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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Direito
Ailana Santos Ribeiro
A CRISE ÉTICA DO DIREITO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO
Belo Horizonte 2018
Ailana Santos Ribeiro
A CRISE ÉTICA DO DIREITO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO
Dissertação apresentada ao programa pós-graduação
stricto sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito
Orientadora: Professora Doutora Maria Cecília Máximo Teodoro Área: Direito Privado Linha de pesquisa: Trabalho, Modernidade e Democracia
Belo Horizonte 2018
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Ribeiro, Ailana Santos
R484c A crise ética do direito do trabalho na sociedade do consumo / Ailana
Santos Ribeiro. Belo Horizonte, 2017.
164 f.
Orientadora: Maria Cecília Máximo Teodoro
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito
1. Trabalho - Aspectos sociais. 2. Consumo (Economia) - Aspectos sociais. 3.
Direito do trabalho. 4. Sociedade de consumo. 5. Direito e ética. I. Teodoro,
Maria Cecília Máximo. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
CDU: 331.16
Ficha catalográfica elaborada por Roziane do Amparo Araújo Michielini – CRB 6/2563
Ailana Santos Ribeiro
A CRISE ÉTICA DO DIREITO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO
Dissertação apresentada ao programa pós-graduação
stricto sensu da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Direito.
____________________________________________________________ Prof. Dra. Maria Cecília Máximo Teodoro (Orientadora)
____________________________________________________________ Prof. Dr. Márcio Túlio Viana _____________________________________________________________ Prof. Dr. Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
Belo Horizonte, 09 de março de 2018
AGRADECIMENTOS
À minha linda mãe, luz que aquece e clareia a minha existência.
A Ed, solo que firma, céu que abriga.
Ao Professor e amigo Cláudio Jannotti, anjo que confia e guia.
À Professora Maria Cecília, que, feito água, me regou.
Ao Professor Cléber Lúcio, fonte inesgotável de inspirações.
Ao Professor Márcio Túlio, pela grandiosidade da sua existência.
RESUMO
O presente estudo pauta-se na investigação acerca das novas interações entre os
institutos do trabalho e do consumo na pós-modernidade. Por meio de uma pesquisa
essencialmente bibliográfica, pretende-se demonstrar que as transformações
empreendidas pelo capital na segunda metade do século XX determinaram o
deslocamento do foco do sistema produtivo da oferta para demanda, inaugurando um
modelo de sociedade fundada, predominantemente, no consumo. Assim, sem perder
a centralidade que lhe é conferida, sobretudo, pela sociedade capitalista, o trabalho
foi se reduzindo à condição de mero instrumento viabilizador do consumo. Nesse novo
contexto, as relações de trabalho, antes sólidas e estáveis, foram assumindo novas
conformações, consonantes com o ideal de flexibilidade ditado pelo capitalismo, em
seu novo estágio; ao trabalhador, também foi preciso conformar-se, sob pena de se
tornar inútil perante o mercado produtivo flexível consolidado. O mesmo processo de
adaptação aos novos ditames do capital, na sociedade do consumo, também atingiu
o Direito do Trabalho, fonte de uma proteção cujo viés econômico, patrimonial,
monetário, sobressai-se cada vez mais aos valores sociais e humanos que,
originariamente, fundamentam a sua existência e norteiam a sua aplicação, definindo
o que se denomina de ética justrabalhista. Desse modo, até que ponto o movimento
no sentido de adequação do Direito do Trabalho aos moldes da sociedade do
consumo transcende a uma simples conformação, culminando no que se denomina
de crise ética do Direito do Trabalho, é o que se propõe a investigar.
Palavras-chave: Trabalho. Consumo. Direito do Trabalho. Sociedade do consumo. Crise ética.
ABSTRACT
The present study is based on the research about the new interactions between the
institutes of labor and consumption in postmodernity. By means of the method of
bibliographical research, it aims to demonstrate that the transformations undertaken
by capital in the second half of the twentieth century determined the shift of the focus
of the productive system from supply to demand, inaugurating a model of society
based, predominantly, on consumption. Thus, without losing the centrality conferred
on it, above all by capitalist society, the labor was reduced to the condition of mere
instrument to enable consumption. In this new context, labor relations, once solid and
stable, have assumed new conformations, consonant with the ideal of flexibility
dictated by capitalism in its new stage; to the worker, it was also necessary to conform,
under penalty of becoming useless before the consolidated flexible productive market.
The same process of adaptation to the new dictates of capital, in the society of
consumption, also reached the Labor Law, source of a protection whose economic,
patrimonial, monetary bias, stands out more and more to the social and human values
that, originally, base their existence and guide their application, defining what is known
as a work ethic. Thus, the extent to which the movement in the sense of the adequacy
of the Labor Law to the molds of the consumer society transcends a simple
conformation, culminating in what is called the ethical crisis of Labor Law, is what it
proposes to investigate.
Keywords: Labor. Consumption. Labor Law. Consumer society. Ethical crisis.
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................. 15
2 SOCIEDADE E TRABALHO .................................................................................. 19
2.1 .. A humanidade do ser e a sociabilidade no mundo: uma reflexão a partir de
Hannah Arendt ......................................................................................................... 19
2.2 Trabalho na pré-modernidade: a existência quase-humana do ser humano
.................................................................................................................................. 24
2.3Trabalho na modernidade: o inteirar e o inteirar-se do ser humano ............. 27
3 CAPITALISMO E TRABALHO .............................................................................. 33
3.1 Do feudalismo ao capitalismo: mudam as regras do jogo da exploração ... 33
3.2 O ethos do capitalismo industrial e a racionalização econômica do trabalho
.................................................................................................................................. 38
3.3A relação simbiótica entre capital e trabalho assalariado .............................. 44
4 A SOCIEDADE FUNDADA NO TRABALHO ASSALARIADO ............................. 47
4.1 A nova ordem industrial e o padrão produtivo fordista-taylorista ................ 47
4.2 O trabalho assalariado enquanto fator de solidez na nova ordem industrial
.................................................................................................................................. 54
5 DIREITO DO TRABALHO NO BOJO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL:
COMPREENDENDO O ESPÍRITO JUSTRABALHISTA .......................................... 59
5.1 A proteção social estatal no interior da sociedade industrial: movimentos
precursores .............................................................................................................. 59
5.2 O advento do Direito do Trabalho: “luxo” ideológico ou necessidade real?
.................................................................................................................................. 65
5.3 O espírito do Direito do Trabalho .................................................................... 73
6. A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL SOB O PARADIGMA DA
ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL ...................................................................................... 81
6.1 O capital em crise .............................................................................................. 81
6.2 A reanimação do capital: toyotismo, desregulamentação e flexibilização .. 87
7 A SOCIEDADE DO CONSUMO: UM MISTO DE INSTANTES ETERNOS,
HETEROFILIA, NECESSIDADES COMPLEXAS E INSATISFAÇÃO PERMANENTE
.................................................................................................................................. 99
8 A REALOCAÇÃO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO E O
DIREITO DO TRABALHO ENTRE A PROTEÇÃO AO “TRABALHADOR-
CONSUMIDOR” E AO “CONSUMIDOR-TRABALHADOR” .................................. 115
8.1 O “eu trabalhador” à serviço do “eu consumidor”: repercussões sobre a
relação capital-trabalho ........................................................................................ 115
8.2 Do “pão” ao “smartphone de última geração”: a nova lógica interativa entre
trabalho e consumo .............................................................................................. 124
8.3 Direito do Trabalho ou “Direito reificador do trabalho”? Para além de um
novo espírito, uma crise ética .............................................................................. 130
8.4 Buscando sentidos e mecanismos práticos no plano jurídico-trabalhista:
autogestão do tempo, redução da jornada de trabalho, “segundo cheque”,
atuação sindical .................................................................................................... 144
8.5 O Direito do Trabalho e o futuro: perspectivas à luz de uma ordem pós-
consumista ............................................................................................................ 149
9 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 157
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 161
15
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Minhas coisas falam muito de mim Meu trabalho ainda fala de mim
Eu já falo pouco por mim
É tanto trabalho São tantas coisas
Tudo mais virou grão
Meu tempo Minha dança
Minha andança
Meu eu sem mim
(RIBEIRO, 2017)
Refletir sobre trabalho e consumo é refletir acerca de dois grandes pilares da
sociedade, em todas as suas fases e estágios já vivenciados.
O ser humano, desde os tempos mais remotos, realiza as suas atividades
cotidianas básicas mediante a combinação de atos de trabalho e de consumo. Assim,
pode-se considerar que ambas as práticas, trabalho e consumo, relacionam-se
intimamente com o sujeito, permitindo-o externar as suas habilidades e satisfazer as
suas necessidades mais básicas e de caráter vital.
Na segunda metade do século XX, o capitalismo industrial, ancorado no
modelo produtivo taylorista-fordista, caracterizado, sobretudo, por uma produção
vertiginosa e em massa, entra em colapso, exigindo a introdução de novas práticas
produtivas e de uma nova configuração para o mercado a ser reerguido.
Foi neste contexto que a sociedade industrial, movida pela e para a produção
– vez que o acúmulo de riquezas, legitimado e preconizado pelas doutrinas
protestantes, era considerado um fim em si mesmo –, diante da necessidade de
escoar os grandes volumes de produtos nos estoques e de retomar os patamares de
expansão econômica, deslocou o seu eixo da produção para o consumo.
A partir de então, o estímulo à demanda, que se realiza no consumo, passou
a ser compreendido como ferramenta imprescindível à regeneração do capital.
Consequentemente, o ato de consumir tornou-se, muito além de um meio de se
atender a necessidades humanas básicas, uma prática imposta, desvinculada da
noção de necessidade e da categoria do “suficiente”.
16
Estabeleceu-se, portanto, a sociedade do consumo: movida pelo e para o
consumo. Consequentemente, no campo do trabalho iniciou-se um movimento no
sentido de adequação aos novos preceitos ditados pela razão econômica, ainda mais
pungente nesse modelo de sociedade, regida pelo fenômeno do consumismo: o
imediatismo, a eficiência, a fugacidade, a superficialidade, a versatilidade, o
individualismo, a flexibilidade.
Desse modo, sem perder a centralidade que lhe é conferida, sobretudo, pela
sociedade capitalista, o trabalho foi se distanciando cada vez mais da noção de fim
em si mesmo e sendo reduzido à condição de mero instrumento viabilizador do
consumo. Por conseguinte, as relações de trabalho, antes sólidas e estáveis, foram
assumindo novas conformações consonantes com o ideal de flexibilidade ditado pelo
capitalismo; ao trabalhador também foi preciso conformar-se, sob pena de se tornar
inútil perante o mercado produtivo flexível consolidado.
Esse mesmo processo de adaptação subserviente aos ditames do capital, na
sociedade do consumo, atingiu o Direito do Trabalho e tem sido enfrentado com ar de
fatalidade pela sociedade, inclusive pelos próprios trabalhadores, destinatários de
uma proteção cujo viés econômico, patrimonial, monetário, sobressai-se cada vez
mais ao viés social e humano que define a ética justrabalhista.
Assim, até que ponto esse processo de subserviência do Direito do Trabalho
aos ditames da sociedade do consumo transcende a uma simples conformação,
culminando no que se denomina de crise ética do Direito do Trabalho, é o que se
propõe a investigar.
Nesse sentido, a presente pesquisa orbita em torno do seguinte
questionamento: a subsunção do Direito do Trabalho à lógica econômico-flexível da
sociedade do consumo compromete o conjunto de valores e princípios fundantes,
justificadores e norteadores do ramo justrabalhista, que compõem o que se denomina
“ética” do Direito do Trabalho?
Buscando se posicionar acerca do referido problema, inicialmente, por meio
do método científico dedutivo e mediante uma pesquisa essencialmente bibliográfica,
complementada por estudos de casos e dados estatísticos, pretende-se analisar as
dimensões estruturantes do trabalho e do consumo na sociedade capitalista, bem
como compreender as raízes históricas do Direito do Trabalho e o arcabouço
principiológico e axiológico que lhe é intrínseco.
17
Em seguida, perpassando-se pelas transformações políticas, econômicas,
culturais, religiosas, ideológicas e axiológicas vivenciadas na transição da
modernidade para a pós-modernidade (ou modernidade sólida para a modernidade
líquida), buscar-se-á promover uma análise crítica das reverberações do novo modelo
de sociedade inaugurado e, sobretudo, do novo modelo de produção capitalista sobre
o mundo do trabalho.
A partir desta análise crítica, pretende-se demonstrar que a reestruturação
produtiva do capital, empreendida a partir da segunda metade do século XX,
determinou o deslocamento do interesse do sistema produtivo para a demanda,
culminando na consolidação de uma sociedade predominantemente fundada no
consumo. Objetiva-se, também, demonstrar, com respaldo na teoria da “crítica da
razão econômica do trabalho”, do sociólogo francês André Gorz, que, na pós-
modernidade, o trabalho encontra-se submetido a uma racionalização econômica
significativamente mais intensa, assumindo caráter essencialmente instrumental e se
distanciando sobremaneira da esfera da realização pessoal – deslocada para o plano
do consumo.
Neste novo cenário, conforme se verá, novas formas de estratificação social,
bem como de auto reconhecimento, passam a ser percebidas, uma vez que o sujeito
pós-moderno tende a se identificar e ser identificado muito mais como consumidor do
que como trabalhador. Do mesmo modo, o Direito do Trabalho, assim como o seu
objeto regulador, as relações de trabalho assalariado, seguem uma tendência de
subsunção a uma racionalidade estritamente econômica, em franco prejuízo dos seus
propósitos sociais e humanos.
Regido por uma razão prevalentemente econômica, nos termos do que
demonstrará, o ramo juslaboral, em detrimento do seu compromisso social e
humanístico, tende a priorizar o viés econômico das tutelas, direitos e garantias do
trabalhador, protegendo-o mais no seu papel de consumidor do que propriamente de
trabalhador, inviabilizando, assim, a edificação de uma “cultura do trabalho”, que se
entende ser indispensável para o que Gorz (2003) denomina “cultura do viver”.
Por todas essas razões, entende-se ser relevante a investigação científica
acerca das transmutações vivenciadas pelos institutos do trabalho e do consumo na
pós-modernidade, a fim de que, compreendendo-se os seus reais sentidos e
propósitos, compreenda-se se o Direito do Trabalho, enquanto instituto que lida com
a força de trabalho em si e com o seu principal consectário, a renda, encontra-se apto
18
a cumprir a sua finalidade ética de proteger, simultaneamente, o ser humano como
trabalhador e o trabalhador como ser humano.
19
2 SOCIEDADE E TRABALHO
Esse homem que vos fala
Não sabe o que é viver sem trabalhar Ora! E nem quero saber
Quero mais é viver pra trabalhar E morrer de trabalhar
Como fizeram meu Avô, meu Pai e meu Irmão Que viveram e morreram com a enxada na mão
(RIBEIRO, 2017)
2.1 A humanidade do ser e a sociabilidade no mundo: uma reflexão a partir de
Hannah Arendt
Quando me tornei parte, deixei ali muito de mim
E como parte que perde uma parte
Ainda espero do mundo encaixes que sirvam em mim
(RIBEIRO, 2017)
Dentre as incontáveis espécies de seres vivos, encontram-se os seres
humanos: pertencentes ao gênero homo, derivado do termo em latim humanus,
correspondem aos seres vivos que, biologicamente, destacam-se pelo elevado
desenvolvimento físico e, sobretudo, cerebral, favorável à interação racional com o
meio que os cercam.
Assim, falar de natureza humana pressupõe, sem dúvida, que se leve em
consideração aspectos da fisiologia, anatomia, histologia, evolução, genética e tudo
mais que integra a ciência da Biologia. O que não quer dizer que o conhecimento
isolado de tais aspectos seja suficiente para definir e tampouco compreender a
natureza humana.
Fato é que, ao lado dos fatores biológicos atuam os fatores sociológicos, como
o tempo, o lugar e a história, pré-moldando (e não moldando definitivamente, como
entendem os adeptos do darwinismo social) os seres enquanto humanos.
Assim, expressando essa atuação conjunta de fatores sociológicos e
biológicos sobre os seres humanos, a sua natureza - seja entendida enquanto aquilo
é irredutível em todo ser humano ou enquanto aquilo que é mais essencial ao humano
-, tem sido investigada, há séculos, como o ponto de partida para a compreensão das
relações humanas, que, simultaneamente, determinam e são determinadas pela vida
em sociedade. (CAVARERO; BUTLER, 2005, p. 651)
20
Thomas Hobbes e John Locke, grandes teóricos do contratualismo social, que
floresceu na modernidade para propor formas de se conciliar a supervalorização da
individualidade humana com o natural antagonismo entre os seres humanos, cujos
objetivos nem sempre são coincidentes, embasaram as suas respectivas teorias do
contrato social em concepções objetivas - e antagônicas - da natureza humana.
Hobbes, ao preconizar o Estado Leviatã, partiu do pressuposto de que o
homem, enquanto “lobo do homem”, sujeita-se a um estado de natureza negativo,
demandando, portanto, a existência de um soberano com poderes absolutos para
inibir o caos social. Locke, por sua vez, ao preconizar o Estado Mínimo, embasou-se
em uma concepção positiva, benigna, da natureza humana, que tornaria injustificada
e ilegítima qualquer intervenção estatal que excedesse a proteção à segurança e à
propriedade privada. (MORISON, 2006, p.32)
Desconfiando da plausibilidade de se objetivar a natureza humana, Hannah
Arendt (2014, p.12) considerou que a simples soma das capacidades e atividades
humanas por excelência pode se revelar como condição para a existência humana,
num dado momento e contexto histórico, mas não pode ser considerada um
equivalente à natureza humana, enquanto essência do homem.
Na visão de Arendt (2014, p.12), a natureza humana, que se revela na
“questão que me tornei para mim mesmo” (“quaestio mihi factus sum”), é uma questão
muito mais teológica do que propriamente biológica ou sociológica.
Isso porque, segundo a filósofa, uma legítima resposta ao questionamento “o
que sou? ”só poderia advir de uma resposta divina. Os seres humanos, embora aptos
a conhecerem a natureza ou essência das coisas que os rodeiam, jamais seriam
capazes de fazer o mesmo a seu próprio respeito: seria como pular as suas próprias
sombras.
É altamente improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e definir a essências naturais de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos, sejamos capazes de fazer o mesmo a nosso próprio respeito: seria como pular as nossas próprias sombras. Além disso, nada nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas têm. Em outras palavras, se temos natureza ou essência, então certamente só um deus poderia conhecê-la e defini-la, e a primeira precondição é que ele pudesse falar de um “quem” como se fosse um “quê”. (ARENDT, 2014, p.13)
21
Esclarece, ainda, a autora que qualquer tentativa humana no sentido de definir
a sua própria natureza acabaria por resultar na construção de uma deidade,
distanciando o homem da mundanidade e deformidade que lhes são intrínsecas:
A perplexidade decorre do fato de as formas de cognição humana aplicáveis às coisas dotadas de qualidades “naturais” – inclusive nós mesmos, na medida limitada em que somos exemplares da espécie de vida orgânica mais altamente desenvolvida – de nada nos valerem quando levantamos a pergunta: e quem somos nós? É por isso que as tentativas de definir a natureza humana resultam quase invariavelmente na construção de alguma deidade, isto é, no deus dos filósofos que, desde Platão, revela-se, em um exame mais acurado, como uma espécie de ideia platônica do homem. (ARENDT, 2014, p.14)
Assim, entendendo que presumir que o ser humano possua uma essência e,
ainda, pretender definir e objetivar essa essência é tarefa inalcançável para seres não
divinos, mas sem ignorar o fato de que existem condicionantes comuns a toda
existência humana, Arendt (2014), em lugar de natureza, centra-se na investigação
do que denomina de “condição humana”.
Os humanos são, invariavelmente, seres condicionados. Tudo aquilo que se
adentra ao mundo, por si próprio ou mediante o esforço do homem, torna-se um
condicionante da sua existência. Assim, o homem que, simplesmente por existir,
impacta o mundo, é também impactado pelo mundo, e esse intercâmbio é exatamente
o que confere sentido à existência de um e de outro. Em outras palavras, “a existência
humana seria impossível sem coisas, e estas seriam um amontoado de artigos
desconectados, um não-mundo, se não fossem os condicionantes da existência
humana”. (ARENDT, 2014, p.12)
Segundo a filosofia arendtiana são três as condições básicas para o caráter
humano da existência do homem: o trabalho, a obra e a ação.
O trabalho, corresponde à atividade biológica humana direcionada a satisfazer
as necessidades vitais do homem; a obra corresponde ao mundo artificial de coisas,
à mundanidade; a ação consiste no relacionamento puro entre os homens, sem a
intermediação de coisas, sendo a base de toda a vida política. (ARENDT, 2014, p.9)
Dentre as referidas condições humanas básicas, a ação é, portanto, a
responsável por desvelar que uma existência verdadeiramente humana transcende a
individualidade e a materialidade, isto é, o simples existir mediante a interação com
as coisas do mundo.
22
Além de existir, atendendo às suas necessidades vitais e interagindo com um
mundo de coisas criadas, o homem precisa se relacionar com outros homens, pelo
simples fato de que “os homens e não o Homem vivem na Terra e habitam o mundo”
(ARENDT, 2014, p.9)
Assim, pode-se considerar que a ação, como reflexo da pluralidade, é a
condição de toda a vida política, que organiza e rege o que se convencionou
denominar de sociedade:
As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e, no entanto, esse ambiente, o mundo no qual nascemos, não existira sem a atividade humana que o produziu, como no caso de coisas fabricadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; o que o estabeleceu por meio da organização, como no caso do corpo político. Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos. (ARENDT, 2014, p. 27)
Tendo em vista justamente essa imbricação entre a existência do homem e a
convivência com outros homens, na antiguidade, e mais precisamente no vocabulário
romano, “viver” e “estar entre os homens” eram expressões consideradas sinônimas,
assim como o eram as expressões “morrer” e “deixar de estar entre os homens”,
conforme ensina Arendt:
[...] a língua dos romanos - talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter homines esse) ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter homines esse desinere). Mas em sua forma mais elementar, a condição humana da ação está implícita até em Gênesis (“Macho e fêmea, Ele os criou”), se entendermos que esse relato da criação do homem é distinto, em princípio, do outro segundo o qual Deus originalmente criou o Homem (adam) – “ele” e não eles, de modo que a multidão dos seres humanos vem a ser o resultado da multiplicação. (ARENDT, 2014, p. 10)
Nesse sentido, enquanto reflexo da convivência entre uma pluralidade de
homens, a ação, base para a atividade política, seria apenas um “luxo desnecessário”,
e não uma condição da existência humana, se esses homens fossem meras
repetições intermináveis de um modelo objetivo, único e previsível, como a natureza
das coisas que os rodeiam. (ARENDT, 2014, p.10)
E se a humanidade ou caráter humano do ser, além do trabalho e da obra,
pressupõe a ação, e se a ação é a base para a política, que rege a vida em sociedade,
23
pode-se dizer que São Tomás de Aquino acertou quando, ao traduzir a expressão
aristotélica zõon politikõn (animal político) acrescentou o termo “social”, consagrando-
a como “homo est naturaliter politicus, id est socialis” (o homem é por natureza político,
isto é, social). (ARENDT, 2014, p.28)
Todo esse raciocínio conduz à percepção de que a capacidade política
humana é, portanto, o grande fator viabilizador da organização das pessoas e das
coisas do mundo em um corpo social, que, na antiguidade, institucionalizou-se sob a
forma de cidade-Estado ou pólis.
O surgimento das cidades-Estado representou um marco social de grande
relevância à medida que concedeu ao homem, oficialmente, uma segunda existência,
distinta daquela da qual desfrutava enquanto membro de uma família. Segundo Arendt
(2014, p.29), com a fundação da pólis, além da sua vida privada, o homem recebeu
uma espécie de segunda vida: o seu bios politikos.
Na esfera pública da pólis, a atuação do homem ocorria por meio da ação e
do discurso, que, na concepção de Aristóteles, correspondiam às únicas atividades
passíveis de serem consideradas políticas, uma vez que voltadas ao domínio de
assuntos humanos situados além da esfera da necessidade – que consistia em objeto
de preocupação restrito ao âmbito privado ou doméstico da vida dos homens.
(ARENDT, 2014, p.30)
Os atuantes na esfera pública eram, portanto, apenas as pessoas dotadas do
privilégio de atuarem de modo desvinculado da questão da sobrevivência, já que a
satisfação das suas necessidades vitais era garantida pela atuação de outros homens:
os escravos.
Assim, pode-se considerar que o que determinava o estado de escravidão de
um homem na antiguidade era a vinculação das atividades que realizava à satisfação
de necessidades, próprias ou alheias, por meio daquilo que, segundo a classificação
conceitual de Arendt, enquadrava-se na categoria do trabalho.
O fenômeno da necessidade correspondia, pois, a um fenômeno pré-político:
apenas liberando-se dela o homem poderia ascender ao espaço público para se
dedicar à atividade política e, por conseguinte, conquistar a liberdade.
No interior do lar, a liberdade era sempre inexistente, já que o objetivo das
atividades ali realizadas, por meio do trabalho, reduzia-se à satisfação de
necessidades básicas, ligadas à manutenção da própria vida. Assim, o homem que
24
vivesse unicamente a vida privada, por não ser admitido para adentrar o domínio
público, sequer era considerado inteiramente humano. (ARENDT, 2014, p. 47)
Observe-se, então, que reinava na antiguidade uma separação rígida entre a
vida pública e a vida privada, que não se imiscuíam por força da total incompatibilidade
entre os seus propósitos: alcançar a liberdade e atender a necessidades,
respectivamente.
Foi apenas em sede de modernidade, como se verá a seguir, que a atenuação
desse abismo veio a ocorrer, conferindo novos significados e dimensões às esferas
pública e privada da vida humana, bem como às atividades realizáveis em cada uma
delas.
2.2 Trabalho na pré-modernidade: a existência quase-humana do ser humano
Pago pela minha vida com a minha liberdade
A cada necessidade, um grão de liberdade
Perdida?
Não sei
Dizem que sim
Continuo dizendo que não sei
(RIBEIRO, 2017)
Num contexto em que a atividade política, componente da condição humana
da ação, realizava-se no âmbito público por meio dos poucos homens privilegiados
pelo desfrute da liberdade, o domínio privado do lar correspondia a uma esfera de
sujeição, na qual o homem, constrangido pelas necessidades vitais, existia não como
um “ser verdadeiramente humano, mas somente como um exemplar da espécie
animal humana”. (ARENDT, 2014, p.56)
Nesse sentido, o trabalho, enquanto atividade destinada à manutenção da
vida, restrita ao lar, era fator de sujeição, aprisionamento e exclusão social, na medida
em que obstaculizava a inserção do sujeito na vida da pólis. Trabalhar era curvar-se
à necessidade, agir em um constante estado de servidão à vida própria e alheia,
reduzindo a existência do homem a uma “quase-existência humana”. (GORZ, 2003,
p.22)
Realçando essa carga de menosprezo despejada sobre o trabalho e sobre o
ser que trabalhava, em sede de pré-modernidade, ensina Gorz que:
25
Em todas as sociedades pré-modernas, aquelas e aqueles que o realizavam eram considerados inferiores: pertenciam ao reino natural, não ao reino humano. Estavam submetidos a necessidades, incapazes, portanto, de elevação de espírito, de desinteresse, de tudo aquilo que habilitava a ocupar-se dos assuntos da política. [...] O homem livre recusava a submeter-se à necessidade; dominava seu corpo para não se transformar em escravo de suas necessidades materiais e, caso trabalhasse, era somente com a intenção de não depender daquilo que não domina, isto é, para assegurar ou ampliar a sua independência. (GORZ, 2003, p.22)
No mundo antigo, liberdade e necessidade eram, pois, forças contrárias,
terminantemente inconciliáveis, razão pela qual o trabalho, enquanto meio para
produzir e reproduzir as bases materiais necessárias à existência humana, jamais
integraria o reino da liberdade.
Preso ao reduto dos lares, o trabalho servia apenas à comunidade natural da
família; a busca desinteressada pelo bem público e o consequente desfrute de uma
boa vida correspondiam a um estágio transcendente ao da materialidade da vida, no
qual as potencialidades humanas eram externadas, compartilhadas e revertidas em
liberdade para o ator do meio público.
Essa concepção antropológica do trabalho, enquanto reflexo da necessidade
do homem de subsistir “com o suor do seu rosto”, perdurou por toda a antiguidade,
prevalecendo ainda nos tempos medievais. Foi apenas com o advento da
modernidade que o trabalho, enquanto categoria sociológica, fonte de identidade e de
integração social do homem, tornou-se reconhecido. (GORZ, 2003, p. 23)
Mas antes de se adentrar às alterações profundas que atingiram a categoria
do trabalho na modernidade, é importante pontuar que, enquanto dispêndio de energia
em prol da satisfação de necessidades, para além da antiguidade, o trabalho
acompanhou a trajetória humana desde os tempos pré-históricos, quando a caça e a
pesca representavam as únicas fontes de subsistência.
O jurista Rui Barbosa (2007, p.40), em sede do seu grande clássico “Oração
aos Moços”, enfatizando a essencialidade do trabalho na vida humana e o
considerando, ao lado da oração, o recurso mais poderoso na criação moral do
homem, considerou que “o trabalho é o inteirar, o desenvolver, o apurar das energias
do corpo e do espírito, mediante a ação contínua de cada um sobre si mesmo e sobre
o mundo onde labutamos”.
Assim, mesmo compreendido enquanto um modo de (re)produzir o
aprisionamento do homem às suas necessidades vitais, não restam dúvidas de que o
trabalho, apesar de não ter gozado de reconhecimento social até os tempos
26
medievais, dispunha de uma relevância incontestável na vida de cada homem,
simplesmente por se relacionar intimamente com a manutenção da sua existência.
Nesse sentido, Claus Offe considera que, certamente, todas as sociedades
foram e são impelidas a se estabelecer por meio do trabalho ao estabelecerem, por
meio dele, “uma relação metabólica com a natureza”, organizando esse metabolismo
“de modo que seus resultados sejam suficientes para a sobrevivência física do homem
em sociedade e para a estabilização da forma específica de organização desse
metabolismo”. (OFFE, 1989, p.13)
Ocorre que a visão dos filósofos antigos de que a vinculação do trabalho ao
ciclo vicioso das necessidades vitais determinava a sujeição e inferioridade do ser que
trabalhava aproximou os atos de trabalho de algo não só banal como torturante. Afinal,
o que poderia ser mais martirizante do que agir sob um constante estado de
necessidade?
Sob tal prisma, trabalhar era abrir mão de viver para sobreviver e isso era o
bastante para tornar justificável o estigma de penoso e sacrificante que a categoria do
trabalho carregou consigo durante séculos.
Convém realçar que essa potencialidade do trabalho para causar dor e
sofrimento encontra-se inclusive na etimologia da palavra, que do latim tripalium,
corresponde a um instrumento, comum em terras europeias, composto por três
estacas afiadas de madeira, que, apesar de originalmente utilizado para servir à
agricultura no cultivo do trigo, popularizou-se por servir de base para o martírio de
pobres e escravos que não pagavam impostos.1
Essa mesma carga negativa está contida no significado de palavras do
vocabulário europeu utilizadas para designar “trabalho”: a nomenclatura grega ponos,
a francesa travail, a alemã Arbeit, todas significam dor e esforço, sendo inclusive
utilizadas para designar as dores do parto. (ARENDT, 2014, p.59)
Pode-se então dizer que, enquanto persistiu a separação inflexível entre o
público e privado, o trabalho, confinado na esfera doméstica, apesar de essencial à
vida, não era fonte de qualquer reconhecimento social e de orgulho por aquele que o
desempenhava; a trivialidade de sua finalidade tornou-o banal e, por um considerável
período de tempo, trabalhar não significou nada além de se sujeitar a um modo de
vida quase-humano.
1 Dicionário Etimológico. Disponível em: https://www.dicionarioetimologico.com.br/trabalho/. Acesso em: 14 ago. 2017.
27
Nas palavras de Arendt,
o domínio privado do lar era a esfera na qual as necessidades da vida, da
sobrevivência individual e da continuidade da espécie eram atendidas e
garantidas. Uma das características da privatividade, antes da descoberta do
íntimo, era que o homem existia nessa esfera não como um ser
verdadeiramente humano, mas somente como exemplar da espécie animal
humana. Residia aí, precisamente, a razão última do vasto desprezo nutrido
por ela na Antiguidade. (ARENDT, 2014, p.56)
Assim, pode-se considerar que o trabalho, como hoje é compreendido, é fruto
da modernidade. A fórmula para a inserção no universo social, como uma espécie de
segundo nascimento do homem, que outrora realizava-se por meio da política, com o
advento da modernidade, passou a se realizar por meio do trabalho.
2.3 Trabalho na modernidade: o inteirar e o inteirar-se do ser humano
Alguém me disse
que essas pernas que me sustentam
e esses braços que me alimentam
são a força motriz do mundo
(RIBEIRO, 2017)
A institucionalização das cidades-Estados na antiguidade, conforme abordado
previamente, marcou a divisão entre as esferas pública e privada da vida de tal sorte
que apenas as atividades políticas, materialmente despretensiosas, conferiam ao seu
ator uma vida pública, alçando-o à condição de homem livre.
A vida privada, por sua vez, representava um refúgio dos assuntos da res
publica, de modo que o termo “privado”, contraposto ao “público”, era empregado para
expressar literalmente um estado negativo de privação do homem. (ARENDT, 2014,
p.47)
Por conseguinte, enquanto atividade restrita ao âmbito privado da vida pré-
moderna, o trabalho representava um meio para se manterem excluídos da vida da
pólis os homens que, desprovidos de escravos e coagidos pelo próprio corpo a
trabalharem, consumiam todo o tempo e a energia de que dispunham para atender às
suas necessidades vitais.
A vida privada correspondia, portanto, a um estado de prisão dos homens
desprivilegiados diante das necessidades materiais impostas por seu instinto de
sobrevivência, que apenas podiam ser satisfeitas por meio do suor do seu próprio
28
corpo, mediante atos de trabalho; e por privar o homem de se inteirar dos assuntos e
decisões relevantes para a pólis, a vida vivida na privatividade, segundo a cultura pré-
moderna, era uma espécie de quase-vida ou, no máximo, uma vida medíocre.
Assim, pode-se considerar que a valorização da esfera privada enquanto fonte
de intimidade - e a consequente desvinculação do termo “privatividade” do termo
“privação” - foi um fruto da modernidade, ou, mais precisamente, do processo de
individualização da vida introduzido pela modernidade. “Hoje, não pensamos mais
primeiramente em privação quando empregamos a palavra ‘privatividade’, e isso, em
parte, se deve ao enorme enriquecimento da esfera privada por meio do moderno
individualismo”. (ARENDT, 2014, p.47)
Subsidiada por movimentos intelectuais e culturais de significativa valorização
do indivíduo, a modernidade desencadeou um grande estreitamento entre as esferas
pública e privada, de modo que as atividades desempenhadas pelo indivíduo no
interior do seu lar – enquadradas na categoria “trabalho”, segundo a filosofia
arendtiana –, ganharam dimensão pública, passando a repercutir no meio social.
Importante realçar que as raízes históricas do que se denomina de
modernidade estão sediadas no período compreendido entre os séculos XIV e XVI,
quando, diante do surgimento dos Estados Nacionais ocidentais, as instituições
religiosas católicas, até então hegemônicas em termos de controle político e poder
sobre o modo de pensar e agir dos homens, entraram numa crise profunda.
(WOLKMER, 2005, p.10)
Essa crise que assolou o universo medieval, gerando o questionamento dos
princípios e valores místicos regentes desse universo, foi impulsionada, em grande
medida, pela Revolução Científica, que, ao atrelar o conhecimento à razão e à prática
experimental, distanciou-o do plano divino e o aproximou dos homens, promovendo o
que se convencionou chamar de “renascimento” do espírito humano. (WOLKMER,
2005, p. 17)
Assim, inspirada pelos princípios e valores introduzidos pelo Humanismo
renascentista, muito além de um “fluxo histórico do tempo”, a modernidade
representou um fenômeno cultural, que transmutou a base axiológica norteadora da
vida humana, deslocando o seu eixo do teocentrismo para o antropocentrismo.
(WOLKMER, 2005, p.14)
Ensina Antonio Carlos Wolkmer (2005, p. 17) que esse movimento cultural
antropocêntrico e humanista, cujo berço foi a Itália do século XV, representou “a
29
celebração do humano como força autônoma e racional, desvinculada de todas as
restrições transcendentais que inviabilizavam a criatividade do pensamento e a
liberdade prática objetiva”. E ao romper com a “concepção medieval, teológico-natural,
da sociedade como uma ordem presidida por Deus”, o Renascimento inaugurou uma
“concepção voluntarista da sociedade” – então compreendida como produto de uma
construção voluntária e artificial do homem, e não com uma obra divina –, convergindo
as dimensões da existência humana para o plano terreno, antropocêntrico,
racionalista e, sobretudo, individualista.
Zygmunt Bauman (2001, p.143), sem desprezar os demais acontecimentos
históricos concorrentes para a inauguração da era moderna, considerou a expansão
marítimo-comercial dos Estados Nacionais europeus consolidados por meio das
“Grandes Navegações” e a conquista territorial dela decorrente, o fator decisivo para
a alteração paradigmática da relação tempo-espaço, que teria marcado o início da
modernidade.
Segundo o autor, a modernidade teria iniciado com a colonização do espaço
pelo tempo, numa espécie de casamento no qual o parceiro dinâmico, sem dúvidas,
era o tempo; por conseguinte, a história do tempo teria começado com a modernidade,
já que, “de fato, a modernidade é, talvez mais que qualquer outra coisa, a história do
tempo: a modernidade é o tempo em que o tempo tem uma história”. (BAUMAN, 2001,
p. 140)
Pode-se associar o começo da era moderna a várias facetas das práticas humanas em mudança, mas a emancipação do tempo em relação ao espaço, sua subordinação à inventividade e à capacidade técnica humanas e, portanto, a colocação do tempo contra o espaço como ferramenta da conquista do espaço e da apropriação de terras não são um momento pior para começar uma avaliação que qualquer outro ponto de partida. A modernidade nasceu sob as estrelas da aceleração e da conquista de terras, e essas estrelas formam uma constelação que contém toda a informação sobre seu caráter, conduta e destino. (BAUMAN, 2001, p. 140)
As descobertas e inovações promovidas pela Revolução Científica, dentre as
quais assumiu grande relevância a construção dos veículos viabilizadores das
Grandes Navegações, o tempo tornou-se um instrumento de resistência ao caráter
estático do espaço, um “fator independente das dimensões inertes e imutáveis das
massas de terras e dos mares”, que fez “exequível a superação de obstáculos e limites
à ambição humana”. Nas palavras proferidas pelo ex-presidente norte americano John
30
Kennedy, “como uma ferramenta, e não como um sofá”, o tempo deveria ser utilizado
e manipulado pelo homem em benefício dele próprio. (BAUMAN, 2001, p. 142)
E não há dúvidas de que, por trás de todas as alterações objetivamente
verificadas com o advento da modernidade, dentre as quais se destacaram o declínio
das instituições religiosas católicas, a consolidação dos Estados Modernos
absolutistas como as novas fontes centralizadoras do poder político e as conquistas
territoriais decorrentes das Grandes Navegações, as transformações axiológicas
vivenciadas atingiram direta e significativamente os modos de agir, de pensar e de
sentir do homem moderno.
Arendt (2014, p.48), considerando Rousseau o maior explorador das questões
íntimas do homem na modernidade, pontua que, segundo o autor, tanto o íntimo
quanto o social representavam formas subjetivas da vida humana que, distinguidas
por uma linha cada vez mais tênue, permitiam uma indevida intromissão e perversão
das questões do coração pela sociedade. Assim, “o indivíduo moderno e seus
intermináveis conflitos, sua incapacidade tanto de sentir-se à vontade na sociedade
quanto de viver completamente fora dela, seus estados de espírito em constante
mutação e o radical subjetivismo de sua vida emocional” teriam desencadeado o que
Rousseau definiu como “rebelião do coração”.
E diante desse novo paradigma antropocêntrico, racionalista e individualista,
a supervalorização do homem e da sua individualidade – o que torna a nomenclatura
“indivíduo” a mais pertinente para se referir ao homem moderno – as emoções, os
pensamentos e demais questões íntimas da vida humana despojaram-se da
obscuridade e irrelevância do lar e ascenderam à esfera pública.
O próprio florescimento da poesia e da música, a partir de meados do século
XVIII, constitui suficiente testemunho dessa inusitada imbricação entre o público e o
privado, entre o íntimo e o social, haja vista que a composição de um poema ou de
uma canção desemboca, quase sempre, num processo de publicização dos mais
recônditos pensamentos e sentimentos do indivíduo que compõe. (ARENDT, 2014, p.
48)
Sobre essa tendência de publicização da vida privada inaugurada pela
modernidade, Arendt (2014, p. 56) assinala que “a admissão das atividades
domésticas e da administração do lar no domínio público” inaugurou uma irresistível
tendência de canalizar o processo da vida para o domínio público, tornando as
sociedades modernas, ao contrário das comunidades pré-modernas, estruturas de
31
organização pública do processo vital, criadas para aprimorar as condições de
existência de cada indivíduo e concentrando-se, para tanto, em torno da atividade
necessária para a manutenção da vida: o trabalho.
Assim, pode-se dizer que a sociedade inaugurada sob o paradigma da
modernidade deu origem a um formato organizacional no qual “o fato da dependência
mútua em prol da vida, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual se
permite que as atividades relacionadas com a mera sobrevivência apareçam em
público”. (ARENDT, 2014, p. 57)
Foi precisamente nesse contexto que o trabalho, embora tenha continuado a
representar uma atividade ligada ao processo vital em seu sentido mais elementar, foi
promovido à estatura de coisa pública, deixando de representar um acontecimento
banal de repercussão estritamente doméstica para representar uma importante
atividade de integração e progresso, cujos resultados tornaram-se indispensáveis
para o aprimoramento de todo o mundo habitado. (ARENDT, 2014, p. 57)
Nesse sentido, considera Gorz que o que hoje é chamado de “trabalho”,
dotado de inquestionável relevância pública por representar simultaneamente o
fundamento e a finalidade última da sociedade, corresponde a uma invenção da
modernidade – que, mais à frente, foi apropriada e generalizada pelo industrialismo:
O trabalho, no sentido contemporâneo do termo, não se confunde nem com os afazeres, repetidos dia após dia, necessários à manutenção e à reprodução da vida de cada um; nem com o labor, por mais penoso que seja, que um indivíduo realiza para cumprir uma tarefa da qual ele mesmo e seus próximos serão os destinatários e os beneficiários; nem com o que empreendemos por conta própria, sem medir nosso tempo e esforço, cuja finalidade só interessa a nós mesmos e que ninguém poderia realizar em nosso lugar. Se chamamos a essas atividades “trabalho” – o “trabalho doméstico”, o “trabalho do artista”, o “trabalho de autoprodução”- fazêmo-lo em um sentido radicalmente diverso do sentido que se empresta à noção de trabalho, fundamento da existência da sociedade, ao mesmo tempo sua essência e sua finalidade última. Pois a característica mais importante desse trabalho – aquele que “temos”, “procuramos”, “oferecemos”- é ser uma atividade que se realiza na esfera pública, solicitada, definida e reconhecida útil por outros além de nós e a este título remunerada. (GORZ, 2003, p. 21)
Isso quer dizer que o trabalho – até então realizável apenas no âmbito
doméstico, mediante atos cujo produto final esgotava-se ali mesmo, atendendo às
necessidades vitais de quem o realizava e, no máximo, da sua família –, ao ascender
à esfera pública como o principal mecanismo de construção e aprimoramento do
32
mundo para a vida em sociedade, tornou-se símbolo de progresso e fator de
integração, coesão e reconhecimento sociais.2
Assim, como advertido por Arendt (2014, p.58), a emancipação do trabalho,
que inaugurou uma sociedade sobretudo de trabalhadores, não foi uma consequência
da emancipação da classe operária, decorrente da industrialização, mas sim, um
acontecimento prévio a ela.
O que, de fato, alterou-se com o processo de industrialização, expandido no
século XVIII, conforme será exposto a seguir, foi a qualidade desse trabalho já
emancipado das amarras do lar, e, consequentemente, dos trabalhadores envolvidos
nesse processo.3
2 Destaca-se que, não obstante tenha se verificado essa ascensão do trabalho, de modo geral, ao
âmbito público, em tempos hodiernos, o trabalho de natureza doméstica, realizado no âmbito privado, em proveito próprio, dos entes familiares ou de um terceiro, não deixou de existir. Mas, talvez, justamente em virtude desse menosprezo histórico, por se realizar em âmbito estritamente doméstico, o trabalho de natureza doméstica, apesar de repercutir de modo significativo na esfera pública – ainda que do ponto de vista mediato, liberando os respectivos tomadores para o ingresso no mercado profissional e atuação no espaço público –, encontre tantas dificuldades em termos de reconhecimento jurídico e, sobretudo, social. 3Realça-se que esse movimento de emancipação do trabalho dos lares, que passou a demarcar
precisamente a separação entre vida pessoal e vida profissional, parece estar assumindo direção inversa em sede de pós-modernidade. Com o fenômeno da globalização e o advento da internet, presenciou-se a eclosão da terceira evolução tecnológica. A esse respeito, leciona Teodoro (apud, RIBEIRO, 2016, p.314) que: “A configuração do trabalho tomou novas formas como conseqüência da derrocada do socialismo real e do desenvolvimento do regime de acumulação do capital, que surge a partir desta terceira revolução tecnológica”. Assim, neste contexto pós-moderno, marcado por uma sociedade em redes e permanentemente conectada, bem como por uma organização do trabalho ditada pela flexibilidade, passou-se a falar de teletrabalho, que, grosso modo, consiste na realização de atividade profissional no âmbito doméstico. Esse novo instituto parece estar instaurando uma tendência de retomada da mescla entre vida profissional e vida pessoal, e os efeitos práticos dessa imbricação são objeto de intensa discussão no atual cenário jurídico brasileiro. (RIBEIRO, Ailana. Teletrabalho: ócio criativo ou escravização digitalizada?. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 150, jul 2016. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/mnt/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17474&revista_caderno=25>. Acesso em: 10 out. 2017)
33
3 CAPITALISMO E TRABALHO
3.1 Do feudalismo ao capitalismo: mudam as regras do jogo da exploração
Só um sujeito assujeitado sabe
que é melhor depender da sorte que do coração de quem o assujeita
(RIBEIRO, 2017)
Karl Marx (1977, p.15), ao iniciar a sua obra “A acumulação primitiva”, que
corresponde ao capítulo XXIV de “O Capital: a crítica da economia política”, afirmou
que “a ordem econômica capitalista saiu das entranhas da ordem econômica feudal”,
tendo os elementos de dissolução da primeira ordem produzido os elementos
constitutivos da segunda.
Segundo o autor, apesar dos primeiros traços da produção capitalista terem
surgido em algumas cidades do Mediterrâneo, a era propriamente capitalista não data
senão do século XVI, quando a acumulação primitiva de riqueza proporcionada pelo
sistema de exploração feudal convergiu para a formação de uma classe de detentores
de riqueza em abundância. Nesse sentido, Marx considerou que as condições básicas
necessárias para o desenvolvimento do capitalismo – e da consectária cisão da
sociedade em detentores do capital e detentores da força de trabalho – emergiram no
interior do próprio sistema feudal:
O conjunto do desenvolvimento, abrangendo ao mesmo tempo a gênese do salariato e do capitalismo, tem por ponto de partida a servidão dos trabalhadores; o progresso que esse desenvolvimento realizou consiste em mudar a forma de sujeição, em conduzir a metamorfose da exploração feudal em exploração capitalista. (MARX, 1977, p.15-16)
Pode-se considerar, portanto, que até o século XV, ainda não havia na
humanidade registros sólidos de um sistema de produção propriamente capitalista. O
sistema econômico vigente era o feudalismo, pautado em um modelo produtivo que
se desenvolvia, resumidamente, por meio da seguinte sistemática:
As terras pertenciam ao rei, que cedia seu uso aos nobres e estes, por sua vez, cediam o seu uso aos que estivessem abaixo deles na hierarquia social, tudo isso formando uma peculiar rede de fidelidade e proteção, sobretudo, contra eventuais (mas frequentes) guerras. Assim, a pessoa comum se
34
ocupava basicamente de dois tipos de atividades: lavrar as terras do senhor feudal e cultivar as terras comuns. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.103)
Assim, ao lado do trabalho servil, mantido por meio de uma relação de
exploração denominada de vassalagem – na qual os vassalos ofereciam aos senhores
feudais trabalho e fidelidade em troca de proteção e da posse de terra para o cultivo–
havia, também, uma agricultura de subsistência, que permitia ao servo usufruir da
terra a ele cedida para satisfazer o seu consumo básico.
Importante destacar que tanto a atividade agrícola de subsistência quanto o
trabalho servil, realizado em benefício dos senhores feudais, voltavam-se para a
autossuficiência do feudo, e não para a comercialização de eventuais excedentes de
produção, que, quando existiam, tornavam-se fonte de escambo. (RIBEIRO; ABREU,
2016, p. 103)
Contudo, apesar da aparente estabilidade da ordem feudal, leciona Sweezy
que nos séculos XIV e XV, em virtude de fatores intrínsecos e extrínsecos ao modo
de produção vigente, o feudalismo entrou em franco declínio:
Ocorre que, logo após atingir o seu auge, o feudalismo entrou em crise e, nos séculos XIV e XV – momento em que a população europeia sofreu drástica redução em decorrência da pandemia de peste bubônica – contribuíram para o declínio do sistema feudal, internamente, as contradições da sociedade e, externamente o impacto do comércio incipiente. (SWEEZY apud RIBEIRO; ABREU, 2016, p. 103)
Ocorreu, pois, que a escassez de mão-de-obra, decorrente da elevada
mortalidade provocada pela peste bubônica, conferiu força aos vassalos, que,
conscientes da importância de seus papéis no ciclo da produção feudal, passaram a
questionar e a romper os vínculos que os uniam aos seus senhores feudais, utilizando
as terras comunais, de uso coletivo, para garantia da subsistência.
Por conseguinte, privados do fácil acesso a vassalos interessados em
trabalhar para os feudos, os senhores feudais passaram a demandar outro meio de
auferir mão-de-obra. Foi nesse contexto que a contratação de trabalhadores,
mediante o pagamento de um salário – e não mediante a cessão de um pedaço de
terra – precisou entrar em cena. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p. 103)
Mas para coagir os trabalhadores – até então, produtores diretos e
consumidores imediatos dos frutos da atividade agrícola desempenhada –, a
trabalharem para os proprietários de terras em troca do pagamento de uma quantia,
35
que se tornaria necessária para a aquisição dos meios básicos de sobrevivência, foi
preciso, primeiramente, desligar esses trabalhadores das glebas, “despojando-os de
todos os meios de produção e de todas as garantias de existência oferecidos pela
antiga ordem das coisas”. (MARX, 1977, p. 15-16)
Assim, a centralização dos meios de produção nas mãos dos proprietários
agrícolas e o consequente abismo imposto entre os meios de produção e os
produtores levaram ao desenvolvimento de uma nova relação de exploração, cujo
fator de sujeição tornou-se, justamente, a não propriedade dos insumos produtivos.
Nesse sentido, Marx, considerando que a essência do capitalismo reside
nessa radical separação entre o produtor imediato e os meios de produção, pontuou
que a pré-condição básica para o florescimento do capitalismo foi a desapropriação
dos servos seguida da apropriação das terras de cultivo por uma restrita aristocracia
fundiária. Veja-se:
Para que o sistema capitalista viesse ao mundo foi preciso que, ao menos em parte, os meios de produção já tivessem sido arrancados sem discussão aos produtores, que os empregavam para realizar o seu próprio trabalho; que esses meios de produção se encontrassem já nas mãos dos produtores comerciantes e que estes os empregassem para especular sobre o trabalho dos outros” (MARX, 1977, p.15).
Assim, se, por um lado, o fator de sujeição consistia na privação quanto à
propriedade dos meios de produção, por outro, o fator de poder residia na detenção
desses meios de produção por uma parcela restrita de proprietários fundiários, que se
valeram de tal condição para explorar a mão-de-obra da grande massa, conduzindo,
desse modo, a “metamorfose da exploração feudal em exploração capitalista”.
(MARX, 1977, p.17)
Contudo, analisando o cenário europeu, esclarece Sweezy que, apesar da
consolidação dos traços mais marcantes da lógica de exploração capitalista ter sido
averiguada ainda no contexto histórico de declínio do feudalismo, até o século XVI, os
Estados europeus permaneciam dominados pelos aristocratas feudais, já que o poder
político permanecia vinculado à propriedade de terras. (SWEEZY et al, 1977, p.192)
Logo, não obstante a fase de transição entre os sistemas econômicos já
houvesse iniciado, ainda não era possível referir-se a uma sociedade capitalista.
Segundo Sweezy, foi somente no curso do século XVII, com a eclosão das revoluções
liberais, sobretudo, da Revolução Inglesa, na segunda metade do século XVII, e das
36
Revoluções Francesa e Americana, já no século XVIII, que o triunfo do capitalismo
consagrou-se em caráter definitivo. (SWEEZY et al, 1977, p.193)
Importa esclarecer que a primeira dessas revoluções, a Revolução Inglesa,
teve seu prelúdio no século XVI, quando grande parte dos servos liberou-se dos laços
mantidos com os senhores feudais. Contudo, foi no século XVII, com o “fechamento
das terras comunais” – destinadas ao uso coletivo para fins de cultivo –, determinado
por meio de decreto parlamentar (Bills of inclousure of commons), que foram lançadas
no mercado de trabalho rural pessoas forçadas a se sustentarem mediante a venda
da sua força de trabalho. (MARX, 1977, p.33)
Sobre esse cenário de expropriação das terras de cultivo e da consequente
necessidade dos expropriados se sujeitarem a outros meios de garantir a
subsistência, Marx considerou que,
[...]efetivamente, a usurpação das terras comunais e a revolução agrícola que se lhe seguiu, fizeram-se sentir tão duramente sobre os trabalhadores do campo que [...] seus salários começaram a cair abaixo do mínimo possível e foi necessário completá-lo mediante socorros oficiais. (MARX,1977, p.40)
Assim, ao mesmo tempo em que se formava uma classe detentora e
acumuladora de riquezas, formava-se um “proletariado sem lar nem pão” (MARX,
1977, p.57), que, para ser absorvido pelo sistema de produção manufatureiro
nascente, precisou sujeitar-se à venda daquilo que lhe havia restado: a força de
trabalho.
Gorz, discorrendo sobre a sistemática de produção do capitalismo
manufatureiro e se valendo da distinção conceitual arendtiana entre “obra” e “trabalho”
– objeto de abordagem pelo primeiro capítulo deste estudo –, ensina que os artesãos,
fabricantes de objetos duradouros, realizavam “obras” e utilizavam para tanto, o
“trabalho” de homens chamados a cumprir tarefas mais penosas do ponto de vista
físico. Assim,
Só os trabalhadores por jornada e os trabalhadores manuais eram pagos por seu “trabalho”; os artesãos recebiam pela “obra”, conforme o parâmetro fixado pelos sindicatos profissionais de então, as corporações e as guildas. Estas proscreviam severamente qualquer inovação e qualquer forma de concorrência. As novas técnicas ou as novas máquinas deviam ser aprovadas, na França do século XVII, por um conselho dos antigos, reunindo quatro comerciantes e quatro tecelões, e depois autorizadas por juízes. Os salários dos diaristas e dos aprendizes eram fixados pela corporação e era impossível qualquer tipo de acordo diverso daquele. (GORZ, 2003, p.24)
37
Indiscutível, pois, é o fato de que, desde o seu estágio manufatureiro, o
sistema de produção capitalista comprometeu a agricultura doméstica, voltada
exclusivamente ao sustento familiar, ao tornar o camponês produtor um fornecedor e
não mais um consumidor direto dos frutos do seu trabalho. Contudo, pontua Gorz
(2003, p.24) que o capitalismo manufatureiro não chegou a suplantar a indústria
doméstica, com ela coexistindo até a definitiva consolidação do capitalismo industrial.
Assim, a produção manufatureira, sobretudo de tecidos, realizada pelos
trabalhadores em seus respectivos domicílios, a tempo e modo desejados,
representou, por um considerável período, muito além de uma fonte de renda, um
estilo de vida.
Segundo Max Weber, esse simultâneo estilo de produção e de vida operava-
se da seguinte maneira: os camponeses produziam os tecidos em seus domicílios e
se encaminhavam às cidades apenas para entregar as encomendas aos
comerciantes, recebendo deles o preço combinado; o número de horas trabalhadas
era modesto, e a renda auferida também era modesta, mas suficiente para garantir
uma sobrevivência decente. Tratava-se, pois, de um modo tradicional de organização
capitalista da produção, que envolvia uma atividade produtiva, uma atividade
puramente comercial, o emprego de capital, e a obtenção de lucro. (WEBER apud
GORZ, 2003, p. 25)
Importante destacar que, nesse cenário, apesar do modo capitalista de
produção vigente pautar-se na exploração da mão-de-obra alheia, a relação de
exploração entabulada entre produtores e empreendedores comerciantes era regida
por costumes e tradições. Eram os costumes que dominavam a conduta nos negócios
e norteavam o ethos da categoria dos empreendedores; eram também os costumes e
tradições que regulavam a quantidade de trabalho, o ritmo de trabalho e as interações
estabelecidas entre o trabalhador e seu ofício. (WEBER apud GORZ, 2003, p.25)
Conforme ensinamentos de Marx, foi apenas com o advento das grandes
máquinas e com a efetiva consolidação do capitalismo em seu estágio industrial que
a agricultura familiar campesina – bem como as tradições que a acompanhavam– veio
a ser aniquilada:
É só a grande indústria que, por meio das máquinas, funda a exploração agrícola capitalista sobre uma base permanente, que faz expropriar
38
radicalmente a imensa maioria da população rural e consuma a separação entre a agricultura e a indústria doméstica dos campos, extirpando as raízes desta – a fiação e o tecido. (MARX, 1977, p.89)
Assim, nos termos do que será discutido, foi em sua fase industrial que o modo
de produção capitalista, pautado na separação entre o trabalhador e os meios de
produção, permitiu ao capitalismo cumprir a árdua tarefa de promover a
“racionalização econômica do trabalho”, emancipando-o dos costumes e tradições e
tornando-o uma grandeza material quantificável, assim como qualquer outro ativo
envolvido no processo produtivo. (GORZ, 2003, p.28)
3.2 O ethos do capitalismo industrial e a racionalização econômica do trabalho Meu suor, seus frutos
Sua vida vivida, a minha esquecida Num piscar dou a ele
O que me faltará por toda a vida Saga? Ou praga?
(RIBEIRO, 2017)
Considerando as abordagens promovidas no tópico anterior, pode-se dizer
que a pedra-de-toque do capitalismo é a propriedade privada e concentrada dos meios
de produção, cujo efeito prático imediato é a formação de um contingente de pessoas
coagidas a venderem a força de trabalho aos detentores dos meios produtivos.
Nesse sentido, István Mészaros considera que o sistema capitalista, ao
determinar a separação entre produtor e meios de produção, determina, por
reverberação, uma “tripla fratura” entre:
1) produção e seu controle; 2) produção e consumo; e 3) produção e circulação de produtos (interna e internacional). O resultado é um irremediável sistema “centrífugo”, no qual as partes conflituosas e internamente antagônicas pressionam em muitos sentidos diferentes. (MÉSZAROS, 1998, p.5)
Tal traço definidor do capitalismo representou, portanto, a alteração estrutural
mais significativa do ponto de vista da transição da ordem feudal – na qual os servos
camponeses tinham a posse das terras, usufruindo diretamente dos produtos do seu
cultivo – para a ordem capitalista.
Já em termos de transição do capitalismo manufatureiro, abordado
previamente, para o capitalismo industrial, objeto de abordagem do presente tópico,
39
apesar da lógica de exploração estruturante da relação entre capital e trabalho ter
permanecido intocada, uma inovação de ordem procedimental assumiu relevância: a
racionalização econômica da produção.
Sob o prisma técnico, a racionalização econômica representou um processo
de quantificação do trabalho, voltado a torná-lo calculável, objetivo e rigorosamente
previsível, tanto em termos de custos, quanto de produtividade e resultados. Segundo
Max Weber, esta prevalência da racionalidade econômica na organização da
produção
[...] é uma das características fundamentais de uma economia individualista capitalista, racionalizada com base no rigor do cálculo, dirigida com previsão e cautela para o sucesso econômico almejado, e está em agudo contraste com a existência simples do camponês e com a do tradicionalismo privilegiado do artesão corporativo e do capitalismo aventureiro, orientado para a exploração das oportunidades políticas e da especulação irracional. (WEBER, 2001, p.32)
Assim, sob o prisma sociológico, Weber considera que a racionalização
econômica do trabalho promoveu uma drástica alteração na configuração das
relações produtivas capitalistas, ao passo que suprimiu a regulação da produção
(ritmo, tempo e quantidade de trabalho) pelas tradições e costumes vigentes, que
convergiam para um estilo de vida tranquilo e modesto, para determinar a regência do
estilo de vida pelo sucesso econômico-produtivo almejado. Elucidando este processo
em termos bastante práticos, o autor pontua que:
Em geral, o que ocorreu foi apenas o seguinte: um jovem, de uma família de produtores vai ao campo; ali, escolhe cuidadosamente os tecelões que quer empregar; torna-os ainda mais dependentes e aumenta o rigor do controle sobre seus produtos, transformando-os, assim, de camponeses em operários despossuídos de matéria-prima. O jovem empreendedor modifica também os métodos de venda, buscando o mais possível contato direito com os consumidores. Toma inteiramente a seu encargo o comércio de varejo e cuida pessoalmente de seus fregueses; visita-os regularmente a cada ano e, sobretudo, ajusta a qualidade dos produtos ao gosto e necessidades dos clientes. Ao mesmo tempo, age segundo o princípio de reduzir os preços e aumentar o volume dos negócios. (WEBER, 2001, p.28)
A consequência imediata desse processo de racionalização do trabalho, qual
seja, a substituição da tradicional espontaneidade pela rígida frugalidade das relações
de produção, ainda na perspectiva weberiana, não demorou a se manifestar:
40
Repetiu-se aqui o ocorrido em todos os lugares e sempre como consequência do processo de racionalização: aqueles que não seguiram o mesmo processo, tiveram de sair do negócio. O estado idílico desmoronou sob a pressão de uma amarga e competitiva batalha, criaram se fortunas consideráveis que não foram aplicadas a juros, mas sempre reaplicadas no negócio. A antiga atitude prazerosa e confortável para com a vida cedeu lugar a uma rígida frugalidade, da qual alguns participaram e chegaram ao topo, pois que eles não queriam consumir mas ganhar, enquanto outros, que quiseram conservar o modo de vida antigo, foram forçados a cortar seu consumo. (WEBER, 2001, p.28)
Assim, o capitalismo industrial – marcado pela mecanicidade, rapidez e
incremento da produtividade, proporcionados pela concentração da maquinaria e de
todos os demais insumos produtivos nos galpões fabris – só encontrou terreno fértil
para prosperar quando a racionalidade econômica, levada às suas últimas
consequências, “emancipou-se de todos os outros princípios de racionalidade, para
submetê-los a seu único domínio”. (GORZ, 2003, p.27)
Discorrendo sobre o capitalismo em estágio industrial, Gorz (2003, p. 57)
esclarece que o que chamamos de “indústria” não é nada mais que uma
“concentração técnica de capital, possível unicamente à base da separação do
trabalhador e de seus meios de produzir”; esclarece, ainda, que, apenas com essa
concentração, tornou-se possível racionalizar e economicizar o trabalho, gerando
excedentes de produção e orientando a utilização desses excedentes para a
multiplicação dos meios de produção.
Logo, pode-se dizer que “a indústria é filha do capitalismo e dele traz a marca
indelével. Só pôde nascer graças à racionalização econômica do trabalho”, que se
perpetuou como uma exigência impressa na materialidade da sua maquinaria.
(GORZ, 2003, p. 57)
E fato é que essa materialidade inanimada da maquinaria, interposta entre o
trabalhador e o produto, tornou-se requisito para a integração do homem no processo
produtivo racionalizado, submetendo o trabalhador ao experimento da insignificância
do seu agir ao tornar cada ato seu inteiramente manipulado pelas máquinas que
acreditava manipular.
Assim, a partir da racionalização econômica da produção, o processo de
trabalho foi transformado em um processo científico, no qual “a atividade do operário,
reduzida a uma pura abstração”, tornou-se “determinada e regulada em todos os
sentidos pelo movimento da maquinaria”. E isso nos permite dizer que, na produção
industrial, “a apropriação do trabalho vivo pelo trabalho materializado, inerente ao
41
conceito de capital, constitui o caráter do próprio processo de produção”. (WEBER,
apud GORZ, 2003, p. 59)
Importante destacar que por trás de todo esse empenho na organização
científica e racionalizada do trabalho vivo estava a pretensão capitalista de expandir
a produtividade e, consequentemente, o capital, cuja fração expressiva seria
reempregada no processo produtivo, num infinito processo de acumulação de capital.
Assim, conforme leciona Mészaros (1998, p.5), o sistema capitalista, em todas as suas
formas, “tem (e deve ter) sua expansão orientada e dirigida pela acumulação.”
E, naturalmente, todo esse processo acumulativo não foi delineado em prol
da satisfação das necessidades humanas; o que se persegue, primariamente, é “a
expansão do capital como um fim em si, servindo à preservação de um sistema que
não poderia sobreviver sem constantemente afirmar seu poder como um modo de
reprodução ampliado”. (MÉSZAROS, 1998, p.6)
Para se referir a essa necessidade do capitalismo de afirmar o seu poder
constantemente, Weber (2001, p.23) utiliza-se do termo “espírito do capitalismo”. Em
sua perspectiva, o “espírito do capitalismo” corresponde a um conjunto de “sanções
éticas” necessárias para promover o engajamento ao sistema capitalista, prestando-
se a justificar as contradições internas que lhes são intrínsecas.
Discorrendo sobre essa necessidade de autojustificação do capitalismo, Luc
Boltanski e Ève Chiapello ensinam que
[...] para conseguir engajar as pessoas indispensáveis à busca da acumulação, o capitalismo devia incorporar um espírito capaz de oferecer perspectivas sedutoras e estimulantes de vida, oferecendo ao mesmo tempo garantias de segurança e razões morais para se fazer o que se faz. Este amálgama heterogêneo de motivos e razões se mostra variável no tempo, segundo as expectativas das pessoas que caiba mobilizar, segundo as esperanças com que elas cresceram e em função das formas assumidas pela acumulação em diferentes épocas. (BOLTANSKI; CHAPELLO, 2009, p.58)
Por tais razões, pode-se dizer que o espírito do capitalismo funciona como
uma espécie de promotor e guardião do sistema, empenhando-se em validar o
capitalismo, sobretudo, para protegê-lo das críticas. Nesse sentido, dando
continuidade ao raciocínio acima citado, Boltanski e Chiapello concluem que:
A interiorização de certo espírito do capitalismo por parte dos atores, portanto, impõe ao processo de acumulação injunções que não são puramente formais, e lhe conferem um âmbito específico. O espírito do capitalismo, assim,
42
fornece ao mesmo tempo uma justificação do capitalismo (em oposição aos questionamentos pretensamente radicais) e um ponto de apoio crítico que possibilita denunciar a distância existente entre as formas concretas de acumulação e as concepções normativas da ordem social. (BOLTANSKI; CHAPELLO, 2009, p.59)
Quanto à essência acumuladora e centralizadora do capitalismo, realça-se
que, ao mesmo tempo em que determina a impotência do sistema para satisfazer as
necessidades humanas de modo amplo e indistinto, determina uma lógica na qual a
acumulação de riqueza torna-se o grande propósito da vida, devendo ser perseguida
como um fim em si mesmo. E, conforme explica Weber, tudo isso, do ponto de vista
da natureza humana, não faria qualquer sentido se não houvesse um “espírito”, que
aqui se denomina de ethos norteador e justificador do capitalismo, tentando provar ao
homem o contrário:
De fato, o summum bonum dessa ética, o ganhar mais e mais dinheiro, combinado com o afastamento estrito de todo prazer espontâneo de viver é, acima de tudo, completamente isento de qualquer mistura eudemonista, para não dizer hedonista; é pensado tão puramente como um fim em si mesmo, que do ponto de vista da felicidade ou da utilidade para o indivíduo parece algo transcendental e completamente irracional. O homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como um meio para a satisfação de suas necessidades materiais. Essa inversão daquilo que chamamos de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio guia do capitalismo. (WEBER, 2001, p.21)
Relevante realçar que, em termos de legitimação e difusão do ethos
capitalista, a Reforma Protestante, ao preconizar uma conduta moral e espiritual
pautada no zelo e na disciplina, assumiu papel preponderante.
Por meio do ascetismo protestante, a auri sacra fames4 deixou de representar
uma conduta condenável para se tornar um padrão comportamental, que só poderia
ser atingido por meio da doação ao trabalho – tanto por parte do empresário capitalista
quanto do operário. Por outro lado, a doutrina protestante pregava o usufruto
estritamente racional da riqueza conquistada, condenando a liberdade do homem de
dissipar os frutos do seu trabalho para satisfazer a prazeres mundanos, em franca
reverência ao princípio capitalista da acumulação.
4 Auri sacra fames: Maldita fome de ouro. Expressão pela qual Virgílio condena a ambição desmedida. In: Dicionário de Latim. Disponível em: https://www.dicionariodelatim.com.br/auri-sacra-fames/
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Nesse sentido, pode-se considerar que o ascetismo protestante, ao mesmo
tempo em que liberou o homem das amarras que condenavam a produção do lucro,
“agiu poderosamente contra o desfrute espontâneo das riquezas, restringindo o
consumo de caráter supérfluo” em prol da acumulação. (WEBER, 2001. p.81)
Assim, todas essas alterações paradigmáticas de valores vivenciadas em
sede modernidade, sobretudo, no que diz respeito à devoção ao trabalho e às
limitações quanto à disposição dos seus frutos, Weber atribuiu ao “espírito do
capitalismo”, que moldou, a seu gosto, o empreendedor devotado e autocontrolado, e
o trabalhador altamente fiel e disciplinado.
O trecho abaixo transcrito, correspondente à letra de música frequentemente
tocada em programa de rádio do início do século XIX, no bloco “Canções para homens
trabalhadores ingleses cantarem” (“Songs for English Work men to Sing”), reflete
claramente a difusão dessa cultura do trabalhador devotado:
Trabalhem, rapazes, trabalhem e fiquem satisfeitos
Desde que vocês tenham o suficiente para comprar uma refeição;
O homem em quem vocês confiam
Ficará rico mais e mais
Somente se puser seus ombros na roda
(HOBSBAWN, 1982, p.229)
Foi, portanto, graças à promoção dessas novas qualidades éticas – disciplina,
devoção, privação e acumulação – que o tradicional estilo de vida, cômodo e
despretensioso, reinante na era pré-industrial, deu lugar a um padrão de vida rígido e
austero, que atendeu perfeitamente as novas necessidades impostas pela grande
indústria. Nas palavras de Weber:
A antiga atitude prazerosa e confortável para com a vida cedeu lugar a uma rígida frugalidade, da qual alguns participaram e chegaram ao topo, pois que eles não queriam consumir mas ganhar, enquanto outros, que quiseram conservar o modo de vida antigo, foram forçados a cortar seu consumo. E o que é mais importante nessa relação, o que trouxe essa revolução, em tais casos, não foi geralmente o fluxo de dinheiro novo investido na indústria – em muitos casos que conheço, todo o processo revolucionário foi acionado por poucos milhares de capital emprestado de conhecidos – mas foi o novo espírito, o espírito do moderno capitalismo que fez o trabalho.[...] É mito mais fácil não reconhecer que somente um caráter extraordinariamente forte poderia salvar um empreendedor desse novo tipo de perda do seu autocontrole temperado e do naufrágio moral e econômico. De mais a mais, além da clareza de visão e da habilidade para agir, foi só pela virtude de qualidades éticas bem definidas e altamente desenvolvidas que lhe foi possível merecer a confiança, absolutamente indispensável, de seus clientes e trabalhadores. Nada além disso poderia ter lhe dado o vigor para superar
44
os inúmeros obstáculos, e acima de tudo o trabalho muito mais intenso exigido do moderno empreendedor. Mas essas são qualidades éticas de um tipo bem diferente daquelas adaptadas ao tradicionalismo do passado. (WEBER, 2001, p.28-29)
Assim, todo esse conjunto de mutações axiológicas, ao legitimar o senso de
acumulação e estimular o senso de disciplina, inaugurou um novo padrão cultural
favorável à exaltação do trabalho e à consequente expansão desmedida do capital.
Contudo, conforme será demonstrado em momento oportuno, a partir da
segunda metade do século XX, sobretudo no período pós 1970, mutações estruturais
de ordem política, econômica, social e, inclusive, cultural, passaram a sinalizar o
esgotamento desse padrão produtivo de acumulação, culminando na instauração de
uma crise multifacetada e complexa, que atingiu, simultaneamente, o trabalho e o
capital.
3.3 A relação simbiótica entre capital e trabalho assalariado
Fato é que todo o processo previamente analisado, empenhado em
racionalizar economicamente a produção, para alcançar o objetivo de tornar a força
de trabalho calculável e previsível, como qualquer outro insumo produtivo, precisou
quantificar e uniformizar os custos dela decorrentes.
Por essa razão, a relação entre o trabalho e o capital, ou entre o trabalhador
e o capitalista, não mais poderia ser regida pelo espírito aventureiro e espontâneo de
outrora, que não impunha ritmo de trabalho nem estabelecia patamares de
produtividade, remunerando o trabalhador simplesmente pelo produto que ofertava
aos mercadores para fins de revenda.
Com a racionalização econômica decorrente do capitalismo industrial, leciona
Marx (1987, p. 23) que a relação entre capital e trabalho permaneceu sendo uma
relação de compra e venda; contudo, o que os trabalhadores, então operários,
passaram a vender aos capitalistas, não era mais o produto do seu trabalho – que,
inclusive, não mais lhes pertencia –, e sim, a sua força de trabalho.
A força de trabalho tornou-se, portanto, objeto de aquisição pelo capitalista,
que a comprando por um dia, uma semana, um mês, etc., adquiria uma espécie de
passe livre para impelir os operários a trabalharem pelo tempo estipulado. Assim,
pode-se considerar que a força de trabalho operária, no interior do capitalismo
45
industrial, tornou-se, de fato, uma mercadoria, assim como o açúcar ou qualquer outro
produto; afinal, “com essa mesma quantia com que o capitalista comprou a força de
trabalho (dois marcos, por exemplo), poderia ter ele comprado duas libras de açúcar
ou uma certa quantidade de qualquer outro produto”. (MARX, 1977, p.23)
Nesse sentido, ensina Marx (1977, p.24) que os exemplificativos dois marcos
pagos ao operário pelas horas de utilização da sua força de trabalho representam o
“preço” da força de trabalho, ao qual se atribui o nome de salário. Logo, “o salário é
simplesmente um nome especial dado ao preço da força de trabalho, a que
costumamos chamar de preço do trabalho; é apenas o nome dado ao preço dessa
mercadoria peculiar que só existe na carne e no sangue do homem”.
Abordando essa sistemática capitalista de compra e venda da força de
trabalho, Marx apresenta a seguinte situação elucidativa:
O capitalista compra, com uma parte da fortuna que tem, do seu capital, a força de trabalho do tecelão, exatamente como comprou com outra parte da sua fortuna a matéria-prima – o fio – e o instrumento de trabalho – o tear. Após fazer estas compras (e entre as coisas compradas está a força de trabalho necessária para a produção do pano), o capitalista produz agora só com matérias-primas e instrumentos de trabalho que a si mesmo pertencem. E entre estes últimos conta-se naturalmente também o bom tecelão, que
participa tão pouco no produto, ou no preço do produto com o tear. (MARX,
1987, p.25)
Nota-se, pois, que o capitalismo industrial consolidou-se sobre uma estrutura
de produção na qual a possibilidade de usufruir – em horas ou em outra medida de
tempo –, da força de trabalho operária mediante o pagamento de um salário torna-se
a peça chave para a almejada racionalização econômica da produção.
Por essa razão, considera-se que o trabalho assalariado é a forma de trabalho
que melhor corresponde aos interesses da produção capitalista racionalizada, vez que
permite ao capital, ao comprar a força de trabalho por meio do pagamento de um valor
pré-fixado (preço), controlar o tempo, ritmo e produtividade do trabalho, ampliando as
margens lucrativas.
Assim, Marx (1897, p. 25), despido de qualquer romantismo, considera que a
força de trabalho, sob o prisma pragmático, deve ser compreendida como uma
mercadoria “que o seu proprietário, o operário assalariado, vende ao capital. E por
que o operário assalariado a vende? Para viver”.
46
Tal raciocínio, deveras pragmático, viabiliza a percepção de que, no interior
de uma relação de trabalho assalariada, aquele que vende a sua força de trabalho ao
detentor dos meios produtivos não o faz por opção; só o faz porque, privado dos meios
de produção, apenas lhe resta auferir rendimentos por meio da venda da sua força de
trabalho.
Por essa razão, pode-se considerar que “o que o operário produz para si
mesmo não é a seda que tece, não é o ouro que extrai das minas, não é o palácio que
constrói. O que ele produz para si mesmo é o salário”, principal meio, senão único, de
garantir a sua subsistência ao viabilizar o consumo básico. (MARX, 1987, p.26)
Percebe-se, então, que a relação entre capital e trabalho assalariado, apesar
de consistir em uma indiscutível relação de exploração, representa uma legítima
associação simbiótica, na qual se verifica um alto grau de interdependência entre os
integrantes da relação: o capital desvanece-se se não explorar a força de trabalho
mediante a sua compra; o operário não sobrevive se não vender a sua força de
trabalho ao capital.
Assim, apesar da aparente colisão de interesses entre capital e trabalho, o
interesse último do operário, enquanto trabalhador assalariado, é exatamente o
mesmo que o do capitalista: a multiplicação do capital produtivo, haja vista que, sem
ele, não há renda para o operário, sob a forma de salário, nem renda para o capitalista,
sob a forma de lucro.
Considera-se, pois, analogicamente, que capital e trabalho assalariado vivem
em simbiose tal como vivem as plantas leguminosas e as bactérias que fixam
nitrogênio em suas raízes. “Uma coisa condiciona a outra como o usurário e o
dissipador se condicionam reciprocamente”. (MARX, 1987, p.39) O bem-estar de um
(capital ou trabalho) tende a repercutir positivamente sobre o outro, do mesmo modo
que qualquer mal-estar sentido por um deles, muito provavelmente, irá reverberar
sobre o outro. É o que se passa a analisar.
47
4 A SOCIEDADE FUNDADA NO TRABALHO ASSALARIADO
4.1 A nova ordem industrial e o padrão produtivo fordista-taylorista
Repetindo eu faço Mil vezes eu faço
Mill vezes me procuro Mil vezes não me acho
Sim, eu fiz Mas quando miro a esteira
Vejo-o rolar solto Sem qualquer sinal de mim
(RIBEIRO, 2017)
Nos termos do que se analisou previamente, o trabalho, compreendido como
condição da existência humana, esteve presente no seio da sociedade pré-industrial
como fator que expressava a sujeição do homem às suas necessidades vitais e, por
essa razão, não gozava de qualquer prestígio social.
Até o declínio da ordem feudalista e a efetiva consolidação do capitalismo em
seu estágio industrial, a imbricação que reinava entre trabalho e vida doméstica
aprisionava a atividade laboral à obscuridade do lar. Além disso, a imbricação entre
produção e posse dos insumos produtivos pelos produtores diretos limitava, em certa
medida, a exploração do homem pelo homem, viabilizando a lucratividade apenas por
meio da mercantilização dos produtos – que, em sede de capitalismo tradicional ou
mercantil, tornavam-se mercadoria ao serem vendidos pelos produtores agrícolas aos
mercadores, para fins de revenda.
A emancipação da atividade laboral das amarras do lar e a posterior
inauguração do trabalho em sua forma assalariada, que imprimiu na força de trabalho
o caráter de mercadoria, representaram novidades da nova ordem industrial,
consagrada no século XVIII.
Segundo Bauman, o ponto de partida para essa grande e impactante
transformação, que trouxe à tona a nova ordem industrial, foi a separação dos
trabalhadores das suas fontes de existência:
Esse evento momentoso era parte de um processo mais amplo: a produção e a troca deixaram de se inscrever num modo de vida indivisível, mais geral e inclusivo, e assim criaram as condições para que o trabalho (junto com a
48
terra e o dinheiro) fosse considerado como mera mercadoria e tratado como tal. (BAUMAN, 2001, p.178)
A cisão entre trabalho e vida doméstica e a consequente separação das
atividades produtivas do resto dos objetivos da vida, na visão de Bauman, permitiu a
condensação do esforço físico e mental, traduzido em atos de trabalho, em uma “
‘coisa’ a ser tratada como todas as outras coisas”. Considera o autor que “se essa
desconexão não acontecesse, haveria poucas possibilidades para a ideia de separar
mentalmente o trabalho da “totalidade” a que ele pertencia ‘naturalmente’ e condensá-
lo num objeto autocontido”. (BAUMAN, 2001, p.178)
Assim, com o advento da revolução industrial, proporcionado pela
concentração dos trabalhadores em galpões fabris, bem como dos meios de produção
nas mãos de uma restrita classe de empresários industriais, a utilização da mão-de-
obra pelo mercado produtivo passou a ser regida por uma racionalidade estritamente
econômica. Descobriu-se que, para além da comercialização de produtos, a força de
trabalho “livre” – desprovida dos meios de produção – poderia ser utilizada como
expressiva fonte de riqueza, desde que regida por uma razão que a utilizasse e a
explorasse do modo mais eficiente possível. (BAUMAN, 2001, p. 179)
Importa observar que esse ideal de eficiência e de grandeza que norteava o
espírito de acumulação das sociedades industriais, empenhadas na máxima extração
de lucro, também estava presente na estrutura das fábricas, na organização do
trabalho e nas configurações das relações de produção. Sobre essa reverberação do
ideal de grandeza nos padrões produtivos, inclusive sob o prisma estético, Bauman
explica que:
Grande era belo, grande era racional; ‘grande’ queria dizer poder, ambição e coragem. O local de construção da nova ordem industrial era repleto de monumentos ao poder e à ambição, monumentos que, fossem ou não indestrutíveis, deveriam parecê-lo: fábricas gigantescas lotadas de maquinaria volumosa e multidões de operadores de máquinas, ou densas redes de canais, pontes e trilhos, pontuados de majestosas estações dedicadas a emular os antigos templos erigidos para a adoração da eternidade e para a eterna glória dos adoradores. (BAUMAN, 2001, p.181)
No interior das grandes fábricas, maquinários monumentais eram operados
por trabalhadores por meio de um intenso e desgastante processo de interação, no
qual a potência das máquinas ditava os movimentos e o ritmo de trabalho dos
operários. Afinal, para cumprir o objetivo de acumular grandes montantes de capital,
49
era preciso produzir em grandes volumes, e isso demandava do trabalhador a
realização de longas jornadas de trabalho, agilidade, rapidez e eficiência máxima em
cada ato produtivo desempenhado.
E esse novo padrão comportamental imposto ao trabalhador moderno só se
tornou realizável mediante a propagação de uma cultura operária norteada pelos
ideais da obediência, eficiência e uniformidade, que convergiu para a moldagem de
trabalhadores altamente reificados, desprezados em suas personalidades e tão
robotizados quanto as máquinas que operavam. Discorrendo sobre esse processo de
racionalização e reificação da mão-de-obra operária, Gorz pontua que
O fato de que a produção dependia – na qualidade, quantidade, custo –das capacitações não formalizáveis dos operários era evidentemente inaceitável do ponto de vista da racionalidade econômica. Para ser calculável e previsível, a produção não podia repousar sobre o trabalho de operários, que produzem mais ou menos bem, mais ou menos rápido. Era preciso transformar as atividades produtivas de diferentes indivíduos em atividades rigorosamente idênticas, tornar suas tarefas intercambiáveis, mensuráveis pela mesma balança, seus rendimentos comparáveis. (GORZ, 2003, p.62)
Essa necessidade de se extrair a máxima eficiência da força de trabalho foi
bem captada pelo modelo de gestão produtiva desenvolvido e posto em prática por
Henry Ford, na fábrica de High Land Park, da The Ford Motor Company. Conforme
ensina Richard Sennet, Henry Ford introduziu um modelo de produção no qual cada
operário deveria ser um trabalhador altamente especializado (o que não se confunde
com qualificado), realizando operações específicas e de baixa complexidade, com
rapidez e sem qualquer senso crítico. Nas palavras do autor:
Quando Ford industrializou seu processo de produção, favoreceu o emprego dos chamados trabalhadores especialistas em relação aos artesãos qualificados; os empregos dos trabalhadores especialistas eram aqueles tipos de operações em miniatura que exigiam pouco pensamento ou julgamento. Na fábrica de Highland Park de Ford, a maioria desses trabalhadores especialistas era composta de imigrantes recentes, enquanto os artesãos qualificados eram alemães e outros americanos mais estabelecidos; tanto a administração quanto os americanos "nativos" julgavam que os novos imigrantes não tinham inteligência para fazer mais que um trabalho de rotina. Em 1917, 55 por cento da força de trabalho eram empregados especialistas; outros 15 por cento eram limpadores e faxineiros não qualificados, que pairavam nas laterais da linha de montagem, e os artesãos e técnicos haviam caído para 15 por cento. ‘Homens baratos precisam de gabaritos caros’, disse Sterling Bunnell, um dos primeiros defensores dessas mudanças, enquanto ‘homens altamente qualificados precisam de pouca coisa além de suas caixas de ferramentas’. (SENNET, 2009, p.44-45)
50
Assim, como desdobramento do princípio capitalista da máxima eficiência, o
trabalho especializado e repetitivo refletia a rotina monótona e disciplinadora reinante
nas fábricas, para as quais “operários ‘semi-idiotas eram a melhor mão-de-obra que
se podia imaginar”. (GORZ, 2003, p.63)
Conforme pontuado por Sennet, essa rotina industrial maçante, apesar de,
indiscutivelmente, embrutecer a mão-de-obra, foi considerada positiva por Denis
Diderot, notável filósofo francês iluminista, na medida em que, ao seu ver, contribuía
para uma unidade mental e manual no trabalho, tornando o processo de produção
eficaz e harmônico. Veja-se:
Diderot acreditava — novamente por analogia às artes — que esta rotina estava em constante evolução, à medida que os trabalhadores aprendiam como manipular e alterar cada estágio do processo de trabalho. De forma mais ampla, o "ritmo" de trabalho significa que, repetindo uma operação em particular, se descobre como acelerar ou moderar a atividade, fazer variações, manejar os materiais, desenvolver novas práticas — assim como um músico aprende como conduzir o tempo ao executar uma peça musical. Graças à repetição e ao ritmo, o trabalhador pode alcançar, disse Diderot, "a unidade mental e manual'' no trabalho. Claro, isso é um ideal. Diderot apresenta provas visuais e sutis para torná-lo convincente. (SENNET, 2009, p.38)
Essa crença de Diderot na ideia de que o modelo produtivo fordista-taylorista
era o caminho para o alcance da excelência pelo trabalhador, sendo, pois, fator de
harmonia no ambiente fabril, pode ser claramente percebida nas imagens utilizadas
em sua Enciclopédia, lançada no século XVIII, para representar a rotina nas primeiras
fábricas instaladas na França:
51
Figura 1 “Encyclopédie, Planches tome 5, pl. XI”
Fonte: BLOG ECHOS FROM THE VAULT, 20145.
Nota-se que, além do ambiente fabril altamente hígido e organizado, a
imagem retrata operários realizando cada qual a sua respectiva tarefa, com
semblantes serenos, em franca negação à potencialidade do sistema produtivo
vigente para atuar de modo opressor sobre classe operária.
As impressões do psicólogo industrial norte-americano Frederick Taylor sobre
o caráter mecanicista e embrutecedor da produção também eram positivas. Taylor
acreditava que “a maquinaria e o projeto industrial podiam ser imensamente
complicados numa grande empresa, mas não havia necessidade de os trabalhadores
compreenderem essa complexidade”. Na visão de Taylor, quanto menos os
trabalhadores fossem envolvidos pela compreensão do todo, maior seria a atenção
destinada para os seus próprios serviços e, portanto, mais elevada seria a sua
produtividade. (SENNET, 2009, p.45)
A fim de comprovar suas convicções acerca da necessária correlação entre
foco e produtividade, Taylor desenvolveu estudos acerca do tempo-movimento, “feitos
5 Disponível em: https://standrewsrarebooks.wordpress.com/2014/03/06/52-weeks-of-historical-how-tos-week-19-diderots-encyclopedie-and-the-art-of-making-paper/. Acesso em: 14 out. 2017
52
com um cronômetro, medindo em frações de segundo quanto demorava a instalação
de um farol ou de um para-choque”. Assim, como incremento da lógica de produção
fordista, foi introduzido o padrão taylorista de controle preciso e cronometrado dos
atos de trabalho. (SENNET, 2009, p.45)
Citando descrição do economista francês Alain Lipietz, Bauman considera
que, em seu apogeu, o fordismo representou um modelo de industrialização calcado
na “combinação de formas de ajuste das expectativas e do comportamento
contraditório dos agentes individuais aos princípios coletivos do regime de
acumulação”. Considera, ainda, que esse “paradigma industrial incluía o princípio
taylorista da racionalização, juntamente com a constante mecanização”, a fim de
alcançar o explícito objetivo de Taylor e engenheiros adeptos ao taylorismo:
intensificar o controle sobre a mão-de-obra. (LIPIETZ apud BAUMAN, 2001, p.74)
Assim, pode-se dizer que o modo de produção consagrado pela ordem
industrial, sobretudo no início do século XX, consistiu no binômio fordismo-taylorismo,
que, combinando as noções básicas de produção em linha de montagem e de controle
implacável do tempo e dos movimentos, atendeu perfeitamente às expectativas de
produção volumosa e de exponencial acumulação de capital. (RIBEIRO; JANNOTTI,
2016, p. 1205)
Já sob o prisma humano, essa sistemática de produção – pautada em
unidades produtivas concentradas e verticalizadas, produção em massa, atividades
mecânicas desenvolvidas pelo emprego de movimentos repetitivos e temporalmente
controlados, funções especializadas e estruturas hierárquicas altamente rígidas –
produziu “homens amputados de seus conhecimentos e de suas responsabilidades”.
(GORZ, 1968, p.43)
Conforme esclarece Gorz, a formação profissional que a empresa conferia ao
seu trabalhador era estritamente aquela necessária para a realização da sua atividade
especializada, “[...] não lhe permitindo, pois, alcançar o processamento da produção
em seu conjunto, nem a essência criadora do ato de trabalho que comporta
possibilidades de iniciativa, de reflexão, de decisão”, inclusive, da decisão de vender
sua força de trabalho para outro empregador. (GORZ, 1968, p. 43)
Sobre essa dificuldade enfrentada pelo empregado em se desvencilhar do seu
empregador, deve-se esclarecer que todo o cenário narrado contribuía para a
intensificação da dependência, tanto em termos técnicos quanto financeiros, do
empregado perante o empregador, gerando uma tendência de fixação do trabalhador
53
no estabelecimento que primeiro o empregava. Assim, em sede de capitalismo
industrial ou “capitalismo pesado” – obcecado por volume, tamanho e “por fronteiras,
fazendo-as firmes e impenetráveis” – os vínculos empregatícios assumiam caráter
quase que indissolúvel. (BAUMAN, 2001, p.76)
Fato é que essa quase indissolubilidade do vínculo de emprego poderia ser
interessante para o trabalhador, por lhe conferir certa estabilidade e segurança;
porém, representava, acima de tudo, uma poderosa arma do capital de imobilização
da sua equipe, voltada a atar os empregados à empresa numa espécie de casamento
“até que a morte os separe”. (BAUMAN, 2001, p.185) O grande ideal era “atar capital
e trabalho numa união que – como um casamento divino – nenhum poder humano
poderia ou tentaria desatar”. (BAUMAN, 2001, p.182)
Logo, a velha história de que Henry Ford, ao dobrar os salários de seus
trabalhadores pretendia permitir que eles comprassem os carros que produziam,
parece representar um discurso falacioso. Conforme advertido por Bauman, “a
verdadeira razão para o passo heterodoxo era o desejo de Ford de deter a mobilidade
irritantemente alta do trabalho.” O que se acredita que ele pretendia, de fato, com essa
política de aumento salarial, era “atar seus empregados às empresas Ford de uma
vez por todas, fazendo com que o dinheiro gasto em sua preparação e treinamento se
pagasse muitas vezes por toda a duração da vida útil dos trabalhadores”. (BAUMAN,
2001, p.181)
Nesse sentido, tendo em vista o entrelace entre a força de trabalho e o capital,
bem como os demais traços do binômio fordismo-taylorismo aqui expostos, considera-
se que “a modernidade sólida era, de fato, também o tempo do capitalismo pesado –
do engajamento entre capital e trabalho fortificado pela mutualidade da sua
dependência”; era o tempo em que os muros da grande fábrica abrigavam os parceiros
(capital e trabalho) numa prisão compartilhada, unindo-os na riqueza e na pobreza,
na saúde e na doença, até que a morte os separasse. (BAUMAN, 2001, p.182)
Assim, nos termos do que será abordado, num contexto em que a relação
entre capital e trabalho assumia caráter predominantemente estático, sólido e
duradouro, sendo regida por uma mentalidade a longo prazo, o trabalho representava
um eixo seguro, em torno do qual tanto as expectativas do capital quanto as
expectativas do trabalhador eram depositadas, diuturnamente.
54
4.2 O trabalho assalariado enquanto fator de solidez na nova ordem industrial
Preso nesse chão pelo pão carrego nos ombros a vida
e o peso da decisão que nunca tomei
(RIBEIRO, 2017)
Dentre as diversas virtudes e potencialidades do trabalho, sobretudo em sua
versão assalariada, foi, certamente, a sua capacidade, quase mística, de conferir
forma ao disforme e durabilidade ao transitório que o elevaram “ao posto de principal
valor dos tempos modernos”. (BAUMAN, 2001, p. 172)
A nova ordem industrial, ao consagrar o trabalho assalariado como a forma
de prestação de serviço por excelência, parece ter elegido, com toda a acuidade, os
“ingredientes” essenciais dessa forma de prestação laboral, quais sejam, a
pessoalidade, a onerosidade, a não eventualidade e a subordinação, a fim de obter
uma “mistura” apta a suprir as principais carências do capital industrial, pesado e
robusto por natureza.
Sob influência da doutrina protestante, a racionalização econômica do
trabalho – que, conforme previamente estudado, buscou regular as relações laborais
a fim de torná-las calculáveis e previsíveis, em compasso com o intuito acumulador e
disciplinador do capitalismo industrial –, ao mesmo tempo em que reificou a força de
trabalho, elevou o trabalho assalariado à “condição natural dos seres humanos”, sem
a qual o homem estaria fatalmente condenado à depravação e à miséria. Segundo
Bauman:
[...] o “trabalho”, assim compreendido, era a atividade em que se supunha que a humanidade como um todo estava envolvida por seu destino e natureza, e não por escolha, ao fazer história. E o “trabalho”, assim definido, era um esforço coletivo de que cada membro da espécie humana tinha que participar. O resto não passava de consequência: colocar o trabalho como “condição natural” dos seres humanos, e estar sem trabalho como normalidade, denunciar o afastamento dessa condição natural como causa da pobreza e da miséria, da privação e da depravação; ordenar homens e mulheres de acordo com o suposto valor da contribuição do seu trabalho ao empreendimento da espécie como um todo; e atribuir ao trabalho o primeiro lugar entre as atividades humanas, por levar ao aperfeiçoamento moral e à elevação geral dos padrões éticos da sociedade. (BAUMAN, 2001, p. 172-173)
55
Veja-se, pois, que a centralidade assumida pelo trabalho era vivida não
apenas no interior das relações laborais, entabuladas entre operários e empresários
industriais; para além dos muros da relação de emprego, o trabalho era difundido
enquanto valor supremo, a ser duramente preservado por aquele que o tinha e
incessantemente perseguido por aquele que não o tinha. Afinal, apenas por meio dele,
o indivíduo poderia libertar-se do seu destino e construir a sua própria história,
esquivando-se da miséria e conquistando riquezas.
Assim, “o projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade
herdada”, deixando os indivíduos supostamente livres para escolherem o projeto de
vida a ser seguido. O que não quer dizer que o projeto moderno tenha se posicionado
contrariamente à ideia de se “ter uma identidade, mesmo uma sólida, exuberante e
imutável identidade. Só transformou a identidade, que era questão de atribuição, em
realização – fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do
indivíduo”. (BAUMAN, 1998, p.30)
Nesse sentido, pode-se dizer que, em sede de modernidade sólida e
capitalismo pesado, ao trabalho, foram atribuídas muitas virtudes e efeitos benéficos;
“mas, subjacente a todos os méritos atribuídos estava a sua suposta contribuição para
o estabelecimento da ordem, para o ato histórico de colocar a espécie humana no
comando do seu próprio destino”. (BAUMAN, 2001, p.172)
Esclarece-se que, ao se referir à modernidade como sólida, Bauman busca
estabelecer uma analogia entre os valores reinantes no contexto moderno e o arranjo
estruturalmente organizado que, unindo firmemente os átomos, confere estabilidade
aos sólidos. (BAUMAN, 2001, p. 8)
Assim, em sede de modernidade sólida – norteada pelos ideais da certeza,
do planejamento, da segurança e da acumulação – o trabalho assalariado, revestido
de qualidades que, ao menos em tese, permitiam tanto ao capital quanto ao
trabalhador alcançarem tais ideais, tornou-se instrumento decisivo na “moderna
ambição de submeter, encilhar e colonizar o futuro, a fim de substituir o caos pela
ordem e a contingência pela previsível (e, portanto, controlável) sequência dos
eventos”. (BAUMAN, 2001, p.172)
Considera-se, pois, que a natureza cumulativa do sistema industrial então
consolidado e a mentalidade guiada pela durabilidade e pelo preceito do longo prazo,
imposta pelo capitalismo pesado subjacente, convergiram para a consolidação de
uma sociedade na qual o presente deveria ser colonizado pelo futuro e na qual o
56
instrumento disponível para o alcance dessa colonização não poderia ser outro, senão
o trabalho.
E para além desse potencial colonizador do futuro, a noção de bem-estar
geral propagada pela sociedade capitalista industrial estava vinculada tanto ao
acúmulo de capital quanto ao acúmulo de renda, que dependiam, um e outro, do
trabalho – próprio, no caso do acúmulo de renda, ou alheio, no caso do acúmulo de
capital.
Assim, pode-se dizer que o trabalho assalariado foi estrategicamente
apropriado pelo capitalismo industrial para exercer uma dupla função estabilizadora e
impulsionadora do sistema: tornou-se, ao mesmo tempo, a base para a extração de
lucro pelo proprietário dos meios de produção e a fonte de renda para o trabalhador,
viabilizando o exercício do papel social de consumidor imediato por ambos os atores
da relação (empregado e empregador) e, ainda, estimulando o acúmulo de riqueza
necessário para a realização de projetos futuros. (RIBEIRO; COUTINHO, 2017, p.193)
Marx, analisando essa imbricação entre trabalho e consumo direto, voltado
essencialmente à subsistência humana, considerou que:
Em troca da sua força de trabalho, o operário recebe meios de subsistência, mas o capitalista, em troca dos seus meios de subsistência, recebe trabalho, a atividade produtiva do operário, a força criadora por meio da qual o operário não somente substitui o que consome como também dá ao trabalho acumulado um valor superior ao que anteriormente possuía. O operário apenas recebe do capitalista uma parte dos meios de subsistência existentes. Para que lhes servem estes meios de subsistência? Para o consumo imediato. (MARX, 1977, p.37)
Realça-se que, não obstante essa indiscutível repercussão do trabalho
assalariado na esfera das necessidades humanas, vez que pressuposto para o
consumo básico de uma grande maioria, desprovida dos meios de produção, a sua
exaltação na sociedade capitalista não deve ser compreendida, simplesmente, como
algo que parte naturalmente do indivíduo. A verdade é que o próprio “capitalismo
celebra o trabalho – enfatizando o seu lado positivo. E há uma lógica nisso, pois todo
fenômeno cultural é produzido por ele”. (VIANA; TEODORO, 2016, p.6)
Mas para celebrar o trabalho a ponto de torná-lo desejado pelos
trabalhadores, a burguesia, enquanto legítima representante do capital, também
deveria ser celebrada, exaltada enquanto símbolo de um sucesso que poderia ser
alcançado, um dia, pelos trabalhadores fiéis e persistentes. Referindo-se a essa
57
promessa capitalista de ingresso da mão-de-obra compromissada no universo
burguês como a grande fonte de estímulo à doação ao trabalho, Hobsbawn ensinou
que:
A era do capital encontrou dificuldades em acertar os termos com este problema. A insistência da burguesia na lealdade, disciplina e modesta satisfação não podia realmente esconder que sua verdadeira percepção de que o que fazia os trabalhadores trabalharem era algo bem diferente. Mas o que era então? Na teoria eles deveriam trabalhar para deixar de serem trabalhadores logo que possível, entrando então no universo burguês. (HOBSBAWN, 1982, p.22)
Pode-se entender, pois, que o estímulo para o trabalho era o status que
poderia ser alcançado por meio desse trabalho. Aquele que trabalhava muito, o fazia
para adquirir renda para seu consumo imediato, sim; mas ultrapassada essa esfera
das necessidades vitais, o fazia para acumular riquezas e, então, tornar-se digno de
ingressar no nobre universo da burguesia.
Contudo, “embora esta esperança pudesse ser suficiente para alguns que
tivessem conseguido subir e sair da classe operária, era perfeitamente evidente que
a maioria dos trabalhadores permaneceria trabalhador por toda a vida”, e de fato, o
sistema econômico almejava exatamente isso deles, razão pela qual os salários eram
sempre mantidos o mais baixo possível. (HOBSBAWN, 1982, p.229)
Quanto a essa funcionalidade do trabalho assalariado para fins de
manutenção do sistema capitalista, o sociólogo francês Robert Castel (apud VIANA;
TEODORO, 2016, p.6), reconhecendo a múltipla dimensão do trabalho na sociedade
capitalista, considerou que “o trabalho foi e permanece sendo a referência dominante
não somente do ponto de vista econômico, mas também sob as perspectivas
psicológica, simbólica e cultural” – o que se afirma, numa lógica reversa, pelos efeitos
de rebaixamento e exclusão sociais que atingem os indivíduos que, compondo o
exército de reserva de mão-de-obra, não dispõem de um ofício.
Contudo, apesar da proclamação do trabalho enquanto valor supremo de
inserção social e do trabalho assalariado enquanto fator de maior potencial para
realização dos ideais de segurança, estabilidade e progresso econômico, no plano
prático, apenas uma parte da relação entre capital e trabalho conseguiu, de fato,
desfrutar de todas essas benesses proclamadas pelo capitalismo industrial: o capital.
A força de trabalho operária, enquanto parte hipossuficiente dessa relação,
tanto em termos técnicos quanto financeiros, sociais e políticos, conforme se verá,
58
não tardou a sentir os efeitos da imperativa subjugação aos propósitos do capital,
passando a demandar uma intervenção protetiva, que veio a ser conquistada – ou
concedida, a depender do ponto de vista – sob a forma de direitos.
59
5 DIREITO DO TRABALHO NO BOJO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL:
COMPREENDENDO O ESPÍRITO JUSTRABALHISTA
Que bonito é aquele Direito Que, sentindo a vida, consegue embelezá-la
Ou, ao menos, torná-la menos desajeitada
(RIBEIRO, 2017)
5.1 A proteção social estatal no interior da sociedade industrial: movimentos
precursores
O modelo produtivo da “grande indústria”6, pautado no binômio taylorismo-
fordismo, conforme acima estudado, promoveu um processo de franca expansão do
capital, implementando mecanismos que, racionalizando a força de trabalho e
intensificando sua dependência face ao capital, favoreceram o deslanche do processo
de industrialização e, por conseguinte, da economia.
Já sob o prisma social e humano, o modelo da grande indústria deu ensejo a
um cenário de miséria extrema, intensificando o abismo social marcado pela oposição
entre o bem-estar desfrutado pelas classes empresárias e o mal-estar vivenciado
pelas classes operárias. Afinal, a liberdade de que desfrutavam os empresários
industriais para regular as relações de produção do modo que mais lhe agradasse,
combinada com a sua ambição de acumular capital, convergiram para um cenário de
superexploração do operariado.
Tal cenário, conforme ratificado pelos depoimentos abaixo
transcritos, expressava-se na rotina industrial pela imposição de jornadas exaustivas,
pelos galpões imundos, insalubres e perigosos, pelo pagamento de salários aviltantes
e pela superexploração da mão-de-obra infantil:
“(...) prestação de serviço durante mais de 12 horas de trabalho fatigante, sem descanso nem férias, com salários de fome (...) mortes e mutilações permanentes (...) doenças crônicas, (... péssimas condições higiênicas e de segurança. ”
6Como ensina Maurício Godinho Delgado, “a expressão grande indústria traduz um modelo de organização do processo produtivo, baseado na intensa utilização de máquinas e profunda especialização e mecanização de tarefas, de modo a alcançar a concretização de um sistema de produção sequencial, em série rotinizada.” (DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 13.ed. São Paulo: LTR, 2014, p.89)
60
“(...) sabemos existirem fábricas onde trabalham crianças de 7 e 8 anos, junto a máquinas, na iminência aflitiva de terríveis desastres, como alguns já acontecidos...” “O operário, nas suas atuais condições de vida (...) não morre naturalmente: é assassinado aos poucos. ”. (MORAES apud VIANA, 2013, p.33-34)
A ordem industrial floresceu, então, sob o paradigma do “liberalismo clássico”7
ou liberalismo político – segundo o qual as relações privadas, em apreço ao grande
ideal iluminista da liberdade, deveriam ser regidas sem qualquer interferência do
poder estatal –, mas, sobretudo, sob o paradigma do liberalismo econômico, que
considerava injustificado e indevido qualquer controle do Estado sobre as relações
econômicas privadas. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.104)
Dentre os defensores do liberalismo clássico, o seu grande precursor, Wilhelm
von Humboldt, acreditava que o Estado fazia “‘do homem um instrumento para seus
fins arbitrários, deixando de lado os propósitos individuais’”; e, considerando que os
homens, por essência, eram seres livres, que se aperfeiçoavam por seus próprios
meios, os liberalistas clássicos entenderam que o Estado era uma “instituição
profundamente anti-humana”. (HUMBOLDT apud CHOMSKY 2006, p.7)
Contudo, tal convicção foi formada num contexto em que o capitalismo
industrial, ainda tímido e incipiente, não havia produzido os seus efeitos colaterais,
elevando à última potência a exploração entre seres humanos. Como ensinado por
Chomsky, “Humboldt, não previu que, numa economia capitalista predatória, a
intervenção do Estado seria uma necessidade absoluta para preservar a existência
humana e evitar a destruição do ambiente físico”. (CHOMSKY, 2006, p. 13)
O liberalismo econômico, preconizado por Adam Smith, veio à lume no século
XVIII e foi justamente da sua conjugação com o liberalismo político que, segundo
Reale (2005, p.25), operou-se “o real triunfo da burguesia”.
Nesse sentido, Norberto Bobbio explica que o Estado Liberal foi fruto de um
duplo processo de emancipação: do poder político face ao poder da igreja e do poder
econômico face ao poder político. Veja-se:
O duplo processo de formação do estado liberal pode ser descrito, de um lado, como emancipação do poder político do poder religioso (estado laico) e, de outro, como emancipação do poder econômico do poder político (estado
7 Conforme ensinado por Noam Chomsky, o liberalismo clássico, fruto dos ideais iluministas libertários, “afirma ter como ideia-chave a oposição a todas as mínimas formas de intervenção do Estado na vida social e pessoal”, pautando-se no princípio de que o atributo central do homem é a sua liberdade. In: CHOMSKY, Noam. O Governo no Futuro. Tradução de Maira Parula. Rio de janeiro: Record, 2007, p. 6
61
do livre mercado). Através do primeiro processo de emancipação, o estado deixa de ser o braço secular da igreja; através do segundo, torna-se o braço secular da burguesia mercantil e empresaria. (BOBBIO, 2006, p.115)
No interior das fábricas, a relação travada entre o capital e o trabalho era
nitidamente desigual: o empresário industrial pré-fixava um valor – ou um preço,
propriamente, como entendia Marx8 – e, por esse valor, adquiria o direito de utilizar a
mão de obra do trabalhador por um período de tempo estipulado, que costumava
equivaler à quase metade das horas diárias; a quantidade, bem como o ritmo da
produção, eram ditados pelo empresário, que detinha os meios produtivos e, portanto,
o poder de dirigir e controlar o serviço a ele prestado de acordo com a sua pretensão
lucrativa; por fim, o direito dos operários de resistir às ordens empresariais e se
revoltarem contra as condições degradantes impostas não era reconhecido pelo
Estado, sendo consequentemente ignorado pelos patrões, que não cediam às
pressões operárias.
Fora das fábricas, os efeitos dessa relação também eram nitidamente
desfavoráveis aos trabalhadores: operários vestiam-se, comiam e moravam mal,
“aglomerados em cômodos imundos, sem ar nem luz”. (MORAES apud VIANA, 2013,
p.33)
Realçando a precariedade que, para além das fábricas, também estava
presente nas famílias daqueles que deixaram o campo e migraram para as cidades
em busca de meios de subsistência, Viana pondera que:
[...] a cidade podia ser o salário em dinheiro, a conta na venda, a cerveja no bar, o uniforme da fábrica, o domingo na igreja, a mulher cheia de orgulho, mas era também o cortiço, a favela ou às vezes até a casa dividida com outras gentes. E com certeza era a mesa sem leite, o domingo sem frango, o trabalho com o chefe no pé, o sono cortado em dois, a máquina gemendo e cuspindo fogo, a chaminé ordenando o tempo com seus apitos. (VIANA, 2013, p.35)
Karl Polanyi, sem ter previsto – assim como Humboldt –, as consequências
anti-humanas do capitalismo industrial, em defesa da liberdade de agir dos atores
sociais, assim considerou: “[...] não cabe à mercadoria decidir onde deve ser posta à
8 Karl Marx, caracterizando o salário como um preço, cita Thomas Hobbes, considerando que “o valor ou valia (value or worth) de um homem, é como para todas as coisas, o seu preço: isto é, tanto quanto seria dado pelo Uso do seu Poder”. (MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. Centauro: São Paulo, 1965)
62
venda, para que propósito deve ser usada, a que preço deve trocar de mãos e de que
maneira deve ser consumida ou destruída” (POLANYI apud CHOMSKY, 2006, p. 13).
Ocorre que, conforme advertido por Chomsky, nesse novo cenário industrial
instaurado, pautado na exploração da mão-de-obra alheia, a mercadoria passou a ser
claramente a vida humana. Por essa razão, pensar em uma espécie de proteção social
tornou-se uma “necessidade mínima para refrear a atividade irracional e destrutiva do
livre mercado clássico”. (CHOMSKY, 2006, p.13)
Nesse sentido, captando a necessidade de se refrear a livre atuação do
mercado sobre a força de trabalho disponível, a partir do século XIX, algumas
importantes manifestações, sobretudo intelectuais, contrárias à relação de exploração
entabulada entre capital e trabalho, passaram a ocorrer, dando ensejo ao que Delgado
– respaldando-se nas classificações desenvolvidas por Granizo e Rothvoss –
denominou de “fase de intensificação” da proteção social ao trabalhador. (DELGADO,
2014, p.93)
Uma delas consistiu no “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friederich
Engels, que chamou a atenção da sociedade para o fato de que, a despeito do
aparente caráter democrático e libertador, a sociedade burguesa moderna, fruto da
nova ordem industrial, não havia suplantado os antigos antagonismos de classe;
havia, senão, legitimado um novo e simplificado antagonismo entre duas grandes
classes: a burguesia e o proletariado. (MARX; ENGELS, 1848, p.8)
Segundo os autores, a nova classe burguesa, constituída pelos empresários
industriais, havia desempenhado um papel revolucionário, tornando a histórica
exploração do homem sobre o homem “aberta, cínica, direta e brutal”, rasgando o véu
de sentimentalismo das relações humanas e as reduzindo, todas, a meras relações
monetárias. (MARX; ENGELS, 1848, p.11)
Consideraram, ainda, que a classe operária oprimida, vítima de salários cada
vez mais baixos em decorrência da livre concorrência, já demonstrava sinais de união
contra a sua opressão. Assim, conscientizando o proletariado da sua brutal
exploração, Marx e Engels preconizaram a necessidade de se fortalecer essa união
em prol de uma revolução proletária, destinada a abolir a propriedade privada das
forças produtivas e pôr fim à sujeição do trabalho perante o capital. (MARX; ENGELS,
1848, p.24-25)
Nota-se, portanto, que o “Manifesto Comunista” questionou aberta e
incisivamente o modelo da grande indústria, difundindo uma ideologia contrária àquela
63
preconizada pelo capitalismo industrial – subsidiado e impulsionado pelo liberalismo
político vigente.
Alguns anos após, outra manifestação relevante consistiu na publicação da
Encíclica Rerum Novarum, escrita pelo Papa Leão XIII, em 1891. Apesar do seu nítido
caráter reacionário, haja vista o intuito de apenas apaziguar os conflitos decorrentes
da relação de exploração entre capital e trabalho, exaltando a conduta passiva do
trabalhador, o texto externou a preocupação da Igreja Católica diante da exploração
desenfreada do proletariado. Veja-se o seguinte trecho:
O primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas contra a natureza todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os homens diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce espontaneamente a desigualdade das condições. Esta desigualdade, por outro lado, reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos indivíduos; porque a vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva precisamente os homens a partilharem estas funções é, principalmente, a diferença das suas respectivas condições. Pelo que diz respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado de inocência, não era destinado a viver na ociosidade, mas, ao que a vontade teria abraçado livremente como exercício agradável, a necessidade lhe acrescentou, depois do pecado, o sentimento da dor e o impôs como uma expiação: A terra será maldita por tua causa; é pelo trabalho que tirarás com que alimentar-te todos os dias da vida. O mesmo se dá com todas as outras calamidades que caíram sobre o homem: neste mundo estas calamidades não terão fim nem tréguas, porque os funestos frutos do pecado são amargos, acres, acerbos, e acompanham necessariamente o homem até ao derradeiro suspiro. Sim, a dor e o sofrimento são o apanágio da humanidade, e os homens poderão ensaiar tudo, tudo tentar para os banir; mas não o conseguirão nunca, por mais recursos que empreguem e por maiores forças que para isso desenvolvam. Se há quem, atribuindo-se o poder fazê-lo, prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos e de trabalhos, toda de repouso e de perpétuos gozos, certamente engana o povo e lhe prepara laços, onde se ocultam, para o futuro, calamidades mais terríveis que as do presente. O melhor partido consiste em ver as coisas tais quais são, e, como dissemos, em procurar um remédio que possa aliviar os nossos males.9
Observe-se, pois, que a Rerum Novarum, ao contrário do “Manifesto
Comunista”, não propôs qualquer atitude de caráter revolucionária pela classe
operária; contrariamente, buscou reforçar a necessidade de complacência do
9 Trecho retirado da Carta Encíclica Rerum Novarum, de 1891, escrita pelo Papa Leão XIII. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerumnovarum.html. Acesso em: 21 out. 2017.
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proletariado diante da sua condição, que deveria ser compreendida enquanto fruto da
lei e vontade divinas.
Contudo, em relação à postura dos empresários industriais, denominados de
“ricos” e “patrões”, a Encíclica reconheceu a exploração desenfreada do empregado,
condenando o seu tratamento enquanto mero instrumento de lucro:
Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objecto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços. O cristianismo, além disso, prescreve que se tenham em consideração os interesses espirituais do operário e o bem da sua alma. Aos patrões compete velar para que a isto seja dada plena satisfação, para que o operário não seja entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada venha enfraquecer o espírito de família nem os hábitos de economia. Proíbe também aos patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior às suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo. Mas, entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém. Certamente, para fixar a justa medida do salário, há numerosos pontos de vista a considerar. Duma maneira geral, recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer no preço dos seus labores: «Eis que o salário, que tendes extorquido por fraude aos vossos operários, clama contra vós: e o seu clamor subiu até aos ouvidos do Deus dos Exércitos. Enfim, os ricos devem precaver-se religiosamente de todo o acto violento, toda a fraude, toda a manobra usurária que seja de natureza a atentar contra a economia do pobre, e isto mais ainda, porque este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem de mínima importância, revestem um carácter mais sagrado. A obediência a estas leis — pergunta-mos Nós — não bastaria, só de per si, para fazer cessar todo o antagonismo e suprimir-lhe as causas?10
Nota-se, portanto, que visando preservar a divisão da sociedade entre ricos e
pobres, empregados e patrões, a Igreja reconheceu a necessidade de se implementar
uma forma de tratamento menos brutal da força de trabalho, preconizando o respeito
à dignidade do trabalhador, a não exigência de esforços superiores às forças do
operário e, sobretudo, o pagamento de salários justos.
Por fim, destaca-se a “Conferência de Berlim”, de 1890, que, conforme
ensinado por Delgado, “embora não tivesse produzido resultados concretos imediatos,
significou o primeiro reconhecimento formal e coletivo pelos principais Estados
10Trecho retirado da Carta Encíclica Rerum Novarum, de 1891, escrita pelo Papa Leão XIII.
Disponível em: https://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerumnovarum.html. Acesso em: 21 out. 2017.
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europeus da franca necessidade de se regular o mercado de trabalho”, mediante a
elaboração de normas trabalhistas que fossem adequadas à realidade de cada país.
(DELGADO, 2014, p. 97)
5.2 O advento do Direito do Trabalho: “luxo” ideológico ou necessidade real?
Antes de se aprofundarem as exposições, julga-se importante esclarecer que
a compreensão ora adotada é a de que o surgimento do Direito do Trabalho não
representou um ato benevolente de concessão estatal – nem nos países ocidentais
de economia central, nem no Brasil, onde o surgimento do Direito do Trabalho foi
posterior, em virtude da industrialização tardia.
Considerando-se todos os fatores apresentados no decorrer do tópico
imediatamente anterior (item 5.1), que permitiram a constatação de que o capitalismo
industrial, em oposição às promessas de bem-estar geral, instaurou um cenário de
exploração desenfreada da força de trabalho pelo capital, pode-se dizer que o
surgimento do Direito do Trabalho representou uma necessidade – externada pela
sociedade civil e, posteriormente, incorporada pelo Estado.
Mas para que se compreenda o advento do Direito do Trabalho para além do
complexo normativo ao qual corresponde, é preciso, antes, analisar à fundo o seu
objeto de regulação, a fim de que, compreendendo a natureza e os efeitos das
relações sociais subjacentes a este Direito, compreenda-se a razão da sua existência.
Desde o surgimento do capitalismo, mas, sobretudo, no contexto de
capitalismo industrial, a mão-de-obra livre, mas desprovida dos meios de produção,
foi captada pelos detentores dos meios produtivos. O resultado desse processo de
assimilação da mão-de-obra livre, emancipada dos laços de servidão, pelos
empresários industriais foi o surgimento de um tipo de relação de trabalho na qual a
liberdade pessoal do trabalhador deveria conviver harmonicamente com a sua
subordinação no âmbito da prestação de serviços.
Assim, como ensina Evaristo Moraes Filho, “com o desaparecimento da
servidão medieval, podia o trabalhador firmar um contrato de locação de serviços com
seu patrão, como se fossem dois homens livres e iguais”. (MORAES FILHO, 2014,
p.43)
Essa equiparação realizada por Moraes Filho representa perfeitamente a
lógica contratual da relação de trabalho subordinado, oneroso, pessoal e não
66
eventual, num contexto em que o liberalismo político e econômico vigente não
vislumbrava qualquer forma de regulação estatal sobre as relações privadas.
Contudo, conforme exposição realizada, a regulação das relações de trabalho
subordinado sob o paradigma do livre mercado, sem ingerências estatais, favoreceu
a objetivação do trabalho (compreendido como mera mercadoria) e a reificação do
trabalhador (visto como mero instrumento de lucro), intensificando a exploração, a
desigualdade e o pauperismo.
Por essas razões, foi que, ainda no século XIX, sobretudo nos países
europeus ocidentais e nos Estados Unidos da América, começaram a surgir
manifestações sociais alertando a sociedade para a subjugação do proletariado, bem
como sinalizando a necessidade de se regulamentar as relações de trabalho, fixando-
se “preceitos objetivos para a contratação e gerenciamento da força de trabalho
componente do sistema produtivo então estruturado”. (DELGADO, 2014, p.90)
Nesse contexto, a aglomeração dos operários nos arredores dos centros
urbanos estimulou a construção de uma identidade profissional por parte das grandes
massas obreiras, que partilhavam das mesmas opressões, angústias e anseios.
Segundo Hobsbawn,
os trabalhadores foram empurrados para uma consciência comum não apenas pela polarização social mas, nas cidades pelo menos, por um estilo comum de vida – no qual a taverna (“a igreja do trabalhador”, com um burguês liberal chamou-a) tinha um papel central – e por um estilo comum de pensamento. (HOBSBAWN, 1982, p. 235)
Assim, no âmbito da sociedade civil, a ação coletiva foi descoberta, tornando-
se o grande instrumento de mobilização e pressão pela classe trabalhadora, tanto no
âmbito profissional quanto em âmbito político. (DELGADO, 2014, p.90)
Desde então, movimentos coletivos de trabalhadores passaram a pressionar
a classe empresária industrial, impondo a necessidade de regulamentação jurídica
das relações trabalhistas, já que a regulação do mercado produtivo segundo os
preceitos liberais vigentes havia culminado num cenário de jornadas infindas,
acidentes de trabalho, mortes, salários de fome e vidas miseráveis.
Assim, no plano privado das relações trabalhistas, normas instituindo direitos
e obrigações para os trabalhadores foram, aos poucos, emergindo como fruto da
pressão das categorias mais bem organizadas do movimento operário-sindical. Dos
conflitos, foram surgindo conciliações sob a forma de regulamentos empresariais e
67
estatutos sindicais, que tornavam cada vez mais robusto o complexo normativo
autônomo. (DELGADO, 2014, p.90-91)
Conforme advertido por Delgado, “essa produção normativa autônoma,
embora provocada, fundamentalmente, por um processo de organização e
mobilização obreiras, evidenciava também a elaboração (consciente ou não) de uma
estratégia empresarial alternativa”, que assimilava, em prol da sua própria
sobrevivência, novos instrumentos de gestão produtiva. (DELGADO, 2014, p.91)
No plano político, os efeitos desses movimentos operários também não
tardaram a surgir. Ainda em fins do século XIX e, principalmente, no início do século
XX, ações estatais reconhecendo as pressões obreiras passaram a ocorrer. A primeira
delas, que ocorreu na Alemanha em fins do século XIX, foi a política social de
Bismarck, que, segundo Mario de La Cueva, citado por Delgado, representou uma
política estatal alternativa de intervenção, que objetivou, simultaneamente, conter as
revoltas operárias, conter o movimento socialista e melhorar as condições de vida da
classe trabalhadora. (DELGADO, 2014, p.91)
Desde então, como pontuado por Magda Biavaschi, o equilíbrio de poder do
século XIX foi sendo rompido e a crise do liberalismo clássico foi se evidenciando à
medida que o Estado, cedendo às pressões, passava a intervir nas relações sociais,
reconhecendo direitos:
Por um lado, a ideia de mercado autorregulado começava a ser posta em xeque pelo próprio capital. Por outro, os trabalhadores e suas organizações pressionavam por uma regulação estatal que reduzisse as injustiças e as abissais desigualdades acirradas pelo modo de produção capitalista. Diante de uma realidade perversa, a pressão dos trabalhadores e de suas organizações, os intelectuais, a igreja, os partidos políticos, passavam a demandar uma regulação apta a limitar a ação predatória do movimento do capital. (BIAVASCHI, 2016, p.21)
No mesmo sentido, considerou Viana que foram os próprios trabalhadores
que, por meio da ação coletiva, produziram o Direito que lhes servia. “Mas eles não
estavam sós. Muitos outros os ajudaram. Entre eles estavam filósofos, políticos,
sociólogos, juristas, escritores, artistas, cientistas, economistas e até mesmo alguns
empresários”. (VIANA, 2013, p.26)
Contudo, foi apenas no contexto pós 1ª Primeira Guerra Mundial que a
proteção estatal ao trabalhador veio a se manifestar com veemência. As Constituições
mexicana e alemã, respectivamente de 1917 e 1919, em resposta às marcas deixadas
68
pela guerra, não apenas deram ensejo à institucionalização de direitos trabalhistas,
como conferiram a tais direitos o importante status constitucional.
Também no ano de 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi
criada por meio do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial.
Fundada “sobre a convicção primordial de que a paz universal e permanente somente
pode estar baseada na justiça social”11, a OIT, na primeira Conferência Internacional
do Trabalho, realizada em 1919, adotou as seguintes importantes convenções:
A primeira delas respondia a uma das principais reivindicações do movimento sindical e operário do final do século XIX e começo do século XX: a limitação da jornada de trabalho a 8 horas diárias e 48 horas semanais. As outras convenções adotadas nessa ocasião referem-se à proteção à maternidade, à luta contra o desemprego, à definição da idade mínima de 14 anos para o trabalho na indústria e à proibição do trabalho noturno de mulheres e menores de 18 anos.12
Assim, como considera Delgado (2014, p.98), foi nesse instante histórico que
o Direito do Trabalho, reconhecido nos países de economia central, tornou-se “um
ramo jurídico absolutamente assimilado à estrutura e dinâmica institucionalizadas da
sociedade civil e do Estado”.
Contudo, a política de cunho liberal, ainda predominante, tornava essa
produção normativa estatal tímida ou contida na grande maioria dos países. Foi diante
da crise de 1929, deflagrada nos Estados Unidos e espraiada pelo mundo, que a
falibilidade da política liberal restou evidenciada. Em virtude da drástica queda da
produção e dos preços das ações nas bolsas de valores de Nova Iorque, inúmeras
empresas “quebraram-se” e um cenário de profunda recessão econômica instaurou-
se.
O novo cenário instaurado, de desemprego generalizado, favoreceu inclusive
o desenvolvimento da sociologia do desemprego, sobretudo, por meio dos estudos de
campo pioneiros realizados pela psicóloga austríaca Marie Jahoda, na década de
1930. Deslocando-se para um pequeno povoado austríaco denominado Marienthal,
atingido drasticamente pela crise de 1929 com o fechamento da principal indústria
instalada no local, Jahoda constatou que “mais de 75% da população passou a
11 Trecho retirado da página virtual “OIT Brasília”. História da OIT. Disponível em: http://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/hist%C3%B3ria/lang--pt/index.htm Acesso em: 22 out. 2017. 12 Trecho retirado da página virtual “OIT Brasília”. História da OIT. Disponível em: http://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/hist%C3%B3ria/lang--pt/index.htm Acesso em: 22 out. 2017.
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depender de uma prestação de seguro-desemprego que, num contexto de Estado
Liberal, era incapaz de satisfazer as necessidades mais básicas daquela massa de
desempregados”. (SANCHIS apud RIBEIRO; COUTINHO, 2017, p.194)
Sensível a esse cenário, o economista britânico John Keynes, apontando um
caminho alternativo ao liberalismo clássico vigente, preconizou a adoção de uma
política intervencionista apta a promover um novo modelo de Estado: o Welfare State
ou Estado do Bem-Estar Social. A ideia da política keynesiana, grosso modo, era
conferir garantias sociais aos trabalhadores a fim de reativar o consumo e,
consequentemente a economia. E, como pontuado Viana (2013, p.45), “um dos
modos de intervir acabou sendo justamente o Direito do Trabalho, que se tornou
maior, mais sólido, mais presente”.
No plano político, Marilena Chauí ensina que esse novo modelo estatal
preconizado por Keynes representou a concretização da social-democracia: uma
vertente político-ideológica que, operando-se por meio das ideias econômicas e
políticas de Keynes, estabeleceu uma distinção entre economia liberal de mercado e
economia planejada sob a direção do Estado. Assim, a social-democracia teria
emergido para demarcar claramente as suas distinções do totalitarismo e do
comunismo soviético, dando origem ao que se denominou de “terceira via”. Nas
palavras da autora:
Diferenciando-se dos dois modelos totalitários, a social-democracia, fortemente sustentada por uma base sindical poderosa e ativa, propôs o que viria a ser chamado de Estado de Bem-Estar, no qual o planejamento da economia tinha o Estado como parceiro econômico (na qualidade de definidor de políticas econômicas e sociais) e de regulador das forças do mercado, de maneira a conduzi-las pacífica e progressivamente rumo ao socialismo. Assim, entre a direita reacionária e/ou conservadora liberal e a esquerda revolucionária e/ou totalitária, a social-democracia era a terceira via.13
No que se refere ao contexto especificamente brasileiro, o Estado do Bem-
Estar proclamado pelo Governo de Getúlio Vargas, em 1930, também veio atender
aos anseios que já se manifestavam com intensidade no plano da sociedade civil.
Com a abolição da escravidão em 1888, a mão-de-obra livre foi absorvida pelo
segmento agrícola cafeeiro dos centros urbanos mais importantes do país, São Paulo
e Rio de Janeiro. (DELGADO, 2014, p.107)
13 CHAUÍ, Marilena. Fantasia da Terceira Via. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1912199904.htm. Acesso em: 22 out. 2017.
70
Biavaschi, discorrendo sobre a questão da abolição da escravidão e seus
impactos sociais, inspirada pela obra “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa,
considerou que:
A abolição livrara o país de seus inconvenientes. Os negros, porém, foram abandonados à sua própria sorte. Suas dificuldades concretas de integração à sociedade acabaram atribuídas à inferioridade racial. Marcas dos tempos coloniais que acabaram inscritas na estrutura social, econômica e política deste Brasil de mil e tantas misérias. (BIAVASCHI, 2016, p.21)
Considerando a repercussão da abolição da escravidão sobre a estrutura
econômica brasileira, pode-se dizer que foi a partir de então que se tornou possível
falar em relação empregatícia no Brasil – haja vista que, na relação escravista de
prestação de serviço, não estava presente sequer a autonomia da vontade, elemento
contratual básico.
Por essa razão, Delgado (2014, p.106) considera que a Lei Áurea foi o grande
marco inicial de referência da história do Direito do Trabalho brasileiro, justamente por
viabilizar o surgimento do seu objeto de regulamentação: a relação empregatícia.
Contudo, nos alerta o autor para a seguinte questão:
Não se trata de sustentar que inexistisse no país, antes de 1888, qualquer experiência de relação de emprego, qualquer experiência de indústria ou qualquer traço de regras jurídicas que pudessem ter vínculo, ainda que tênue, com a matéria que, futuramente, seria objeto do Direito do Trabalho. Trata-se, apenas, de reconhecer que, nesse período anterior, marcado estruturalmente por uma economia do tipo rural e por relações de produção escravistas, não restava espaço significativo para o florescimento das condições viabilizadoras do ramo justrabalhista. (DELGADO, 2014, p.107)
O cenário econômico predominantemente rural perdurou no Brasil por quase
toda a primeira metade do século XX; foi apenas no período entre 1941 e 1947 que a
indústria começou, de fato, a suplantar a agricultura. (BIAVASCHI, 2016, p. 22) Logo,
em 1930, quando o estado do Bem-Estar Social floresceu no cenário político
brasileiro, o Brasil ainda era um país predominantemente agrário. Contudo, o
processo de industrialização já estava em curso e o movimento de êxodo rural e de
consequente aglomeração de operários nos arredores das indústrias já era realidade.
Assim, no mesmo sentido do que ocorria já há algum tempo no plano
internacional, tanto a classe empresária quanto o Estado já sentiam as pressões e os
71
ataques da classe operária que, à mercê de qualquer proteção social significativa, era
superexplorada diuturnamente.
Em 1930, quando também o Brasil sofria os efeitos da crise econômica de
1929, Getúlio Vargas assumiu o poder e adotou uma política voltada a implementar
no país um Estado de Bem-Estar Social, que para alcançar o propósito
desenvolvimentista e modernizador e, ao mesmo tempo, atender às pressões da
classe operária, investiu na produção de normas de proteção social, sobretudo,
trabalhistas.
Sobre essa intervenção estatal no sentido de assegurar direitos à classe
trabalhadora, Biavaschi pontua que “a regulação do trabalho brasileira pode ser lida
como uma intervenção extramercado, em um momento em que a humanidade se dava
conta de que a Ordem Liberal não dava conta da questão social e, muito menos, da
econômica.” Assim, a resposta não só no Brasil, mas no mundo em geral, foi
antiliberal, resultando na planificação pelo Estado, quer de forma democrática, quer
de forma autoritária. (BIAVASCHI, 2016, p.23)
Na “Era Vargas”, apesar da incisiva ingerência estatal sobre a atuação
sindical, as associações sindicais obtiveram reconhecimento político, ingressando –
ao menos teoricamente – no círculo de negociações do denominado “pacto fordista”,
que consistia numa recíproca troca de favores entre Estado, sindicato e empresa, nos
seguintes termos:
Simplificando, a parte do Estado era criar empregos e direitos, além de continuar dando suporte à indústria – com pontes, estradas, barragens e muito mais. A parte do sindicato era aceitar o sistema, lutando dentre dele por melhores condições de trabalho e de salário. A parte da empresa era aceitar o sindicato, negociando com ele, embora resistindo o quanto quisesse ou pudesse. (VIANA, 2013, p.45)
Contudo, pondera Viana que, na realidade brasileira, esse “pacto fordista”
representou um acordo apenas entre a empresa e o Estado. E “mesmo nesse acordo
pela metade, a voz forte era do Estado, tanto assim que ele praticamente enfiou a
Consolidação das Leis do Trabalho pela garganta da empresa”. (VIANA, 2013, p.47)
Foi então sob a égide do “Estado Novo”, implementado por Vargas em 1º de
maio de 1943, Dia do Trabalhador, que, em meio a muita festa e celebração pela
classe trabalhadora e independentemente do consentimento e agrado pela classe
72
empresária, veio à tona a mais importante fonte heterônoma do Direito do Trabalho
brasileiro: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Referindo-se à CLT como obra de uma coletividade, Viana escreveu essas
belas palavras:
E a história da CLT é uma história de lutas. Ao contrário do que se pode pensar, ela não caiu do céu, de repente, como a chuva de verão. Nem cresceu por acaso, sem eira nem beira, como capim em roça de milho. Foi pensada e discutida, atacada e defendida.[...]E não foi obra de um homem só. Nem de um país só. Em certo sentido, muitos trabalhadores – de toda parte – sofreram e morreram por ela. Mesmo sem saber disso. E até mesmo sem conhecer o Brasil. Como uma flor do cerrado, ela cresceu em chão duro, pobre, difícil. E também por isso, talvez, muitos ainda a desprezem. [...]Também como flor do cerrado, que bebe a água da terra, a CLT tem as suas fontes. E essas fontes, em boa parte, são os próprios trabalhadores. Sozinhos, eles nada podem. Unidos, podem tudo – ou quase tudo. (VIANA,
2013, p.20)
Assim, apesar de produzida pelo Estado, a Consolidação – como indica o
próprio termo – foi fruto da aglomeração e reconhecimento estatal das diversas e
esparsas normas trabalhistas já existentes no plano da relação privada entre
empregado, empregadores e sindicatos. Por essa razão é que, assim como verificado
no plano internacional, no plano nacional pode-se também considerar que o Direito do
Trabalho surgiu “de baixo para cima”, como fruto de uma dura conquista da classe
menos apoderada – e “não de cima para baixo”, como um ato caridoso de concessão
dos que têm mais aos que têm menos poder.
Por todas as razões aqui expostas, considera-se também que o Direito do
Trabalho, apesar de, indiscutivelmente, ter refletido uma opção ideológica, e apesar
de ser ele próprio uma ideologia, não foi reconhecido pelo Estado como um “luxo”
ideológico, isto é, apenas para ostentar a derrota política do liberalismo. O
reconhecimento e incorporação das normas trabalhistas pelo Estado refletiram uma
necessidade imposta por uma realidade na qual a regulação privada das relações
trabalhistas significava fome, miséria, doenças, amputações, deformações e mortes.
Assim, enquanto reflexo da realidade, o Direito do Trabalho não representou
uma aventura ou ostentação jurídica, tampouco ideológica. No interior do sistema
capitalista industrial vigente, a sua instituição mostrou-se inevitável, necessária para
a sobrevivência não só da classe trabalhadora, mas do próprio capital – que já havia
sentido os efeitos colaterais da miséria imposta por ele próprio ao proletariado.
73
5.3 O espírito do Direito do Trabalho
Ao final do tópico prévio (item 5.2), o advento do Direito do Trabalho foi
pensado como produto de uma opção político-ideológica e o Direito do Trabalho foi
considerado uma ideologia em seus próprios termos.
Fato é que a palavra ideologia comporta significados distintos; e não poderia
ser diferente, haja vista que o significado parece não corresponder a algo pré-
concebido, restrito à literalidade das palavras. Assim, o próprio significado da palavra
ideologia varia a depender das experiências, ideias e crenças – ou seja, das
impressões ideológicas –, daquele que lhe atribui significado.
Chauí considera que, ao contrário do que parece, “o real não é constituído por
coisas”, mas sim por ideias, das quais as coisas seriam meros receptáculos ou
encarnações provisórias”. Segundo a autora, a realidade seria, pois, fruto da
“ideologia em estado puro”14, que corresponderia às nossas ideias e representações
acerca das coisas. (CHAUÍ, 2008, p.22)
A fim de ilustrar tal concepção, a filósofa utiliza o seguinte exemplo,
interessante e esclarecedor: uma montanha, para A, representa uma coisa; para B,
adepto de religião politeísta, a montanha não é uma coisa, mas a morada dos deuses;
já para C, empresa mineradora que explora uma jazida descoberta em determinada
montanha, ela é uma propriedade privada capitalista; para D, trabalhador desta
empresa mineradora, a montanha é um local de trabalho. (CHAUÍ, 2008, p.20-21)
Na 1ª Jornada Internacional de Estudos e Pesquisas em Antonio Gramsci,
realizada em 2016, pesquisadores da Universidade Federal do Ceará consideraram
que o que mais se aproxima das proposições de Gramsci “é o uso de ideologia como
‘concepção do mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade
econômica, em todas as manifestações da vida individual e coletiva’ ” (GRAMSCI,
apud COSTA; CLEMENTE, 2016, p.2).
14 Reforça-se que o trecho acima refere-se à exposição de Chauí acerca da definição de ideologia em estado puro. Tal conceito não coincide com a concepção de ideologia adotada por Karl Marx e nem mesmo com a concepção que a autora busca atribuir à palavra ideologia, no âmbito de uma sociedade dividida em classes de explorados e exploradores. Segundo Chauí, muito além de um conjunto sistemático de ideias, a ideologia corresponde a um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, como forma de assegurar a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política. (CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 2008).
74
Chiapello e Boltanski (2009, p.33) definem a ideologia como um “conjunto de
crenças compartilhadas, inscritas em instituições, implicadas em ações e, portanto,
ancoradas na realidade”.
Cléber Lúcio de Almeida e Wânia de Almeida, respaldando-se no conceito de
ideologia adotado por Chiapello e Boltanski , para fins de analisar a formação do
Direito do Trabalho enquanto processo ideológico, escreveram as seguintes palavras:
[...] a formação do Direito do Trabalho envolve o debate entre concepções políticas-econômicas-sociais que propõem formas concretas de organização no mundo do trabalho e de disciplina das relações individuais e coletivas de trabalho. O Direito do Trabalho constitui, nesta linha de raciocínio, a forma de manifestação, no campo jurídico, de determinada concepção política-econômica-social, o que implica que, a par de ser fruto de determinada opção ideológica, é, ele próprio, uma ideologia, na medida em que estabelece conceitos legais e formas de solução de conflitos que irão refletir na ordem política, econômica e social. (ALMEIDA, C.; ALMEIDA, W., 2017, p.130)
Por meio de uma junção das definições acima apresentadas, ao se referir ao
advento do Direito do Trabalho como fruto de uma opção ideológica – cuja adoção
mostrou-se necessária diante do contexto apresentado no item anterior (5.2) –,
pretende-se demonstrar que o ramo justrabalhista veio à lume enquanto um conjunto
de ideias e crenças compartilhadas, voltado a alterar a mesma realidade que
fundamentou a necessidade da sua existência. E, partindo desta linha de raciocínio,
a pergunta é: alterar a realidade de que modo? Aceitando-a? Potencializando-a?
Contestando-a? Ou apenas limitando-a?
Dorothee Susanee Rüdiger, ao discorrer sobre o surgimento do Direito do
Trabalho, caracteriza-o como um “filho da modernidade” que “veio dar forma à relação
de emprego moderna que se desenvolvia junto ao mercado”. Mas realça a autora
que, ao formalizar a relação entre capital e trabalho assalariado na relação de
emprego, o Direito do Trabalho foi além: afirmou-se como um importante “elemento
estabilizador da sociedade capitalista”. Veja-se o raciocínio construído por Rüdiger:
Mais do que isso, o direito do trabalho constitui um elemento estabilizador da sociedade capitalista, porque se, de um lado, o mercado implica a constante destruição do antigo, do tradicional e do permanente, de outro lado, também produz o novo, o estável, tanto no plano material quanto no plano das ideias. O caos do laissez-faire, da corrida pelo lucro, da competição deve apresentar a aparência de ordem. Assim, na modernidade, numa unidade paradoxal, a sociedade encontra formas de organização que recorrem a discursos e metadiscursos para sua legitimação. O direito do trabalho deve ser visto no contexto dos elementos estabilizadores e norteadores do pensamento que é
75
tido como universal, isto é, aceito por todos, inclusive pelos críticos da sociedade capitalista. (RÜDIGER, 2004, p.10)
Neste sentido, Rüdiger também compreende o Direito do Trabalho como um
instrumento de justiça social, que “fecha um hiato” entre o direito liberal e a realidade
fático-jurídica de desigualdade no âmbito das relações de trabalho que regula:
O fundamento teórico, político e jurídico do direito do trabalho continua seguindo o espírito da modernidade. Trata-se de garantir a justiça social, verdadeira razão de ser do direito do trabalho, uma vez que restabelece, pelo trato desigual das partes, a igualdade perdida na relação de trabalho. Trata-se de realizar, através do direito do trabalho, a solidariedade social, a fraternité relegada pelo direito liberal e conquistada pelos trabalhadores. (RÜDIGER, 2004, p.39)
Explica ainda a autora: A justiça social é garantida tanto pelo direito do trabalho estatal quanto pelo direito do trabalho coletivamente negociado. Ao mesmo tempo que se cria um direito estatal do trabalho, os sindicatos e as normas coletivamente negociadas são reconhecidos. Com isso, o direito do trabalho fecha um hiato entre o direito liberal, que, entendendo as relações jurídicas como entre indivíduos, enquanto a economia capitalista concentra o poder e a riqueza na mão de grandes conglomerados, tinha criado um verdadeiro “mundo paralelo jurídico” distante daquele percebido no dia-a-dia da vida em sociedade. (RÜDIGER, 2004, p.10)
Perceba-se que Rüdiger, ao reconhecer o Direito do Trabalho como um
elemento estabilizador da sociedade capitalista, voltado a agir sobre o caos instaurado
pelo liberalismo para promover a justiça social, considera ser o ramo justrabalhista um
fator de “ordem”, ainda que aparente, no interior do sistema vigente.
Isso significa que, ao tornar imperativa a concessão de um patamar de direitos
para os trabalhadores empregados, o Direito do Trabalho não pretendeu extirpar ou
reverter a lógica de exploração entre capital e trabalho; na realidade, o ramo
justrabalhista parece ter pretendido imprimir ordem, frear essa exploração,
contribuindo, assim, para salvaguardar a relação de exploração capitalista de uma
iminente implosão.
Nesta linha, pondera Viana que o “Direito do Trabalho, em sua origem, já
nasceu contraditório, servindo tanto a oprimidos quanto a opressores, pois, a um só
tempo, viabiliza, civiliza e institucionaliza as relações de trabalho” que constituem o
76
substrato da lógica capitalista de produção. (VIANA, apud RIBEIRO; ABREU, 2016, p.
106).
E foi justamente para cumprir esse propósito de humanizar e civilizar a relação
de exploração capital-trabalho, tornando-a minimamente viável do ponto de vista da
justiça social, que o Direito do Trabalho precisou edificar-se sobre uma base jurídica
de proteção. Proteção a quem? À parte mais fraca – em termos políticos, econômicos
e sociais – dessa relação.
Foi reconhecendo tal necessidade que os juristas trabalhistas – inclusive o
uruguaio Américo Plá Rodriguez, grande referência da doutrina justrabalhista em
plano internacional – convergiram para a ideia de que o núcleo basilar do Direito do
Trabalho não poderia ser outro senão o princípio da proteção à parte mais frágil da
relação empregatícia; afinal, conforme ensina Delgado, só assim, instituindo uma
proteção no plano jurídico, o Direito do Trabalho tornar-se-ia capacitado para retificar
(ou atenuar) “o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho.
(DELGADO, 2014, p. 196),
Discorrendo sobre o princípio nuclear da proteção, Delgado realça a sua
função retificadora por meio das seguintes palavras:
O princípio tutelar influi em todos os segmentos do Direito do Trabalho, influindo na própria perspectiva desse ramo ao construir-se, desenvolver-se e atuar como direito. Efetivamente, há ampla predominância nesse ramo jurídico especializado de regaras essencialmente protetivas, tutelares da vontade e interesses obreiros; seus princípios são fundamentalmente favoráveis ao trabalhador; suas presunções são elaboras em vista do alcance da mesma vantagem jurídica retificadora da diferenciação social prática. (DELGADO, 2014, p.196)
Nota-se, pois, que ao tornar o princípio da proteção ao trabalhador o eixo
central do Direito do Trabalho, o caráter protetivo-retificador desse ramo especializado
tornou-se evidente. Isso permite dizer que a proteção jurídica ao trabalhador é sim um
fim do Direito do Trabalho; mas é, sobretudo, o meio do qual o Direito do Trabalho se
vale para cumprir o seu objetivo de corrigir as distorções do mercado de trabalho –
instituído pelo capitalismo para tornar a comercialização da força de trabalho regulável
pela lei da oferta e da procura.
A esse respeito, Offe esclarece que, nas sociedades capitalistas, o mercado
de trabalho consiste na principal solução institucional para um duplo problema de
alocação: “de um lado, o sistema de produção deve ser alimentado com os inputs do
77
trabalho por ele requeridos; por outro lado, a força de trabalho deve ser abastecida
com meios de subsistência monetários (renda) e sociais (status)”. Assim, conforme
explica o autor, o mercado de trabalho – imbuído da mesma lógica de troca de
qualquer outro mercado – “organiza a produção e a distribuição como uma relação de
troca entre salários e inputs de trabalho”, sendo que, “neste caso, como em todos os
outros mercados, vendedores e compradores de trabalho encontram-se em oposição”.
(OFFE, 1989, p.24)
E no bojo dessa relação entre compradores e vendedores da força de
trabalho, formalizada por meio de um contrato, não há dúvidas de que, num contexto
de livre concorrência, a posição desvantajosa acaba sendo sempre ocupada pela
parte vendedora. É o que Offe considera:
A posição particularmente desvantajosa em termos de mercado e estratégia da “mercadoria” força de trabalho resulta do fato de “o empregado acabar sempre em uma posição desfavorável quando firma um contra de trabalho
em situação de livre concorrência. (OFFE, 1989, p.27)
Ainda segundo Offe (1989, p. 27-29), alguns dos fatores determinantes dessa
explícita desvantagem da força de trabalho no interior do mercado de trabalho seriam
os seguintes:
a) embora a força de trabalho seja tratada como “mercadoria”, a sua entrada no mercado não é regulada pelo critério objetivo de expectativa de venda, do mesmo modo que se opera com as mercadorias de fato; “a elevação da ‘oferta’ da força de trabalho é determinada por processos demográficos não-estratégicos e pelas regras institucionais da atividade reprodutiva humana”, bem como pelos “processos socioeconômicos que ‘liberam’ a força de trabalho das condições em que ela poderia se manter de uma forma diferente, impedindo-a de recorrer a meios e modos de subsistência fora do mercado de trabalho; b) outra desvantagem reside no fato da força de trabalho, por estar sujeita a uma necessária vinculação entre a sua venda e a aquisição de meios de subsistência (não possuindo outros meios, via de regra, para se manter viva), não se encontra em condições de esperar por oportunidades mais favoráveis. “Como resultado, ela é compelida a abrir mão de suas opções estratégicas próprias para submeter-se a todas as condições impostas pela demanda no momento e aceitar o salário corrente oferecido”; c) um terceiro fator de desvantagem corresponde ao fato de que, diante das suas opções estratégicas limitadas e da sua necessidade de adquirir meios de subsistência, a força de trabalho permanece constantemente “dentro de ‘uma estrutura de um padrão mínimo de vida’, definido material e culturalmente. (OFFE, 1989, p.27-29)
78
Assim, conforme concluído por Offe, diante de todo esse complexo de
desvantagens, resta claro que o estado de necessidade enfrentado pela força de
trabalho é muito mais rígido que a necessidade dos empregadores de alocar mão-de-
obra para produzir bens e serviços. E a explicação para essa assimetria entre os níveis
de necessidade enfrentados pelos dois lados do mercado de trabalho, sob o prisma
econômico, parece estar bem fundamentada: “através de mudanças tecnológicas, a
produção pode muito bem ser mantida, mesmo com uma queda no uso de trabalho
por unidade de produto, enquanto a reprodução da força de trabalho não pode ser
mantida com uma queda na renda familiar”. (OFFE, 1989, p.29)
Perceba-se, pois, que a assimetria entre os dois lados do mercado de
trabalho, que serão também os dois lados da relação de emprego, já nasce na fase
prévia à formalização do contrato de trabalho, já que o trabalhador, via de regra,
ingressa na relação de emprego em franco estado de necessidade, motivo pelo qual
seu poder de negociação tende a ser mínimo ou inexistente.
Nesse sentido, situando a relação de emprego na zona da necessidade e
concebendo, portanto, o contrato de trabalho como um contrato que escapa à
conformação típica de um contrato de comum acordo – que se encontra, talvez,
aquém da própria categoria dos contratos de adesão –, Viana e Teodoro (2017, p.
336) consideram que isso implica a sujeição do trabalhador “a uma intensa
precarização de condições laborais e de direitos, em prejuízo à dignidade do seu
trabalho e à sua própria dignidade enquanto ser humano”.
Assim, tal sujeição, determinante da assimetria entre as partes da relação
empregatícia, não só prevalece como se acentua no curso do contrato de trabalho.
Isso porque os empregadores, no papel de “compradores” da força de trabalho,
podem se tornar mais independentes da oferta de mão-de-obra do que podem os
trabalhadores se tornar em relação à demanda por força de trabalho. Além disso, “os
primeiros, podem aumentar a eficiência da produção, enquanto os trabalhadores não
são capazes de aumentar a eficiência da sua reprodução”. Por fim, “estes últimos, têm
apenas a opção de reduzir seu padrão de vida no momento em que se esgotam as
possibilidades de ‘economizarem’ com base em sua remuneração”. (OFFE, 1989,
p.29-30)
Nessa perspectiva, entendendo que o Direito do Trabalho, por meio da
proteção jurídica que busca conferir ao trabalhador, configura-se como importante
79
medida de correção de todas essas distorções geradas pelo mercado e perpetuadas
pela relação de emprego, Rüdiger assim dispõe:
Nessa ótica, o direito do trabalho deve ser compreendido como uma das “medidas corretivas do mercado”. Essa correção se dá em dois níveis. De um lado, pela redução do desequilíbrio entre as partes e pelo restabelecimento da autonomia da vontade e da igualdade entre as partes. Para tanto, o direito do trabalho, como vimos, está baseado no princípio protetor que vincula, principalmente, os agentes do Estado chamados a reduzir a desigualdade substancial entre as partes. De outro lado, o direito do trabalho propicia aos grupos representativos dos interesses dos trabalhadores um verdadeiro contrapoder. (RÜDIGER, 2004, p.10)
Veja-se, pois, que, apesar de ter se mostrado útil para a manutenção das
relações capitalistas de poder, conforme discutido previamente, o Direito do Trabalho,
na visão de Rüdiger, compreendido como medida corretiva perante o mercado, parece
corresponder mais a um contrapoder do que a um aliado do poder.
Esse raciocínio nos parece, de fato, acertado. Considera-se, contudo, que
utilizar o termo contrapoder para definir a essência do Direito do Trabalho pode
favorecer à interpretação de que esse ramo jurídico especializado contesta e
confronta a sistemática de poder vigente, o que parece não se afirmar do ponto de
vista histórico da sua formação.
Por essa razão, talvez, considerar o Direito do Trabalho como um contrapeso
à exploração decorrente das relações capitalistas de poder seja mais adequado, tanto
do ponto de vista histórico, quanto do ponto de vista prático. Afinal, toda a exposição
que se realizou até aqui parece convergir para a ideia de que o Direito do Trabalho foi
construído para operar no interior do sistema capitalista vigente como um ramo
jurídico protetivo-corretivo, e não propriamente para contestar ou combater o sistema
vigente.
Assim, partindo de todas premissas ora apresentadas, entende-se,
primeiramente, que, o Direito do Trabalho, enquanto produto do Estado de Bem-Estar
Social, refletiu a opção ideológica pela social-democracia. E conforme já analisado, a
social-democracia foi criada não para contestar o sistema capitalista, mas para
estabelecer um meio-termo ou uma “terceira-via”; afinal, o que, de fato, coube aos
Estados de Bem-Estar Social foi promover a institucionalização de meios de proteção
social não para afrontar o capitalismo, mas para conservá-lo, corrigindo algumas das
80
imperfeições que haviam sido criadas ou acentuadas pela ideologia liberal até então
prevalente.
Deste modo, considera-se que a ideologia que condicionou o surgimento do
Direito do Trabalho e que é, portanto, por ele refletida, tem caráter reformista: não
contesta a relação capital-trabalho, mas institui limites a fim de tornar essa relação
menos agressiva do ponto de vista humano, menos injusta do ponto de vista
econômico e menos desigual do ponto de vista social.
Essa parece ser, portanto, a grande missão do Direito do Trabalho: reformar
a realidade de exploração desenfreada do trabalho pelo capital.
Seguindo tal raciocínio, entende-se, pois, que o espírito do Direito do Trabalho
constitui-se da soma entre os fundamentos da sua existência, a sua missão e os seus
meios de atuação, que, respectivamente, consistem em: a) desigualdade no âmbito
da relação entre capital e trabalho (fundamento de existência); b) retificação ou
compensação das distorções de mercado (missão ou propósito); c) proteção jurídica
à parte explorada no plano fático (meio ou norte de atuação).
Assim, na cena jurídico-trabalhista brasileira, a CLT, ao conferir um patamar
mínimo de direitos e prerrogativas aos trabalhadores empregados, bem como as
demais fontes formais de direito do trabalho, autônomas e heterônomas, não pretende
sobrelevar a força de trabalho, a ponto de torná-la juridicamente superior ao capital.
Este não é o propósito do Direito do Trabalho – e, ainda que fosse, diante das reais
dificuldades encontradas na sua tentativa de igualar juridicamente as partes da
relação empregatícia, não se acredita que poderia alcançá-lo.
O que, de fato, acredita-se caber ao Direito do Trabalho é contrabalancear,
limitar a livre regulação das condições básicas para o trabalho, como a jornada, o
salário e o ambiente laboral, resguardando o trabalhador ou, na maioria das vezes,
apenas compensando-o pelos reflexos práticos da posição desvantajosa que ocupa
no interior do mercado e, sobretudo, da relação empregatícia.
Desta forma, conforme será discutido ao final, entende-se que negar esse
papel de freio e contrapeso que o Direito do Trabalho precisa exercer, a fim de cumprir
a sua função protetivo-retificadora das distorções práticas do mercado e das relações
de trabalho por ele intermediadas, é negar o seu espírito – isto é, sua essência – e,
portanto, comprometer a sua própria existência. Afinal, conforme a sétima proposição
formulada pelo filósofo Baruch de Spinoza (2009, p. 9) em sua obra “Ética”, “à
natureza de uma substância pertence o existir”.
81
6. A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL SOB O PARADIGMA DA
ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
A vida que vivo É também a que não vivo A fôrma que me enforma
É a mesma que me deforma E do trabalho que faço
Escorre tudo aquilo que não faço
(RIBEIRO, 2017)
6.1 O capital em crise
No decorrer de parte significativa do século XX, o sistema de produção
capitalista ancorou-se no modelo fordista-taylorista, que não só prometeu, mas, de
fato, atendeu muito bem aos interesses do capital em sua fase “pesada”. O capitalismo
pesado, para se manter em consonância com os valores propagados pela
modernidade sólida, contou com o precioso suporte do modelo produtivo fordista-
taylorista, que implantou, no plano micro das relações produtivas, mecanismos
compatíveis com os valores reinantes em plano macro.
Conforme visto, o capitalismo pesado era obcecado por volume, tamanho,
rigidez e estabilidade – qualidades que, na prática, convergiam para os ideais de
acumulação e segurança, preconizados pela modernidade em seu estágio “sólido”.
No plano das relações produtivas, baseadas na especialização das tarefas, na
repetição e cronometragem dos movimentos, na rígida hierarquia, na massificação do
operariado e na baixa rotatividade da mão-de-obra, tais valores também eram
prestigiados.
Como ensina Bauman, “o capitalismo pesado, no estilo fordista, era o mundo
dos que ditavam as leis, dos projetistas de rotinas e dos supervisores; o mundo de
homens e mulheres dirigidos por outros, buscando fins determinados por outros”. Era
também o mundo em que os trabalhadores estavam tão fixados ao solo quanto o
capital que os empregava. Assim, pode-se dizer que o fordismo representava “a
autoconsciência da sociedade moderna em sua fase ‘pesada’, ‘volumosa’, ‘imóvel’ e
‘enraizada’, ‘sólida’ ”. (BAUMAN, 2001, p. 75 e 83)
Em âmbito político e econômico, viu-se que, desde a eclosão da crise
econômica de 1929, esse sistema produtivo de acumulação, sob a égide do
liberalismo, já havia dado sinais da sua falibilidade. A política keynesiana,
82
consubstanciada no Estado de Bem-Estar Social e refletindo a ideologia política
social-democrata, emergiu justamente para tentar “socorrer” o capitalismo diante dos
efeitos destrutivos da profunda recessão econômica que se vivenciava.
Por algum tempo, as políticas sociais implementadas pelo Welfare State
conseguiram, de fato, tapar alguns dos “buracos” deixados pelo liberalismo. Um deles,
foi a ausência de regulamentação das relações trabalhistas, que veio a ser suprida
pelo Direito do Trabalho. Assim, o Estado de Bem-estar Social, enquanto integrante
do pacto ou “compromisso fordista”15, contribuiu para a mediação entre capital e
trabalho, sobretudo no contexto pós-guerra, causando uma ilusória sensação de
estabilidade perante a sociedade.
O sociólogo Ricardo Antunes, utilizando-se do termo “fetichismo de Estado”
para se referir à exaltação do ente estatal como garantidor social, principalmente pelo
proletariado, tece as seguintes considerações:
Dentro da moldura do fordismo, com efeito, esse Estado representa para o proletariado a garantia da ‘seguridade social’, com sua qualidade de gestor da relação salarial: é o Estado que fixa o estatuto mínimo dos assalariados [...]; é ele que impulsiona a conclusão e garante o respeito das convenções coletivas. [...] Tudo isso fez com que se desenvolvesse um ‘fetichismo de Estado’, bem como de seus ideais democráticos (inclusive no que eles têm de ilusório), aos quais o ‘Estado-providência’ deu conteúdo concreto (ao garantir de algum modo o direito ao trabalho, à moradia, à saúde, à educação e à formação profissional, ao lazer, etc). (ANTUNES, 2009, p.42)
Contudo, essa ilusória estabilidade não durou por muito tempo. Conforme
ponderado por Mészáros16, “Tudo o que aquelas tentativas conseguiram foi somente
a ‘hibridização’ do sistema do capital, comparado a sua forma econômica clássica
(com implicações extremamente problemáticas para o futuro), mas não soluções
estruturais viáveis”. Assim, na visão do autor, o declínio do reformismo social-
democrata, que veio a ocorrer, consistiu em “uma prova da irreformabilidade do
15 Conforme explica Ricardo Antunes, esse compromisso fordista, firmado entre capital e trabalho e mediado pelo Estado, “era resultado de vários elementos imediatamente posteriores à crise de 30 e da gestação da política keynesiana que sucedeu. Resultado, por um lado, da própria lógica do desenvolvimento anterior do capitalismo e, por outro, do equilíbrio relativo na relação de força entre burguesia e proletariado, que se instaurou ao fim de decênios de lutas. Mas esse compromisso era dotado de um sentido também ilusório[...]” (ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 40) 16 MÉSZAROS. A crise estrutural do capital. Revista Outubro. 4. ed. Artigo nº 02, p. 3. Disponível em: revistahttp://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro Edic%CC%A7a%CC%83o-4-Artigo-02.pdf Acesso em: 15 ago. 2017.
83
sistema capitalista”, resistente a qualquer modo de contestação que não atinja o seu
“antagonismo estrutural destrutivo”. Nas palavras de Mészaros:
Na verdade, é inconcebível introduzir as mudanças fundamentais requeridas para remediar a situação sem superar o antagonismo estrutural destrutivo, tanto no “microcosmo” reprodutivo, como no “macrocosmo” do sistema do capital enquanto um modo global de controle do metabolismo social. 17
Durante os anos 1960, com mais força nos países de economia avançada,
iniciou-se uma fase de intensa turbulência social, que, marcada por movimentos
operários contestadores da ordem produtiva imposta, passou a anunciar os limites
históricos do compromisso fordista. Essas ações, segundo Antunes, “ganharam a
forma de uma verdadeira revolta do operário-massa contra os métodos tayloristas e
fordistas de produção, epicentro das principais contradições do processo de
massificação”. (ANTUNES, 2009, p. 43)
Dentre os movimentos de oposição da classe operária às opressões e
desigualdades geradas pelo sistema produtivo no qual estava inserida, a revolta de
maio de 1968, na França, foi uma das mais expressivas.
Segundo Alan Woods18, o “Maio de 1968”, que veio a eclodir no auge
econômico do contexto pós Segunda Guerra Mundial, foi a maior greve geral da
história. Explica o autor que “Abaixo da superfície de aparente calma existia um
enorme acúmulo de descontentamento, rancor e frustração”. Em decorrência dessa
insatisfação, iniciou-se uma onda de contestação, primeiramente, por parte de
estudantes franceses, conscientes da desigualdade socioeconômica crescente e da
repressão criativa vivenciada em âmbito profissional – o que reduzia as suas
expectativas de acesso a empregos autônomos e criativos.
Esses movimentos estudantis vieram de encontro às manifestações dos
operários, que, no interior das fábricas, também contestavam a desigualdade, a
opressão e a repressão criativa das quais eram vítimas. Assim, em 13 de maio de
1968, milhares de estudantes e trabalhadores lançaram-se às ruas de Paris,
17 MÉSZAROS. A crise estrutural do capital. Revista Outubro. 4. ed. Artigo nº 02. Disponível em: revistahttp://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edic%CC%A7a%CC%83o-4-Artigo-02.pdf. Acesso em: 15 ago. 2017. 18 WOODS, Alan. A Revolução Francesa de Maio de 1968. 2008. Disponível em: https://www.marxist.com/revolucao-francesa-maio-1968.htm Acesso em: 25 out. 2017.
84
promovendo uma greve geral de dimensão e intensidade jamais vistas. O trecho a
seguir descreve o cenário de turbulência instaurado:
[...]os trabalhadores e estudantes desafiavam o gás lacrimogêneo e as baterias de policiais. Em uma só noite houve 795 presos e 456 feridos. Os manifestantes tentaram incendiar a Bolsa de Paris, considerada um símbolo odiado do capitalismo. Um comissário de polícia foi morto em Lyon por um caminhão. Uma vez na luta, os trabalhadores começaram a ter iniciativas que iam mais além dos limites de uma greve normal. Um elemento fundamental na equação foram os meios de comunicação de massas. Formalmente, são armas poderosas nas mãos do Estado, mas também dependem dos trabalhadores, que fazem funcionar as emissoras de rádio e televisão.19
Conforme consideram Chiapello e Boltanski (2009, p.199), embora não tenha
se tratado propriamente de uma revolução, no sentido de dar ensejo a uma tomada
do poder político, a greve geral instaurou uma crise profunda, que colocou em perigo
o funcionamento do sistema capitalista, pelo menos na visão de organizações
internacionais encarregadas de garantir a defesa do sistema vigente, como a
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Analisando as causas da insatisfação operária, responsável por ensejar essa
onda de manifestações, Boltanksi e Chiapello (2009, p.199) apresentam uma
interessante classificação das críticas que foram disparadas contra o sistema
capitalista, subdividindo-as em “críticas sociais” e “críticas estéticas”.
Segundo os autores, no plano social, as críticas consistiram na exclusão
prolongada dos operários dos benefícios do crescimento empresarial bem como na
“miséria da vida cotidiana”, que assolava a grande maioria da classe operária.
(BOLTANSKI; CHAPELLO, 2009, p.199)
No plano estético, as críticas orbitaram em torno da ausência de autonomia,
decorrente da estrutura de gestão altamente rígida e hierarquizada, e da alienação
dos operários, vítimas do império da “tecnicização e da tecnocratização”.
(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.200).
Nesse mesmo sentido, Antunes (2009, p.43), discorrendo acerca das
limitações do modelo fordista-taylorista, considera que elas foram evidenciadas,
sobretudo, pela ausência de autonomia no interior das fábricas e pelo processo de
massificação do operariado, cujas condições de trabalho e da própria existência
haviam sido homogeneizadas. Explica o autor que “o taylorismo/fordismo realizava
19 WOODS, Alan. A Revolução Francesa de Maio de 1968. 2008. Disponível em:
https://www.marxist.com/revolucao-francesa-maio-1968.htm. Acesso em: 25 out. 2017.
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uma expropriação intensificada do operário-massa, destituindo-o de qualquer
participação na organização do processo de trabalho, que se resumia a uma atividade
repetitiva e desprovida de sentido”.
Assim, no contexto empresarial dos anos 1970, ambas as espécies de
críticas, sociais e estéticas, expressaram-se na forma de exigência de uma maior
autonomia no trabalho e de garantias sociais contra a miséria e a desigualdade
socioeconômica. Neste sentido, a seguinte explicação de Boltanski e Chiapello:
O movimento crítico, pelo menos nos aspectos diretamente referentes ao trabalho, questiona dois tipos de partilha. O primeiro, diz respeito ao poder, em especial a partilha do poder legítimo de julgar. Quem tem o direito de julgar quem? Em nome de que critérios? Quem deve ordenar e quem deve obedecer? Isto incide sobre a maioria das provas que envolvem a faculdade de julgar e decidir no trabalho, especialmente de decidir por outrem. Manifesta-se no questionamento ao comando e à hierarquia, bem como pela expressão de uma exigência de autonomia na tradição da crítica estética. A segunda partilha diz respeito à distribuição dos riscos, mais precisamente das vicissitudes da carreira, direta ou indiretamente ligadas à evolução dos mercados. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 202)
Consideram, ainda, os autores que essas críticas sustentadas pelos
movimentos operários contestatórios, que se espraiaram pelo mundo, tinham vistas
“a aumentar as garantias dos assalariados, em primeiro lugar daqueles que, não
possuindo poupança nem patrimônio, eram muito vulneráveis aos efeitos sofridos pelo
sistema produtivo em decorrência de mudanças conjunturais ou de modos de
consumo”. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 202)
Realça-se que, a nível mundial, a dimensão desses conflitos que marcaram
os anos finais da década de 1960 e os anos 1970 pode ser explicitada, inclusive, por
meio de dados estatísticos: “pode-se encontrar um indicador grosseiro do nível de
crítica, pelo menos no que se refere ao trabalho, na estatística do número de jornadas
de greve, que é de 4 milhões em média durante os anos 1971-75. Comparativamente,
esse número ficará abaixo de meio milhão em 1992”. (BOLTANSKI; CHIAPELLO,
2009, p. 199)
No interior das relações de trabalho, ensinam Boltanski e Chiapello (2009, p.
205) que toda essa insatisfação se manifestou por meio de uma espécie de
“resistência passiva”, exprimida de diferentes formas, tais como: resistência à
cronometragem imposta, lentidão consciente no ritmo de trabalho e recusa a aplicar
as normas procedimentais prescritas. As consequências foram sentidas direta e
86
indiretamente pelas empresas, que apresentaram sérias dificuldades de garantir os
mesmos níveis de produtividade durante o período.
Nessa perspectiva, as considerações de Antunes:
O boicote e a resistência ao trabalho despótico, taylorizado e fordizado assumiam modos diferenciados. Desde as formas individualizadas do absenteísmo, da fuga do trabalho, do turnover, da busca da condição de trabalho não operário, até as formas coletivas de ação visando a conquista do poder sobre o processo de trabalho. (ANTUNES, 2009 p.44)
Em decorrência, sobretudo, dessa conflitualidade vivenciada no mundo do
trabalho, consolidou-se, então, uma “crise estrutural do capital”, que colocou em
discussão o nível de sociabilidade e os mecanismos de controle social do capital, bem
como a potencialidade do caminho social-democrata para atender aos anseios do
mundo do trabalho. (ANTUNES, 2009, p. 49)
Além dos fatores apresentados, não menos determinante para a instauração
desse cenário de crise foi o histórico excesso de produtividade que, num contexto de
globalização ou internacionalização da produção e consequente acirramento da
concorrência, culminou na queda da lucratividade empresarial. Em decorrência das
baixas taxas de acumulação de capital, os níveis de crescimento da produtividade
reduziram-se drasticamente e o resultado, no âmbito das relações de trabalho, foi o
“arrocho” salarial e o crescente desemprego, decorrente da redução dos
investimentos. (ANTUNES, 2009, p.33)
Robert Brenner, por meio de suas teses apresentadas em The Economics of
Global Turbulence, em 1999, considerou que a crise vivenciada a partir da segunda
metade dos anos 1960 “encontra ‘suas raízes profundas numa crise secular de
produtividade, que resultou do excesso constante de capacidade e de produção fabril,
que era em si, a expressão da acirrada competição internacional’”. (BRENNER apud
ANTUNES, 2009, p. 32-33)
Analisando as fontes dessa conjuntura de agitação social e estagnação
econômica, que colocou à prova a funcionalidade da organização produtiva do capital,
Antunes enumera, dentre outros, os seguintes fatores cruciais:
1)Queda da taxa de lucro, dada, entre outros elementos causais, pelo aumento da força do preço da força de trabalho, conquistado durante o período pós-45 e pela intensificação das lutas sociais dos anos 60, que objetivavam o controle social da produção. A conjugação desses elementos
87
levou a uma redução dos níveis de produtividade do capital, acentuando a tendência decrescente da taxa de lucro; 2)o esgotamento do padrão produtivo de acumulação taylorista/fordista de produção (que em verdade era a expressão mais fenomênica da crise estrutural do capital), dado pela incapacidade de responder à retração do consumo que se acentuava. Na verdade, tratava-se de uma retração em resposta ao desemprego estrutural que então se iniciava; 3)hipertrofia da esfera financeira, que ganhava relativa autonomia frente aos capitais produtivos, o que também era expressão da própria crise estrutural do capital e seu sistema de produção, colocando –se o capital financeiro como um campo prioritário para a especulação, na nova fase do processo de internacionalização; [...] 4)a crise do Welfare State ou do ‘Estado do bem-estar social’ e dos seus mecanismos de funcionamento, acarretando a crise fiscal do Estado capitalista e a necessidade de retração dos gastos públicos e sua transferência para o capital privado; 5)incremento acentuado das privatizações, tendência generalizada às desregulamentações e à flexibilização do processo produtivo, dos mercados e da força de trabalho, entre tantos outros elementos contingentes que exprimam esse novo quadro crítico. (ANTUNES, 2009, p.31-32)
Percebe-se, portanto, que a conjuntura pós 1960 não tratou de uma crise
econômica pontual; tratou-se de uma crise multifacetada e complexa, influenciada por
fatores endógenos à relação de produção – como a insatisfação do proletariado face
à repressão, alienação e desigual distribuição dos rendimentos das quais era vítima –
, e por fatores exógenos à lógica produtiva – como o fenômeno da internacionalização
da economia, que, acirrando a concorrência, contribuiu para a queda da lucratividade
e produtividade e, consequentemente, para o cenário de desemprego estrutural
instaurado.
Assim, diante das pressões sociais e profundas dificuldades econômicas
enfrentadas, o capital, a fim de reativar os seus patamares de expansão, precisou
buscar por maneiras de se restaurar.
Para tanto, respondendo às críticas de ordem estética que alimentaram a
insatisfação operária e os movimentos de contestação à sociabilidade do sistema
produtivo vigente, o capital iniciou, no plano micro das relações de produção, um
movimento de reestruturação voltado à flexibilização do seu ciclo produtivo, que foi
acompanhado, no plano macro, por um movimento de desregulamentação política,
econômica e jurídica.
6.2 A reanimação do capital: toyotismo, desregulamentação e flexibilização
O movimento no sentido de se flexibilizar a sistemática produtiva tornou-se
evidente a partir dos anos 1970, quando o capital buscou introduzir novos métodos de
88
gestão “por meio de um culto do subjetivismo e de um ideário fragmentador”, que,
conforme considerado por Antunes, promoveu uma “apologia ao individualismo
exacerbado contra as formas de solidariedade e de atuação coletiva e social”.
(ANTUNES, 2009, p.50)
A resposta do capital às críticas direcionadas ao caráter opressor, rígido e
alienante da produção ocorreu, portanto, por meio da elaboração de um modelo
produtivo que, ao menos teoricamente, ofertou ao proletariado tudo aquilo que
almejava: mais autonomia, participação ativa e realização no espaço de trabalho.
Todas essas qualidades foram reunidas no modelo toyotista de produção.
Mas antes de se adentrar ao estudo do toyotismo, importa esclarecer que o
processo de transformação do modelo produtivo não consistiu em uma transição linear
e uniforme, que tenha culminado numa total superação do modelo fordista-taylorista.
Como ponderam Boltanski e Chiapello (2009, p. 240-241), “[...] não é fácil
avaliar a amplitude dessas mudanças, que afetaram as empresas de maneira
desigual, segundo suas dimensões e seus setores de atividade”. Segundo os autores,
a partir da segunda metade do século XX, verifica-se uma mescla dos modelos
produtivos: as pequenas empresas tendem a permanecer “pré-taylorianas, enquanto
as indústrias de porte médio podem procurar compensar o atraso introduzindo
métodos de organização racional do trabalho do tipo tayloriano, que, no entanto, já
são questionados ou modificados nas grandes empresas”, tudo isso durante um
mesmo período.
Em relação ao modelo emergente, ensina Antunes (2009, p.56) que o
toyotismo ou ohnismo – derivado de Ohno, sobrenome do engenheiro que
desenvolveu o modelo produtivo em questão para a fábrica japonesa Toyota –
consistiu em uma nova forma de organização do trabalho, que se distinguiu do
fordismo, sobretudo, pelos seguintes traços:
a) vinculação da produção à demanda, utilizando-se, para tanto, do sistema
de “kanban” – placas e senhas comandando a reposição dos produtos, a fim de evitar
os vastos estoques típicos da produção fordista;
b) promoção do trabalho em equipe e em caráter multifuncional – isto é,
trabalhadores realizando, simultaneamente, várias funções –, rompendo com a
especialização das tarefas característica do fordismo;
89
c) organização de “Círculos de Controle de Qualidade (CCQs) como
mecanismos de instigar os trabalhadores a discutirem e aprimorarem suas atividades,
melhorando o desempenho individual e elevando a produtividade;
d) estímulo à competição interna por meio da vinculação do desempenho
individual a metas de produtividade;
e) horizontalização do complexo empresarial produtivo, que passou a
transferir a terceiros a responsabilidade por parte expressiva das tarefas que eram
realizadas no interior da empresa;
f) a consequente flexibilização das formas de contratação de mão-de-obra,
cuja grande expressão foi a terceirização de tarefas consideradas periféricas. Para
ilustrar a dimensão alcançada por esse fenômeno no mundo do trabalho, realça-se
que, conforme estatística apresentada por Boltanski e Chiapello (2009, p. 242),
realizada pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos da França
(INSEE), o desenvolvimento da terceirização passou de 5,1% da receita bruta
industrial em 1974 para 8,9% em 1991, mantendo esse nível a partir de então. No
Brasil, a mesma tendência pôde ser verificada: segundo pesquisa realizada pelo
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE,
2017), “Em 2014, havia 12,5 milhões de vínculos ativos nas atividades tipicamente
terceirizadas e 35,6 milhões nas tipicamente contratantes”, o que mostra que a
terceirização, nesse período, já correspondia a cerca de um quarto dos vínculos de
trabalho formais no Brasil.
Além de todos estes pontos mencionados, outro traço característico do
toyotismo merece destaque: a flexibilização da estrutura hierárquica e das formas de
controle sobre o trabalhador.
Em virtude da revolução tecnológica vivenciada na segunda metade do século
XX, o mundo do trabalho passou a conhecer o que Boltanski e Chiapello (2009, p.225)
denominaram de “instâncias individuais conectadas em rede”. Foi justamente diante
dessa nova possibilidade de “conexão em rede” que, valendo-se dos novos meios
telemáticos e plataformas virtuais desenvolvidos, as empresas sentiram-se
confortáveis para reduzir as despesas com os cargos hierárquicos de controle
(sobretudo os gerenciais) e promover a substituição do controle direto sobre a mão-
de-obra pelo autocontrole. Veja-se:
90
A volta ao controle das empresas, objetivo essencial do patronato na época, não foi obtida com o aumento do poder da hierarquia, com o crescimento das linhas hierárquicas e com o número de instrumentos contábeis ou de diretrizes burocráticas, e sim graças a uma ruptura com os moldes de controle anteriores à endogeneização das reivindicações de autonomia e de responsabilidade até então consideras subversivas. É possível esquematizar essa mudança, considerando que ela consistiu em substituir o controle pelo autocontrole e assim transferir para fora os custos elevadíssimos do controle, repassando o peso da organização para os assalariados. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 225)
A respeito de tais alterações, considera-se, pois, que o mundo do trabalho, no
contexto pós 1970, foi inundado por ideais empresariais que podem ser “muito bem
representados por palavras e expressões, tais como: flexibilização, empowerment,
colaboração, polivalência, empreendedorismo, qualidade total, qualificação e controle
simbólico”. Quanto ao controle simbólico, representado pela imputação ao trabalhador
de uma espécie de “direito-dever” de se autocontrolar, numa alusão ao panóptico de
Foucault, considera-se, ainda, que,
[...]do ponto de vista do sujeito que aliena a sua força de trabalho, isso quer dizer que, nesse novo contexto produtivo, “ele torna-se responsável por gerir seus próprios projetos e metas, ‘prescindindo de um controlador externo porque o controle simbólico, nos moldes do panóptico de Focault (1994), é eficaz o suficiente para garantir o conserto das práticas” (SATO, 2003, p.33). Nas palavras de Alves (2011, p.115), a figura do inspetor está agora “introjetada nos operários e empregados”, que se tornam algozes de si mesmos e dos seus pares. (RIBEIRO; JANNOTTI, 2016, p. 1205)
Realça-se que Bauman, analisando esse novo cenário produtivo inaugurado
sob o prisma da modernidade líquida – ou pós-modernidade20 –, considera que as
relações produtivas ultrapassaram o modelo foucaultiano do panóptico. Na sua visão,
o que se passou a vivenciar a partir da reestruturação do capital foi uma fase histórica
“Pós-panóptica”, de modo que, no âmbito das relações de poder, “as pessoas que
operam as alavancas do poder de que depende o destino dos parceiros menos
voláteis na relação podem fugir do alcance a qualquer momento – para a pura
inacessibilidade”. (BAUMAN, 2001, p.19)
Ainda segundo Bauman, em decorrência de tais alterações estruturais, o
capitalismo abandonou a sua aura “pesada” e se tornou “leve”. Do ponto de vista do
20 Na visão de Ellen Wood, a pós-modernidade corresponde a uma fase do capitalismo marcada por
transformações econômicas e ideológicas que, apesar de ratificarem a lógica racionalista e individualista da modernidade, desta se distingue pelas seguintes características: “era da informação”, “produção enxuta”, “acumulação flexível”, “capitalismo desorganizado”, consumismo. (WOOD, 2001, p.121)
91
capital, isso significa que “ele ‘viaja leve – apenas com a bagagem de mão, que inclui
nada mais que pasta, telefone celular e computador portátil’, podendo saltar em
qualquer ponto do caminho e ali permanecer apenas enquanto durar a sua satisfação”.
(BAUMAN, apud RIBEIRO; ABREU, 2017, p. 110)
Sob o prisma do trabalhador, considera-se que a suavização da rígida
estrutura hierárquica e das formas de controle – o que não quer dizer que houve uma
suavização do controle em si, tanto sobre o trabalho quanto sobre o trabalhador –, ao
menos no plano das teorias, conferiu ao proletariado alguns sinais da tão almejada
autonomia – traduzida, por exemplo, em horários e condições de trabalho mais
flexíveis, das quais o instituto do “teletrabalho”21 tornou-se a grande expressão;
contribuiu, também, para atenuar o sentimento de alienação da classe trabalhadora
por meio do pretendido “enriquecimento” das tarefas realizadas. Contudo, parece ter
sido estipulado um “preço” a se pagar por essas concessões.
Conforme ponderado por Boltanski e Chiapello (2009, p.225), tais medidas
representaram, de certo modo, uma “inversão política”, que, valendo-se do culto ao
individualismo – acentuado em sede modernidade líquida –, retirou das categorias de
trabalhadores diversas garantias, concedendo a cada trabalhador, em troca, uma
maior autonomia na realização da sua atividade. A par dessa retirada de garantias, o
capital teria, ainda, reduzido significativamente o espírito contestatório e a
potencialidade de organização da classe operária, tomada pelo espírito da competição
e do individualismo, veementemente propagado pela nova filosofia de gestão
empresarial.
Nota-se que todas essas alterações verificadas convergiram, portanto, não
apenas para a consagração de novos padrões de produção; determinaram, sobretudo,
21 Acerca dos possíveis efeitos colaterais advindos da aparente suavização do controle patronal nas atividades realizadas à distância, por meios telemáticos, seguem algumas considerações sobre o instituto do teletrabalho, tecidas em outra oportunidade: “Embora, a princípio, possa parecer crível que o trabalho realizado à distância reduz o controle patronal, suavizando os traços da subordinação, Estrada (2014, p.26) nos alerta para o fato de que surge, na verdade, um “controle virtual e invisível do empregador mediante programas de softwares que até registram quantas vezes o teletrabalhador teclou e os sites que visitou”. Além disso, ao admitirem o teletrabalho, as empresas passam a medir o desempenho profissional pela produtividade, elevando em quantidade e intensidade as metas a serem alcançadas. Assim, a jornada de trabalho - cuja flexibilização deveria consistir em benefício para o teletrabalhador – é, geralmente, elastecida. Em conseqüência, os níveis de estresse podem elevar-se consideravelmente, aguçando o sofrimento psíquico que, conforme Dejours (1998), consiste em importante mecanismo de controle patronal”. (RIBEIRO, Ailana. Teletrabalho: ócio criativo ou escravização digitalizada? Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 150, jul 2016. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.p.hp?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17474&revista_caderno=25>. Acesso em: 10 nov. 2017)
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uma profunda alteração de valores que, marcada pela exaltação do ideal nuclear da
flexibilização, foi imprescindível para legitimar, dentro e fora das relações produtivas,
os novos padrões de conduta considerados adequados.
Neste sentido, Boltanski e Chiapello, considerando que a “flexibilidade”,
grande cerne das transformações vivenciadas no contexto pós 1970, subdivide-se em
“flexibilidade interna” e “flexibilidade externa”, apresentam a seguinte reflexão:
Um dos eixos principais da nova estratégia das empresas, como vimos, foi o grande crescimento daquilo que, a partir dos anos 80, foi chamado de flexibilidade, que possibilitou transferir para os assalariados e também para subcontratados e outros prestadores de serviços o peso das incertezas do mercado. Ela se decompõe em flexibilidade interna, baseada na transformação profunda da organização do trabalho e das técnicas utilizadas (polivalência, autocontrole, desenvolvimento de autonomia, etc.), e flexibilidade externa, que supõe uma chamada organização do trabalho em rede, na qual empresas “enxutas” encontram os recursos de que carecem por meio de abundante subcontratação e de uma mão-de-obra maleável em termos de emprego (empregos precários, temporários, trabalho autônomo), de horários ou de jornada de trabalho (tempo parcial, horários variáveis). (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.240)
Nota-se, pois, que, no âmbito interno das relações de trabalho, o ideal de
flexibilização foi apropriado pela gestão empresarial, que passou a prescrever um
modelo de “trabalhador flexível”. Em termos práticos, isso significou a reunião das
seguintes qualidades, consideradas essenciais para fins de empregabilidade:
adaptabilidade, multifuncionalidade ou polivalência, pró-atividade, espírito de
cooperação, autocontrole e total disponibilidade para o trabalho.
A esse respeito, considera-se que o trabalhador pós-moderno, a fim de
assumir o estereótipo do empregado ideal, passou a ter que se submeter a um
processo que – em alusão à “teoria da destruição criadora ou criativa” de Joseph
Schumpeter, abordada adiante –, denomina-se de “(auto)destruição criativa”,
reinventando-se incessantemente, sob pena de se tornar desinteressante aos olhos
do capital. Veja-se:
No mesmo contexto, estão a mentalidade e a atitude pró-ativas, disseminadas na literatura de administração de empresas, voltadas a incutir no sujeito a necessidade de se qualificar e reinventar constantemente para ser absorvido pelo mercado de trabalho e nele continuar. O sujeito deve ser versátil e adaptar-se às novas exigências – e às novas condições fluidas e precarizadas de trabalho – internalizando valores como o do empreendedorismo e da empregabilidade. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.46-47)
93
Esse ideal de flexibilização também reverberou no plano político por meio de
uma tendência de desregulamentação, incorporada e propagada pela ideologia
neoliberal, que veio a se tornar internacionalmente dominante.
Antunes (2009, p.63), referindo-se à experiência inglesa, ensina que o “projeto
neoliberal”, vigente no Reino Unido desde 1979, teve como grande marco a ascensão
de Margareth Thatcher ao poder e a consectária quebra da trajetória anterior,
“marcada por forte presença do trabalhismo inglês” – influenciado pela atuação
política incisiva do partido dos trabalhadores ingleses, o Labour Party.
Diante da nova agenda política neoliberal, que transformou substancialmente
o histórico participativo promovido pela atuação do Labour Party, gradativamente, “[...]
foi se desenhando um modelo que alterava tanto as condições econômicas e sociais
existentes na Inglaterra quanto a sua estrutura jurídico-institucional, de modo a
compatibilizar-se com a implementação do modelo neoliberal”. (ANTUNES, 2009,
p.68)
A pauta central dessa nova agenda, com vistas a implementar o
neoliberalismo, consistiu no fortalecimento da liberdade de mercado, a ser alcançado
por meio das seguintes medidas: a) privatização generalizada, de tudo aquilo que se
manteve sobre o controle estatal no período do trabalhismo; b) aprovação de medidas
repressoras e inibidoras à atuação sindical, concedendo ao sindicalismo o status de
“inimigo central do neoliberalismo”; c) desenvolvimento de uma legislação de cunho
fortemente desregulamentador, do ponto de vista das condições de trabalho, e
flexibilizador, do ponto de vista dos direitos sociais. (ANTUNES, 2009, p.68-69)
Nesse sentido, a onda neoliberal instaurada, por meio do “boicote sistemático
à atuação dos sindicatos”, estimulou a individualização das relações entre trabalho e
capital, da qual o exemplo da greve, citado por Antunes, é bastante elucidativo:
As greves de solidariedade foram proibidas; também foram coibidas as ações de conscientização dos sindicatos, como os piquetes e a pressão sindical tradicionalmente exercida sobre os trabalhadores que desconsideravam as decisões coletivas, tomadas por voto secreto pela realização da greve. Somente as paralisações que seguiam o ritual burocrático-legal restritivo tinham validade. (ANTUNES, 2009, p. 70)
Não sendo suficiente o comprometimento da instituição e manutenção de
direitos e garantias para a classe trabalhadora no âmbito das negociações coletivas,
no plano da regulamentação jurídica estatal, também foi instituída uma tendência de
94
flexibilização, representada pela mitigação ou mesmo supressão de muitos dos
direitos e garantias sociais arduamente conquistados – sobretudo direitos e garantias
trabalhistas.
Realça-se que a flexibilização no plano das relações laborais foi fortemente
preconizada, em plano internacional, por meio do Consenso de Washington, de 1989,
que, a pretexto de ofertar a fórmula mágica para a expansão econômica ocidental,
impôs aos países em desenvolvimento, estando dentre eles o Brasil, a adoção de 10
postulados, sendo o 9º, a implementação da “desregulamentação trabalhista”.
(JANNOTTI; RIBEIRO, 2017, p.4)
Desde então, o Direito do Trabalho, historicamente estigmatizado em virtude
de representar, ou ao menos pretender representar, um contrapeso aos interesses do
capital, tornou-se alvo de uma explícita campanha política e econômica em prol da
sua desregulamentação, eufemisticamente difundida no Brasil como “flexibilização
trabalhista”.
E os reflexos práticos do ideal de se flexibilizar o Direito do Trabalho – que
será analisado com maior profundidade adiante – não tardaram a surgir, traduzindo-
se, na cena jurídica brasileira, nas mais diversas medidas tomadas pelos Poderes
Executivo, Judiciário e Legislativo, dentre as quais se destacam: a consagração da
prescrição quinquenal e não mais trintenária do FGTS; o cancelamento da Súmula
277 do TST, que previa a ultratividade das negociações coletivas, de modo que, finda
a vigência de um instrumento coletivo, os direitos por ela previstos deixam de
incorporar os contratos individuais de trabalho mesmo diante da recusa ou mora da
empresa em renegociar com o sindicato; os julgados do STF reconhecendo a
prevalência do negociado sobre o legislado, mitigando a aplicação de normas de
ordem pública em nítida prejuízo ao trabalhador; a recente promulgação da lei 13.429
de 2017, que legitimou o instituto da terceirização trabalhista, em franca ofensa à
dignidade humana; e, por último, a ainda mais recente aprovação da Lei 13.467 de
2017, responsável por uma “Reforma Trabalhista”, que, conforme se abordará
adiante, em termos práticos, mitiga obrigações empresariais e fragiliza a proteção
jurídica ao trabalhador. (JANNOTTI; RIBEIRO, 2017, p.5)
Por fim, no plano econômico-produtivo, a nova tendência flexibilizadora
também se manifestou, tornando-se presente tanto nas formas de contratação da
mão-de-obra – representada por institutos como terceirização, subcontratação,
trabalho em tempo parcial – , quanto nas formas de gestão da mão-de-obra – por
95
meio, por exemplo, da utilização de meios telemáticos, do autocontrole, da
transferência de responsabilidades ao empregado e da atenuação dos traços de
subordinação mediante a instituição de jornadas e horários de trabalho flexíveis.
Mas para além da esfera intersubjetiva da relação de produção, a
flexibilização também se manifestou no campo objetivo da economia, sob o paradigma
do que o economista austríaco Joseph Schumpeter (1961) denominou “destruição
criativa ou criadora”.
Diante de um cenário de crise econômica, no qual a superprodução
decorrente do modelo de produção fordista-taylorista passou a conviver com o
desemprego estrutural e com a consequente queda do poder de consumo da classe
trabalhadora, bem como com a globalização e o acirramento da concorrência em nível
internacional, tornou-se necessário repensar as práticas de consumo, a fim de se
encontrar meios mais eficazes para um satisfatório escoamento da produção.
Foi nesse contexto que veio à lume o processo de “destruição criadora ou
criativa”, preconizando a necessidade de uma constante inovação na produção como
condição para a sobrevivência das empresas no competitivo mercado
internacionalizado. A seguir, estão os fundamentos apresentados por Schumpeter
para a consagração da “destruição criadora” como o inevitável mecanismo a ser
adotado pela empresa que pretender um espaço no mercado produtivo:
O primeiro conceito que se descarta é o tradicional modus operandi da concorrência. Os economistas emergem, por fim, de uma fase em que se preocupavam apenas com a concorrência dos preços. Tão logo a concorrência de qualidade e o esforço de venda são admitidos no recinto sagrado da teoria, o fator variável do preço é apeado da sua posição dominante. Nada obstante, é ainda a concorrência, dentro de um conjunto rígido de condições invariáveis, métodos de produção e particularmente de formas de organização industrial, que continua praticamente a monopolizar-lhes a atenção. Mas, na realidade capitalista e não na descrição contida nos manuais, o que conta não é esse tipo de concorrência, mas a concorrência de novas mercadorias, novas técnicas, novas fontes de suprimento, novo tipo de organização (a unidade de controle na maior escala possível, por exemplo) — a concorrência que determina uma superioridade decisiva no custo ou na qualidade e que fere não a margem de lucros e a produção de firmas existentes, mas seus alicerces e a própria existência. Tal tipo de concorrência é muito mais eficaz do que o outro, da mesma maneira que é mais eficiente bombardear uma porta do que arrombá-la, e, de fato, tão mais importante que se torna indiferente, no sentido ordinário, se a concorrência faz sentir seus efeitos mais ou menos rapidamente. (SCHUMPETER, 1961, p.112)
Neste sentido, pode-se dizer que “inovação” tornou-se a palavra de ordem; e
pode-se dizer, ainda, que não se tratou de uma inovação pura e simples, mas de uma
96
inovação disruptiva, isto é, calcada no desenvolvimento de tecnologias que, não
apenas aprimoram as tecnologias já existentes, e sim, superam-nas por completo,
tornando-as obsoletas, inúteis e indesejadas.
Realça-se que, a fim de conferir mais versatilidade a esse processo de
inovação disruptiva, tornou-se essencial a introjeção de uma obsolescência
programada nos bens produzidos, a fim de que as práticas de consumo deixassem de
possuir caráter eventual para se tornarem corriqueiras. Nas palavras de Laurentino
(apud VIANA; TEODORO, 2016, p.17), o ato de consumir acabou se tornando “um
acontecimento recursivo, cíclico, já que nos próprios produtos que constituem o objeto
da avença está embutida a programação da sua obsolescência, impondo o seu
descarte e sua consequente substituição por algo novo”.
É, portanto, essa nova necessidade “vital” de destruir incessantemente o
antigo para criar o novo que Schumpeter denomina “destruição criativa ou criadora”.
É desse processo que se constitui o capitalismo na pós-modernidade e a ele deve se
adaptar toda empresa capitalista que almeje uma vida minimamente longa. (RIBEIRO;
ABREU, 2016, p. 45)
Em termos pragmáticos, esse processo significa que a descoberta e o
lançamento de uma nova tecnologia levam a empresa ao ápice da ascensão
econômica, permitindo-a atingir a lucratividade máxima. Em seguida, quando a
tecnologia desenvolvida torna-se comum, a lucratividade estabiliza-se e, em seguida,
entra em flagrante declínio, até atingir o ponto de exaustão, que sinaliza a necessidade
de que uma nova invenção irrompa e destrua a que se tornou obsoleta. (RIBEIRO;
ABREU, 2016, p. 44)
Viana e Teodoro, referindo-se a esta lógica schumpeteriana, apresentam as
seguintes considerações:
O trabalho de Joseph Schumpeter influenciou bastante as teorias da inovação ao considerar que, sob o impacto da “destruição criadora”, a superprodução é praticamente eliminada, já que os consumidores se dirigem, ansiosamente, para os novos produtos disponíveis. Assim, o ciclo recomeça sempre em novas bases tecnológicas. Com efeito, “as receitas para a boa vida e os utensílios que a elas servem tem ‘data de validade’, mas muitos cairão em desuso bem antes dessa data, apequenados, desvalorizados e destituídos de fascínio pela competição de ofertas ‘novas e aperfeiçoadas. (VIANA; TEODORO, 2017, p.324)
97
Foi em decorrência de toda essa sofisticação do processo de produção,
calcado não mais na necessidade de se produzir em grande escala, mas de se
produzir novidades, que estimulem ou mesmo criem uma demanda personalizada,
que se passou a verificar um significativo deslocamento do interesse da empresa
capitalista da produção para o consumo. A classe empresarial percebeu que o objetivo
de incrementar a lucratividade em meio a uma gama de concorrentes poderia ser
alcançado não mais pela simples oferta de produtos em maiores quantidades ou em
menores preços, mas por meio do fomento às práticas consumeristas.
Assim, segundo Bauman (2009, p.15), por meio de todos os processos de
desregulamentação e flexibilização ora analisados, o capital e o trabalho ingressaram
num profundo – e ainda em curso – processo de realocação, que marcou o início da
complexa transição da “sociedade de produtores” para a “sociedade de
consumidores”. É o que se passa analisar no próximo capítulo.
99
7 A SOCIEDADE DO CONSUMO: UM MISTO DE INSTANTES ETERNOS,
HETEROFILIA, NECESSIDADES COMPLEXAS E INSATISFAÇÃO PERMANENTE
A força do querer Invadiu o meu pensar
Nada tenho, tudo quero, de tudo preciso
O cenário de desregulamentação e flexibilização generalizadas instaurado em
virtude da reestruturação produtiva do capital, como visto, foi legitimado por uma
paradigmática alteração de valores, responsável por conferir novas significações ao
duradouro e ao transitório, à segurança e ao risco, ao estático e ao mutante, ao
presente e ao futuro.
O que fazia pleno sentido e era valorizado na sociedade sólido-moderna –
cujas relações norteavam-se pela busca do seguro e estável – precisou ser
contestado pela ordem líquido-moderna emergente, a fim de que as novas práticas
introduzidas, tanto em âmbito econômico-produtivo quanto em âmbito político, social
e cultural, fossem aceitas, repetidas e difundidas.
Por essa razão, é importante deixar claro que a transição que se pretende
abordar, de uma sociedade fundada no trabalho para uma sociedade
predominantemente fundada no consumo, não trata dos aspectos objetivos que
deixaram de ou passaram a integrar os atos de trabalho e os atos de consumo. Na
verdade, considera-se que quanto a esses aspectos objetivos pouca coisa mudou.
Trabalhar permanece significando, sob o prisma objetivo, dispêndio de energia em
prol da consecução de um fim que, direta ou indiretamente, reverte-se em consumo;
do mesmo modo, o ato de consumir permanece vinculado à satisfação de
necessidades humanas. Não se trata também de um processo de superação do
trabalho pelo consumo, haja vista que ambos constituem fatores indissociáveis, que
compartilham espaço na vida pessoal e social desde tempos remotos.
Neste sentido, Arendt (2014, p.156) assinala que o trabalho e o consumo
foram e permanecem sendo “apenas dois estágios do mesmo processo, imposto ao
homem pela necessidade da vida”, razão pela qual, na visão da autora, falar em uma
sociedade de consumidores representa tão somente um “outro modo de dizer que
vivemos em uma sociedade de trabalhadores”.
Também Jean Baudrillard, ao utilizar a terminologia “sociedade de consumo”,
chama a atenção para o caráter indissolúvel do elo entre trabalho e consumo:
100
Isto não quer dizer a nossa sociedade não seja, antes de mais, objectivamente e de modo decisivo, uma sociedade de produção, uma ordem de produção, por consequência, o lugar de estratégia económica e política. Mas quer-se também significar que nela se enreda uma ordem do consumo, que se manifesta como ordem da manipulação dos signos. (BAUDRILLARD, 2011, p.24)
Segundo o autor, a aparente “Revolução Humana”, responsável por separar
a “Idade dolorosa e heroica da Produção” da nova “Idade eufórica do Consumo” não
promoveu qualquer alteração do sistema em essência. Por meio das seguintes
considerações, relevantes e esclarecedoras, explica Baudrillard que o que se alterou
foi o conjunto de valores a partir de do qual o mesmo sistema passou a ser percebido
e vivido:
Toda a ideologia do consumo pretende levar-nos a crer que entramos numa era nova e que uma Revolução Humana decisiva separa a “Idade dolorosa e heroica da Produção” da nova “Idade eufórica do Consumo”, em cujo seio se faz justiça ao Homem e aos seus desejos. Nada disso. Quando se fala de Produção e Consumo – trata-se de um só e idêntico processo lógico de reprodução amplificada das forças produtivas e do respectivo controlo. Tal imperativo, que pertence ao sistema, passa para a mentalidade, para a ética e ideologia quotidiana – eis a grande astúcia – na sua forma inversa: sob a capa de libertação das necessidades, do desabrochamento do indivíduo, de prazer e abundância, etc. Os temas da Despesa, do Prazer, do Não-Cálculo (Compre agora, pagará mais tarde) revezaram os temas puritanos da Poupança, do Trabalho, do Patrimônio. Mas só na aparência é que nos havemos com uma Revolução Humana: na realidade, trata-se da substituição para uso interno, no quadro de um processo geral e de um sistema que no essencial não mudou, a partir de determinado sistema de valores para outro que se tornou (relativamente) ineficaz. (BAUDRILLARD, 2011, p.97)
Assim, considera-se que o que, de fato, operou-se de relevante a fim de
ensejar o modelo de sociedade fundada predominantemente no consumo foram os
novos valores incorporados e transmitidos pelos atos de trabalho e de consumo e,
consequentemente, as dimensões por eles assumidas na vida pessoal e no espaço
social.
A respeito desse complexo movimento de transição, de cunho fortemente
axiológico, Bauman faz as seguintes considerações:
Aconteceu que, no caminho entre a sociedade de produtores e a sociedade de consumidores, as tarefas envolvidas na comodificação e recomodificação do capital e do trabalho passaram por processos simultâneos de desregulamentação e privatização contínuas, profundas e aparentemente irreversíveis, embora ainda incompletas. A velocidade e o ritmo acelerado
101
desses processos foram e continuam a ser tudo, menos uniformes. (BAUMAN, 2008, p.15)
Em relação a esse movimento de transição, ao se analisar o contexto histórico
da segunda metade do século XX, viu-se, em sede do capítulo anterior, que, dentre
os motivos determinantes da crise econômica instaurada a partir dos anos 1960,
estava a combinação entre a superprodução gerada pelo modelo produtivo fordista-
taylorista e a redução do poder de consumo da massa trabalhadora – decorrente do
cenário de acirramento da concorrência empresarial e de desemprego estrutural. Viu-
se, ainda, que foi com vistas a retomar os níveis de expansão econômica que o capital
promoveu a reestruturação do sistema produtivo, implementando um modelo calcado
na produção flexível, enxuta e disposta a inovar incessantemente.
Desde então, assistiu-se a um significativo deslocamento da atenção do
capital para o consumo, percebido pelas empresas como potencial instrumento de
incremento da lucratividade. Consequentemente, conforme ensinam Pina e Arribas
(2006, p.85), a teoria econômica, a fim de atender aos novos anseios da classe
empresarial, também transferiu o foco das suas pesquisas, de modo que a sua
preocupação em torno da oferta e dos custos produtivos (aspectos da produção em
si) foi cedendo espaço para a questão da demanda e da utilidade (fatores diretamente
ligados ao processo de escoamento da produção).
Assim, em lugar de buscar meios para se produzir muito e à baixo custo, a
nova missão da teoria econômica centrou-se na busca por maneiras de se estimular
ou mesmo criar demandas, a fim de permitir às empresas alcançarem níveis
satisfatórios de vazão da produção e, consequentemente, de lucratividade. Foi por
essa razão que “o indivíduo, suas necessidades e o seu comportamento de satisfação
transformaram o começo de uma análise econômica” empenhada na construção de
uma sociedade, sobretudo, de consumidores. (PINAS; ARRIBAS, 2006, p.85)
Como pondera Gorz (1968, p.78), “de acordo com a previsão de Marx, o
capital monopolista encontrou-se diante do problema de acomodar sujeitos aos
objetos de escoamento, de ajustar não mais a oferta à procura, mas a procura à
oferta”. Para resolver esse impasse, foi preciso colocar a sociedade em um verdadeiro
“estado de consumo forçado”, moldando “indivíduos passíveis de serem postos em
condição de consumo forçado e passivo: os indivíduos de massa, aos quais se
esforçará em impor finalidades, desejos e vontades [...]. (GORZ, 1968, p. 78)
102
Perceba-se, pois, que apesar do ato de consumir representar uma
decorrência lógica da própria natureza humana, ligada à necessidade de
sobrevivência, a exaltação do consumo representou uma construção peculiar da
sociedade líquido-moderna, que, para fins de assegurar a sobrevivência do capital
num mercado altamente competitivo, foi imposta aos indivíduos como uma espécie de
ritual universal a ser seguido. E uma vez exaltado, o consumo puro e simples
desdobrou-se no fenômeno do consumismo.
Na visão de Bauman, essa passagem do consumo ao consumismo foi o
resultado de uma “revolução consumista”, caracterizada por tornar a capacidade de
desejar e ansiar o principal sustentáculo da economia e por transformar o consumo
no “verdadeiro propósito da existência humana”:
Foi sugerido [...] que um ponto de ruptura de enormes consequências, que, poderíamos argumentar, mereceria o nome de “revolução consumista”, ocorreu milênios mais tarde, com a passagem do consumo ao “consumismo”, quando aquele, como afirma Colin Campbell, tornou-se “especialmente importante, se não central” para a vida da maioria das pessoas, “o verdadeiro propósito da existência humana”. E quando “nossa capacidade de ‘querer’, ‘desejar’, ‘ansiar por’ e particularmente de experimentar tais emoções repetidas vezes de fato passou a sustentar a economia”[...]. (BAUMAN, 2008, p. 38-39)
Foi, portanto, neste novo contexto, consolidado tempos após a era industrial
dos excedentes, que, para além de um ato objetivo de aquisição ligado à satisfação
de uma determinada necessidade, o consumo expandiu-se, multiplicando suas
significações e ampliando sua esfera de repercussão. Para além de uma lógica
econômica, o consumo, na versão do consumismo, também se revestiu de uma lógica
social, cultural, política e inclusive emocional, passando a representar, segundo
Bauman (2008, p.41), um tipo de “arranjo social resultante da reciclagem de vontades,
desejos e anseios humanos rotineiros[...]”.
Sob o prisma dessa nova lógica, alterou-se a própria definição do termo
consumo, que passou a ser percebido mais como uma qualidade da sociedade do que
como uma simples ocupação característica do ser humano. Veja-se a definição
proposta Néstor Canclini (2010, p.60): “o consumo é o conjunto de processos
socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos”. Também
Manuel Castells, realçando a “racionalidade sociopolítica interativa” do consumo,
103
propõe uma definição que, transcendendo a esfera individual das suas repercussões,
aborda o consumo como um fenômeno social:
[...]o consumo “é um lugar onde os conflitos entre classes, originados pela desigual participação na estrutura produtiva, ganham continuidade em relação à distribuição e à apropriação dos bens. Consumir é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo. [...] Se alguma vez esta questão foi um território de decisões mais ou menos unilaterais, hoje é um espaço de interação no qual os produtores e emissores não só devem seduzir os destinatários, mas também justificar-se racionalmente. (CASTELLS apud CANCLINI, 2010, p.61-62)
Perceba-se que Castells utiliza termos como “lugar”, “espaço” e “território”
para definir o consumo. Entende-se que a preferência por tais termos não foi
ocasional: ao que parece, o autor pretendeu enfatizar algo de muito marcante nessa
transição da sociedade de produtores para a sociedade consumidores: o fato de que
o consumo não está mais adstrito ao ato de consumir. Na verdade, em se tratando de
consumismo, pode-se dizer que os símbolos e signos produzidos e transmitidos pelos
atos de consumo tornaram-se significativamente mais relevantes do que o consumo
em si.
Isso quer dizer que, na sociedade de consumidores, ao contrário do que possa
parecer, a aquisição e a acumulação de bens não representam o grande propósito
humano. As eufóricas sensações, as experiências colecionadas e os símbolos sociais
decorrentes das aquisições são mais almejados e valorizados do que o próprio objeto
que se consome. É no processo de aquisição – e não propriamente na aquisição –
que os consumidores depositam as suas expectativas de realização e, de fato,
realizam-se – ainda que por frações de segundos.
Nesta linha, as seguintes considerações de Bauman:
[...] num mundo em que uma novidade tentadora corre atrás da outra a uma velocidade de tirar o fôlego, num mundo de incessantes novos começos, viajar esperançoso parece mais seguro e muito mais encantador do que a perspectiva da chegada: a alegria está toda nas compras, enquanto a aquisição em si, com a perspectiva de ficar sobrecarregado com seus efeitos diretos e colaterais possivelmente incômodos e inconvenientes, apresenta uma alta probabilidade de frustração e remorso. (BAUMAN, 2008, p. 28)
A partir desta constatação, que sobreleva os “aspectos simbólicos e estéticos
da racionalidade consumidora”, extrai-se outra importante característica da sociedade
do consumo: “a lógica que rege a apropriação dos bens como objetos de distinção
104
não é a da satisfação de necessidades, mas sim a da escassez desses bens e da
impossibilidade de que os outros os possuam”. (CANCLINI, 2010, p. 63)
Neste sentido, considera-se que, muito ao contrário do que ocorria sob a égide
da sociedade produtores – na qual o consumo básico, diretamente ligado à ideia de
bem-estar, foi subsidiado pelo Welfare State com o intuito de se atenuar as
desigualdades socioeconômicas –, na sociedade de consumidores, regida
predominantemente pela ideologia neoliberal, o consumo é imposto justamente como
fator de distinção.
Isso porque, em um cenário produtivo pautado nos sucessivos altos e baixos
do processo de “destruição criadora”, a necessidade de uma constante renovação da
prática de consumo é garantida justamente pela introjeção nos consumidores da
vontade (sentida como necessidade) de se distinguir da massa, adquirindo, para tanto,
o que é novo, o que os outros não possuem.
Por essa razão é que Bauman considera que a liberdade de escolha na
sociedade pós-moderna ou líquido-moderna “[...] é de, longe, o mais essencial entre
os fatores de estratificação”. Quanto mais liberdade de escolha um dado consumidor
possui, maiores se tornam as possiblidades de acesso ao mais novo e, por
conseguinte, mais alta é a sua posição na hierarquia social. Afinal, conclui o autor, “As
diferenças sociais pós-modernas são feitas com a amplitude e a estreiteza das opções
realistas”. (BAUMAN, 1998, p.118)
Isso quer dizer que, na sociedade do consumo, o nível de satisfação de um
consumidor, em grande medida, passa a ser determinado pela sensação de
exclusividade que o ato de consumir lhe proporciona. Em termos de prazer, consumir,
muitas vezes, já não basta. Torna-se cada vez mais atraente consumir aquilo a que o
outro não tem acesso.
Assim, esse “outro” – no caso, representado pelo “consumidor de baixo
padrão” –, desempenha um papel determinante no sistema de estratificação pelo
consumo: comportando-se como o alter ego do “consumidor de alto padrão”, o
“consumidor de baixo padrão” representa o “escuro e sinistro fundo contra o qual o eu
purificado pode brilhar”. (BAUMAN, 1998, p.118).
Essa é a lógica do que Bauman denomina “era heterofílica”, na qual
uniformidade e homogeneidade incomodam profundamente e a diferença é
intensamente desejada:
105
Num aspecto importante, e por importantes razões, a nossa era é heterofílica. Para os coletores de experiências que somos, pelo menos os mais ricos entre nós, preocupados (ou, mais exatamente, obrigados a se preocuparem) com a flexibilidade e a abertura, mais do que com a fixidez e o autofechamento, a diferença vem com ágio. Há uma ressonância e uma harmonia entre a maneira como nos ocupamos dos nossos problemas de identidade e a pluralidade e diferenciação do mundo em que os problemas de identidade são tratados, ou em que escamoteamos no processo desse tratamento. Não é justo que precisemos dos estranhos à nossa volta, porque, devido ao modo como somos culturalmente modelados, perderíamos preciosos valores de aceitação da vida num mundo uniforme, monótono e homogêneo; mais do que isso: tal mundo sem diferença não podia, por nenhum rasgo de imaginação, evoluir a partir do modo pelo qual as nossas vidas são modeladas e conduzidas.” (BAUMAN, 1998, p.43)
Perceba-se, portanto, que, conforme pontuado pelo trecho acima,
intimamente ligada a esta aptidão do consumo para promover distinções sociais,
separando e classificando os indivíduos, está a questão da identidade humana.
Não há dúvidas de que, numa sociedade de consumidores, a propensão é
que a formação da identidade seja fortemente influenciada pelos hábitos de consumo.
Mas, talvez, o mais importante a se pontuar é que esse processo de formação de
identidade deixou de ser, como em tempos de sociedade sólido-moderna, um
processo de construção definitiva, que se operava em linha reta e em caráter estável.
Na sociedade líquido-moderna, a formação da identidade também é regida
pelo princípio da flexibilidade, submetendo-se, pois, a um processo de sucessivas
reconstruções, que nada tem de linear, estável e definitivo. Como explica Bauman:
No caso da subjetividade na sociedade de consumidores, é a vez de comprar e vender os símbolos empregados na construção da identidade – expressão supostamente pública do “self”, que na verdade é o “simulacro” de Jean Baudrillard, colocando a “representação” no lugar daquilo que ela deveria representar –, a serem eliminados da aparência do produto final. A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções de compras – opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de compras. O que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é uma idealização dos traços materiais – “objetificados” – das escolhas do consumidor. (BAUMAN, 2008, p. 23-24)
O escritor polonês Slawomir Mrozek, citado por Bauman, promovendo uma
comparação entre a sociedade líquido-moderna e “um monstruário cheio de roupas
luxuosas e cercado por multidões à procura de seus ‘eus’ “, considera que hoje
Pode-se trocar de roupa sem parar. Assim, como é maravilhosa a liberdade de que usufruem os envolvidos nessa busca...Vamos continuar procurando
106
nossos verdadeiros eus, é incrivelmente divertido – sob a condição de que o eu verdadeiro jamais será encontrado. Porque se fosse, a diversão chegaria ao fim... (MROZEK, apud BAUMAN, 2008, p.145)
Isso quer dizer que “os seres humanos não mais ‘nascem’ em suas
identidades”. É preciso “tornar-se o que já se é”, constantemente e por seus próprios
meios. Só assim, encarregando-se da árdua tarefa de se autodeterminar
incessantemente é que o ser humano, na sua qualidade de indivíduo22, torna-se apto
a se posicionar socialmente. (BAUMAN, 2008, p.45)
Assim, nos termos do que será discutido com mais minúcia adiante, tanto o
auto reconhecimento quanto o reconhecimento social, antes fundados
substancialmente no trabalho, tornaram-se significativamente influenciados pelo
consumo, que, atuando como mecanismo de estratificação, posiciona os indivíduos
na hierarquia social a partir da sua identidade consumidora.
Mas além de todas as características já analisadas, o traço peculiar da
sociedade do consumo que, talvez, seja o que tenha repercutido mais diretamente
sobre a esfera do trabalho, reside na concepção de necessidade.
Baudrillard (2011, p.87), ao delinear o que denomina “genealogia do
consumo”, considera que, em decorrência da racionalização produtiva perpetrada pela
industrialização, o sistema produziu a força de trabalho assalariado e, a partir da sua
sistematização como força produtiva radicalmente distinta do trabalho tradicional –
vez que desprovida dos meios de produção –, implementou um “sistema de
necessidades”.
Segundo o autor, as “necessidades enquanto sistema” diferem-se
radicalmente da fruição e da satisfação, uma vez que são produzidas como elementos
de sistema e não como simples relação de um indivíduo com um objeto. Nesse
sentido, considera que
“[...] as necessidades nada são, tomadas isoladamente, e que existe apenas um sistema de necessidades, ou antes, que as necessidades não passam da forma mais avançada da sistematização racional das forças produtivas ao
22 Bauman considera que “A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade moderna”. Ensina o autor que “A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de ‘individualização’, assim como as atividades dos indivíduos consistem na reformulação e renegociação diárias da rede de entrelaçamentos chama “sociedade”. Nenhum dos dois parceiros fica parado por muito tempo. E assim, o significado da ‘individualização’ muda, assumindo sempre novas formas – à medida que os resultados acumulados de sua história passada solapam as regras herdadas, estabelecem novos preceitos comportamentais e fazem surgir novos prêmios no jogo”. In: Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.43
107
nível individual, em que o consumo constitui a sequência lógica e necessária da produção”. (BAUDRILLARD, 2011, p. 87)
Ocorreu que, no contexto da reestruturação produtiva, diante da necessidade
de se escoar a produção mediante a intensificação do consumo, o “sistema de
necessidades” já estabelecido precisou alterar-se, tornando-se, assim como a
produção, mais sofisticado e significativamente mais complexo. E para compreender
o papel e a dimensão da necessidade nesse novo cenário, segundo Baudrillard (2011,
p.91), é preciso, antes, admitir que a necessidade nunca é tanto a necessidade de um
objeto, mas a necessidade de diferença ou o “desejo do sentido social”, o que dificulta
ou torna mesmo irrealizável o alcance de um estado de “satisfação completa” por
aquele que adquire um bem (material ou imaterial).
Subjacente ao sentimento de satisfação, que tende sempre à incompletude,
está, pois, o sentimento de insatisfação permanente, que deve acompanhar o
consumidor da sociedade líquido-moderna em caráter perene. A satisfação, por sua
vez, deve se limitar a instantes eternos, isto é, a momentos profundos em intensidade,
mas extremamente curtos sob o ponto de vista temporal. É dessa conjugação de
flashs de satisfação sobre o sentimento constante de insatisfação – seja decorrente
da frustração diante da experiência consumida ou simplesmente da ânsia por mais ou
do desejo por algo melhor – que o ciclo do consumismo se alimenta.
Bauman (apud TEODORO; RIBEIRO, 2001, p.74), referindo-se à rotatividade
qualificadora da prática do consumo, reconhece que, para que as possibilidades
sejam sempre infinitas, nenhuma delas “deve ser capaz de petrificar-se em realidade
para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham ‘data de validade’,
caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião
da próxima aventura”. Veja-se:
É exatamente a não satisfação dos desejos e a convicção inquebrantável, a toda hora renovada e reforçada, de que cada tentativa de satisfazê-los fracassou no todo ou em parte que constituem os verdadeiros volantes da economia voltada para o consumidor. A sociedade do consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a não satisfação de seus membros (e assim, em seus próprios termos, a infelicidade deles). [...]O que começa como um esforço para satisfazer uma necessidade deve se transformar em compulsão ou vício. E assim ocorre desde que o impulso para buscar soluções de problemas e alívio para dores e ansiedades nas lojas, e apenas nelas, continue sendo um aspecto do comportamento não apenas destinado, mas encorajado com avidez, a se condensar num hábito ou estratégia sem alternativa aparente. (BAUMAN, 2008, p.64)
108
Assim, sublinha Bauman (2001, p.97) que “A história do consumismo é a
história da quebra e descarte de sucessivos obstáculos ‘sólidos’ que limitam o voo
livre da fantasia e reduzem o ‘princípio do prazer’ ao tamanho ditado pelo ‘princípio da
realidade’”.
Nesse sentido, pode-se dizer que na sociedade do consumo, o consumidor,
cada vez mais distante da categoria “sólida” das necessidades, passou a se relacionar
de modo muito mais íntimo com a categoria dos desejos, de modo que satisfazer a
uma suposta necessidade, no plano real, pode significar atender a caprichos,
compulsões ou mesmo alimentar vícios.
Arendt, posicionando-se acerca do assunto, considera que a sofisticação dos
apetites humanos, uma vez que desprendendo o consumo do estrito campo das
necessidades da vida e concentrando-o no que denomina “superfluidades da vida”,
introduz “o grave perigo de que afinal nenhum objeto do mundo esteja a salvo do
consumo e da aniquilação por meio do consumo”. (ARENDT, 2014, p.165)
Logo, de um modo geral, não é mais a “luta pela existência” que está em jogo
quando se fala de consumo num cenário de consumismo. Baudrillard (2011, p.43),
citando Nietzsche, pondera que a “luta pela existência” persiste, mas designa tão só
um estado de exceção; “a regra, é antes, a luta pelo poder, a ambição de ter mais e
melhor, mais depressa e muito mais vezes”.
Também pode-se dizer que o consumidor habituado a desejar mais do que,
de fato, necessitar de algo, tornou-se imerso em um profundo estado de ânsia, que
introduz uma nova concepção para o que Gorz denomina “categoria do suficiente”.
Como explica o autor, a “categoria do suficiente”, em sede de modernidade líquida,
não mais pode ser compreendida objetivamente, como uma categoria econômica:
trata-se, na verdade, de uma categoria cultural ou existencial. “Dizer que o que basta
é quanto basta, implica dizer que de nada serviria ter mais, que esse mais não seria
melhor. Enought is a good as feast, diz o ditado inglês: o que é suficiente é o que pode
haver de melhor”. (GORZ, 2003, p.112)
Assim, transcendendo a noção de “quanto” e indo além dos cálculos
matemáticos envolvidos nas objetivas operações de compra e venda, o consumo
investiu-se de uma lógica social e de uma força ideológica inquebrantáveis,
assentando-se sobre um discurso que eleva a questão das necessidades da
109
propensão natural para a sobrevivência para a “propensão natural para a felicidade”.
(BAUDRILLARD, 2011, p.49)
A esse respeito, Baudrillard (2011, p.69) ensina que o campo do consumo é
“[...]um campo social estruturado em que os bens e as próprias necessidades, como
também os diversos indícios de cultura” partem de um grupo modelo, de uma “elite”
socialmente seletiva, que se comporta como um filtro de necessidades (“select
package”), filtrando-as e “escoando-as para baixo”, de modo a impor ao “consumidor
de base” um “standard package”, isto é, uma espécie de “pacote” padrão de
necessidades. Desse modo, conclui o autor: “Não existe a ‘massa de consumidores’
e nenhuma necessidade emerge espontaneamente do consumidor de base: só terá
de aparecer no standard package das necessidades se já tiver passado pelo select
package”.
Neste sentido, pode-se considerar que as necessidades, em sentido genérico,
assumem feição cada vez mais artificial: são fabricadas, naturalizadas e impostas
pelo sistema como se básicas fossem. Ao indivíduo, resta apenas a assimilação e,
como poderoso paliativo, a escolha – tarefa tão divertida quanto torturante, tendo em
vista o farto leque de opções que está posto para absolutamente tudo o que é passível
de consumo.
No que diz respeito à classificação das necessidades, Gorz (2003, p. 133)
sublinha a distinção entre os termos, do francês, “besoin” e “nécessité”. Explica o autor
que, apesar de, na língua francesa, serem usualmente empregados como sinônimos,
“nécessité”, derivado do latim necessitas, “designa o caráter daquilo que é necessário,
indispensável, essencial, importante, primordial (como, aliás, seu equivalente
português ‘necessidade’)”, ao passo que “besoin”, em primeira acepção,
corresponderia ao “ estado de insatisfação devido a um sentimento de falta, de
carência ”.
Enric Sanchis (2011, p.319), respaldando-se na classificação de Ya Keynes,
distingue as necessidades entre “absolutas ou objetivas” e “relativas ou subjetivas”.
As primeiras corresponderiam àquelas que experimentamos independentemente de
fatores de influência externos por serem básicas, primárias, biológicas, comuns a
todos os organismos vivos, ao passo que as segundas estariam relacionadas aos
desejos insaciáveis, induzidos pelas poderosas e invasivas estratégias de marketing.
Assim, Sanchis considera que, em sede de capitalismo pós-industrial, passam
a coexistir o que denomina de “necesidades saludables y deseos enfermizos”
110
(necessidades saudáveis e desejos doentios), de modo que utilizar recursos, a
começar pelos humanos, para a satisfação dos segundos seria, na sua visão, algo
doentio, que nos idiotiza e nos faz retornar, de alguma maneira, à condição animal.
(SANCHIS apud TEODORO; RIBEIRO, 2011, p.320)
Antunes (apud TEODORO; RIBEIRO, 2016, p.70), raciocinando a partir de
postulados erigidos por Karl Marx, considera que o ato de consumo pode possuir como
objeto tanto uma necessidade de fato quanto uma “utilidade imposta”. Esta última
refletiria aquilo que fora denominado por Marx “valores-fetiche”, que, na modernidade
líquida, seriam os responsáveis por determinar o consumo de modo mais significativo,
sendo, pois, de grande interesse do mercado disseminar tais valores e incuti-los nos
trabalhadores, enquanto potenciais consumidores.
Já na visão de Bauman (2001, p.96), o consumismo de hoje “[...]não diz mais
respeito à satisfação das necessidades – nem mesmo as mais sublimes, distantes
(alguns diriam, não muito corretamente, ‘artificiais’, ‘inventadas’, ‘derivativas’)
necessidades de identificação”. Na sociedade do consumo, o que entra em cena é o
“desejo”: “entidade muito mais volátil e efêmera, evasiva e caprichosa, e
essencialmente não referencial que as ‘necessidades’, um motivo autogerado e
autopropelido que não precisa de outra justificação ou ‘causa’ “.
Afinal, são estes consumos racionalmente injustificados, derivados de
impulsos emocionais, ou seja, “consumos facultativos, supérfluos, que podem ser
orientados, modelados, manipulados segundo as ‘necessidades’ do capital e não dos
próprios indivíduos”. É justamente “[...] na medida em que o consumo libera-se das
necessidades e ultrapassa-as que pode ser posto a serviço da produção, isto é, das
'necessidades' do capital”. (GORZ, 2003, p.121)
Diante de todas essas distintas formas de classificação quanto ao “sistema de
necessidades” que rege a sociedade do consumo – necessidades primárias e
secundárias, necessidades naturais ou artificiais, necessidades absolutas ou
relativas, ou ainda, necessidades e desejos – considera-se que, apesar de, no plano
teórico-conceitual, todas elas sinalizarem uma contraposição entre aquilo que se
aproxima do essencial ou do superficial, no plano prático, acabam todas elas
constituindo uma unidade, na qual necessidades, desejos, caprichos, vontades e
anseios assumem, igualmente, o mesmo espírito propulsor e legitimador da prática do
consumo.
111
Corroborando, então, alguns dos traços da sociedade do consumo que foram
teoricamente abordados por este estudo – tais como a sua volatilidade e versatilidade,
o seu espírito “destruidor criador”, a promoção da heterofilia e a consequente
exaltação do poder de escolha – a pesquisa estatística realizada em 2008 pelo
Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBOPE)23 sobre o perfil do consumo
brasileiro no século XXI, apontou, dente outras, as seguintes estatísticas e tendências:
a) há uma crescente busca por novidades, de modo que em 2002, o total de
brasileiros que iam às compras com frequência mínima de 30 dias era de 60%; em
2008, este número elevou-se para 67%, o que significa que mais 35 milhões de
pessoas estão realizando compras pessoais rotineiramente;
b) a experiência e a escolha tornam-se cada vez mais supervalorizadas;
c) o consumo encontra-se diretamente vinculado à questão da identidade;
d) a prática do consumo exerce poder de influência direto sobre o estado
emocional, sendo que 14% dos entrevistados admitiram que se valem do consumo
como artifício para se sentirem mais calmos ou menos tristes;
e) o “consumidor do século XXI” considera-se consciente de suas
possibilidades e percebe-se pouco influenciável, mas evita andar com seus cartões e
cheques para não gastar;
f) poucos consumidores estão dispostos a abrirem mão do padrão de vida
para trabalharem menos;
g) o consumo rotineiro integra a realidade de todas as camadas sociais.
A partir de tais informações e dados colhidos, as conclusões apresentadas
pelo IBOPE foram resumidas da seguinte maneira: os brasileiros, de um modo geral,
estão consumindo mais e a busca por bens de consumo encontra-se amplamente
difundida, não estando restrita a um determinado grupo de pessoas. 24
Também relacionado a este aspecto de disseminação do consumismo por
toda a escala social hierárquica, outro estudo realizado pelo IBOPE demonstra um
aspecto curioso quanto à carga valorativa dos objetivos buscados pelo consumidor, a
depender do grupo social ao qual pertença. Segundo Marcia Akinaga, diretora de
pesquisa qualitativa e inovação do IBOPE Inteligência, “o estudo demonstra que a
23 IBOPE. O consumidor do século XXI. Disponível em: http://www4.ibope.com.br/Consumidor/ Acesso em: 10 out. 2016. 24 IBOPE. O consumidor do século XXI. Disponível em: http://www4.ibope.com.br/Consumidor/
Acesso em: 10 out. 2016.
112
classe mais alta pode ter valores de consumo populares assim como um consumidor
de classe baixa ter valores de consumo elitizado”.
O quadro abaixo, fruto da pesquisa, exemplifica 16 tendências obtidas a partir da
interface entre o consumo guiado por “valores populares” e o consumo guiado por
“valores elitizados”: 25
Fonte: IBOPE, 2016.
Tais informações conduzem à observação de que, na versão do consumismo,
o consumo, ao mesmo tempo que se sofistica, buscando atender a nichos de
consumidores cada vez mais restritos e exigentes, também se populariza, impondo-
se perante as camadas socioeconomicamente mais baixas com a mesma – ou, talvez,
até maior – intensidade.
Bauman (2008, p.74), realçando a perversidade desse fenômeno de
exploração pelo mercado da classe de consumidores com baixo poder aquisitivo, cita
Russel Belk para dizer que: “O pobre é forçado a uma situação na qual tem de gastar
o pouco dinheiro ou os parcos recursos de que dispõe com objetos de consumo sem
25 IBOPE. A crise econômica e o empoderamento do consumidor: como as marcas podem sobreviver e quais as tendências em evidência neste cenário. 2016. Disponível em: http://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/a-crise-economica-e-o-empoderamento-do-consumidor-como-as-marcas-podem-sobreviver-e-quais-as-tendencias-em-evidencia-neste-cenario Acesso em: 09 nov. 2017.
113
sentido, e não com necessidades básicas, para evitar a total humilhação social e evitar
a perspectiva de ser ridicularizado”.
Segundo Baudrillard (2011, p.71), isso quer dizer que “A aspiração
superconsumidora (sobretudo das classes baixas) seria, ao mesmo tempo, que a
expressão de exigência estatutária, a expressão do fiasco exigido de tal exigência”,
de modo que a compulsão pelo consumo teria se tornado um meio de se compensar
a própria falta de realização na “escala social vertical”.
Mas para além da irrealização na hierarquia social, a compulsão pelo
consumo, ou simplesmente consumismo, parece também buscar compensar um
múltiplo vazio nas esferas da vida pessoal, amorosa, familiar, que, assim como as
demais esferas da vida humana, tornaram-se “líquidas”; e parece, sobretudo,
compensar a falta de realização na vida profissional, neutralizando a precariedade das
condições objetivas e subjetivas de trabalho e reduzindo o trabalho à condição de
instrumento, a uma espécie de “martírio” que precede não “o céu”, mas os “múltiplos
céus” – que (supostamente) podem ser alcançados por meio do consumo.
115
8 A REALOCAÇÃO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO E O
DIREITO DO TRABALHO ENTRE A PROTEÇÃO AO “TRABALHADOR-
CONSUMIDOR” E AO “CONSUMIDOR-TRABALHADOR”
Hoje já vivo o amanhã
De ontem, nem me lembro mais Meu carro vai na frente dos bois
Não posso parar
Corro, salto, vôo Pra quê?
O mundo está à dois mil Meu tempo à destempo
Tento, tento Me conserto, me invento
Pra quem?
De alguém a alguém Não cheguei a ninguém
Ninguém chegou até mim
Mas ainda respiro Sigo.
(RIBEIRO, 2017)
8.1 O “eu trabalhador” à serviço do “eu consumidor”: repercussões sobre a
relação capital-trabalho
A sociedade do consumo é guiada por valores que, em conjunto, convergem
para um cenário de sobrevalorização não tanto do indivíduo, mas do individualismo.
Como pontuado por Bauman (2008, p.74), “a vocação consumista se baseia,
em última instância, nos desempenhos individuais”, de modo que o mercado, impondo
os requisitos para desempenhos individuais aceitáveis ou minimamente satisfatórios,
deixa a cargo de cada um a responsabilidade por se investir das qualidades
necessárias para alcançar e manter a posição social almejada.
Esse quase dever individual de se munir do instrumental necessário para se
instalar socialmente, na visão do autor, é uma tarefa árdua, “[...]que deve ser
empreendida individualmente e resolvida com a ajuda de habilidades e padrões de
ação de consumo individualmente obtidos”. Veja-se a sua fundamentação:
Bombardeados de todos os lados por sugestões de que precisam se equipar com um ou outro produto fornecido pelas lojas se quiserem ter a capacidade de alcançar e manter a posição social que desejam, desempenhar suas
116
obrigações sociais e proteger a auto-estima – assim como serem vistos e reconhecidos por fazerem tudo isso –, consumidores de ambos os sexos, todas as idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes e abaixo do padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos. (BAUMAN, 2008, p.75)
Isso quer dizer que, numa sociedade na qual as características da pessoa
como consumidora representam as medidas para o seu nível de aprovação ou
reprovação social, os “consumidores falhos” estão fadados à exclusão; e para escapar
dessa espécie de “invalidez social”, resta, pois, adotar e seguir os preceitos da cultura
consumista. Assim, consumir passa a também significar “[...] investir na afiliação social
de si próprio, o que, numa sociedade de consumidores, traduz-se em ‘vendabilidade’.
(BAUMAN, 2008, p.75)
Neste sentido, parece plausível a afirmação de que “os membros da
sociedade são eles próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma
mercadoria de consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade”. Como
explica Bauman,
Tornar-se e continuar sendo uma mercadoria vendável é o mais poderoso motivo de preocupação do consumidor, mesmo que, em geral, latente e quase nunca consciente. [...] Fazer de si mesmo uma mercadoria vendável é um trabalho do tipo faça-você-mesmo e um dever individual. (BAUMAN, 2008, p.76)
Considera-se, portanto, que, na sociedade do consumo, o próprio consumidor
é visto como um autêntico “objeto” de consumo, responsável por se autofabricar
segundo os moldes desenvolvidos e impostos pelo mercado.
Considera-se, ainda, que se tornar um “objeto” de consumo de alta
vendabilidade é pré-requisito para se tornar um consumidor não falho, ou um autêntico
consumidor consumista, e o raciocínio traçado é o seguinte: o meio por excelência de
se consumir é o dinheiro; numa sociedade capitalista, o meio mais disseminado de se
ganhar dinheiro é o trabalho assalariado; o trabalho assalariado encontra-se sujeito
às leis da oferta e procura do mercado de trabalho; o mercado de trabalho, altamente
competitivo que é, atua segundo critérios de seleção que levam em consideração,
sobretudo, o nível de qualificação do potencial empregado; a qualificação profissional,
segundo a filosofia capitalista, é um “investimento” que cabe ao trabalhador realizar
em si próprio, munindo-se de títulos, referências e experiências que o tornem
desejável ou, pelo menos, vendável perante o mercado; só assim, investindo em si
117
próprio e colocando-se “à venda”, como se objeto fosse, é que se alcançará um
emprego, uma renda, e, por conseguinte, um poder de consumo minimamente
satisfatório.
Assiste-se, pois, a uma intensificação da reificação do trabalhador, que, a fim
de ingressar no universo social por meio do consumo, precisa, antes de tudo, de
renda. E para auferir renda, à grande massa, que desprovida dos meios de produção
depende de um emprego para tanto, resta assumir uma postura competitiva e se
submeter a um processo constante de “autodestruição criativa”, qualificando-se e
requalificando-se incessantemente para ingressar no mercado de trabalho e,
sobretudo, para nele permanecer.
Acerca desse processo reificante de “autodestruição criativa”, imposto ao
trabalhador em sede de modernidade líquida, apresentam-se as seguintes
considerações:
Na contemporaneidade, aprofunda-se a reificação dos trabalhadores, os quais são tratados como coisas: mercadorias a serem reinventadas ao menor custo possível – ou, contrariando o princípio da alteridade, mesmo a custo zero para o empregador – de forma a extrair deles a máxima mais-valia possível. De um lado, os trabalhadores despendem tempo e dinheiro em sua qualificação e não lhes é dada a oportunidade de reaver o investimento realizado; de outro, as empresas seguem partilhando, de forma discreta e legitimada, os custos do seu empreendimento com seus empregados. O trabalhador é levado a “investir em si mesmo” quando na verdade está gastando seus recursos próprios na qualificação exigida por e para o mercado, entidade alheia ao trabalhador. E, mesmo passado o momento crítico da contratação, ele precisa continuar o “investimento”, sob pena de: (a) ser preterido em processos de progressão na carreira por um colega de trabalho mais “engajado com a empresa”; (b) ser substituído por um novo trabalhador a ser contratado; ou mesmo (c) ser discriminado e retaliado pelos colegas de equipe, no ambiente competitivo interno alimentado pelas próprias empresas. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.48)
Perceba-se, pois, que, ao contrário do que possa parecer, em uma sociedade
de consumidores, o trabalho assalariado, em virtude do seu consectário lógico, o
salário – pressuposto material para o consumo –, tornou-se ainda mais fundamental.
Fundamental até mesmo no sentido jurídico do termo, que leva em consideração o
alto grau de imbricação que um instituto ou direito mantém com a dignidade humana.
Aliás, foi reconhecendo o seu caráter fundamental e o seu valor social que a
Constituição Federal brasileira de 1988 (CF/1988), em seu artigo 1º, inciso IV, alçou
o trabalho à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito. Foi, ainda,
118
em virtude dessa sensibilidade perante o caráter fundamental do trabalho que, no
artigo 7º da CF/1988, foram elencados diversos direitos fundamentais trabalhistas.
Sobrelevando ainda mais o caráter fundamental do trabalho, realça-se a
existência de corrente doutrinária, da qual o jurista brasileiro Ingo Wolfgang Sarlet é
um adepto, que não só considera fundamentais os direitos trabalhistas, como os
enquadra na categoria de cláusulas pétreas, isto é, direitos e garantias constitucionais
de relevância máxima, que “se encontram blindados contra a atuação do poder de
reforma da Constituição”. (SARLET, 2016, p.28)
Deve-se reforçar, contudo, que reconhecer o trabalho como uma categoria
fundamental não representou uma novidade introduzida pela sociedade de
consumidores. Ao início deste estudo, demonstrou-se que, apesar das acepções
positivas e negativas das quais já foi vítima, o trabalho sempre desempenhou papel
central na vida humana – ainda que somente no âmbito privado, como ocorria durante
a pré-modernidade.
Como visto, foi em sede de modernidade, com o advento da Revolução
Industrial, que a centralidade do trabalho tornou-se evidente no âmbito público, de
modo que trabalhar, por influência do ascetismo protestante, tornou-se sinônimo não
só de dignificação no plano terreno, como de “salvação” no plano divino. Mas,
considera-se que foi com a reestruturação produtiva do capital e a consequente
consolidação da sociedade do consumo que o trabalho, principalmente o assalariado,
fortemente vinculado à noção de renda, atingiu o ápice da sua essencialidade no plano
material.
Partindo dessa constatação, importante esclarecer que, não obstante o ser
humano permaneça buscando no trabalho a consecução de metas de ordem imaterial,
como reconhecimento, status e realização pessoal, parte significativa desses
objetivos, num contexto de sociedade de consumo – na qual a principal fonte de
identidade e reconhecimento social é o consumo – traduzem-se em objetivos
materiais. Por uma lógica silogística, o que se pretende dizer é que, se preciso ter
para ser e se preciso trabalhar para ter, mais que nunca, trabalhar é fundamental para
ser – ou para um constante “vir a ser”, em se tratando de modernidade líquida.
(TEODORO; RIBEIRO, 2016, p. 72-73)
Perceba-se, pois, que o raciocínio aqui traçado, ao mesmo tempo em que
busca reforçar o caráter fundamental do trabalho no bojo da sociedade do consumo,
tendo em vista ser ele a fonte de renda e de consumo por excelência, acaba
119
convergindo para a seguinte percepção: de que o trabalho assume um caráter
instrumental cada vez mais evidente, regendo-se por uma racionalidade econômica
cada vez mais impositiva e agressiva do ponto de vista humano.
Reconhecendo-se, pois, que é a racionalidade econômico-instrumental que
rege, com predominância, o trabalho na sociedade do consumo, Antunes pondera que
a injeção de ideais e valores da qual todos os indivíduos, vistos como potenciais
consumidores, tornaram-se vítimas, destina-se a enaltecer o consumo, favorecendo,
assim, o engajamento do trabalhador ao espírito do que denomina “capitalismo
manipulatório”26. Assim, o “ser-que-trabalha” estaria, mais que nunca, com a sua
capacidade cognitiva crítica comprometida pela tempestade ideológica de utopias de
mercado, entregando-se ao capital de corpo, mente e alma. (ANTUNES apud
TEODORO; RIBEIRO, 2016, p. 74)
Por tais razões, considera-se que, no âmbito especificamente das relações de
emprego, muito além de uma subordinação técnica, jurídica ou estrutural, torna-se
ainda mais influente a dependência de viés econômico do empregado em relação ao
seu empregador, haja vista que atender às suas necessidades e desejos materiais
passa a ser a finalidade precípua de todo trabalhador que, respondendo aos estímulos
do mercado, tende a priorizar o seu papel social de consumidor. (TEODORO;
RIBEIRO, 2016, p. 74)
Neste sentido, Canclini (apud TEODORO; RIBEIRO, 2016, p.74) destaca que
o sentimento de pertencimento é construído por meio do consumo, que, influindo
sobre nossas referências de identidade, afeta não somente a nossa identificação com
certos hábitos culturais, mas também no modo como atuamos enquanto atores
políticos nos locais dos quais sentimos parte ou dos quais gostaríamos de participar.
Assim, segundo o autor, estaríamos diante de um processo de inversão da lógica
emancipatória, produzida cada vez menos pelo sentimento de pertencimento a uma
26 Ao utilizar o termo “capitalismo manipulatório”, Ricardo Antunes busca realçar uma importante tendência no mundo do trabalho pós reestruturação produtiva: a prevalência do trabalho de ordem imaterial, que, segundo o autor, “possui uma interseção clara entre a esfera da subjetividade do trabalho (seu traço mais propriamente intelectual e cognitivo) e o processo produtivo, que obriga frequentemente o trabalhador a “tomar decisões”, “analisar as situações”, oferecer alternativas frente a ocorrências inesperadas”. Inserido nesse contexto, o trabalhador é condicionado a “converter-se num elemento de ‘integração cada vez mais envolvido na relação equipe/sistema’ “, o que favorece a sua doação ao capital não só de corpo, mas também de mente e alma. O resultado desse processo é a “construção de uma subjetividade inautêntica”, totalmente voltada para a valorização e autorreprodução do capital. (ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. 2.ed. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 125-128).
120
classe trabalhadora e cada vez mais pelo sentimento de pertencimento a uma
determinada “classe” de consumidores.
A respeito dessa tendência de deslocamento do eixo das referências de
pertencimento para o plano do consumo, Baudrillard considera que, assim como a
escola, “o consumo é instituição de classe”; considera, ainda, que o consumo institui
classes por meio de um sistema de diferenciação que não se resume à desigualdade
no sentido econômico, ou à “desigualdade perante os objectos”. Assim, explica o autor
que,
[...]em suma, nem todos possuem os mesmos objetos, da mesma maneira que nem todos têm idênticas possibilidades escolares – mas, de modo ainda mais profundo, há discriminação radical, no sentido de que só alguns ascendem à lógica autónoma e racional dos elementos do ambiente (uso funcional, organização estética, realização cultural) [...] (BAUDRILLARD, 2011, p.64)
Segundo o referido autor, para além da lógica econômica de produção e
distribuição desigual do consumo, “em que uns têm direito ao milagre e outros apenas
às migalhas do milagre”, existe uma “lógica social do consumo”, que “não é a lógica
da satisfação, mas a lógica da produção e da manipulação das significantes sociais”.
É na perspectiva dessa lógica social, ensina Baudrillard, que o processo de consumo
pode ser analisado sob os seguintes dois aspectos fundamentais:
1.Como “processo de significação e de comunicação”, baseado num código em que as práticas de consumo vêm inserir-se e assumir o respectivo sentido [...]. 2.Como “processo de classificação e de diferenciação social” em que os objetos/signos se ordenam, não só como diferenças significativas no interior de um código, mas como valores estatutários27 no seio de uma hierarquia. Nesta acepção, o consumo pode ser objeto de análise estratégica que determina o seu peso específico na distribuição dos valores estatutários (com implicação de outros significantes sociais: saber, poder, cultura, etc.) (BAUDRILLARD, 2011, p.66)
Partindo, pois, da premissa de que o consumo institui um novo “processo de
classificação e de diferenciação social”, responsabilizando-se pelo enquadramento
em estamentos sociais, torna-se possível compreender o porquê de as pessoas,
27 Entende-se que o termo “estatutário”, utilizado na língua portuguesa de Portugal pelo tradutor da obra “A sociedade de consumo”, de Jean Baudrillard, deve ser compreendido conforme a seguinte definição, retirada do” Dicionário online de português”: “Que se pode referir ao estado ocupado por um indivíduo numa sociedade, classe, organização, hierarquia, etc.”. Definição retirada do site Dicionário Online. Disponível em: https://www.dicio.com.br/estatutario/.Acesso em: 10 out. 2017.
121
inconscientemente, preocuparem-se tanto com o padrão de consumo: é por meio dele
que se alcança visibilidade social; é também por meio dele que se é socialmente
julgado e classificado.
E ao se dizer que essa centralização da preocupação e das expectativas no
consumo é fruto de um processo, em geral, inconsciente, pretende-se realçar que,
subjacente ao comportamento aparentemente natural de culto ao consumo, existe
uma espécie de “treinamento” ideológico, que, segundo Bauman (2008, p. 73), é
exercido sobre os membros da sociedade de consumidores desde a infância e por
toda a vida, com vistas a treinar o seu espírito – “deixando a administração dos corpos
ao trabalho individual do tipo faça-você mesmo, supervisionado e coordenado de
forma individual por indivíduos espiritualmente treinados e coagidos”.
De fato, tudo isso leva a crer que, numa sociedade na qual, nas palavras de
Bauman (2008, p.73), “o consumo visto e tratado como vocação é ao mesmo tempo
um direito e um dever humano universal que não conhece exceção”, existe uma gama
de indivíduos que, movidos pelos valores impostos pelo mercado na forma de desejos,
fetiches, produtos e serviços do tipo “você precisa ter”, buscam no emprego nada mais
que um mecanismo de acesso ao consumo.
Realça-se que não se contesta aqui o fato de ser, sim, o emprego um
mecanismo, um instrumento, um meio para o consumo, do mais básico ao mais
supérfluo. O que se busca demonstrar é que reduzir o emprego a um meio para o
consumo, isto é, percebê-lo unicamente como um mecanismo de satisfação de
pretensões consumeristas, secundarizando ou mesmo desprezando as formas
subjetivas de satisfação que ele poderia proporcionar enquanto um fim em si mesmo,
é uma estratégia do capital que vem sido alcançada com êxito: fazer com que o próprio
trabalhador, “dando as mãos ao capital”, reforce o processo de racionalização
econômica do seu trabalho – tão relevante sob o prisma econômico e tão devastador
sob o prisma humano, conforme se demonstrará.
Sobre essa questão, Gorz (2003, p.109) ensina que “a racionalização
econômica começa com o cálculo contábil” e que, “enquanto permanecem infensas
ao cálculo, as atividades humanas não são passíveis de serem dominadas pela
racionalidade econômica: confundem-se com o tempo, com o movimento, com o ritmo
da vida”. Ilustrando um cenário do “tipo ideal”, no qual o trabalho não estaria sujeito à
racionalidade econômica, o autor apresenta a seguinte situação:
122
Enquanto planto, em meu pedacinho de terra, aquilo que me alimenta, a mim e à minha família, um burro e duas cabras, enquanto corto a madeira e com ela cozinho e me aqueço porque há madeira no talude e na mata vizinha, meu trabalho está longe da racionalidade econômica: levo o tempo que preciso para fazer e quando o necessário está garantido, o trabalho dá lugar ao lazer. (GORZ, 2003, p.109)
As coisas mudam de forma, continua Gorz, “a partir do momento que não mais
produzo para o autoconsumo, mas para o mercado. Então, é preciso que aprenda a
calcular: é mais vantajoso, levando em conta a qualidade da minha terra, produzir
verduras ou batatas?” Nesse novo contexto, de produção para o mercado, todo
trabalho que vise proporcionar meios de se “viver convenientemente” deve ser
calculado e a vida do trabalhador passará, portanto, a ser “organizada em função
desse cálculo, segundo um tempo linear, homogêneo, insensível aos ritmos naturais”.
(GORZ, 2003, p. 109)
Desse modo, conclui o autor que o cálculo contábil, adotado como medidor
de eficiência pela sociedade capitalista, é “a forma por excelência de racionalização
reificadora”, que “mede em si mesma a quantidade de trabalho por unidade de
produto, ignorando o vivido: o prazer ou o desprazer que esse trabalho me
proporciona, o tipo de esforço que ele demanda, minha relação afetiva, estética com
a coisa produzida”. (GORZ, 2003, p.109)
Uma vez que dominadas pela racionalidade econômica, as atividades
passam, pois, a serem decididas em função de um cálculo, sem que as preferências,
gostos e aptidões pessoais sejam considerados, ao menos prioritariamente. (GORZ,
2003, p.109) Isso quer dizer que o objetivo central ao se definir um nicho para atuação
profissional e ao se ingressar na busca por um emprego tende a ser encontrar algo
que, primeiramente, “pague bem”. Apenas quando superada esta etapa – o que não
ocorre com facilidade num contexto de mercado de trabalho altamente competitivo –
é que as preferências, habilidades e afeição pela atividade vir a ser consideradas.
A esse respeito, essencial destacar que o que contribui de modo determinante
para que o próprio trabalhador “abrace” esta racionalização econômica do trabalho
proposta pelo capital é a natureza ilimitada das necessidades, característica intrínseca
à sociedade do consumo. Explica Gorz (2003, p.111) que “seria inútil buscar um
rendimento máximo, contar seu tempo, racionalizar o trabalho, quando se pode
atender às necessidades” trabalhando conforme suas preferências e ritmo naturais.
123
Isso é o mesmo que dizer que a natureza limitada das necessidades impediria o
avanço da racionalização econômica.
A fim de exemplificar esta correlação direta entre a natureza ilimitada das
necessidades e a maior propensão à racionalização econômica do trabalho, Gorz traz
a seguinte situação descritiva, retirada da obra “A ética protestante e o espírito do
capitalismo”, de Max Weber:
O homem que recebia, por exemplo, 1 marco para ceifar 1 alqueire, ceifava 2 e ½ e ganhava 2,50 marcos por jornada. Quando a remuneração passava a 1,25 marcos, ele não ceifava mais, como se imaginaria, três alqueires, como podia facilmente fazê-lo, para ganhar 3,75 marcos, mas os 2 alqueires que bastavam a lhe garantir seus 2,50 marcos habituais. O ganho suplementar atraia-o menos que a redução de seu trabalho. Ele não perguntava a si mesmo quanto podia ganhar em um dia se fornecesse o máximo de trabalho possível, mas quanto devia trabalhar para ganhar os 2,50 marcos que recebia até então e que cobriam suas necessidades de hábito. (WEBER apud GORZ, 2003, p. 11).
Desse modo, o capital, dependente de trabalhadores altamente produtivos e
engajados para alcançar os altos níveis de produtividade pretendidos, precisou
impedir a autolimitação das necessidades pelo indivíduo, já que isso significaria –
como ilustrado pela situação acima – a autolimitação pelo trabalhador do seu esforço
e da sua produtividade. Assim, a promoção do ideal consumista, ao atribuir esta
natureza ilimitada às necessidades humanas, a ponto de torná-las indistinguíveis da
categoria volátil e expansiva dos desejos, atendeu perfeitamente ao anseio do capital:
moldar trabalhadores predispostos à racionalização econômica do seu trabalho.
Neste sentido, Gorz, esclarecendo que a vulnerabilidade do trabalhador
perante o ideal consumista é um fenômeno que atinge de um modo amplo e irrestrito
a classe trabalhadora, desde o operário até os trabalhadores “de colarinho branco”,
apresenta as seguintes considerações:
Com efeito, o consumidor alienado é o indivíduo que, em suas necessidades de consumo. Reflete sua alienação como agente de produção. É o trabalhador (manual, intelectual ou “de colarinho branco”) atomizado, dispersado pelas condições de habitat, tornado passivo, submetido à disciplina militar da fábrica, desligado do seu produto, chamado a vender seu tempo, a executar docilmente uma tarefa pré-fabricada, sem preocupar-se com a finalidade do seu trabalho. O consumidor massificado e passivo que a produção capitalista, para poder subordinar-se ao consumo, exige; [...] (GORZ, p.79, 1968)
124
Destaca, ainda, o autor, que este “consumidor-trabalhador” atomizado pelo e
vulnerável ao capital, ao contrário do que se afirma frequentemente, não é criado
completamente por meio da publicidade, do marketing, da moda; tais artifícios
introduzidos pela sociedade do consumo apenas potencializam uma tendência já
gerada no estágio inicial das relações de produção capitalista pelo desligamento do
produtor do seu produto, “voltando esse trabalho contra ele como uma certa
quantidade predeterminada e alheia de tempo e de esforço que aguarda o trabalhador
em função da sua passividade ativa”. (GORZ, 1968, p. 79)
Por todas essas razões é que se entende que a manipulação, ao mesmo
tempo discreta e intensa, do ser humano por seus desejos consumeristas – que, como
visto, não são tão seus assim, vez que criados pelo capital para atenderem,
primariamente, aos caprichos do próprio capital – e a consequente racionalização
econômica do trabalho imposta pelo sistema capitalista, desde o seu nascedouro,
repercutem diretamente na sua vulnerabilidade como trabalhador.
Assim, conforme pontuado por Antunes (apud TEODORO; RIBEIRO, 2016, p.
75), segundo o pensamento de Karl Marx, a liberdade nas relações laborais, de fato,
só reina quando o trabalho não é determinado por necessidades ou utilidades
impostas.
Desse modo, sob o ponto de vista pragmático, se no passado trabalhava-se
para adquirir bens previamente estipulados como necessários, sendo que a qualidade
ou preço do bem a ser adquirido seria determinado pelo poder de compra decorrente
da renda auferida, hoje a situação vivenciada é totalmente avessa.
Na sociedade do consumo, as necessidades e os desejos humanos
encontram-se imiscuídas num complexo processo de espetacularização e passam a
ditar as regras do jogo da vida: a tendência é, pois, que, o indivíduo coloque o seu “eu
trabalhador” à serviço do seu “eu consumidor”, posicionando-se, primeiramente, como
consumidor para, então, posicionar-se como trabalhador, vinculando as suas
condições, quantidade e ritmo de trabalho a um padrão de consumo pré-determinado.
8.2 Do “pão” ao “smartphone de última geração”: a nova lógica interativa entre
trabalho e consumo
Fato é que, imerso numa sociedade na qual desejos e caprichos são postos
como necessidade e na qual o trabalho assalariado tende a ser reduzido a um meio
125
realização do consumo – submetendo-se a uma racionalização econômica sem
precedentes –, quem, há um tempo, trabalhava pelo “pão”, hoje tende a trabalhar pelo
“smartphone de última geração”.
Partindo deste pressuposto, a fim de avaliar as repercussões práticas do
consumismo – que determina uma curva de necessidades infinita e tendencialmente
crescente – sobre o universo das relações de emprego, promoveu-se uma análise
prática comparativa em termos de recursos a serem auferidos, por meio do trabalho
assalariado, para o consumo destes dois itens ilustrativos do básico e do supérfluo: o
pão e o smartphone de última geração.
Então vejamos: um smartphone de última geração, que, hoje, compartilha
espaço com o “pão” na lista básica de “necessidades” da classe trabalhadora, sendo
trocado, em média, a cada 1 ano28, pode custar, conforme consulta realizada pelo
website Google, em 05/10/2017, até R$4.695,00 (valor orçado para um Iphone 8 Plus).
Tudo bem que, no mundo das “parcelas infinitas”, em que se compra – e também se
vive – a crédito e a prazo, este Iphone, se dividido em 12 parcelas, representaria para
o consumidor/trabalhador um gasto mensal de cerca de R$391,25.
Assim, a pessoa que trabalhava para arcar apenas com as despesas do “pão”
é a mesma que, hoje, não satisfeita com o “pão” diário em sua mesa, “precisa” trocar
o seu Iphone anualmente, acrescentando em seu orçamento mensal “X” uma despesa
de aproximadamente R$391,25. Agora, pensando que este indivíduo encontra-se
imiscuído num mercado de trabalho competitivo e que o valor do salário mínimo dos
“tempos do pão” é bem próximo do salário mínimo de hoje, do “tempo do smartphone
de última geração”, os cenários possíveis são os seguintes: a) o indivíduo se torna
endividado; b) o indivíduo passa a trabalhar mais, seja realizando horas extras ou
cumulando empregos, a fim de incrementar a sua renda e arcar com o aumento de
gastos; c) ou, conjugando as opções acima, o indivíduo trabalha mais e ainda assim
se torna endividado.
Ao que tudo indica, a opção “c”, trabalhar mais e, ainda assim, tornar-se
endividado, ingressando na denominada “corrida dos ratos”29, é a mais provável de
28 Disponível em: https://exame.abril.com.br/tecnologia/brasileiro-troca-de-celular-a-cada-1-ano-e-1-mes-em-media/. Acesso em 05 nov. 2017. 29 Robert Kiyosaki, em seu best seller “Pai rico, pai pobre” define a “corrida dos ratos” como um fenômeno caracterizado pelo envolvimento do indivíduo num ciclo no qual trabalha apenas para tentar pagar as contas, repetidamente, por toda a vida, tornando-se refém dos bancos, dos impostos, cartão de crédito. (KIYOSAKI, Robert. Pai rico, pai pobre: o que os ricos ensinam a seus filhos sobre dinheiro. Tradução de Maria José Cyhlar Monteiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000).
126
ocorrer e o fundamento que se apresenta é o seguinte: considerando que o salário
mínimo hora no Brasil, em 2017, equivale a R$4,26, um trabalhador que, recebendo
o adicional legal de 50% eleva o valor da sua hora de trabalho em caráter
extraordinário para R$6,39, precisa realizar pelo menos 61 horas extras no mês para
conseguir arcar com parcela do Iphone, no importe de R$391,25.
Essas 61 horas extras, distribuídas por uma média de 24 dias úteis de trabalho
no mês, equivalem a, pelo menos 2,5 horas a mais de trabalho por dia, o que, do ponto
de vista legal, não é nem mesmo autorizado, haja vista a seguinte previsão do artigo
59 da CLT: “A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas
suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre
empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho”.
Logo, o empregado sujeito a tais condições, que pretenda quitar a parcela do
seu Iphone – sem contar com infortúnios comuns na prática, como o não recebimento
do salário em dia ou o não pagamento das horas extras realizadas com o acréscimo
legalmente devido –, precisará realizar uma jornada diária de pelo menos 10 horas e,
ainda assim, permanecerá não auferindo a complementação total necessária para
quitar a parcela do celular.
Antes de se analisar as repercussões desse cenário sob o prisma humano,
ainda por meio da analogia ao “pão” e ao “smartphone de última de geração”, propõe-
se a seguinte reflexão: o “pão” que era adquirido com os frutos do trabalho não
alterava o status do trabalhador que o consumia, uma vez que ligado à noção de trivial,
pressuposto para a sobrevivência; já o “smartphone de última geração” altera o status
socioeconômico do trabalhador, pois, ainda que vários outros consumidores-
trabalhadores também adquiram o mesmo produto, a sua natureza supérflua,
paradoxalmente, valoriza o indivíduo que, por meio da sua aquisição, ingressa no
“universo daqueles que possuem smartphone de última geração”. Este torna-se o
novo modo por excelência de alocação dos indivíduos nas novas espécies de
“estamentos sociais”, calcados em identidades consumeristas.
Agora vejamos os efeitos de todo esse cenário sob o prisma humano, que é
o que se julga mais relevante. Um trabalhador consumista, sujeito às condições acima
descritas, a fim de sustentar um padrão de consumo socialmente aceitável estará, não
só permitindo, como almejando que o trabalho ocupe quase metade das suas horas
diárias; ou seja, este consumidor médio, no desempenho do seu papel de trabalhador,
estará fortemente condicionado a se sujeitar a quaisquer metas de produtividade,
127
condições e jornadas de trabalho cujo resultado prático imediato seja o recebimento
de uma remuneração mais elevada.
Isso porque o critério primariamente adotado pelo trabalhador que antes
posiciona-se como consumidor, pré-definindo um padrão de consumo a ser
alcançado, a qualquer custo, por meio do seu trabalho, também é o da racionalidade
econômica. Por conseguinte, a tendência instaurada é no sentido de que as demais
espécies de racionalidade, relativas às esferas sensíveis da vida humana,
explicitamente desprezadas pelo capital, tornem-se cada vez mais negligenciadas
pelo próprio ser humano.
A fim de ilustrar a perversidade deste tendencioso ciclo ininterrupto de
“trabalhar para consumir”, sem se chegar a um nível de satisfação que permita ao
consumidor, no seu papel de trabalhador, dosar a sua sujeição ao trabalho, segue o
trecho do depoimento de um autor Charly Boyadijan, operário de uma fábrica de
calçados francesa com jornada de 48 horas semanais, por 6 dias da semana,
apresentado por Gorz:
Você ainda encontra facilmente voluntários para trabalhar aos domingos. Tenho certeza que, em certos momentos, se lhes pedissem para trabalhar sete dias nos sete dias da semana durante o ano todo, no limite, a coisa teria funcionado... E ainda tinha gente que trabalhava depois, “por fora”, por alienação, ou, às vezes, por necessidade, além dos seus próprios turnos. Quando se trabalha 48 horas por semana, entende, a grana vira o truque, a coisa atrás da qual você corre... [...] Você tem um pouco mais de grana, então vai comprar um monte de troço, o que puder, você vai comprar qualquer tranqueira. Você corre atrás do dinheiro e no fim ele não serve pra grande coisa. Não te faz ganhar tempo, essa grana, você acaba é perdendo de monte: para ganhar, vamos dizer, dez minutos num troço que você faz todos os dias, vai perder uma hora por dia no trampo para pagar a coisa, é uma loucura. Mas, no fim, você está satisfeito com a coisa. (BOYADIJAN apud GORZ, 2003, p.118).
O mesmo autor e operário, descreve, ainda, o esgotamento físico e mental
que aniquilava a sua vida conjugal, degradando as suas relações sexuais com a
esposa em virtude da sensação de estar sempre física e psicologicamente
“arrebentado”, sem capacidade de racionar. (BOYADIJAN apud GORZ, 2003, p. 118).
A esse respeito, realça-se que, acompanhando a intensificação da
racionalização econômica do trabalho na sociedade do consumo, os índices de
adoecimento mental no interior das relações laborais, a nível internacional, elevaram-
se assustadoramente. Assim, num contexto marcado pela sobrecarga psíquica dos
empregados, submetidos a níveis máximos de auto cobrança e inseridos em
128
ambientes de trabalho altamente estressantes, os prejuízos suportados pelo
trabalhador passaram a transcender, cada vez mais, a esfera física, atingindo
profundamente a sua saúde mental. Veja-se:
Seja pelo clima de insegurança instaurado em virtude dos processos de redução do quadro de pessoal, pelo excesso de responsabilidades assumidas, pela autocobrança desmedida ou pela incapacidade de separar tempo de trabalho do tempo de não trabalho – fundindo-se vida pessoal com vida profissional -, o trabalhador pós-moderno encontra-se inserido em um ciclo vicioso de acúmulo de estresse, principal combustível para o adoecimento psíquico. (JANNOTTI; RIBEIRO, 2016, p. 1207)
Dados colhidos pelo Ministério da Saúde do Brasil30, em 2001, revelaram que
os transtornos mentais “menores” – aqueles mais frequentes e menos graves ao
tempo do diagnóstico –, acometiam cerca de 30% dos trabalhadores ocupados, e os
transtornos mentais graves, cerca de 5 a 10%. Consequentemente, no Brasil, a
concessão de benefícios previdenciários de auxílio-doença e de aposentadoria por
invalidez em decorrência de transtornos mentais, com destaque para o alcoolismo
crônico, já ocupavam, nesse mesmo período, o terceiro lugar entre as causas de tais
ocorrências.
Em 2013, dados veiculados pela Agência Brasil31atestaram que dos 166,4 mil
auxílios-doença concedidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), cerca de
15,2 mil deviam-se a problemas mentais, sendo a depressão o principal deles, com
mais de 5,5 mil casos devidamente diagnosticados. Apenas um ano depois, em 2014,
conforme dados divulgados pela CBN32 e pela Revista CIPA33, cerca de 220 mil
indivíduos já haviam recebido auxílio-doença em virtude do acometimento por
doenças mentais.
Todas essas estatísticas convergem, portanto, para a constatação de que o
adoecimento mental, que vem atingindo milhares de trabalhadores brasileiros em
30Informações retiradas do site do Ministério da Saúde. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/partes/doencas_trabalho1.pdf Acesso em: 20 mar. 2016. 31Informações retiradas do site da Agência Brasil. Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-04-23/doencas-do-trabalho-matam-2-milhoes-por-ano-no-mundo-diz-oit Acesso em: 20 mar. 2016 32Informações retiradas do site da CBN. Disponível em: http://cbn.globoradio.globo.com/editorias/ciencia-saude/2015/03/07/MAIS-DE-200-MIL-PESSOAS-NO-BRASIL-RECEBERAM-AUXILIO-DOENCA-POR-TRANSTORNOS-MENTAIS-EM-20.htm Acesso em: 17 mar. 2016 33Informações retiradas do site da Revista CIPA. Disponível em: http://revistacipa.com.br/mais-de-200-mil-pessoas-no-brasil-receberam-auxilio-doenca-por-transtornos-mentais-em-2014. Acesso em: 17 mar. 2016.
129
forma de histeria, depressão, estresse pós-traumático, alcoolismo crônico,
dependência química, síndrome de burnout ou do esgotamento profissional, dentre
outros quadros clínicos – aptos a causarem incapacidades laborais temporárias ou
definitivas e, nos casos mais extremos, provocar suicídios – é uma realidade
incontestável no bojo da sociedade do consumo. (JANNOTTI; RIBEIRO, 2016, p.
1.207)
Diante deste cenário de comprometimento direto da saúde humana em
decorrência da sujeição ao quase dogma imposto no sentido de se ”trabalhar muito
para consumir muito”, Gorz, considerando que tal obsessão pelo trabalho e pelo
ganho beira a irracionalidade, assumindo “para o operário o mesmo sentido que a
paixão do cálculo econômico no nascimento do capitalismo”, apresenta a seguinte
reflexão:
Sua vida é toda traçada, o trabalho é uma concha protetora, ‘tudo é regrado em teu lugar’, a questão do sentido e da finalidade é resolvida de antemão: posto que não há lugar na vida do trabalhador para outra coisa senão trabalhar pelo dinheiro, o fim só pode ser o dinheiro. Na falta de tempo para viver, o dinheiro é a única compensação ao tempo perdido, à vida desperdiçada no trabalho. (GORZ, 2003, p. 119-120)
Assim, conclui Gorz (2008, p.120) que é por esse motivo que o “trabalho
jamais será pago suficiente; mas, por isso também, o dinheiro ganho pelo trabalho é
originariamente percebido como valendo mais que a vida que se teve de sacrificar a
ele”.
Neste sentido, considera-se que, no plano prático das relações de emprego,
a legitimação da racionalização econômica do trabalho naturaliza o ideal de se
trabalhar tão somente pelo dinheiro, em velocidade, quantidade e modo determinados
pelas ambições consumeristas do trabalhador, sempre variáveis e tendencialmente
crescentes.
Considera-se, ainda que, talvez por essa razão, seja algo tão enraizado nos
dias de hoje a trivialização da jornada extraordinária, a realização de plantões
consecutivos pelos profissionais da saúde, a conciliação de empregos ou “bicos” em
turnos distintos e, até mesmo, a afeição pelos adicionais noturno, de insalubridade e
periculosidade, que representam um modo juridicamente legítimo de se “comprar” o
direito de violentar a saúde do trabalhador.
130
Conforme já pontuado, tudo isso não quer dizer, de modo algum, que o
trabalho tenha deixado de ser central, tanto na vida pessoal quanto na esfera social.
Mas, talvez, diante de tanto imediatismo e incerteza, tenha se tornado superficial, mais
fonte de renda do que de realização, mais um instrumento de status social do que um
fim em si mesmo. E, talvez, essa também seja uma das razões pelas quais o Direito
do Trabalho, lamentavelmente, venha sendo alvo de tantas medidas flexibilizatórias,
assumindo um caráter cada vez mais raso, patrimonialista e reificador em relação ao
trabalho e, sobretudo, ao trabalhador.
8.3 Direito do Trabalho ou “Direito reificador do trabalho”? Para além de um
novo espírito, uma crise ética
A partir de todas as considerações até então traçadas acerca das novas
interações entre trabalho e consumo, dois dos grandes pilares da existência humana
e da vida em sociedade, buscou-se demonstrar que, numa sociedade fundada
predominantemente no consumo, o trabalho permanece central e assume caráter
ainda mais essencial; contudo, a sua centralidade e a sua essencialidade convergem
cada vez mais para o campo material, para a viabilização de uma satisfação que tende
a se realizar na esfera do consumo.
Foi esta constatação que conduziu à afirmação de que o trabalho está sujeito
a uma racionalização econômica sem precedentes na sociedade do consumo, o que,
como visto, repercute em ganhos valiosos para o capital e em perdas irreparáveis para
o ser humano, sobretudo do ponto de vista mediato.
Buscar no emprego a construção da identidade, reconhecimento social,
status, afeto e realização profissional não é algo que não mais exista; mas é algo que,
quando vem a existir, tende a existir apenas em segundo plano; o que uma sociedade
de consumidores, de fato, parece priorizar é o retorno financeiro que será obtido por
meio daquele emprego, já que é por meio dele que o seu padrão de consumo estará
garantido.
No plano fático das relações empregatícias, essa racionalização econômica
repercute de tal modo que o capital passa a contar com o apoio do próprio trabalhador
para atingir os fins de produtividade e lucratividade máximas, já que todo esforço extra
131
no trabalho passível de ser compensado monetariamente interessa sobremaneira ao
“consumidor-trabalhador”34.
Neste sentido, ensina Gorz (2003, p.53) que os “consumos compensatórios”,
propostos pelo sistema aos trabalhadores como meio de lhes fazer aceitar a
funcionalização ou racionalização econômica do seu trabalho, tornaram-se os fins:
“não se deseja mais os bens e serviços mercantis como compensações ao trabalho
funcional, deseja-se obter trabalho funcional para pagar o consumo das mercadorias”.
Assim, o fenômeno do consumismo adquire uma eficácia que ultrapassa os
próprios propósitos iniciais do capital, provocando uma “verdadeira mutação cultural”,
à medida que
O dinheiro ganho permite uma forma de satisfação mais importante que a perda de liberdade que implica o trabalho funcional. O salário torna-se o fim essencial da atividade, a tal ponto que passa a ser inaceitável uma atividade que não receba em troca uma compensação monetária. O dinheiro suplanta os outros valores para tornar-se a única medida dessas atividades. (GORZ, 2003, p. 53)
Diante desta transformação de ordem cultural, as aspirações e os valores não
econômicos, não quantificáveis, passaram, pois, a se distanciar cada vez mais do
mundo do trabalho. Segundo Gorz (2003, p.84), isso quer dizer que a sociedade
assiste a um abrupto afastamento entre a “cultura do cotidiano” e a “cultura
profissional”, tornando rara a realização de um trabalho humanamente satisfatório,
que seja percebido pelo trabalhador como uma fonte de enriquecimento não apenas
material, mas também pessoal.
A respeito do distanciamento do trabalho da “vocação ética” do ser humano,
pondera Bauman que o trabalho adquiriu uma “significação principalmente estética”,
de modo que
Poucas pessoas apenas – e mesmo assim raramente – podem reivindicar privilégio, prestígio ou honra pela importância e benefício comum gerados pelo trabalho que realizam. Raramente se espera que o trabalho “enobreça” os que os fazem, fazendo deles “seres humanos melhores”, e raramente alguém é admirado ou elogiado por isso. A pessoa é medida e avaliada por sua capacidade de entreter e alegrar, satisfazendo não tanto a vocação ética do produtor e criador quanto as necessidades e desejos estéticos do
34 Por meio do termo “consumidor-trabalhador”, que se contrapõe ao tradicional “trabalhador-consumidor”, busca-se enfatizar a tendência líquido-moderna de que, primeiramente, o indivíduo se reconheça e se posicione como consumidor, pré-determinando o seu padrão de consumo, para então se posicionar como trabalhador.
132
consumidor, que procura sensações e coleciona experiências. (BAUMAN, 2008, p. 176)
Considera-se que essa tendência de desvinculação do trabalho dos valores
ético-profissionais, como o talento e a vocação, está diretamente relacionada ao fato
de que o postulado do “quanto me basta” – que, até a consolidação da sociedade
industrial, representava o ideal seguido pelos “trabalhadores-consumidores”,
habituados a não trabalharem mais do que o necessário para garantir “o suficiente” –
, não mais costuma guiar as escolhas do “consumidor-trabalhador”, adepto do
postulado do “quanto mais melhor” – o que implica dizer que a medida geralmente
utilizada para se avaliar o quão “bom” ou “ruim” é ou pode ser um emprego é o cálculo
contábil, ou seja, o quanto ele rende ou poderá render monetariamente ao trabalhador.
Neste contexto, a reificação do trabalho – imposta pelo capitalismo desde o
momento em que, concentrando os meios de produção, impôs a uma grande massa
a necessidade de vender a sua força de trabalho para auferir meios de subsistência –
, é intensificada com a ajuda do próprio trabalhador, que, engajado na tarefa de
maximizar o seu poder pessoal de consumo, rende-se muito mais facilmente à lógica
contábil e às exigências de produtividade máxima do capital.
Assim, pode-se dizer que o nível de vulnerabilidade do ser humano no plano
do consumo tende a manter uma relação de proporcionalidade direta com a sua
vulnerabilidade no plano das relações de trabalho, de modo que um consumidor
altamente vulnerável diante das ideologias do consumo será, muito provavelmente,
um trabalhador altamente vulnerável diante das vontades do capital.
Bauman (2008, p.17) refere-se a esse grupo de trabalhadores vulneráveis ou
flexíveis diante das imposições do capital como “trabalhadores chateação zero”,
nomenclatura usualmente utilizada entre os empregadores no Vale do Silício, nos
Estados Unidos, para definir o empregado que está sempre “disponível para assumir
atribuições extras, responder a chamados de emergência ou ser realocado a qualquer
momento”.
Este é um claro exemplo de que a reificação, não só do trabalho, mas também
do trabalhador, vem sendo promovida, no plano das relações de emprego, com ainda
mais afinco pelos empregadores, que se valendo da predisposição do trabalhador
para “vender” o seu esforço mesmo para além dos limites que pode suportar – física
e psicologicamente – acaba ampliando as jornadas e elevando as metas de
produtividade, intensificando a exploração sem mesmo assumirem o estigma de
superexploradores.
133
E é exatamente neste ponto que entra em cena – ou deveria entrar – o Direito
do Trabalho. Investido, originariamente, de uma função social e humanizadora das
relações de emprego, o grande mote das normas trabalhistas, não deve, jamais,
afastar-se da preservação da dignidade humana do trabalhador.
Como visto, o surgimento do Direito do Trabalho não representou um “luxo”
ideológico – mera concessão de um Estado interessado em agraciar a classe
trabalhadora –, mas uma necessidade real. Foram as lutas travadas pelos
trabalhadores contra a exploração vivenciada no plano fático que levaram o ente
estatal a reconhecer que, num contexto no qual a livre regulação das relações
trabalhistas significava fome, miséria, doenças, deformações e mortes, a imposição
de um conjunto mínimo de normas trabalhistas era necessária para frear a exploração
da força de trabalho, impedindo a própria degradação da existência humana.
Foi, portanto, a partir dos fundamentos históricos que ensejaram o seu
surgimento que, ao se investigar o espírito do Direito do Trabalho, chegou-se à
conclusão de que, apesar de não estar investido de uma força propriamente
contestatória da lógica do capital, o ramo justrabalhista encontra-se imbuído de um
caráter reformista perante a realidade de exploração desenfreada da força de
trabalho. Assim, terminologias apresentadas no decorrer deste estudo (mais
precisamente no item 5.3), como “elemento estabilizador da sociedade capitalista”,
“instrumento de justiça social”, “instrumento de correção das distorções do mercado”,
“natureza protetivo-retificadora” e “fator de contrapeso”, definem, em conjunto, o que
se denomina espírito – ou essência fundante, justificadora e norteadora – do Direito
do Trabalho.
O próprio legislador constituinte, conforme discutido, reconheceu essa
imbricação do Direito do Trabalho com as questões humanas e sociais quando
elencou como fundamento do Estado Democrático de Direito, no artigo 1°, inciso IV,
juntamente com a dignidade humana, o “valor social do trabalho”.
Contudo, no plano prático, sempre se assistiu a uma distorção desse
compromisso social e humanizador do Direito do Trabalho, promovida tanto em âmbito
estatal, pela imposição de diversas normas que sobrelevam o aspecto material e
monetário da relação de emprego, como em âmbito privado, pelo descumprimento
134
rotineiro e reiterado de direitos trabalhistas fundamentais, que constituem um
“patamar mínimo civilizatório”35 em prol do trabalhador.
No plano da CLT, desde a sua instituição, tem-se exemplos de normas que
reduzem ao cálculo contábil direitos que guardam relação direta com a dignidade
humana. Considera-se que o mais expressivo deles é a instituição dos adicionais de
insalubridade e periculosidade, prevista pelos artigos 192 e 193 da CLT.
Não obstante ter a Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso XXII,
instituído em favor dos trabalhadores o direito de redução dos riscos inerentes ao
trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança, o legislador ordinário
consentiu com a possibilidade de se expor um empregado a condições insalubres e
perigosas, estabelecendo, em contrapartida, o pagamento de um adicional – irrisório
em termos quantitativos –, a fim de se compensar, monetariamente, a ofensa à saúde
do trabalhador. (ROCHA; RIBEIRO, 2015, p.280)
Tornando ainda mais incoerente do ponto de vista social e humano os
institutos dos adicionais de insalubridade e periculosidade, o legislador ainda
determinou que, em caso de uma exposição simultânea do empregado a agentes
insalubres e perigosos, não há o direito de se perceber cumulativamente os
respectivos adicionais. Ou seja: o empregador é, de certo modo, “premiado” por
sujeitar o trabalhador a condições que comprometem duplamente a sua saúde e
integridade, arcando com os custos compensatórios referentes a apenas uma das
ofensas promovidas.
Realça-se que, a esse respeito, já existe corrente jurisprudencial no âmbito do
Tribunal Superior do Trabalho, que, valendo-se de uma interpretação constitucional
do Direito do Trabalho ou da aplicação de normas internacionais, sobretudo da
Convenção 155 da OIT, entende possível a cumulação dos adicionais de
insalubridade e periculosidade. (ROCHA; RIBEIRO, 2015, p.281-282). Contudo,
mesmo diante deste entendimento indiscutivelmente favorável ao trabalhador, é o
aspecto monetário que ainda permanece em foco; a impossibilidade de se expor um
empregado a agentes que colocam em risco a sua saúde e a sua vida permanece
incogitada pelo ordenamento jurídico-trabalhista brasileiro.
No âmbito do próprio Judiciário trabalhista, o caráter essencialmente
patrimonial que se busca conferir aos direitos laborais é ratificado pela tendência de
35 Termo consagrado pelo jurista brasileiro Maurício Godinho Delgado.
135
monetização das tutelas jurisdicionais. A Justiça do Trabalho, avaliada
predominantemente em números, isto é, também sujeita à medição da sua eficiência
por meio de cálculos contábeis, é induzida a firmar acordos que, geralmente, avaliam
as lesões potencialmente sofridas pelo empregado jurisdicionado apenas sob a ótica
patrimonial. Pouco importa se a honra, a dignidade, a integridade física ou a saúde
mental foram violadas: tudo se resolverá mediante o pagamento de um valor friamente
estipulado.
Sob o prisma do empregador, isso quer dizer que a redução do
descumprimento de um direito fundamental trabalhista ao dever de pagamento de
uma quantia não tem o poder de exercer sobre ele qualquer função pedagógica,
inibidora e tampouco penalizante. O resultado prático é o cenário atualmente
vivenciado, marcado por um descumprimento contumaz e massivo dos direitos
trabalhistas. (PIMENTA e RIBEIRO, 2017, p.72).
Por razões como estas é que se considera que, tanto o Direito do Trabalho
quanto a Justiça do Trabalho, tachados de “hiperprotetores”, talvez, não atuem nem
mesmo protegendo o trabalhador, se compreendermos o verbo proteger no sentido
de “resguardar”. Uma atuação que promova a proteção no sentido de resguardo, a fim
de impedir ou evitar que a lesão ocorra, não parece ser a regra nem no âmbito do
Direito do Trabalho, nem no âmbito da Justiça do Trabalho – que, em virtude da pouca
utilização das tutelas inibitórias, acaba sendo acionada, usualmente, apenas no
momento pós lesão.
No plano do Direito do Trabalho, essa atuação falha no sentido de resguardar
o trabalhador, evidenciada, por exemplo, pelos institutos dos adicionais de
insalubridade e periculosidade, que autorizam a violência à saúde e à segurança do
trabalhador por meio de uma pretensa ”compensação” financeira, denotam, pois, a
tendência de racionalização econômica de direitos trabalhistas fundamentais que
guardam íntima relação com as esferas mais sensíveis da vida humana.
Ainda no campo da mercantilização da saúde do trabalhador, outro exemplo
prático desta tendência reificadora do Direito do Trabalho, de tratar como “coisas
compráveis” atributos humanos sensíveis, consiste na trivialização da jornada
extraordinária, que tornando habitual a extensão da jornada de trabalho naturalizou a
possibilidade de se “comprar” porções cada vez mais significativas do tempo de lazer,
de descanso e de recuperação do trabalhador.
136
E, conforme já pontuado, no bojo da sociedade do consumo, o que se
considera mais grave é que, não raramente, o próprio trabalhador cria uma afeição
por institutos como os que foram aqui mencionados – adicionais de hora extra, de
insalubridade e periculosidade – já que, do ponto de vista imediato, eles representam
ganhos econômicos extras em seu orçamento, que serão revertidos em consumo.
Entende-se, portanto, que a supervalorização dos direitos trabalhistas de
expressão econômica é algo que se encontra enraizado na “(in)cultura” do trabalho,
reinante na sociedade capitalista. Mas é algo que se tornou ainda mais evidente e
naturalizado sob o paradigma de uma sociedade na qual os trabalhadores se auto
reconhecem, primordialmente, como consumidores, priorizando a esfera patrimonial
de suas vidas e condicionando o trabalho à satisfação de um leque de necessidades
cada vez mais sofisticadas e expansivas.
No plano contratual das relações de emprego, isso implica considerar que o
contrato de trabalho escapa ainda mais da própria zona de adesão, haja vista que o
atual sistema de necessidades (que inclui a categoria dos desejos), complexo, volátil
e impositivo, exerce um poder manipulatório ainda mais incisivo sobre o psíquico do
“consumidor-trabalhador”.
Assim, ao firmar um contrato com determinado empregador, considera-se que
o elemento “vontade” cede cada vez mais espaço ao elemento “necessidade”, uma
vez que o trabalhador o faz porque, de fato, precisa, mais que nunca, “vender” a sua
força de trabalho para se inserir no universo do consumo e, só então, realizar as
aspirações materiais e imateriais que o tornarão minimamente visível no campo social.
Nesta linha, Viana e Teodoro fazem as seguintes considerações:
Como vimos, nem o consumo, nem o trabalho por conta alheia se desgarram do elemento necessidade. Cada vez mais, o ser humano necessita consumir para viver, e, para tanto, precisa trabalhar. Torna-se, portanto, alvo de uma dupla-vulnerabilidade – como consumidor e como trabalhador. No âmbito das relações laborais, isso implica a sua sujeição a uma intensa precarização de condições laborais e de direitos, em prejuízo à dignidade do seu trabalho e à sua própria dignidade enquanto ser humano. (VIANA; TEODORO, 2017, p.336)
Ocorre que, diante de toda essa conjuntura que torna ainda mais pungente a
vulnerabilidade do trabalhador, o Direito do Trabalho, em lugar de enrijecer o seu
espírito protetivo-retificador, resguardando a parte hipossuficiente da relação tutelada,
137
parece estar, paradoxalmente, assumido uma postura mais tímida e flexível, quando
não contraditória, diante dos seus propósitos originários.
Essa tendência de abrandamento do caráter protetivo-retificador do ramo
justrabalhista, que contradiz os seus propósitos originários de resguardar o
trabalhador, corrigindo as distorções do mercado e promovendo a justiça social,
ensejou o que se denomina “onda flexibilizatória” do Direito do Trabalho, iniciada, no
Brasil, sobretudo na última década do século XX.
Barbagelata (1996, p.137), referindo-se às raízes desse fenômeno, explica
que a “campanha” formalizada pelo Consenso de Washington em prol do ideal de
desregulamentação trabalhista liga-se diretamente ao fato de que os adeptos do
neoliberalismo, partidários do laissez-faire e da redução participativa do Estado,
“condenam todas as ações que possam distorcer o funcionamento de um mercado
livre, reclamam a desregulamentação da economia [...] e são hostis tanto às
interferências da legislação como às ações coletivas”.
Robortella (1994, p.97), posicionando-se com otimismo diante dessa “onda
flexibilizatória”, considera que a flexibilização do Direito do Trabalho corresponde tão
somente a um instrumento de adaptação e adequação das normas jurídico-
trabalhistas à realidade econômica social e institucional, refletindo, em termos de
eficácia na regulação do mercado de trabalho, uma necessidade do sistema capitalista
em seu estágio flexível.
Assim, segundo os defensores da flexibilização, uma maior liberdade de
negociação entre empregado e empregador, sem ingerências estatais, permite às
partes encontrarem as soluções mais adequadas à realidade econômico-financeira
que as circundam, relativizando o direito posto.
Mas superado todo o eufemismo presente no discurso da flexibilização,
considera-se que o que, de fato, ele preconiza é a adequação das normas trabalhistas
ao cenário político-econômico neoliberal, sob o argumento de que um Direito do
Trabalho mais “flexível “ – perante os caprichos do capital – ao garantir uma maior
produtividade, competitividade e elevação da lucratividade, contribuiria para a
manutenção de postos trabalho e para o desenvolvimento econômico nacional.
Considera-se, ainda, que ao exaltarem uma maior liberdade de negociação
direta entre empregador e empregado, os adeptos dessa corrente parecem
simplesmente ignorar o grande particularismo do Direito do Trabalho: o fato de que as
partes envolvidas na relação contratual tutelada não se encontram em situação de
138
igualdade: “O empregador é quase sempre mais forte e, portanto, habitualmente, pode
impor as suas condições”. (COMBLIM, 2001, p.17)
Perceba-se, pois, que compreendido nestes termos, o fenômeno da
flexibilização trabalhista contradiz a lógica de proteção intrínseca ao Direito do
Trabalho, implicando, segundo Barbagelata (1996, p.30), uma necessária “mudança
na forma de conceber a igualdade das pessoas, a qual – como observa Radbruch –,
deixa de ser ponto de partida do Direito, para se converter em meta ou aspiração da
ordem jurídica”.
Rudiger (2004, p.32), analisando criticamente a tendência instaurada de
flexibilização das normas trabalhistas, considera que, na verdade, a teoria da
flexibilização aproxima-se cada vez mais de uma teoria da “privatização do Direito do
Trabalho” ou de um “Direito do Trabalho mínimo”, uma vez que se volta única e
exclusivamente para uma maior eficácia ao mercado, às custas da mitigação de
direitos e garantias da classe trabalhadora. “O escopo do debate é a sobrevivência do
capital dentro da economia global para a qual o direito do trabalho sempre foi e
continua sendo uma verdadeira camisa de força”.
Isso nos revela que, por reflexo de uma “internalização acrítica do
pensamento liberal globalizante”, o capitalismo, insuflado do seu novo espírito “ultra-
liberal”, pretende impor-se como “molde” conformador de todas as esferas da vida em
sociedade. Por essa razão, o discurso dominante tem sido no sentido de que, “num
contexto de capitalismo flexível, tudo que a ele subjaz ou que com ele se relaciona
deve também se tornar flexível”. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p. 113)
Ocorre que, nos termos do que se buscou demonstrar ao longo deste estudo,
em se tratando de direito e, principalmente, de Direito do Trabalho, cuja função
precípua é contrabalancear, corrigir, ou pelo menos minimizar as distorções geradas
pelo mercado, impedindo uma exploração degradante do trabalho pelo capital, a
questão não é e nem pode ser encarada com tanta simplicidade e ar de fatalidade.
Nessa perspectiva, as seguintes considerações:
Para cumprir o seu papel limitador de poder, o Direito necessita de independência, tanto nas suas fases de elaboração quanto de aplicação, sob pena de ocorrer o que Noam Chomsky, em sede do documentário “Requiem for the American Dream”, denomina de “controle sobre os reguladores”. Ao utilizar essa expressão, Chomsky enfatiza um fenômeno muito comum em tempos de capitalismo global e flexível, que se refere à forte influência, quando não interferência, dos próprios destinatários de determinada norma reguladora sobre a sua elaboração ou aplicação. Isso quer dizer que se
139
concede um papel ativo àquele que deveria ser mero sujeito passivo do processo de regulação normativa, culminando na produção de uma norma contaminada em essência – ou em espírito – e, portanto, inapta para cumprir os seus reais objetivos. E ao se preconizar um Direito do Trabalho flexível, o que mais se pretende se não permitir que os regulados (“detentores do capital”) controlem o seu regulador (Direito do Trabalho)? Essa pergunta reflexiva nos conduz à percepção de que um Direito do Trabalho que incorpore os ditames flexibilizatórios do capitalismo não é, ao contrário do que se pretende difundir, um direito laboral moderno, que esteja simplesmente exercendo sua capacidade de adequação ao dinamismo social; mas sim, um Direito do Trabalho subvertido. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.113)
Sobre este cenário favorável para que o alvo de regulação do Direito do
Trabalho (o capital) torne-se o seu principal regulador, considera Garcia (apud
BARROSO; ROCHA; RIBEIRO, 2017, p. 7) que “a desregulamentação negociada do
Direito do Trabalho encampa uma condição de supressão de normas jurídicas,
sobretudo estatais e relativas às relações de trabalho, ‘passando os próprios
interessados, como agentes sociais, a estabelecer a regra aplicável’ “. (GARCIA,
2016, p. 35)
Neste mesmo sentido, Rüdiger (2004, p.78) pondera que se assiste a um
movimento no sentido de “esfarelamento do direito”, que “coloca o Direito do Trabalho
entre a direção central da sociedade e sua auto-regulação pelo mercado”, em amplo
prejuízo dos seus traços protetivos e da sua função social.
Assim, conforme advertido por Antunes (2016, p.163), no plano factual,
flexibilizar a legislação do trabalho significa aumentar ainda mais os mecanismos de
exploração da força de trabalho e viabilizar a “destruição dos direitos sociais que foram
arduamente conquistados pela classe trabalhadora, desde o início da Revolução
Industrial, na Inglaterra, e especialmente no pós 1930, quando se toma o exemplo
brasileiro”.
Contudo, apesar dos sólidos fundamentos corroborando a inaceitabilidade do
ponto de vista social, humano, e inclusive histórico, de um Direito do Trabalho flexível
aos ditames do capital, no cenário jurídico-trabalhista brasileiro, muitos já são os
exemplos de medidas que, desde as décadas finais do século XX, foram
empreendidas no sentido de se flexibilizar o Direito do Trabalho. Dentre elas,
destacam-se: a consagração da prescrição quinquenal e não mais trintenária do
FGTS; o cancelamento da Súmula 277 do TST, que previa a ultratividade das
negociações coletivas, de modo que, finda a vigência de um instrumento coletivo, os
direitos por ela previstos deixam de incorporar os contratos individuais de trabalho,
140
mesmo diante da recusa ou mora da empresa em renegociar com o sindicato; os
julgados do STF reconhecendo a prevalência do negociado sobre o legislado,
mitigando a aplicação de normas de ordem pública em nítido prejuízo ao trabalhador;
a promulgação da lei nº 13.429 de 2017, que legitimou o instituto da terceirização
trabalhista, em franca ofensa à dignidade humana; e, por último, a aprovação da Lei
13.467/2017, popularmente conhecida como a “lei da reforma trabalhista”.
(BARROSO, ROCHA; RIBEIRO, 2017, p. 7)
Já em plena vigência – desde o dia 12 de novembro de 2017 –, A Lei
13.467/2017, promovendo alterações profundas e numerosas na CLT, à pretexto de
desburocratizar as relações de emprego, mitigando direitos e ampliando a liberdade
negocial entre empregado e empregador, foi profetizada pela mídia brasileira
dominante como condição básica – e mesmo suficiente – para reavivar a economia
brasileira.
Contudo, por meio de uma análise crítica da Lei 13.467/2017, que deve levar
em consideração o fato de que o Direito do Trabalho, alvo do estigma de
“hiperprotetor”, é percebido como um entrave pela classe empresarial brasileira, pode-
se dizer, valendo-se das palavras de Jorge Luiz Souto Maior (2017)36, , que a “reforma
trabalhista” positivada pela Lei 13.467/2017 não representou “nada além do que uma
espécie de reunião de teses jurídicas empresariais, trazidas ao conjunto de um Projeto
pelo impulso da somatória de vaidades pessoais e até mesmo por sentimento de
vingança de alguns”.
Também neste sentido, Barroso, Rocha e Ribeiro, ponderam que
[...] não é preciso ser um expert em Direito do Trabalho, nem mesmo ter qualquer conhecimento técnico de Direito, para notar que as alterações trazidas pela lei nº 13.467/2017 – representam concessão de benesses aos empregadores às custas da precarização ou mesmo retirada de direitos do trabalhador. (BARROSO, ROCHA E RIBEIRO, 2017, p.16)
Concebendo, então, a “reforma” como uma verdadeira “desnaturação do
Direito do Trabalho”37 consideram, ainda, os referidos autores que
36 MAIOR, Jorge Luiz Souto. A pequena política do grande capital: “reformas a qualquer custo” 2017. Disponível em: http://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-pequena-politica-do-grande-capital-reformas-a-qualquer-custo Acesso em: 02 jul. 2017 37 Quanto à terminologia “desnaturação do Direito do Trabalho”, explicam Barroso, Rocha e Ribeiro, na obra A desnaturação do Direito do Trabalho por meio da “reforma trabalhista” (no prelo), que, “[...]dentre as tantas expressões passíveis de expressarem o que o a lei nº 13.467/2017 de fato provocou sobre o Direito do Trabalho, considera-se que a ‘desnaturação’, definida como ‘um fenômeno no qual o estado inicial bem definido de uma proteína formada sob condições fisiológicas é transformado em uma estrutura final mal definida sob condições não fisiológicas, usando-se um agente
141
[...]de “reforma” nada tem a “reforma trabalhista”, já que a semântica da palavra reforma reflete a ideia de mudança voltada a um melhoramento - e, sob o prisma do trabalhador, destinatário legítimo da proteção justrabalhista, nenhum melhoramento pode ser verificado. [ ]Não há dúvidas de que esta reforma trabalhista representa uma estratégia político-econômica conservadora e “ultraneoliberal” voltada a tornar ainda mais incisivo o controle da força de trabalho pelo mercado, ou, em outros termos, o controle da classe trabalhadora pelo capital. A ideia é desnaturar o Direito do Trabalho para fragilizar e pressionar, individualmente, os trabalhadores, eliminando-se do mercado de trabalho mecanismos considerados “anticompetitivos” sob o prisma empresarial e limitativo à potencialização do livre mercado, no aspecto político-ideológico. (BARROSO, ROCHA; RIBEIRO, 2017, p.17-18)
Desse modo, pode-se dizer que se está, mais que nunca, diante de uma
franca inversão dos valores norteadores do Direito do Trabalho, que, aproximando-se
muito mais dos interesses do capital do que dos interesses da classe trabalhadora,
não está, ao contrário do que se preconiza, simplesmente adequando-se ao
dinamismo social ditado pelo capitalismo flexível, mas tornando-se um Direito do
Trabalho subvertido, corrompido, desnaturado. (BARROSO, ROCHA e RIBEIRO,
2017, p.17)
Este perceptível distanciamento do ramo justrabalhista do seu compromisso
social protetivo em relação ao trabalhador, decorrente das corriqueiras medidas com
vistas à sua adequação à lógica do capital, bem como a consequente acentuação
brutal da racionalização econômica dos direitos e garantias trabalhistas, conferem,
pois, ao Direito do Trabalho um novo espírito.
E uma vez que esse novo espírito não decorre de simples aprimoramentos ou
agravos no corpo normativo do ramo juslaboral, refletindo uma alteração
paradigmática de valores que afronta o núcleo axiológico e ontológico do Direito do
Trabalho, entende-se que, para além de estar se investindo de um novo espírito – que
represente uma mera evolução ou uma regressão do seu espírito originário –, o que
o Direito do Trabalho, de fato, vivencia é uma crise ética.
Reforça-se que esta crise ética que se acredita estar sendo vivenciada no
âmbito institucional do Direito do Trabalho, reflete uma crise ética que já vem
acompanhando o trabalho desde o momento em que o postulado de produzir mais e
trabalhar mais para consumir mais, tornou-se o mote da vida humana, legitimando
desnaturante’, representa com franqueza e autenticidade todo esse processo que insistem em chamar de “reforma trabalhista”.
142
uma racionalização econômica do trabalho sem precedentes com fundamento em um
(falso) elo entre as noções de “mais” e “melhor”. (GORZ, 212, p.212)
Conforme advertido por Gorz (2003, p.108; 212), “a sociedade do trabalho
está em crise”, e isso deve ser motivo de preocupação, mas não de espanto, já que
“[...] monetarizar atividades que têm por fim fornecer e transmitir sentido, é
inevitavelmente entregá-las à crise”. O mesmo raciocínio, aplica-se também aos
institutos considerados “sensíveis”, que visam fornecer e transmitir sentidos para além
de números e cálculos, como ocorre com o Direito do Trabalho: racionalizá-los
economicamente, isto é, priorizar a racionalidade econômica em detrimento das
demais racionalidades, como a social e a humana, é inevitavelmente entregá-los à
crise.
Assim, valendo-se, novamente, da proposição do filósofo Baruch de Spinoza,
no sentido de que “à natureza de uma substância pertence o existir”, acredita-se que
essa tendência de racionalização econômica, transgressora dos valores protetivos,
sociais e humanos do Direito do Trabalho, ao deturpar a sua essência, pode esvaziá-
lo completamente de sentido e acabar comprometendo a sua própria existência.
Neste sentido, Viana e Teodoro realçam a urgente necessidade de se
promover uma releitura do ramo justrabalhista, em sentido contrário ao que têm
predominado, propondo, para tanto, um movimento de “repersonalização do Direito
do Trabalho”, nos seguintes termos:
Num contexto de modernidade líquida, marcado, na esfera político-econômica, pela prevalência de ideais neoliberais – que tendem a acentuar a mercantilização das relações laborais - e, na esfera jurídico-filosófica, pelo surgimento da corrente pós-positivista – que preconiza uma releitura dos diversos direitos a partir dos princípios e valores constitucionais, sobretudo, da dignidade humana -, parece necessária uma virada epistemológica no âmbito do Direito do Trabalho. É justamente essa reviravolta, marcada por uma profunda alteração de paradigma em prol do abandono de uma concepção meramente econômica e patrimonial - que “coisifica” o trabalho e o trabalhador ao considerar que o mero pagamento das parcelas previstas em lei é o bastante para legitimar a exploração da força de trabalho alheia -, representa o que aqui se denomina de “repersonalização do Direito do Trabalho”. Assim, repersonalizar o Direito do Trabalho pressupõe, sobretudo, compreender a pessoa do trabalhador como ocupante do seu eixo central de regulação. Significa alertar sobre a função extrapatrimonial dos direitos trabalhistas, já que o fato de muitos deles se traduzirem em pecúnia não lhes retira, de modo algum, a sua função promotora de uma vida digna, transcendendo, em muito, a esfera econômica da vida humana. (VIANA; TEODORO, 2017, p. 334)
Nota-se que, ao preconizarem a “repersonalização” do Direito do Trabalho”, o
que os autores levam em consideração é justamente a sua “raiz antropocêntrica” e a
143
sua “ligação visceral com a pessoa e os seus direitos; afinal, é essa centralização em
torno do homem que faz o Direito do Trabalho a expressão máxima da dignidade da
pessoa humana do trabalhador”. (VIANA; TEODORO, 2017, p.334)
Nesse contexto, falar na necessidade de fortalecimento do Direito do Trabalho
no que tange às suas raízes é, antes de tudo, falar de resistência: resistência perante
a infiltradora lógica flexível do capital, que, retirando o trabalhador do eixo protetivo
central do direito laboral, pretende fulminar o seu papel de contrapeso e reduzi-lo a
uma mera engrenagem do sistema.
Assim, considera-se que, do ponto de vista jurídico, o grande desafio que
primeiramente deve ser enfrentado no contexto ora narrado é colocar na centralidade
dos estudos, pesquisas e da hermenêutica trabalhista as questões existenciais – em
detrimento das meramente patrimoniais – que circundam o trabalho e o Direito do
Trabalho, a fim de blindá-los contra a tendência, agravada sobremaneira pela
exaltação do consumo, de se materializar e monetizar todas as esferas da vida
humana.
Conforme preconizado em outra oportunidade:
Em preservação às raízes humanísticas do Direito do Trabalho é fundamental que a sua elaboração, interpretação e aplicação atribuam ao ser trabalhador o seu devido papel de protagonista, promovendo a sua valorização e emancipação enquanto cidadão. Isso significa elevar a dignidade humana do trabalhador à máxima potência, não permitindo que ele seja objetivado e que o seu trabalho seja reduzido à condição de mero instrumento viabilizador de um consumo que extratifica, aliena e fetichiza. (TEODORO; RIBEIRO, 2016, p.76)
Contudo, em face de todos os exemplos práticos aqui narrados, presume-se
que esta colocação do ser humano no centro do Direito do Trabalho não irá partir
espontaneamente de “cima”, isto é, do Congresso, tampouco do Executivo. Assim, o
que se entende cabível e significativamente válido, sobretudo à longo prazo, é que
esta tarefa de resistência, que pressupõe consciência, seja promovida na seara da
hermenêutica do ramo justrabalhista, numa atuação conjunta de entidades sindicais,
docentes, magistrados e servidores do Judiciário Trabalhista, advogados,
procuradores e auditores fiscais do trabalho, e todos os demais militantes que, de
algum modo, lidam com a interpretação e aplicação do Direito do Trabalho.
Entende-se que a esses profissionais, investidos de poder de influência sobre
a compreensão e formação de opinião de outras pessoas, desprovidas de um
144
conhecimento técnico jurídico-trabalhista, cabe o fundamental papel de não encarar
com naturalidade e ar de fatalidade os ataques sofridos pelo Direito do Trabalho, a fim
de que, tanto em plano prático quanto ideológico, os intentos flexibilizatórios possam
se deparar com atos de resistência, tendo os seus efeitos destrutivos ao menos
minimizados.
8.4 Buscando sentidos e mecanismos práticos no plano jurídico-trabalhista:
autogestão do tempo, redução da jornada de trabalho, “segundo cheque”,
atuação sindical
Quanto à questão de ordem cultural que mantém relação intrínseca com a
presente pesquisa, considerando que a análise que se buscou promover acerca das
mutações do trabalho, das relações de trabalho e do Direito do Trabalho no bojo da
sociedade do consumo ancorou-se, sobretudo, na profunda alteração de valores
vivenciada, reconhece-se que traçar uma proposta ou um plano objetivo de atuação é
uma tarefa demasiadamente complexa, pretensiosa e mesmo inviável.
Fato é que, tendo sido o consumismo aqui apontado como o grande
responsável pela acentuação da racionalização econômica do trabalho e da vida
humana em todos os seus aspectos, influenciando diretamente no comportamento
pela classe trabalhadora de caráter predominantemente passivo e, não raramente,
cooperante diante dos intentos exploratórios do capital, não há como se desvencilhar
da ideia de que combatê-lo ou minimizá-lo produziria impactos positivos sobre um
possível resgate da valorização das esferas sensíveis da vida humana, contribuindo
para o que Gorz denomina de “cultura do trabalho” e “cultura do viver”38.
Mas acredita-se que a lógica inversa também pode ser extremamente válida,
de modo que alterações valorativas promovidas no interior do universo do trabalho,
sobretudo por meio do Direito do Trabalho, podem vir a produzir impactos positivos
significativos sobre a cultura do consumo. A esse respeito, concorda-se com Gorz
38 A respeito do que se denomina ”cultura do trabalho” e “cultura do viver”, entende-se, a partir das considerações de André Gorz, que a racionalização econômica, ao tornar o sujeito ausente do sentido das suas operações, subtraindo-lhe a sua subjetividade, converge, naturalmente, para uma “filosofia da morte do homem”, para uma “teoria do sujeito como ‘não-existência no vazio da qual verte o discurso’ (expressão de Michel Foucault)”. Segundo o autor, a prevalência das técnicas contábeis “[...]implica a absoluta ingenuidade das condutas operatórias, incapazes de dar contas de si mesmas”, determinando um movimento no sentido de ”autonegação do sujeito” e de negação do próprio viver. (GORZ, André. Metamorfoses do Trabalho: crítica da razão econômica. Tradução de Ana Montoia. São Paulo: Anablumme, 2003, p. 124)
145
(2003, p.226) no sentido de que a medida jurídico-trabalhista que, talvez, apresente o
maior potencial para promover esta alteração valorativa, repercutindo diretamente na
cultura do consumo, consiste na possibilidade de “autogestão do tempo de trabalho”,
voltada a implementar, de modo gradativo, uma redução das jornadas de trabalho.
Explica o autor que, a possibilidade de autogerir o tempo de trabalho, ao
permitir à pessoa ampliar o seu tempo livre e, consequente, o seu contato com as
esferas sensíveis da vida, pode permitir que ela escape ao domínio da racionalidade
econômica, “[...] descobrindo que mais não quer necessariamente dizer melhor,
descobrindo, portanto, que pode haver reivindicações mais importantes que as
reivindicações salariais”. (GORZ, 2003, p.17)
Partindo desta premissa, Gorz acreditando ser possível se pensar em uma
outra sociedade, considera que a diminuição progressiva do trabalho racionalizado
economicamente permitirá que predominem na sociedade “[...] as atividades
autônomas; o ‘tempo livre prevalecerá sobre o tempo coagido, o lazer sobre o
trabalho’; o lazer não será mais repouso ou compensação, mas tempo essencial e
razão de viver. Trata-se do ideal de se construir uma “sociedade do tempo liberado”,
na qual “ o cultural e o societal predominem sobre o econômico”.
Sem essa mutação que, segundo Gorz, “mereceria ser chamada de
‘revolucionária’, não fosse o termo ter sido desmonetarizado e condenado pela moda”,
as transformações em curso, principalmente no campo das evoluções tecnológicas,
condenam as economias de trabalho e de ganho de tempo que o desenvolvimento
acelerado de novas técnicas engendra a produzirem apenas exclusão social,
pauperismo, desemprego em massa e uma intensificação da “guerra de todos contra
todos”. (GORZ, 2003, p.177)
Neste sentido, o autor propõe uma “política do tempo” que reparta as
“economias de tempo de trabalho conforme princípios não da racionalidade
econômica”, mas da justiça social, de modo que, reduzindo o tempo de trabalho, cada
um e cada uma possa trabalhar menos, permitindo, ainda, que mais pessoas
trabalhem. (GORZ, 2003, p.186)
Contudo, Gorz acredita que uma redução objetiva da jornada de trabalho não
deve ser o foco: “a redução do trabalho tem uma qualidade muito diferente quando se
libera tempo na escala da jornada, da semana, do ano ou da vida ativa; e, sobretudo,
quando os intervalos de tempo liberado podem, ou não, ser escolhidos por cada
um(a)”. Explica que “a redução linear do tempo de trabalho, com a manutenção de
146
horários cotidianos rígidos e uniformes é a menos promissora e a menos eficaz das
liberações de tempo”. Elucidando o seu raciocínio em termos práticos, e tendo em
vista o cenário jurídico-trabalhista francês, Gorz faz as seguintes considerações:
Pois é, evidentemente, impossível introduzir de maneira uniforme nas empresas e para todo o pessoal a semana de 35, 30 ou 25 horas em cinco dias. Mas é possível, em troca, introduzir para todo mundo uma duração anual de trabalho de 1.400, ou 1.200, ou 1.000 horas por ano (no lugar das 1.600 atuais), repartidas em 30, 40 ou 48 semanais ou ainda nos 120 a 180 dias que, em cada oficina, escritório, serviço ou empresa, os membros do pessoal repartem entre si nas reuniões trimestrais ou mensais, em função, ao mesmo tempo, das obrigatoriedades técnicas e das necessidades ou desejos de cada um(a): a idade, a situação familiar, o afastamento do lugar de trabalho, o projeto de vida etc. podem dar direito de preferência sobre certos dias da semana ou sobre certos meses do ano. (GORZ, 2003, p.190)
Veja-se, pois, que a linha de raciocínio apresentada se baseia na ideia de que
“a dessincronização dos horários e dos períodos de trabalho é condição indispensável
para uma redução substancial da sua duração”. E, segundo Gorz (2003, p. 191), a
vantagem dessa logística é clara: “a liberação de um tempo fracionado – algumas
horas por semana, alguns dias por mês, algumas semanas repartidas ao longo do
tempo – proporcionará, sobretudo, uma extensão dos lazeres passivos [...]”,
permitindo o desenvolvimento de uma “sociedade de cultura”, na qual os projetos
individuais e coletivos de cunho não econômico encontrarão espaço e oportunidade
para serem priorizados.
Sob o prisma da pragmática, realça o autor que é fundamental e plenamente
possível que essa redução do trabalho, a ser alcançada gradativamente pela
“autogestão do tempo”, ocorra sem a perda de rendimentos pelo trabalhador, desde
que para isso, ela ocorra por meio de “patamares plurianuais, segundo um calendário
fixado de antemão”, sendo “decidida ex ante e não ex post”, ou seja, encarada como
a finalidade à qual as demais variáveis deverão se ajustar em um lapso de tempo
determinado. Afinal, foi seguindo esta mesma lógica de adaptação que institutos já
existentes no âmbito do Direito do Trabalho, como os feriados pagos, a jornada de
oito horas, os seguros sociais, dentre outros, foram instituídos.
Assim, a proposta desenvolvida por Michel Albert e apresentada por Gorz
(2003, p.197) é no sentido de que, a cada vez que a duração do trabalho for rebaixada,
os salários o sejam rebaixados na mesma proporção. Contudo, a perda que disso
resulta para o assalariado será compensada por uma espécie de “caixa de garantia”,
147
que Guy Aznar chama de ‘”segundo cheque”. Este instituto do “segundo cheque”,
explica Gorz, “deverá remunerar as horas liberadas do trabalho pela mesma tarifa das
horas trabalhadas” e converter-se num fundo de viés socialmente redistributivo, a ser
aplicado pelo Estado em medidas que promovam a distribuição das riquezas
socialmente produzidas.
Em relação a essa proposta de redução da jornada mediante a instituição do
“segundo cheque”, apesar de não se discordar dos seus potenciais efeitos benéficos
e transformadores do ponto de vista social e humano, entende-se que, no cenário
brasileiro, a sua aplicabilidade estaria fortemente sujeita a se deparar com desafios
que esbarrariam numa questão de ética política. Isso porque, ao se transferir para o
Estado a responsabilidade de gerir e redistribuir percentual da renda que antes
beneficiava diretamente a cada trabalhador, corre-se o risco de que, diante de uma
política de gestão não comprometida com a seriedade e com os ideais sociais, a
aplicação desta “caixa de garantia” ocorra de modo desvirtuado e acabe não
cumprindo o objetivo de gerar melhorias sociais das quais os trabalhadores sejam os
grandes beneficiados.
Considera-se, ainda, que tal proposta poderia encontrar uma grande
resistência, ao menos inicial, por parte da própria classe trabalhadora, que, tomada
pelo espírito individualista e imediatista da sociedade líquido-moderna, poderia não
encarar como positiva a destinação de parte daquilo que antes integrava o seu salário
e, portanto, refletia no seu poder de consumo, para um fundo social.
Mas, apesar da alta probabilidade de que essa resistência inicial ocorra,
pondera Gorz que a imposição de medidas voltadas a reduzirem o tempo de trabalho,
ainda que isso implique uma redução da renda, ao contribuir para uma aproximação
do trabalhador das demais esferas da sua vida, para além do trabalho e seu
consectário lógico, o consumo, podem promover uma reviravolta cultural na vida
pessoal e se tornarem bem vistas e desejadas pelo trabalhador. Nesse sentido, o
depoimento prestado por um operário francês, que, em virtude da crise econômica
vivenciada no país, teve a duração do seu trabalho reduzida de 48 para 40 horas
semanais, e pouco mais tarde, para 32 horas em 4 dias:
Então, pouco a pouco, foi um fenômeno inacreditável, de recuperação física. A noção de grana perdeu a importância. Não digo que tenha desaparecido, mas, no fim, mesmo os caras que tinham família para sustentar, diziam: “Agora é melhor que antes”. É verdade que perdemos muita grana,
148
perdíamos 40.000 ou 50.000 comparado com antes [ou seja, 25% dos recebimentos anteriores], mas isso, muito rápido, os caras não reclamavam mais, fora um ou dois. Foi nesse período que a contestação nasceu, porque a gente começou a discutir bastante... Foi aí também que as relações de amizade nasceram: não era só as conversas políticas, conseguíamos contar umas histórias da vida afetiva, falar da impotência, do ciúme, das relações do casal... O curioso é que esse período de desemprego parcial o trabalho “por fora” diminuiu... Foi nesse momento também que trabalhar na fábrica no sábado à tarde ou no sábado à noite pareceu um horror. Antes os caras aceitavam, mas agora, reaprendíamos cada vez mais o que a palavra viver queria dizer, trabalhar no sábado, parecia coisa demais...a mesma coisa nos domingos e feriados, quando se paga três vezes mais, a direção confessou que tinha dificuldades para entrar quem topasse... Houve uma mudança na mentalidade, não se compra mais os caras como antes. (GORZ, 2003, p.119)
Contudo, diante de todas as exposições ora realizadas, apesar de se
concordar com o potencial das alterações no mundo do trabalho para produzirem
repercussões positivas sobre a prevalência de uma “cultura do viver”, reconhece-se
que um efetivo combate, no plano macro, à racionalidade econômica potencializada
pelo consumismo pressupõe um combate interno, de cunho psíquico, do ser humano
com a sua consciência, que, foge, portanto, ao campo de uma possível atuação
determinística e objetiva da ciência. Mas reconhece-se, também, que fatores
comportamentais individuais, influenciados, precipuamente, por um processo de
autoconscientização, podem ocorrer e surtir efeitos positivos mesmo sem que, no
plano macro, a cultura do consumismo tenha deixado de existir.
Como importante fator de estímulo a esse processo de autoconscientização
do trabalhador, fundamental para que a “consciência de classe” – e não a consciência
consumerista de cunho fortemente individualista – impere em âmbito trabalhista,
entende-se que às entidades sindicais caberia o desenvolvimento de campanhas em
prol não só do trabalho consciente, mas do consumo consciente. Conforme advertido
por Gorz (1968, p.64), “a disjunção entre os dois aspectos é menos possível que
nunca se o movimento operário quiser conservar a sua autonomia”.
Fato é que uma atuação sindical restrita às lutas por aumentos salariais – que
muito bem reflete a atual realidade sindical brasileira –, apenas atende aos interesses
do trabalhador como consumidor, pactuando muito mais com a lógica do capital do
que com os propósitos humanos e sociais da seara justrabalhista. Assim, nas palavras
de Gorz:
[...] lutar contra a exploração e pelas reivindicações de consumo, sem colocar em questão as finalidades da exploração (isto é, a acumulação) e modelo da hierarquia dos consumos na sociedade capitalista avançada, é colocar a
149
classe operária em posição subalterna em relação às escolhas fundamentais, aos valores, à ideologia dessa sociedade, reforçando-a até mesmo pelos sucessos de detalhes que os sindicatos podem obter. Os sucessos – aumento de salários, do tempo de férias, da massa de consumos individuais – serão, com efeito, logo retomados pelos que (Governo e monopólios) os concederam, conforme o clássico slogan do “bem-estar para todos”; uma fonte de lucros suplementares (com ou sem alta dos preços) para as indústrias de bens de consumo. (GORZ, 1968, p. 64-65)
Isso quer dizer que, enquanto as reivindicações da casse trabalhadora,
intermediadas pelas entidades sindicais, permanecerem quantitativas e não
qualitativas, priorizando o viés econômico, permanecerão inaptas a produzir qualquer
profunda alteração no sistema de exploração que, mediante a imposição de um
modelo individualista de consumo desmedido, volta-se contra a própria classe
trabalhadora, fulminando qualquer possibilidade de edificação de uma “consciência
de classe”. (GORZ, 1968, p. 65)
Assim, nos termos das reflexões que se propõe promover no último tópico
deste estudo, acredita-se que a conscientização e a consequente alteração de
padrões comportamentais individuais quanto aos hábitos de consumo, já sinalizada
por diversos movimentos em plano nacional e, sobretudo, internacional, pode vir a
representar o início de uma nova guinada nos rumos desta sociedade, ainda fundada
predominantemente no consumo, reverberando positivamente no mundo do trabalho
e, quem sabe, no âmbito do Direito do Trabalho.
8.5 O Direito do Trabalho e o futuro: perspectivas à luz de uma ordem pós-
consumista
A sociedade, mesmo quando parece ter estagnado em seus valores e suas
práticas, está em constante processo de mutação. Contudo, os processos de
transformação social, além de lentos gradativos, não ocorrem de maneira uniforme.
Por essa razão é que, do ponto de vista histórico, sempre que se apresenta
determinado momento ou acontecimento como o marco de uma mudança, jamais se
deve compreender que antes deste marco as coisas permaneciam estáticas e que
somente a partir deste marco foi que tudo se transformou.
Conforme já pontuado, a relativização é fundamental para se compreender o
próprio estudo sociológico acerca das alterações sofridas no mundo do trabalho, que
se buscou promover nesta pesquisa. Todos os marcos históricos e temporais de
150
transição apresentados, ao serem defrontados com a realidade, conduzem à
percepção de que, ao se falar, por exemplo, da transição do modelo de produção
fordista para o toyotista ou da transição de uma “sociedade de produtores” para uma
“sociedade de consumidores”, não se está afirmando que antes do marco apontado
já não existissem traços do “novo” ou que após esse marco tenham deixado de existir
quaisquer traços do “velho”.
Assim, acredita-se que no atual momento histórico vivenciado, apesar da
aparente sensação de estarmos inseridos numa sociedade do consumo distante ou
mesmo isenta de um “fim”, sinais de uma possível transformação paradigmática de
valores já podem ser percebidos por meio de condutas que denotam uma tendência
de maior fragilidade do ideal consumista.
Neste sentido, Offe (1989, p.85) considera que estamos diante de um
considerável aumento de atitudes “pós-consumistas”, que, apesar de ainda não
expressarem uma alteração de valores significativa, ”[...]reflete, pelo menos entre a
chamada ‘nova classe média pós-industrial’, a maior fragilidade de uma índole
consumista específica do capitalismo[...]”, que tem levado as sociedades a se
aproximarem mais dos “limites naturais e sociais do crescimento”.
Na mesma linha, Giddens (1997, p. 231) aponta a emergência do que
denomina “ordem pós escassez”, que se consolida na medida em que os indivíduos
passam a reestruturar “[...] ativamente as suas vidas profissionais, valorizando outras
coisas além de sua simples prosperidade econômica”, sendo os alemães um grande
exemplo disso.
Explica o autor que “a reestruturação do tempo, o último recurso escasso para
o ser humano finito, introduz flexibilidades no ciclo de vida que são inimagináveis
quando uma carreira é simplesmente aceita como ‘destino’ “. E é justamente essa
concepção de “destino”, guiada pelo ideal de uma vida de trabalho remunerado até a
aposentadoria, calcada numa “compulsividade pelo trabalho” em virtude, sobretudo,
dos ganhos econômicos por ele proporcionados, que parece estar se alterando.
(GIDDENS, 1997, p. 231)
Além disso, Giddens aponta como outro fator de influência sobre a
emergência de uma “ordem pós-escassez” as contradições geradas pelo sistema de
abundâncias, intrínseco à lógica do consumismo. Segundo o autor,
151
Aqui há uma íntima conexão com as preocupações ecológicas. Os “males” gerados pelo industrialismo promovem um ímpeto para a mudança em si e por si. Não importa como isso pode ser interpretado, o “crescimento responsável”, por exemplo, introduz necessariamente outros valores além daqueles exclusivamente econômicos. (GIDDENS, 1997, p.232)
No plano prático, a auto evidência das contradições desse sistema de
abundâncias pode ser constatada por meio de inúmeros exemplos, como a
disseminação da utilização de veículos, que, além do agravamento da poluição, tornou
o tráfego nos grandes centros tão atravancado que, do ponto de vista prático, não
raramente, torna-se mais rápido caminhar do que se valer do veículo – cuja aquisição,
muito provavelmente, demandou esforço financeiro e, sobretudo, tempo de trabalho.
(GIDDENS, 1997, p.232)
Neste sentido, em decorrência de um processo de autoconscientização
perante as múltiplas contradições e malefícios decorrentes de uma cultura consumista
e materialista, que ao mesmo tempo em que promove a abundância intensifica a
miséria, a desigualdade social, a degradação ambiental e a própria degradação
humana, já se constata a existência, em âmbito internacional e inclusive nacional, de
movimentos de contracultura, que, contestando a lógica consumista, apresentam
padrões comportamentais alternativos e socialmente promissores.
O fenômeno conhecido como “minimalismo”, originário de movimentos
artísticos do século XX, é um grande exemplo desta tendência contestatória no plano
do consumo. Movidos pela consciência de que felicidade e bem-estar não se
encontram vinculados ao ideal de abundância material, os adeptos do minimalismo
praticam exatamente o oposto daquilo que é preconizado pelo consumismo: o
desapego de bens materiais, com respaldo no ideal de que “o menos é mais”.
Segundo o pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense,
Marcelo Vinagre Mocarzel, entrevistado em matéria publicada em 09 set. 2017, pela
BBC Brasil, "enquanto expressão comportamental da sociedade, o minimalismo é um
reflexo de movimentos contraculturais anteriores, como o punk e o hippie, que
questionaram a sociedade de consumo e seus excessos", valorizando mais as
experiências, as esferas não econômicas da vida humana e as pessoas, em
detrimento das posses materiais.39 Assim, muito mais que um padrão de consumo não
39MODELLI, Laís. O prazer do desapego: minimalistas defendem que ter menos coisas cria mais
liberdade. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/geral-41077549. Acesso em: 30 out. 2017.
152
consumista, o minimalismo propõe um estilo de vida, regido, sobretudo, pelo princípio
da não acumulação.
O documentário “Minimalismo: um documentário sobre as coisas
importantes”40 relata a história de vida dos próprios autores do documentário, Joshua
Fields Millburn, ex-empresário, e Ryan Nicodemus, ex-publicitário, que abandonaram
as suas carreiras profissionais bem-sucedidas, a fim de adotarem um estilo de vida
no qual viveriam com menos coisas, mais tempo livre e mais energia vital41. Note-se
que, neste caso, a adoção de um novo padrão comportamental em relação ao
consumo foi o ponto de partida para que Joshua e Ryan abdicassem de um trabalho
que, apesar de lhes render salários de seis dígitos, tornando-os consumidores
realizados, consumiam todo o tempo livre, a vida afetiva e a saúde de que dispunham,
tornando-os, em contrapartida, seres humanos frustrados.
Seguindo esta mesma tendência de alteração do padrão comportamental
consumista, cita-se a comunidade virtual extremamente popular na Alemanha
denominada Free Your Stuff (FYS), que preconiza exatamente o que o seu nome diz:
“liberte as suas coisas”. Em 2014, a cidade de Berlim já contava com 19 mil membros,
praticando o princípio da não acumulação material e do consumo consciente por meio
do desapego, do escambo e do compartilhamento de bens materiais.42
No cenário brasileiro, pesquisa realizada em 2007 pelo IBOPE, demonstrou
que 63% dos “consumidores do século XXI” estão dispostos a praticarem o ideal do
“consumo consciente”, alterando os seus estilos de vida principalmente para
beneficiarem o meio-ambiente.43 Neste sentido, também já integram a realidade
brasileira algumas campanhas, principalmente por meio de plataformas virtuais,
voltadas a incentivar práticas consumeristas alternativas, que, guiadas pelo senso de
responsabilidade social e ambiental, estimulam o desenvolvimento de hábitos de
consumo não consumistas.
Como exemplo, podem ser citadas as seguintes plataformas: “99trocas”, que
reúne pessoas com interesses comuns a fim de promover a troca de objetos usados;
40 Tradução efetuada a partir do título originário “Minimalism: A Documentary About the Important Things”. Documentário disponível no Netflix. 41 MODELLI, Laís. O prazer do desapego': minimalistas defendem que ter menos coisas cria mais liberdade. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/geral-41077549 Acesso em: 30 out. 2017. 42 Informação disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/12/o-fenomeno-pos-consumismo-na-alemanha.html Acesso em: 10 nov. 2017. 43 Informação retirada do site do IBOPE. Consumidor do século XXI. Disponível em: http://www4.ibope.com.br/Consumidor/ Acesso em 25 out. 2017.
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“Mée”, que mediante o slogan “Você não precisa de dinheiro para ter coisas novas”,
incentiva o escambo entre as pessoas que se encontram territorialmente próximas,
por meio de um sistema de geolocalização; ”Descolaaí”, que com o slogan “Ajude o
planeta evitando que outros produtos sejam produzidos com extração de novos
recursos naturais”, incentiva e intermedeia a reutilização de produtos bem como a
troca de prestações de serviços.44
Por fim, outro movimento contemporâneo de grande expressão consiste no
“Movimento Zeitgeist”, sendo o termo em alemão “zeitgeist” empregado para se referir
ao “espírito do tempo” ou “espírito de uma época”. Fundado em 2008, o movimento
corresponde a uma rede global – à qual integram grupos nacionais, denominados
“capítulos”, e grupos regionais, denominados “subcapítulos” –, empenhada em
promover uma nova concepção dominante cultural, moral e intelectual da época atual,
instruindo o público acerca das reais causas de vários dos problemas pessoais,
sociais e ecológicos enfrentados. 45
Contando com um “capítulo” no Brasil (Movimento Zeitgeist Brasil), o
movimento objetiva “a criação de uma sociedade global verdadeiramente pacífica,
responsável e sustentável”, propondo, para tanto, ações comunitárias, projetos,
eventos e mídias de conscientização acerca dos valores que devem nortear uma
existência humana digna e uma sociedade sustentável.46 Assim, apesar de não
apresentar propostas diretas de combate ao consumismo, considera-se que o
movimento apresenta um grande potencial para atuar nas raízes axiológicas que
norteiam o comportamento humano, levando, naturalmente, a uma postura
sustentável e consciente quanto ao consumo.
Pois bem, diante das tendências ora apontadas, reconhece-se que a
viabilidade de se pensar numa ordem “pós-consumista” ou “pós-escassez” num
contexto em que diversos países, como no caso do Brasil, ainda se encontram num
estágio de desenvolvimento econômico defasado, pode ser contestada sob o
fundamento de que o “pós-consumismo” ou a “pós-escassez” tratam de um “luxo” do
qual apenas estarão aptos para desfrutar aqueles que, já tendo atingido o ápice de
44 Disponível em: http://consumocolaborativo.cc/como-funciona-o-consumo-colaborativo/ Acesso em: 15 nov. 2017. 45 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_Zeitgeist Acesso em: 13 nov. 2017. 46 Disponível em: http://movimentozeitgeist.com.br/conheca-o-movimento/movimento-introducao Acesso em: 13 nov. 2017.
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um sistema de abundâncias, encontram-se materialmente preparados para retirar o
desenvolvimento econômico do foco.
Contudo, a esse respeito, concorda-se com Giddens (1997, p.233) quando ele
diz que a possibilidade de desenvolvimento de uma “ordem pós-escassez” não se
limita aos países de Primeiro Mundo, estando “longe de ser algo importante para os
setores economicamente adiantados do globo”. Isso porque, ao se falar de “pós
escassez” ou de “pós-consumismo” não se pretende dizer que foi alcançado um
estágio no qual o desenvolvimento econômico, já tenho atingido o seu ápice, deva
cessar ou retroceder.
A questão em pauta não é pragmática e tampouco numérica, mas
essencialmente principiológica e axiológica, envolvendo, sobretudo, uma alteração no
sistema social e pessoal de prioridades. Assim, conclui Giddens que, em termos de
princípios, “uma sociedade pós-escassez é uma sociedade em que o objetivo do
‘desenvolvimento’ aparece precisamente sob severo exame. Aqui, o rico tem muito a
aprender com o pobre; e o Ocidente, com as outras culturas que no passado ele
simplesmente ameaçou de extinção”.
Deste modo, atendo-se ao cenário brasileiro, acredita-se que, apesar da
sociedade contemporânea ainda encontrar-se fundada no consumismo, já há uma
sinalização no sentido de alteração no padrão comportamental do consumo,
convergindo para a emergência de uma possível ordem “pós-consumista”. E, tendo
em vista a relação direta, que conforme demonstrado por esta pesquisa, existe entre
os institutos do trabalho e do consumo, acredita-se também que ao lado deste
potencial novo perfil de consumidor e de consumo estará, também, um potencial novo
perfil de trabalhador e de trabalho.
Fato é que um consumidor guiado pelos ideais da não da acumulação e da
sustentabilidade tende a se reaproximar da categoria do “suficiente”, estabelecendo
um leque de necessidades mais restrito, menos complexo e menos volátil, pautado no
“essencial”. Isso quer dizer que o consumidor consciente adquire capacidade crítica
para se posicionar com maior autonomia perante o sistema de necessidades imposto
pela sociedade de consumo, priorizando outras esferas da sua vida, além da material.
Isso também quer dizer que este consumidor menos vulnerável muito provavelmente
será um trabalhador menos vulnerável diante da tendência de racionalização
econômica do seu trabalho – que, conforme demonstrado, apesar de representar uma
155
característica intrínseca às relações de trabalho capitalistas, foi intensificada
sobremaneira com o advento do consumismo.
Consequentemente, acredita-se que, em face de um contingente de
trabalhadores menos vulneráveis aos caprichos do capital, guiados por prioridades
extra econômicas, a tendência de patrimonialização ou racionalização econômica do
Direito do Trabalho venha a ser freada ou mesmo revertida.
Afinal, diante deste possível novo cenário, o mais provável é que a lógica
predominantemente econômica do Direito do Trabalho torne-se contestada pela
própria classe trabalhadora, que, sobretudo por meio dos sindicatos, poderá
pressionar a classe empresarial, no âmbito das negociações coletivas, no sentido de
se construir, pouco a pouco, um Direito do Trabalho que transcenda a esfera
patrimonial da vida humana e cumpra o seu compromisso de efetiva proteção do
trabalhador na qualidade de ser humano.
157
9 CONCLUSÃO
Gorz, ainda no final do século XX, referindo-se ao contexto de crise da
sociedade fundada no trabalho, vivenciada na França, proferiu as seguintes palavras:
“Quando uma utopia desmorona, é toda a circulação de valores que regulam a
dinâmica e o sentido de suas práticas que entra em crise. É esta a crise que vivemos”.
(GORZ, 2003)47
Hoje, no contexto brasileiro, entende-se também ser esta a crise que vivemos:
uma crise ética, que apesar de tachada de crise econômica ou de crise política,
envolve, para além de números, partidos políticos, índices de desenvolvimento
econômico e estatísticas, toda a circulação de valores que regulam a dinâmica e o
sentido das práticas sociais.
A vida pessoal e o metabolismo social, tão ricos em interações, propósitos e
experiências, regidos por uma lógica essencialmente material, instrumental e,
sobretudo, econômica, distanciam-se, cada vez mais, de valores e ideais sensíveis,
como o afeto, a cooperação, a solidariedade. Assim, as trajetórias humanas, mesmo
diante do leque de fartas opções e diversidade de escolhas que a sociedade do
consumo proporciona, têm se tornado, paradoxalmente, apenas reproduções
automáticas e individualizadas de um modelo de vida pré-fabricado, no qual bem-estar
e felicidade confundem-se com a renda que o consumidor-trabalhador pode alcançar
ao final do mês.
A esse respeito, Arendt (2014, p.167) ponderou que o grande perigo é que “tal
sociedade, deslumbrada pela abundância de sua crescente fertilidade e presa ao
suave funcionamento de um processo interminável”, torne-se incapaz de reconhecer
a sua própria futilidade, “a futilidade de uma vida que ‘não se fixa nem se realiza em
assunto algum que seja permanente, que continue a existir depois de terminado [seu]
trabalho’ ” ou, no máximo, depois de consumidos os frutos do trabalho.
Realça-se que, por meio da análise crítica promovida acerca dos institutos
trabalho e consumo não se pretendeu questionar o fato de serem eles dois grandes
eixos da existência humana, imprescindíveis para uma vida minimamente digna.
Contudo, acredita-se que reduzir a existência à máxima capitalista “trabalhar para
consumir” contradiz o próprio potencial dignificante de ambos os institutos, trabalho e
47 Frase retirada da obra de Gorz (2003).
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consumo. Afinal, despender mais de um terço das horas diárias em um trabalho
tendencialmente precário, pelo qual a pessoa nutre cada vez menos afeição, a fim de
que, nas poucas horas vagas que lhe restarem, os frutos deste trabalho sejam
revertidos em um consumo inapto a promover qualquer realização duradoura, beira a
irracionalidade e a autoflagelação.
E o porquê deste padrão comportamental autômato, desumano, ter sido
imposto e estar sendo reproduzido com tanta fidelidade pelos seres humanos foi
exatamente um dos pontos que se buscou compreender por meio deste estudo, cujos
dados e informações coletadas convergiram para a constatação de que a
disseminação da racionalização econômica da vida, em todos os seus aspectos, está
vinculada a um processo de franca inversão de valores.
Eficiência, velocidade, quantidade, materialismo, individualismo, competição,
são exemplos de valores que, na sociedade do consumo, prevalecem em detrimento
de outros, como vocação, afeto, espontaneidade, coletividade, solidariedade. Sob o
prisma das relações de trabalho, as implicações práticas deste complexo axiológico,
de modo sintético, são: pessoas em busca de trabalhos que “paguem bem”, dispostas
a trabalharem o máximo de horas e desprovidas de qualquer senso de coletividade,
vez que movidas pelo interesse de se realizarem por meio de um consumo que
valoriza a individualidade das experiências, aquisições e sensações.
Poderíamos, pois, diante da premissa de que as relações de trabalho líquido-
modernas refletem justamente o novo complexo valorativo inaugurado pela
restruturação produtiva do capital, entender que, ao Direito do Trabalho, cabe
adequar-se a este cenário. Contudo, tendo em vista que os efeitos colaterais do
padrão de comportamento – ditado pela heteronomia das necessidades e desejos –
preconizado pelos novos parâmetros axiológicos vigentes, atingem diretamente a
dignidade do consumidor-trabalhador, que, ao priorizar o viés econômico do seu
trabalho, compactuando com a lógica exploratória do capital, “vende” não apenas a
sua força de trabalho, mas a sua saúde, o seu tempo de lazer, o seu convívio familiar
e as suas relações afetivas, não se julga correto, sob o prisma protetivo e humano,
simplesmente acatar o curso das coisas.
Fato é que, conforme advertido por Gorz (1968, p. 169), atividades que
transmitem um sentido cultural, produzindo e difundindo valores extra econômicos,
como as atividades educativas, artísticas, científicas e teóricas, só podem ser
159
reguladas pelo dinheiro às custas do que ele denomina “patologias do mundo da vida”,
ou, “para dizer de outro modo, de sua desarticulação”.
Talvez, seja por isso que o trabalho, compreendido como uma atividade de
potencial, simultaneamente, cultural, artístico, educativo e científico, submetido a uma
racionalização econômica sem precedentes, pareça ter se desarticulado tanto; talvez,
seja também por isso que o Direito do Trabalho, historicamente compreendido como
uma ciência de vínculos indissolúveis com as esferas sensíveis da vida humana,
esteja dando tantos sinais de desarticulação.
A sociedade do consumo, pensada, articulada, criada e imposta pelo capital,
parece ter atendido, com excelência, ao seu anseio de retomar os patamares de
expansão econômica, disseminando valores e ideais que enaltecem muito mais o
sucesso econômico da vida pessoal do que a própria vida. Contradição? Há quem
entenda que sim, há quem entenda que não. A grande questão é que, mesmo aqueles
que acreditam que sim, acabam coagidos a adotarem este comportamento
contraditório – ainda que em menor medida –, uma vez que deixar de segui-lo implica
retaliações que transcendem a esfera econômica, situando os não praticantes numa
zona de total invisibilidade social.
Tal raciocínio conduz à percepção de que a “ditadura” aparentemente
econômica do capital é, pois, totalizante. “Tanto quanto sobre a produção e a
distribuição das riquezas, a ditadura do capital se exerce sobre a maneira de produzi-
las, sobre o modelo de consumo e sobre a maneira de consumir, sobre a maneira de
trabalhar, de pensar, de viver”. (GORZ, 1968, p.137). Do mesmo modo, exerce-se
[...]sobre os operários, as fábricas e o Estado, exerce-se sobre a visão do futuro da sociedade, sobre sua ideologia, suas prioridades e seus fins, sobre o aprendizado que fazem os indivíduos de si próprios, de suas possibilidades, de suas relações com o outro e com o resto do mundo. É econômica, política, cultural, psicológica, ao mesmo tempo; é total. (GORZ, 1968, p.137)
E, justamente por ser totalizante, é que se acredita que a “ditadura” do capital
não pode ser combatida apenas no plano econômico. Retirar o viés unicamente
econômico das reações e movimentos de resistência diante dos intentos exploratórios
do capital é algo imprescindível se a finalidade for desarmá-lo, e não somente alcançar
concessões paliativas, que acabam fortalecendo e perpetuando a racionalização
econômica de esferas tão sensíveis da vida humana, como o trabalho.
160
Com números, cálculos, dinheiro, o capital sabe lidar perfeitamente bem e,
por esta razão, pretende que a linguagem de negociação seja sempre uma linguagem
numérica, contábil, monetária. No âmbito das relações de trabalho, isso implica
reconhecer que, enquanto as pretensões, garantias e direitos trabalhistas
permanecerem envoltos por propósitos predominantemente monetários, o Direito do
Trabalho será um direito muito mais próximo da linguagem (e, portanto, dos objetivos)
do capital do que dos próprios trabalhadores.
Assim, entende-se que a luta contra a crise ética que atinge o trabalho, as
relações de trabalho e o Direito do Trabalho, no bojo da sociedade do consumo,
impondo “adequações” que contrariam os seus princípios, valores e propósitos
originários, é uma luta cujo principal desafio é trazer para a centralidade dos embates
as questões sociais e humanas que afligem o mundo do trabalho, em detrimento das
meramente patrimoniais.
Proteger o trabalhador como ser humano deve ser o objetivo prioritário e
inafastável do Direito do Trabalho, sobretudo, quando se vive num modelo de
sociedade que tende a reduzir o trabalho a mero instrumento de consumo e a força
de trabalho e o trabalhador a meros “objetos” de consumo.
A pretensa dignificação pelo consumo não pode ser sobrevalorizada – nem
pela pessoa, nem pela sociedade e, tampouco, pelo Direito – a ponto de comprometer
a dignidade do trabalho e a própria dignidade do trabalhador. Aceitar esta lógica é
contrariar a própria natureza humana, que pressupõe não uma escolha entre um
trabalho digno ou um padrão de consumo socialmente aceitável, mas a coexistência
de atos de trabalho e atos de consumo que, juntos, dignifiquem a existência humana.
161
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