonância com a modernidade
de obras de arte assim caracterizadas, pois ela própria implica um princípio de
proliferação intensiva de leituras, proliferação que acaba corroendo centros e
convergências em prol de uma coexistência intensiva que nos ziguezagueia 51.
49 Umberto Eco, Obra Aberta, tr. br. de Giovanni Cutolo com revisão de Pérola de Carvalho, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1971.50 Gilles Deleuze, Différence et répétition, p. 94, n.1. Tr. br., p. 109, n. 23.51 “Quando invoco o ziguezague, a questão é como por em relação singularidades díspares”, diz Deleuze em L’Abécédaire, p. 200. Isso é Idéia, mas é também o “vai pra lá que eu vou pra cá”, de Robinho.
18
Mas que tem isso a ver com o termo ‘labirinto’? Pois bem, é a um dos
operadores dessa proliferação que Umberto Eco se refere ao escrever o Pós-Escrito ao
seu romance O Nome da Rosa. Ele determina três tipos: o "labirinto clássico", de
Teseu, mas que é também o de Sherlock Holmes, percorrido com o auxílio do "fio de
Ariadne", comportando "entrada para o centro" e caminho do "centro para a saída"; há
o "labirinto maneirista", estruturado como "árvore", em "forma de raízes com muitos
becos sem saída", comportando "uma só saída" e também carecendo do socorro de um
fio condutor. Por fim, diz ele, há “aquilo que Deleuze e Guattari chamam de rizoma".
Neste labirinto “cada caminho pode ligar-se com qualquer outro", não havendo
"centro", "periferia" ou "saída", por ser ele "potencialmente infinito". [Diríamos que a
pulsação díspar dispara nele uma ilimitação]. Eco rizomatiza o “mundo em que
Guilherme" (uma das personagens) "pensa viver”, mundo “estruturado em forma de
rizoma: ou melhor, estruturável, mas nunca definitivamente estruturado" 52.
Sem a lógica de Sherlock Holmes, Guilherme, que investiga assassinatos num
mosteiro medieval, é abertura acolhedora de uma série de escolhas possíveis, a tal
ponto que sua busca se complica numa prática rizomática só resolvida ao acaso dos
encontros. É que “o rizoma”, tal como a conjunção “e”, não é precisamente uma coisa,
mas um “inter-ser”, uma mobilidade entre-coisas que “conecta um ponto qualquer com
qualquer outro ponto, e cada um dos seus traços não remete necessariamente a traços
de mesma natureza”, podendo por “em jogo regimes de signos muito diferentes,
inclusive estados de não-signos”. Ao contrário da “árvore”, o rizoma é irredutível ao
Uno e ao múltiplo; ele “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de
direções movediças”. Rizomatizar implica disparações e a tarefa de “mapear”
multiplicidades substantivas. Então, para que o rizoma seja “modelo” dinâmico destas,
é também preciso que rizomatizar comporte operações de disparação que levem o
mapeamento a se aliar àqueles componentes que, presentes nas multiplicidades,
possam romper os processos que concorrem para o bloqueio delas, processos que são
também produzidos nelas mesmas. Por comportar esse tipo de operação, é que os
autores podem dizer que o rizoma “não tem começo nem fim, mas sempre um meio,
52 Umberto Eco,, Postille a "Il nome della rosa" (1984). Pós-Escrito a “O Nome da Rosa”, tr.br. de Letizia Z. Antunes e Álvaro Lorencini, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2a.ed., 1985, pp.45-47.
19
pelo qual ele cresce e transborda” 53. Aí está o produtivo e paradoxal funcionamento
teórico-prático do rizoma: o modelo que mapeia dobra-se em operações que mudam a
natureza do mapeado.
E se o desejo, como querem Deleuze e Guattari, é a potência desse meio, é
porque ele próprio se define, não pela falta de algo, mas como “princípio imanente” de
uma produtividade complexa. Essa produtividade, tão natural quanto artificial, é a de
um produzir que se reitera diferentemente, uma surpreendente maquinação do fora, um
“produzir sempre o produzir”, que vem a ser, justamente, a “regra” imanente das
“maquinas desejantes” 54. O ponto de vista que procuramos para vislumbrar essa
filosofia, o ponto díspar, não pode ser indiferente ao modo como essa regra opera na
própria escrita deleuze-guattariana, regra que não deixa de invadir também a
proliferação de textos envolvidos com essa filosofia.
Ética nos encontros
A filosofia deleuzeana propende a uma proliferação intensiva de bons
encontros. Ele quer isso, acreditando que “não há obra que não indique uma saída para
a vida, que não trace um caminho entre as pedras” 55. Deleuze entende o que seja um
bom encontro a partir dos seus bons encontros com Nietzsche e Espinosa.
Com efeito, a nietzscheana vontade de potência é díspar, é elemento diferencial
numa relação de forças quando está em seu mais elevado grau, em sua “forma intensa
ou intensiva”. Nesse estado intensivo, que a distingue de uma vontade de poder, ela
força o pensar a “desprender a forma superior de tudo o que é”, ou seja a “forma de
intensidade”. Porém, ela também atua como critério de seleção dos encontros ao
promover uma postura ética: esta “não consiste em cobiçar e nem mesmo em tomar,
mas em dar e em criar”; é para ela que Zaratustra encontra o “verdadeiro nome”: em
sua forma intensa, a vontade de potência “é a virtude que dá” 56. Espera-se que pulse
nessa virtude o que sugere o imperativo ético nietzscheano: “elevar o que se quer à
53 Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux, Paris: Minuit, p. 31. Mil platôs, Vol. 1. “Introdução: Rizoma”, tr. br. de Aurélio Guerra Neto, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996, p. 3254 Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’Anti Oedipe, Paris, Minuit, 1972: “A produção como processo excede todas as categorias ideais e forma um ciclo ao qual o desejo se relaciona como princípio imanente” (p. 10-11). “A regra de produzir sempre o produzir, de inserir o produzir no produto, é a característica das máquinas desejantes ou da produção primária: produção de produção” (p.13).55 Pourparlers, p. 196. Tr. br., p. 179.56 “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, pp. 166-167 ; 171. Tr. br., pp.158 ; 161-162.
20
última potência, à enésima potência”. O problema ético se repõe no movimento das
intensidades, impondo-se um cuidado com o “jogo das intensidades baixas e
intensidades elevadas”, “a maneira pela qual uma intensidade baixa pode minar a mais
elevada e mesmo ser tão elevada quanto a mais elevada, e inversamente” 57.
Da Ética de Espinosa, este caso de amor extremado, Deleuze recolhe uma
etologia. Isto quer dizer, grosso modo, que a distinção dos bons e dos maus encontros,
dispensando as prescrições transcendentes da moral, passa a depender do que se passa
em duas ordens de dimensões: aquela em que os entes vivem a experiência da maneira
como suas respectivas relações constitutivas se compõem ou não em seus movimentos
e repousos e em suas velocidades e lentidões (longitude); e aquela em que, nas suas
mútuas relações, vivem a experiência do aumento ou diminuição da sua “força de
existir” e do seu “poder de ser afetado” (latitude), a experiência do que se passa,
portanto, em seus “estados intensivos”, experiências que os lançam em paixões alegres
ou tristes 58, estes signos que a vida vai colhendo em seus encontros.
* * *
III. Dez conceitos
Em ordem alfabética, apresentamos a seleção de alguns poucos conceitos
deleuzeanos, apropriando-nos de seus empregos em textos do próprio Deleuze 59.
Atual e virtual: “Toda multiplicidade implica elementos atuais e elementos
virtuais. Não há objeto puramente atual. Todo atual se envolve de uma
névoa de imagens virtuais”. “A relação do atual e do virtual constitui
sempre um circuito, mas de duas maneiras: ora o atual remete a virtuais
como a outras coisas em vastos circuitos, onde o virtual se atualiza, ora o
atual remete ao virtual como a seu próprio virtual, nos menores circuitos
onde o virtual cristaliza com o atual. O plano de imanência contém, a um só
tempo, a atualização como relação do virtual com outros termos, e mesmo o
atual como termo com o qual o virtual se permuta. Em todos os casos, a
relação do atual e do virtual não é a que se pode estabelecer entre dois 57 “Pensée nômade” (1973), em L’Île déserte, p. 358-360. Tr. br., p. 324-326.58 “Spinoza et nous” (1981), em Zpinoza – Philosophie pratique, p. 171. Tr. br., p. 130. Ver também « Sur la différence de l’Ethique avec une morale », em SPP, pp. 27 ss. Tr. br., pp. 23 ss.59 Não listaremos conceitos que já receberam alguma atenção neste livro. Além disso, há séries mais extensas e detalhadas em dois Vocabulários: François Zourabichvili, Le vocabulaire de Deleuze, Paris: Ellipses, 2003; Sasso et Villani (Dir.), Le Vocabulaire de Gilles Deleuze, Paris : Vrin, 2003.
21
atuais. Os atuais implicam indivíduos já constituídos, e determinações por
pontos ordinários, enquanto a relação do atual e do virtual forma uma
individuação em ato ou uma singularização por pontos notáveis a serem
determinados em cada caso” (Dialogue, pp. 179, 184).
Complicação: “Mundo de diferenças implicadas umas nas outras”. “Mundo
complicado, sem identidade, propriamente caótico”. “A caos-errância opõe-se à
coerência da representação; ela exclui a coerência de um sujeito que se representa,
bem como de um objeto representado”. “O mundo intenso das diferenças, no qual
as qualidades encontram sua razão e o sensível encontra seu ser, é precisamente o
objeto de um empirismo superior”. “É preciso mostrar a diferença diferindo”. “Este
caos é o mais positivo” e “a divergência é objeto de afirmação”. “A trindade
complicação-explicação-implicação dá conta do conjunto do sistema, isto é, do
caos que mantém tudo, das séries divergentes que dele saem e nele entram e do
diferenciador”, o díspar “que as relaciona umas às outras”. (Différence et
répétition, p. 80).
Corpo: “Um corpo não se define pela forma que o determina, nem como substância
ou sujeito determinados, nem pelos órgãos que ele possui ou pelas funções que
exerce. No plano de consistência, um corpo se define somente por uma longitude e
uma latitude: pelo conjunto dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais
relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão (longitude); pelo
conjunto dos afectos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau de
potência (latitude). Somente afectos e movimentos locais, velocidades diferenciais.
Coube a Espinosa ter destacado essas duas dimensões do Corpo e de ter definido o
plano de Natureza como longitude e latitude puras. Latitude e longitude são os dois
elementos de uma cartografia” (Mille plateaux, 318).
Corpo sem órgãos: “O corpo sem órgãos opõe-se menos aos órgãos do que a essa
organização de órgãos chamada organismo. É um corpo intenso, intensivo. É
percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações
de sua amplitude. O corpo não tem portanto órgãos, mas limiares ou níveis”.
(Francis Bacon – Logique de la sensation , p. 33). “Não é o testemunho de
um nada original, nem o resto de uma totalidade perdida”. “Não é uma
22
projeção: nada tem a ver com o corpo próprio ou com uma imagem do
corpo. É o corpo sem imagem”. “Ele é perpetuamente re-injetado na
produção” (L’Anti-Oedipe, p. 14-15). “É o campo de imanência do desejo, o
plano de consistência própria do desejo”. “O corpo sem órgãos é desejo, é
ele e por ele que se deseja”. (Mille plateaux, pp. 203, 191).
Devir: “Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de
dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos”. “A vespa e
a orquídea são o exemplo. A orquídea parece formar uma imagem de vespa, mas,
de fato, há um devir-vespa da orquídea, um devir-orquídea da vespa, uma dupla
captura, pois ‘aquilo que’ cada um devém não muda menos do que ‘aquele que’
devém. A vespa devém parte do aparelho de reprodução da orquídea, ao mesmo
tempo em que a orquídea devém órgão sexual para a vespa. Um único e mesmo
devir, um único bloco de devir” (Dialogues, p. 8-9).
Hecceidade: “Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma
pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma substância. Nós lhe reservamos o nome de
hecceidade. Acontece de se escrever ‘ecceidade’, derivando a palavra de ecce, eis
aqui. É um erro, pois Duns Scot cria a palavra e o conceito a partir de Haec, ‘esta
coisa’. Mas é um erro fecundo, porque sugere um modo de individuação que não se
confunde precisamente com o de uma coisa ou de um sujeito. Uma estação, um
inverno, um verão, uma hora, uma data tem uma individualidade perfeita, à qual
nada falta, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de
um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e de
repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e de ser afetado. Quando a
demonologia expõe a arte diabólica dos movimentos locais e dos transportes de
afectos, ela marca simultaneamente a importância das chuvas, granizos, ventos,
favoráveis a esses transportes” (Mille plateaux, 318-319).
Linha de fuga: “Uma fuga é uma espécie de delírio. Delirar é exatamente sair do
traçado”. “Há algo de demoníaco numa linha de fuga”. “É próprio dos demônios
saltar os intervalos, e de um intervalo a outro”. “A linha de fuga é uma
desterritorialização”. “Fugir não é de modo algum renunciar às ações, nada mais
ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É igualmente fazer fugir, não
23
forçosamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer fugir um sistema como se
rompe um tubo”. (Dialogues, pp. 49-50, 47). “Não há somente estranhas viagens na
cidade, mas viagens no mesmo lugar; não estamos pensando nos drogados, cuja
experiência é por demais ambígua, mas antes nos verdadeiros nômades”. “Viagem
no mesmo lugar, este é o nome de todas as intensidades, mesmo que elas se
desenvolvam também em extensão” (Mille plateaux, 602).
Multiplicidade: “As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem unidade
alguma, não entram em totalidade alguma e tampouco remetem a um sujeito. As
subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se
produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das
multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas
relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer,
individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos
livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo); a seu
plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos
vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de
desterritorialização”. (Deux régimes de fous, p. 289-290). ”Não se trata de opor os
dois tipos de multiplicidades, as máquinas molares e moleculares, segundo um
dualismo que não seria melhor que o do Uno e do múltiplo. Há somente
multiplicidades de multiplicidades”. “A distinção não é absolutamente a do exterior
e do interior, sempre relativos e cambiantes, intervertíveis, mas a dos tipos de
multiplicidades” [extensivas e intensivas] “que coexistem, se penetram e mudam de
lugar”. “As relações, as determinações espacio-temporais não são predicados da
coisa, mas dimensões de multiplicidades”. (Mille plateaux, pp.48, 49, 321).
Plano de imanência: “Esse plano que conhece apenas as longitudes e as
latitudes, as velocidades e as hecceidades, nós o chamamos plano de
consistência ou de composição (por oposição ao plano de organização e de
desenvolvimento). É necessariamente um plano de imanência e de
univocidade”. “É um plano de proliferação, de povoamento, de contágio”. É
menos ainda uma regressão que remontaria a um princípio. É, ao contrário,
involução, em que a forma não pára de ser dissolvida para liberar tempos e
24
velocidades”. (Mille plateaux, 326). “A imanência não se reporta a Algo
como unidade superior a qualquer coisa, nem a um Sujeito como ato que
opera a síntese das coisas: é quando a imanência já não é imanência a outra
coisa, que não a si, é que se pode falar de um plano de imanência” ( Deux
régimes de fous, p.260).
Síntese disjuntiva: “Toda a questão é saber em que condições a disjunção é
uma verdadeira síntese, e não um procedimento de análise que se contenta
em excluir os predicados de uma coisa em virtude da identidade de seu
conceito (uso negativo, limitativo ou exclusivo da disjunção). A resposta é
dada na medida em que a divergência ou o descentramento determinados
pela disjunção tornam-se objetos de afirmação como tais” (Logique du sens,
p. 204). “As disjunções subsistem”. “A disjunção deveio inclusa, tudo se
divide, mas em si mesmo” (L’Épuisé, pp. 59, 60).
* * *
25
IV. Percursos e influências
A filosofia de Deleuze traça percursos que justificam a variação dos seus estímulos
em estudos filosóficos e no campo das ciências humanas, da educação e das artes, bem
como nos combates pela dignificação do viver. Em relação ao modo como ele praticou uma
história quebradiça da filosofia, escolhendo os encontros propícios às suas criações, basta
uma frase de um contemporâneo seu, Jean-François Lyotard, escrita por ocasião da morte
de Deleuze: “todos os seus livros foram feitos para colhermos neles tudo o que precisamos.
Principalmente aquilo de que não precisamos por não termos nem idéia da sua existência”.
Por que? Porque, com Deleuze, “comentar” é “inventar”. Ora, completa Lyotard: “a
utilidade se mede pelo aumento da potência de inventar” 60.
Não nos cabe, aqui, percorrer a maneira surpreendente pela qual Deleuze se
relacionou com filósofos do passado e da contemporaneidade. O meio dos seus escritos,
além de prazeroso, é um lugar de surpresas, de aprendizado constante. Nesse meio,
passeamos com novo olhar por paisagens conceituais que julgávamos fixadas em estudos
certamente relevantes, mas não únicos. Assim, ganhamos um novo Hume, o do empirismo
superior, com Empirismo e subjetividade. Um novo Proust com Proust e os signos: em vez
do apego ao passado empírico, os signos enredam o aprendizado de um homem de letras.
Os livros que ligam Nietzsche e Espinosa justificam essa junção de guerreiros afirmativos,
desses que combatem na imanência por uma vida eticamente valorizada e não moralmente
depreciada.
Em Lógica do sentido, os incorporais dos estóicos ajudam a dimensionar a idéia de
acontecimento. E também reanimamo-nos com Epicuro, Lucrécio e outros. Com O
Bergsonismo, entendemos melhor as nuanças bergsonianas do hábitat deleuzeano. E como
que aplicando uma crítica de Bergson a mistos mal compostos, encontramos importante
desmontagem do misto denominado sado-masoquismo em Apresentação de Sacher-
Masoch. Em outro cruzamento, ganhamos nova explicitação conceitual da dobra barroca
em A dobra – Leibniz e o Barroco. Reencontramos aí o conceito de ocasião atual, de
Whitehead. Pouco antes, Deleuze publicara seu benquisto e conhecido Foucault; com isto,
obtemos uma variação de perspectivas com a questão das combinações das forças atuantes
60 Jean-François Lyotard, “Ele era a biblioteca de Babel”, tr. br. de Lia Marcondes, Fortaleza, O Povo, 18/11/1995, p. 4).
no homem e das forças do fora. Se, com Leibniz, nossas forças se combinam com aquelas
de elevação ao infinito sob a forma-Deus, o problema muda, não sendo nem mesmo o de
submeter à forma-Homem as relações entre nossas forças e as que determinam nossa
finitude na vida, trabalho e linguagem. Outra combinação impõe-nos o problema da
dissolução da forma-Homem: as forças atuantes no homem combinam-se com forças de
ilimitação do finito, desencadeando combinações talvez ilimitadas de conglomerados
finitos de componentes. Redobram-se os cuidados, pois isso ressoa nas atuais pesquisas de
ponta em várias ciências, mas também na proliferação dos controles na sociedade.
Superposições trata das operações com que Carmelo Bene cria seu teatro menor. O
esgotado, por sua vez, leva-nos ao encontro de Samuel Beckett e a distinguir o esgotado
(que desliza por disjunções inclusivas) do fatigado (que pratica o jogo das disjunções
exclusivas) : enquanto o fatigado só esgotou a realização e já nada pode realizar, o esgotado
esgota todo o possível e nada mais pode possibilitar, coisa que lhe ocorre de várias
maneiras. Há intensidade no esgotamento, assim como, na pintura de Francis Bacon, há
intensidade na dissipação da imagem. Lógica da sensação, que acompanha essa pintura,
tematiza a passagem da matéria-forma à matéria-força. Com Deleuze, visitamos também o
cinema e a literatura. Mas não para falar sobre filmes, sobre romance. Com o socorro de
filmes, de estudos dessa arte, ele cria conceitos do cinema em Imagem-movimento e em
Imagem-tempo, discriminando seus signos, pensando relações constitutivas dessa arte em
suas variações. Além do cinema, há muita literatura pensada nesse meio deleuzeano. É o
que ocorre no livro escrito por Deleuze e Guattari, Kafka – Por uma literatura menor.
Neste livro, certas noções ganham duradoura consistência, como a de agenciamento, a de
devir imperceptível, de máquina social etc. E nele também aprendemos que fazer fugir é
muito mais que criticar. Essa auto-exigência deleuzeana é praticada justamente em Crítica
e clínica, uma reunião de textos, muitos dedicados à escrita literária: crítica, como traçado
do plano de consistência da obra, e clínica como traçado de linhas sobre esse plano: o
delineamento do bebê como combate, o de uma lógica extrema sem racionalidade, o da
avaliação imanente, o dos cristais do inconsciente etc. Proliferam outros recantos nesses
percursos: Diálogos; Conversações, A Ilha deserta e Dois regimes de loucos, coletâneas
importantes para quem se interesse pela pluralidade das facetas teóricas e práticas dos
debates culturais e políticos contemporâneos. A colaboração entre Deleuze e Guattari
propiciou mais três outros livros de grande alcance: uma nova teoria do desejo em O Anti-
Édipo, desejo não mais marcado pela falta, mas por uma produtividade coextensiva ao meio
natural-social-histórico; um vasto e complexo inconsciente espinosano distribuído em
planos intensivos em Mil platôs; e nova concepção do que seja ou deva ser a própria
filosofia em O que é a filosofia? Esses percursos são multiplicáveis. Seria uma dispersão de
temas justapostos carentes de um modelo interpretativo? Nada disso. Nele, qualquer coisa
pode forçar o pensamento filosófico a cumprir sua única tarefa: sentir e pensar o jogo
problemático dos encontros, o jogo que envolve a diferença e o problema em pauta em cada
caso, como tematiza Diferença e repetição. Para não fazer o jogo dos guardiões da
representação, impõe-se que o próprio jogo da diferença fuja sem receituários
metodológicos: na experiência real dos encontros, todo e qualquer X se diz univocamente
como correspondências problemáticas de heterogeneidades que chicoteiam o pensar.
As paisagens e os operadores conceituais dessa filosofia favorecem o deslocamento
por ela e se ajustam a variados interesses: viabiliza instrumentalizações culturais, sejam as
propulsoras de modismos ou as que operam como intercessoras junto a criações nas mais
variadas atividades intelectuais; como qualquer filosofia, propicia também inúmeras
monografias acadêmicas, dissertações de mestrado e teses de doutorado; ao mesmo tempo,
essa filosofia é multifacetada pelas publicações de coletâneas de comentários inter ou
transdisciplinares61. Além disso, a multiplicidade conceitual deleuzeana torna possível o
advento de densos comentários utilíssimos como auxiliares de leitura62. É claro que essa
61 Faço uma primeira referência a dois conjuntos de artigos marcantes a esse respeito: Deleuze, em L’Arc, nº 49, Paris: 1972 (e nova edição em 1980) e Gilles Deleuze em Philosophie nº 47: Paris, Minuit, 1995. Cf. também Paul Patton, Deleuze: a critical reader, Oxford: Blackwell, 1996. Além de outros conjuntos, como Gilles Deleuze – Immanence et vie, Rue Descartes, Paris: P.U.F., 1998, destaco a reunião de 40 artigos em: Bruno Gelas e Hervé Micolet (Dir.), Deleuze et les écrivains: Littérature et philosophie, Nantes: Éd. Cecile Defaut, 2007. Sobre encontros no Brasil, cf., por ex., Eric Alliez (Dir.), Gilles Deleuze – une vie philosophique – Rencontres Internationales RJ-SP 14-14 junho de 1996, Paris: Institut Synthélabo, 1998, tradução brasileira coordenada por Ana Lúcia de Oliveira: Gilles Deleuze: uma vida filosófica, São Paulo: Editora 34, 2.000. Temos a série “Deleuze e Nietzsche”: são comunicações apresentadas nos “Simpósios Internacionais de Filosofia” organizados em Fortaleza por Daniel Lins e colaboradores: Intensidade e paixão, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000; Pensamento nômade, Idem, 2001; Que pode o corpo, Idem, 2002; Bárbaros, Civilizados, São Paulo: Anablume, 2004; Arte,Resistência, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007; Imagem, Literatura, Educação, Idem, 2007. Margareth Rago (Org.), Imagens de Foucault e Deleuze, Rio de Janeiro: Ed. DP&A, 2002. Vários Autores, A diferença, Campinas, Ed. Unicamp, 2005.62 É um “exercício lógico adjacente” que encontramos literalmente em François Zourabichvili, Deleuze. Une philosophie de l’événement, 1ª ed., Paris: P.U.F, 1994, p. 5 ; 2ª ed. revista e ampliada, Paris : Quadrige / P.U.F, 2004, p. 13. No ano anterior, já encontrávamos numerosas explicitações em Jean-Clet Martin, Variations – la philosophie de Gilles Deleuze, Paris, Payot, 1993 Por sua vez, Philippe Mengue, Gilles Deleuze ou le système du multiple, Paris: Éd. Kimé, 1994, faz uma sondagem extensa de múltiplos pontos da inserção filosófica de Deleuze. O procedimento de uma leitura auxiliar reaparece em Eric Alliez, La Signature
multiplicidade também suscita a vontade de pensar seu conjunto em função desta ou
daquela estratégia interpretativa, seja uma estratégia que visa submeter o pensamento alheio
por meio do destaque ardiloso de um conceito que opera sob determinadas condições na
obra, condições que são, porém, minimizadas pelo ardil interpretativo63, seja uma estratégia
que visa pensar Deleuze em relação a outros filósofos 64 ou a que faz dele um pensamento
que arromba “burocracias intelectuais” 65, ou a estratégia que elabora determinados tópicos,
abrindo horizontes em outros campos 66. Em suma, embora limitadas, essas referências
bibliográficas dão um sinal do quanto os encontros com os escritos deleuzeanos,
espalhando visões e audições por toda parte, favorecem diferentes e diferenciadoras
retomadas em dicções dos mais variados matizes.
du monde, Paris: Ed. du Cerf, 1995, tr. br. de Maria Helena Rouanet, A assinatura do mundo – O que é a filosofia de Deleuze e Guattari?, Rio de Janeiro, 1995. Ver também Eric Alliez, Deleuze. Filosofia virtual, tr. br. de Heloisa B. S. Rocha, São Paulo, Editora 34, 1996. Arnaud Villani dá indicações metodológicas preciosas em “Méthode et théorie dans l’oeuvre de Gilles Deleuze”,, em Les Temps Modernes nº 586, Paris, jan.-fev. de 1996. Há um minucioso percurso pela noção deleuzeana de tempo em Peter Pál Pelbart, O tempo não-reconciliado, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998; E muitos outros livros poderiam ser aqui referidos.63 É uma tal estratégia que noto em Alain Badiou, Deleuze, la clameur de l’Être, Paris: Hachette, 1997 ou em Alberto Gualandi, Deleuze, Paris : Les Belles Lettres, 1998. Não busco mobilizar leitores contra esse tipo de ardil, mas apenas ficar de olho em seu jeito de reter o fluxo alheio, de enquadrar o “flufluxo” do outro, como diria Guimarães Rosa, Ave, Palavra, 28/38, cf. Nilce Santana Martins, O léxico de Guimarães Rosa, São Paulo: Edusp, 2001.64 Este é um dos traços, não único, é claro, do livro pioneiro de Roberto Machado, Deleuze e a filosofia, Rio de Janeiro: Graal, 1990, assim como do livro de Michael Hardt, Gilles Deleuze – an apprenticeship in philosophy, Regents of the University of Minnesota, 1993. Cf. também Manola Antonioli, Deleuze et l’histoire de la philosophie, Paris : Kimé, 1999.65 . Jose Luis Pardo, Deleuze: violentar el pensamiento, Madrid: Ed. Cincel, 1990, p. 766 Por exemplo, a busca de uma “estética” de Deleuze em Mireille Buydens, Sahara – L’Esthétique de Gilles Deleuze, Paris: Vrin, 1990; ou a relação dele com o tema da “linguagem” em Jean-Jacques Lecercle, Deleuze and Language, Palgrave Macmillan, 2002 e em Júlia Almeida, Estudos deleuzeanos da linguagem, Campinas: Ed. Unicamp, 2003; ou a exploração do tema da geofilosofia em Manola Antonioli, Geophilosophie de Deleuze et Guattari, Paris: L’Harmattan, 2003; a presença deleuzeana em educação pode ser notada em Sylvio de Sousa Gadelha, Subjetividade e menor-idade, São Paulo: Anablume, 1998, em Tomaz Tadeu, Sandra Corazza e Paola Zordan, Linhas de escrita, Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2004, preocupação que é também a de Sílvio Gallo, Deleuze e a educação, Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2005. Pode-se acompanhar a presença sutil de Deleuze em música, lendo Silvio Ferraz, Música e repetição – a diferença na composição contemporânea, São Paulo: Educ, 1998 e Livro das sonoridades, Rio de Janeiro, 7 Letras, 2005. A busca de uma ontologia reaparece em Véronique Berger, L’ontologie de Gilles Deleuze, Paris: L’Harmattan, 2001. E a respeito da relação de Deleuze com o Cinema, cf. o livro de Jorge Vasconcelos, Deleuze e o Cinema, Rio de Janeiro: Ed. Ciência Moderna, 2006, e a bibliografia nele referida; em estudos literários, Paulo Tarso Cabral de Medeiros, exercita um delicado enlace entre Rosa e alguns conceitos de Deleuze e Guattari em Travessuras do desejo em Grande Sertão: Veredas (no prelo); em psicologia clínica, entre muitos outros estudos, encontramos o de Aragon, L.E.P., O impensável na Clínica: virtualidades nos encontros clínicos, Porto Alegre: Sulina, Ed. da UFRGS, 2007.
* * *
Bibliografia
Os escritos de Deleuze, cuja publicação ele autorizou, estão reunidos em cerca de
trinta e duas obras. Anotamos abaixo uma seleção delas.
Empirisme et subjectivité, Paris : P.U.F., 1953. (Empirismo e subjetividade, tr. br. de Luiz B. L. Orlandi, São Paulo: Editora 34, 2001).
Nietzsche et la philosophie, Paris : P.U.F., 1962. (Nietzsche e a filosofia, tr. br. de Ruth
Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias, Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976).
Proust et les signes, Paris : P.U.F., 1976. (Proust e os signos, tr. br. da 4a ed. fr. de Antonio Piquet e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987).
Le bergsonisme, Paris, P.U.F., 1966. (Bergsonismo, tr. br. de Luiz B. L. Orlandi, São Paulo: Ed. 34, 1999. Anexos: “A concepção da diferença em Bergson” (1956), tr. br. de Lia Guarino e Fernando Fagundes Ribeiro, pp 95-123, e “Bergson, 1859-1941” (1956), tr. br. de Lia Guarino, pp 125-139).
Différence et répétition, Paris: P.U.F., 1968. (Diferença e repetição, tr. br. de Luiz Orlandi e Roberto Machado, Rio de Janeiro: Graal, 1ª ed. 1988; 2ª ed. 2006).
Spinoza et le problème de l’expression, Paris : Minuit, 1968. (Spinoza y el problema de la expresión, tr. esp. de Horst Vogel, Barcelona : Muchnik Ed., 1996).
Logique du sens, Paris: Minuit, 1969. (Lógica do sentido, tr. br. de Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo: Perspectiva, 1982).
L’anti-Oedipe (c/ Félix Guattari), Paris: Minuit, 1972. (O anti-édipo, tr. br. de Geoges Lamazière, Rio de Janeiro: Imago, 1976).
Dialogues (c/ Claire Parnet), Paris: Flammarion, 2ª ed. 1996. (Diálogos, tr. br. de Eloísa A.
Ribeiro, São Paulo: Escuta, 1998).
Mille Plateaux (c/ F. Guattari), Paris : Minuit, 1980. (Mil platôs, trad. br. coletiva em 5 vol. São Paulo: Ed. 34).
Spinoza. Philosophie pratique, Paris : Minuit, 1981. (Espinosa. Filosofia prática, tr. br. de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins, São Paulo: Escuta, 2002).
Cinéma 1. L’image-mouvement, Paris: Minuit, 1983. (Cinema 1. A imagem-movimento, tr. br. de Stella Senra, São Paulo: Brasiliense, 1985).
Cinéma 2. L’image-temps, Paris, Minuit, 1985. (Cinema 2. A imagem-tempo, tr, br. de Eloísa A. Ribeiro, São Paulo: Brasiliense, 1990).
Foucault, Paris: Minuit, 1986. (Foucault, tr. br. de Claudia Sant’Anna Martins, São Paulo, Brasiliense, 1988).
Le pli. Leibniz et le baroque, Paris : Minuit, 1988. (A dobra. Leibniz e o barroco, tr. br. de Luiz B.L.Orlandi, Campinas: Papirus, 1ª ed. 1991; 2ª ed. 2000).
Pourparlers (1972-1990), Paris: Minuit, 1990. (Conversações (1972-1990), tr. br. de Peter Pál Pelbart, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992).
Qu’est-ce que la philosophie?, (c/ F. Guattari), Paris: Minuit, 1991. (O que é a filosofia?, tr. br. de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz, Rio de Janeiro: Editora 34, 1992).
Critique et clinique, Paris : Minuit, 1993. (Crítica e clínica, tr. br. de Peter Pál Pelbart, São Paulo: Editora 34, 1997).
L’île déserte et autres textes (textes et entretiens 1953-1974). Éd. préparée par David Lapoujade, Paris, Minuit, 2002. A Ilha deserta e outros textos (textos e entrevistas 1953-1974). Tr. br. Coletiva, São Paulo: Iluminuras, 2006).
Deux régimes de fous ( textes et entretiens 1975-1995). Éd. Préparée par David Lapoujade, Paris : Minuit, 2003. (Two Regimes of Madness – Texts and Interviews 1975-1995. Tr. inglesa de Ames Hodges and Mike Taormina, Edimburgo : Edinburgh
University Press, 2006).* * *
Dados a respeito do autor do ensaio
Luiz B. L. Orlandi
Nome completo: Luiz Benedicto Lacerda Orlandi
Mestre em Poética pela Universidade de Besançon – França (1970).
Doutor em Filosofia pela Unicamp (1974).
Professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Professor junto ao Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade da Puc-SP.
Diretor Adjunto do Centro de Estudos da História da Filosofia Moderna e Contemporânea
do Ifch-Unicamp.
xxxxxxxxxxxxx
top related