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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Ailana Santos Ribeiro A CRISE ÉTICA DO DIREITO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO Belo Horizonte 2018

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Page 1: A CRISE ÉTICA DO DIREITO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO · Linha de pesquisa: Trabalho, Modernidade e Democracia Belo Horizonte 2018 . ... Sociedade de consumo. 5. Direito e

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito

Ailana Santos Ribeiro

A CRISE ÉTICA DO DIREITO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO

Belo Horizonte 2018

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Ailana Santos Ribeiro

A CRISE ÉTICA DO DIREITO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO

Dissertação apresentada ao programa pós-graduação

stricto sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais como requisito parcial para obtenção do título de

Mestre em Direito

Orientadora: Professora Doutora Maria Cecília Máximo Teodoro Área: Direito Privado Linha de pesquisa: Trabalho, Modernidade e Democracia

Belo Horizonte 2018

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Ribeiro, Ailana Santos

R484c A crise ética do direito do trabalho na sociedade do consumo / Ailana

Santos Ribeiro. Belo Horizonte, 2017.

164 f.

Orientadora: Maria Cecília Máximo Teodoro

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Direito

1. Trabalho - Aspectos sociais. 2. Consumo (Economia) - Aspectos sociais. 3.

Direito do trabalho. 4. Sociedade de consumo. 5. Direito e ética. I. Teodoro,

Maria Cecília Máximo. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 331.16

Ficha catalográfica elaborada por Roziane do Amparo Araújo Michielini – CRB 6/2563

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Ailana Santos Ribeiro

A CRISE ÉTICA DO DIREITO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO

Dissertação apresentada ao programa pós-graduação

stricto sensu da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do

título de Mestre em Direito.

____________________________________________________________ Prof. Dra. Maria Cecília Máximo Teodoro (Orientadora)

____________________________________________________________ Prof. Dr. Márcio Túlio Viana _____________________________________________________________ Prof. Dr. Murilo Carvalho Sampaio Oliveira

Belo Horizonte, 09 de março de 2018

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AGRADECIMENTOS

À minha linda mãe, luz que aquece e clareia a minha existência.

A Ed, solo que firma, céu que abriga.

Ao Professor e amigo Cláudio Jannotti, anjo que confia e guia.

À Professora Maria Cecília, que, feito água, me regou.

Ao Professor Cléber Lúcio, fonte inesgotável de inspirações.

Ao Professor Márcio Túlio, pela grandiosidade da sua existência.

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RESUMO

O presente estudo pauta-se na investigação acerca das novas interações entre os

institutos do trabalho e do consumo na pós-modernidade. Por meio de uma pesquisa

essencialmente bibliográfica, pretende-se demonstrar que as transformações

empreendidas pelo capital na segunda metade do século XX determinaram o

deslocamento do foco do sistema produtivo da oferta para demanda, inaugurando um

modelo de sociedade fundada, predominantemente, no consumo. Assim, sem perder

a centralidade que lhe é conferida, sobretudo, pela sociedade capitalista, o trabalho

foi se reduzindo à condição de mero instrumento viabilizador do consumo. Nesse novo

contexto, as relações de trabalho, antes sólidas e estáveis, foram assumindo novas

conformações, consonantes com o ideal de flexibilidade ditado pelo capitalismo, em

seu novo estágio; ao trabalhador, também foi preciso conformar-se, sob pena de se

tornar inútil perante o mercado produtivo flexível consolidado. O mesmo processo de

adaptação aos novos ditames do capital, na sociedade do consumo, também atingiu

o Direito do Trabalho, fonte de uma proteção cujo viés econômico, patrimonial,

monetário, sobressai-se cada vez mais aos valores sociais e humanos que,

originariamente, fundamentam a sua existência e norteiam a sua aplicação, definindo

o que se denomina de ética justrabalhista. Desse modo, até que ponto o movimento

no sentido de adequação do Direito do Trabalho aos moldes da sociedade do

consumo transcende a uma simples conformação, culminando no que se denomina

de crise ética do Direito do Trabalho, é o que se propõe a investigar.

Palavras-chave: Trabalho. Consumo. Direito do Trabalho. Sociedade do consumo. Crise ética.

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ABSTRACT

The present study is based on the research about the new interactions between the

institutes of labor and consumption in postmodernity. By means of the method of

bibliographical research, it aims to demonstrate that the transformations undertaken

by capital in the second half of the twentieth century determined the shift of the focus

of the productive system from supply to demand, inaugurating a model of society

based, predominantly, on consumption. Thus, without losing the centrality conferred

on it, above all by capitalist society, the labor was reduced to the condition of mere

instrument to enable consumption. In this new context, labor relations, once solid and

stable, have assumed new conformations, consonant with the ideal of flexibility

dictated by capitalism in its new stage; to the worker, it was also necessary to conform,

under penalty of becoming useless before the consolidated flexible productive market.

The same process of adaptation to the new dictates of capital, in the society of

consumption, also reached the Labor Law, source of a protection whose economic,

patrimonial, monetary bias, stands out more and more to the social and human values

that, originally, base their existence and guide their application, defining what is known

as a work ethic. Thus, the extent to which the movement in the sense of the adequacy

of the Labor Law to the molds of the consumer society transcends a simple

conformation, culminating in what is called the ethical crisis of Labor Law, is what it

proposes to investigate.

Keywords: Labor. Consumption. Labor Law. Consumer society. Ethical crisis.

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SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................. 15

2 SOCIEDADE E TRABALHO .................................................................................. 19

2.1 .. A humanidade do ser e a sociabilidade no mundo: uma reflexão a partir de

Hannah Arendt ......................................................................................................... 19

2.2 Trabalho na pré-modernidade: a existência quase-humana do ser humano

.................................................................................................................................. 24

2.3Trabalho na modernidade: o inteirar e o inteirar-se do ser humano ............. 27

3 CAPITALISMO E TRABALHO .............................................................................. 33

3.1 Do feudalismo ao capitalismo: mudam as regras do jogo da exploração ... 33

3.2 O ethos do capitalismo industrial e a racionalização econômica do trabalho

.................................................................................................................................. 38

3.3A relação simbiótica entre capital e trabalho assalariado .............................. 44

4 A SOCIEDADE FUNDADA NO TRABALHO ASSALARIADO ............................. 47

4.1 A nova ordem industrial e o padrão produtivo fordista-taylorista ................ 47

4.2 O trabalho assalariado enquanto fator de solidez na nova ordem industrial

.................................................................................................................................. 54

5 DIREITO DO TRABALHO NO BOJO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL:

COMPREENDENDO O ESPÍRITO JUSTRABALHISTA .......................................... 59

5.1 A proteção social estatal no interior da sociedade industrial: movimentos

precursores .............................................................................................................. 59

5.2 O advento do Direito do Trabalho: “luxo” ideológico ou necessidade real?

.................................................................................................................................. 65

5.3 O espírito do Direito do Trabalho .................................................................... 73

6. A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL SOB O PARADIGMA DA

ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL ...................................................................................... 81

6.1 O capital em crise .............................................................................................. 81

6.2 A reanimação do capital: toyotismo, desregulamentação e flexibilização .. 87

7 A SOCIEDADE DO CONSUMO: UM MISTO DE INSTANTES ETERNOS,

HETEROFILIA, NECESSIDADES COMPLEXAS E INSATISFAÇÃO PERMANENTE

.................................................................................................................................. 99

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8 A REALOCAÇÃO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO E O

DIREITO DO TRABALHO ENTRE A PROTEÇÃO AO “TRABALHADOR-

CONSUMIDOR” E AO “CONSUMIDOR-TRABALHADOR” .................................. 115

8.1 O “eu trabalhador” à serviço do “eu consumidor”: repercussões sobre a

relação capital-trabalho ........................................................................................ 115

8.2 Do “pão” ao “smartphone de última geração”: a nova lógica interativa entre

trabalho e consumo .............................................................................................. 124

8.3 Direito do Trabalho ou “Direito reificador do trabalho”? Para além de um

novo espírito, uma crise ética .............................................................................. 130

8.4 Buscando sentidos e mecanismos práticos no plano jurídico-trabalhista:

autogestão do tempo, redução da jornada de trabalho, “segundo cheque”,

atuação sindical .................................................................................................... 144

8.5 O Direito do Trabalho e o futuro: perspectivas à luz de uma ordem pós-

consumista ............................................................................................................ 149

9 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 157

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 161

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Minhas coisas falam muito de mim Meu trabalho ainda fala de mim

Eu já falo pouco por mim

É tanto trabalho São tantas coisas

Tudo mais virou grão

Meu tempo Minha dança

Minha andança

Meu eu sem mim

(RIBEIRO, 2017)

Refletir sobre trabalho e consumo é refletir acerca de dois grandes pilares da

sociedade, em todas as suas fases e estágios já vivenciados.

O ser humano, desde os tempos mais remotos, realiza as suas atividades

cotidianas básicas mediante a combinação de atos de trabalho e de consumo. Assim,

pode-se considerar que ambas as práticas, trabalho e consumo, relacionam-se

intimamente com o sujeito, permitindo-o externar as suas habilidades e satisfazer as

suas necessidades mais básicas e de caráter vital.

Na segunda metade do século XX, o capitalismo industrial, ancorado no

modelo produtivo taylorista-fordista, caracterizado, sobretudo, por uma produção

vertiginosa e em massa, entra em colapso, exigindo a introdução de novas práticas

produtivas e de uma nova configuração para o mercado a ser reerguido.

Foi neste contexto que a sociedade industrial, movida pela e para a produção

– vez que o acúmulo de riquezas, legitimado e preconizado pelas doutrinas

protestantes, era considerado um fim em si mesmo –, diante da necessidade de

escoar os grandes volumes de produtos nos estoques e de retomar os patamares de

expansão econômica, deslocou o seu eixo da produção para o consumo.

A partir de então, o estímulo à demanda, que se realiza no consumo, passou

a ser compreendido como ferramenta imprescindível à regeneração do capital.

Consequentemente, o ato de consumir tornou-se, muito além de um meio de se

atender a necessidades humanas básicas, uma prática imposta, desvinculada da

noção de necessidade e da categoria do “suficiente”.

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Estabeleceu-se, portanto, a sociedade do consumo: movida pelo e para o

consumo. Consequentemente, no campo do trabalho iniciou-se um movimento no

sentido de adequação aos novos preceitos ditados pela razão econômica, ainda mais

pungente nesse modelo de sociedade, regida pelo fenômeno do consumismo: o

imediatismo, a eficiência, a fugacidade, a superficialidade, a versatilidade, o

individualismo, a flexibilidade.

Desse modo, sem perder a centralidade que lhe é conferida, sobretudo, pela

sociedade capitalista, o trabalho foi se distanciando cada vez mais da noção de fim

em si mesmo e sendo reduzido à condição de mero instrumento viabilizador do

consumo. Por conseguinte, as relações de trabalho, antes sólidas e estáveis, foram

assumindo novas conformações consonantes com o ideal de flexibilidade ditado pelo

capitalismo; ao trabalhador também foi preciso conformar-se, sob pena de se tornar

inútil perante o mercado produtivo flexível consolidado.

Esse mesmo processo de adaptação subserviente aos ditames do capital, na

sociedade do consumo, atingiu o Direito do Trabalho e tem sido enfrentado com ar de

fatalidade pela sociedade, inclusive pelos próprios trabalhadores, destinatários de

uma proteção cujo viés econômico, patrimonial, monetário, sobressai-se cada vez

mais ao viés social e humano que define a ética justrabalhista.

Assim, até que ponto esse processo de subserviência do Direito do Trabalho

aos ditames da sociedade do consumo transcende a uma simples conformação,

culminando no que se denomina de crise ética do Direito do Trabalho, é o que se

propõe a investigar.

Nesse sentido, a presente pesquisa orbita em torno do seguinte

questionamento: a subsunção do Direito do Trabalho à lógica econômico-flexível da

sociedade do consumo compromete o conjunto de valores e princípios fundantes,

justificadores e norteadores do ramo justrabalhista, que compõem o que se denomina

“ética” do Direito do Trabalho?

Buscando se posicionar acerca do referido problema, inicialmente, por meio

do método científico dedutivo e mediante uma pesquisa essencialmente bibliográfica,

complementada por estudos de casos e dados estatísticos, pretende-se analisar as

dimensões estruturantes do trabalho e do consumo na sociedade capitalista, bem

como compreender as raízes históricas do Direito do Trabalho e o arcabouço

principiológico e axiológico que lhe é intrínseco.

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Em seguida, perpassando-se pelas transformações políticas, econômicas,

culturais, religiosas, ideológicas e axiológicas vivenciadas na transição da

modernidade para a pós-modernidade (ou modernidade sólida para a modernidade

líquida), buscar-se-á promover uma análise crítica das reverberações do novo modelo

de sociedade inaugurado e, sobretudo, do novo modelo de produção capitalista sobre

o mundo do trabalho.

A partir desta análise crítica, pretende-se demonstrar que a reestruturação

produtiva do capital, empreendida a partir da segunda metade do século XX,

determinou o deslocamento do interesse do sistema produtivo para a demanda,

culminando na consolidação de uma sociedade predominantemente fundada no

consumo. Objetiva-se, também, demonstrar, com respaldo na teoria da “crítica da

razão econômica do trabalho”, do sociólogo francês André Gorz, que, na pós-

modernidade, o trabalho encontra-se submetido a uma racionalização econômica

significativamente mais intensa, assumindo caráter essencialmente instrumental e se

distanciando sobremaneira da esfera da realização pessoal – deslocada para o plano

do consumo.

Neste novo cenário, conforme se verá, novas formas de estratificação social,

bem como de auto reconhecimento, passam a ser percebidas, uma vez que o sujeito

pós-moderno tende a se identificar e ser identificado muito mais como consumidor do

que como trabalhador. Do mesmo modo, o Direito do Trabalho, assim como o seu

objeto regulador, as relações de trabalho assalariado, seguem uma tendência de

subsunção a uma racionalidade estritamente econômica, em franco prejuízo dos seus

propósitos sociais e humanos.

Regido por uma razão prevalentemente econômica, nos termos do que

demonstrará, o ramo juslaboral, em detrimento do seu compromisso social e

humanístico, tende a priorizar o viés econômico das tutelas, direitos e garantias do

trabalhador, protegendo-o mais no seu papel de consumidor do que propriamente de

trabalhador, inviabilizando, assim, a edificação de uma “cultura do trabalho”, que se

entende ser indispensável para o que Gorz (2003) denomina “cultura do viver”.

Por todas essas razões, entende-se ser relevante a investigação científica

acerca das transmutações vivenciadas pelos institutos do trabalho e do consumo na

pós-modernidade, a fim de que, compreendendo-se os seus reais sentidos e

propósitos, compreenda-se se o Direito do Trabalho, enquanto instituto que lida com

a força de trabalho em si e com o seu principal consectário, a renda, encontra-se apto

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a cumprir a sua finalidade ética de proteger, simultaneamente, o ser humano como

trabalhador e o trabalhador como ser humano.

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2 SOCIEDADE E TRABALHO

Esse homem que vos fala

Não sabe o que é viver sem trabalhar Ora! E nem quero saber

Quero mais é viver pra trabalhar E morrer de trabalhar

Como fizeram meu Avô, meu Pai e meu Irmão Que viveram e morreram com a enxada na mão

(RIBEIRO, 2017)

2.1 A humanidade do ser e a sociabilidade no mundo: uma reflexão a partir de

Hannah Arendt

Quando me tornei parte, deixei ali muito de mim

E como parte que perde uma parte

Ainda espero do mundo encaixes que sirvam em mim

(RIBEIRO, 2017)

Dentre as incontáveis espécies de seres vivos, encontram-se os seres

humanos: pertencentes ao gênero homo, derivado do termo em latim humanus,

correspondem aos seres vivos que, biologicamente, destacam-se pelo elevado

desenvolvimento físico e, sobretudo, cerebral, favorável à interação racional com o

meio que os cercam.

Assim, falar de natureza humana pressupõe, sem dúvida, que se leve em

consideração aspectos da fisiologia, anatomia, histologia, evolução, genética e tudo

mais que integra a ciência da Biologia. O que não quer dizer que o conhecimento

isolado de tais aspectos seja suficiente para definir e tampouco compreender a

natureza humana.

Fato é que, ao lado dos fatores biológicos atuam os fatores sociológicos, como

o tempo, o lugar e a história, pré-moldando (e não moldando definitivamente, como

entendem os adeptos do darwinismo social) os seres enquanto humanos.

Assim, expressando essa atuação conjunta de fatores sociológicos e

biológicos sobre os seres humanos, a sua natureza - seja entendida enquanto aquilo

é irredutível em todo ser humano ou enquanto aquilo que é mais essencial ao humano

-, tem sido investigada, há séculos, como o ponto de partida para a compreensão das

relações humanas, que, simultaneamente, determinam e são determinadas pela vida

em sociedade. (CAVARERO; BUTLER, 2005, p. 651)

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Thomas Hobbes e John Locke, grandes teóricos do contratualismo social, que

floresceu na modernidade para propor formas de se conciliar a supervalorização da

individualidade humana com o natural antagonismo entre os seres humanos, cujos

objetivos nem sempre são coincidentes, embasaram as suas respectivas teorias do

contrato social em concepções objetivas - e antagônicas - da natureza humana.

Hobbes, ao preconizar o Estado Leviatã, partiu do pressuposto de que o

homem, enquanto “lobo do homem”, sujeita-se a um estado de natureza negativo,

demandando, portanto, a existência de um soberano com poderes absolutos para

inibir o caos social. Locke, por sua vez, ao preconizar o Estado Mínimo, embasou-se

em uma concepção positiva, benigna, da natureza humana, que tornaria injustificada

e ilegítima qualquer intervenção estatal que excedesse a proteção à segurança e à

propriedade privada. (MORISON, 2006, p.32)

Desconfiando da plausibilidade de se objetivar a natureza humana, Hannah

Arendt (2014, p.12) considerou que a simples soma das capacidades e atividades

humanas por excelência pode se revelar como condição para a existência humana,

num dado momento e contexto histórico, mas não pode ser considerada um

equivalente à natureza humana, enquanto essência do homem.

Na visão de Arendt (2014, p.12), a natureza humana, que se revela na

“questão que me tornei para mim mesmo” (“quaestio mihi factus sum”), é uma questão

muito mais teológica do que propriamente biológica ou sociológica.

Isso porque, segundo a filósofa, uma legítima resposta ao questionamento “o

que sou? ”só poderia advir de uma resposta divina. Os seres humanos, embora aptos

a conhecerem a natureza ou essência das coisas que os rodeiam, jamais seriam

capazes de fazer o mesmo a seu próprio respeito: seria como pular as suas próprias

sombras.

É altamente improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e definir a essências naturais de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos, sejamos capazes de fazer o mesmo a nosso próprio respeito: seria como pular as nossas próprias sombras. Além disso, nada nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas têm. Em outras palavras, se temos natureza ou essência, então certamente só um deus poderia conhecê-la e defini-la, e a primeira precondição é que ele pudesse falar de um “quem” como se fosse um “quê”. (ARENDT, 2014, p.13)

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Esclarece, ainda, a autora que qualquer tentativa humana no sentido de definir

a sua própria natureza acabaria por resultar na construção de uma deidade,

distanciando o homem da mundanidade e deformidade que lhes são intrínsecas:

A perplexidade decorre do fato de as formas de cognição humana aplicáveis às coisas dotadas de qualidades “naturais” – inclusive nós mesmos, na medida limitada em que somos exemplares da espécie de vida orgânica mais altamente desenvolvida – de nada nos valerem quando levantamos a pergunta: e quem somos nós? É por isso que as tentativas de definir a natureza humana resultam quase invariavelmente na construção de alguma deidade, isto é, no deus dos filósofos que, desde Platão, revela-se, em um exame mais acurado, como uma espécie de ideia platônica do homem. (ARENDT, 2014, p.14)

Assim, entendendo que presumir que o ser humano possua uma essência e,

ainda, pretender definir e objetivar essa essência é tarefa inalcançável para seres não

divinos, mas sem ignorar o fato de que existem condicionantes comuns a toda

existência humana, Arendt (2014), em lugar de natureza, centra-se na investigação

do que denomina de “condição humana”.

Os humanos são, invariavelmente, seres condicionados. Tudo aquilo que se

adentra ao mundo, por si próprio ou mediante o esforço do homem, torna-se um

condicionante da sua existência. Assim, o homem que, simplesmente por existir,

impacta o mundo, é também impactado pelo mundo, e esse intercâmbio é exatamente

o que confere sentido à existência de um e de outro. Em outras palavras, “a existência

humana seria impossível sem coisas, e estas seriam um amontoado de artigos

desconectados, um não-mundo, se não fossem os condicionantes da existência

humana”. (ARENDT, 2014, p.12)

Segundo a filosofia arendtiana são três as condições básicas para o caráter

humano da existência do homem: o trabalho, a obra e a ação.

O trabalho, corresponde à atividade biológica humana direcionada a satisfazer

as necessidades vitais do homem; a obra corresponde ao mundo artificial de coisas,

à mundanidade; a ação consiste no relacionamento puro entre os homens, sem a

intermediação de coisas, sendo a base de toda a vida política. (ARENDT, 2014, p.9)

Dentre as referidas condições humanas básicas, a ação é, portanto, a

responsável por desvelar que uma existência verdadeiramente humana transcende a

individualidade e a materialidade, isto é, o simples existir mediante a interação com

as coisas do mundo.

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Além de existir, atendendo às suas necessidades vitais e interagindo com um

mundo de coisas criadas, o homem precisa se relacionar com outros homens, pelo

simples fato de que “os homens e não o Homem vivem na Terra e habitam o mundo”

(ARENDT, 2014, p.9)

Assim, pode-se considerar que a ação, como reflexo da pluralidade, é a

condição de toda a vida política, que organiza e rege o que se convencionou

denominar de sociedade:

As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e, no entanto, esse ambiente, o mundo no qual nascemos, não existira sem a atividade humana que o produziu, como no caso de coisas fabricadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; o que o estabeleceu por meio da organização, como no caso do corpo político. Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos. (ARENDT, 2014, p. 27)

Tendo em vista justamente essa imbricação entre a existência do homem e a

convivência com outros homens, na antiguidade, e mais precisamente no vocabulário

romano, “viver” e “estar entre os homens” eram expressões consideradas sinônimas,

assim como o eram as expressões “morrer” e “deixar de estar entre os homens”,

conforme ensina Arendt:

[...] a língua dos romanos - talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter homines esse) ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter homines esse desinere). Mas em sua forma mais elementar, a condição humana da ação está implícita até em Gênesis (“Macho e fêmea, Ele os criou”), se entendermos que esse relato da criação do homem é distinto, em princípio, do outro segundo o qual Deus originalmente criou o Homem (adam) – “ele” e não eles, de modo que a multidão dos seres humanos vem a ser o resultado da multiplicação. (ARENDT, 2014, p. 10)

Nesse sentido, enquanto reflexo da convivência entre uma pluralidade de

homens, a ação, base para a atividade política, seria apenas um “luxo desnecessário”,

e não uma condição da existência humana, se esses homens fossem meras

repetições intermináveis de um modelo objetivo, único e previsível, como a natureza

das coisas que os rodeiam. (ARENDT, 2014, p.10)

E se a humanidade ou caráter humano do ser, além do trabalho e da obra,

pressupõe a ação, e se a ação é a base para a política, que rege a vida em sociedade,

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pode-se dizer que São Tomás de Aquino acertou quando, ao traduzir a expressão

aristotélica zõon politikõn (animal político) acrescentou o termo “social”, consagrando-

a como “homo est naturaliter politicus, id est socialis” (o homem é por natureza político,

isto é, social). (ARENDT, 2014, p.28)

Todo esse raciocínio conduz à percepção de que a capacidade política

humana é, portanto, o grande fator viabilizador da organização das pessoas e das

coisas do mundo em um corpo social, que, na antiguidade, institucionalizou-se sob a

forma de cidade-Estado ou pólis.

O surgimento das cidades-Estado representou um marco social de grande

relevância à medida que concedeu ao homem, oficialmente, uma segunda existência,

distinta daquela da qual desfrutava enquanto membro de uma família. Segundo Arendt

(2014, p.29), com a fundação da pólis, além da sua vida privada, o homem recebeu

uma espécie de segunda vida: o seu bios politikos.

Na esfera pública da pólis, a atuação do homem ocorria por meio da ação e

do discurso, que, na concepção de Aristóteles, correspondiam às únicas atividades

passíveis de serem consideradas políticas, uma vez que voltadas ao domínio de

assuntos humanos situados além da esfera da necessidade – que consistia em objeto

de preocupação restrito ao âmbito privado ou doméstico da vida dos homens.

(ARENDT, 2014, p.30)

Os atuantes na esfera pública eram, portanto, apenas as pessoas dotadas do

privilégio de atuarem de modo desvinculado da questão da sobrevivência, já que a

satisfação das suas necessidades vitais era garantida pela atuação de outros homens:

os escravos.

Assim, pode-se considerar que o que determinava o estado de escravidão de

um homem na antiguidade era a vinculação das atividades que realizava à satisfação

de necessidades, próprias ou alheias, por meio daquilo que, segundo a classificação

conceitual de Arendt, enquadrava-se na categoria do trabalho.

O fenômeno da necessidade correspondia, pois, a um fenômeno pré-político:

apenas liberando-se dela o homem poderia ascender ao espaço público para se

dedicar à atividade política e, por conseguinte, conquistar a liberdade.

No interior do lar, a liberdade era sempre inexistente, já que o objetivo das

atividades ali realizadas, por meio do trabalho, reduzia-se à satisfação de

necessidades básicas, ligadas à manutenção da própria vida. Assim, o homem que

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vivesse unicamente a vida privada, por não ser admitido para adentrar o domínio

público, sequer era considerado inteiramente humano. (ARENDT, 2014, p. 47)

Observe-se, então, que reinava na antiguidade uma separação rígida entre a

vida pública e a vida privada, que não se imiscuíam por força da total incompatibilidade

entre os seus propósitos: alcançar a liberdade e atender a necessidades,

respectivamente.

Foi apenas em sede de modernidade, como se verá a seguir, que a atenuação

desse abismo veio a ocorrer, conferindo novos significados e dimensões às esferas

pública e privada da vida humana, bem como às atividades realizáveis em cada uma

delas.

2.2 Trabalho na pré-modernidade: a existência quase-humana do ser humano

Pago pela minha vida com a minha liberdade

A cada necessidade, um grão de liberdade

Perdida?

Não sei

Dizem que sim

Continuo dizendo que não sei

(RIBEIRO, 2017)

Num contexto em que a atividade política, componente da condição humana

da ação, realizava-se no âmbito público por meio dos poucos homens privilegiados

pelo desfrute da liberdade, o domínio privado do lar correspondia a uma esfera de

sujeição, na qual o homem, constrangido pelas necessidades vitais, existia não como

um “ser verdadeiramente humano, mas somente como um exemplar da espécie

animal humana”. (ARENDT, 2014, p.56)

Nesse sentido, o trabalho, enquanto atividade destinada à manutenção da

vida, restrita ao lar, era fator de sujeição, aprisionamento e exclusão social, na medida

em que obstaculizava a inserção do sujeito na vida da pólis. Trabalhar era curvar-se

à necessidade, agir em um constante estado de servidão à vida própria e alheia,

reduzindo a existência do homem a uma “quase-existência humana”. (GORZ, 2003,

p.22)

Realçando essa carga de menosprezo despejada sobre o trabalho e sobre o

ser que trabalhava, em sede de pré-modernidade, ensina Gorz que:

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Em todas as sociedades pré-modernas, aquelas e aqueles que o realizavam eram considerados inferiores: pertenciam ao reino natural, não ao reino humano. Estavam submetidos a necessidades, incapazes, portanto, de elevação de espírito, de desinteresse, de tudo aquilo que habilitava a ocupar-se dos assuntos da política. [...] O homem livre recusava a submeter-se à necessidade; dominava seu corpo para não se transformar em escravo de suas necessidades materiais e, caso trabalhasse, era somente com a intenção de não depender daquilo que não domina, isto é, para assegurar ou ampliar a sua independência. (GORZ, 2003, p.22)

No mundo antigo, liberdade e necessidade eram, pois, forças contrárias,

terminantemente inconciliáveis, razão pela qual o trabalho, enquanto meio para

produzir e reproduzir as bases materiais necessárias à existência humana, jamais

integraria o reino da liberdade.

Preso ao reduto dos lares, o trabalho servia apenas à comunidade natural da

família; a busca desinteressada pelo bem público e o consequente desfrute de uma

boa vida correspondiam a um estágio transcendente ao da materialidade da vida, no

qual as potencialidades humanas eram externadas, compartilhadas e revertidas em

liberdade para o ator do meio público.

Essa concepção antropológica do trabalho, enquanto reflexo da necessidade

do homem de subsistir “com o suor do seu rosto”, perdurou por toda a antiguidade,

prevalecendo ainda nos tempos medievais. Foi apenas com o advento da

modernidade que o trabalho, enquanto categoria sociológica, fonte de identidade e de

integração social do homem, tornou-se reconhecido. (GORZ, 2003, p. 23)

Mas antes de se adentrar às alterações profundas que atingiram a categoria

do trabalho na modernidade, é importante pontuar que, enquanto dispêndio de energia

em prol da satisfação de necessidades, para além da antiguidade, o trabalho

acompanhou a trajetória humana desde os tempos pré-históricos, quando a caça e a

pesca representavam as únicas fontes de subsistência.

O jurista Rui Barbosa (2007, p.40), em sede do seu grande clássico “Oração

aos Moços”, enfatizando a essencialidade do trabalho na vida humana e o

considerando, ao lado da oração, o recurso mais poderoso na criação moral do

homem, considerou que “o trabalho é o inteirar, o desenvolver, o apurar das energias

do corpo e do espírito, mediante a ação contínua de cada um sobre si mesmo e sobre

o mundo onde labutamos”.

Assim, mesmo compreendido enquanto um modo de (re)produzir o

aprisionamento do homem às suas necessidades vitais, não restam dúvidas de que o

trabalho, apesar de não ter gozado de reconhecimento social até os tempos

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medievais, dispunha de uma relevância incontestável na vida de cada homem,

simplesmente por se relacionar intimamente com a manutenção da sua existência.

Nesse sentido, Claus Offe considera que, certamente, todas as sociedades

foram e são impelidas a se estabelecer por meio do trabalho ao estabelecerem, por

meio dele, “uma relação metabólica com a natureza”, organizando esse metabolismo

“de modo que seus resultados sejam suficientes para a sobrevivência física do homem

em sociedade e para a estabilização da forma específica de organização desse

metabolismo”. (OFFE, 1989, p.13)

Ocorre que a visão dos filósofos antigos de que a vinculação do trabalho ao

ciclo vicioso das necessidades vitais determinava a sujeição e inferioridade do ser que

trabalhava aproximou os atos de trabalho de algo não só banal como torturante. Afinal,

o que poderia ser mais martirizante do que agir sob um constante estado de

necessidade?

Sob tal prisma, trabalhar era abrir mão de viver para sobreviver e isso era o

bastante para tornar justificável o estigma de penoso e sacrificante que a categoria do

trabalho carregou consigo durante séculos.

Convém realçar que essa potencialidade do trabalho para causar dor e

sofrimento encontra-se inclusive na etimologia da palavra, que do latim tripalium,

corresponde a um instrumento, comum em terras europeias, composto por três

estacas afiadas de madeira, que, apesar de originalmente utilizado para servir à

agricultura no cultivo do trigo, popularizou-se por servir de base para o martírio de

pobres e escravos que não pagavam impostos.1

Essa mesma carga negativa está contida no significado de palavras do

vocabulário europeu utilizadas para designar “trabalho”: a nomenclatura grega ponos,

a francesa travail, a alemã Arbeit, todas significam dor e esforço, sendo inclusive

utilizadas para designar as dores do parto. (ARENDT, 2014, p.59)

Pode-se então dizer que, enquanto persistiu a separação inflexível entre o

público e privado, o trabalho, confinado na esfera doméstica, apesar de essencial à

vida, não era fonte de qualquer reconhecimento social e de orgulho por aquele que o

desempenhava; a trivialidade de sua finalidade tornou-o banal e, por um considerável

período de tempo, trabalhar não significou nada além de se sujeitar a um modo de

vida quase-humano.

1 Dicionário Etimológico. Disponível em: https://www.dicionarioetimologico.com.br/trabalho/. Acesso em: 14 ago. 2017.

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Nas palavras de Arendt,

o domínio privado do lar era a esfera na qual as necessidades da vida, da

sobrevivência individual e da continuidade da espécie eram atendidas e

garantidas. Uma das características da privatividade, antes da descoberta do

íntimo, era que o homem existia nessa esfera não como um ser

verdadeiramente humano, mas somente como exemplar da espécie animal

humana. Residia aí, precisamente, a razão última do vasto desprezo nutrido

por ela na Antiguidade. (ARENDT, 2014, p.56)

Assim, pode-se considerar que o trabalho, como hoje é compreendido, é fruto

da modernidade. A fórmula para a inserção no universo social, como uma espécie de

segundo nascimento do homem, que outrora realizava-se por meio da política, com o

advento da modernidade, passou a se realizar por meio do trabalho.

2.3 Trabalho na modernidade: o inteirar e o inteirar-se do ser humano

Alguém me disse

que essas pernas que me sustentam

e esses braços que me alimentam

são a força motriz do mundo

(RIBEIRO, 2017)

A institucionalização das cidades-Estados na antiguidade, conforme abordado

previamente, marcou a divisão entre as esferas pública e privada da vida de tal sorte

que apenas as atividades políticas, materialmente despretensiosas, conferiam ao seu

ator uma vida pública, alçando-o à condição de homem livre.

A vida privada, por sua vez, representava um refúgio dos assuntos da res

publica, de modo que o termo “privado”, contraposto ao “público”, era empregado para

expressar literalmente um estado negativo de privação do homem. (ARENDT, 2014,

p.47)

Por conseguinte, enquanto atividade restrita ao âmbito privado da vida pré-

moderna, o trabalho representava um meio para se manterem excluídos da vida da

pólis os homens que, desprovidos de escravos e coagidos pelo próprio corpo a

trabalharem, consumiam todo o tempo e a energia de que dispunham para atender às

suas necessidades vitais.

A vida privada correspondia, portanto, a um estado de prisão dos homens

desprivilegiados diante das necessidades materiais impostas por seu instinto de

sobrevivência, que apenas podiam ser satisfeitas por meio do suor do seu próprio

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corpo, mediante atos de trabalho; e por privar o homem de se inteirar dos assuntos e

decisões relevantes para a pólis, a vida vivida na privatividade, segundo a cultura pré-

moderna, era uma espécie de quase-vida ou, no máximo, uma vida medíocre.

Assim, pode-se considerar que a valorização da esfera privada enquanto fonte

de intimidade - e a consequente desvinculação do termo “privatividade” do termo

“privação” - foi um fruto da modernidade, ou, mais precisamente, do processo de

individualização da vida introduzido pela modernidade. “Hoje, não pensamos mais

primeiramente em privação quando empregamos a palavra ‘privatividade’, e isso, em

parte, se deve ao enorme enriquecimento da esfera privada por meio do moderno

individualismo”. (ARENDT, 2014, p.47)

Subsidiada por movimentos intelectuais e culturais de significativa valorização

do indivíduo, a modernidade desencadeou um grande estreitamento entre as esferas

pública e privada, de modo que as atividades desempenhadas pelo indivíduo no

interior do seu lar – enquadradas na categoria “trabalho”, segundo a filosofia

arendtiana –, ganharam dimensão pública, passando a repercutir no meio social.

Importante realçar que as raízes históricas do que se denomina de

modernidade estão sediadas no período compreendido entre os séculos XIV e XVI,

quando, diante do surgimento dos Estados Nacionais ocidentais, as instituições

religiosas católicas, até então hegemônicas em termos de controle político e poder

sobre o modo de pensar e agir dos homens, entraram numa crise profunda.

(WOLKMER, 2005, p.10)

Essa crise que assolou o universo medieval, gerando o questionamento dos

princípios e valores místicos regentes desse universo, foi impulsionada, em grande

medida, pela Revolução Científica, que, ao atrelar o conhecimento à razão e à prática

experimental, distanciou-o do plano divino e o aproximou dos homens, promovendo o

que se convencionou chamar de “renascimento” do espírito humano. (WOLKMER,

2005, p. 17)

Assim, inspirada pelos princípios e valores introduzidos pelo Humanismo

renascentista, muito além de um “fluxo histórico do tempo”, a modernidade

representou um fenômeno cultural, que transmutou a base axiológica norteadora da

vida humana, deslocando o seu eixo do teocentrismo para o antropocentrismo.

(WOLKMER, 2005, p.14)

Ensina Antonio Carlos Wolkmer (2005, p. 17) que esse movimento cultural

antropocêntrico e humanista, cujo berço foi a Itália do século XV, representou “a

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celebração do humano como força autônoma e racional, desvinculada de todas as

restrições transcendentais que inviabilizavam a criatividade do pensamento e a

liberdade prática objetiva”. E ao romper com a “concepção medieval, teológico-natural,

da sociedade como uma ordem presidida por Deus”, o Renascimento inaugurou uma

“concepção voluntarista da sociedade” – então compreendida como produto de uma

construção voluntária e artificial do homem, e não com uma obra divina –, convergindo

as dimensões da existência humana para o plano terreno, antropocêntrico,

racionalista e, sobretudo, individualista.

Zygmunt Bauman (2001, p.143), sem desprezar os demais acontecimentos

históricos concorrentes para a inauguração da era moderna, considerou a expansão

marítimo-comercial dos Estados Nacionais europeus consolidados por meio das

“Grandes Navegações” e a conquista territorial dela decorrente, o fator decisivo para

a alteração paradigmática da relação tempo-espaço, que teria marcado o início da

modernidade.

Segundo o autor, a modernidade teria iniciado com a colonização do espaço

pelo tempo, numa espécie de casamento no qual o parceiro dinâmico, sem dúvidas,

era o tempo; por conseguinte, a história do tempo teria começado com a modernidade,

já que, “de fato, a modernidade é, talvez mais que qualquer outra coisa, a história do

tempo: a modernidade é o tempo em que o tempo tem uma história”. (BAUMAN, 2001,

p. 140)

Pode-se associar o começo da era moderna a várias facetas das práticas humanas em mudança, mas a emancipação do tempo em relação ao espaço, sua subordinação à inventividade e à capacidade técnica humanas e, portanto, a colocação do tempo contra o espaço como ferramenta da conquista do espaço e da apropriação de terras não são um momento pior para começar uma avaliação que qualquer outro ponto de partida. A modernidade nasceu sob as estrelas da aceleração e da conquista de terras, e essas estrelas formam uma constelação que contém toda a informação sobre seu caráter, conduta e destino. (BAUMAN, 2001, p. 140)

As descobertas e inovações promovidas pela Revolução Científica, dentre as

quais assumiu grande relevância a construção dos veículos viabilizadores das

Grandes Navegações, o tempo tornou-se um instrumento de resistência ao caráter

estático do espaço, um “fator independente das dimensões inertes e imutáveis das

massas de terras e dos mares”, que fez “exequível a superação de obstáculos e limites

à ambição humana”. Nas palavras proferidas pelo ex-presidente norte americano John

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Kennedy, “como uma ferramenta, e não como um sofá”, o tempo deveria ser utilizado

e manipulado pelo homem em benefício dele próprio. (BAUMAN, 2001, p. 142)

E não há dúvidas de que, por trás de todas as alterações objetivamente

verificadas com o advento da modernidade, dentre as quais se destacaram o declínio

das instituições religiosas católicas, a consolidação dos Estados Modernos

absolutistas como as novas fontes centralizadoras do poder político e as conquistas

territoriais decorrentes das Grandes Navegações, as transformações axiológicas

vivenciadas atingiram direta e significativamente os modos de agir, de pensar e de

sentir do homem moderno.

Arendt (2014, p.48), considerando Rousseau o maior explorador das questões

íntimas do homem na modernidade, pontua que, segundo o autor, tanto o íntimo

quanto o social representavam formas subjetivas da vida humana que, distinguidas

por uma linha cada vez mais tênue, permitiam uma indevida intromissão e perversão

das questões do coração pela sociedade. Assim, “o indivíduo moderno e seus

intermináveis conflitos, sua incapacidade tanto de sentir-se à vontade na sociedade

quanto de viver completamente fora dela, seus estados de espírito em constante

mutação e o radical subjetivismo de sua vida emocional” teriam desencadeado o que

Rousseau definiu como “rebelião do coração”.

E diante desse novo paradigma antropocêntrico, racionalista e individualista,

a supervalorização do homem e da sua individualidade – o que torna a nomenclatura

“indivíduo” a mais pertinente para se referir ao homem moderno – as emoções, os

pensamentos e demais questões íntimas da vida humana despojaram-se da

obscuridade e irrelevância do lar e ascenderam à esfera pública.

O próprio florescimento da poesia e da música, a partir de meados do século

XVIII, constitui suficiente testemunho dessa inusitada imbricação entre o público e o

privado, entre o íntimo e o social, haja vista que a composição de um poema ou de

uma canção desemboca, quase sempre, num processo de publicização dos mais

recônditos pensamentos e sentimentos do indivíduo que compõe. (ARENDT, 2014, p.

48)

Sobre essa tendência de publicização da vida privada inaugurada pela

modernidade, Arendt (2014, p. 56) assinala que “a admissão das atividades

domésticas e da administração do lar no domínio público” inaugurou uma irresistível

tendência de canalizar o processo da vida para o domínio público, tornando as

sociedades modernas, ao contrário das comunidades pré-modernas, estruturas de

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organização pública do processo vital, criadas para aprimorar as condições de

existência de cada indivíduo e concentrando-se, para tanto, em torno da atividade

necessária para a manutenção da vida: o trabalho.

Assim, pode-se dizer que a sociedade inaugurada sob o paradigma da

modernidade deu origem a um formato organizacional no qual “o fato da dependência

mútua em prol da vida, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual se

permite que as atividades relacionadas com a mera sobrevivência apareçam em

público”. (ARENDT, 2014, p. 57)

Foi precisamente nesse contexto que o trabalho, embora tenha continuado a

representar uma atividade ligada ao processo vital em seu sentido mais elementar, foi

promovido à estatura de coisa pública, deixando de representar um acontecimento

banal de repercussão estritamente doméstica para representar uma importante

atividade de integração e progresso, cujos resultados tornaram-se indispensáveis

para o aprimoramento de todo o mundo habitado. (ARENDT, 2014, p. 57)

Nesse sentido, considera Gorz que o que hoje é chamado de “trabalho”,

dotado de inquestionável relevância pública por representar simultaneamente o

fundamento e a finalidade última da sociedade, corresponde a uma invenção da

modernidade – que, mais à frente, foi apropriada e generalizada pelo industrialismo:

O trabalho, no sentido contemporâneo do termo, não se confunde nem com os afazeres, repetidos dia após dia, necessários à manutenção e à reprodução da vida de cada um; nem com o labor, por mais penoso que seja, que um indivíduo realiza para cumprir uma tarefa da qual ele mesmo e seus próximos serão os destinatários e os beneficiários; nem com o que empreendemos por conta própria, sem medir nosso tempo e esforço, cuja finalidade só interessa a nós mesmos e que ninguém poderia realizar em nosso lugar. Se chamamos a essas atividades “trabalho” – o “trabalho doméstico”, o “trabalho do artista”, o “trabalho de autoprodução”- fazêmo-lo em um sentido radicalmente diverso do sentido que se empresta à noção de trabalho, fundamento da existência da sociedade, ao mesmo tempo sua essência e sua finalidade última. Pois a característica mais importante desse trabalho – aquele que “temos”, “procuramos”, “oferecemos”- é ser uma atividade que se realiza na esfera pública, solicitada, definida e reconhecida útil por outros além de nós e a este título remunerada. (GORZ, 2003, p. 21)

Isso quer dizer que o trabalho – até então realizável apenas no âmbito

doméstico, mediante atos cujo produto final esgotava-se ali mesmo, atendendo às

necessidades vitais de quem o realizava e, no máximo, da sua família –, ao ascender

à esfera pública como o principal mecanismo de construção e aprimoramento do

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mundo para a vida em sociedade, tornou-se símbolo de progresso e fator de

integração, coesão e reconhecimento sociais.2

Assim, como advertido por Arendt (2014, p.58), a emancipação do trabalho,

que inaugurou uma sociedade sobretudo de trabalhadores, não foi uma consequência

da emancipação da classe operária, decorrente da industrialização, mas sim, um

acontecimento prévio a ela.

O que, de fato, alterou-se com o processo de industrialização, expandido no

século XVIII, conforme será exposto a seguir, foi a qualidade desse trabalho já

emancipado das amarras do lar, e, consequentemente, dos trabalhadores envolvidos

nesse processo.3

2 Destaca-se que, não obstante tenha se verificado essa ascensão do trabalho, de modo geral, ao

âmbito público, em tempos hodiernos, o trabalho de natureza doméstica, realizado no âmbito privado, em proveito próprio, dos entes familiares ou de um terceiro, não deixou de existir. Mas, talvez, justamente em virtude desse menosprezo histórico, por se realizar em âmbito estritamente doméstico, o trabalho de natureza doméstica, apesar de repercutir de modo significativo na esfera pública – ainda que do ponto de vista mediato, liberando os respectivos tomadores para o ingresso no mercado profissional e atuação no espaço público –, encontre tantas dificuldades em termos de reconhecimento jurídico e, sobretudo, social. 3Realça-se que esse movimento de emancipação do trabalho dos lares, que passou a demarcar

precisamente a separação entre vida pessoal e vida profissional, parece estar assumindo direção inversa em sede de pós-modernidade. Com o fenômeno da globalização e o advento da internet, presenciou-se a eclosão da terceira evolução tecnológica. A esse respeito, leciona Teodoro (apud, RIBEIRO, 2016, p.314) que: “A configuração do trabalho tomou novas formas como conseqüência da derrocada do socialismo real e do desenvolvimento do regime de acumulação do capital, que surge a partir desta terceira revolução tecnológica”. Assim, neste contexto pós-moderno, marcado por uma sociedade em redes e permanentemente conectada, bem como por uma organização do trabalho ditada pela flexibilidade, passou-se a falar de teletrabalho, que, grosso modo, consiste na realização de atividade profissional no âmbito doméstico. Esse novo instituto parece estar instaurando uma tendência de retomada da mescla entre vida profissional e vida pessoal, e os efeitos práticos dessa imbricação são objeto de intensa discussão no atual cenário jurídico brasileiro. (RIBEIRO, Ailana. Teletrabalho: ócio criativo ou escravização digitalizada?. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 150, jul 2016. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/mnt/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17474&revista_caderno=25>. Acesso em: 10 out. 2017)

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3 CAPITALISMO E TRABALHO

3.1 Do feudalismo ao capitalismo: mudam as regras do jogo da exploração

Só um sujeito assujeitado sabe

que é melhor depender da sorte que do coração de quem o assujeita

(RIBEIRO, 2017)

Karl Marx (1977, p.15), ao iniciar a sua obra “A acumulação primitiva”, que

corresponde ao capítulo XXIV de “O Capital: a crítica da economia política”, afirmou

que “a ordem econômica capitalista saiu das entranhas da ordem econômica feudal”,

tendo os elementos de dissolução da primeira ordem produzido os elementos

constitutivos da segunda.

Segundo o autor, apesar dos primeiros traços da produção capitalista terem

surgido em algumas cidades do Mediterrâneo, a era propriamente capitalista não data

senão do século XVI, quando a acumulação primitiva de riqueza proporcionada pelo

sistema de exploração feudal convergiu para a formação de uma classe de detentores

de riqueza em abundância. Nesse sentido, Marx considerou que as condições básicas

necessárias para o desenvolvimento do capitalismo – e da consectária cisão da

sociedade em detentores do capital e detentores da força de trabalho – emergiram no

interior do próprio sistema feudal:

O conjunto do desenvolvimento, abrangendo ao mesmo tempo a gênese do salariato e do capitalismo, tem por ponto de partida a servidão dos trabalhadores; o progresso que esse desenvolvimento realizou consiste em mudar a forma de sujeição, em conduzir a metamorfose da exploração feudal em exploração capitalista. (MARX, 1977, p.15-16)

Pode-se considerar, portanto, que até o século XV, ainda não havia na

humanidade registros sólidos de um sistema de produção propriamente capitalista. O

sistema econômico vigente era o feudalismo, pautado em um modelo produtivo que

se desenvolvia, resumidamente, por meio da seguinte sistemática:

As terras pertenciam ao rei, que cedia seu uso aos nobres e estes, por sua vez, cediam o seu uso aos que estivessem abaixo deles na hierarquia social, tudo isso formando uma peculiar rede de fidelidade e proteção, sobretudo, contra eventuais (mas frequentes) guerras. Assim, a pessoa comum se

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ocupava basicamente de dois tipos de atividades: lavrar as terras do senhor feudal e cultivar as terras comuns. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.103)

Assim, ao lado do trabalho servil, mantido por meio de uma relação de

exploração denominada de vassalagem – na qual os vassalos ofereciam aos senhores

feudais trabalho e fidelidade em troca de proteção e da posse de terra para o cultivo–

havia, também, uma agricultura de subsistência, que permitia ao servo usufruir da

terra a ele cedida para satisfazer o seu consumo básico.

Importante destacar que tanto a atividade agrícola de subsistência quanto o

trabalho servil, realizado em benefício dos senhores feudais, voltavam-se para a

autossuficiência do feudo, e não para a comercialização de eventuais excedentes de

produção, que, quando existiam, tornavam-se fonte de escambo. (RIBEIRO; ABREU,

2016, p. 103)

Contudo, apesar da aparente estabilidade da ordem feudal, leciona Sweezy

que nos séculos XIV e XV, em virtude de fatores intrínsecos e extrínsecos ao modo

de produção vigente, o feudalismo entrou em franco declínio:

Ocorre que, logo após atingir o seu auge, o feudalismo entrou em crise e, nos séculos XIV e XV – momento em que a população europeia sofreu drástica redução em decorrência da pandemia de peste bubônica – contribuíram para o declínio do sistema feudal, internamente, as contradições da sociedade e, externamente o impacto do comércio incipiente. (SWEEZY apud RIBEIRO; ABREU, 2016, p. 103)

Ocorreu, pois, que a escassez de mão-de-obra, decorrente da elevada

mortalidade provocada pela peste bubônica, conferiu força aos vassalos, que,

conscientes da importância de seus papéis no ciclo da produção feudal, passaram a

questionar e a romper os vínculos que os uniam aos seus senhores feudais, utilizando

as terras comunais, de uso coletivo, para garantia da subsistência.

Por conseguinte, privados do fácil acesso a vassalos interessados em

trabalhar para os feudos, os senhores feudais passaram a demandar outro meio de

auferir mão-de-obra. Foi nesse contexto que a contratação de trabalhadores,

mediante o pagamento de um salário – e não mediante a cessão de um pedaço de

terra – precisou entrar em cena. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p. 103)

Mas para coagir os trabalhadores – até então, produtores diretos e

consumidores imediatos dos frutos da atividade agrícola desempenhada –, a

trabalharem para os proprietários de terras em troca do pagamento de uma quantia,

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que se tornaria necessária para a aquisição dos meios básicos de sobrevivência, foi

preciso, primeiramente, desligar esses trabalhadores das glebas, “despojando-os de

todos os meios de produção e de todas as garantias de existência oferecidos pela

antiga ordem das coisas”. (MARX, 1977, p. 15-16)

Assim, a centralização dos meios de produção nas mãos dos proprietários

agrícolas e o consequente abismo imposto entre os meios de produção e os

produtores levaram ao desenvolvimento de uma nova relação de exploração, cujo

fator de sujeição tornou-se, justamente, a não propriedade dos insumos produtivos.

Nesse sentido, Marx, considerando que a essência do capitalismo reside

nessa radical separação entre o produtor imediato e os meios de produção, pontuou

que a pré-condição básica para o florescimento do capitalismo foi a desapropriação

dos servos seguida da apropriação das terras de cultivo por uma restrita aristocracia

fundiária. Veja-se:

Para que o sistema capitalista viesse ao mundo foi preciso que, ao menos em parte, os meios de produção já tivessem sido arrancados sem discussão aos produtores, que os empregavam para realizar o seu próprio trabalho; que esses meios de produção se encontrassem já nas mãos dos produtores comerciantes e que estes os empregassem para especular sobre o trabalho dos outros” (MARX, 1977, p.15).

Assim, se, por um lado, o fator de sujeição consistia na privação quanto à

propriedade dos meios de produção, por outro, o fator de poder residia na detenção

desses meios de produção por uma parcela restrita de proprietários fundiários, que se

valeram de tal condição para explorar a mão-de-obra da grande massa, conduzindo,

desse modo, a “metamorfose da exploração feudal em exploração capitalista”.

(MARX, 1977, p.17)

Contudo, analisando o cenário europeu, esclarece Sweezy que, apesar da

consolidação dos traços mais marcantes da lógica de exploração capitalista ter sido

averiguada ainda no contexto histórico de declínio do feudalismo, até o século XVI, os

Estados europeus permaneciam dominados pelos aristocratas feudais, já que o poder

político permanecia vinculado à propriedade de terras. (SWEEZY et al, 1977, p.192)

Logo, não obstante a fase de transição entre os sistemas econômicos já

houvesse iniciado, ainda não era possível referir-se a uma sociedade capitalista.

Segundo Sweezy, foi somente no curso do século XVII, com a eclosão das revoluções

liberais, sobretudo, da Revolução Inglesa, na segunda metade do século XVII, e das

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Revoluções Francesa e Americana, já no século XVIII, que o triunfo do capitalismo

consagrou-se em caráter definitivo. (SWEEZY et al, 1977, p.193)

Importa esclarecer que a primeira dessas revoluções, a Revolução Inglesa,

teve seu prelúdio no século XVI, quando grande parte dos servos liberou-se dos laços

mantidos com os senhores feudais. Contudo, foi no século XVII, com o “fechamento

das terras comunais” – destinadas ao uso coletivo para fins de cultivo –, determinado

por meio de decreto parlamentar (Bills of inclousure of commons), que foram lançadas

no mercado de trabalho rural pessoas forçadas a se sustentarem mediante a venda

da sua força de trabalho. (MARX, 1977, p.33)

Sobre esse cenário de expropriação das terras de cultivo e da consequente

necessidade dos expropriados se sujeitarem a outros meios de garantir a

subsistência, Marx considerou que,

[...]efetivamente, a usurpação das terras comunais e a revolução agrícola que se lhe seguiu, fizeram-se sentir tão duramente sobre os trabalhadores do campo que [...] seus salários começaram a cair abaixo do mínimo possível e foi necessário completá-lo mediante socorros oficiais. (MARX,1977, p.40)

Assim, ao mesmo tempo em que se formava uma classe detentora e

acumuladora de riquezas, formava-se um “proletariado sem lar nem pão” (MARX,

1977, p.57), que, para ser absorvido pelo sistema de produção manufatureiro

nascente, precisou sujeitar-se à venda daquilo que lhe havia restado: a força de

trabalho.

Gorz, discorrendo sobre a sistemática de produção do capitalismo

manufatureiro e se valendo da distinção conceitual arendtiana entre “obra” e “trabalho”

– objeto de abordagem pelo primeiro capítulo deste estudo –, ensina que os artesãos,

fabricantes de objetos duradouros, realizavam “obras” e utilizavam para tanto, o

“trabalho” de homens chamados a cumprir tarefas mais penosas do ponto de vista

físico. Assim,

Só os trabalhadores por jornada e os trabalhadores manuais eram pagos por seu “trabalho”; os artesãos recebiam pela “obra”, conforme o parâmetro fixado pelos sindicatos profissionais de então, as corporações e as guildas. Estas proscreviam severamente qualquer inovação e qualquer forma de concorrência. As novas técnicas ou as novas máquinas deviam ser aprovadas, na França do século XVII, por um conselho dos antigos, reunindo quatro comerciantes e quatro tecelões, e depois autorizadas por juízes. Os salários dos diaristas e dos aprendizes eram fixados pela corporação e era impossível qualquer tipo de acordo diverso daquele. (GORZ, 2003, p.24)

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Indiscutível, pois, é o fato de que, desde o seu estágio manufatureiro, o

sistema de produção capitalista comprometeu a agricultura doméstica, voltada

exclusivamente ao sustento familiar, ao tornar o camponês produtor um fornecedor e

não mais um consumidor direto dos frutos do seu trabalho. Contudo, pontua Gorz

(2003, p.24) que o capitalismo manufatureiro não chegou a suplantar a indústria

doméstica, com ela coexistindo até a definitiva consolidação do capitalismo industrial.

Assim, a produção manufatureira, sobretudo de tecidos, realizada pelos

trabalhadores em seus respectivos domicílios, a tempo e modo desejados,

representou, por um considerável período, muito além de uma fonte de renda, um

estilo de vida.

Segundo Max Weber, esse simultâneo estilo de produção e de vida operava-

se da seguinte maneira: os camponeses produziam os tecidos em seus domicílios e

se encaminhavam às cidades apenas para entregar as encomendas aos

comerciantes, recebendo deles o preço combinado; o número de horas trabalhadas

era modesto, e a renda auferida também era modesta, mas suficiente para garantir

uma sobrevivência decente. Tratava-se, pois, de um modo tradicional de organização

capitalista da produção, que envolvia uma atividade produtiva, uma atividade

puramente comercial, o emprego de capital, e a obtenção de lucro. (WEBER apud

GORZ, 2003, p. 25)

Importante destacar que, nesse cenário, apesar do modo capitalista de

produção vigente pautar-se na exploração da mão-de-obra alheia, a relação de

exploração entabulada entre produtores e empreendedores comerciantes era regida

por costumes e tradições. Eram os costumes que dominavam a conduta nos negócios

e norteavam o ethos da categoria dos empreendedores; eram também os costumes e

tradições que regulavam a quantidade de trabalho, o ritmo de trabalho e as interações

estabelecidas entre o trabalhador e seu ofício. (WEBER apud GORZ, 2003, p.25)

Conforme ensinamentos de Marx, foi apenas com o advento das grandes

máquinas e com a efetiva consolidação do capitalismo em seu estágio industrial que

a agricultura familiar campesina – bem como as tradições que a acompanhavam– veio

a ser aniquilada:

É só a grande indústria que, por meio das máquinas, funda a exploração agrícola capitalista sobre uma base permanente, que faz expropriar

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radicalmente a imensa maioria da população rural e consuma a separação entre a agricultura e a indústria doméstica dos campos, extirpando as raízes desta – a fiação e o tecido. (MARX, 1977, p.89)

Assim, nos termos do que será discutido, foi em sua fase industrial que o modo

de produção capitalista, pautado na separação entre o trabalhador e os meios de

produção, permitiu ao capitalismo cumprir a árdua tarefa de promover a

“racionalização econômica do trabalho”, emancipando-o dos costumes e tradições e

tornando-o uma grandeza material quantificável, assim como qualquer outro ativo

envolvido no processo produtivo. (GORZ, 2003, p.28)

3.2 O ethos do capitalismo industrial e a racionalização econômica do trabalho Meu suor, seus frutos

Sua vida vivida, a minha esquecida Num piscar dou a ele

O que me faltará por toda a vida Saga? Ou praga?

(RIBEIRO, 2017)

Considerando as abordagens promovidas no tópico anterior, pode-se dizer

que a pedra-de-toque do capitalismo é a propriedade privada e concentrada dos meios

de produção, cujo efeito prático imediato é a formação de um contingente de pessoas

coagidas a venderem a força de trabalho aos detentores dos meios produtivos.

Nesse sentido, István Mészaros considera que o sistema capitalista, ao

determinar a separação entre produtor e meios de produção, determina, por

reverberação, uma “tripla fratura” entre:

1) produção e seu controle; 2) produção e consumo; e 3) produção e circulação de produtos (interna e internacional). O resultado é um irremediável sistema “centrífugo”, no qual as partes conflituosas e internamente antagônicas pressionam em muitos sentidos diferentes. (MÉSZAROS, 1998, p.5)

Tal traço definidor do capitalismo representou, portanto, a alteração estrutural

mais significativa do ponto de vista da transição da ordem feudal – na qual os servos

camponeses tinham a posse das terras, usufruindo diretamente dos produtos do seu

cultivo – para a ordem capitalista.

Já em termos de transição do capitalismo manufatureiro, abordado

previamente, para o capitalismo industrial, objeto de abordagem do presente tópico,

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apesar da lógica de exploração estruturante da relação entre capital e trabalho ter

permanecido intocada, uma inovação de ordem procedimental assumiu relevância: a

racionalização econômica da produção.

Sob o prisma técnico, a racionalização econômica representou um processo

de quantificação do trabalho, voltado a torná-lo calculável, objetivo e rigorosamente

previsível, tanto em termos de custos, quanto de produtividade e resultados. Segundo

Max Weber, esta prevalência da racionalidade econômica na organização da

produção

[...] é uma das características fundamentais de uma economia individualista capitalista, racionalizada com base no rigor do cálculo, dirigida com previsão e cautela para o sucesso econômico almejado, e está em agudo contraste com a existência simples do camponês e com a do tradicionalismo privilegiado do artesão corporativo e do capitalismo aventureiro, orientado para a exploração das oportunidades políticas e da especulação irracional. (WEBER, 2001, p.32)

Assim, sob o prisma sociológico, Weber considera que a racionalização

econômica do trabalho promoveu uma drástica alteração na configuração das

relações produtivas capitalistas, ao passo que suprimiu a regulação da produção

(ritmo, tempo e quantidade de trabalho) pelas tradições e costumes vigentes, que

convergiam para um estilo de vida tranquilo e modesto, para determinar a regência do

estilo de vida pelo sucesso econômico-produtivo almejado. Elucidando este processo

em termos bastante práticos, o autor pontua que:

Em geral, o que ocorreu foi apenas o seguinte: um jovem, de uma família de produtores vai ao campo; ali, escolhe cuidadosamente os tecelões que quer empregar; torna-os ainda mais dependentes e aumenta o rigor do controle sobre seus produtos, transformando-os, assim, de camponeses em operários despossuídos de matéria-prima. O jovem empreendedor modifica também os métodos de venda, buscando o mais possível contato direito com os consumidores. Toma inteiramente a seu encargo o comércio de varejo e cuida pessoalmente de seus fregueses; visita-os regularmente a cada ano e, sobretudo, ajusta a qualidade dos produtos ao gosto e necessidades dos clientes. Ao mesmo tempo, age segundo o princípio de reduzir os preços e aumentar o volume dos negócios. (WEBER, 2001, p.28)

A consequência imediata desse processo de racionalização do trabalho, qual

seja, a substituição da tradicional espontaneidade pela rígida frugalidade das relações

de produção, ainda na perspectiva weberiana, não demorou a se manifestar:

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Repetiu-se aqui o ocorrido em todos os lugares e sempre como consequência do processo de racionalização: aqueles que não seguiram o mesmo processo, tiveram de sair do negócio. O estado idílico desmoronou sob a pressão de uma amarga e competitiva batalha, criaram se fortunas consideráveis que não foram aplicadas a juros, mas sempre reaplicadas no negócio. A antiga atitude prazerosa e confortável para com a vida cedeu lugar a uma rígida frugalidade, da qual alguns participaram e chegaram ao topo, pois que eles não queriam consumir mas ganhar, enquanto outros, que quiseram conservar o modo de vida antigo, foram forçados a cortar seu consumo. (WEBER, 2001, p.28)

Assim, o capitalismo industrial – marcado pela mecanicidade, rapidez e

incremento da produtividade, proporcionados pela concentração da maquinaria e de

todos os demais insumos produtivos nos galpões fabris – só encontrou terreno fértil

para prosperar quando a racionalidade econômica, levada às suas últimas

consequências, “emancipou-se de todos os outros princípios de racionalidade, para

submetê-los a seu único domínio”. (GORZ, 2003, p.27)

Discorrendo sobre o capitalismo em estágio industrial, Gorz (2003, p. 57)

esclarece que o que chamamos de “indústria” não é nada mais que uma

“concentração técnica de capital, possível unicamente à base da separação do

trabalhador e de seus meios de produzir”; esclarece, ainda, que, apenas com essa

concentração, tornou-se possível racionalizar e economicizar o trabalho, gerando

excedentes de produção e orientando a utilização desses excedentes para a

multiplicação dos meios de produção.

Logo, pode-se dizer que “a indústria é filha do capitalismo e dele traz a marca

indelével. Só pôde nascer graças à racionalização econômica do trabalho”, que se

perpetuou como uma exigência impressa na materialidade da sua maquinaria.

(GORZ, 2003, p. 57)

E fato é que essa materialidade inanimada da maquinaria, interposta entre o

trabalhador e o produto, tornou-se requisito para a integração do homem no processo

produtivo racionalizado, submetendo o trabalhador ao experimento da insignificância

do seu agir ao tornar cada ato seu inteiramente manipulado pelas máquinas que

acreditava manipular.

Assim, a partir da racionalização econômica da produção, o processo de

trabalho foi transformado em um processo científico, no qual “a atividade do operário,

reduzida a uma pura abstração”, tornou-se “determinada e regulada em todos os

sentidos pelo movimento da maquinaria”. E isso nos permite dizer que, na produção

industrial, “a apropriação do trabalho vivo pelo trabalho materializado, inerente ao

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conceito de capital, constitui o caráter do próprio processo de produção”. (WEBER,

apud GORZ, 2003, p. 59)

Importante destacar que por trás de todo esse empenho na organização

científica e racionalizada do trabalho vivo estava a pretensão capitalista de expandir

a produtividade e, consequentemente, o capital, cuja fração expressiva seria

reempregada no processo produtivo, num infinito processo de acumulação de capital.

Assim, conforme leciona Mészaros (1998, p.5), o sistema capitalista, em todas as suas

formas, “tem (e deve ter) sua expansão orientada e dirigida pela acumulação.”

E, naturalmente, todo esse processo acumulativo não foi delineado em prol

da satisfação das necessidades humanas; o que se persegue, primariamente, é “a

expansão do capital como um fim em si, servindo à preservação de um sistema que

não poderia sobreviver sem constantemente afirmar seu poder como um modo de

reprodução ampliado”. (MÉSZAROS, 1998, p.6)

Para se referir a essa necessidade do capitalismo de afirmar o seu poder

constantemente, Weber (2001, p.23) utiliza-se do termo “espírito do capitalismo”. Em

sua perspectiva, o “espírito do capitalismo” corresponde a um conjunto de “sanções

éticas” necessárias para promover o engajamento ao sistema capitalista, prestando-

se a justificar as contradições internas que lhes são intrínsecas.

Discorrendo sobre essa necessidade de autojustificação do capitalismo, Luc

Boltanski e Ève Chiapello ensinam que

[...] para conseguir engajar as pessoas indispensáveis à busca da acumulação, o capitalismo devia incorporar um espírito capaz de oferecer perspectivas sedutoras e estimulantes de vida, oferecendo ao mesmo tempo garantias de segurança e razões morais para se fazer o que se faz. Este amálgama heterogêneo de motivos e razões se mostra variável no tempo, segundo as expectativas das pessoas que caiba mobilizar, segundo as esperanças com que elas cresceram e em função das formas assumidas pela acumulação em diferentes épocas. (BOLTANSKI; CHAPELLO, 2009, p.58)

Por tais razões, pode-se dizer que o espírito do capitalismo funciona como

uma espécie de promotor e guardião do sistema, empenhando-se em validar o

capitalismo, sobretudo, para protegê-lo das críticas. Nesse sentido, dando

continuidade ao raciocínio acima citado, Boltanski e Chiapello concluem que:

A interiorização de certo espírito do capitalismo por parte dos atores, portanto, impõe ao processo de acumulação injunções que não são puramente formais, e lhe conferem um âmbito específico. O espírito do capitalismo, assim,

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fornece ao mesmo tempo uma justificação do capitalismo (em oposição aos questionamentos pretensamente radicais) e um ponto de apoio crítico que possibilita denunciar a distância existente entre as formas concretas de acumulação e as concepções normativas da ordem social. (BOLTANSKI; CHAPELLO, 2009, p.59)

Quanto à essência acumuladora e centralizadora do capitalismo, realça-se

que, ao mesmo tempo em que determina a impotência do sistema para satisfazer as

necessidades humanas de modo amplo e indistinto, determina uma lógica na qual a

acumulação de riqueza torna-se o grande propósito da vida, devendo ser perseguida

como um fim em si mesmo. E, conforme explica Weber, tudo isso, do ponto de vista

da natureza humana, não faria qualquer sentido se não houvesse um “espírito”, que

aqui se denomina de ethos norteador e justificador do capitalismo, tentando provar ao

homem o contrário:

De fato, o summum bonum dessa ética, o ganhar mais e mais dinheiro, combinado com o afastamento estrito de todo prazer espontâneo de viver é, acima de tudo, completamente isento de qualquer mistura eudemonista, para não dizer hedonista; é pensado tão puramente como um fim em si mesmo, que do ponto de vista da felicidade ou da utilidade para o indivíduo parece algo transcendental e completamente irracional. O homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como um meio para a satisfação de suas necessidades materiais. Essa inversão daquilo que chamamos de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio guia do capitalismo. (WEBER, 2001, p.21)

Relevante realçar que, em termos de legitimação e difusão do ethos

capitalista, a Reforma Protestante, ao preconizar uma conduta moral e espiritual

pautada no zelo e na disciplina, assumiu papel preponderante.

Por meio do ascetismo protestante, a auri sacra fames4 deixou de representar

uma conduta condenável para se tornar um padrão comportamental, que só poderia

ser atingido por meio da doação ao trabalho – tanto por parte do empresário capitalista

quanto do operário. Por outro lado, a doutrina protestante pregava o usufruto

estritamente racional da riqueza conquistada, condenando a liberdade do homem de

dissipar os frutos do seu trabalho para satisfazer a prazeres mundanos, em franca

reverência ao princípio capitalista da acumulação.

4 Auri sacra fames: Maldita fome de ouro. Expressão pela qual Virgílio condena a ambição desmedida. In: Dicionário de Latim. Disponível em: https://www.dicionariodelatim.com.br/auri-sacra-fames/

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Nesse sentido, pode-se considerar que o ascetismo protestante, ao mesmo

tempo em que liberou o homem das amarras que condenavam a produção do lucro,

“agiu poderosamente contra o desfrute espontâneo das riquezas, restringindo o

consumo de caráter supérfluo” em prol da acumulação. (WEBER, 2001. p.81)

Assim, todas essas alterações paradigmáticas de valores vivenciadas em

sede modernidade, sobretudo, no que diz respeito à devoção ao trabalho e às

limitações quanto à disposição dos seus frutos, Weber atribuiu ao “espírito do

capitalismo”, que moldou, a seu gosto, o empreendedor devotado e autocontrolado, e

o trabalhador altamente fiel e disciplinado.

O trecho abaixo transcrito, correspondente à letra de música frequentemente

tocada em programa de rádio do início do século XIX, no bloco “Canções para homens

trabalhadores ingleses cantarem” (“Songs for English Work men to Sing”), reflete

claramente a difusão dessa cultura do trabalhador devotado:

Trabalhem, rapazes, trabalhem e fiquem satisfeitos

Desde que vocês tenham o suficiente para comprar uma refeição;

O homem em quem vocês confiam

Ficará rico mais e mais

Somente se puser seus ombros na roda

(HOBSBAWN, 1982, p.229)

Foi, portanto, graças à promoção dessas novas qualidades éticas – disciplina,

devoção, privação e acumulação – que o tradicional estilo de vida, cômodo e

despretensioso, reinante na era pré-industrial, deu lugar a um padrão de vida rígido e

austero, que atendeu perfeitamente as novas necessidades impostas pela grande

indústria. Nas palavras de Weber:

A antiga atitude prazerosa e confortável para com a vida cedeu lugar a uma rígida frugalidade, da qual alguns participaram e chegaram ao topo, pois que eles não queriam consumir mas ganhar, enquanto outros, que quiseram conservar o modo de vida antigo, foram forçados a cortar seu consumo. E o que é mais importante nessa relação, o que trouxe essa revolução, em tais casos, não foi geralmente o fluxo de dinheiro novo investido na indústria – em muitos casos que conheço, todo o processo revolucionário foi acionado por poucos milhares de capital emprestado de conhecidos – mas foi o novo espírito, o espírito do moderno capitalismo que fez o trabalho.[...] É mito mais fácil não reconhecer que somente um caráter extraordinariamente forte poderia salvar um empreendedor desse novo tipo de perda do seu autocontrole temperado e do naufrágio moral e econômico. De mais a mais, além da clareza de visão e da habilidade para agir, foi só pela virtude de qualidades éticas bem definidas e altamente desenvolvidas que lhe foi possível merecer a confiança, absolutamente indispensável, de seus clientes e trabalhadores. Nada além disso poderia ter lhe dado o vigor para superar

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os inúmeros obstáculos, e acima de tudo o trabalho muito mais intenso exigido do moderno empreendedor. Mas essas são qualidades éticas de um tipo bem diferente daquelas adaptadas ao tradicionalismo do passado. (WEBER, 2001, p.28-29)

Assim, todo esse conjunto de mutações axiológicas, ao legitimar o senso de

acumulação e estimular o senso de disciplina, inaugurou um novo padrão cultural

favorável à exaltação do trabalho e à consequente expansão desmedida do capital.

Contudo, conforme será demonstrado em momento oportuno, a partir da

segunda metade do século XX, sobretudo no período pós 1970, mutações estruturais

de ordem política, econômica, social e, inclusive, cultural, passaram a sinalizar o

esgotamento desse padrão produtivo de acumulação, culminando na instauração de

uma crise multifacetada e complexa, que atingiu, simultaneamente, o trabalho e o

capital.

3.3 A relação simbiótica entre capital e trabalho assalariado

Fato é que todo o processo previamente analisado, empenhado em

racionalizar economicamente a produção, para alcançar o objetivo de tornar a força

de trabalho calculável e previsível, como qualquer outro insumo produtivo, precisou

quantificar e uniformizar os custos dela decorrentes.

Por essa razão, a relação entre o trabalho e o capital, ou entre o trabalhador

e o capitalista, não mais poderia ser regida pelo espírito aventureiro e espontâneo de

outrora, que não impunha ritmo de trabalho nem estabelecia patamares de

produtividade, remunerando o trabalhador simplesmente pelo produto que ofertava

aos mercadores para fins de revenda.

Com a racionalização econômica decorrente do capitalismo industrial, leciona

Marx (1987, p. 23) que a relação entre capital e trabalho permaneceu sendo uma

relação de compra e venda; contudo, o que os trabalhadores, então operários,

passaram a vender aos capitalistas, não era mais o produto do seu trabalho – que,

inclusive, não mais lhes pertencia –, e sim, a sua força de trabalho.

A força de trabalho tornou-se, portanto, objeto de aquisição pelo capitalista,

que a comprando por um dia, uma semana, um mês, etc., adquiria uma espécie de

passe livre para impelir os operários a trabalharem pelo tempo estipulado. Assim,

pode-se considerar que a força de trabalho operária, no interior do capitalismo

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industrial, tornou-se, de fato, uma mercadoria, assim como o açúcar ou qualquer outro

produto; afinal, “com essa mesma quantia com que o capitalista comprou a força de

trabalho (dois marcos, por exemplo), poderia ter ele comprado duas libras de açúcar

ou uma certa quantidade de qualquer outro produto”. (MARX, 1977, p.23)

Nesse sentido, ensina Marx (1977, p.24) que os exemplificativos dois marcos

pagos ao operário pelas horas de utilização da sua força de trabalho representam o

“preço” da força de trabalho, ao qual se atribui o nome de salário. Logo, “o salário é

simplesmente um nome especial dado ao preço da força de trabalho, a que

costumamos chamar de preço do trabalho; é apenas o nome dado ao preço dessa

mercadoria peculiar que só existe na carne e no sangue do homem”.

Abordando essa sistemática capitalista de compra e venda da força de

trabalho, Marx apresenta a seguinte situação elucidativa:

O capitalista compra, com uma parte da fortuna que tem, do seu capital, a força de trabalho do tecelão, exatamente como comprou com outra parte da sua fortuna a matéria-prima – o fio – e o instrumento de trabalho – o tear. Após fazer estas compras (e entre as coisas compradas está a força de trabalho necessária para a produção do pano), o capitalista produz agora só com matérias-primas e instrumentos de trabalho que a si mesmo pertencem. E entre estes últimos conta-se naturalmente também o bom tecelão, que

participa tão pouco no produto, ou no preço do produto com o tear. (MARX,

1987, p.25)

Nota-se, pois, que o capitalismo industrial consolidou-se sobre uma estrutura

de produção na qual a possibilidade de usufruir – em horas ou em outra medida de

tempo –, da força de trabalho operária mediante o pagamento de um salário torna-se

a peça chave para a almejada racionalização econômica da produção.

Por essa razão, considera-se que o trabalho assalariado é a forma de trabalho

que melhor corresponde aos interesses da produção capitalista racionalizada, vez que

permite ao capital, ao comprar a força de trabalho por meio do pagamento de um valor

pré-fixado (preço), controlar o tempo, ritmo e produtividade do trabalho, ampliando as

margens lucrativas.

Assim, Marx (1897, p. 25), despido de qualquer romantismo, considera que a

força de trabalho, sob o prisma pragmático, deve ser compreendida como uma

mercadoria “que o seu proprietário, o operário assalariado, vende ao capital. E por

que o operário assalariado a vende? Para viver”.

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Tal raciocínio, deveras pragmático, viabiliza a percepção de que, no interior

de uma relação de trabalho assalariada, aquele que vende a sua força de trabalho ao

detentor dos meios produtivos não o faz por opção; só o faz porque, privado dos meios

de produção, apenas lhe resta auferir rendimentos por meio da venda da sua força de

trabalho.

Por essa razão, pode-se considerar que “o que o operário produz para si

mesmo não é a seda que tece, não é o ouro que extrai das minas, não é o palácio que

constrói. O que ele produz para si mesmo é o salário”, principal meio, senão único, de

garantir a sua subsistência ao viabilizar o consumo básico. (MARX, 1987, p.26)

Percebe-se, então, que a relação entre capital e trabalho assalariado, apesar

de consistir em uma indiscutível relação de exploração, representa uma legítima

associação simbiótica, na qual se verifica um alto grau de interdependência entre os

integrantes da relação: o capital desvanece-se se não explorar a força de trabalho

mediante a sua compra; o operário não sobrevive se não vender a sua força de

trabalho ao capital.

Assim, apesar da aparente colisão de interesses entre capital e trabalho, o

interesse último do operário, enquanto trabalhador assalariado, é exatamente o

mesmo que o do capitalista: a multiplicação do capital produtivo, haja vista que, sem

ele, não há renda para o operário, sob a forma de salário, nem renda para o capitalista,

sob a forma de lucro.

Considera-se, pois, analogicamente, que capital e trabalho assalariado vivem

em simbiose tal como vivem as plantas leguminosas e as bactérias que fixam

nitrogênio em suas raízes. “Uma coisa condiciona a outra como o usurário e o

dissipador se condicionam reciprocamente”. (MARX, 1987, p.39) O bem-estar de um

(capital ou trabalho) tende a repercutir positivamente sobre o outro, do mesmo modo

que qualquer mal-estar sentido por um deles, muito provavelmente, irá reverberar

sobre o outro. É o que se passa a analisar.

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4 A SOCIEDADE FUNDADA NO TRABALHO ASSALARIADO

4.1 A nova ordem industrial e o padrão produtivo fordista-taylorista

Repetindo eu faço Mil vezes eu faço

Mill vezes me procuro Mil vezes não me acho

Sim, eu fiz Mas quando miro a esteira

Vejo-o rolar solto Sem qualquer sinal de mim

(RIBEIRO, 2017)

Nos termos do que se analisou previamente, o trabalho, compreendido como

condição da existência humana, esteve presente no seio da sociedade pré-industrial

como fator que expressava a sujeição do homem às suas necessidades vitais e, por

essa razão, não gozava de qualquer prestígio social.

Até o declínio da ordem feudalista e a efetiva consolidação do capitalismo em

seu estágio industrial, a imbricação que reinava entre trabalho e vida doméstica

aprisionava a atividade laboral à obscuridade do lar. Além disso, a imbricação entre

produção e posse dos insumos produtivos pelos produtores diretos limitava, em certa

medida, a exploração do homem pelo homem, viabilizando a lucratividade apenas por

meio da mercantilização dos produtos – que, em sede de capitalismo tradicional ou

mercantil, tornavam-se mercadoria ao serem vendidos pelos produtores agrícolas aos

mercadores, para fins de revenda.

A emancipação da atividade laboral das amarras do lar e a posterior

inauguração do trabalho em sua forma assalariada, que imprimiu na força de trabalho

o caráter de mercadoria, representaram novidades da nova ordem industrial,

consagrada no século XVIII.

Segundo Bauman, o ponto de partida para essa grande e impactante

transformação, que trouxe à tona a nova ordem industrial, foi a separação dos

trabalhadores das suas fontes de existência:

Esse evento momentoso era parte de um processo mais amplo: a produção e a troca deixaram de se inscrever num modo de vida indivisível, mais geral e inclusivo, e assim criaram as condições para que o trabalho (junto com a

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terra e o dinheiro) fosse considerado como mera mercadoria e tratado como tal. (BAUMAN, 2001, p.178)

A cisão entre trabalho e vida doméstica e a consequente separação das

atividades produtivas do resto dos objetivos da vida, na visão de Bauman, permitiu a

condensação do esforço físico e mental, traduzido em atos de trabalho, em uma “

‘coisa’ a ser tratada como todas as outras coisas”. Considera o autor que “se essa

desconexão não acontecesse, haveria poucas possibilidades para a ideia de separar

mentalmente o trabalho da “totalidade” a que ele pertencia ‘naturalmente’ e condensá-

lo num objeto autocontido”. (BAUMAN, 2001, p.178)

Assim, com o advento da revolução industrial, proporcionado pela

concentração dos trabalhadores em galpões fabris, bem como dos meios de produção

nas mãos de uma restrita classe de empresários industriais, a utilização da mão-de-

obra pelo mercado produtivo passou a ser regida por uma racionalidade estritamente

econômica. Descobriu-se que, para além da comercialização de produtos, a força de

trabalho “livre” – desprovida dos meios de produção – poderia ser utilizada como

expressiva fonte de riqueza, desde que regida por uma razão que a utilizasse e a

explorasse do modo mais eficiente possível. (BAUMAN, 2001, p. 179)

Importa observar que esse ideal de eficiência e de grandeza que norteava o

espírito de acumulação das sociedades industriais, empenhadas na máxima extração

de lucro, também estava presente na estrutura das fábricas, na organização do

trabalho e nas configurações das relações de produção. Sobre essa reverberação do

ideal de grandeza nos padrões produtivos, inclusive sob o prisma estético, Bauman

explica que:

Grande era belo, grande era racional; ‘grande’ queria dizer poder, ambição e coragem. O local de construção da nova ordem industrial era repleto de monumentos ao poder e à ambição, monumentos que, fossem ou não indestrutíveis, deveriam parecê-lo: fábricas gigantescas lotadas de maquinaria volumosa e multidões de operadores de máquinas, ou densas redes de canais, pontes e trilhos, pontuados de majestosas estações dedicadas a emular os antigos templos erigidos para a adoração da eternidade e para a eterna glória dos adoradores. (BAUMAN, 2001, p.181)

No interior das grandes fábricas, maquinários monumentais eram operados

por trabalhadores por meio de um intenso e desgastante processo de interação, no

qual a potência das máquinas ditava os movimentos e o ritmo de trabalho dos

operários. Afinal, para cumprir o objetivo de acumular grandes montantes de capital,

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era preciso produzir em grandes volumes, e isso demandava do trabalhador a

realização de longas jornadas de trabalho, agilidade, rapidez e eficiência máxima em

cada ato produtivo desempenhado.

E esse novo padrão comportamental imposto ao trabalhador moderno só se

tornou realizável mediante a propagação de uma cultura operária norteada pelos

ideais da obediência, eficiência e uniformidade, que convergiu para a moldagem de

trabalhadores altamente reificados, desprezados em suas personalidades e tão

robotizados quanto as máquinas que operavam. Discorrendo sobre esse processo de

racionalização e reificação da mão-de-obra operária, Gorz pontua que

O fato de que a produção dependia – na qualidade, quantidade, custo –das capacitações não formalizáveis dos operários era evidentemente inaceitável do ponto de vista da racionalidade econômica. Para ser calculável e previsível, a produção não podia repousar sobre o trabalho de operários, que produzem mais ou menos bem, mais ou menos rápido. Era preciso transformar as atividades produtivas de diferentes indivíduos em atividades rigorosamente idênticas, tornar suas tarefas intercambiáveis, mensuráveis pela mesma balança, seus rendimentos comparáveis. (GORZ, 2003, p.62)

Essa necessidade de se extrair a máxima eficiência da força de trabalho foi

bem captada pelo modelo de gestão produtiva desenvolvido e posto em prática por

Henry Ford, na fábrica de High Land Park, da The Ford Motor Company. Conforme

ensina Richard Sennet, Henry Ford introduziu um modelo de produção no qual cada

operário deveria ser um trabalhador altamente especializado (o que não se confunde

com qualificado), realizando operações específicas e de baixa complexidade, com

rapidez e sem qualquer senso crítico. Nas palavras do autor:

Quando Ford industrializou seu processo de produção, favoreceu o emprego dos chamados trabalhadores especialistas em relação aos artesãos qualificados; os empregos dos trabalhadores especialistas eram aqueles tipos de operações em miniatura que exigiam pouco pensamento ou julgamento. Na fábrica de Highland Park de Ford, a maioria desses trabalhadores especialistas era composta de imigrantes recentes, enquanto os artesãos qualificados eram alemães e outros americanos mais estabelecidos; tanto a administração quanto os americanos "nativos" julgavam que os novos imigrantes não tinham inteligência para fazer mais que um trabalho de rotina. Em 1917, 55 por cento da força de trabalho eram empregados especialistas; outros 15 por cento eram limpadores e faxineiros não qualificados, que pairavam nas laterais da linha de montagem, e os artesãos e técnicos haviam caído para 15 por cento. ‘Homens baratos precisam de gabaritos caros’, disse Sterling Bunnell, um dos primeiros defensores dessas mudanças, enquanto ‘homens altamente qualificados precisam de pouca coisa além de suas caixas de ferramentas’. (SENNET, 2009, p.44-45)

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Assim, como desdobramento do princípio capitalista da máxima eficiência, o

trabalho especializado e repetitivo refletia a rotina monótona e disciplinadora reinante

nas fábricas, para as quais “operários ‘semi-idiotas eram a melhor mão-de-obra que

se podia imaginar”. (GORZ, 2003, p.63)

Conforme pontuado por Sennet, essa rotina industrial maçante, apesar de,

indiscutivelmente, embrutecer a mão-de-obra, foi considerada positiva por Denis

Diderot, notável filósofo francês iluminista, na medida em que, ao seu ver, contribuía

para uma unidade mental e manual no trabalho, tornando o processo de produção

eficaz e harmônico. Veja-se:

Diderot acreditava — novamente por analogia às artes — que esta rotina estava em constante evolução, à medida que os trabalhadores aprendiam como manipular e alterar cada estágio do processo de trabalho. De forma mais ampla, o "ritmo" de trabalho significa que, repetindo uma operação em particular, se descobre como acelerar ou moderar a atividade, fazer variações, manejar os materiais, desenvolver novas práticas — assim como um músico aprende como conduzir o tempo ao executar uma peça musical. Graças à repetição e ao ritmo, o trabalhador pode alcançar, disse Diderot, "a unidade mental e manual'' no trabalho. Claro, isso é um ideal. Diderot apresenta provas visuais e sutis para torná-lo convincente. (SENNET, 2009, p.38)

Essa crença de Diderot na ideia de que o modelo produtivo fordista-taylorista

era o caminho para o alcance da excelência pelo trabalhador, sendo, pois, fator de

harmonia no ambiente fabril, pode ser claramente percebida nas imagens utilizadas

em sua Enciclopédia, lançada no século XVIII, para representar a rotina nas primeiras

fábricas instaladas na França:

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Figura 1 “Encyclopédie, Planches tome 5, pl. XI”

Fonte: BLOG ECHOS FROM THE VAULT, 20145.

Nota-se que, além do ambiente fabril altamente hígido e organizado, a

imagem retrata operários realizando cada qual a sua respectiva tarefa, com

semblantes serenos, em franca negação à potencialidade do sistema produtivo

vigente para atuar de modo opressor sobre classe operária.

As impressões do psicólogo industrial norte-americano Frederick Taylor sobre

o caráter mecanicista e embrutecedor da produção também eram positivas. Taylor

acreditava que “a maquinaria e o projeto industrial podiam ser imensamente

complicados numa grande empresa, mas não havia necessidade de os trabalhadores

compreenderem essa complexidade”. Na visão de Taylor, quanto menos os

trabalhadores fossem envolvidos pela compreensão do todo, maior seria a atenção

destinada para os seus próprios serviços e, portanto, mais elevada seria a sua

produtividade. (SENNET, 2009, p.45)

A fim de comprovar suas convicções acerca da necessária correlação entre

foco e produtividade, Taylor desenvolveu estudos acerca do tempo-movimento, “feitos

5 Disponível em: https://standrewsrarebooks.wordpress.com/2014/03/06/52-weeks-of-historical-how-tos-week-19-diderots-encyclopedie-and-the-art-of-making-paper/. Acesso em: 14 out. 2017

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com um cronômetro, medindo em frações de segundo quanto demorava a instalação

de um farol ou de um para-choque”. Assim, como incremento da lógica de produção

fordista, foi introduzido o padrão taylorista de controle preciso e cronometrado dos

atos de trabalho. (SENNET, 2009, p.45)

Citando descrição do economista francês Alain Lipietz, Bauman considera

que, em seu apogeu, o fordismo representou um modelo de industrialização calcado

na “combinação de formas de ajuste das expectativas e do comportamento

contraditório dos agentes individuais aos princípios coletivos do regime de

acumulação”. Considera, ainda, que esse “paradigma industrial incluía o princípio

taylorista da racionalização, juntamente com a constante mecanização”, a fim de

alcançar o explícito objetivo de Taylor e engenheiros adeptos ao taylorismo:

intensificar o controle sobre a mão-de-obra. (LIPIETZ apud BAUMAN, 2001, p.74)

Assim, pode-se dizer que o modo de produção consagrado pela ordem

industrial, sobretudo no início do século XX, consistiu no binômio fordismo-taylorismo,

que, combinando as noções básicas de produção em linha de montagem e de controle

implacável do tempo e dos movimentos, atendeu perfeitamente às expectativas de

produção volumosa e de exponencial acumulação de capital. (RIBEIRO; JANNOTTI,

2016, p. 1205)

Já sob o prisma humano, essa sistemática de produção – pautada em

unidades produtivas concentradas e verticalizadas, produção em massa, atividades

mecânicas desenvolvidas pelo emprego de movimentos repetitivos e temporalmente

controlados, funções especializadas e estruturas hierárquicas altamente rígidas –

produziu “homens amputados de seus conhecimentos e de suas responsabilidades”.

(GORZ, 1968, p.43)

Conforme esclarece Gorz, a formação profissional que a empresa conferia ao

seu trabalhador era estritamente aquela necessária para a realização da sua atividade

especializada, “[...] não lhe permitindo, pois, alcançar o processamento da produção

em seu conjunto, nem a essência criadora do ato de trabalho que comporta

possibilidades de iniciativa, de reflexão, de decisão”, inclusive, da decisão de vender

sua força de trabalho para outro empregador. (GORZ, 1968, p. 43)

Sobre essa dificuldade enfrentada pelo empregado em se desvencilhar do seu

empregador, deve-se esclarecer que todo o cenário narrado contribuía para a

intensificação da dependência, tanto em termos técnicos quanto financeiros, do

empregado perante o empregador, gerando uma tendência de fixação do trabalhador

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no estabelecimento que primeiro o empregava. Assim, em sede de capitalismo

industrial ou “capitalismo pesado” – obcecado por volume, tamanho e “por fronteiras,

fazendo-as firmes e impenetráveis” – os vínculos empregatícios assumiam caráter

quase que indissolúvel. (BAUMAN, 2001, p.76)

Fato é que essa quase indissolubilidade do vínculo de emprego poderia ser

interessante para o trabalhador, por lhe conferir certa estabilidade e segurança;

porém, representava, acima de tudo, uma poderosa arma do capital de imobilização

da sua equipe, voltada a atar os empregados à empresa numa espécie de casamento

“até que a morte os separe”. (BAUMAN, 2001, p.185) O grande ideal era “atar capital

e trabalho numa união que – como um casamento divino – nenhum poder humano

poderia ou tentaria desatar”. (BAUMAN, 2001, p.182)

Logo, a velha história de que Henry Ford, ao dobrar os salários de seus

trabalhadores pretendia permitir que eles comprassem os carros que produziam,

parece representar um discurso falacioso. Conforme advertido por Bauman, “a

verdadeira razão para o passo heterodoxo era o desejo de Ford de deter a mobilidade

irritantemente alta do trabalho.” O que se acredita que ele pretendia, de fato, com essa

política de aumento salarial, era “atar seus empregados às empresas Ford de uma

vez por todas, fazendo com que o dinheiro gasto em sua preparação e treinamento se

pagasse muitas vezes por toda a duração da vida útil dos trabalhadores”. (BAUMAN,

2001, p.181)

Nesse sentido, tendo em vista o entrelace entre a força de trabalho e o capital,

bem como os demais traços do binômio fordismo-taylorismo aqui expostos, considera-

se que “a modernidade sólida era, de fato, também o tempo do capitalismo pesado –

do engajamento entre capital e trabalho fortificado pela mutualidade da sua

dependência”; era o tempo em que os muros da grande fábrica abrigavam os parceiros

(capital e trabalho) numa prisão compartilhada, unindo-os na riqueza e na pobreza,

na saúde e na doença, até que a morte os separasse. (BAUMAN, 2001, p.182)

Assim, nos termos do que será abordado, num contexto em que a relação

entre capital e trabalho assumia caráter predominantemente estático, sólido e

duradouro, sendo regida por uma mentalidade a longo prazo, o trabalho representava

um eixo seguro, em torno do qual tanto as expectativas do capital quanto as

expectativas do trabalhador eram depositadas, diuturnamente.

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4.2 O trabalho assalariado enquanto fator de solidez na nova ordem industrial

Preso nesse chão pelo pão carrego nos ombros a vida

e o peso da decisão que nunca tomei

(RIBEIRO, 2017)

Dentre as diversas virtudes e potencialidades do trabalho, sobretudo em sua

versão assalariada, foi, certamente, a sua capacidade, quase mística, de conferir

forma ao disforme e durabilidade ao transitório que o elevaram “ao posto de principal

valor dos tempos modernos”. (BAUMAN, 2001, p. 172)

A nova ordem industrial, ao consagrar o trabalho assalariado como a forma

de prestação de serviço por excelência, parece ter elegido, com toda a acuidade, os

“ingredientes” essenciais dessa forma de prestação laboral, quais sejam, a

pessoalidade, a onerosidade, a não eventualidade e a subordinação, a fim de obter

uma “mistura” apta a suprir as principais carências do capital industrial, pesado e

robusto por natureza.

Sob influência da doutrina protestante, a racionalização econômica do

trabalho – que, conforme previamente estudado, buscou regular as relações laborais

a fim de torná-las calculáveis e previsíveis, em compasso com o intuito acumulador e

disciplinador do capitalismo industrial –, ao mesmo tempo em que reificou a força de

trabalho, elevou o trabalho assalariado à “condição natural dos seres humanos”, sem

a qual o homem estaria fatalmente condenado à depravação e à miséria. Segundo

Bauman:

[...] o “trabalho”, assim compreendido, era a atividade em que se supunha que a humanidade como um todo estava envolvida por seu destino e natureza, e não por escolha, ao fazer história. E o “trabalho”, assim definido, era um esforço coletivo de que cada membro da espécie humana tinha que participar. O resto não passava de consequência: colocar o trabalho como “condição natural” dos seres humanos, e estar sem trabalho como normalidade, denunciar o afastamento dessa condição natural como causa da pobreza e da miséria, da privação e da depravação; ordenar homens e mulheres de acordo com o suposto valor da contribuição do seu trabalho ao empreendimento da espécie como um todo; e atribuir ao trabalho o primeiro lugar entre as atividades humanas, por levar ao aperfeiçoamento moral e à elevação geral dos padrões éticos da sociedade. (BAUMAN, 2001, p. 172-173)

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Veja-se, pois, que a centralidade assumida pelo trabalho era vivida não

apenas no interior das relações laborais, entabuladas entre operários e empresários

industriais; para além dos muros da relação de emprego, o trabalho era difundido

enquanto valor supremo, a ser duramente preservado por aquele que o tinha e

incessantemente perseguido por aquele que não o tinha. Afinal, apenas por meio dele,

o indivíduo poderia libertar-se do seu destino e construir a sua própria história,

esquivando-se da miséria e conquistando riquezas.

Assim, “o projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade

herdada”, deixando os indivíduos supostamente livres para escolherem o projeto de

vida a ser seguido. O que não quer dizer que o projeto moderno tenha se posicionado

contrariamente à ideia de se “ter uma identidade, mesmo uma sólida, exuberante e

imutável identidade. Só transformou a identidade, que era questão de atribuição, em

realização – fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do

indivíduo”. (BAUMAN, 1998, p.30)

Nesse sentido, pode-se dizer que, em sede de modernidade sólida e

capitalismo pesado, ao trabalho, foram atribuídas muitas virtudes e efeitos benéficos;

“mas, subjacente a todos os méritos atribuídos estava a sua suposta contribuição para

o estabelecimento da ordem, para o ato histórico de colocar a espécie humana no

comando do seu próprio destino”. (BAUMAN, 2001, p.172)

Esclarece-se que, ao se referir à modernidade como sólida, Bauman busca

estabelecer uma analogia entre os valores reinantes no contexto moderno e o arranjo

estruturalmente organizado que, unindo firmemente os átomos, confere estabilidade

aos sólidos. (BAUMAN, 2001, p. 8)

Assim, em sede de modernidade sólida – norteada pelos ideais da certeza,

do planejamento, da segurança e da acumulação – o trabalho assalariado, revestido

de qualidades que, ao menos em tese, permitiam tanto ao capital quanto ao

trabalhador alcançarem tais ideais, tornou-se instrumento decisivo na “moderna

ambição de submeter, encilhar e colonizar o futuro, a fim de substituir o caos pela

ordem e a contingência pela previsível (e, portanto, controlável) sequência dos

eventos”. (BAUMAN, 2001, p.172)

Considera-se, pois, que a natureza cumulativa do sistema industrial então

consolidado e a mentalidade guiada pela durabilidade e pelo preceito do longo prazo,

imposta pelo capitalismo pesado subjacente, convergiram para a consolidação de

uma sociedade na qual o presente deveria ser colonizado pelo futuro e na qual o

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instrumento disponível para o alcance dessa colonização não poderia ser outro, senão

o trabalho.

E para além desse potencial colonizador do futuro, a noção de bem-estar

geral propagada pela sociedade capitalista industrial estava vinculada tanto ao

acúmulo de capital quanto ao acúmulo de renda, que dependiam, um e outro, do

trabalho – próprio, no caso do acúmulo de renda, ou alheio, no caso do acúmulo de

capital.

Assim, pode-se dizer que o trabalho assalariado foi estrategicamente

apropriado pelo capitalismo industrial para exercer uma dupla função estabilizadora e

impulsionadora do sistema: tornou-se, ao mesmo tempo, a base para a extração de

lucro pelo proprietário dos meios de produção e a fonte de renda para o trabalhador,

viabilizando o exercício do papel social de consumidor imediato por ambos os atores

da relação (empregado e empregador) e, ainda, estimulando o acúmulo de riqueza

necessário para a realização de projetos futuros. (RIBEIRO; COUTINHO, 2017, p.193)

Marx, analisando essa imbricação entre trabalho e consumo direto, voltado

essencialmente à subsistência humana, considerou que:

Em troca da sua força de trabalho, o operário recebe meios de subsistência, mas o capitalista, em troca dos seus meios de subsistência, recebe trabalho, a atividade produtiva do operário, a força criadora por meio da qual o operário não somente substitui o que consome como também dá ao trabalho acumulado um valor superior ao que anteriormente possuía. O operário apenas recebe do capitalista uma parte dos meios de subsistência existentes. Para que lhes servem estes meios de subsistência? Para o consumo imediato. (MARX, 1977, p.37)

Realça-se que, não obstante essa indiscutível repercussão do trabalho

assalariado na esfera das necessidades humanas, vez que pressuposto para o

consumo básico de uma grande maioria, desprovida dos meios de produção, a sua

exaltação na sociedade capitalista não deve ser compreendida, simplesmente, como

algo que parte naturalmente do indivíduo. A verdade é que o próprio “capitalismo

celebra o trabalho – enfatizando o seu lado positivo. E há uma lógica nisso, pois todo

fenômeno cultural é produzido por ele”. (VIANA; TEODORO, 2016, p.6)

Mas para celebrar o trabalho a ponto de torná-lo desejado pelos

trabalhadores, a burguesia, enquanto legítima representante do capital, também

deveria ser celebrada, exaltada enquanto símbolo de um sucesso que poderia ser

alcançado, um dia, pelos trabalhadores fiéis e persistentes. Referindo-se a essa

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promessa capitalista de ingresso da mão-de-obra compromissada no universo

burguês como a grande fonte de estímulo à doação ao trabalho, Hobsbawn ensinou

que:

A era do capital encontrou dificuldades em acertar os termos com este problema. A insistência da burguesia na lealdade, disciplina e modesta satisfação não podia realmente esconder que sua verdadeira percepção de que o que fazia os trabalhadores trabalharem era algo bem diferente. Mas o que era então? Na teoria eles deveriam trabalhar para deixar de serem trabalhadores logo que possível, entrando então no universo burguês. (HOBSBAWN, 1982, p.22)

Pode-se entender, pois, que o estímulo para o trabalho era o status que

poderia ser alcançado por meio desse trabalho. Aquele que trabalhava muito, o fazia

para adquirir renda para seu consumo imediato, sim; mas ultrapassada essa esfera

das necessidades vitais, o fazia para acumular riquezas e, então, tornar-se digno de

ingressar no nobre universo da burguesia.

Contudo, “embora esta esperança pudesse ser suficiente para alguns que

tivessem conseguido subir e sair da classe operária, era perfeitamente evidente que

a maioria dos trabalhadores permaneceria trabalhador por toda a vida”, e de fato, o

sistema econômico almejava exatamente isso deles, razão pela qual os salários eram

sempre mantidos o mais baixo possível. (HOBSBAWN, 1982, p.229)

Quanto a essa funcionalidade do trabalho assalariado para fins de

manutenção do sistema capitalista, o sociólogo francês Robert Castel (apud VIANA;

TEODORO, 2016, p.6), reconhecendo a múltipla dimensão do trabalho na sociedade

capitalista, considerou que “o trabalho foi e permanece sendo a referência dominante

não somente do ponto de vista econômico, mas também sob as perspectivas

psicológica, simbólica e cultural” – o que se afirma, numa lógica reversa, pelos efeitos

de rebaixamento e exclusão sociais que atingem os indivíduos que, compondo o

exército de reserva de mão-de-obra, não dispõem de um ofício.

Contudo, apesar da proclamação do trabalho enquanto valor supremo de

inserção social e do trabalho assalariado enquanto fator de maior potencial para

realização dos ideais de segurança, estabilidade e progresso econômico, no plano

prático, apenas uma parte da relação entre capital e trabalho conseguiu, de fato,

desfrutar de todas essas benesses proclamadas pelo capitalismo industrial: o capital.

A força de trabalho operária, enquanto parte hipossuficiente dessa relação,

tanto em termos técnicos quanto financeiros, sociais e políticos, conforme se verá,

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não tardou a sentir os efeitos da imperativa subjugação aos propósitos do capital,

passando a demandar uma intervenção protetiva, que veio a ser conquistada – ou

concedida, a depender do ponto de vista – sob a forma de direitos.

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5 DIREITO DO TRABALHO NO BOJO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL:

COMPREENDENDO O ESPÍRITO JUSTRABALHISTA

Que bonito é aquele Direito Que, sentindo a vida, consegue embelezá-la

Ou, ao menos, torná-la menos desajeitada

(RIBEIRO, 2017)

5.1 A proteção social estatal no interior da sociedade industrial: movimentos

precursores

O modelo produtivo da “grande indústria”6, pautado no binômio taylorismo-

fordismo, conforme acima estudado, promoveu um processo de franca expansão do

capital, implementando mecanismos que, racionalizando a força de trabalho e

intensificando sua dependência face ao capital, favoreceram o deslanche do processo

de industrialização e, por conseguinte, da economia.

Já sob o prisma social e humano, o modelo da grande indústria deu ensejo a

um cenário de miséria extrema, intensificando o abismo social marcado pela oposição

entre o bem-estar desfrutado pelas classes empresárias e o mal-estar vivenciado

pelas classes operárias. Afinal, a liberdade de que desfrutavam os empresários

industriais para regular as relações de produção do modo que mais lhe agradasse,

combinada com a sua ambição de acumular capital, convergiram para um cenário de

superexploração do operariado.

Tal cenário, conforme ratificado pelos depoimentos abaixo

transcritos, expressava-se na rotina industrial pela imposição de jornadas exaustivas,

pelos galpões imundos, insalubres e perigosos, pelo pagamento de salários aviltantes

e pela superexploração da mão-de-obra infantil:

“(...) prestação de serviço durante mais de 12 horas de trabalho fatigante, sem descanso nem férias, com salários de fome (...) mortes e mutilações permanentes (...) doenças crônicas, (... péssimas condições higiênicas e de segurança. ”

6Como ensina Maurício Godinho Delgado, “a expressão grande indústria traduz um modelo de organização do processo produtivo, baseado na intensa utilização de máquinas e profunda especialização e mecanização de tarefas, de modo a alcançar a concretização de um sistema de produção sequencial, em série rotinizada.” (DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 13.ed. São Paulo: LTR, 2014, p.89)

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“(...) sabemos existirem fábricas onde trabalham crianças de 7 e 8 anos, junto a máquinas, na iminência aflitiva de terríveis desastres, como alguns já acontecidos...” “O operário, nas suas atuais condições de vida (...) não morre naturalmente: é assassinado aos poucos. ”. (MORAES apud VIANA, 2013, p.33-34)

A ordem industrial floresceu, então, sob o paradigma do “liberalismo clássico”7

ou liberalismo político – segundo o qual as relações privadas, em apreço ao grande

ideal iluminista da liberdade, deveriam ser regidas sem qualquer interferência do

poder estatal –, mas, sobretudo, sob o paradigma do liberalismo econômico, que

considerava injustificado e indevido qualquer controle do Estado sobre as relações

econômicas privadas. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.104)

Dentre os defensores do liberalismo clássico, o seu grande precursor, Wilhelm

von Humboldt, acreditava que o Estado fazia “‘do homem um instrumento para seus

fins arbitrários, deixando de lado os propósitos individuais’”; e, considerando que os

homens, por essência, eram seres livres, que se aperfeiçoavam por seus próprios

meios, os liberalistas clássicos entenderam que o Estado era uma “instituição

profundamente anti-humana”. (HUMBOLDT apud CHOMSKY 2006, p.7)

Contudo, tal convicção foi formada num contexto em que o capitalismo

industrial, ainda tímido e incipiente, não havia produzido os seus efeitos colaterais,

elevando à última potência a exploração entre seres humanos. Como ensinado por

Chomsky, “Humboldt, não previu que, numa economia capitalista predatória, a

intervenção do Estado seria uma necessidade absoluta para preservar a existência

humana e evitar a destruição do ambiente físico”. (CHOMSKY, 2006, p. 13)

O liberalismo econômico, preconizado por Adam Smith, veio à lume no século

XVIII e foi justamente da sua conjugação com o liberalismo político que, segundo

Reale (2005, p.25), operou-se “o real triunfo da burguesia”.

Nesse sentido, Norberto Bobbio explica que o Estado Liberal foi fruto de um

duplo processo de emancipação: do poder político face ao poder da igreja e do poder

econômico face ao poder político. Veja-se:

O duplo processo de formação do estado liberal pode ser descrito, de um lado, como emancipação do poder político do poder religioso (estado laico) e, de outro, como emancipação do poder econômico do poder político (estado

7 Conforme ensinado por Noam Chomsky, o liberalismo clássico, fruto dos ideais iluministas libertários, “afirma ter como ideia-chave a oposição a todas as mínimas formas de intervenção do Estado na vida social e pessoal”, pautando-se no princípio de que o atributo central do homem é a sua liberdade. In: CHOMSKY, Noam. O Governo no Futuro. Tradução de Maira Parula. Rio de janeiro: Record, 2007, p. 6

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do livre mercado). Através do primeiro processo de emancipação, o estado deixa de ser o braço secular da igreja; através do segundo, torna-se o braço secular da burguesia mercantil e empresaria. (BOBBIO, 2006, p.115)

No interior das fábricas, a relação travada entre o capital e o trabalho era

nitidamente desigual: o empresário industrial pré-fixava um valor – ou um preço,

propriamente, como entendia Marx8 – e, por esse valor, adquiria o direito de utilizar a

mão de obra do trabalhador por um período de tempo estipulado, que costumava

equivaler à quase metade das horas diárias; a quantidade, bem como o ritmo da

produção, eram ditados pelo empresário, que detinha os meios produtivos e, portanto,

o poder de dirigir e controlar o serviço a ele prestado de acordo com a sua pretensão

lucrativa; por fim, o direito dos operários de resistir às ordens empresariais e se

revoltarem contra as condições degradantes impostas não era reconhecido pelo

Estado, sendo consequentemente ignorado pelos patrões, que não cediam às

pressões operárias.

Fora das fábricas, os efeitos dessa relação também eram nitidamente

desfavoráveis aos trabalhadores: operários vestiam-se, comiam e moravam mal,

“aglomerados em cômodos imundos, sem ar nem luz”. (MORAES apud VIANA, 2013,

p.33)

Realçando a precariedade que, para além das fábricas, também estava

presente nas famílias daqueles que deixaram o campo e migraram para as cidades

em busca de meios de subsistência, Viana pondera que:

[...] a cidade podia ser o salário em dinheiro, a conta na venda, a cerveja no bar, o uniforme da fábrica, o domingo na igreja, a mulher cheia de orgulho, mas era também o cortiço, a favela ou às vezes até a casa dividida com outras gentes. E com certeza era a mesa sem leite, o domingo sem frango, o trabalho com o chefe no pé, o sono cortado em dois, a máquina gemendo e cuspindo fogo, a chaminé ordenando o tempo com seus apitos. (VIANA, 2013, p.35)

Karl Polanyi, sem ter previsto – assim como Humboldt –, as consequências

anti-humanas do capitalismo industrial, em defesa da liberdade de agir dos atores

sociais, assim considerou: “[...] não cabe à mercadoria decidir onde deve ser posta à

8 Karl Marx, caracterizando o salário como um preço, cita Thomas Hobbes, considerando que “o valor ou valia (value or worth) de um homem, é como para todas as coisas, o seu preço: isto é, tanto quanto seria dado pelo Uso do seu Poder”. (MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. Centauro: São Paulo, 1965)

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venda, para que propósito deve ser usada, a que preço deve trocar de mãos e de que

maneira deve ser consumida ou destruída” (POLANYI apud CHOMSKY, 2006, p. 13).

Ocorre que, conforme advertido por Chomsky, nesse novo cenário industrial

instaurado, pautado na exploração da mão-de-obra alheia, a mercadoria passou a ser

claramente a vida humana. Por essa razão, pensar em uma espécie de proteção social

tornou-se uma “necessidade mínima para refrear a atividade irracional e destrutiva do

livre mercado clássico”. (CHOMSKY, 2006, p.13)

Nesse sentido, captando a necessidade de se refrear a livre atuação do

mercado sobre a força de trabalho disponível, a partir do século XIX, algumas

importantes manifestações, sobretudo intelectuais, contrárias à relação de exploração

entabulada entre capital e trabalho, passaram a ocorrer, dando ensejo ao que Delgado

– respaldando-se nas classificações desenvolvidas por Granizo e Rothvoss –

denominou de “fase de intensificação” da proteção social ao trabalhador. (DELGADO,

2014, p.93)

Uma delas consistiu no “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friederich

Engels, que chamou a atenção da sociedade para o fato de que, a despeito do

aparente caráter democrático e libertador, a sociedade burguesa moderna, fruto da

nova ordem industrial, não havia suplantado os antigos antagonismos de classe;

havia, senão, legitimado um novo e simplificado antagonismo entre duas grandes

classes: a burguesia e o proletariado. (MARX; ENGELS, 1848, p.8)

Segundo os autores, a nova classe burguesa, constituída pelos empresários

industriais, havia desempenhado um papel revolucionário, tornando a histórica

exploração do homem sobre o homem “aberta, cínica, direta e brutal”, rasgando o véu

de sentimentalismo das relações humanas e as reduzindo, todas, a meras relações

monetárias. (MARX; ENGELS, 1848, p.11)

Consideraram, ainda, que a classe operária oprimida, vítima de salários cada

vez mais baixos em decorrência da livre concorrência, já demonstrava sinais de união

contra a sua opressão. Assim, conscientizando o proletariado da sua brutal

exploração, Marx e Engels preconizaram a necessidade de se fortalecer essa união

em prol de uma revolução proletária, destinada a abolir a propriedade privada das

forças produtivas e pôr fim à sujeição do trabalho perante o capital. (MARX; ENGELS,

1848, p.24-25)

Nota-se, portanto, que o “Manifesto Comunista” questionou aberta e

incisivamente o modelo da grande indústria, difundindo uma ideologia contrária àquela

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preconizada pelo capitalismo industrial – subsidiado e impulsionado pelo liberalismo

político vigente.

Alguns anos após, outra manifestação relevante consistiu na publicação da

Encíclica Rerum Novarum, escrita pelo Papa Leão XIII, em 1891. Apesar do seu nítido

caráter reacionário, haja vista o intuito de apenas apaziguar os conflitos decorrentes

da relação de exploração entre capital e trabalho, exaltando a conduta passiva do

trabalhador, o texto externou a preocupação da Igreja Católica diante da exploração

desenfreada do proletariado. Veja-se o seguinte trecho:

O primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas contra a natureza todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os homens diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce espontaneamente a desigualdade das condições. Esta desigualdade, por outro lado, reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos indivíduos; porque a vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva precisamente os homens a partilharem estas funções é, principalmente, a diferença das suas respectivas condições. Pelo que diz respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado de inocência, não era destinado a viver na ociosidade, mas, ao que a vontade teria abraçado livremente como exercício agradável, a necessidade lhe acrescentou, depois do pecado, o sentimento da dor e o impôs como uma expiação: A terra será maldita por tua causa; é pelo trabalho que tirarás com que alimentar-te todos os dias da vida. O mesmo se dá com todas as outras calamidades que caíram sobre o homem: neste mundo estas calamidades não terão fim nem tréguas, porque os funestos frutos do pecado são amargos, acres, acerbos, e acompanham necessariamente o homem até ao derradeiro suspiro. Sim, a dor e o sofrimento são o apanágio da humanidade, e os homens poderão ensaiar tudo, tudo tentar para os banir; mas não o conseguirão nunca, por mais recursos que empreguem e por maiores forças que para isso desenvolvam. Se há quem, atribuindo-se o poder fazê-lo, prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos e de trabalhos, toda de repouso e de perpétuos gozos, certamente engana o povo e lhe prepara laços, onde se ocultam, para o futuro, calamidades mais terríveis que as do presente. O melhor partido consiste em ver as coisas tais quais são, e, como dissemos, em procurar um remédio que possa aliviar os nossos males.9

Observe-se, pois, que a Rerum Novarum, ao contrário do “Manifesto

Comunista”, não propôs qualquer atitude de caráter revolucionária pela classe

operária; contrariamente, buscou reforçar a necessidade de complacência do

9 Trecho retirado da Carta Encíclica Rerum Novarum, de 1891, escrita pelo Papa Leão XIII. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerumnovarum.html. Acesso em: 21 out. 2017.

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proletariado diante da sua condição, que deveria ser compreendida enquanto fruto da

lei e vontade divinas.

Contudo, em relação à postura dos empresários industriais, denominados de

“ricos” e “patrões”, a Encíclica reconheceu a exploração desenfreada do empregado,

condenando o seu tratamento enquanto mero instrumento de lucro:

Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objecto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços. O cristianismo, além disso, prescreve que se tenham em consideração os interesses espirituais do operário e o bem da sua alma. Aos patrões compete velar para que a isto seja dada plena satisfação, para que o operário não seja entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada venha enfraquecer o espírito de família nem os hábitos de economia. Proíbe também aos patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior às suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo. Mas, entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém. Certamente, para fixar a justa medida do salário, há numerosos pontos de vista a considerar. Duma maneira geral, recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer no preço dos seus labores: «Eis que o salário, que tendes extorquido por fraude aos vossos operários, clama contra vós: e o seu clamor subiu até aos ouvidos do Deus dos Exércitos. Enfim, os ricos devem precaver-se religiosamente de todo o acto violento, toda a fraude, toda a manobra usurária que seja de natureza a atentar contra a economia do pobre, e isto mais ainda, porque este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem de mínima importância, revestem um carácter mais sagrado. A obediência a estas leis — pergunta-mos Nós — não bastaria, só de per si, para fazer cessar todo o antagonismo e suprimir-lhe as causas?10

Nota-se, portanto, que visando preservar a divisão da sociedade entre ricos e

pobres, empregados e patrões, a Igreja reconheceu a necessidade de se implementar

uma forma de tratamento menos brutal da força de trabalho, preconizando o respeito

à dignidade do trabalhador, a não exigência de esforços superiores às forças do

operário e, sobretudo, o pagamento de salários justos.

Por fim, destaca-se a “Conferência de Berlim”, de 1890, que, conforme

ensinado por Delgado, “embora não tivesse produzido resultados concretos imediatos,

significou o primeiro reconhecimento formal e coletivo pelos principais Estados

10Trecho retirado da Carta Encíclica Rerum Novarum, de 1891, escrita pelo Papa Leão XIII.

Disponível em: https://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerumnovarum.html. Acesso em: 21 out. 2017.

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europeus da franca necessidade de se regular o mercado de trabalho”, mediante a

elaboração de normas trabalhistas que fossem adequadas à realidade de cada país.

(DELGADO, 2014, p. 97)

5.2 O advento do Direito do Trabalho: “luxo” ideológico ou necessidade real?

Antes de se aprofundarem as exposições, julga-se importante esclarecer que

a compreensão ora adotada é a de que o surgimento do Direito do Trabalho não

representou um ato benevolente de concessão estatal – nem nos países ocidentais

de economia central, nem no Brasil, onde o surgimento do Direito do Trabalho foi

posterior, em virtude da industrialização tardia.

Considerando-se todos os fatores apresentados no decorrer do tópico

imediatamente anterior (item 5.1), que permitiram a constatação de que o capitalismo

industrial, em oposição às promessas de bem-estar geral, instaurou um cenário de

exploração desenfreada da força de trabalho pelo capital, pode-se dizer que o

surgimento do Direito do Trabalho representou uma necessidade – externada pela

sociedade civil e, posteriormente, incorporada pelo Estado.

Mas para que se compreenda o advento do Direito do Trabalho para além do

complexo normativo ao qual corresponde, é preciso, antes, analisar à fundo o seu

objeto de regulação, a fim de que, compreendendo a natureza e os efeitos das

relações sociais subjacentes a este Direito, compreenda-se a razão da sua existência.

Desde o surgimento do capitalismo, mas, sobretudo, no contexto de

capitalismo industrial, a mão-de-obra livre, mas desprovida dos meios de produção,

foi captada pelos detentores dos meios produtivos. O resultado desse processo de

assimilação da mão-de-obra livre, emancipada dos laços de servidão, pelos

empresários industriais foi o surgimento de um tipo de relação de trabalho na qual a

liberdade pessoal do trabalhador deveria conviver harmonicamente com a sua

subordinação no âmbito da prestação de serviços.

Assim, como ensina Evaristo Moraes Filho, “com o desaparecimento da

servidão medieval, podia o trabalhador firmar um contrato de locação de serviços com

seu patrão, como se fossem dois homens livres e iguais”. (MORAES FILHO, 2014,

p.43)

Essa equiparação realizada por Moraes Filho representa perfeitamente a

lógica contratual da relação de trabalho subordinado, oneroso, pessoal e não

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eventual, num contexto em que o liberalismo político e econômico vigente não

vislumbrava qualquer forma de regulação estatal sobre as relações privadas.

Contudo, conforme exposição realizada, a regulação das relações de trabalho

subordinado sob o paradigma do livre mercado, sem ingerências estatais, favoreceu

a objetivação do trabalho (compreendido como mera mercadoria) e a reificação do

trabalhador (visto como mero instrumento de lucro), intensificando a exploração, a

desigualdade e o pauperismo.

Por essas razões, foi que, ainda no século XIX, sobretudo nos países

europeus ocidentais e nos Estados Unidos da América, começaram a surgir

manifestações sociais alertando a sociedade para a subjugação do proletariado, bem

como sinalizando a necessidade de se regulamentar as relações de trabalho, fixando-

se “preceitos objetivos para a contratação e gerenciamento da força de trabalho

componente do sistema produtivo então estruturado”. (DELGADO, 2014, p.90)

Nesse contexto, a aglomeração dos operários nos arredores dos centros

urbanos estimulou a construção de uma identidade profissional por parte das grandes

massas obreiras, que partilhavam das mesmas opressões, angústias e anseios.

Segundo Hobsbawn,

os trabalhadores foram empurrados para uma consciência comum não apenas pela polarização social mas, nas cidades pelo menos, por um estilo comum de vida – no qual a taverna (“a igreja do trabalhador”, com um burguês liberal chamou-a) tinha um papel central – e por um estilo comum de pensamento. (HOBSBAWN, 1982, p. 235)

Assim, no âmbito da sociedade civil, a ação coletiva foi descoberta, tornando-

se o grande instrumento de mobilização e pressão pela classe trabalhadora, tanto no

âmbito profissional quanto em âmbito político. (DELGADO, 2014, p.90)

Desde então, movimentos coletivos de trabalhadores passaram a pressionar

a classe empresária industrial, impondo a necessidade de regulamentação jurídica

das relações trabalhistas, já que a regulação do mercado produtivo segundo os

preceitos liberais vigentes havia culminado num cenário de jornadas infindas,

acidentes de trabalho, mortes, salários de fome e vidas miseráveis.

Assim, no plano privado das relações trabalhistas, normas instituindo direitos

e obrigações para os trabalhadores foram, aos poucos, emergindo como fruto da

pressão das categorias mais bem organizadas do movimento operário-sindical. Dos

conflitos, foram surgindo conciliações sob a forma de regulamentos empresariais e

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estatutos sindicais, que tornavam cada vez mais robusto o complexo normativo

autônomo. (DELGADO, 2014, p.90-91)

Conforme advertido por Delgado, “essa produção normativa autônoma,

embora provocada, fundamentalmente, por um processo de organização e

mobilização obreiras, evidenciava também a elaboração (consciente ou não) de uma

estratégia empresarial alternativa”, que assimilava, em prol da sua própria

sobrevivência, novos instrumentos de gestão produtiva. (DELGADO, 2014, p.91)

No plano político, os efeitos desses movimentos operários também não

tardaram a surgir. Ainda em fins do século XIX e, principalmente, no início do século

XX, ações estatais reconhecendo as pressões obreiras passaram a ocorrer. A primeira

delas, que ocorreu na Alemanha em fins do século XIX, foi a política social de

Bismarck, que, segundo Mario de La Cueva, citado por Delgado, representou uma

política estatal alternativa de intervenção, que objetivou, simultaneamente, conter as

revoltas operárias, conter o movimento socialista e melhorar as condições de vida da

classe trabalhadora. (DELGADO, 2014, p.91)

Desde então, como pontuado por Magda Biavaschi, o equilíbrio de poder do

século XIX foi sendo rompido e a crise do liberalismo clássico foi se evidenciando à

medida que o Estado, cedendo às pressões, passava a intervir nas relações sociais,

reconhecendo direitos:

Por um lado, a ideia de mercado autorregulado começava a ser posta em xeque pelo próprio capital. Por outro, os trabalhadores e suas organizações pressionavam por uma regulação estatal que reduzisse as injustiças e as abissais desigualdades acirradas pelo modo de produção capitalista. Diante de uma realidade perversa, a pressão dos trabalhadores e de suas organizações, os intelectuais, a igreja, os partidos políticos, passavam a demandar uma regulação apta a limitar a ação predatória do movimento do capital. (BIAVASCHI, 2016, p.21)

No mesmo sentido, considerou Viana que foram os próprios trabalhadores

que, por meio da ação coletiva, produziram o Direito que lhes servia. “Mas eles não

estavam sós. Muitos outros os ajudaram. Entre eles estavam filósofos, políticos,

sociólogos, juristas, escritores, artistas, cientistas, economistas e até mesmo alguns

empresários”. (VIANA, 2013, p.26)

Contudo, foi apenas no contexto pós 1ª Primeira Guerra Mundial que a

proteção estatal ao trabalhador veio a se manifestar com veemência. As Constituições

mexicana e alemã, respectivamente de 1917 e 1919, em resposta às marcas deixadas

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pela guerra, não apenas deram ensejo à institucionalização de direitos trabalhistas,

como conferiram a tais direitos o importante status constitucional.

Também no ano de 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi

criada por meio do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial.

Fundada “sobre a convicção primordial de que a paz universal e permanente somente

pode estar baseada na justiça social”11, a OIT, na primeira Conferência Internacional

do Trabalho, realizada em 1919, adotou as seguintes importantes convenções:

A primeira delas respondia a uma das principais reivindicações do movimento sindical e operário do final do século XIX e começo do século XX: a limitação da jornada de trabalho a 8 horas diárias e 48 horas semanais. As outras convenções adotadas nessa ocasião referem-se à proteção à maternidade, à luta contra o desemprego, à definição da idade mínima de 14 anos para o trabalho na indústria e à proibição do trabalho noturno de mulheres e menores de 18 anos.12

Assim, como considera Delgado (2014, p.98), foi nesse instante histórico que

o Direito do Trabalho, reconhecido nos países de economia central, tornou-se “um

ramo jurídico absolutamente assimilado à estrutura e dinâmica institucionalizadas da

sociedade civil e do Estado”.

Contudo, a política de cunho liberal, ainda predominante, tornava essa

produção normativa estatal tímida ou contida na grande maioria dos países. Foi diante

da crise de 1929, deflagrada nos Estados Unidos e espraiada pelo mundo, que a

falibilidade da política liberal restou evidenciada. Em virtude da drástica queda da

produção e dos preços das ações nas bolsas de valores de Nova Iorque, inúmeras

empresas “quebraram-se” e um cenário de profunda recessão econômica instaurou-

se.

O novo cenário instaurado, de desemprego generalizado, favoreceu inclusive

o desenvolvimento da sociologia do desemprego, sobretudo, por meio dos estudos de

campo pioneiros realizados pela psicóloga austríaca Marie Jahoda, na década de

1930. Deslocando-se para um pequeno povoado austríaco denominado Marienthal,

atingido drasticamente pela crise de 1929 com o fechamento da principal indústria

instalada no local, Jahoda constatou que “mais de 75% da população passou a

11 Trecho retirado da página virtual “OIT Brasília”. História da OIT. Disponível em: http://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/hist%C3%B3ria/lang--pt/index.htm Acesso em: 22 out. 2017. 12 Trecho retirado da página virtual “OIT Brasília”. História da OIT. Disponível em: http://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/hist%C3%B3ria/lang--pt/index.htm Acesso em: 22 out. 2017.

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depender de uma prestação de seguro-desemprego que, num contexto de Estado

Liberal, era incapaz de satisfazer as necessidades mais básicas daquela massa de

desempregados”. (SANCHIS apud RIBEIRO; COUTINHO, 2017, p.194)

Sensível a esse cenário, o economista britânico John Keynes, apontando um

caminho alternativo ao liberalismo clássico vigente, preconizou a adoção de uma

política intervencionista apta a promover um novo modelo de Estado: o Welfare State

ou Estado do Bem-Estar Social. A ideia da política keynesiana, grosso modo, era

conferir garantias sociais aos trabalhadores a fim de reativar o consumo e,

consequentemente a economia. E, como pontuado Viana (2013, p.45), “um dos

modos de intervir acabou sendo justamente o Direito do Trabalho, que se tornou

maior, mais sólido, mais presente”.

No plano político, Marilena Chauí ensina que esse novo modelo estatal

preconizado por Keynes representou a concretização da social-democracia: uma

vertente político-ideológica que, operando-se por meio das ideias econômicas e

políticas de Keynes, estabeleceu uma distinção entre economia liberal de mercado e

economia planejada sob a direção do Estado. Assim, a social-democracia teria

emergido para demarcar claramente as suas distinções do totalitarismo e do

comunismo soviético, dando origem ao que se denominou de “terceira via”. Nas

palavras da autora:

Diferenciando-se dos dois modelos totalitários, a social-democracia, fortemente sustentada por uma base sindical poderosa e ativa, propôs o que viria a ser chamado de Estado de Bem-Estar, no qual o planejamento da economia tinha o Estado como parceiro econômico (na qualidade de definidor de políticas econômicas e sociais) e de regulador das forças do mercado, de maneira a conduzi-las pacífica e progressivamente rumo ao socialismo. Assim, entre a direita reacionária e/ou conservadora liberal e a esquerda revolucionária e/ou totalitária, a social-democracia era a terceira via.13

No que se refere ao contexto especificamente brasileiro, o Estado do Bem-

Estar proclamado pelo Governo de Getúlio Vargas, em 1930, também veio atender

aos anseios que já se manifestavam com intensidade no plano da sociedade civil.

Com a abolição da escravidão em 1888, a mão-de-obra livre foi absorvida pelo

segmento agrícola cafeeiro dos centros urbanos mais importantes do país, São Paulo

e Rio de Janeiro. (DELGADO, 2014, p.107)

13 CHAUÍ, Marilena. Fantasia da Terceira Via. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1912199904.htm. Acesso em: 22 out. 2017.

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Biavaschi, discorrendo sobre a questão da abolição da escravidão e seus

impactos sociais, inspirada pela obra “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa,

considerou que:

A abolição livrara o país de seus inconvenientes. Os negros, porém, foram abandonados à sua própria sorte. Suas dificuldades concretas de integração à sociedade acabaram atribuídas à inferioridade racial. Marcas dos tempos coloniais que acabaram inscritas na estrutura social, econômica e política deste Brasil de mil e tantas misérias. (BIAVASCHI, 2016, p.21)

Considerando a repercussão da abolição da escravidão sobre a estrutura

econômica brasileira, pode-se dizer que foi a partir de então que se tornou possível

falar em relação empregatícia no Brasil – haja vista que, na relação escravista de

prestação de serviço, não estava presente sequer a autonomia da vontade, elemento

contratual básico.

Por essa razão, Delgado (2014, p.106) considera que a Lei Áurea foi o grande

marco inicial de referência da história do Direito do Trabalho brasileiro, justamente por

viabilizar o surgimento do seu objeto de regulamentação: a relação empregatícia.

Contudo, nos alerta o autor para a seguinte questão:

Não se trata de sustentar que inexistisse no país, antes de 1888, qualquer experiência de relação de emprego, qualquer experiência de indústria ou qualquer traço de regras jurídicas que pudessem ter vínculo, ainda que tênue, com a matéria que, futuramente, seria objeto do Direito do Trabalho. Trata-se, apenas, de reconhecer que, nesse período anterior, marcado estruturalmente por uma economia do tipo rural e por relações de produção escravistas, não restava espaço significativo para o florescimento das condições viabilizadoras do ramo justrabalhista. (DELGADO, 2014, p.107)

O cenário econômico predominantemente rural perdurou no Brasil por quase

toda a primeira metade do século XX; foi apenas no período entre 1941 e 1947 que a

indústria começou, de fato, a suplantar a agricultura. (BIAVASCHI, 2016, p. 22) Logo,

em 1930, quando o estado do Bem-Estar Social floresceu no cenário político

brasileiro, o Brasil ainda era um país predominantemente agrário. Contudo, o

processo de industrialização já estava em curso e o movimento de êxodo rural e de

consequente aglomeração de operários nos arredores das indústrias já era realidade.

Assim, no mesmo sentido do que ocorria já há algum tempo no plano

internacional, tanto a classe empresária quanto o Estado já sentiam as pressões e os

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ataques da classe operária que, à mercê de qualquer proteção social significativa, era

superexplorada diuturnamente.

Em 1930, quando também o Brasil sofria os efeitos da crise econômica de

1929, Getúlio Vargas assumiu o poder e adotou uma política voltada a implementar

no país um Estado de Bem-Estar Social, que para alcançar o propósito

desenvolvimentista e modernizador e, ao mesmo tempo, atender às pressões da

classe operária, investiu na produção de normas de proteção social, sobretudo,

trabalhistas.

Sobre essa intervenção estatal no sentido de assegurar direitos à classe

trabalhadora, Biavaschi pontua que “a regulação do trabalho brasileira pode ser lida

como uma intervenção extramercado, em um momento em que a humanidade se dava

conta de que a Ordem Liberal não dava conta da questão social e, muito menos, da

econômica.” Assim, a resposta não só no Brasil, mas no mundo em geral, foi

antiliberal, resultando na planificação pelo Estado, quer de forma democrática, quer

de forma autoritária. (BIAVASCHI, 2016, p.23)

Na “Era Vargas”, apesar da incisiva ingerência estatal sobre a atuação

sindical, as associações sindicais obtiveram reconhecimento político, ingressando –

ao menos teoricamente – no círculo de negociações do denominado “pacto fordista”,

que consistia numa recíproca troca de favores entre Estado, sindicato e empresa, nos

seguintes termos:

Simplificando, a parte do Estado era criar empregos e direitos, além de continuar dando suporte à indústria – com pontes, estradas, barragens e muito mais. A parte do sindicato era aceitar o sistema, lutando dentre dele por melhores condições de trabalho e de salário. A parte da empresa era aceitar o sindicato, negociando com ele, embora resistindo o quanto quisesse ou pudesse. (VIANA, 2013, p.45)

Contudo, pondera Viana que, na realidade brasileira, esse “pacto fordista”

representou um acordo apenas entre a empresa e o Estado. E “mesmo nesse acordo

pela metade, a voz forte era do Estado, tanto assim que ele praticamente enfiou a

Consolidação das Leis do Trabalho pela garganta da empresa”. (VIANA, 2013, p.47)

Foi então sob a égide do “Estado Novo”, implementado por Vargas em 1º de

maio de 1943, Dia do Trabalhador, que, em meio a muita festa e celebração pela

classe trabalhadora e independentemente do consentimento e agrado pela classe

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empresária, veio à tona a mais importante fonte heterônoma do Direito do Trabalho

brasileiro: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Referindo-se à CLT como obra de uma coletividade, Viana escreveu essas

belas palavras:

E a história da CLT é uma história de lutas. Ao contrário do que se pode pensar, ela não caiu do céu, de repente, como a chuva de verão. Nem cresceu por acaso, sem eira nem beira, como capim em roça de milho. Foi pensada e discutida, atacada e defendida.[...]E não foi obra de um homem só. Nem de um país só. Em certo sentido, muitos trabalhadores – de toda parte – sofreram e morreram por ela. Mesmo sem saber disso. E até mesmo sem conhecer o Brasil. Como uma flor do cerrado, ela cresceu em chão duro, pobre, difícil. E também por isso, talvez, muitos ainda a desprezem. [...]Também como flor do cerrado, que bebe a água da terra, a CLT tem as suas fontes. E essas fontes, em boa parte, são os próprios trabalhadores. Sozinhos, eles nada podem. Unidos, podem tudo – ou quase tudo. (VIANA,

2013, p.20)

Assim, apesar de produzida pelo Estado, a Consolidação – como indica o

próprio termo – foi fruto da aglomeração e reconhecimento estatal das diversas e

esparsas normas trabalhistas já existentes no plano da relação privada entre

empregado, empregadores e sindicatos. Por essa razão é que, assim como verificado

no plano internacional, no plano nacional pode-se também considerar que o Direito do

Trabalho surgiu “de baixo para cima”, como fruto de uma dura conquista da classe

menos apoderada – e “não de cima para baixo”, como um ato caridoso de concessão

dos que têm mais aos que têm menos poder.

Por todas as razões aqui expostas, considera-se também que o Direito do

Trabalho, apesar de, indiscutivelmente, ter refletido uma opção ideológica, e apesar

de ser ele próprio uma ideologia, não foi reconhecido pelo Estado como um “luxo”

ideológico, isto é, apenas para ostentar a derrota política do liberalismo. O

reconhecimento e incorporação das normas trabalhistas pelo Estado refletiram uma

necessidade imposta por uma realidade na qual a regulação privada das relações

trabalhistas significava fome, miséria, doenças, amputações, deformações e mortes.

Assim, enquanto reflexo da realidade, o Direito do Trabalho não representou

uma aventura ou ostentação jurídica, tampouco ideológica. No interior do sistema

capitalista industrial vigente, a sua instituição mostrou-se inevitável, necessária para

a sobrevivência não só da classe trabalhadora, mas do próprio capital – que já havia

sentido os efeitos colaterais da miséria imposta por ele próprio ao proletariado.

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5.3 O espírito do Direito do Trabalho

Ao final do tópico prévio (item 5.2), o advento do Direito do Trabalho foi

pensado como produto de uma opção político-ideológica e o Direito do Trabalho foi

considerado uma ideologia em seus próprios termos.

Fato é que a palavra ideologia comporta significados distintos; e não poderia

ser diferente, haja vista que o significado parece não corresponder a algo pré-

concebido, restrito à literalidade das palavras. Assim, o próprio significado da palavra

ideologia varia a depender das experiências, ideias e crenças – ou seja, das

impressões ideológicas –, daquele que lhe atribui significado.

Chauí considera que, ao contrário do que parece, “o real não é constituído por

coisas”, mas sim por ideias, das quais as coisas seriam meros receptáculos ou

encarnações provisórias”. Segundo a autora, a realidade seria, pois, fruto da

“ideologia em estado puro”14, que corresponderia às nossas ideias e representações

acerca das coisas. (CHAUÍ, 2008, p.22)

A fim de ilustrar tal concepção, a filósofa utiliza o seguinte exemplo,

interessante e esclarecedor: uma montanha, para A, representa uma coisa; para B,

adepto de religião politeísta, a montanha não é uma coisa, mas a morada dos deuses;

já para C, empresa mineradora que explora uma jazida descoberta em determinada

montanha, ela é uma propriedade privada capitalista; para D, trabalhador desta

empresa mineradora, a montanha é um local de trabalho. (CHAUÍ, 2008, p.20-21)

Na 1ª Jornada Internacional de Estudos e Pesquisas em Antonio Gramsci,

realizada em 2016, pesquisadores da Universidade Federal do Ceará consideraram

que o que mais se aproxima das proposições de Gramsci “é o uso de ideologia como

‘concepção do mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade

econômica, em todas as manifestações da vida individual e coletiva’ ” (GRAMSCI,

apud COSTA; CLEMENTE, 2016, p.2).

14 Reforça-se que o trecho acima refere-se à exposição de Chauí acerca da definição de ideologia em estado puro. Tal conceito não coincide com a concepção de ideologia adotada por Karl Marx e nem mesmo com a concepção que a autora busca atribuir à palavra ideologia, no âmbito de uma sociedade dividida em classes de explorados e exploradores. Segundo Chauí, muito além de um conjunto sistemático de ideias, a ideologia corresponde a um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, como forma de assegurar a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política. (CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 2008).

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Chiapello e Boltanski (2009, p.33) definem a ideologia como um “conjunto de

crenças compartilhadas, inscritas em instituições, implicadas em ações e, portanto,

ancoradas na realidade”.

Cléber Lúcio de Almeida e Wânia de Almeida, respaldando-se no conceito de

ideologia adotado por Chiapello e Boltanski , para fins de analisar a formação do

Direito do Trabalho enquanto processo ideológico, escreveram as seguintes palavras:

[...] a formação do Direito do Trabalho envolve o debate entre concepções políticas-econômicas-sociais que propõem formas concretas de organização no mundo do trabalho e de disciplina das relações individuais e coletivas de trabalho. O Direito do Trabalho constitui, nesta linha de raciocínio, a forma de manifestação, no campo jurídico, de determinada concepção política-econômica-social, o que implica que, a par de ser fruto de determinada opção ideológica, é, ele próprio, uma ideologia, na medida em que estabelece conceitos legais e formas de solução de conflitos que irão refletir na ordem política, econômica e social. (ALMEIDA, C.; ALMEIDA, W., 2017, p.130)

Por meio de uma junção das definições acima apresentadas, ao se referir ao

advento do Direito do Trabalho como fruto de uma opção ideológica – cuja adoção

mostrou-se necessária diante do contexto apresentado no item anterior (5.2) –,

pretende-se demonstrar que o ramo justrabalhista veio à lume enquanto um conjunto

de ideias e crenças compartilhadas, voltado a alterar a mesma realidade que

fundamentou a necessidade da sua existência. E, partindo desta linha de raciocínio,

a pergunta é: alterar a realidade de que modo? Aceitando-a? Potencializando-a?

Contestando-a? Ou apenas limitando-a?

Dorothee Susanee Rüdiger, ao discorrer sobre o surgimento do Direito do

Trabalho, caracteriza-o como um “filho da modernidade” que “veio dar forma à relação

de emprego moderna que se desenvolvia junto ao mercado”. Mas realça a autora

que, ao formalizar a relação entre capital e trabalho assalariado na relação de

emprego, o Direito do Trabalho foi além: afirmou-se como um importante “elemento

estabilizador da sociedade capitalista”. Veja-se o raciocínio construído por Rüdiger:

Mais do que isso, o direito do trabalho constitui um elemento estabilizador da sociedade capitalista, porque se, de um lado, o mercado implica a constante destruição do antigo, do tradicional e do permanente, de outro lado, também produz o novo, o estável, tanto no plano material quanto no plano das ideias. O caos do laissez-faire, da corrida pelo lucro, da competição deve apresentar a aparência de ordem. Assim, na modernidade, numa unidade paradoxal, a sociedade encontra formas de organização que recorrem a discursos e metadiscursos para sua legitimação. O direito do trabalho deve ser visto no contexto dos elementos estabilizadores e norteadores do pensamento que é

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tido como universal, isto é, aceito por todos, inclusive pelos críticos da sociedade capitalista. (RÜDIGER, 2004, p.10)

Neste sentido, Rüdiger também compreende o Direito do Trabalho como um

instrumento de justiça social, que “fecha um hiato” entre o direito liberal e a realidade

fático-jurídica de desigualdade no âmbito das relações de trabalho que regula:

O fundamento teórico, político e jurídico do direito do trabalho continua seguindo o espírito da modernidade. Trata-se de garantir a justiça social, verdadeira razão de ser do direito do trabalho, uma vez que restabelece, pelo trato desigual das partes, a igualdade perdida na relação de trabalho. Trata-se de realizar, através do direito do trabalho, a solidariedade social, a fraternité relegada pelo direito liberal e conquistada pelos trabalhadores. (RÜDIGER, 2004, p.39)

Explica ainda a autora: A justiça social é garantida tanto pelo direito do trabalho estatal quanto pelo direito do trabalho coletivamente negociado. Ao mesmo tempo que se cria um direito estatal do trabalho, os sindicatos e as normas coletivamente negociadas são reconhecidos. Com isso, o direito do trabalho fecha um hiato entre o direito liberal, que, entendendo as relações jurídicas como entre indivíduos, enquanto a economia capitalista concentra o poder e a riqueza na mão de grandes conglomerados, tinha criado um verdadeiro “mundo paralelo jurídico” distante daquele percebido no dia-a-dia da vida em sociedade. (RÜDIGER, 2004, p.10)

Perceba-se que Rüdiger, ao reconhecer o Direito do Trabalho como um

elemento estabilizador da sociedade capitalista, voltado a agir sobre o caos instaurado

pelo liberalismo para promover a justiça social, considera ser o ramo justrabalhista um

fator de “ordem”, ainda que aparente, no interior do sistema vigente.

Isso significa que, ao tornar imperativa a concessão de um patamar de direitos

para os trabalhadores empregados, o Direito do Trabalho não pretendeu extirpar ou

reverter a lógica de exploração entre capital e trabalho; na realidade, o ramo

justrabalhista parece ter pretendido imprimir ordem, frear essa exploração,

contribuindo, assim, para salvaguardar a relação de exploração capitalista de uma

iminente implosão.

Nesta linha, pondera Viana que o “Direito do Trabalho, em sua origem, já

nasceu contraditório, servindo tanto a oprimidos quanto a opressores, pois, a um só

tempo, viabiliza, civiliza e institucionaliza as relações de trabalho” que constituem o

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substrato da lógica capitalista de produção. (VIANA, apud RIBEIRO; ABREU, 2016, p.

106).

E foi justamente para cumprir esse propósito de humanizar e civilizar a relação

de exploração capital-trabalho, tornando-a minimamente viável do ponto de vista da

justiça social, que o Direito do Trabalho precisou edificar-se sobre uma base jurídica

de proteção. Proteção a quem? À parte mais fraca – em termos políticos, econômicos

e sociais – dessa relação.

Foi reconhecendo tal necessidade que os juristas trabalhistas – inclusive o

uruguaio Américo Plá Rodriguez, grande referência da doutrina justrabalhista em

plano internacional – convergiram para a ideia de que o núcleo basilar do Direito do

Trabalho não poderia ser outro senão o princípio da proteção à parte mais frágil da

relação empregatícia; afinal, conforme ensina Delgado, só assim, instituindo uma

proteção no plano jurídico, o Direito do Trabalho tornar-se-ia capacitado para retificar

(ou atenuar) “o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho.

(DELGADO, 2014, p. 196),

Discorrendo sobre o princípio nuclear da proteção, Delgado realça a sua

função retificadora por meio das seguintes palavras:

O princípio tutelar influi em todos os segmentos do Direito do Trabalho, influindo na própria perspectiva desse ramo ao construir-se, desenvolver-se e atuar como direito. Efetivamente, há ampla predominância nesse ramo jurídico especializado de regaras essencialmente protetivas, tutelares da vontade e interesses obreiros; seus princípios são fundamentalmente favoráveis ao trabalhador; suas presunções são elaboras em vista do alcance da mesma vantagem jurídica retificadora da diferenciação social prática. (DELGADO, 2014, p.196)

Nota-se, pois, que ao tornar o princípio da proteção ao trabalhador o eixo

central do Direito do Trabalho, o caráter protetivo-retificador desse ramo especializado

tornou-se evidente. Isso permite dizer que a proteção jurídica ao trabalhador é sim um

fim do Direito do Trabalho; mas é, sobretudo, o meio do qual o Direito do Trabalho se

vale para cumprir o seu objetivo de corrigir as distorções do mercado de trabalho –

instituído pelo capitalismo para tornar a comercialização da força de trabalho regulável

pela lei da oferta e da procura.

A esse respeito, Offe esclarece que, nas sociedades capitalistas, o mercado

de trabalho consiste na principal solução institucional para um duplo problema de

alocação: “de um lado, o sistema de produção deve ser alimentado com os inputs do

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trabalho por ele requeridos; por outro lado, a força de trabalho deve ser abastecida

com meios de subsistência monetários (renda) e sociais (status)”. Assim, conforme

explica o autor, o mercado de trabalho – imbuído da mesma lógica de troca de

qualquer outro mercado – “organiza a produção e a distribuição como uma relação de

troca entre salários e inputs de trabalho”, sendo que, “neste caso, como em todos os

outros mercados, vendedores e compradores de trabalho encontram-se em oposição”.

(OFFE, 1989, p.24)

E no bojo dessa relação entre compradores e vendedores da força de

trabalho, formalizada por meio de um contrato, não há dúvidas de que, num contexto

de livre concorrência, a posição desvantajosa acaba sendo sempre ocupada pela

parte vendedora. É o que Offe considera:

A posição particularmente desvantajosa em termos de mercado e estratégia da “mercadoria” força de trabalho resulta do fato de “o empregado acabar sempre em uma posição desfavorável quando firma um contra de trabalho

em situação de livre concorrência. (OFFE, 1989, p.27)

Ainda segundo Offe (1989, p. 27-29), alguns dos fatores determinantes dessa

explícita desvantagem da força de trabalho no interior do mercado de trabalho seriam

os seguintes:

a) embora a força de trabalho seja tratada como “mercadoria”, a sua entrada no mercado não é regulada pelo critério objetivo de expectativa de venda, do mesmo modo que se opera com as mercadorias de fato; “a elevação da ‘oferta’ da força de trabalho é determinada por processos demográficos não-estratégicos e pelas regras institucionais da atividade reprodutiva humana”, bem como pelos “processos socioeconômicos que ‘liberam’ a força de trabalho das condições em que ela poderia se manter de uma forma diferente, impedindo-a de recorrer a meios e modos de subsistência fora do mercado de trabalho; b) outra desvantagem reside no fato da força de trabalho, por estar sujeita a uma necessária vinculação entre a sua venda e a aquisição de meios de subsistência (não possuindo outros meios, via de regra, para se manter viva), não se encontra em condições de esperar por oportunidades mais favoráveis. “Como resultado, ela é compelida a abrir mão de suas opções estratégicas próprias para submeter-se a todas as condições impostas pela demanda no momento e aceitar o salário corrente oferecido”; c) um terceiro fator de desvantagem corresponde ao fato de que, diante das suas opções estratégicas limitadas e da sua necessidade de adquirir meios de subsistência, a força de trabalho permanece constantemente “dentro de ‘uma estrutura de um padrão mínimo de vida’, definido material e culturalmente. (OFFE, 1989, p.27-29)

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Assim, conforme concluído por Offe, diante de todo esse complexo de

desvantagens, resta claro que o estado de necessidade enfrentado pela força de

trabalho é muito mais rígido que a necessidade dos empregadores de alocar mão-de-

obra para produzir bens e serviços. E a explicação para essa assimetria entre os níveis

de necessidade enfrentados pelos dois lados do mercado de trabalho, sob o prisma

econômico, parece estar bem fundamentada: “através de mudanças tecnológicas, a

produção pode muito bem ser mantida, mesmo com uma queda no uso de trabalho

por unidade de produto, enquanto a reprodução da força de trabalho não pode ser

mantida com uma queda na renda familiar”. (OFFE, 1989, p.29)

Perceba-se, pois, que a assimetria entre os dois lados do mercado de

trabalho, que serão também os dois lados da relação de emprego, já nasce na fase

prévia à formalização do contrato de trabalho, já que o trabalhador, via de regra,

ingressa na relação de emprego em franco estado de necessidade, motivo pelo qual

seu poder de negociação tende a ser mínimo ou inexistente.

Nesse sentido, situando a relação de emprego na zona da necessidade e

concebendo, portanto, o contrato de trabalho como um contrato que escapa à

conformação típica de um contrato de comum acordo – que se encontra, talvez,

aquém da própria categoria dos contratos de adesão –, Viana e Teodoro (2017, p.

336) consideram que isso implica a sujeição do trabalhador “a uma intensa

precarização de condições laborais e de direitos, em prejuízo à dignidade do seu

trabalho e à sua própria dignidade enquanto ser humano”.

Assim, tal sujeição, determinante da assimetria entre as partes da relação

empregatícia, não só prevalece como se acentua no curso do contrato de trabalho.

Isso porque os empregadores, no papel de “compradores” da força de trabalho,

podem se tornar mais independentes da oferta de mão-de-obra do que podem os

trabalhadores se tornar em relação à demanda por força de trabalho. Além disso, “os

primeiros, podem aumentar a eficiência da produção, enquanto os trabalhadores não

são capazes de aumentar a eficiência da sua reprodução”. Por fim, “estes últimos, têm

apenas a opção de reduzir seu padrão de vida no momento em que se esgotam as

possibilidades de ‘economizarem’ com base em sua remuneração”. (OFFE, 1989,

p.29-30)

Nessa perspectiva, entendendo que o Direito do Trabalho, por meio da

proteção jurídica que busca conferir ao trabalhador, configura-se como importante

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medida de correção de todas essas distorções geradas pelo mercado e perpetuadas

pela relação de emprego, Rüdiger assim dispõe:

Nessa ótica, o direito do trabalho deve ser compreendido como uma das “medidas corretivas do mercado”. Essa correção se dá em dois níveis. De um lado, pela redução do desequilíbrio entre as partes e pelo restabelecimento da autonomia da vontade e da igualdade entre as partes. Para tanto, o direito do trabalho, como vimos, está baseado no princípio protetor que vincula, principalmente, os agentes do Estado chamados a reduzir a desigualdade substancial entre as partes. De outro lado, o direito do trabalho propicia aos grupos representativos dos interesses dos trabalhadores um verdadeiro contrapoder. (RÜDIGER, 2004, p.10)

Veja-se, pois, que, apesar de ter se mostrado útil para a manutenção das

relações capitalistas de poder, conforme discutido previamente, o Direito do Trabalho,

na visão de Rüdiger, compreendido como medida corretiva perante o mercado, parece

corresponder mais a um contrapoder do que a um aliado do poder.

Esse raciocínio nos parece, de fato, acertado. Considera-se, contudo, que

utilizar o termo contrapoder para definir a essência do Direito do Trabalho pode

favorecer à interpretação de que esse ramo jurídico especializado contesta e

confronta a sistemática de poder vigente, o que parece não se afirmar do ponto de

vista histórico da sua formação.

Por essa razão, talvez, considerar o Direito do Trabalho como um contrapeso

à exploração decorrente das relações capitalistas de poder seja mais adequado, tanto

do ponto de vista histórico, quanto do ponto de vista prático. Afinal, toda a exposição

que se realizou até aqui parece convergir para a ideia de que o Direito do Trabalho foi

construído para operar no interior do sistema capitalista vigente como um ramo

jurídico protetivo-corretivo, e não propriamente para contestar ou combater o sistema

vigente.

Assim, partindo de todas premissas ora apresentadas, entende-se,

primeiramente, que, o Direito do Trabalho, enquanto produto do Estado de Bem-Estar

Social, refletiu a opção ideológica pela social-democracia. E conforme já analisado, a

social-democracia foi criada não para contestar o sistema capitalista, mas para

estabelecer um meio-termo ou uma “terceira-via”; afinal, o que, de fato, coube aos

Estados de Bem-Estar Social foi promover a institucionalização de meios de proteção

social não para afrontar o capitalismo, mas para conservá-lo, corrigindo algumas das

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imperfeições que haviam sido criadas ou acentuadas pela ideologia liberal até então

prevalente.

Deste modo, considera-se que a ideologia que condicionou o surgimento do

Direito do Trabalho e que é, portanto, por ele refletida, tem caráter reformista: não

contesta a relação capital-trabalho, mas institui limites a fim de tornar essa relação

menos agressiva do ponto de vista humano, menos injusta do ponto de vista

econômico e menos desigual do ponto de vista social.

Essa parece ser, portanto, a grande missão do Direito do Trabalho: reformar

a realidade de exploração desenfreada do trabalho pelo capital.

Seguindo tal raciocínio, entende-se, pois, que o espírito do Direito do Trabalho

constitui-se da soma entre os fundamentos da sua existência, a sua missão e os seus

meios de atuação, que, respectivamente, consistem em: a) desigualdade no âmbito

da relação entre capital e trabalho (fundamento de existência); b) retificação ou

compensação das distorções de mercado (missão ou propósito); c) proteção jurídica

à parte explorada no plano fático (meio ou norte de atuação).

Assim, na cena jurídico-trabalhista brasileira, a CLT, ao conferir um patamar

mínimo de direitos e prerrogativas aos trabalhadores empregados, bem como as

demais fontes formais de direito do trabalho, autônomas e heterônomas, não pretende

sobrelevar a força de trabalho, a ponto de torná-la juridicamente superior ao capital.

Este não é o propósito do Direito do Trabalho – e, ainda que fosse, diante das reais

dificuldades encontradas na sua tentativa de igualar juridicamente as partes da

relação empregatícia, não se acredita que poderia alcançá-lo.

O que, de fato, acredita-se caber ao Direito do Trabalho é contrabalancear,

limitar a livre regulação das condições básicas para o trabalho, como a jornada, o

salário e o ambiente laboral, resguardando o trabalhador ou, na maioria das vezes,

apenas compensando-o pelos reflexos práticos da posição desvantajosa que ocupa

no interior do mercado e, sobretudo, da relação empregatícia.

Desta forma, conforme será discutido ao final, entende-se que negar esse

papel de freio e contrapeso que o Direito do Trabalho precisa exercer, a fim de cumprir

a sua função protetivo-retificadora das distorções práticas do mercado e das relações

de trabalho por ele intermediadas, é negar o seu espírito – isto é, sua essência – e,

portanto, comprometer a sua própria existência. Afinal, conforme a sétima proposição

formulada pelo filósofo Baruch de Spinoza (2009, p. 9) em sua obra “Ética”, “à

natureza de uma substância pertence o existir”.

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6. A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL SOB O PARADIGMA DA

ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL

A vida que vivo É também a que não vivo A fôrma que me enforma

É a mesma que me deforma E do trabalho que faço

Escorre tudo aquilo que não faço

(RIBEIRO, 2017)

6.1 O capital em crise

No decorrer de parte significativa do século XX, o sistema de produção

capitalista ancorou-se no modelo fordista-taylorista, que não só prometeu, mas, de

fato, atendeu muito bem aos interesses do capital em sua fase “pesada”. O capitalismo

pesado, para se manter em consonância com os valores propagados pela

modernidade sólida, contou com o precioso suporte do modelo produtivo fordista-

taylorista, que implantou, no plano micro das relações produtivas, mecanismos

compatíveis com os valores reinantes em plano macro.

Conforme visto, o capitalismo pesado era obcecado por volume, tamanho,

rigidez e estabilidade – qualidades que, na prática, convergiam para os ideais de

acumulação e segurança, preconizados pela modernidade em seu estágio “sólido”.

No plano das relações produtivas, baseadas na especialização das tarefas, na

repetição e cronometragem dos movimentos, na rígida hierarquia, na massificação do

operariado e na baixa rotatividade da mão-de-obra, tais valores também eram

prestigiados.

Como ensina Bauman, “o capitalismo pesado, no estilo fordista, era o mundo

dos que ditavam as leis, dos projetistas de rotinas e dos supervisores; o mundo de

homens e mulheres dirigidos por outros, buscando fins determinados por outros”. Era

também o mundo em que os trabalhadores estavam tão fixados ao solo quanto o

capital que os empregava. Assim, pode-se dizer que o fordismo representava “a

autoconsciência da sociedade moderna em sua fase ‘pesada’, ‘volumosa’, ‘imóvel’ e

‘enraizada’, ‘sólida’ ”. (BAUMAN, 2001, p. 75 e 83)

Em âmbito político e econômico, viu-se que, desde a eclosão da crise

econômica de 1929, esse sistema produtivo de acumulação, sob a égide do

liberalismo, já havia dado sinais da sua falibilidade. A política keynesiana,

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consubstanciada no Estado de Bem-Estar Social e refletindo a ideologia política

social-democrata, emergiu justamente para tentar “socorrer” o capitalismo diante dos

efeitos destrutivos da profunda recessão econômica que se vivenciava.

Por algum tempo, as políticas sociais implementadas pelo Welfare State

conseguiram, de fato, tapar alguns dos “buracos” deixados pelo liberalismo. Um deles,

foi a ausência de regulamentação das relações trabalhistas, que veio a ser suprida

pelo Direito do Trabalho. Assim, o Estado de Bem-estar Social, enquanto integrante

do pacto ou “compromisso fordista”15, contribuiu para a mediação entre capital e

trabalho, sobretudo no contexto pós-guerra, causando uma ilusória sensação de

estabilidade perante a sociedade.

O sociólogo Ricardo Antunes, utilizando-se do termo “fetichismo de Estado”

para se referir à exaltação do ente estatal como garantidor social, principalmente pelo

proletariado, tece as seguintes considerações:

Dentro da moldura do fordismo, com efeito, esse Estado representa para o proletariado a garantia da ‘seguridade social’, com sua qualidade de gestor da relação salarial: é o Estado que fixa o estatuto mínimo dos assalariados [...]; é ele que impulsiona a conclusão e garante o respeito das convenções coletivas. [...] Tudo isso fez com que se desenvolvesse um ‘fetichismo de Estado’, bem como de seus ideais democráticos (inclusive no que eles têm de ilusório), aos quais o ‘Estado-providência’ deu conteúdo concreto (ao garantir de algum modo o direito ao trabalho, à moradia, à saúde, à educação e à formação profissional, ao lazer, etc). (ANTUNES, 2009, p.42)

Contudo, essa ilusória estabilidade não durou por muito tempo. Conforme

ponderado por Mészáros16, “Tudo o que aquelas tentativas conseguiram foi somente

a ‘hibridização’ do sistema do capital, comparado a sua forma econômica clássica

(com implicações extremamente problemáticas para o futuro), mas não soluções

estruturais viáveis”. Assim, na visão do autor, o declínio do reformismo social-

democrata, que veio a ocorrer, consistiu em “uma prova da irreformabilidade do

15 Conforme explica Ricardo Antunes, esse compromisso fordista, firmado entre capital e trabalho e mediado pelo Estado, “era resultado de vários elementos imediatamente posteriores à crise de 30 e da gestação da política keynesiana que sucedeu. Resultado, por um lado, da própria lógica do desenvolvimento anterior do capitalismo e, por outro, do equilíbrio relativo na relação de força entre burguesia e proletariado, que se instaurou ao fim de decênios de lutas. Mas esse compromisso era dotado de um sentido também ilusório[...]” (ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 40) 16 MÉSZAROS. A crise estrutural do capital. Revista Outubro. 4. ed. Artigo nº 02, p. 3. Disponível em: revistahttp://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro Edic%CC%A7a%CC%83o-4-Artigo-02.pdf Acesso em: 15 ago. 2017.

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sistema capitalista”, resistente a qualquer modo de contestação que não atinja o seu

“antagonismo estrutural destrutivo”. Nas palavras de Mészaros:

Na verdade, é inconcebível introduzir as mudanças fundamentais requeridas para remediar a situação sem superar o antagonismo estrutural destrutivo, tanto no “microcosmo” reprodutivo, como no “macrocosmo” do sistema do capital enquanto um modo global de controle do metabolismo social. 17

Durante os anos 1960, com mais força nos países de economia avançada,

iniciou-se uma fase de intensa turbulência social, que, marcada por movimentos

operários contestadores da ordem produtiva imposta, passou a anunciar os limites

históricos do compromisso fordista. Essas ações, segundo Antunes, “ganharam a

forma de uma verdadeira revolta do operário-massa contra os métodos tayloristas e

fordistas de produção, epicentro das principais contradições do processo de

massificação”. (ANTUNES, 2009, p. 43)

Dentre os movimentos de oposição da classe operária às opressões e

desigualdades geradas pelo sistema produtivo no qual estava inserida, a revolta de

maio de 1968, na França, foi uma das mais expressivas.

Segundo Alan Woods18, o “Maio de 1968”, que veio a eclodir no auge

econômico do contexto pós Segunda Guerra Mundial, foi a maior greve geral da

história. Explica o autor que “Abaixo da superfície de aparente calma existia um

enorme acúmulo de descontentamento, rancor e frustração”. Em decorrência dessa

insatisfação, iniciou-se uma onda de contestação, primeiramente, por parte de

estudantes franceses, conscientes da desigualdade socioeconômica crescente e da

repressão criativa vivenciada em âmbito profissional – o que reduzia as suas

expectativas de acesso a empregos autônomos e criativos.

Esses movimentos estudantis vieram de encontro às manifestações dos

operários, que, no interior das fábricas, também contestavam a desigualdade, a

opressão e a repressão criativa das quais eram vítimas. Assim, em 13 de maio de

1968, milhares de estudantes e trabalhadores lançaram-se às ruas de Paris,

17 MÉSZAROS. A crise estrutural do capital. Revista Outubro. 4. ed. Artigo nº 02. Disponível em: revistahttp://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edic%CC%A7a%CC%83o-4-Artigo-02.pdf. Acesso em: 15 ago. 2017. 18 WOODS, Alan. A Revolução Francesa de Maio de 1968. 2008. Disponível em: https://www.marxist.com/revolucao-francesa-maio-1968.htm Acesso em: 25 out. 2017.

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promovendo uma greve geral de dimensão e intensidade jamais vistas. O trecho a

seguir descreve o cenário de turbulência instaurado:

[...]os trabalhadores e estudantes desafiavam o gás lacrimogêneo e as baterias de policiais. Em uma só noite houve 795 presos e 456 feridos. Os manifestantes tentaram incendiar a Bolsa de Paris, considerada um símbolo odiado do capitalismo. Um comissário de polícia foi morto em Lyon por um caminhão. Uma vez na luta, os trabalhadores começaram a ter iniciativas que iam mais além dos limites de uma greve normal. Um elemento fundamental na equação foram os meios de comunicação de massas. Formalmente, são armas poderosas nas mãos do Estado, mas também dependem dos trabalhadores, que fazem funcionar as emissoras de rádio e televisão.19

Conforme consideram Chiapello e Boltanski (2009, p.199), embora não tenha

se tratado propriamente de uma revolução, no sentido de dar ensejo a uma tomada

do poder político, a greve geral instaurou uma crise profunda, que colocou em perigo

o funcionamento do sistema capitalista, pelo menos na visão de organizações

internacionais encarregadas de garantir a defesa do sistema vigente, como a

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Analisando as causas da insatisfação operária, responsável por ensejar essa

onda de manifestações, Boltanksi e Chiapello (2009, p.199) apresentam uma

interessante classificação das críticas que foram disparadas contra o sistema

capitalista, subdividindo-as em “críticas sociais” e “críticas estéticas”.

Segundo os autores, no plano social, as críticas consistiram na exclusão

prolongada dos operários dos benefícios do crescimento empresarial bem como na

“miséria da vida cotidiana”, que assolava a grande maioria da classe operária.

(BOLTANSKI; CHAPELLO, 2009, p.199)

No plano estético, as críticas orbitaram em torno da ausência de autonomia,

decorrente da estrutura de gestão altamente rígida e hierarquizada, e da alienação

dos operários, vítimas do império da “tecnicização e da tecnocratização”.

(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.200).

Nesse mesmo sentido, Antunes (2009, p.43), discorrendo acerca das

limitações do modelo fordista-taylorista, considera que elas foram evidenciadas,

sobretudo, pela ausência de autonomia no interior das fábricas e pelo processo de

massificação do operariado, cujas condições de trabalho e da própria existência

haviam sido homogeneizadas. Explica o autor que “o taylorismo/fordismo realizava

19 WOODS, Alan. A Revolução Francesa de Maio de 1968. 2008. Disponível em:

https://www.marxist.com/revolucao-francesa-maio-1968.htm. Acesso em: 25 out. 2017.

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uma expropriação intensificada do operário-massa, destituindo-o de qualquer

participação na organização do processo de trabalho, que se resumia a uma atividade

repetitiva e desprovida de sentido”.

Assim, no contexto empresarial dos anos 1970, ambas as espécies de

críticas, sociais e estéticas, expressaram-se na forma de exigência de uma maior

autonomia no trabalho e de garantias sociais contra a miséria e a desigualdade

socioeconômica. Neste sentido, a seguinte explicação de Boltanski e Chiapello:

O movimento crítico, pelo menos nos aspectos diretamente referentes ao trabalho, questiona dois tipos de partilha. O primeiro, diz respeito ao poder, em especial a partilha do poder legítimo de julgar. Quem tem o direito de julgar quem? Em nome de que critérios? Quem deve ordenar e quem deve obedecer? Isto incide sobre a maioria das provas que envolvem a faculdade de julgar e decidir no trabalho, especialmente de decidir por outrem. Manifesta-se no questionamento ao comando e à hierarquia, bem como pela expressão de uma exigência de autonomia na tradição da crítica estética. A segunda partilha diz respeito à distribuição dos riscos, mais precisamente das vicissitudes da carreira, direta ou indiretamente ligadas à evolução dos mercados. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 202)

Consideram, ainda, os autores que essas críticas sustentadas pelos

movimentos operários contestatórios, que se espraiaram pelo mundo, tinham vistas

“a aumentar as garantias dos assalariados, em primeiro lugar daqueles que, não

possuindo poupança nem patrimônio, eram muito vulneráveis aos efeitos sofridos pelo

sistema produtivo em decorrência de mudanças conjunturais ou de modos de

consumo”. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 202)

Realça-se que, a nível mundial, a dimensão desses conflitos que marcaram

os anos finais da década de 1960 e os anos 1970 pode ser explicitada, inclusive, por

meio de dados estatísticos: “pode-se encontrar um indicador grosseiro do nível de

crítica, pelo menos no que se refere ao trabalho, na estatística do número de jornadas

de greve, que é de 4 milhões em média durante os anos 1971-75. Comparativamente,

esse número ficará abaixo de meio milhão em 1992”. (BOLTANSKI; CHIAPELLO,

2009, p. 199)

No interior das relações de trabalho, ensinam Boltanski e Chiapello (2009, p.

205) que toda essa insatisfação se manifestou por meio de uma espécie de

“resistência passiva”, exprimida de diferentes formas, tais como: resistência à

cronometragem imposta, lentidão consciente no ritmo de trabalho e recusa a aplicar

as normas procedimentais prescritas. As consequências foram sentidas direta e

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indiretamente pelas empresas, que apresentaram sérias dificuldades de garantir os

mesmos níveis de produtividade durante o período.

Nessa perspectiva, as considerações de Antunes:

O boicote e a resistência ao trabalho despótico, taylorizado e fordizado assumiam modos diferenciados. Desde as formas individualizadas do absenteísmo, da fuga do trabalho, do turnover, da busca da condição de trabalho não operário, até as formas coletivas de ação visando a conquista do poder sobre o processo de trabalho. (ANTUNES, 2009 p.44)

Em decorrência, sobretudo, dessa conflitualidade vivenciada no mundo do

trabalho, consolidou-se, então, uma “crise estrutural do capital”, que colocou em

discussão o nível de sociabilidade e os mecanismos de controle social do capital, bem

como a potencialidade do caminho social-democrata para atender aos anseios do

mundo do trabalho. (ANTUNES, 2009, p. 49)

Além dos fatores apresentados, não menos determinante para a instauração

desse cenário de crise foi o histórico excesso de produtividade que, num contexto de

globalização ou internacionalização da produção e consequente acirramento da

concorrência, culminou na queda da lucratividade empresarial. Em decorrência das

baixas taxas de acumulação de capital, os níveis de crescimento da produtividade

reduziram-se drasticamente e o resultado, no âmbito das relações de trabalho, foi o

“arrocho” salarial e o crescente desemprego, decorrente da redução dos

investimentos. (ANTUNES, 2009, p.33)

Robert Brenner, por meio de suas teses apresentadas em The Economics of

Global Turbulence, em 1999, considerou que a crise vivenciada a partir da segunda

metade dos anos 1960 “encontra ‘suas raízes profundas numa crise secular de

produtividade, que resultou do excesso constante de capacidade e de produção fabril,

que era em si, a expressão da acirrada competição internacional’”. (BRENNER apud

ANTUNES, 2009, p. 32-33)

Analisando as fontes dessa conjuntura de agitação social e estagnação

econômica, que colocou à prova a funcionalidade da organização produtiva do capital,

Antunes enumera, dentre outros, os seguintes fatores cruciais:

1)Queda da taxa de lucro, dada, entre outros elementos causais, pelo aumento da força do preço da força de trabalho, conquistado durante o período pós-45 e pela intensificação das lutas sociais dos anos 60, que objetivavam o controle social da produção. A conjugação desses elementos

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levou a uma redução dos níveis de produtividade do capital, acentuando a tendência decrescente da taxa de lucro; 2)o esgotamento do padrão produtivo de acumulação taylorista/fordista de produção (que em verdade era a expressão mais fenomênica da crise estrutural do capital), dado pela incapacidade de responder à retração do consumo que se acentuava. Na verdade, tratava-se de uma retração em resposta ao desemprego estrutural que então se iniciava; 3)hipertrofia da esfera financeira, que ganhava relativa autonomia frente aos capitais produtivos, o que também era expressão da própria crise estrutural do capital e seu sistema de produção, colocando –se o capital financeiro como um campo prioritário para a especulação, na nova fase do processo de internacionalização; [...] 4)a crise do Welfare State ou do ‘Estado do bem-estar social’ e dos seus mecanismos de funcionamento, acarretando a crise fiscal do Estado capitalista e a necessidade de retração dos gastos públicos e sua transferência para o capital privado; 5)incremento acentuado das privatizações, tendência generalizada às desregulamentações e à flexibilização do processo produtivo, dos mercados e da força de trabalho, entre tantos outros elementos contingentes que exprimam esse novo quadro crítico. (ANTUNES, 2009, p.31-32)

Percebe-se, portanto, que a conjuntura pós 1960 não tratou de uma crise

econômica pontual; tratou-se de uma crise multifacetada e complexa, influenciada por

fatores endógenos à relação de produção – como a insatisfação do proletariado face

à repressão, alienação e desigual distribuição dos rendimentos das quais era vítima –

, e por fatores exógenos à lógica produtiva – como o fenômeno da internacionalização

da economia, que, acirrando a concorrência, contribuiu para a queda da lucratividade

e produtividade e, consequentemente, para o cenário de desemprego estrutural

instaurado.

Assim, diante das pressões sociais e profundas dificuldades econômicas

enfrentadas, o capital, a fim de reativar os seus patamares de expansão, precisou

buscar por maneiras de se restaurar.

Para tanto, respondendo às críticas de ordem estética que alimentaram a

insatisfação operária e os movimentos de contestação à sociabilidade do sistema

produtivo vigente, o capital iniciou, no plano micro das relações de produção, um

movimento de reestruturação voltado à flexibilização do seu ciclo produtivo, que foi

acompanhado, no plano macro, por um movimento de desregulamentação política,

econômica e jurídica.

6.2 A reanimação do capital: toyotismo, desregulamentação e flexibilização

O movimento no sentido de se flexibilizar a sistemática produtiva tornou-se

evidente a partir dos anos 1970, quando o capital buscou introduzir novos métodos de

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gestão “por meio de um culto do subjetivismo e de um ideário fragmentador”, que,

conforme considerado por Antunes, promoveu uma “apologia ao individualismo

exacerbado contra as formas de solidariedade e de atuação coletiva e social”.

(ANTUNES, 2009, p.50)

A resposta do capital às críticas direcionadas ao caráter opressor, rígido e

alienante da produção ocorreu, portanto, por meio da elaboração de um modelo

produtivo que, ao menos teoricamente, ofertou ao proletariado tudo aquilo que

almejava: mais autonomia, participação ativa e realização no espaço de trabalho.

Todas essas qualidades foram reunidas no modelo toyotista de produção.

Mas antes de se adentrar ao estudo do toyotismo, importa esclarecer que o

processo de transformação do modelo produtivo não consistiu em uma transição linear

e uniforme, que tenha culminado numa total superação do modelo fordista-taylorista.

Como ponderam Boltanski e Chiapello (2009, p. 240-241), “[...] não é fácil

avaliar a amplitude dessas mudanças, que afetaram as empresas de maneira

desigual, segundo suas dimensões e seus setores de atividade”. Segundo os autores,

a partir da segunda metade do século XX, verifica-se uma mescla dos modelos

produtivos: as pequenas empresas tendem a permanecer “pré-taylorianas, enquanto

as indústrias de porte médio podem procurar compensar o atraso introduzindo

métodos de organização racional do trabalho do tipo tayloriano, que, no entanto, já

são questionados ou modificados nas grandes empresas”, tudo isso durante um

mesmo período.

Em relação ao modelo emergente, ensina Antunes (2009, p.56) que o

toyotismo ou ohnismo – derivado de Ohno, sobrenome do engenheiro que

desenvolveu o modelo produtivo em questão para a fábrica japonesa Toyota –

consistiu em uma nova forma de organização do trabalho, que se distinguiu do

fordismo, sobretudo, pelos seguintes traços:

a) vinculação da produção à demanda, utilizando-se, para tanto, do sistema

de “kanban” – placas e senhas comandando a reposição dos produtos, a fim de evitar

os vastos estoques típicos da produção fordista;

b) promoção do trabalho em equipe e em caráter multifuncional – isto é,

trabalhadores realizando, simultaneamente, várias funções –, rompendo com a

especialização das tarefas característica do fordismo;

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c) organização de “Círculos de Controle de Qualidade (CCQs) como

mecanismos de instigar os trabalhadores a discutirem e aprimorarem suas atividades,

melhorando o desempenho individual e elevando a produtividade;

d) estímulo à competição interna por meio da vinculação do desempenho

individual a metas de produtividade;

e) horizontalização do complexo empresarial produtivo, que passou a

transferir a terceiros a responsabilidade por parte expressiva das tarefas que eram

realizadas no interior da empresa;

f) a consequente flexibilização das formas de contratação de mão-de-obra,

cuja grande expressão foi a terceirização de tarefas consideradas periféricas. Para

ilustrar a dimensão alcançada por esse fenômeno no mundo do trabalho, realça-se

que, conforme estatística apresentada por Boltanski e Chiapello (2009, p. 242),

realizada pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos da França

(INSEE), o desenvolvimento da terceirização passou de 5,1% da receita bruta

industrial em 1974 para 8,9% em 1991, mantendo esse nível a partir de então. No

Brasil, a mesma tendência pôde ser verificada: segundo pesquisa realizada pelo

Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE,

2017), “Em 2014, havia 12,5 milhões de vínculos ativos nas atividades tipicamente

terceirizadas e 35,6 milhões nas tipicamente contratantes”, o que mostra que a

terceirização, nesse período, já correspondia a cerca de um quarto dos vínculos de

trabalho formais no Brasil.

Além de todos estes pontos mencionados, outro traço característico do

toyotismo merece destaque: a flexibilização da estrutura hierárquica e das formas de

controle sobre o trabalhador.

Em virtude da revolução tecnológica vivenciada na segunda metade do século

XX, o mundo do trabalho passou a conhecer o que Boltanski e Chiapello (2009, p.225)

denominaram de “instâncias individuais conectadas em rede”. Foi justamente diante

dessa nova possibilidade de “conexão em rede” que, valendo-se dos novos meios

telemáticos e plataformas virtuais desenvolvidos, as empresas sentiram-se

confortáveis para reduzir as despesas com os cargos hierárquicos de controle

(sobretudo os gerenciais) e promover a substituição do controle direto sobre a mão-

de-obra pelo autocontrole. Veja-se:

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A volta ao controle das empresas, objetivo essencial do patronato na época, não foi obtida com o aumento do poder da hierarquia, com o crescimento das linhas hierárquicas e com o número de instrumentos contábeis ou de diretrizes burocráticas, e sim graças a uma ruptura com os moldes de controle anteriores à endogeneização das reivindicações de autonomia e de responsabilidade até então consideras subversivas. É possível esquematizar essa mudança, considerando que ela consistiu em substituir o controle pelo autocontrole e assim transferir para fora os custos elevadíssimos do controle, repassando o peso da organização para os assalariados. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 225)

A respeito de tais alterações, considera-se, pois, que o mundo do trabalho, no

contexto pós 1970, foi inundado por ideais empresariais que podem ser “muito bem

representados por palavras e expressões, tais como: flexibilização, empowerment,

colaboração, polivalência, empreendedorismo, qualidade total, qualificação e controle

simbólico”. Quanto ao controle simbólico, representado pela imputação ao trabalhador

de uma espécie de “direito-dever” de se autocontrolar, numa alusão ao panóptico de

Foucault, considera-se, ainda, que,

[...]do ponto de vista do sujeito que aliena a sua força de trabalho, isso quer dizer que, nesse novo contexto produtivo, “ele torna-se responsável por gerir seus próprios projetos e metas, ‘prescindindo de um controlador externo porque o controle simbólico, nos moldes do panóptico de Focault (1994), é eficaz o suficiente para garantir o conserto das práticas” (SATO, 2003, p.33). Nas palavras de Alves (2011, p.115), a figura do inspetor está agora “introjetada nos operários e empregados”, que se tornam algozes de si mesmos e dos seus pares. (RIBEIRO; JANNOTTI, 2016, p. 1205)

Realça-se que Bauman, analisando esse novo cenário produtivo inaugurado

sob o prisma da modernidade líquida – ou pós-modernidade20 –, considera que as

relações produtivas ultrapassaram o modelo foucaultiano do panóptico. Na sua visão,

o que se passou a vivenciar a partir da reestruturação do capital foi uma fase histórica

“Pós-panóptica”, de modo que, no âmbito das relações de poder, “as pessoas que

operam as alavancas do poder de que depende o destino dos parceiros menos

voláteis na relação podem fugir do alcance a qualquer momento – para a pura

inacessibilidade”. (BAUMAN, 2001, p.19)

Ainda segundo Bauman, em decorrência de tais alterações estruturais, o

capitalismo abandonou a sua aura “pesada” e se tornou “leve”. Do ponto de vista do

20 Na visão de Ellen Wood, a pós-modernidade corresponde a uma fase do capitalismo marcada por

transformações econômicas e ideológicas que, apesar de ratificarem a lógica racionalista e individualista da modernidade, desta se distingue pelas seguintes características: “era da informação”, “produção enxuta”, “acumulação flexível”, “capitalismo desorganizado”, consumismo. (WOOD, 2001, p.121)

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capital, isso significa que “ele ‘viaja leve – apenas com a bagagem de mão, que inclui

nada mais que pasta, telefone celular e computador portátil’, podendo saltar em

qualquer ponto do caminho e ali permanecer apenas enquanto durar a sua satisfação”.

(BAUMAN, apud RIBEIRO; ABREU, 2017, p. 110)

Sob o prisma do trabalhador, considera-se que a suavização da rígida

estrutura hierárquica e das formas de controle – o que não quer dizer que houve uma

suavização do controle em si, tanto sobre o trabalho quanto sobre o trabalhador –, ao

menos no plano das teorias, conferiu ao proletariado alguns sinais da tão almejada

autonomia – traduzida, por exemplo, em horários e condições de trabalho mais

flexíveis, das quais o instituto do “teletrabalho”21 tornou-se a grande expressão;

contribuiu, também, para atenuar o sentimento de alienação da classe trabalhadora

por meio do pretendido “enriquecimento” das tarefas realizadas. Contudo, parece ter

sido estipulado um “preço” a se pagar por essas concessões.

Conforme ponderado por Boltanski e Chiapello (2009, p.225), tais medidas

representaram, de certo modo, uma “inversão política”, que, valendo-se do culto ao

individualismo – acentuado em sede modernidade líquida –, retirou das categorias de

trabalhadores diversas garantias, concedendo a cada trabalhador, em troca, uma

maior autonomia na realização da sua atividade. A par dessa retirada de garantias, o

capital teria, ainda, reduzido significativamente o espírito contestatório e a

potencialidade de organização da classe operária, tomada pelo espírito da competição

e do individualismo, veementemente propagado pela nova filosofia de gestão

empresarial.

Nota-se que todas essas alterações verificadas convergiram, portanto, não

apenas para a consagração de novos padrões de produção; determinaram, sobretudo,

21 Acerca dos possíveis efeitos colaterais advindos da aparente suavização do controle patronal nas atividades realizadas à distância, por meios telemáticos, seguem algumas considerações sobre o instituto do teletrabalho, tecidas em outra oportunidade: “Embora, a princípio, possa parecer crível que o trabalho realizado à distância reduz o controle patronal, suavizando os traços da subordinação, Estrada (2014, p.26) nos alerta para o fato de que surge, na verdade, um “controle virtual e invisível do empregador mediante programas de softwares que até registram quantas vezes o teletrabalhador teclou e os sites que visitou”. Além disso, ao admitirem o teletrabalho, as empresas passam a medir o desempenho profissional pela produtividade, elevando em quantidade e intensidade as metas a serem alcançadas. Assim, a jornada de trabalho - cuja flexibilização deveria consistir em benefício para o teletrabalhador – é, geralmente, elastecida. Em conseqüência, os níveis de estresse podem elevar-se consideravelmente, aguçando o sofrimento psíquico que, conforme Dejours (1998), consiste em importante mecanismo de controle patronal”. (RIBEIRO, Ailana. Teletrabalho: ócio criativo ou escravização digitalizada? Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 150, jul 2016. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.p.hp?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17474&revista_caderno=25>. Acesso em: 10 nov. 2017)

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uma profunda alteração de valores que, marcada pela exaltação do ideal nuclear da

flexibilização, foi imprescindível para legitimar, dentro e fora das relações produtivas,

os novos padrões de conduta considerados adequados.

Neste sentido, Boltanski e Chiapello, considerando que a “flexibilidade”,

grande cerne das transformações vivenciadas no contexto pós 1970, subdivide-se em

“flexibilidade interna” e “flexibilidade externa”, apresentam a seguinte reflexão:

Um dos eixos principais da nova estratégia das empresas, como vimos, foi o grande crescimento daquilo que, a partir dos anos 80, foi chamado de flexibilidade, que possibilitou transferir para os assalariados e também para subcontratados e outros prestadores de serviços o peso das incertezas do mercado. Ela se decompõe em flexibilidade interna, baseada na transformação profunda da organização do trabalho e das técnicas utilizadas (polivalência, autocontrole, desenvolvimento de autonomia, etc.), e flexibilidade externa, que supõe uma chamada organização do trabalho em rede, na qual empresas “enxutas” encontram os recursos de que carecem por meio de abundante subcontratação e de uma mão-de-obra maleável em termos de emprego (empregos precários, temporários, trabalho autônomo), de horários ou de jornada de trabalho (tempo parcial, horários variáveis). (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.240)

Nota-se, pois, que, no âmbito interno das relações de trabalho, o ideal de

flexibilização foi apropriado pela gestão empresarial, que passou a prescrever um

modelo de “trabalhador flexível”. Em termos práticos, isso significou a reunião das

seguintes qualidades, consideradas essenciais para fins de empregabilidade:

adaptabilidade, multifuncionalidade ou polivalência, pró-atividade, espírito de

cooperação, autocontrole e total disponibilidade para o trabalho.

A esse respeito, considera-se que o trabalhador pós-moderno, a fim de

assumir o estereótipo do empregado ideal, passou a ter que se submeter a um

processo que – em alusão à “teoria da destruição criadora ou criativa” de Joseph

Schumpeter, abordada adiante –, denomina-se de “(auto)destruição criativa”,

reinventando-se incessantemente, sob pena de se tornar desinteressante aos olhos

do capital. Veja-se:

No mesmo contexto, estão a mentalidade e a atitude pró-ativas, disseminadas na literatura de administração de empresas, voltadas a incutir no sujeito a necessidade de se qualificar e reinventar constantemente para ser absorvido pelo mercado de trabalho e nele continuar. O sujeito deve ser versátil e adaptar-se às novas exigências – e às novas condições fluidas e precarizadas de trabalho – internalizando valores como o do empreendedorismo e da empregabilidade. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.46-47)

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Esse ideal de flexibilização também reverberou no plano político por meio de

uma tendência de desregulamentação, incorporada e propagada pela ideologia

neoliberal, que veio a se tornar internacionalmente dominante.

Antunes (2009, p.63), referindo-se à experiência inglesa, ensina que o “projeto

neoliberal”, vigente no Reino Unido desde 1979, teve como grande marco a ascensão

de Margareth Thatcher ao poder e a consectária quebra da trajetória anterior,

“marcada por forte presença do trabalhismo inglês” – influenciado pela atuação

política incisiva do partido dos trabalhadores ingleses, o Labour Party.

Diante da nova agenda política neoliberal, que transformou substancialmente

o histórico participativo promovido pela atuação do Labour Party, gradativamente, “[...]

foi se desenhando um modelo que alterava tanto as condições econômicas e sociais

existentes na Inglaterra quanto a sua estrutura jurídico-institucional, de modo a

compatibilizar-se com a implementação do modelo neoliberal”. (ANTUNES, 2009,

p.68)

A pauta central dessa nova agenda, com vistas a implementar o

neoliberalismo, consistiu no fortalecimento da liberdade de mercado, a ser alcançado

por meio das seguintes medidas: a) privatização generalizada, de tudo aquilo que se

manteve sobre o controle estatal no período do trabalhismo; b) aprovação de medidas

repressoras e inibidoras à atuação sindical, concedendo ao sindicalismo o status de

“inimigo central do neoliberalismo”; c) desenvolvimento de uma legislação de cunho

fortemente desregulamentador, do ponto de vista das condições de trabalho, e

flexibilizador, do ponto de vista dos direitos sociais. (ANTUNES, 2009, p.68-69)

Nesse sentido, a onda neoliberal instaurada, por meio do “boicote sistemático

à atuação dos sindicatos”, estimulou a individualização das relações entre trabalho e

capital, da qual o exemplo da greve, citado por Antunes, é bastante elucidativo:

As greves de solidariedade foram proibidas; também foram coibidas as ações de conscientização dos sindicatos, como os piquetes e a pressão sindical tradicionalmente exercida sobre os trabalhadores que desconsideravam as decisões coletivas, tomadas por voto secreto pela realização da greve. Somente as paralisações que seguiam o ritual burocrático-legal restritivo tinham validade. (ANTUNES, 2009, p. 70)

Não sendo suficiente o comprometimento da instituição e manutenção de

direitos e garantias para a classe trabalhadora no âmbito das negociações coletivas,

no plano da regulamentação jurídica estatal, também foi instituída uma tendência de

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flexibilização, representada pela mitigação ou mesmo supressão de muitos dos

direitos e garantias sociais arduamente conquistados – sobretudo direitos e garantias

trabalhistas.

Realça-se que a flexibilização no plano das relações laborais foi fortemente

preconizada, em plano internacional, por meio do Consenso de Washington, de 1989,

que, a pretexto de ofertar a fórmula mágica para a expansão econômica ocidental,

impôs aos países em desenvolvimento, estando dentre eles o Brasil, a adoção de 10

postulados, sendo o 9º, a implementação da “desregulamentação trabalhista”.

(JANNOTTI; RIBEIRO, 2017, p.4)

Desde então, o Direito do Trabalho, historicamente estigmatizado em virtude

de representar, ou ao menos pretender representar, um contrapeso aos interesses do

capital, tornou-se alvo de uma explícita campanha política e econômica em prol da

sua desregulamentação, eufemisticamente difundida no Brasil como “flexibilização

trabalhista”.

E os reflexos práticos do ideal de se flexibilizar o Direito do Trabalho – que

será analisado com maior profundidade adiante – não tardaram a surgir, traduzindo-

se, na cena jurídica brasileira, nas mais diversas medidas tomadas pelos Poderes

Executivo, Judiciário e Legislativo, dentre as quais se destacam: a consagração da

prescrição quinquenal e não mais trintenária do FGTS; o cancelamento da Súmula

277 do TST, que previa a ultratividade das negociações coletivas, de modo que, finda

a vigência de um instrumento coletivo, os direitos por ela previstos deixam de

incorporar os contratos individuais de trabalho mesmo diante da recusa ou mora da

empresa em renegociar com o sindicato; os julgados do STF reconhecendo a

prevalência do negociado sobre o legislado, mitigando a aplicação de normas de

ordem pública em nítida prejuízo ao trabalhador; a recente promulgação da lei 13.429

de 2017, que legitimou o instituto da terceirização trabalhista, em franca ofensa à

dignidade humana; e, por último, a ainda mais recente aprovação da Lei 13.467 de

2017, responsável por uma “Reforma Trabalhista”, que, conforme se abordará

adiante, em termos práticos, mitiga obrigações empresariais e fragiliza a proteção

jurídica ao trabalhador. (JANNOTTI; RIBEIRO, 2017, p.5)

Por fim, no plano econômico-produtivo, a nova tendência flexibilizadora

também se manifestou, tornando-se presente tanto nas formas de contratação da

mão-de-obra – representada por institutos como terceirização, subcontratação,

trabalho em tempo parcial – , quanto nas formas de gestão da mão-de-obra – por

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meio, por exemplo, da utilização de meios telemáticos, do autocontrole, da

transferência de responsabilidades ao empregado e da atenuação dos traços de

subordinação mediante a instituição de jornadas e horários de trabalho flexíveis.

Mas para além da esfera intersubjetiva da relação de produção, a

flexibilização também se manifestou no campo objetivo da economia, sob o paradigma

do que o economista austríaco Joseph Schumpeter (1961) denominou “destruição

criativa ou criadora”.

Diante de um cenário de crise econômica, no qual a superprodução

decorrente do modelo de produção fordista-taylorista passou a conviver com o

desemprego estrutural e com a consequente queda do poder de consumo da classe

trabalhadora, bem como com a globalização e o acirramento da concorrência em nível

internacional, tornou-se necessário repensar as práticas de consumo, a fim de se

encontrar meios mais eficazes para um satisfatório escoamento da produção.

Foi nesse contexto que veio à lume o processo de “destruição criadora ou

criativa”, preconizando a necessidade de uma constante inovação na produção como

condição para a sobrevivência das empresas no competitivo mercado

internacionalizado. A seguir, estão os fundamentos apresentados por Schumpeter

para a consagração da “destruição criadora” como o inevitável mecanismo a ser

adotado pela empresa que pretender um espaço no mercado produtivo:

O primeiro conceito que se descarta é o tradicional modus operandi da concorrência. Os economistas emergem, por fim, de uma fase em que se preocupavam apenas com a concorrência dos preços. Tão logo a concorrência de qualidade e o esforço de venda são admitidos no recinto sagrado da teoria, o fator variável do preço é apeado da sua posição dominante. Nada obstante, é ainda a concorrência, dentro de um conjunto rígido de condições invariáveis, métodos de produção e particularmente de formas de organização industrial, que continua praticamente a monopolizar-lhes a atenção. Mas, na realidade capitalista e não na descrição contida nos manuais, o que conta não é esse tipo de concorrência, mas a concorrência de novas mercadorias, novas técnicas, novas fontes de suprimento, novo tipo de organização (a unidade de controle na maior escala possível, por exemplo) — a concorrência que determina uma superioridade decisiva no custo ou na qualidade e que fere não a margem de lucros e a produção de firmas existentes, mas seus alicerces e a própria existência. Tal tipo de concorrência é muito mais eficaz do que o outro, da mesma maneira que é mais eficiente bombardear uma porta do que arrombá-la, e, de fato, tão mais importante que se torna indiferente, no sentido ordinário, se a concorrência faz sentir seus efeitos mais ou menos rapidamente. (SCHUMPETER, 1961, p.112)

Neste sentido, pode-se dizer que “inovação” tornou-se a palavra de ordem; e

pode-se dizer, ainda, que não se tratou de uma inovação pura e simples, mas de uma

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inovação disruptiva, isto é, calcada no desenvolvimento de tecnologias que, não

apenas aprimoram as tecnologias já existentes, e sim, superam-nas por completo,

tornando-as obsoletas, inúteis e indesejadas.

Realça-se que, a fim de conferir mais versatilidade a esse processo de

inovação disruptiva, tornou-se essencial a introjeção de uma obsolescência

programada nos bens produzidos, a fim de que as práticas de consumo deixassem de

possuir caráter eventual para se tornarem corriqueiras. Nas palavras de Laurentino

(apud VIANA; TEODORO, 2016, p.17), o ato de consumir acabou se tornando “um

acontecimento recursivo, cíclico, já que nos próprios produtos que constituem o objeto

da avença está embutida a programação da sua obsolescência, impondo o seu

descarte e sua consequente substituição por algo novo”.

É, portanto, essa nova necessidade “vital” de destruir incessantemente o

antigo para criar o novo que Schumpeter denomina “destruição criativa ou criadora”.

É desse processo que se constitui o capitalismo na pós-modernidade e a ele deve se

adaptar toda empresa capitalista que almeje uma vida minimamente longa. (RIBEIRO;

ABREU, 2016, p. 45)

Em termos pragmáticos, esse processo significa que a descoberta e o

lançamento de uma nova tecnologia levam a empresa ao ápice da ascensão

econômica, permitindo-a atingir a lucratividade máxima. Em seguida, quando a

tecnologia desenvolvida torna-se comum, a lucratividade estabiliza-se e, em seguida,

entra em flagrante declínio, até atingir o ponto de exaustão, que sinaliza a necessidade

de que uma nova invenção irrompa e destrua a que se tornou obsoleta. (RIBEIRO;

ABREU, 2016, p. 44)

Viana e Teodoro, referindo-se a esta lógica schumpeteriana, apresentam as

seguintes considerações:

O trabalho de Joseph Schumpeter influenciou bastante as teorias da inovação ao considerar que, sob o impacto da “destruição criadora”, a superprodução é praticamente eliminada, já que os consumidores se dirigem, ansiosamente, para os novos produtos disponíveis. Assim, o ciclo recomeça sempre em novas bases tecnológicas. Com efeito, “as receitas para a boa vida e os utensílios que a elas servem tem ‘data de validade’, mas muitos cairão em desuso bem antes dessa data, apequenados, desvalorizados e destituídos de fascínio pela competição de ofertas ‘novas e aperfeiçoadas. (VIANA; TEODORO, 2017, p.324)

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Foi em decorrência de toda essa sofisticação do processo de produção,

calcado não mais na necessidade de se produzir em grande escala, mas de se

produzir novidades, que estimulem ou mesmo criem uma demanda personalizada,

que se passou a verificar um significativo deslocamento do interesse da empresa

capitalista da produção para o consumo. A classe empresarial percebeu que o objetivo

de incrementar a lucratividade em meio a uma gama de concorrentes poderia ser

alcançado não mais pela simples oferta de produtos em maiores quantidades ou em

menores preços, mas por meio do fomento às práticas consumeristas.

Assim, segundo Bauman (2009, p.15), por meio de todos os processos de

desregulamentação e flexibilização ora analisados, o capital e o trabalho ingressaram

num profundo – e ainda em curso – processo de realocação, que marcou o início da

complexa transição da “sociedade de produtores” para a “sociedade de

consumidores”. É o que se passa analisar no próximo capítulo.

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7 A SOCIEDADE DO CONSUMO: UM MISTO DE INSTANTES ETERNOS,

HETEROFILIA, NECESSIDADES COMPLEXAS E INSATISFAÇÃO PERMANENTE

A força do querer Invadiu o meu pensar

Nada tenho, tudo quero, de tudo preciso

O cenário de desregulamentação e flexibilização generalizadas instaurado em

virtude da reestruturação produtiva do capital, como visto, foi legitimado por uma

paradigmática alteração de valores, responsável por conferir novas significações ao

duradouro e ao transitório, à segurança e ao risco, ao estático e ao mutante, ao

presente e ao futuro.

O que fazia pleno sentido e era valorizado na sociedade sólido-moderna –

cujas relações norteavam-se pela busca do seguro e estável – precisou ser

contestado pela ordem líquido-moderna emergente, a fim de que as novas práticas

introduzidas, tanto em âmbito econômico-produtivo quanto em âmbito político, social

e cultural, fossem aceitas, repetidas e difundidas.

Por essa razão, é importante deixar claro que a transição que se pretende

abordar, de uma sociedade fundada no trabalho para uma sociedade

predominantemente fundada no consumo, não trata dos aspectos objetivos que

deixaram de ou passaram a integrar os atos de trabalho e os atos de consumo. Na

verdade, considera-se que quanto a esses aspectos objetivos pouca coisa mudou.

Trabalhar permanece significando, sob o prisma objetivo, dispêndio de energia em

prol da consecução de um fim que, direta ou indiretamente, reverte-se em consumo;

do mesmo modo, o ato de consumir permanece vinculado à satisfação de

necessidades humanas. Não se trata também de um processo de superação do

trabalho pelo consumo, haja vista que ambos constituem fatores indissociáveis, que

compartilham espaço na vida pessoal e social desde tempos remotos.

Neste sentido, Arendt (2014, p.156) assinala que o trabalho e o consumo

foram e permanecem sendo “apenas dois estágios do mesmo processo, imposto ao

homem pela necessidade da vida”, razão pela qual, na visão da autora, falar em uma

sociedade de consumidores representa tão somente um “outro modo de dizer que

vivemos em uma sociedade de trabalhadores”.

Também Jean Baudrillard, ao utilizar a terminologia “sociedade de consumo”,

chama a atenção para o caráter indissolúvel do elo entre trabalho e consumo:

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Isto não quer dizer a nossa sociedade não seja, antes de mais, objectivamente e de modo decisivo, uma sociedade de produção, uma ordem de produção, por consequência, o lugar de estratégia económica e política. Mas quer-se também significar que nela se enreda uma ordem do consumo, que se manifesta como ordem da manipulação dos signos. (BAUDRILLARD, 2011, p.24)

Segundo o autor, a aparente “Revolução Humana”, responsável por separar

a “Idade dolorosa e heroica da Produção” da nova “Idade eufórica do Consumo” não

promoveu qualquer alteração do sistema em essência. Por meio das seguintes

considerações, relevantes e esclarecedoras, explica Baudrillard que o que se alterou

foi o conjunto de valores a partir de do qual o mesmo sistema passou a ser percebido

e vivido:

Toda a ideologia do consumo pretende levar-nos a crer que entramos numa era nova e que uma Revolução Humana decisiva separa a “Idade dolorosa e heroica da Produção” da nova “Idade eufórica do Consumo”, em cujo seio se faz justiça ao Homem e aos seus desejos. Nada disso. Quando se fala de Produção e Consumo – trata-se de um só e idêntico processo lógico de reprodução amplificada das forças produtivas e do respectivo controlo. Tal imperativo, que pertence ao sistema, passa para a mentalidade, para a ética e ideologia quotidiana – eis a grande astúcia – na sua forma inversa: sob a capa de libertação das necessidades, do desabrochamento do indivíduo, de prazer e abundância, etc. Os temas da Despesa, do Prazer, do Não-Cálculo (Compre agora, pagará mais tarde) revezaram os temas puritanos da Poupança, do Trabalho, do Patrimônio. Mas só na aparência é que nos havemos com uma Revolução Humana: na realidade, trata-se da substituição para uso interno, no quadro de um processo geral e de um sistema que no essencial não mudou, a partir de determinado sistema de valores para outro que se tornou (relativamente) ineficaz. (BAUDRILLARD, 2011, p.97)

Assim, considera-se que o que, de fato, operou-se de relevante a fim de

ensejar o modelo de sociedade fundada predominantemente no consumo foram os

novos valores incorporados e transmitidos pelos atos de trabalho e de consumo e,

consequentemente, as dimensões por eles assumidas na vida pessoal e no espaço

social.

A respeito desse complexo movimento de transição, de cunho fortemente

axiológico, Bauman faz as seguintes considerações:

Aconteceu que, no caminho entre a sociedade de produtores e a sociedade de consumidores, as tarefas envolvidas na comodificação e recomodificação do capital e do trabalho passaram por processos simultâneos de desregulamentação e privatização contínuas, profundas e aparentemente irreversíveis, embora ainda incompletas. A velocidade e o ritmo acelerado

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desses processos foram e continuam a ser tudo, menos uniformes. (BAUMAN, 2008, p.15)

Em relação a esse movimento de transição, ao se analisar o contexto histórico

da segunda metade do século XX, viu-se, em sede do capítulo anterior, que, dentre

os motivos determinantes da crise econômica instaurada a partir dos anos 1960,

estava a combinação entre a superprodução gerada pelo modelo produtivo fordista-

taylorista e a redução do poder de consumo da massa trabalhadora – decorrente do

cenário de acirramento da concorrência empresarial e de desemprego estrutural. Viu-

se, ainda, que foi com vistas a retomar os níveis de expansão econômica que o capital

promoveu a reestruturação do sistema produtivo, implementando um modelo calcado

na produção flexível, enxuta e disposta a inovar incessantemente.

Desde então, assistiu-se a um significativo deslocamento da atenção do

capital para o consumo, percebido pelas empresas como potencial instrumento de

incremento da lucratividade. Consequentemente, conforme ensinam Pina e Arribas

(2006, p.85), a teoria econômica, a fim de atender aos novos anseios da classe

empresarial, também transferiu o foco das suas pesquisas, de modo que a sua

preocupação em torno da oferta e dos custos produtivos (aspectos da produção em

si) foi cedendo espaço para a questão da demanda e da utilidade (fatores diretamente

ligados ao processo de escoamento da produção).

Assim, em lugar de buscar meios para se produzir muito e à baixo custo, a

nova missão da teoria econômica centrou-se na busca por maneiras de se estimular

ou mesmo criar demandas, a fim de permitir às empresas alcançarem níveis

satisfatórios de vazão da produção e, consequentemente, de lucratividade. Foi por

essa razão que “o indivíduo, suas necessidades e o seu comportamento de satisfação

transformaram o começo de uma análise econômica” empenhada na construção de

uma sociedade, sobretudo, de consumidores. (PINAS; ARRIBAS, 2006, p.85)

Como pondera Gorz (1968, p.78), “de acordo com a previsão de Marx, o

capital monopolista encontrou-se diante do problema de acomodar sujeitos aos

objetos de escoamento, de ajustar não mais a oferta à procura, mas a procura à

oferta”. Para resolver esse impasse, foi preciso colocar a sociedade em um verdadeiro

“estado de consumo forçado”, moldando “indivíduos passíveis de serem postos em

condição de consumo forçado e passivo: os indivíduos de massa, aos quais se

esforçará em impor finalidades, desejos e vontades [...]. (GORZ, 1968, p. 78)

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Perceba-se, pois, que apesar do ato de consumir representar uma

decorrência lógica da própria natureza humana, ligada à necessidade de

sobrevivência, a exaltação do consumo representou uma construção peculiar da

sociedade líquido-moderna, que, para fins de assegurar a sobrevivência do capital

num mercado altamente competitivo, foi imposta aos indivíduos como uma espécie de

ritual universal a ser seguido. E uma vez exaltado, o consumo puro e simples

desdobrou-se no fenômeno do consumismo.

Na visão de Bauman, essa passagem do consumo ao consumismo foi o

resultado de uma “revolução consumista”, caracterizada por tornar a capacidade de

desejar e ansiar o principal sustentáculo da economia e por transformar o consumo

no “verdadeiro propósito da existência humana”:

Foi sugerido [...] que um ponto de ruptura de enormes consequências, que, poderíamos argumentar, mereceria o nome de “revolução consumista”, ocorreu milênios mais tarde, com a passagem do consumo ao “consumismo”, quando aquele, como afirma Colin Campbell, tornou-se “especialmente importante, se não central” para a vida da maioria das pessoas, “o verdadeiro propósito da existência humana”. E quando “nossa capacidade de ‘querer’, ‘desejar’, ‘ansiar por’ e particularmente de experimentar tais emoções repetidas vezes de fato passou a sustentar a economia”[...]. (BAUMAN, 2008, p. 38-39)

Foi, portanto, neste novo contexto, consolidado tempos após a era industrial

dos excedentes, que, para além de um ato objetivo de aquisição ligado à satisfação

de uma determinada necessidade, o consumo expandiu-se, multiplicando suas

significações e ampliando sua esfera de repercussão. Para além de uma lógica

econômica, o consumo, na versão do consumismo, também se revestiu de uma lógica

social, cultural, política e inclusive emocional, passando a representar, segundo

Bauman (2008, p.41), um tipo de “arranjo social resultante da reciclagem de vontades,

desejos e anseios humanos rotineiros[...]”.

Sob o prisma dessa nova lógica, alterou-se a própria definição do termo

consumo, que passou a ser percebido mais como uma qualidade da sociedade do que

como uma simples ocupação característica do ser humano. Veja-se a definição

proposta Néstor Canclini (2010, p.60): “o consumo é o conjunto de processos

socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos”. Também

Manuel Castells, realçando a “racionalidade sociopolítica interativa” do consumo,

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propõe uma definição que, transcendendo a esfera individual das suas repercussões,

aborda o consumo como um fenômeno social:

[...]o consumo “é um lugar onde os conflitos entre classes, originados pela desigual participação na estrutura produtiva, ganham continuidade em relação à distribuição e à apropriação dos bens. Consumir é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo. [...] Se alguma vez esta questão foi um território de decisões mais ou menos unilaterais, hoje é um espaço de interação no qual os produtores e emissores não só devem seduzir os destinatários, mas também justificar-se racionalmente. (CASTELLS apud CANCLINI, 2010, p.61-62)

Perceba-se que Castells utiliza termos como “lugar”, “espaço” e “território”

para definir o consumo. Entende-se que a preferência por tais termos não foi

ocasional: ao que parece, o autor pretendeu enfatizar algo de muito marcante nessa

transição da sociedade de produtores para a sociedade consumidores: o fato de que

o consumo não está mais adstrito ao ato de consumir. Na verdade, em se tratando de

consumismo, pode-se dizer que os símbolos e signos produzidos e transmitidos pelos

atos de consumo tornaram-se significativamente mais relevantes do que o consumo

em si.

Isso quer dizer que, na sociedade de consumidores, ao contrário do que possa

parecer, a aquisição e a acumulação de bens não representam o grande propósito

humano. As eufóricas sensações, as experiências colecionadas e os símbolos sociais

decorrentes das aquisições são mais almejados e valorizados do que o próprio objeto

que se consome. É no processo de aquisição – e não propriamente na aquisição –

que os consumidores depositam as suas expectativas de realização e, de fato,

realizam-se – ainda que por frações de segundos.

Nesta linha, as seguintes considerações de Bauman:

[...] num mundo em que uma novidade tentadora corre atrás da outra a uma velocidade de tirar o fôlego, num mundo de incessantes novos começos, viajar esperançoso parece mais seguro e muito mais encantador do que a perspectiva da chegada: a alegria está toda nas compras, enquanto a aquisição em si, com a perspectiva de ficar sobrecarregado com seus efeitos diretos e colaterais possivelmente incômodos e inconvenientes, apresenta uma alta probabilidade de frustração e remorso. (BAUMAN, 2008, p. 28)

A partir desta constatação, que sobreleva os “aspectos simbólicos e estéticos

da racionalidade consumidora”, extrai-se outra importante característica da sociedade

do consumo: “a lógica que rege a apropriação dos bens como objetos de distinção

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não é a da satisfação de necessidades, mas sim a da escassez desses bens e da

impossibilidade de que os outros os possuam”. (CANCLINI, 2010, p. 63)

Neste sentido, considera-se que, muito ao contrário do que ocorria sob a égide

da sociedade produtores – na qual o consumo básico, diretamente ligado à ideia de

bem-estar, foi subsidiado pelo Welfare State com o intuito de se atenuar as

desigualdades socioeconômicas –, na sociedade de consumidores, regida

predominantemente pela ideologia neoliberal, o consumo é imposto justamente como

fator de distinção.

Isso porque, em um cenário produtivo pautado nos sucessivos altos e baixos

do processo de “destruição criadora”, a necessidade de uma constante renovação da

prática de consumo é garantida justamente pela introjeção nos consumidores da

vontade (sentida como necessidade) de se distinguir da massa, adquirindo, para tanto,

o que é novo, o que os outros não possuem.

Por essa razão é que Bauman considera que a liberdade de escolha na

sociedade pós-moderna ou líquido-moderna “[...] é de, longe, o mais essencial entre

os fatores de estratificação”. Quanto mais liberdade de escolha um dado consumidor

possui, maiores se tornam as possiblidades de acesso ao mais novo e, por

conseguinte, mais alta é a sua posição na hierarquia social. Afinal, conclui o autor, “As

diferenças sociais pós-modernas são feitas com a amplitude e a estreiteza das opções

realistas”. (BAUMAN, 1998, p.118)

Isso quer dizer que, na sociedade do consumo, o nível de satisfação de um

consumidor, em grande medida, passa a ser determinado pela sensação de

exclusividade que o ato de consumir lhe proporciona. Em termos de prazer, consumir,

muitas vezes, já não basta. Torna-se cada vez mais atraente consumir aquilo a que o

outro não tem acesso.

Assim, esse “outro” – no caso, representado pelo “consumidor de baixo

padrão” –, desempenha um papel determinante no sistema de estratificação pelo

consumo: comportando-se como o alter ego do “consumidor de alto padrão”, o

“consumidor de baixo padrão” representa o “escuro e sinistro fundo contra o qual o eu

purificado pode brilhar”. (BAUMAN, 1998, p.118).

Essa é a lógica do que Bauman denomina “era heterofílica”, na qual

uniformidade e homogeneidade incomodam profundamente e a diferença é

intensamente desejada:

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Num aspecto importante, e por importantes razões, a nossa era é heterofílica. Para os coletores de experiências que somos, pelo menos os mais ricos entre nós, preocupados (ou, mais exatamente, obrigados a se preocuparem) com a flexibilidade e a abertura, mais do que com a fixidez e o autofechamento, a diferença vem com ágio. Há uma ressonância e uma harmonia entre a maneira como nos ocupamos dos nossos problemas de identidade e a pluralidade e diferenciação do mundo em que os problemas de identidade são tratados, ou em que escamoteamos no processo desse tratamento. Não é justo que precisemos dos estranhos à nossa volta, porque, devido ao modo como somos culturalmente modelados, perderíamos preciosos valores de aceitação da vida num mundo uniforme, monótono e homogêneo; mais do que isso: tal mundo sem diferença não podia, por nenhum rasgo de imaginação, evoluir a partir do modo pelo qual as nossas vidas são modeladas e conduzidas.” (BAUMAN, 1998, p.43)

Perceba-se, portanto, que, conforme pontuado pelo trecho acima,

intimamente ligada a esta aptidão do consumo para promover distinções sociais,

separando e classificando os indivíduos, está a questão da identidade humana.

Não há dúvidas de que, numa sociedade de consumidores, a propensão é

que a formação da identidade seja fortemente influenciada pelos hábitos de consumo.

Mas, talvez, o mais importante a se pontuar é que esse processo de formação de

identidade deixou de ser, como em tempos de sociedade sólido-moderna, um

processo de construção definitiva, que se operava em linha reta e em caráter estável.

Na sociedade líquido-moderna, a formação da identidade também é regida

pelo princípio da flexibilidade, submetendo-se, pois, a um processo de sucessivas

reconstruções, que nada tem de linear, estável e definitivo. Como explica Bauman:

No caso da subjetividade na sociedade de consumidores, é a vez de comprar e vender os símbolos empregados na construção da identidade – expressão supostamente pública do “self”, que na verdade é o “simulacro” de Jean Baudrillard, colocando a “representação” no lugar daquilo que ela deveria representar –, a serem eliminados da aparência do produto final. A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções de compras – opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de compras. O que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é uma idealização dos traços materiais – “objetificados” – das escolhas do consumidor. (BAUMAN, 2008, p. 23-24)

O escritor polonês Slawomir Mrozek, citado por Bauman, promovendo uma

comparação entre a sociedade líquido-moderna e “um monstruário cheio de roupas

luxuosas e cercado por multidões à procura de seus ‘eus’ “, considera que hoje

Pode-se trocar de roupa sem parar. Assim, como é maravilhosa a liberdade de que usufruem os envolvidos nessa busca...Vamos continuar procurando

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nossos verdadeiros eus, é incrivelmente divertido – sob a condição de que o eu verdadeiro jamais será encontrado. Porque se fosse, a diversão chegaria ao fim... (MROZEK, apud BAUMAN, 2008, p.145)

Isso quer dizer que “os seres humanos não mais ‘nascem’ em suas

identidades”. É preciso “tornar-se o que já se é”, constantemente e por seus próprios

meios. Só assim, encarregando-se da árdua tarefa de se autodeterminar

incessantemente é que o ser humano, na sua qualidade de indivíduo22, torna-se apto

a se posicionar socialmente. (BAUMAN, 2008, p.45)

Assim, nos termos do que será discutido com mais minúcia adiante, tanto o

auto reconhecimento quanto o reconhecimento social, antes fundados

substancialmente no trabalho, tornaram-se significativamente influenciados pelo

consumo, que, atuando como mecanismo de estratificação, posiciona os indivíduos

na hierarquia social a partir da sua identidade consumidora.

Mas além de todas as características já analisadas, o traço peculiar da

sociedade do consumo que, talvez, seja o que tenha repercutido mais diretamente

sobre a esfera do trabalho, reside na concepção de necessidade.

Baudrillard (2011, p.87), ao delinear o que denomina “genealogia do

consumo”, considera que, em decorrência da racionalização produtiva perpetrada pela

industrialização, o sistema produziu a força de trabalho assalariado e, a partir da sua

sistematização como força produtiva radicalmente distinta do trabalho tradicional –

vez que desprovida dos meios de produção –, implementou um “sistema de

necessidades”.

Segundo o autor, as “necessidades enquanto sistema” diferem-se

radicalmente da fruição e da satisfação, uma vez que são produzidas como elementos

de sistema e não como simples relação de um indivíduo com um objeto. Nesse

sentido, considera que

“[...] as necessidades nada são, tomadas isoladamente, e que existe apenas um sistema de necessidades, ou antes, que as necessidades não passam da forma mais avançada da sistematização racional das forças produtivas ao

22 Bauman considera que “A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade moderna”. Ensina o autor que “A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de ‘individualização’, assim como as atividades dos indivíduos consistem na reformulação e renegociação diárias da rede de entrelaçamentos chama “sociedade”. Nenhum dos dois parceiros fica parado por muito tempo. E assim, o significado da ‘individualização’ muda, assumindo sempre novas formas – à medida que os resultados acumulados de sua história passada solapam as regras herdadas, estabelecem novos preceitos comportamentais e fazem surgir novos prêmios no jogo”. In: Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.43

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nível individual, em que o consumo constitui a sequência lógica e necessária da produção”. (BAUDRILLARD, 2011, p. 87)

Ocorreu que, no contexto da reestruturação produtiva, diante da necessidade

de se escoar a produção mediante a intensificação do consumo, o “sistema de

necessidades” já estabelecido precisou alterar-se, tornando-se, assim como a

produção, mais sofisticado e significativamente mais complexo. E para compreender

o papel e a dimensão da necessidade nesse novo cenário, segundo Baudrillard (2011,

p.91), é preciso, antes, admitir que a necessidade nunca é tanto a necessidade de um

objeto, mas a necessidade de diferença ou o “desejo do sentido social”, o que dificulta

ou torna mesmo irrealizável o alcance de um estado de “satisfação completa” por

aquele que adquire um bem (material ou imaterial).

Subjacente ao sentimento de satisfação, que tende sempre à incompletude,

está, pois, o sentimento de insatisfação permanente, que deve acompanhar o

consumidor da sociedade líquido-moderna em caráter perene. A satisfação, por sua

vez, deve se limitar a instantes eternos, isto é, a momentos profundos em intensidade,

mas extremamente curtos sob o ponto de vista temporal. É dessa conjugação de

flashs de satisfação sobre o sentimento constante de insatisfação – seja decorrente

da frustração diante da experiência consumida ou simplesmente da ânsia por mais ou

do desejo por algo melhor – que o ciclo do consumismo se alimenta.

Bauman (apud TEODORO; RIBEIRO, 2001, p.74), referindo-se à rotatividade

qualificadora da prática do consumo, reconhece que, para que as possibilidades

sejam sempre infinitas, nenhuma delas “deve ser capaz de petrificar-se em realidade

para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham ‘data de validade’,

caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião

da próxima aventura”. Veja-se:

É exatamente a não satisfação dos desejos e a convicção inquebrantável, a toda hora renovada e reforçada, de que cada tentativa de satisfazê-los fracassou no todo ou em parte que constituem os verdadeiros volantes da economia voltada para o consumidor. A sociedade do consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a não satisfação de seus membros (e assim, em seus próprios termos, a infelicidade deles). [...]O que começa como um esforço para satisfazer uma necessidade deve se transformar em compulsão ou vício. E assim ocorre desde que o impulso para buscar soluções de problemas e alívio para dores e ansiedades nas lojas, e apenas nelas, continue sendo um aspecto do comportamento não apenas destinado, mas encorajado com avidez, a se condensar num hábito ou estratégia sem alternativa aparente. (BAUMAN, 2008, p.64)

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Assim, sublinha Bauman (2001, p.97) que “A história do consumismo é a

história da quebra e descarte de sucessivos obstáculos ‘sólidos’ que limitam o voo

livre da fantasia e reduzem o ‘princípio do prazer’ ao tamanho ditado pelo ‘princípio da

realidade’”.

Nesse sentido, pode-se dizer que na sociedade do consumo, o consumidor,

cada vez mais distante da categoria “sólida” das necessidades, passou a se relacionar

de modo muito mais íntimo com a categoria dos desejos, de modo que satisfazer a

uma suposta necessidade, no plano real, pode significar atender a caprichos,

compulsões ou mesmo alimentar vícios.

Arendt, posicionando-se acerca do assunto, considera que a sofisticação dos

apetites humanos, uma vez que desprendendo o consumo do estrito campo das

necessidades da vida e concentrando-o no que denomina “superfluidades da vida”,

introduz “o grave perigo de que afinal nenhum objeto do mundo esteja a salvo do

consumo e da aniquilação por meio do consumo”. (ARENDT, 2014, p.165)

Logo, de um modo geral, não é mais a “luta pela existência” que está em jogo

quando se fala de consumo num cenário de consumismo. Baudrillard (2011, p.43),

citando Nietzsche, pondera que a “luta pela existência” persiste, mas designa tão só

um estado de exceção; “a regra, é antes, a luta pelo poder, a ambição de ter mais e

melhor, mais depressa e muito mais vezes”.

Também pode-se dizer que o consumidor habituado a desejar mais do que,

de fato, necessitar de algo, tornou-se imerso em um profundo estado de ânsia, que

introduz uma nova concepção para o que Gorz denomina “categoria do suficiente”.

Como explica o autor, a “categoria do suficiente”, em sede de modernidade líquida,

não mais pode ser compreendida objetivamente, como uma categoria econômica:

trata-se, na verdade, de uma categoria cultural ou existencial. “Dizer que o que basta

é quanto basta, implica dizer que de nada serviria ter mais, que esse mais não seria

melhor. Enought is a good as feast, diz o ditado inglês: o que é suficiente é o que pode

haver de melhor”. (GORZ, 2003, p.112)

Assim, transcendendo a noção de “quanto” e indo além dos cálculos

matemáticos envolvidos nas objetivas operações de compra e venda, o consumo

investiu-se de uma lógica social e de uma força ideológica inquebrantáveis,

assentando-se sobre um discurso que eleva a questão das necessidades da

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propensão natural para a sobrevivência para a “propensão natural para a felicidade”.

(BAUDRILLARD, 2011, p.49)

A esse respeito, Baudrillard (2011, p.69) ensina que o campo do consumo é

“[...]um campo social estruturado em que os bens e as próprias necessidades, como

também os diversos indícios de cultura” partem de um grupo modelo, de uma “elite”

socialmente seletiva, que se comporta como um filtro de necessidades (“select

package”), filtrando-as e “escoando-as para baixo”, de modo a impor ao “consumidor

de base” um “standard package”, isto é, uma espécie de “pacote” padrão de

necessidades. Desse modo, conclui o autor: “Não existe a ‘massa de consumidores’

e nenhuma necessidade emerge espontaneamente do consumidor de base: só terá

de aparecer no standard package das necessidades se já tiver passado pelo select

package”.

Neste sentido, pode-se considerar que as necessidades, em sentido genérico,

assumem feição cada vez mais artificial: são fabricadas, naturalizadas e impostas

pelo sistema como se básicas fossem. Ao indivíduo, resta apenas a assimilação e,

como poderoso paliativo, a escolha – tarefa tão divertida quanto torturante, tendo em

vista o farto leque de opções que está posto para absolutamente tudo o que é passível

de consumo.

No que diz respeito à classificação das necessidades, Gorz (2003, p. 133)

sublinha a distinção entre os termos, do francês, “besoin” e “nécessité”. Explica o autor

que, apesar de, na língua francesa, serem usualmente empregados como sinônimos,

“nécessité”, derivado do latim necessitas, “designa o caráter daquilo que é necessário,

indispensável, essencial, importante, primordial (como, aliás, seu equivalente

português ‘necessidade’)”, ao passo que “besoin”, em primeira acepção,

corresponderia ao “ estado de insatisfação devido a um sentimento de falta, de

carência ”.

Enric Sanchis (2011, p.319), respaldando-se na classificação de Ya Keynes,

distingue as necessidades entre “absolutas ou objetivas” e “relativas ou subjetivas”.

As primeiras corresponderiam àquelas que experimentamos independentemente de

fatores de influência externos por serem básicas, primárias, biológicas, comuns a

todos os organismos vivos, ao passo que as segundas estariam relacionadas aos

desejos insaciáveis, induzidos pelas poderosas e invasivas estratégias de marketing.

Assim, Sanchis considera que, em sede de capitalismo pós-industrial, passam

a coexistir o que denomina de “necesidades saludables y deseos enfermizos”

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(necessidades saudáveis e desejos doentios), de modo que utilizar recursos, a

começar pelos humanos, para a satisfação dos segundos seria, na sua visão, algo

doentio, que nos idiotiza e nos faz retornar, de alguma maneira, à condição animal.

(SANCHIS apud TEODORO; RIBEIRO, 2011, p.320)

Antunes (apud TEODORO; RIBEIRO, 2016, p.70), raciocinando a partir de

postulados erigidos por Karl Marx, considera que o ato de consumo pode possuir como

objeto tanto uma necessidade de fato quanto uma “utilidade imposta”. Esta última

refletiria aquilo que fora denominado por Marx “valores-fetiche”, que, na modernidade

líquida, seriam os responsáveis por determinar o consumo de modo mais significativo,

sendo, pois, de grande interesse do mercado disseminar tais valores e incuti-los nos

trabalhadores, enquanto potenciais consumidores.

Já na visão de Bauman (2001, p.96), o consumismo de hoje “[...]não diz mais

respeito à satisfação das necessidades – nem mesmo as mais sublimes, distantes

(alguns diriam, não muito corretamente, ‘artificiais’, ‘inventadas’, ‘derivativas’)

necessidades de identificação”. Na sociedade do consumo, o que entra em cena é o

“desejo”: “entidade muito mais volátil e efêmera, evasiva e caprichosa, e

essencialmente não referencial que as ‘necessidades’, um motivo autogerado e

autopropelido que não precisa de outra justificação ou ‘causa’ “.

Afinal, são estes consumos racionalmente injustificados, derivados de

impulsos emocionais, ou seja, “consumos facultativos, supérfluos, que podem ser

orientados, modelados, manipulados segundo as ‘necessidades’ do capital e não dos

próprios indivíduos”. É justamente “[...] na medida em que o consumo libera-se das

necessidades e ultrapassa-as que pode ser posto a serviço da produção, isto é, das

'necessidades' do capital”. (GORZ, 2003, p.121)

Diante de todas essas distintas formas de classificação quanto ao “sistema de

necessidades” que rege a sociedade do consumo – necessidades primárias e

secundárias, necessidades naturais ou artificiais, necessidades absolutas ou

relativas, ou ainda, necessidades e desejos – considera-se que, apesar de, no plano

teórico-conceitual, todas elas sinalizarem uma contraposição entre aquilo que se

aproxima do essencial ou do superficial, no plano prático, acabam todas elas

constituindo uma unidade, na qual necessidades, desejos, caprichos, vontades e

anseios assumem, igualmente, o mesmo espírito propulsor e legitimador da prática do

consumo.

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Corroborando, então, alguns dos traços da sociedade do consumo que foram

teoricamente abordados por este estudo – tais como a sua volatilidade e versatilidade,

o seu espírito “destruidor criador”, a promoção da heterofilia e a consequente

exaltação do poder de escolha – a pesquisa estatística realizada em 2008 pelo

Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBOPE)23 sobre o perfil do consumo

brasileiro no século XXI, apontou, dente outras, as seguintes estatísticas e tendências:

a) há uma crescente busca por novidades, de modo que em 2002, o total de

brasileiros que iam às compras com frequência mínima de 30 dias era de 60%; em

2008, este número elevou-se para 67%, o que significa que mais 35 milhões de

pessoas estão realizando compras pessoais rotineiramente;

b) a experiência e a escolha tornam-se cada vez mais supervalorizadas;

c) o consumo encontra-se diretamente vinculado à questão da identidade;

d) a prática do consumo exerce poder de influência direto sobre o estado

emocional, sendo que 14% dos entrevistados admitiram que se valem do consumo

como artifício para se sentirem mais calmos ou menos tristes;

e) o “consumidor do século XXI” considera-se consciente de suas

possibilidades e percebe-se pouco influenciável, mas evita andar com seus cartões e

cheques para não gastar;

f) poucos consumidores estão dispostos a abrirem mão do padrão de vida

para trabalharem menos;

g) o consumo rotineiro integra a realidade de todas as camadas sociais.

A partir de tais informações e dados colhidos, as conclusões apresentadas

pelo IBOPE foram resumidas da seguinte maneira: os brasileiros, de um modo geral,

estão consumindo mais e a busca por bens de consumo encontra-se amplamente

difundida, não estando restrita a um determinado grupo de pessoas. 24

Também relacionado a este aspecto de disseminação do consumismo por

toda a escala social hierárquica, outro estudo realizado pelo IBOPE demonstra um

aspecto curioso quanto à carga valorativa dos objetivos buscados pelo consumidor, a

depender do grupo social ao qual pertença. Segundo Marcia Akinaga, diretora de

pesquisa qualitativa e inovação do IBOPE Inteligência, “o estudo demonstra que a

23 IBOPE. O consumidor do século XXI. Disponível em: http://www4.ibope.com.br/Consumidor/ Acesso em: 10 out. 2016. 24 IBOPE. O consumidor do século XXI. Disponível em: http://www4.ibope.com.br/Consumidor/

Acesso em: 10 out. 2016.

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classe mais alta pode ter valores de consumo populares assim como um consumidor

de classe baixa ter valores de consumo elitizado”.

O quadro abaixo, fruto da pesquisa, exemplifica 16 tendências obtidas a partir da

interface entre o consumo guiado por “valores populares” e o consumo guiado por

“valores elitizados”: 25

Fonte: IBOPE, 2016.

Tais informações conduzem à observação de que, na versão do consumismo,

o consumo, ao mesmo tempo que se sofistica, buscando atender a nichos de

consumidores cada vez mais restritos e exigentes, também se populariza, impondo-

se perante as camadas socioeconomicamente mais baixas com a mesma – ou, talvez,

até maior – intensidade.

Bauman (2008, p.74), realçando a perversidade desse fenômeno de

exploração pelo mercado da classe de consumidores com baixo poder aquisitivo, cita

Russel Belk para dizer que: “O pobre é forçado a uma situação na qual tem de gastar

o pouco dinheiro ou os parcos recursos de que dispõe com objetos de consumo sem

25 IBOPE. A crise econômica e o empoderamento do consumidor: como as marcas podem sobreviver e quais as tendências em evidência neste cenário. 2016. Disponível em: http://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/a-crise-economica-e-o-empoderamento-do-consumidor-como-as-marcas-podem-sobreviver-e-quais-as-tendencias-em-evidencia-neste-cenario Acesso em: 09 nov. 2017.

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sentido, e não com necessidades básicas, para evitar a total humilhação social e evitar

a perspectiva de ser ridicularizado”.

Segundo Baudrillard (2011, p.71), isso quer dizer que “A aspiração

superconsumidora (sobretudo das classes baixas) seria, ao mesmo tempo, que a

expressão de exigência estatutária, a expressão do fiasco exigido de tal exigência”,

de modo que a compulsão pelo consumo teria se tornado um meio de se compensar

a própria falta de realização na “escala social vertical”.

Mas para além da irrealização na hierarquia social, a compulsão pelo

consumo, ou simplesmente consumismo, parece também buscar compensar um

múltiplo vazio nas esferas da vida pessoal, amorosa, familiar, que, assim como as

demais esferas da vida humana, tornaram-se “líquidas”; e parece, sobretudo,

compensar a falta de realização na vida profissional, neutralizando a precariedade das

condições objetivas e subjetivas de trabalho e reduzindo o trabalho à condição de

instrumento, a uma espécie de “martírio” que precede não “o céu”, mas os “múltiplos

céus” – que (supostamente) podem ser alcançados por meio do consumo.

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8 A REALOCAÇÃO DO TRABALHO NA SOCIEDADE DO CONSUMO E O

DIREITO DO TRABALHO ENTRE A PROTEÇÃO AO “TRABALHADOR-

CONSUMIDOR” E AO “CONSUMIDOR-TRABALHADOR”

Hoje já vivo o amanhã

De ontem, nem me lembro mais Meu carro vai na frente dos bois

Não posso parar

Corro, salto, vôo Pra quê?

O mundo está à dois mil Meu tempo à destempo

Tento, tento Me conserto, me invento

Pra quem?

De alguém a alguém Não cheguei a ninguém

Ninguém chegou até mim

Mas ainda respiro Sigo.

(RIBEIRO, 2017)

8.1 O “eu trabalhador” à serviço do “eu consumidor”: repercussões sobre a

relação capital-trabalho

A sociedade do consumo é guiada por valores que, em conjunto, convergem

para um cenário de sobrevalorização não tanto do indivíduo, mas do individualismo.

Como pontuado por Bauman (2008, p.74), “a vocação consumista se baseia,

em última instância, nos desempenhos individuais”, de modo que o mercado, impondo

os requisitos para desempenhos individuais aceitáveis ou minimamente satisfatórios,

deixa a cargo de cada um a responsabilidade por se investir das qualidades

necessárias para alcançar e manter a posição social almejada.

Esse quase dever individual de se munir do instrumental necessário para se

instalar socialmente, na visão do autor, é uma tarefa árdua, “[...]que deve ser

empreendida individualmente e resolvida com a ajuda de habilidades e padrões de

ação de consumo individualmente obtidos”. Veja-se a sua fundamentação:

Bombardeados de todos os lados por sugestões de que precisam se equipar com um ou outro produto fornecido pelas lojas se quiserem ter a capacidade de alcançar e manter a posição social que desejam, desempenhar suas

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obrigações sociais e proteger a auto-estima – assim como serem vistos e reconhecidos por fazerem tudo isso –, consumidores de ambos os sexos, todas as idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes e abaixo do padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos. (BAUMAN, 2008, p.75)

Isso quer dizer que, numa sociedade na qual as características da pessoa

como consumidora representam as medidas para o seu nível de aprovação ou

reprovação social, os “consumidores falhos” estão fadados à exclusão; e para escapar

dessa espécie de “invalidez social”, resta, pois, adotar e seguir os preceitos da cultura

consumista. Assim, consumir passa a também significar “[...] investir na afiliação social

de si próprio, o que, numa sociedade de consumidores, traduz-se em ‘vendabilidade’.

(BAUMAN, 2008, p.75)

Neste sentido, parece plausível a afirmação de que “os membros da

sociedade são eles próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma

mercadoria de consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade”. Como

explica Bauman,

Tornar-se e continuar sendo uma mercadoria vendável é o mais poderoso motivo de preocupação do consumidor, mesmo que, em geral, latente e quase nunca consciente. [...] Fazer de si mesmo uma mercadoria vendável é um trabalho do tipo faça-você-mesmo e um dever individual. (BAUMAN, 2008, p.76)

Considera-se, portanto, que, na sociedade do consumo, o próprio consumidor

é visto como um autêntico “objeto” de consumo, responsável por se autofabricar

segundo os moldes desenvolvidos e impostos pelo mercado.

Considera-se, ainda, que se tornar um “objeto” de consumo de alta

vendabilidade é pré-requisito para se tornar um consumidor não falho, ou um autêntico

consumidor consumista, e o raciocínio traçado é o seguinte: o meio por excelência de

se consumir é o dinheiro; numa sociedade capitalista, o meio mais disseminado de se

ganhar dinheiro é o trabalho assalariado; o trabalho assalariado encontra-se sujeito

às leis da oferta e procura do mercado de trabalho; o mercado de trabalho, altamente

competitivo que é, atua segundo critérios de seleção que levam em consideração,

sobretudo, o nível de qualificação do potencial empregado; a qualificação profissional,

segundo a filosofia capitalista, é um “investimento” que cabe ao trabalhador realizar

em si próprio, munindo-se de títulos, referências e experiências que o tornem

desejável ou, pelo menos, vendável perante o mercado; só assim, investindo em si

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próprio e colocando-se “à venda”, como se objeto fosse, é que se alcançará um

emprego, uma renda, e, por conseguinte, um poder de consumo minimamente

satisfatório.

Assiste-se, pois, a uma intensificação da reificação do trabalhador, que, a fim

de ingressar no universo social por meio do consumo, precisa, antes de tudo, de

renda. E para auferir renda, à grande massa, que desprovida dos meios de produção

depende de um emprego para tanto, resta assumir uma postura competitiva e se

submeter a um processo constante de “autodestruição criativa”, qualificando-se e

requalificando-se incessantemente para ingressar no mercado de trabalho e,

sobretudo, para nele permanecer.

Acerca desse processo reificante de “autodestruição criativa”, imposto ao

trabalhador em sede de modernidade líquida, apresentam-se as seguintes

considerações:

Na contemporaneidade, aprofunda-se a reificação dos trabalhadores, os quais são tratados como coisas: mercadorias a serem reinventadas ao menor custo possível – ou, contrariando o princípio da alteridade, mesmo a custo zero para o empregador – de forma a extrair deles a máxima mais-valia possível. De um lado, os trabalhadores despendem tempo e dinheiro em sua qualificação e não lhes é dada a oportunidade de reaver o investimento realizado; de outro, as empresas seguem partilhando, de forma discreta e legitimada, os custos do seu empreendimento com seus empregados. O trabalhador é levado a “investir em si mesmo” quando na verdade está gastando seus recursos próprios na qualificação exigida por e para o mercado, entidade alheia ao trabalhador. E, mesmo passado o momento crítico da contratação, ele precisa continuar o “investimento”, sob pena de: (a) ser preterido em processos de progressão na carreira por um colega de trabalho mais “engajado com a empresa”; (b) ser substituído por um novo trabalhador a ser contratado; ou mesmo (c) ser discriminado e retaliado pelos colegas de equipe, no ambiente competitivo interno alimentado pelas próprias empresas. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.48)

Perceba-se, pois, que, ao contrário do que possa parecer, em uma sociedade

de consumidores, o trabalho assalariado, em virtude do seu consectário lógico, o

salário – pressuposto material para o consumo –, tornou-se ainda mais fundamental.

Fundamental até mesmo no sentido jurídico do termo, que leva em consideração o

alto grau de imbricação que um instituto ou direito mantém com a dignidade humana.

Aliás, foi reconhecendo o seu caráter fundamental e o seu valor social que a

Constituição Federal brasileira de 1988 (CF/1988), em seu artigo 1º, inciso IV, alçou

o trabalho à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito. Foi, ainda,

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em virtude dessa sensibilidade perante o caráter fundamental do trabalho que, no

artigo 7º da CF/1988, foram elencados diversos direitos fundamentais trabalhistas.

Sobrelevando ainda mais o caráter fundamental do trabalho, realça-se a

existência de corrente doutrinária, da qual o jurista brasileiro Ingo Wolfgang Sarlet é

um adepto, que não só considera fundamentais os direitos trabalhistas, como os

enquadra na categoria de cláusulas pétreas, isto é, direitos e garantias constitucionais

de relevância máxima, que “se encontram blindados contra a atuação do poder de

reforma da Constituição”. (SARLET, 2016, p.28)

Deve-se reforçar, contudo, que reconhecer o trabalho como uma categoria

fundamental não representou uma novidade introduzida pela sociedade de

consumidores. Ao início deste estudo, demonstrou-se que, apesar das acepções

positivas e negativas das quais já foi vítima, o trabalho sempre desempenhou papel

central na vida humana – ainda que somente no âmbito privado, como ocorria durante

a pré-modernidade.

Como visto, foi em sede de modernidade, com o advento da Revolução

Industrial, que a centralidade do trabalho tornou-se evidente no âmbito público, de

modo que trabalhar, por influência do ascetismo protestante, tornou-se sinônimo não

só de dignificação no plano terreno, como de “salvação” no plano divino. Mas,

considera-se que foi com a reestruturação produtiva do capital e a consequente

consolidação da sociedade do consumo que o trabalho, principalmente o assalariado,

fortemente vinculado à noção de renda, atingiu o ápice da sua essencialidade no plano

material.

Partindo dessa constatação, importante esclarecer que, não obstante o ser

humano permaneça buscando no trabalho a consecução de metas de ordem imaterial,

como reconhecimento, status e realização pessoal, parte significativa desses

objetivos, num contexto de sociedade de consumo – na qual a principal fonte de

identidade e reconhecimento social é o consumo – traduzem-se em objetivos

materiais. Por uma lógica silogística, o que se pretende dizer é que, se preciso ter

para ser e se preciso trabalhar para ter, mais que nunca, trabalhar é fundamental para

ser – ou para um constante “vir a ser”, em se tratando de modernidade líquida.

(TEODORO; RIBEIRO, 2016, p. 72-73)

Perceba-se, pois, que o raciocínio aqui traçado, ao mesmo tempo em que

busca reforçar o caráter fundamental do trabalho no bojo da sociedade do consumo,

tendo em vista ser ele a fonte de renda e de consumo por excelência, acaba

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convergindo para a seguinte percepção: de que o trabalho assume um caráter

instrumental cada vez mais evidente, regendo-se por uma racionalidade econômica

cada vez mais impositiva e agressiva do ponto de vista humano.

Reconhecendo-se, pois, que é a racionalidade econômico-instrumental que

rege, com predominância, o trabalho na sociedade do consumo, Antunes pondera que

a injeção de ideais e valores da qual todos os indivíduos, vistos como potenciais

consumidores, tornaram-se vítimas, destina-se a enaltecer o consumo, favorecendo,

assim, o engajamento do trabalhador ao espírito do que denomina “capitalismo

manipulatório”26. Assim, o “ser-que-trabalha” estaria, mais que nunca, com a sua

capacidade cognitiva crítica comprometida pela tempestade ideológica de utopias de

mercado, entregando-se ao capital de corpo, mente e alma. (ANTUNES apud

TEODORO; RIBEIRO, 2016, p. 74)

Por tais razões, considera-se que, no âmbito especificamente das relações de

emprego, muito além de uma subordinação técnica, jurídica ou estrutural, torna-se

ainda mais influente a dependência de viés econômico do empregado em relação ao

seu empregador, haja vista que atender às suas necessidades e desejos materiais

passa a ser a finalidade precípua de todo trabalhador que, respondendo aos estímulos

do mercado, tende a priorizar o seu papel social de consumidor. (TEODORO;

RIBEIRO, 2016, p. 74)

Neste sentido, Canclini (apud TEODORO; RIBEIRO, 2016, p.74) destaca que

o sentimento de pertencimento é construído por meio do consumo, que, influindo

sobre nossas referências de identidade, afeta não somente a nossa identificação com

certos hábitos culturais, mas também no modo como atuamos enquanto atores

políticos nos locais dos quais sentimos parte ou dos quais gostaríamos de participar.

Assim, segundo o autor, estaríamos diante de um processo de inversão da lógica

emancipatória, produzida cada vez menos pelo sentimento de pertencimento a uma

26 Ao utilizar o termo “capitalismo manipulatório”, Ricardo Antunes busca realçar uma importante tendência no mundo do trabalho pós reestruturação produtiva: a prevalência do trabalho de ordem imaterial, que, segundo o autor, “possui uma interseção clara entre a esfera da subjetividade do trabalho (seu traço mais propriamente intelectual e cognitivo) e o processo produtivo, que obriga frequentemente o trabalhador a “tomar decisões”, “analisar as situações”, oferecer alternativas frente a ocorrências inesperadas”. Inserido nesse contexto, o trabalhador é condicionado a “converter-se num elemento de ‘integração cada vez mais envolvido na relação equipe/sistema’ “, o que favorece a sua doação ao capital não só de corpo, mas também de mente e alma. O resultado desse processo é a “construção de uma subjetividade inautêntica”, totalmente voltada para a valorização e autorreprodução do capital. (ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. 2.ed. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 125-128).

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classe trabalhadora e cada vez mais pelo sentimento de pertencimento a uma

determinada “classe” de consumidores.

A respeito dessa tendência de deslocamento do eixo das referências de

pertencimento para o plano do consumo, Baudrillard considera que, assim como a

escola, “o consumo é instituição de classe”; considera, ainda, que o consumo institui

classes por meio de um sistema de diferenciação que não se resume à desigualdade

no sentido econômico, ou à “desigualdade perante os objectos”. Assim, explica o autor

que,

[...]em suma, nem todos possuem os mesmos objetos, da mesma maneira que nem todos têm idênticas possibilidades escolares – mas, de modo ainda mais profundo, há discriminação radical, no sentido de que só alguns ascendem à lógica autónoma e racional dos elementos do ambiente (uso funcional, organização estética, realização cultural) [...] (BAUDRILLARD, 2011, p.64)

Segundo o referido autor, para além da lógica econômica de produção e

distribuição desigual do consumo, “em que uns têm direito ao milagre e outros apenas

às migalhas do milagre”, existe uma “lógica social do consumo”, que “não é a lógica

da satisfação, mas a lógica da produção e da manipulação das significantes sociais”.

É na perspectiva dessa lógica social, ensina Baudrillard, que o processo de consumo

pode ser analisado sob os seguintes dois aspectos fundamentais:

1.Como “processo de significação e de comunicação”, baseado num código em que as práticas de consumo vêm inserir-se e assumir o respectivo sentido [...]. 2.Como “processo de classificação e de diferenciação social” em que os objetos/signos se ordenam, não só como diferenças significativas no interior de um código, mas como valores estatutários27 no seio de uma hierarquia. Nesta acepção, o consumo pode ser objeto de análise estratégica que determina o seu peso específico na distribuição dos valores estatutários (com implicação de outros significantes sociais: saber, poder, cultura, etc.) (BAUDRILLARD, 2011, p.66)

Partindo, pois, da premissa de que o consumo institui um novo “processo de

classificação e de diferenciação social”, responsabilizando-se pelo enquadramento

em estamentos sociais, torna-se possível compreender o porquê de as pessoas,

27 Entende-se que o termo “estatutário”, utilizado na língua portuguesa de Portugal pelo tradutor da obra “A sociedade de consumo”, de Jean Baudrillard, deve ser compreendido conforme a seguinte definição, retirada do” Dicionário online de português”: “Que se pode referir ao estado ocupado por um indivíduo numa sociedade, classe, organização, hierarquia, etc.”. Definição retirada do site Dicionário Online. Disponível em: https://www.dicio.com.br/estatutario/.Acesso em: 10 out. 2017.

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inconscientemente, preocuparem-se tanto com o padrão de consumo: é por meio dele

que se alcança visibilidade social; é também por meio dele que se é socialmente

julgado e classificado.

E ao se dizer que essa centralização da preocupação e das expectativas no

consumo é fruto de um processo, em geral, inconsciente, pretende-se realçar que,

subjacente ao comportamento aparentemente natural de culto ao consumo, existe

uma espécie de “treinamento” ideológico, que, segundo Bauman (2008, p. 73), é

exercido sobre os membros da sociedade de consumidores desde a infância e por

toda a vida, com vistas a treinar o seu espírito – “deixando a administração dos corpos

ao trabalho individual do tipo faça-você mesmo, supervisionado e coordenado de

forma individual por indivíduos espiritualmente treinados e coagidos”.

De fato, tudo isso leva a crer que, numa sociedade na qual, nas palavras de

Bauman (2008, p.73), “o consumo visto e tratado como vocação é ao mesmo tempo

um direito e um dever humano universal que não conhece exceção”, existe uma gama

de indivíduos que, movidos pelos valores impostos pelo mercado na forma de desejos,

fetiches, produtos e serviços do tipo “você precisa ter”, buscam no emprego nada mais

que um mecanismo de acesso ao consumo.

Realça-se que não se contesta aqui o fato de ser, sim, o emprego um

mecanismo, um instrumento, um meio para o consumo, do mais básico ao mais

supérfluo. O que se busca demonstrar é que reduzir o emprego a um meio para o

consumo, isto é, percebê-lo unicamente como um mecanismo de satisfação de

pretensões consumeristas, secundarizando ou mesmo desprezando as formas

subjetivas de satisfação que ele poderia proporcionar enquanto um fim em si mesmo,

é uma estratégia do capital que vem sido alcançada com êxito: fazer com que o próprio

trabalhador, “dando as mãos ao capital”, reforce o processo de racionalização

econômica do seu trabalho – tão relevante sob o prisma econômico e tão devastador

sob o prisma humano, conforme se demonstrará.

Sobre essa questão, Gorz (2003, p.109) ensina que “a racionalização

econômica começa com o cálculo contábil” e que, “enquanto permanecem infensas

ao cálculo, as atividades humanas não são passíveis de serem dominadas pela

racionalidade econômica: confundem-se com o tempo, com o movimento, com o ritmo

da vida”. Ilustrando um cenário do “tipo ideal”, no qual o trabalho não estaria sujeito à

racionalidade econômica, o autor apresenta a seguinte situação:

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Enquanto planto, em meu pedacinho de terra, aquilo que me alimenta, a mim e à minha família, um burro e duas cabras, enquanto corto a madeira e com ela cozinho e me aqueço porque há madeira no talude e na mata vizinha, meu trabalho está longe da racionalidade econômica: levo o tempo que preciso para fazer e quando o necessário está garantido, o trabalho dá lugar ao lazer. (GORZ, 2003, p.109)

As coisas mudam de forma, continua Gorz, “a partir do momento que não mais

produzo para o autoconsumo, mas para o mercado. Então, é preciso que aprenda a

calcular: é mais vantajoso, levando em conta a qualidade da minha terra, produzir

verduras ou batatas?” Nesse novo contexto, de produção para o mercado, todo

trabalho que vise proporcionar meios de se “viver convenientemente” deve ser

calculado e a vida do trabalhador passará, portanto, a ser “organizada em função

desse cálculo, segundo um tempo linear, homogêneo, insensível aos ritmos naturais”.

(GORZ, 2003, p. 109)

Desse modo, conclui o autor que o cálculo contábil, adotado como medidor

de eficiência pela sociedade capitalista, é “a forma por excelência de racionalização

reificadora”, que “mede em si mesma a quantidade de trabalho por unidade de

produto, ignorando o vivido: o prazer ou o desprazer que esse trabalho me

proporciona, o tipo de esforço que ele demanda, minha relação afetiva, estética com

a coisa produzida”. (GORZ, 2003, p.109)

Uma vez que dominadas pela racionalidade econômica, as atividades

passam, pois, a serem decididas em função de um cálculo, sem que as preferências,

gostos e aptidões pessoais sejam considerados, ao menos prioritariamente. (GORZ,

2003, p.109) Isso quer dizer que o objetivo central ao se definir um nicho para atuação

profissional e ao se ingressar na busca por um emprego tende a ser encontrar algo

que, primeiramente, “pague bem”. Apenas quando superada esta etapa – o que não

ocorre com facilidade num contexto de mercado de trabalho altamente competitivo –

é que as preferências, habilidades e afeição pela atividade vir a ser consideradas.

A esse respeito, essencial destacar que o que contribui de modo determinante

para que o próprio trabalhador “abrace” esta racionalização econômica do trabalho

proposta pelo capital é a natureza ilimitada das necessidades, característica intrínseca

à sociedade do consumo. Explica Gorz (2003, p.111) que “seria inútil buscar um

rendimento máximo, contar seu tempo, racionalizar o trabalho, quando se pode

atender às necessidades” trabalhando conforme suas preferências e ritmo naturais.

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Isso é o mesmo que dizer que a natureza limitada das necessidades impediria o

avanço da racionalização econômica.

A fim de exemplificar esta correlação direta entre a natureza ilimitada das

necessidades e a maior propensão à racionalização econômica do trabalho, Gorz traz

a seguinte situação descritiva, retirada da obra “A ética protestante e o espírito do

capitalismo”, de Max Weber:

O homem que recebia, por exemplo, 1 marco para ceifar 1 alqueire, ceifava 2 e ½ e ganhava 2,50 marcos por jornada. Quando a remuneração passava a 1,25 marcos, ele não ceifava mais, como se imaginaria, três alqueires, como podia facilmente fazê-lo, para ganhar 3,75 marcos, mas os 2 alqueires que bastavam a lhe garantir seus 2,50 marcos habituais. O ganho suplementar atraia-o menos que a redução de seu trabalho. Ele não perguntava a si mesmo quanto podia ganhar em um dia se fornecesse o máximo de trabalho possível, mas quanto devia trabalhar para ganhar os 2,50 marcos que recebia até então e que cobriam suas necessidades de hábito. (WEBER apud GORZ, 2003, p. 11).

Desse modo, o capital, dependente de trabalhadores altamente produtivos e

engajados para alcançar os altos níveis de produtividade pretendidos, precisou

impedir a autolimitação das necessidades pelo indivíduo, já que isso significaria –

como ilustrado pela situação acima – a autolimitação pelo trabalhador do seu esforço

e da sua produtividade. Assim, a promoção do ideal consumista, ao atribuir esta

natureza ilimitada às necessidades humanas, a ponto de torná-las indistinguíveis da

categoria volátil e expansiva dos desejos, atendeu perfeitamente ao anseio do capital:

moldar trabalhadores predispostos à racionalização econômica do seu trabalho.

Neste sentido, Gorz, esclarecendo que a vulnerabilidade do trabalhador

perante o ideal consumista é um fenômeno que atinge de um modo amplo e irrestrito

a classe trabalhadora, desde o operário até os trabalhadores “de colarinho branco”,

apresenta as seguintes considerações:

Com efeito, o consumidor alienado é o indivíduo que, em suas necessidades de consumo. Reflete sua alienação como agente de produção. É o trabalhador (manual, intelectual ou “de colarinho branco”) atomizado, dispersado pelas condições de habitat, tornado passivo, submetido à disciplina militar da fábrica, desligado do seu produto, chamado a vender seu tempo, a executar docilmente uma tarefa pré-fabricada, sem preocupar-se com a finalidade do seu trabalho. O consumidor massificado e passivo que a produção capitalista, para poder subordinar-se ao consumo, exige; [...] (GORZ, p.79, 1968)

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Destaca, ainda, o autor, que este “consumidor-trabalhador” atomizado pelo e

vulnerável ao capital, ao contrário do que se afirma frequentemente, não é criado

completamente por meio da publicidade, do marketing, da moda; tais artifícios

introduzidos pela sociedade do consumo apenas potencializam uma tendência já

gerada no estágio inicial das relações de produção capitalista pelo desligamento do

produtor do seu produto, “voltando esse trabalho contra ele como uma certa

quantidade predeterminada e alheia de tempo e de esforço que aguarda o trabalhador

em função da sua passividade ativa”. (GORZ, 1968, p. 79)

Por todas essas razões é que se entende que a manipulação, ao mesmo

tempo discreta e intensa, do ser humano por seus desejos consumeristas – que, como

visto, não são tão seus assim, vez que criados pelo capital para atenderem,

primariamente, aos caprichos do próprio capital – e a consequente racionalização

econômica do trabalho imposta pelo sistema capitalista, desde o seu nascedouro,

repercutem diretamente na sua vulnerabilidade como trabalhador.

Assim, conforme pontuado por Antunes (apud TEODORO; RIBEIRO, 2016, p.

75), segundo o pensamento de Karl Marx, a liberdade nas relações laborais, de fato,

só reina quando o trabalho não é determinado por necessidades ou utilidades

impostas.

Desse modo, sob o ponto de vista pragmático, se no passado trabalhava-se

para adquirir bens previamente estipulados como necessários, sendo que a qualidade

ou preço do bem a ser adquirido seria determinado pelo poder de compra decorrente

da renda auferida, hoje a situação vivenciada é totalmente avessa.

Na sociedade do consumo, as necessidades e os desejos humanos

encontram-se imiscuídas num complexo processo de espetacularização e passam a

ditar as regras do jogo da vida: a tendência é, pois, que, o indivíduo coloque o seu “eu

trabalhador” à serviço do seu “eu consumidor”, posicionando-se, primeiramente, como

consumidor para, então, posicionar-se como trabalhador, vinculando as suas

condições, quantidade e ritmo de trabalho a um padrão de consumo pré-determinado.

8.2 Do “pão” ao “smartphone de última geração”: a nova lógica interativa entre

trabalho e consumo

Fato é que, imerso numa sociedade na qual desejos e caprichos são postos

como necessidade e na qual o trabalho assalariado tende a ser reduzido a um meio

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realização do consumo – submetendo-se a uma racionalização econômica sem

precedentes –, quem, há um tempo, trabalhava pelo “pão”, hoje tende a trabalhar pelo

“smartphone de última geração”.

Partindo deste pressuposto, a fim de avaliar as repercussões práticas do

consumismo – que determina uma curva de necessidades infinita e tendencialmente

crescente – sobre o universo das relações de emprego, promoveu-se uma análise

prática comparativa em termos de recursos a serem auferidos, por meio do trabalho

assalariado, para o consumo destes dois itens ilustrativos do básico e do supérfluo: o

pão e o smartphone de última geração.

Então vejamos: um smartphone de última geração, que, hoje, compartilha

espaço com o “pão” na lista básica de “necessidades” da classe trabalhadora, sendo

trocado, em média, a cada 1 ano28, pode custar, conforme consulta realizada pelo

website Google, em 05/10/2017, até R$4.695,00 (valor orçado para um Iphone 8 Plus).

Tudo bem que, no mundo das “parcelas infinitas”, em que se compra – e também se

vive – a crédito e a prazo, este Iphone, se dividido em 12 parcelas, representaria para

o consumidor/trabalhador um gasto mensal de cerca de R$391,25.

Assim, a pessoa que trabalhava para arcar apenas com as despesas do “pão”

é a mesma que, hoje, não satisfeita com o “pão” diário em sua mesa, “precisa” trocar

o seu Iphone anualmente, acrescentando em seu orçamento mensal “X” uma despesa

de aproximadamente R$391,25. Agora, pensando que este indivíduo encontra-se

imiscuído num mercado de trabalho competitivo e que o valor do salário mínimo dos

“tempos do pão” é bem próximo do salário mínimo de hoje, do “tempo do smartphone

de última geração”, os cenários possíveis são os seguintes: a) o indivíduo se torna

endividado; b) o indivíduo passa a trabalhar mais, seja realizando horas extras ou

cumulando empregos, a fim de incrementar a sua renda e arcar com o aumento de

gastos; c) ou, conjugando as opções acima, o indivíduo trabalha mais e ainda assim

se torna endividado.

Ao que tudo indica, a opção “c”, trabalhar mais e, ainda assim, tornar-se

endividado, ingressando na denominada “corrida dos ratos”29, é a mais provável de

28 Disponível em: https://exame.abril.com.br/tecnologia/brasileiro-troca-de-celular-a-cada-1-ano-e-1-mes-em-media/. Acesso em 05 nov. 2017. 29 Robert Kiyosaki, em seu best seller “Pai rico, pai pobre” define a “corrida dos ratos” como um fenômeno caracterizado pelo envolvimento do indivíduo num ciclo no qual trabalha apenas para tentar pagar as contas, repetidamente, por toda a vida, tornando-se refém dos bancos, dos impostos, cartão de crédito. (KIYOSAKI, Robert. Pai rico, pai pobre: o que os ricos ensinam a seus filhos sobre dinheiro. Tradução de Maria José Cyhlar Monteiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000).

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ocorrer e o fundamento que se apresenta é o seguinte: considerando que o salário

mínimo hora no Brasil, em 2017, equivale a R$4,26, um trabalhador que, recebendo

o adicional legal de 50% eleva o valor da sua hora de trabalho em caráter

extraordinário para R$6,39, precisa realizar pelo menos 61 horas extras no mês para

conseguir arcar com parcela do Iphone, no importe de R$391,25.

Essas 61 horas extras, distribuídas por uma média de 24 dias úteis de trabalho

no mês, equivalem a, pelo menos 2,5 horas a mais de trabalho por dia, o que, do ponto

de vista legal, não é nem mesmo autorizado, haja vista a seguinte previsão do artigo

59 da CLT: “A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas

suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre

empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho”.

Logo, o empregado sujeito a tais condições, que pretenda quitar a parcela do

seu Iphone – sem contar com infortúnios comuns na prática, como o não recebimento

do salário em dia ou o não pagamento das horas extras realizadas com o acréscimo

legalmente devido –, precisará realizar uma jornada diária de pelo menos 10 horas e,

ainda assim, permanecerá não auferindo a complementação total necessária para

quitar a parcela do celular.

Antes de se analisar as repercussões desse cenário sob o prisma humano,

ainda por meio da analogia ao “pão” e ao “smartphone de última de geração”, propõe-

se a seguinte reflexão: o “pão” que era adquirido com os frutos do trabalho não

alterava o status do trabalhador que o consumia, uma vez que ligado à noção de trivial,

pressuposto para a sobrevivência; já o “smartphone de última geração” altera o status

socioeconômico do trabalhador, pois, ainda que vários outros consumidores-

trabalhadores também adquiram o mesmo produto, a sua natureza supérflua,

paradoxalmente, valoriza o indivíduo que, por meio da sua aquisição, ingressa no

“universo daqueles que possuem smartphone de última geração”. Este torna-se o

novo modo por excelência de alocação dos indivíduos nas novas espécies de

“estamentos sociais”, calcados em identidades consumeristas.

Agora vejamos os efeitos de todo esse cenário sob o prisma humano, que é

o que se julga mais relevante. Um trabalhador consumista, sujeito às condições acima

descritas, a fim de sustentar um padrão de consumo socialmente aceitável estará, não

só permitindo, como almejando que o trabalho ocupe quase metade das suas horas

diárias; ou seja, este consumidor médio, no desempenho do seu papel de trabalhador,

estará fortemente condicionado a se sujeitar a quaisquer metas de produtividade,

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condições e jornadas de trabalho cujo resultado prático imediato seja o recebimento

de uma remuneração mais elevada.

Isso porque o critério primariamente adotado pelo trabalhador que antes

posiciona-se como consumidor, pré-definindo um padrão de consumo a ser

alcançado, a qualquer custo, por meio do seu trabalho, também é o da racionalidade

econômica. Por conseguinte, a tendência instaurada é no sentido de que as demais

espécies de racionalidade, relativas às esferas sensíveis da vida humana,

explicitamente desprezadas pelo capital, tornem-se cada vez mais negligenciadas

pelo próprio ser humano.

A fim de ilustrar a perversidade deste tendencioso ciclo ininterrupto de

“trabalhar para consumir”, sem se chegar a um nível de satisfação que permita ao

consumidor, no seu papel de trabalhador, dosar a sua sujeição ao trabalho, segue o

trecho do depoimento de um autor Charly Boyadijan, operário de uma fábrica de

calçados francesa com jornada de 48 horas semanais, por 6 dias da semana,

apresentado por Gorz:

Você ainda encontra facilmente voluntários para trabalhar aos domingos. Tenho certeza que, em certos momentos, se lhes pedissem para trabalhar sete dias nos sete dias da semana durante o ano todo, no limite, a coisa teria funcionado... E ainda tinha gente que trabalhava depois, “por fora”, por alienação, ou, às vezes, por necessidade, além dos seus próprios turnos. Quando se trabalha 48 horas por semana, entende, a grana vira o truque, a coisa atrás da qual você corre... [...] Você tem um pouco mais de grana, então vai comprar um monte de troço, o que puder, você vai comprar qualquer tranqueira. Você corre atrás do dinheiro e no fim ele não serve pra grande coisa. Não te faz ganhar tempo, essa grana, você acaba é perdendo de monte: para ganhar, vamos dizer, dez minutos num troço que você faz todos os dias, vai perder uma hora por dia no trampo para pagar a coisa, é uma loucura. Mas, no fim, você está satisfeito com a coisa. (BOYADIJAN apud GORZ, 2003, p.118).

O mesmo autor e operário, descreve, ainda, o esgotamento físico e mental

que aniquilava a sua vida conjugal, degradando as suas relações sexuais com a

esposa em virtude da sensação de estar sempre física e psicologicamente

“arrebentado”, sem capacidade de racionar. (BOYADIJAN apud GORZ, 2003, p. 118).

A esse respeito, realça-se que, acompanhando a intensificação da

racionalização econômica do trabalho na sociedade do consumo, os índices de

adoecimento mental no interior das relações laborais, a nível internacional, elevaram-

se assustadoramente. Assim, num contexto marcado pela sobrecarga psíquica dos

empregados, submetidos a níveis máximos de auto cobrança e inseridos em

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ambientes de trabalho altamente estressantes, os prejuízos suportados pelo

trabalhador passaram a transcender, cada vez mais, a esfera física, atingindo

profundamente a sua saúde mental. Veja-se:

Seja pelo clima de insegurança instaurado em virtude dos processos de redução do quadro de pessoal, pelo excesso de responsabilidades assumidas, pela autocobrança desmedida ou pela incapacidade de separar tempo de trabalho do tempo de não trabalho – fundindo-se vida pessoal com vida profissional -, o trabalhador pós-moderno encontra-se inserido em um ciclo vicioso de acúmulo de estresse, principal combustível para o adoecimento psíquico. (JANNOTTI; RIBEIRO, 2016, p. 1207)

Dados colhidos pelo Ministério da Saúde do Brasil30, em 2001, revelaram que

os transtornos mentais “menores” – aqueles mais frequentes e menos graves ao

tempo do diagnóstico –, acometiam cerca de 30% dos trabalhadores ocupados, e os

transtornos mentais graves, cerca de 5 a 10%. Consequentemente, no Brasil, a

concessão de benefícios previdenciários de auxílio-doença e de aposentadoria por

invalidez em decorrência de transtornos mentais, com destaque para o alcoolismo

crônico, já ocupavam, nesse mesmo período, o terceiro lugar entre as causas de tais

ocorrências.

Em 2013, dados veiculados pela Agência Brasil31atestaram que dos 166,4 mil

auxílios-doença concedidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), cerca de

15,2 mil deviam-se a problemas mentais, sendo a depressão o principal deles, com

mais de 5,5 mil casos devidamente diagnosticados. Apenas um ano depois, em 2014,

conforme dados divulgados pela CBN32 e pela Revista CIPA33, cerca de 220 mil

indivíduos já haviam recebido auxílio-doença em virtude do acometimento por

doenças mentais.

Todas essas estatísticas convergem, portanto, para a constatação de que o

adoecimento mental, que vem atingindo milhares de trabalhadores brasileiros em

30Informações retiradas do site do Ministério da Saúde. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/partes/doencas_trabalho1.pdf Acesso em: 20 mar. 2016. 31Informações retiradas do site da Agência Brasil. Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-04-23/doencas-do-trabalho-matam-2-milhoes-por-ano-no-mundo-diz-oit Acesso em: 20 mar. 2016 32Informações retiradas do site da CBN. Disponível em: http://cbn.globoradio.globo.com/editorias/ciencia-saude/2015/03/07/MAIS-DE-200-MIL-PESSOAS-NO-BRASIL-RECEBERAM-AUXILIO-DOENCA-POR-TRANSTORNOS-MENTAIS-EM-20.htm Acesso em: 17 mar. 2016 33Informações retiradas do site da Revista CIPA. Disponível em: http://revistacipa.com.br/mais-de-200-mil-pessoas-no-brasil-receberam-auxilio-doenca-por-transtornos-mentais-em-2014. Acesso em: 17 mar. 2016.

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forma de histeria, depressão, estresse pós-traumático, alcoolismo crônico,

dependência química, síndrome de burnout ou do esgotamento profissional, dentre

outros quadros clínicos – aptos a causarem incapacidades laborais temporárias ou

definitivas e, nos casos mais extremos, provocar suicídios – é uma realidade

incontestável no bojo da sociedade do consumo. (JANNOTTI; RIBEIRO, 2016, p.

1.207)

Diante deste cenário de comprometimento direto da saúde humana em

decorrência da sujeição ao quase dogma imposto no sentido de se ”trabalhar muito

para consumir muito”, Gorz, considerando que tal obsessão pelo trabalho e pelo

ganho beira a irracionalidade, assumindo “para o operário o mesmo sentido que a

paixão do cálculo econômico no nascimento do capitalismo”, apresenta a seguinte

reflexão:

Sua vida é toda traçada, o trabalho é uma concha protetora, ‘tudo é regrado em teu lugar’, a questão do sentido e da finalidade é resolvida de antemão: posto que não há lugar na vida do trabalhador para outra coisa senão trabalhar pelo dinheiro, o fim só pode ser o dinheiro. Na falta de tempo para viver, o dinheiro é a única compensação ao tempo perdido, à vida desperdiçada no trabalho. (GORZ, 2003, p. 119-120)

Assim, conclui Gorz (2008, p.120) que é por esse motivo que o “trabalho

jamais será pago suficiente; mas, por isso também, o dinheiro ganho pelo trabalho é

originariamente percebido como valendo mais que a vida que se teve de sacrificar a

ele”.

Neste sentido, considera-se que, no plano prático das relações de emprego,

a legitimação da racionalização econômica do trabalho naturaliza o ideal de se

trabalhar tão somente pelo dinheiro, em velocidade, quantidade e modo determinados

pelas ambições consumeristas do trabalhador, sempre variáveis e tendencialmente

crescentes.

Considera-se, ainda que, talvez por essa razão, seja algo tão enraizado nos

dias de hoje a trivialização da jornada extraordinária, a realização de plantões

consecutivos pelos profissionais da saúde, a conciliação de empregos ou “bicos” em

turnos distintos e, até mesmo, a afeição pelos adicionais noturno, de insalubridade e

periculosidade, que representam um modo juridicamente legítimo de se “comprar” o

direito de violentar a saúde do trabalhador.

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Conforme já pontuado, tudo isso não quer dizer, de modo algum, que o

trabalho tenha deixado de ser central, tanto na vida pessoal quanto na esfera social.

Mas, talvez, diante de tanto imediatismo e incerteza, tenha se tornado superficial, mais

fonte de renda do que de realização, mais um instrumento de status social do que um

fim em si mesmo. E, talvez, essa também seja uma das razões pelas quais o Direito

do Trabalho, lamentavelmente, venha sendo alvo de tantas medidas flexibilizatórias,

assumindo um caráter cada vez mais raso, patrimonialista e reificador em relação ao

trabalho e, sobretudo, ao trabalhador.

8.3 Direito do Trabalho ou “Direito reificador do trabalho”? Para além de um

novo espírito, uma crise ética

A partir de todas as considerações até então traçadas acerca das novas

interações entre trabalho e consumo, dois dos grandes pilares da existência humana

e da vida em sociedade, buscou-se demonstrar que, numa sociedade fundada

predominantemente no consumo, o trabalho permanece central e assume caráter

ainda mais essencial; contudo, a sua centralidade e a sua essencialidade convergem

cada vez mais para o campo material, para a viabilização de uma satisfação que tende

a se realizar na esfera do consumo.

Foi esta constatação que conduziu à afirmação de que o trabalho está sujeito

a uma racionalização econômica sem precedentes na sociedade do consumo, o que,

como visto, repercute em ganhos valiosos para o capital e em perdas irreparáveis para

o ser humano, sobretudo do ponto de vista mediato.

Buscar no emprego a construção da identidade, reconhecimento social,

status, afeto e realização profissional não é algo que não mais exista; mas é algo que,

quando vem a existir, tende a existir apenas em segundo plano; o que uma sociedade

de consumidores, de fato, parece priorizar é o retorno financeiro que será obtido por

meio daquele emprego, já que é por meio dele que o seu padrão de consumo estará

garantido.

No plano fático das relações empregatícias, essa racionalização econômica

repercute de tal modo que o capital passa a contar com o apoio do próprio trabalhador

para atingir os fins de produtividade e lucratividade máximas, já que todo esforço extra

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no trabalho passível de ser compensado monetariamente interessa sobremaneira ao

“consumidor-trabalhador”34.

Neste sentido, ensina Gorz (2003, p.53) que os “consumos compensatórios”,

propostos pelo sistema aos trabalhadores como meio de lhes fazer aceitar a

funcionalização ou racionalização econômica do seu trabalho, tornaram-se os fins:

“não se deseja mais os bens e serviços mercantis como compensações ao trabalho

funcional, deseja-se obter trabalho funcional para pagar o consumo das mercadorias”.

Assim, o fenômeno do consumismo adquire uma eficácia que ultrapassa os

próprios propósitos iniciais do capital, provocando uma “verdadeira mutação cultural”,

à medida que

O dinheiro ganho permite uma forma de satisfação mais importante que a perda de liberdade que implica o trabalho funcional. O salário torna-se o fim essencial da atividade, a tal ponto que passa a ser inaceitável uma atividade que não receba em troca uma compensação monetária. O dinheiro suplanta os outros valores para tornar-se a única medida dessas atividades. (GORZ, 2003, p. 53)

Diante desta transformação de ordem cultural, as aspirações e os valores não

econômicos, não quantificáveis, passaram, pois, a se distanciar cada vez mais do

mundo do trabalho. Segundo Gorz (2003, p.84), isso quer dizer que a sociedade

assiste a um abrupto afastamento entre a “cultura do cotidiano” e a “cultura

profissional”, tornando rara a realização de um trabalho humanamente satisfatório,

que seja percebido pelo trabalhador como uma fonte de enriquecimento não apenas

material, mas também pessoal.

A respeito do distanciamento do trabalho da “vocação ética” do ser humano,

pondera Bauman que o trabalho adquiriu uma “significação principalmente estética”,

de modo que

Poucas pessoas apenas – e mesmo assim raramente – podem reivindicar privilégio, prestígio ou honra pela importância e benefício comum gerados pelo trabalho que realizam. Raramente se espera que o trabalho “enobreça” os que os fazem, fazendo deles “seres humanos melhores”, e raramente alguém é admirado ou elogiado por isso. A pessoa é medida e avaliada por sua capacidade de entreter e alegrar, satisfazendo não tanto a vocação ética do produtor e criador quanto as necessidades e desejos estéticos do

34 Por meio do termo “consumidor-trabalhador”, que se contrapõe ao tradicional “trabalhador-consumidor”, busca-se enfatizar a tendência líquido-moderna de que, primeiramente, o indivíduo se reconheça e se posicione como consumidor, pré-determinando o seu padrão de consumo, para então se posicionar como trabalhador.

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consumidor, que procura sensações e coleciona experiências. (BAUMAN, 2008, p. 176)

Considera-se que essa tendência de desvinculação do trabalho dos valores

ético-profissionais, como o talento e a vocação, está diretamente relacionada ao fato

de que o postulado do “quanto me basta” – que, até a consolidação da sociedade

industrial, representava o ideal seguido pelos “trabalhadores-consumidores”,

habituados a não trabalharem mais do que o necessário para garantir “o suficiente” –

, não mais costuma guiar as escolhas do “consumidor-trabalhador”, adepto do

postulado do “quanto mais melhor” – o que implica dizer que a medida geralmente

utilizada para se avaliar o quão “bom” ou “ruim” é ou pode ser um emprego é o cálculo

contábil, ou seja, o quanto ele rende ou poderá render monetariamente ao trabalhador.

Neste contexto, a reificação do trabalho – imposta pelo capitalismo desde o

momento em que, concentrando os meios de produção, impôs a uma grande massa

a necessidade de vender a sua força de trabalho para auferir meios de subsistência –

, é intensificada com a ajuda do próprio trabalhador, que, engajado na tarefa de

maximizar o seu poder pessoal de consumo, rende-se muito mais facilmente à lógica

contábil e às exigências de produtividade máxima do capital.

Assim, pode-se dizer que o nível de vulnerabilidade do ser humano no plano

do consumo tende a manter uma relação de proporcionalidade direta com a sua

vulnerabilidade no plano das relações de trabalho, de modo que um consumidor

altamente vulnerável diante das ideologias do consumo será, muito provavelmente,

um trabalhador altamente vulnerável diante das vontades do capital.

Bauman (2008, p.17) refere-se a esse grupo de trabalhadores vulneráveis ou

flexíveis diante das imposições do capital como “trabalhadores chateação zero”,

nomenclatura usualmente utilizada entre os empregadores no Vale do Silício, nos

Estados Unidos, para definir o empregado que está sempre “disponível para assumir

atribuições extras, responder a chamados de emergência ou ser realocado a qualquer

momento”.

Este é um claro exemplo de que a reificação, não só do trabalho, mas também

do trabalhador, vem sendo promovida, no plano das relações de emprego, com ainda

mais afinco pelos empregadores, que se valendo da predisposição do trabalhador

para “vender” o seu esforço mesmo para além dos limites que pode suportar – física

e psicologicamente – acaba ampliando as jornadas e elevando as metas de

produtividade, intensificando a exploração sem mesmo assumirem o estigma de

superexploradores.

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E é exatamente neste ponto que entra em cena – ou deveria entrar – o Direito

do Trabalho. Investido, originariamente, de uma função social e humanizadora das

relações de emprego, o grande mote das normas trabalhistas, não deve, jamais,

afastar-se da preservação da dignidade humana do trabalhador.

Como visto, o surgimento do Direito do Trabalho não representou um “luxo”

ideológico – mera concessão de um Estado interessado em agraciar a classe

trabalhadora –, mas uma necessidade real. Foram as lutas travadas pelos

trabalhadores contra a exploração vivenciada no plano fático que levaram o ente

estatal a reconhecer que, num contexto no qual a livre regulação das relações

trabalhistas significava fome, miséria, doenças, deformações e mortes, a imposição

de um conjunto mínimo de normas trabalhistas era necessária para frear a exploração

da força de trabalho, impedindo a própria degradação da existência humana.

Foi, portanto, a partir dos fundamentos históricos que ensejaram o seu

surgimento que, ao se investigar o espírito do Direito do Trabalho, chegou-se à

conclusão de que, apesar de não estar investido de uma força propriamente

contestatória da lógica do capital, o ramo justrabalhista encontra-se imbuído de um

caráter reformista perante a realidade de exploração desenfreada da força de

trabalho. Assim, terminologias apresentadas no decorrer deste estudo (mais

precisamente no item 5.3), como “elemento estabilizador da sociedade capitalista”,

“instrumento de justiça social”, “instrumento de correção das distorções do mercado”,

“natureza protetivo-retificadora” e “fator de contrapeso”, definem, em conjunto, o que

se denomina espírito – ou essência fundante, justificadora e norteadora – do Direito

do Trabalho.

O próprio legislador constituinte, conforme discutido, reconheceu essa

imbricação do Direito do Trabalho com as questões humanas e sociais quando

elencou como fundamento do Estado Democrático de Direito, no artigo 1°, inciso IV,

juntamente com a dignidade humana, o “valor social do trabalho”.

Contudo, no plano prático, sempre se assistiu a uma distorção desse

compromisso social e humanizador do Direito do Trabalho, promovida tanto em âmbito

estatal, pela imposição de diversas normas que sobrelevam o aspecto material e

monetário da relação de emprego, como em âmbito privado, pelo descumprimento

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rotineiro e reiterado de direitos trabalhistas fundamentais, que constituem um

“patamar mínimo civilizatório”35 em prol do trabalhador.

No plano da CLT, desde a sua instituição, tem-se exemplos de normas que

reduzem ao cálculo contábil direitos que guardam relação direta com a dignidade

humana. Considera-se que o mais expressivo deles é a instituição dos adicionais de

insalubridade e periculosidade, prevista pelos artigos 192 e 193 da CLT.

Não obstante ter a Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso XXII,

instituído em favor dos trabalhadores o direito de redução dos riscos inerentes ao

trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança, o legislador ordinário

consentiu com a possibilidade de se expor um empregado a condições insalubres e

perigosas, estabelecendo, em contrapartida, o pagamento de um adicional – irrisório

em termos quantitativos –, a fim de se compensar, monetariamente, a ofensa à saúde

do trabalhador. (ROCHA; RIBEIRO, 2015, p.280)

Tornando ainda mais incoerente do ponto de vista social e humano os

institutos dos adicionais de insalubridade e periculosidade, o legislador ainda

determinou que, em caso de uma exposição simultânea do empregado a agentes

insalubres e perigosos, não há o direito de se perceber cumulativamente os

respectivos adicionais. Ou seja: o empregador é, de certo modo, “premiado” por

sujeitar o trabalhador a condições que comprometem duplamente a sua saúde e

integridade, arcando com os custos compensatórios referentes a apenas uma das

ofensas promovidas.

Realça-se que, a esse respeito, já existe corrente jurisprudencial no âmbito do

Tribunal Superior do Trabalho, que, valendo-se de uma interpretação constitucional

do Direito do Trabalho ou da aplicação de normas internacionais, sobretudo da

Convenção 155 da OIT, entende possível a cumulação dos adicionais de

insalubridade e periculosidade. (ROCHA; RIBEIRO, 2015, p.281-282). Contudo,

mesmo diante deste entendimento indiscutivelmente favorável ao trabalhador, é o

aspecto monetário que ainda permanece em foco; a impossibilidade de se expor um

empregado a agentes que colocam em risco a sua saúde e a sua vida permanece

incogitada pelo ordenamento jurídico-trabalhista brasileiro.

No âmbito do próprio Judiciário trabalhista, o caráter essencialmente

patrimonial que se busca conferir aos direitos laborais é ratificado pela tendência de

35 Termo consagrado pelo jurista brasileiro Maurício Godinho Delgado.

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monetização das tutelas jurisdicionais. A Justiça do Trabalho, avaliada

predominantemente em números, isto é, também sujeita à medição da sua eficiência

por meio de cálculos contábeis, é induzida a firmar acordos que, geralmente, avaliam

as lesões potencialmente sofridas pelo empregado jurisdicionado apenas sob a ótica

patrimonial. Pouco importa se a honra, a dignidade, a integridade física ou a saúde

mental foram violadas: tudo se resolverá mediante o pagamento de um valor friamente

estipulado.

Sob o prisma do empregador, isso quer dizer que a redução do

descumprimento de um direito fundamental trabalhista ao dever de pagamento de

uma quantia não tem o poder de exercer sobre ele qualquer função pedagógica,

inibidora e tampouco penalizante. O resultado prático é o cenário atualmente

vivenciado, marcado por um descumprimento contumaz e massivo dos direitos

trabalhistas. (PIMENTA e RIBEIRO, 2017, p.72).

Por razões como estas é que se considera que, tanto o Direito do Trabalho

quanto a Justiça do Trabalho, tachados de “hiperprotetores”, talvez, não atuem nem

mesmo protegendo o trabalhador, se compreendermos o verbo proteger no sentido

de “resguardar”. Uma atuação que promova a proteção no sentido de resguardo, a fim

de impedir ou evitar que a lesão ocorra, não parece ser a regra nem no âmbito do

Direito do Trabalho, nem no âmbito da Justiça do Trabalho – que, em virtude da pouca

utilização das tutelas inibitórias, acaba sendo acionada, usualmente, apenas no

momento pós lesão.

No plano do Direito do Trabalho, essa atuação falha no sentido de resguardar

o trabalhador, evidenciada, por exemplo, pelos institutos dos adicionais de

insalubridade e periculosidade, que autorizam a violência à saúde e à segurança do

trabalhador por meio de uma pretensa ”compensação” financeira, denotam, pois, a

tendência de racionalização econômica de direitos trabalhistas fundamentais que

guardam íntima relação com as esferas mais sensíveis da vida humana.

Ainda no campo da mercantilização da saúde do trabalhador, outro exemplo

prático desta tendência reificadora do Direito do Trabalho, de tratar como “coisas

compráveis” atributos humanos sensíveis, consiste na trivialização da jornada

extraordinária, que tornando habitual a extensão da jornada de trabalho naturalizou a

possibilidade de se “comprar” porções cada vez mais significativas do tempo de lazer,

de descanso e de recuperação do trabalhador.

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E, conforme já pontuado, no bojo da sociedade do consumo, o que se

considera mais grave é que, não raramente, o próprio trabalhador cria uma afeição

por institutos como os que foram aqui mencionados – adicionais de hora extra, de

insalubridade e periculosidade – já que, do ponto de vista imediato, eles representam

ganhos econômicos extras em seu orçamento, que serão revertidos em consumo.

Entende-se, portanto, que a supervalorização dos direitos trabalhistas de

expressão econômica é algo que se encontra enraizado na “(in)cultura” do trabalho,

reinante na sociedade capitalista. Mas é algo que se tornou ainda mais evidente e

naturalizado sob o paradigma de uma sociedade na qual os trabalhadores se auto

reconhecem, primordialmente, como consumidores, priorizando a esfera patrimonial

de suas vidas e condicionando o trabalho à satisfação de um leque de necessidades

cada vez mais sofisticadas e expansivas.

No plano contratual das relações de emprego, isso implica considerar que o

contrato de trabalho escapa ainda mais da própria zona de adesão, haja vista que o

atual sistema de necessidades (que inclui a categoria dos desejos), complexo, volátil

e impositivo, exerce um poder manipulatório ainda mais incisivo sobre o psíquico do

“consumidor-trabalhador”.

Assim, ao firmar um contrato com determinado empregador, considera-se que

o elemento “vontade” cede cada vez mais espaço ao elemento “necessidade”, uma

vez que o trabalhador o faz porque, de fato, precisa, mais que nunca, “vender” a sua

força de trabalho para se inserir no universo do consumo e, só então, realizar as

aspirações materiais e imateriais que o tornarão minimamente visível no campo social.

Nesta linha, Viana e Teodoro fazem as seguintes considerações:

Como vimos, nem o consumo, nem o trabalho por conta alheia se desgarram do elemento necessidade. Cada vez mais, o ser humano necessita consumir para viver, e, para tanto, precisa trabalhar. Torna-se, portanto, alvo de uma dupla-vulnerabilidade – como consumidor e como trabalhador. No âmbito das relações laborais, isso implica a sua sujeição a uma intensa precarização de condições laborais e de direitos, em prejuízo à dignidade do seu trabalho e à sua própria dignidade enquanto ser humano. (VIANA; TEODORO, 2017, p.336)

Ocorre que, diante de toda essa conjuntura que torna ainda mais pungente a

vulnerabilidade do trabalhador, o Direito do Trabalho, em lugar de enrijecer o seu

espírito protetivo-retificador, resguardando a parte hipossuficiente da relação tutelada,

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parece estar, paradoxalmente, assumido uma postura mais tímida e flexível, quando

não contraditória, diante dos seus propósitos originários.

Essa tendência de abrandamento do caráter protetivo-retificador do ramo

justrabalhista, que contradiz os seus propósitos originários de resguardar o

trabalhador, corrigindo as distorções do mercado e promovendo a justiça social,

ensejou o que se denomina “onda flexibilizatória” do Direito do Trabalho, iniciada, no

Brasil, sobretudo na última década do século XX.

Barbagelata (1996, p.137), referindo-se às raízes desse fenômeno, explica

que a “campanha” formalizada pelo Consenso de Washington em prol do ideal de

desregulamentação trabalhista liga-se diretamente ao fato de que os adeptos do

neoliberalismo, partidários do laissez-faire e da redução participativa do Estado,

“condenam todas as ações que possam distorcer o funcionamento de um mercado

livre, reclamam a desregulamentação da economia [...] e são hostis tanto às

interferências da legislação como às ações coletivas”.

Robortella (1994, p.97), posicionando-se com otimismo diante dessa “onda

flexibilizatória”, considera que a flexibilização do Direito do Trabalho corresponde tão

somente a um instrumento de adaptação e adequação das normas jurídico-

trabalhistas à realidade econômica social e institucional, refletindo, em termos de

eficácia na regulação do mercado de trabalho, uma necessidade do sistema capitalista

em seu estágio flexível.

Assim, segundo os defensores da flexibilização, uma maior liberdade de

negociação entre empregado e empregador, sem ingerências estatais, permite às

partes encontrarem as soluções mais adequadas à realidade econômico-financeira

que as circundam, relativizando o direito posto.

Mas superado todo o eufemismo presente no discurso da flexibilização,

considera-se que o que, de fato, ele preconiza é a adequação das normas trabalhistas

ao cenário político-econômico neoliberal, sob o argumento de que um Direito do

Trabalho mais “flexível “ – perante os caprichos do capital – ao garantir uma maior

produtividade, competitividade e elevação da lucratividade, contribuiria para a

manutenção de postos trabalho e para o desenvolvimento econômico nacional.

Considera-se, ainda, que ao exaltarem uma maior liberdade de negociação

direta entre empregador e empregado, os adeptos dessa corrente parecem

simplesmente ignorar o grande particularismo do Direito do Trabalho: o fato de que as

partes envolvidas na relação contratual tutelada não se encontram em situação de

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igualdade: “O empregador é quase sempre mais forte e, portanto, habitualmente, pode

impor as suas condições”. (COMBLIM, 2001, p.17)

Perceba-se, pois, que compreendido nestes termos, o fenômeno da

flexibilização trabalhista contradiz a lógica de proteção intrínseca ao Direito do

Trabalho, implicando, segundo Barbagelata (1996, p.30), uma necessária “mudança

na forma de conceber a igualdade das pessoas, a qual – como observa Radbruch –,

deixa de ser ponto de partida do Direito, para se converter em meta ou aspiração da

ordem jurídica”.

Rudiger (2004, p.32), analisando criticamente a tendência instaurada de

flexibilização das normas trabalhistas, considera que, na verdade, a teoria da

flexibilização aproxima-se cada vez mais de uma teoria da “privatização do Direito do

Trabalho” ou de um “Direito do Trabalho mínimo”, uma vez que se volta única e

exclusivamente para uma maior eficácia ao mercado, às custas da mitigação de

direitos e garantias da classe trabalhadora. “O escopo do debate é a sobrevivência do

capital dentro da economia global para a qual o direito do trabalho sempre foi e

continua sendo uma verdadeira camisa de força”.

Isso nos revela que, por reflexo de uma “internalização acrítica do

pensamento liberal globalizante”, o capitalismo, insuflado do seu novo espírito “ultra-

liberal”, pretende impor-se como “molde” conformador de todas as esferas da vida em

sociedade. Por essa razão, o discurso dominante tem sido no sentido de que, “num

contexto de capitalismo flexível, tudo que a ele subjaz ou que com ele se relaciona

deve também se tornar flexível”. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p. 113)

Ocorre que, nos termos do que se buscou demonstrar ao longo deste estudo,

em se tratando de direito e, principalmente, de Direito do Trabalho, cuja função

precípua é contrabalancear, corrigir, ou pelo menos minimizar as distorções geradas

pelo mercado, impedindo uma exploração degradante do trabalho pelo capital, a

questão não é e nem pode ser encarada com tanta simplicidade e ar de fatalidade.

Nessa perspectiva, as seguintes considerações:

Para cumprir o seu papel limitador de poder, o Direito necessita de independência, tanto nas suas fases de elaboração quanto de aplicação, sob pena de ocorrer o que Noam Chomsky, em sede do documentário “Requiem for the American Dream”, denomina de “controle sobre os reguladores”. Ao utilizar essa expressão, Chomsky enfatiza um fenômeno muito comum em tempos de capitalismo global e flexível, que se refere à forte influência, quando não interferência, dos próprios destinatários de determinada norma reguladora sobre a sua elaboração ou aplicação. Isso quer dizer que se

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concede um papel ativo àquele que deveria ser mero sujeito passivo do processo de regulação normativa, culminando na produção de uma norma contaminada em essência – ou em espírito – e, portanto, inapta para cumprir os seus reais objetivos. E ao se preconizar um Direito do Trabalho flexível, o que mais se pretende se não permitir que os regulados (“detentores do capital”) controlem o seu regulador (Direito do Trabalho)? Essa pergunta reflexiva nos conduz à percepção de que um Direito do Trabalho que incorpore os ditames flexibilizatórios do capitalismo não é, ao contrário do que se pretende difundir, um direito laboral moderno, que esteja simplesmente exercendo sua capacidade de adequação ao dinamismo social; mas sim, um Direito do Trabalho subvertido. (RIBEIRO; ABREU, 2016, p.113)

Sobre este cenário favorável para que o alvo de regulação do Direito do

Trabalho (o capital) torne-se o seu principal regulador, considera Garcia (apud

BARROSO; ROCHA; RIBEIRO, 2017, p. 7) que “a desregulamentação negociada do

Direito do Trabalho encampa uma condição de supressão de normas jurídicas,

sobretudo estatais e relativas às relações de trabalho, ‘passando os próprios

interessados, como agentes sociais, a estabelecer a regra aplicável’ “. (GARCIA,

2016, p. 35)

Neste mesmo sentido, Rüdiger (2004, p.78) pondera que se assiste a um

movimento no sentido de “esfarelamento do direito”, que “coloca o Direito do Trabalho

entre a direção central da sociedade e sua auto-regulação pelo mercado”, em amplo

prejuízo dos seus traços protetivos e da sua função social.

Assim, conforme advertido por Antunes (2016, p.163), no plano factual,

flexibilizar a legislação do trabalho significa aumentar ainda mais os mecanismos de

exploração da força de trabalho e viabilizar a “destruição dos direitos sociais que foram

arduamente conquistados pela classe trabalhadora, desde o início da Revolução

Industrial, na Inglaterra, e especialmente no pós 1930, quando se toma o exemplo

brasileiro”.

Contudo, apesar dos sólidos fundamentos corroborando a inaceitabilidade do

ponto de vista social, humano, e inclusive histórico, de um Direito do Trabalho flexível

aos ditames do capital, no cenário jurídico-trabalhista brasileiro, muitos já são os

exemplos de medidas que, desde as décadas finais do século XX, foram

empreendidas no sentido de se flexibilizar o Direito do Trabalho. Dentre elas,

destacam-se: a consagração da prescrição quinquenal e não mais trintenária do

FGTS; o cancelamento da Súmula 277 do TST, que previa a ultratividade das

negociações coletivas, de modo que, finda a vigência de um instrumento coletivo, os

direitos por ela previstos deixam de incorporar os contratos individuais de trabalho,

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mesmo diante da recusa ou mora da empresa em renegociar com o sindicato; os

julgados do STF reconhecendo a prevalência do negociado sobre o legislado,

mitigando a aplicação de normas de ordem pública em nítido prejuízo ao trabalhador;

a promulgação da lei nº 13.429 de 2017, que legitimou o instituto da terceirização

trabalhista, em franca ofensa à dignidade humana; e, por último, a aprovação da Lei

13.467/2017, popularmente conhecida como a “lei da reforma trabalhista”.

(BARROSO, ROCHA; RIBEIRO, 2017, p. 7)

Já em plena vigência – desde o dia 12 de novembro de 2017 –, A Lei

13.467/2017, promovendo alterações profundas e numerosas na CLT, à pretexto de

desburocratizar as relações de emprego, mitigando direitos e ampliando a liberdade

negocial entre empregado e empregador, foi profetizada pela mídia brasileira

dominante como condição básica – e mesmo suficiente – para reavivar a economia

brasileira.

Contudo, por meio de uma análise crítica da Lei 13.467/2017, que deve levar

em consideração o fato de que o Direito do Trabalho, alvo do estigma de

“hiperprotetor”, é percebido como um entrave pela classe empresarial brasileira, pode-

se dizer, valendo-se das palavras de Jorge Luiz Souto Maior (2017)36, , que a “reforma

trabalhista” positivada pela Lei 13.467/2017 não representou “nada além do que uma

espécie de reunião de teses jurídicas empresariais, trazidas ao conjunto de um Projeto

pelo impulso da somatória de vaidades pessoais e até mesmo por sentimento de

vingança de alguns”.

Também neste sentido, Barroso, Rocha e Ribeiro, ponderam que

[...] não é preciso ser um expert em Direito do Trabalho, nem mesmo ter qualquer conhecimento técnico de Direito, para notar que as alterações trazidas pela lei nº 13.467/2017 – representam concessão de benesses aos empregadores às custas da precarização ou mesmo retirada de direitos do trabalhador. (BARROSO, ROCHA E RIBEIRO, 2017, p.16)

Concebendo, então, a “reforma” como uma verdadeira “desnaturação do

Direito do Trabalho”37 consideram, ainda, os referidos autores que

36 MAIOR, Jorge Luiz Souto. A pequena política do grande capital: “reformas a qualquer custo” 2017. Disponível em: http://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-pequena-politica-do-grande-capital-reformas-a-qualquer-custo Acesso em: 02 jul. 2017 37 Quanto à terminologia “desnaturação do Direito do Trabalho”, explicam Barroso, Rocha e Ribeiro, na obra A desnaturação do Direito do Trabalho por meio da “reforma trabalhista” (no prelo), que, “[...]dentre as tantas expressões passíveis de expressarem o que o a lei nº 13.467/2017 de fato provocou sobre o Direito do Trabalho, considera-se que a ‘desnaturação’, definida como ‘um fenômeno no qual o estado inicial bem definido de uma proteína formada sob condições fisiológicas é transformado em uma estrutura final mal definida sob condições não fisiológicas, usando-se um agente

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[...]de “reforma” nada tem a “reforma trabalhista”, já que a semântica da palavra reforma reflete a ideia de mudança voltada a um melhoramento - e, sob o prisma do trabalhador, destinatário legítimo da proteção justrabalhista, nenhum melhoramento pode ser verificado. [ ]Não há dúvidas de que esta reforma trabalhista representa uma estratégia político-econômica conservadora e “ultraneoliberal” voltada a tornar ainda mais incisivo o controle da força de trabalho pelo mercado, ou, em outros termos, o controle da classe trabalhadora pelo capital. A ideia é desnaturar o Direito do Trabalho para fragilizar e pressionar, individualmente, os trabalhadores, eliminando-se do mercado de trabalho mecanismos considerados “anticompetitivos” sob o prisma empresarial e limitativo à potencialização do livre mercado, no aspecto político-ideológico. (BARROSO, ROCHA; RIBEIRO, 2017, p.17-18)

Desse modo, pode-se dizer que se está, mais que nunca, diante de uma

franca inversão dos valores norteadores do Direito do Trabalho, que, aproximando-se

muito mais dos interesses do capital do que dos interesses da classe trabalhadora,

não está, ao contrário do que se preconiza, simplesmente adequando-se ao

dinamismo social ditado pelo capitalismo flexível, mas tornando-se um Direito do

Trabalho subvertido, corrompido, desnaturado. (BARROSO, ROCHA e RIBEIRO,

2017, p.17)

Este perceptível distanciamento do ramo justrabalhista do seu compromisso

social protetivo em relação ao trabalhador, decorrente das corriqueiras medidas com

vistas à sua adequação à lógica do capital, bem como a consequente acentuação

brutal da racionalização econômica dos direitos e garantias trabalhistas, conferem,

pois, ao Direito do Trabalho um novo espírito.

E uma vez que esse novo espírito não decorre de simples aprimoramentos ou

agravos no corpo normativo do ramo juslaboral, refletindo uma alteração

paradigmática de valores que afronta o núcleo axiológico e ontológico do Direito do

Trabalho, entende-se que, para além de estar se investindo de um novo espírito – que

represente uma mera evolução ou uma regressão do seu espírito originário –, o que

o Direito do Trabalho, de fato, vivencia é uma crise ética.

Reforça-se que esta crise ética que se acredita estar sendo vivenciada no

âmbito institucional do Direito do Trabalho, reflete uma crise ética que já vem

acompanhando o trabalho desde o momento em que o postulado de produzir mais e

trabalhar mais para consumir mais, tornou-se o mote da vida humana, legitimando

desnaturante’, representa com franqueza e autenticidade todo esse processo que insistem em chamar de “reforma trabalhista”.

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uma racionalização econômica do trabalho sem precedentes com fundamento em um

(falso) elo entre as noções de “mais” e “melhor”. (GORZ, 212, p.212)

Conforme advertido por Gorz (2003, p.108; 212), “a sociedade do trabalho

está em crise”, e isso deve ser motivo de preocupação, mas não de espanto, já que

“[...] monetarizar atividades que têm por fim fornecer e transmitir sentido, é

inevitavelmente entregá-las à crise”. O mesmo raciocínio, aplica-se também aos

institutos considerados “sensíveis”, que visam fornecer e transmitir sentidos para além

de números e cálculos, como ocorre com o Direito do Trabalho: racionalizá-los

economicamente, isto é, priorizar a racionalidade econômica em detrimento das

demais racionalidades, como a social e a humana, é inevitavelmente entregá-los à

crise.

Assim, valendo-se, novamente, da proposição do filósofo Baruch de Spinoza,

no sentido de que “à natureza de uma substância pertence o existir”, acredita-se que

essa tendência de racionalização econômica, transgressora dos valores protetivos,

sociais e humanos do Direito do Trabalho, ao deturpar a sua essência, pode esvaziá-

lo completamente de sentido e acabar comprometendo a sua própria existência.

Neste sentido, Viana e Teodoro realçam a urgente necessidade de se

promover uma releitura do ramo justrabalhista, em sentido contrário ao que têm

predominado, propondo, para tanto, um movimento de “repersonalização do Direito

do Trabalho”, nos seguintes termos:

Num contexto de modernidade líquida, marcado, na esfera político-econômica, pela prevalência de ideais neoliberais – que tendem a acentuar a mercantilização das relações laborais - e, na esfera jurídico-filosófica, pelo surgimento da corrente pós-positivista – que preconiza uma releitura dos diversos direitos a partir dos princípios e valores constitucionais, sobretudo, da dignidade humana -, parece necessária uma virada epistemológica no âmbito do Direito do Trabalho. É justamente essa reviravolta, marcada por uma profunda alteração de paradigma em prol do abandono de uma concepção meramente econômica e patrimonial - que “coisifica” o trabalho e o trabalhador ao considerar que o mero pagamento das parcelas previstas em lei é o bastante para legitimar a exploração da força de trabalho alheia -, representa o que aqui se denomina de “repersonalização do Direito do Trabalho”. Assim, repersonalizar o Direito do Trabalho pressupõe, sobretudo, compreender a pessoa do trabalhador como ocupante do seu eixo central de regulação. Significa alertar sobre a função extrapatrimonial dos direitos trabalhistas, já que o fato de muitos deles se traduzirem em pecúnia não lhes retira, de modo algum, a sua função promotora de uma vida digna, transcendendo, em muito, a esfera econômica da vida humana. (VIANA; TEODORO, 2017, p. 334)

Nota-se que, ao preconizarem a “repersonalização” do Direito do Trabalho”, o

que os autores levam em consideração é justamente a sua “raiz antropocêntrica” e a

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sua “ligação visceral com a pessoa e os seus direitos; afinal, é essa centralização em

torno do homem que faz o Direito do Trabalho a expressão máxima da dignidade da

pessoa humana do trabalhador”. (VIANA; TEODORO, 2017, p.334)

Nesse contexto, falar na necessidade de fortalecimento do Direito do Trabalho

no que tange às suas raízes é, antes de tudo, falar de resistência: resistência perante

a infiltradora lógica flexível do capital, que, retirando o trabalhador do eixo protetivo

central do direito laboral, pretende fulminar o seu papel de contrapeso e reduzi-lo a

uma mera engrenagem do sistema.

Assim, considera-se que, do ponto de vista jurídico, o grande desafio que

primeiramente deve ser enfrentado no contexto ora narrado é colocar na centralidade

dos estudos, pesquisas e da hermenêutica trabalhista as questões existenciais – em

detrimento das meramente patrimoniais – que circundam o trabalho e o Direito do

Trabalho, a fim de blindá-los contra a tendência, agravada sobremaneira pela

exaltação do consumo, de se materializar e monetizar todas as esferas da vida

humana.

Conforme preconizado em outra oportunidade:

Em preservação às raízes humanísticas do Direito do Trabalho é fundamental que a sua elaboração, interpretação e aplicação atribuam ao ser trabalhador o seu devido papel de protagonista, promovendo a sua valorização e emancipação enquanto cidadão. Isso significa elevar a dignidade humana do trabalhador à máxima potência, não permitindo que ele seja objetivado e que o seu trabalho seja reduzido à condição de mero instrumento viabilizador de um consumo que extratifica, aliena e fetichiza. (TEODORO; RIBEIRO, 2016, p.76)

Contudo, em face de todos os exemplos práticos aqui narrados, presume-se

que esta colocação do ser humano no centro do Direito do Trabalho não irá partir

espontaneamente de “cima”, isto é, do Congresso, tampouco do Executivo. Assim, o

que se entende cabível e significativamente válido, sobretudo à longo prazo, é que

esta tarefa de resistência, que pressupõe consciência, seja promovida na seara da

hermenêutica do ramo justrabalhista, numa atuação conjunta de entidades sindicais,

docentes, magistrados e servidores do Judiciário Trabalhista, advogados,

procuradores e auditores fiscais do trabalho, e todos os demais militantes que, de

algum modo, lidam com a interpretação e aplicação do Direito do Trabalho.

Entende-se que a esses profissionais, investidos de poder de influência sobre

a compreensão e formação de opinião de outras pessoas, desprovidas de um

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conhecimento técnico jurídico-trabalhista, cabe o fundamental papel de não encarar

com naturalidade e ar de fatalidade os ataques sofridos pelo Direito do Trabalho, a fim

de que, tanto em plano prático quanto ideológico, os intentos flexibilizatórios possam

se deparar com atos de resistência, tendo os seus efeitos destrutivos ao menos

minimizados.

8.4 Buscando sentidos e mecanismos práticos no plano jurídico-trabalhista:

autogestão do tempo, redução da jornada de trabalho, “segundo cheque”,

atuação sindical

Quanto à questão de ordem cultural que mantém relação intrínseca com a

presente pesquisa, considerando que a análise que se buscou promover acerca das

mutações do trabalho, das relações de trabalho e do Direito do Trabalho no bojo da

sociedade do consumo ancorou-se, sobretudo, na profunda alteração de valores

vivenciada, reconhece-se que traçar uma proposta ou um plano objetivo de atuação é

uma tarefa demasiadamente complexa, pretensiosa e mesmo inviável.

Fato é que, tendo sido o consumismo aqui apontado como o grande

responsável pela acentuação da racionalização econômica do trabalho e da vida

humana em todos os seus aspectos, influenciando diretamente no comportamento

pela classe trabalhadora de caráter predominantemente passivo e, não raramente,

cooperante diante dos intentos exploratórios do capital, não há como se desvencilhar

da ideia de que combatê-lo ou minimizá-lo produziria impactos positivos sobre um

possível resgate da valorização das esferas sensíveis da vida humana, contribuindo

para o que Gorz denomina de “cultura do trabalho” e “cultura do viver”38.

Mas acredita-se que a lógica inversa também pode ser extremamente válida,

de modo que alterações valorativas promovidas no interior do universo do trabalho,

sobretudo por meio do Direito do Trabalho, podem vir a produzir impactos positivos

significativos sobre a cultura do consumo. A esse respeito, concorda-se com Gorz

38 A respeito do que se denomina ”cultura do trabalho” e “cultura do viver”, entende-se, a partir das considerações de André Gorz, que a racionalização econômica, ao tornar o sujeito ausente do sentido das suas operações, subtraindo-lhe a sua subjetividade, converge, naturalmente, para uma “filosofia da morte do homem”, para uma “teoria do sujeito como ‘não-existência no vazio da qual verte o discurso’ (expressão de Michel Foucault)”. Segundo o autor, a prevalência das técnicas contábeis “[...]implica a absoluta ingenuidade das condutas operatórias, incapazes de dar contas de si mesmas”, determinando um movimento no sentido de ”autonegação do sujeito” e de negação do próprio viver. (GORZ, André. Metamorfoses do Trabalho: crítica da razão econômica. Tradução de Ana Montoia. São Paulo: Anablumme, 2003, p. 124)

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(2003, p.226) no sentido de que a medida jurídico-trabalhista que, talvez, apresente o

maior potencial para promover esta alteração valorativa, repercutindo diretamente na

cultura do consumo, consiste na possibilidade de “autogestão do tempo de trabalho”,

voltada a implementar, de modo gradativo, uma redução das jornadas de trabalho.

Explica o autor que, a possibilidade de autogerir o tempo de trabalho, ao

permitir à pessoa ampliar o seu tempo livre e, consequente, o seu contato com as

esferas sensíveis da vida, pode permitir que ela escape ao domínio da racionalidade

econômica, “[...] descobrindo que mais não quer necessariamente dizer melhor,

descobrindo, portanto, que pode haver reivindicações mais importantes que as

reivindicações salariais”. (GORZ, 2003, p.17)

Partindo desta premissa, Gorz acreditando ser possível se pensar em uma

outra sociedade, considera que a diminuição progressiva do trabalho racionalizado

economicamente permitirá que predominem na sociedade “[...] as atividades

autônomas; o ‘tempo livre prevalecerá sobre o tempo coagido, o lazer sobre o

trabalho’; o lazer não será mais repouso ou compensação, mas tempo essencial e

razão de viver. Trata-se do ideal de se construir uma “sociedade do tempo liberado”,

na qual “ o cultural e o societal predominem sobre o econômico”.

Sem essa mutação que, segundo Gorz, “mereceria ser chamada de

‘revolucionária’, não fosse o termo ter sido desmonetarizado e condenado pela moda”,

as transformações em curso, principalmente no campo das evoluções tecnológicas,

condenam as economias de trabalho e de ganho de tempo que o desenvolvimento

acelerado de novas técnicas engendra a produzirem apenas exclusão social,

pauperismo, desemprego em massa e uma intensificação da “guerra de todos contra

todos”. (GORZ, 2003, p.177)

Neste sentido, o autor propõe uma “política do tempo” que reparta as

“economias de tempo de trabalho conforme princípios não da racionalidade

econômica”, mas da justiça social, de modo que, reduzindo o tempo de trabalho, cada

um e cada uma possa trabalhar menos, permitindo, ainda, que mais pessoas

trabalhem. (GORZ, 2003, p.186)

Contudo, Gorz acredita que uma redução objetiva da jornada de trabalho não

deve ser o foco: “a redução do trabalho tem uma qualidade muito diferente quando se

libera tempo na escala da jornada, da semana, do ano ou da vida ativa; e, sobretudo,

quando os intervalos de tempo liberado podem, ou não, ser escolhidos por cada

um(a)”. Explica que “a redução linear do tempo de trabalho, com a manutenção de

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horários cotidianos rígidos e uniformes é a menos promissora e a menos eficaz das

liberações de tempo”. Elucidando o seu raciocínio em termos práticos, e tendo em

vista o cenário jurídico-trabalhista francês, Gorz faz as seguintes considerações:

Pois é, evidentemente, impossível introduzir de maneira uniforme nas empresas e para todo o pessoal a semana de 35, 30 ou 25 horas em cinco dias. Mas é possível, em troca, introduzir para todo mundo uma duração anual de trabalho de 1.400, ou 1.200, ou 1.000 horas por ano (no lugar das 1.600 atuais), repartidas em 30, 40 ou 48 semanais ou ainda nos 120 a 180 dias que, em cada oficina, escritório, serviço ou empresa, os membros do pessoal repartem entre si nas reuniões trimestrais ou mensais, em função, ao mesmo tempo, das obrigatoriedades técnicas e das necessidades ou desejos de cada um(a): a idade, a situação familiar, o afastamento do lugar de trabalho, o projeto de vida etc. podem dar direito de preferência sobre certos dias da semana ou sobre certos meses do ano. (GORZ, 2003, p.190)

Veja-se, pois, que a linha de raciocínio apresentada se baseia na ideia de que

“a dessincronização dos horários e dos períodos de trabalho é condição indispensável

para uma redução substancial da sua duração”. E, segundo Gorz (2003, p. 191), a

vantagem dessa logística é clara: “a liberação de um tempo fracionado – algumas

horas por semana, alguns dias por mês, algumas semanas repartidas ao longo do

tempo – proporcionará, sobretudo, uma extensão dos lazeres passivos [...]”,

permitindo o desenvolvimento de uma “sociedade de cultura”, na qual os projetos

individuais e coletivos de cunho não econômico encontrarão espaço e oportunidade

para serem priorizados.

Sob o prisma da pragmática, realça o autor que é fundamental e plenamente

possível que essa redução do trabalho, a ser alcançada gradativamente pela

“autogestão do tempo”, ocorra sem a perda de rendimentos pelo trabalhador, desde

que para isso, ela ocorra por meio de “patamares plurianuais, segundo um calendário

fixado de antemão”, sendo “decidida ex ante e não ex post”, ou seja, encarada como

a finalidade à qual as demais variáveis deverão se ajustar em um lapso de tempo

determinado. Afinal, foi seguindo esta mesma lógica de adaptação que institutos já

existentes no âmbito do Direito do Trabalho, como os feriados pagos, a jornada de

oito horas, os seguros sociais, dentre outros, foram instituídos.

Assim, a proposta desenvolvida por Michel Albert e apresentada por Gorz

(2003, p.197) é no sentido de que, a cada vez que a duração do trabalho for rebaixada,

os salários o sejam rebaixados na mesma proporção. Contudo, a perda que disso

resulta para o assalariado será compensada por uma espécie de “caixa de garantia”,

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que Guy Aznar chama de ‘”segundo cheque”. Este instituto do “segundo cheque”,

explica Gorz, “deverá remunerar as horas liberadas do trabalho pela mesma tarifa das

horas trabalhadas” e converter-se num fundo de viés socialmente redistributivo, a ser

aplicado pelo Estado em medidas que promovam a distribuição das riquezas

socialmente produzidas.

Em relação a essa proposta de redução da jornada mediante a instituição do

“segundo cheque”, apesar de não se discordar dos seus potenciais efeitos benéficos

e transformadores do ponto de vista social e humano, entende-se que, no cenário

brasileiro, a sua aplicabilidade estaria fortemente sujeita a se deparar com desafios

que esbarrariam numa questão de ética política. Isso porque, ao se transferir para o

Estado a responsabilidade de gerir e redistribuir percentual da renda que antes

beneficiava diretamente a cada trabalhador, corre-se o risco de que, diante de uma

política de gestão não comprometida com a seriedade e com os ideais sociais, a

aplicação desta “caixa de garantia” ocorra de modo desvirtuado e acabe não

cumprindo o objetivo de gerar melhorias sociais das quais os trabalhadores sejam os

grandes beneficiados.

Considera-se, ainda, que tal proposta poderia encontrar uma grande

resistência, ao menos inicial, por parte da própria classe trabalhadora, que, tomada

pelo espírito individualista e imediatista da sociedade líquido-moderna, poderia não

encarar como positiva a destinação de parte daquilo que antes integrava o seu salário

e, portanto, refletia no seu poder de consumo, para um fundo social.

Mas, apesar da alta probabilidade de que essa resistência inicial ocorra,

pondera Gorz que a imposição de medidas voltadas a reduzirem o tempo de trabalho,

ainda que isso implique uma redução da renda, ao contribuir para uma aproximação

do trabalhador das demais esferas da sua vida, para além do trabalho e seu

consectário lógico, o consumo, podem promover uma reviravolta cultural na vida

pessoal e se tornarem bem vistas e desejadas pelo trabalhador. Nesse sentido, o

depoimento prestado por um operário francês, que, em virtude da crise econômica

vivenciada no país, teve a duração do seu trabalho reduzida de 48 para 40 horas

semanais, e pouco mais tarde, para 32 horas em 4 dias:

Então, pouco a pouco, foi um fenômeno inacreditável, de recuperação física. A noção de grana perdeu a importância. Não digo que tenha desaparecido, mas, no fim, mesmo os caras que tinham família para sustentar, diziam: “Agora é melhor que antes”. É verdade que perdemos muita grana,

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perdíamos 40.000 ou 50.000 comparado com antes [ou seja, 25% dos recebimentos anteriores], mas isso, muito rápido, os caras não reclamavam mais, fora um ou dois. Foi nesse período que a contestação nasceu, porque a gente começou a discutir bastante... Foi aí também que as relações de amizade nasceram: não era só as conversas políticas, conseguíamos contar umas histórias da vida afetiva, falar da impotência, do ciúme, das relações do casal... O curioso é que esse período de desemprego parcial o trabalho “por fora” diminuiu... Foi nesse momento também que trabalhar na fábrica no sábado à tarde ou no sábado à noite pareceu um horror. Antes os caras aceitavam, mas agora, reaprendíamos cada vez mais o que a palavra viver queria dizer, trabalhar no sábado, parecia coisa demais...a mesma coisa nos domingos e feriados, quando se paga três vezes mais, a direção confessou que tinha dificuldades para entrar quem topasse... Houve uma mudança na mentalidade, não se compra mais os caras como antes. (GORZ, 2003, p.119)

Contudo, diante de todas as exposições ora realizadas, apesar de se

concordar com o potencial das alterações no mundo do trabalho para produzirem

repercussões positivas sobre a prevalência de uma “cultura do viver”, reconhece-se

que um efetivo combate, no plano macro, à racionalidade econômica potencializada

pelo consumismo pressupõe um combate interno, de cunho psíquico, do ser humano

com a sua consciência, que, foge, portanto, ao campo de uma possível atuação

determinística e objetiva da ciência. Mas reconhece-se, também, que fatores

comportamentais individuais, influenciados, precipuamente, por um processo de

autoconscientização, podem ocorrer e surtir efeitos positivos mesmo sem que, no

plano macro, a cultura do consumismo tenha deixado de existir.

Como importante fator de estímulo a esse processo de autoconscientização

do trabalhador, fundamental para que a “consciência de classe” – e não a consciência

consumerista de cunho fortemente individualista – impere em âmbito trabalhista,

entende-se que às entidades sindicais caberia o desenvolvimento de campanhas em

prol não só do trabalho consciente, mas do consumo consciente. Conforme advertido

por Gorz (1968, p.64), “a disjunção entre os dois aspectos é menos possível que

nunca se o movimento operário quiser conservar a sua autonomia”.

Fato é que uma atuação sindical restrita às lutas por aumentos salariais – que

muito bem reflete a atual realidade sindical brasileira –, apenas atende aos interesses

do trabalhador como consumidor, pactuando muito mais com a lógica do capital do

que com os propósitos humanos e sociais da seara justrabalhista. Assim, nas palavras

de Gorz:

[...] lutar contra a exploração e pelas reivindicações de consumo, sem colocar em questão as finalidades da exploração (isto é, a acumulação) e modelo da hierarquia dos consumos na sociedade capitalista avançada, é colocar a

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classe operária em posição subalterna em relação às escolhas fundamentais, aos valores, à ideologia dessa sociedade, reforçando-a até mesmo pelos sucessos de detalhes que os sindicatos podem obter. Os sucessos – aumento de salários, do tempo de férias, da massa de consumos individuais – serão, com efeito, logo retomados pelos que (Governo e monopólios) os concederam, conforme o clássico slogan do “bem-estar para todos”; uma fonte de lucros suplementares (com ou sem alta dos preços) para as indústrias de bens de consumo. (GORZ, 1968, p. 64-65)

Isso quer dizer que, enquanto as reivindicações da casse trabalhadora,

intermediadas pelas entidades sindicais, permanecerem quantitativas e não

qualitativas, priorizando o viés econômico, permanecerão inaptas a produzir qualquer

profunda alteração no sistema de exploração que, mediante a imposição de um

modelo individualista de consumo desmedido, volta-se contra a própria classe

trabalhadora, fulminando qualquer possibilidade de edificação de uma “consciência

de classe”. (GORZ, 1968, p. 65)

Assim, nos termos das reflexões que se propõe promover no último tópico

deste estudo, acredita-se que a conscientização e a consequente alteração de

padrões comportamentais individuais quanto aos hábitos de consumo, já sinalizada

por diversos movimentos em plano nacional e, sobretudo, internacional, pode vir a

representar o início de uma nova guinada nos rumos desta sociedade, ainda fundada

predominantemente no consumo, reverberando positivamente no mundo do trabalho

e, quem sabe, no âmbito do Direito do Trabalho.

8.5 O Direito do Trabalho e o futuro: perspectivas à luz de uma ordem pós-

consumista

A sociedade, mesmo quando parece ter estagnado em seus valores e suas

práticas, está em constante processo de mutação. Contudo, os processos de

transformação social, além de lentos gradativos, não ocorrem de maneira uniforme.

Por essa razão é que, do ponto de vista histórico, sempre que se apresenta

determinado momento ou acontecimento como o marco de uma mudança, jamais se

deve compreender que antes deste marco as coisas permaneciam estáticas e que

somente a partir deste marco foi que tudo se transformou.

Conforme já pontuado, a relativização é fundamental para se compreender o

próprio estudo sociológico acerca das alterações sofridas no mundo do trabalho, que

se buscou promover nesta pesquisa. Todos os marcos históricos e temporais de

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transição apresentados, ao serem defrontados com a realidade, conduzem à

percepção de que, ao se falar, por exemplo, da transição do modelo de produção

fordista para o toyotista ou da transição de uma “sociedade de produtores” para uma

“sociedade de consumidores”, não se está afirmando que antes do marco apontado

já não existissem traços do “novo” ou que após esse marco tenham deixado de existir

quaisquer traços do “velho”.

Assim, acredita-se que no atual momento histórico vivenciado, apesar da

aparente sensação de estarmos inseridos numa sociedade do consumo distante ou

mesmo isenta de um “fim”, sinais de uma possível transformação paradigmática de

valores já podem ser percebidos por meio de condutas que denotam uma tendência

de maior fragilidade do ideal consumista.

Neste sentido, Offe (1989, p.85) considera que estamos diante de um

considerável aumento de atitudes “pós-consumistas”, que, apesar de ainda não

expressarem uma alteração de valores significativa, ”[...]reflete, pelo menos entre a

chamada ‘nova classe média pós-industrial’, a maior fragilidade de uma índole

consumista específica do capitalismo[...]”, que tem levado as sociedades a se

aproximarem mais dos “limites naturais e sociais do crescimento”.

Na mesma linha, Giddens (1997, p. 231) aponta a emergência do que

denomina “ordem pós escassez”, que se consolida na medida em que os indivíduos

passam a reestruturar “[...] ativamente as suas vidas profissionais, valorizando outras

coisas além de sua simples prosperidade econômica”, sendo os alemães um grande

exemplo disso.

Explica o autor que “a reestruturação do tempo, o último recurso escasso para

o ser humano finito, introduz flexibilidades no ciclo de vida que são inimagináveis

quando uma carreira é simplesmente aceita como ‘destino’ “. E é justamente essa

concepção de “destino”, guiada pelo ideal de uma vida de trabalho remunerado até a

aposentadoria, calcada numa “compulsividade pelo trabalho” em virtude, sobretudo,

dos ganhos econômicos por ele proporcionados, que parece estar se alterando.

(GIDDENS, 1997, p. 231)

Além disso, Giddens aponta como outro fator de influência sobre a

emergência de uma “ordem pós-escassez” as contradições geradas pelo sistema de

abundâncias, intrínseco à lógica do consumismo. Segundo o autor,

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Aqui há uma íntima conexão com as preocupações ecológicas. Os “males” gerados pelo industrialismo promovem um ímpeto para a mudança em si e por si. Não importa como isso pode ser interpretado, o “crescimento responsável”, por exemplo, introduz necessariamente outros valores além daqueles exclusivamente econômicos. (GIDDENS, 1997, p.232)

No plano prático, a auto evidência das contradições desse sistema de

abundâncias pode ser constatada por meio de inúmeros exemplos, como a

disseminação da utilização de veículos, que, além do agravamento da poluição, tornou

o tráfego nos grandes centros tão atravancado que, do ponto de vista prático, não

raramente, torna-se mais rápido caminhar do que se valer do veículo – cuja aquisição,

muito provavelmente, demandou esforço financeiro e, sobretudo, tempo de trabalho.

(GIDDENS, 1997, p.232)

Neste sentido, em decorrência de um processo de autoconscientização

perante as múltiplas contradições e malefícios decorrentes de uma cultura consumista

e materialista, que ao mesmo tempo em que promove a abundância intensifica a

miséria, a desigualdade social, a degradação ambiental e a própria degradação

humana, já se constata a existência, em âmbito internacional e inclusive nacional, de

movimentos de contracultura, que, contestando a lógica consumista, apresentam

padrões comportamentais alternativos e socialmente promissores.

O fenômeno conhecido como “minimalismo”, originário de movimentos

artísticos do século XX, é um grande exemplo desta tendência contestatória no plano

do consumo. Movidos pela consciência de que felicidade e bem-estar não se

encontram vinculados ao ideal de abundância material, os adeptos do minimalismo

praticam exatamente o oposto daquilo que é preconizado pelo consumismo: o

desapego de bens materiais, com respaldo no ideal de que “o menos é mais”.

Segundo o pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense,

Marcelo Vinagre Mocarzel, entrevistado em matéria publicada em 09 set. 2017, pela

BBC Brasil, "enquanto expressão comportamental da sociedade, o minimalismo é um

reflexo de movimentos contraculturais anteriores, como o punk e o hippie, que

questionaram a sociedade de consumo e seus excessos", valorizando mais as

experiências, as esferas não econômicas da vida humana e as pessoas, em

detrimento das posses materiais.39 Assim, muito mais que um padrão de consumo não

39MODELLI, Laís. O prazer do desapego: minimalistas defendem que ter menos coisas cria mais

liberdade. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/geral-41077549. Acesso em: 30 out. 2017.

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consumista, o minimalismo propõe um estilo de vida, regido, sobretudo, pelo princípio

da não acumulação.

O documentário “Minimalismo: um documentário sobre as coisas

importantes”40 relata a história de vida dos próprios autores do documentário, Joshua

Fields Millburn, ex-empresário, e Ryan Nicodemus, ex-publicitário, que abandonaram

as suas carreiras profissionais bem-sucedidas, a fim de adotarem um estilo de vida

no qual viveriam com menos coisas, mais tempo livre e mais energia vital41. Note-se

que, neste caso, a adoção de um novo padrão comportamental em relação ao

consumo foi o ponto de partida para que Joshua e Ryan abdicassem de um trabalho

que, apesar de lhes render salários de seis dígitos, tornando-os consumidores

realizados, consumiam todo o tempo livre, a vida afetiva e a saúde de que dispunham,

tornando-os, em contrapartida, seres humanos frustrados.

Seguindo esta mesma tendência de alteração do padrão comportamental

consumista, cita-se a comunidade virtual extremamente popular na Alemanha

denominada Free Your Stuff (FYS), que preconiza exatamente o que o seu nome diz:

“liberte as suas coisas”. Em 2014, a cidade de Berlim já contava com 19 mil membros,

praticando o princípio da não acumulação material e do consumo consciente por meio

do desapego, do escambo e do compartilhamento de bens materiais.42

No cenário brasileiro, pesquisa realizada em 2007 pelo IBOPE, demonstrou

que 63% dos “consumidores do século XXI” estão dispostos a praticarem o ideal do

“consumo consciente”, alterando os seus estilos de vida principalmente para

beneficiarem o meio-ambiente.43 Neste sentido, também já integram a realidade

brasileira algumas campanhas, principalmente por meio de plataformas virtuais,

voltadas a incentivar práticas consumeristas alternativas, que, guiadas pelo senso de

responsabilidade social e ambiental, estimulam o desenvolvimento de hábitos de

consumo não consumistas.

Como exemplo, podem ser citadas as seguintes plataformas: “99trocas”, que

reúne pessoas com interesses comuns a fim de promover a troca de objetos usados;

40 Tradução efetuada a partir do título originário “Minimalism: A Documentary About the Important Things”. Documentário disponível no Netflix. 41 MODELLI, Laís. O prazer do desapego': minimalistas defendem que ter menos coisas cria mais liberdade. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/geral-41077549 Acesso em: 30 out. 2017. 42 Informação disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/12/o-fenomeno-pos-consumismo-na-alemanha.html Acesso em: 10 nov. 2017. 43 Informação retirada do site do IBOPE. Consumidor do século XXI. Disponível em: http://www4.ibope.com.br/Consumidor/ Acesso em 25 out. 2017.

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“Mée”, que mediante o slogan “Você não precisa de dinheiro para ter coisas novas”,

incentiva o escambo entre as pessoas que se encontram territorialmente próximas,

por meio de um sistema de geolocalização; ”Descolaaí”, que com o slogan “Ajude o

planeta evitando que outros produtos sejam produzidos com extração de novos

recursos naturais”, incentiva e intermedeia a reutilização de produtos bem como a

troca de prestações de serviços.44

Por fim, outro movimento contemporâneo de grande expressão consiste no

“Movimento Zeitgeist”, sendo o termo em alemão “zeitgeist” empregado para se referir

ao “espírito do tempo” ou “espírito de uma época”. Fundado em 2008, o movimento

corresponde a uma rede global – à qual integram grupos nacionais, denominados

“capítulos”, e grupos regionais, denominados “subcapítulos” –, empenhada em

promover uma nova concepção dominante cultural, moral e intelectual da época atual,

instruindo o público acerca das reais causas de vários dos problemas pessoais,

sociais e ecológicos enfrentados. 45

Contando com um “capítulo” no Brasil (Movimento Zeitgeist Brasil), o

movimento objetiva “a criação de uma sociedade global verdadeiramente pacífica,

responsável e sustentável”, propondo, para tanto, ações comunitárias, projetos,

eventos e mídias de conscientização acerca dos valores que devem nortear uma

existência humana digna e uma sociedade sustentável.46 Assim, apesar de não

apresentar propostas diretas de combate ao consumismo, considera-se que o

movimento apresenta um grande potencial para atuar nas raízes axiológicas que

norteiam o comportamento humano, levando, naturalmente, a uma postura

sustentável e consciente quanto ao consumo.

Pois bem, diante das tendências ora apontadas, reconhece-se que a

viabilidade de se pensar numa ordem “pós-consumista” ou “pós-escassez” num

contexto em que diversos países, como no caso do Brasil, ainda se encontram num

estágio de desenvolvimento econômico defasado, pode ser contestada sob o

fundamento de que o “pós-consumismo” ou a “pós-escassez” tratam de um “luxo” do

qual apenas estarão aptos para desfrutar aqueles que, já tendo atingido o ápice de

44 Disponível em: http://consumocolaborativo.cc/como-funciona-o-consumo-colaborativo/ Acesso em: 15 nov. 2017. 45 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_Zeitgeist Acesso em: 13 nov. 2017. 46 Disponível em: http://movimentozeitgeist.com.br/conheca-o-movimento/movimento-introducao Acesso em: 13 nov. 2017.

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um sistema de abundâncias, encontram-se materialmente preparados para retirar o

desenvolvimento econômico do foco.

Contudo, a esse respeito, concorda-se com Giddens (1997, p.233) quando ele

diz que a possibilidade de desenvolvimento de uma “ordem pós-escassez” não se

limita aos países de Primeiro Mundo, estando “longe de ser algo importante para os

setores economicamente adiantados do globo”. Isso porque, ao se falar de “pós

escassez” ou de “pós-consumismo” não se pretende dizer que foi alcançado um

estágio no qual o desenvolvimento econômico, já tenho atingido o seu ápice, deva

cessar ou retroceder.

A questão em pauta não é pragmática e tampouco numérica, mas

essencialmente principiológica e axiológica, envolvendo, sobretudo, uma alteração no

sistema social e pessoal de prioridades. Assim, conclui Giddens que, em termos de

princípios, “uma sociedade pós-escassez é uma sociedade em que o objetivo do

‘desenvolvimento’ aparece precisamente sob severo exame. Aqui, o rico tem muito a

aprender com o pobre; e o Ocidente, com as outras culturas que no passado ele

simplesmente ameaçou de extinção”.

Deste modo, atendo-se ao cenário brasileiro, acredita-se que, apesar da

sociedade contemporânea ainda encontrar-se fundada no consumismo, já há uma

sinalização no sentido de alteração no padrão comportamental do consumo,

convergindo para a emergência de uma possível ordem “pós-consumista”. E, tendo

em vista a relação direta, que conforme demonstrado por esta pesquisa, existe entre

os institutos do trabalho e do consumo, acredita-se também que ao lado deste

potencial novo perfil de consumidor e de consumo estará, também, um potencial novo

perfil de trabalhador e de trabalho.

Fato é que um consumidor guiado pelos ideais da não da acumulação e da

sustentabilidade tende a se reaproximar da categoria do “suficiente”, estabelecendo

um leque de necessidades mais restrito, menos complexo e menos volátil, pautado no

“essencial”. Isso quer dizer que o consumidor consciente adquire capacidade crítica

para se posicionar com maior autonomia perante o sistema de necessidades imposto

pela sociedade de consumo, priorizando outras esferas da sua vida, além da material.

Isso também quer dizer que este consumidor menos vulnerável muito provavelmente

será um trabalhador menos vulnerável diante da tendência de racionalização

econômica do seu trabalho – que, conforme demonstrado, apesar de representar uma

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característica intrínseca às relações de trabalho capitalistas, foi intensificada

sobremaneira com o advento do consumismo.

Consequentemente, acredita-se que, em face de um contingente de

trabalhadores menos vulneráveis aos caprichos do capital, guiados por prioridades

extra econômicas, a tendência de patrimonialização ou racionalização econômica do

Direito do Trabalho venha a ser freada ou mesmo revertida.

Afinal, diante deste possível novo cenário, o mais provável é que a lógica

predominantemente econômica do Direito do Trabalho torne-se contestada pela

própria classe trabalhadora, que, sobretudo por meio dos sindicatos, poderá

pressionar a classe empresarial, no âmbito das negociações coletivas, no sentido de

se construir, pouco a pouco, um Direito do Trabalho que transcenda a esfera

patrimonial da vida humana e cumpra o seu compromisso de efetiva proteção do

trabalhador na qualidade de ser humano.

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9 CONCLUSÃO

Gorz, ainda no final do século XX, referindo-se ao contexto de crise da

sociedade fundada no trabalho, vivenciada na França, proferiu as seguintes palavras:

“Quando uma utopia desmorona, é toda a circulação de valores que regulam a

dinâmica e o sentido de suas práticas que entra em crise. É esta a crise que vivemos”.

(GORZ, 2003)47

Hoje, no contexto brasileiro, entende-se também ser esta a crise que vivemos:

uma crise ética, que apesar de tachada de crise econômica ou de crise política,

envolve, para além de números, partidos políticos, índices de desenvolvimento

econômico e estatísticas, toda a circulação de valores que regulam a dinâmica e o

sentido das práticas sociais.

A vida pessoal e o metabolismo social, tão ricos em interações, propósitos e

experiências, regidos por uma lógica essencialmente material, instrumental e,

sobretudo, econômica, distanciam-se, cada vez mais, de valores e ideais sensíveis,

como o afeto, a cooperação, a solidariedade. Assim, as trajetórias humanas, mesmo

diante do leque de fartas opções e diversidade de escolhas que a sociedade do

consumo proporciona, têm se tornado, paradoxalmente, apenas reproduções

automáticas e individualizadas de um modelo de vida pré-fabricado, no qual bem-estar

e felicidade confundem-se com a renda que o consumidor-trabalhador pode alcançar

ao final do mês.

A esse respeito, Arendt (2014, p.167) ponderou que o grande perigo é que “tal

sociedade, deslumbrada pela abundância de sua crescente fertilidade e presa ao

suave funcionamento de um processo interminável”, torne-se incapaz de reconhecer

a sua própria futilidade, “a futilidade de uma vida que ‘não se fixa nem se realiza em

assunto algum que seja permanente, que continue a existir depois de terminado [seu]

trabalho’ ” ou, no máximo, depois de consumidos os frutos do trabalho.

Realça-se que, por meio da análise crítica promovida acerca dos institutos

trabalho e consumo não se pretendeu questionar o fato de serem eles dois grandes

eixos da existência humana, imprescindíveis para uma vida minimamente digna.

Contudo, acredita-se que reduzir a existência à máxima capitalista “trabalhar para

consumir” contradiz o próprio potencial dignificante de ambos os institutos, trabalho e

47 Frase retirada da obra de Gorz (2003).

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consumo. Afinal, despender mais de um terço das horas diárias em um trabalho

tendencialmente precário, pelo qual a pessoa nutre cada vez menos afeição, a fim de

que, nas poucas horas vagas que lhe restarem, os frutos deste trabalho sejam

revertidos em um consumo inapto a promover qualquer realização duradoura, beira a

irracionalidade e a autoflagelação.

E o porquê deste padrão comportamental autômato, desumano, ter sido

imposto e estar sendo reproduzido com tanta fidelidade pelos seres humanos foi

exatamente um dos pontos que se buscou compreender por meio deste estudo, cujos

dados e informações coletadas convergiram para a constatação de que a

disseminação da racionalização econômica da vida, em todos os seus aspectos, está

vinculada a um processo de franca inversão de valores.

Eficiência, velocidade, quantidade, materialismo, individualismo, competição,

são exemplos de valores que, na sociedade do consumo, prevalecem em detrimento

de outros, como vocação, afeto, espontaneidade, coletividade, solidariedade. Sob o

prisma das relações de trabalho, as implicações práticas deste complexo axiológico,

de modo sintético, são: pessoas em busca de trabalhos que “paguem bem”, dispostas

a trabalharem o máximo de horas e desprovidas de qualquer senso de coletividade,

vez que movidas pelo interesse de se realizarem por meio de um consumo que

valoriza a individualidade das experiências, aquisições e sensações.

Poderíamos, pois, diante da premissa de que as relações de trabalho líquido-

modernas refletem justamente o novo complexo valorativo inaugurado pela

restruturação produtiva do capital, entender que, ao Direito do Trabalho, cabe

adequar-se a este cenário. Contudo, tendo em vista que os efeitos colaterais do

padrão de comportamento – ditado pela heteronomia das necessidades e desejos –

preconizado pelos novos parâmetros axiológicos vigentes, atingem diretamente a

dignidade do consumidor-trabalhador, que, ao priorizar o viés econômico do seu

trabalho, compactuando com a lógica exploratória do capital, “vende” não apenas a

sua força de trabalho, mas a sua saúde, o seu tempo de lazer, o seu convívio familiar

e as suas relações afetivas, não se julga correto, sob o prisma protetivo e humano,

simplesmente acatar o curso das coisas.

Fato é que, conforme advertido por Gorz (1968, p. 169), atividades que

transmitem um sentido cultural, produzindo e difundindo valores extra econômicos,

como as atividades educativas, artísticas, científicas e teóricas, só podem ser

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reguladas pelo dinheiro às custas do que ele denomina “patologias do mundo da vida”,

ou, “para dizer de outro modo, de sua desarticulação”.

Talvez, seja por isso que o trabalho, compreendido como uma atividade de

potencial, simultaneamente, cultural, artístico, educativo e científico, submetido a uma

racionalização econômica sem precedentes, pareça ter se desarticulado tanto; talvez,

seja também por isso que o Direito do Trabalho, historicamente compreendido como

uma ciência de vínculos indissolúveis com as esferas sensíveis da vida humana,

esteja dando tantos sinais de desarticulação.

A sociedade do consumo, pensada, articulada, criada e imposta pelo capital,

parece ter atendido, com excelência, ao seu anseio de retomar os patamares de

expansão econômica, disseminando valores e ideais que enaltecem muito mais o

sucesso econômico da vida pessoal do que a própria vida. Contradição? Há quem

entenda que sim, há quem entenda que não. A grande questão é que, mesmo aqueles

que acreditam que sim, acabam coagidos a adotarem este comportamento

contraditório – ainda que em menor medida –, uma vez que deixar de segui-lo implica

retaliações que transcendem a esfera econômica, situando os não praticantes numa

zona de total invisibilidade social.

Tal raciocínio conduz à percepção de que a “ditadura” aparentemente

econômica do capital é, pois, totalizante. “Tanto quanto sobre a produção e a

distribuição das riquezas, a ditadura do capital se exerce sobre a maneira de produzi-

las, sobre o modelo de consumo e sobre a maneira de consumir, sobre a maneira de

trabalhar, de pensar, de viver”. (GORZ, 1968, p.137). Do mesmo modo, exerce-se

[...]sobre os operários, as fábricas e o Estado, exerce-se sobre a visão do futuro da sociedade, sobre sua ideologia, suas prioridades e seus fins, sobre o aprendizado que fazem os indivíduos de si próprios, de suas possibilidades, de suas relações com o outro e com o resto do mundo. É econômica, política, cultural, psicológica, ao mesmo tempo; é total. (GORZ, 1968, p.137)

E, justamente por ser totalizante, é que se acredita que a “ditadura” do capital

não pode ser combatida apenas no plano econômico. Retirar o viés unicamente

econômico das reações e movimentos de resistência diante dos intentos exploratórios

do capital é algo imprescindível se a finalidade for desarmá-lo, e não somente alcançar

concessões paliativas, que acabam fortalecendo e perpetuando a racionalização

econômica de esferas tão sensíveis da vida humana, como o trabalho.

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Com números, cálculos, dinheiro, o capital sabe lidar perfeitamente bem e,

por esta razão, pretende que a linguagem de negociação seja sempre uma linguagem

numérica, contábil, monetária. No âmbito das relações de trabalho, isso implica

reconhecer que, enquanto as pretensões, garantias e direitos trabalhistas

permanecerem envoltos por propósitos predominantemente monetários, o Direito do

Trabalho será um direito muito mais próximo da linguagem (e, portanto, dos objetivos)

do capital do que dos próprios trabalhadores.

Assim, entende-se que a luta contra a crise ética que atinge o trabalho, as

relações de trabalho e o Direito do Trabalho, no bojo da sociedade do consumo,

impondo “adequações” que contrariam os seus princípios, valores e propósitos

originários, é uma luta cujo principal desafio é trazer para a centralidade dos embates

as questões sociais e humanas que afligem o mundo do trabalho, em detrimento das

meramente patrimoniais.

Proteger o trabalhador como ser humano deve ser o objetivo prioritário e

inafastável do Direito do Trabalho, sobretudo, quando se vive num modelo de

sociedade que tende a reduzir o trabalho a mero instrumento de consumo e a força

de trabalho e o trabalhador a meros “objetos” de consumo.

A pretensa dignificação pelo consumo não pode ser sobrevalorizada – nem

pela pessoa, nem pela sociedade e, tampouco, pelo Direito – a ponto de comprometer

a dignidade do trabalho e a própria dignidade do trabalhador. Aceitar esta lógica é

contrariar a própria natureza humana, que pressupõe não uma escolha entre um

trabalho digno ou um padrão de consumo socialmente aceitável, mas a coexistência

de atos de trabalho e atos de consumo que, juntos, dignifiquem a existência humana.

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