a arte pré-histórica da ilha do campeche
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A Arte Pré-histórica da Ilha do Campeche Marco Aurélio Nadal De Masi, Ph. D.
Introdução
Este texto foi produzido, inicialmente , para uma documentação em vídeo VHS sobre a
arte pré-histórica da Ilha do Campeche, uma vez que apenas levantamentos fotográficos e
umas poucas cópias em decalques plásticos, foram realizados em pesquisas anteriores.
A Ilha do Campeche está entre 15 ilhas localizadas nos arredores da Ilha de Santa
Catarina, onde se encontra a capital do Estado de Santa Catarina, Florianópolis. A Ilha do
Campeche está situada em frente a praia do Campeche, na região sul da Ilha de Santa
Catarina, onde se encontram outras praias bem conhecidas, como Armação e Pântano do
Sul.
A Pré-história Regional
A arqueologia, até o presente momento, define a existência de três tradições culturais
na costa catarinense. A primeira e mais antiga tradição, com 5020 anos atrás, é a dos
pescadores-coletores, conhecidos pela construção dos sambaquis. Sambaqui é um termo
Guarani que significa monte de conchas. Estes chegam a ter até 20 m de altura e são
considerados por alguns pesquisadores como os maiores do mundo, particularmente aqueles
localizados na região de Laguna , no sul do estado. A segunda tradição é de pescadores-
coletores denominada Tradição Itararé, diferenciada do grupo mais antigo pela presença de
cerâmica Gê nos sítios arqueológicos da área costeira. Gê é uma denominação de um
tronco lingüístico de grupos Indígenas do Brasil Central, onde provavelmente este tipo de
cerâmica teve sua origem e, com o passar do tempo, chegou até a costa catarinense,
provavelmente ao redor de 1300 anos atrás. Embora a cerâmica Gê esteja presente na
costa catarinense, o que poderia estar indicando uma agricultura incipiente, os dados obtidos
até o momento indicam que a dieta dos grupos litorâneos de pescadores-coletores, após a
aquisição da tecnologia de produção de cerâmica Itararé, mantém-se essencialmente
marinha, e não terrestre , como a dieta do grupo caçador-coletor com agricultura incipiente,
que produz esta cerâmica no interior. Alguns indivíduos em sítios da Tradição Itararé , da
área costeira, apresentam dieta essencialmente terrestre. Eles são minoria, e podem estar
indicando a presença destes caçadores-coletores com agricultura incipiente nas
comunidades de pescadores da costa.
A terceira e última tradição cultural é a de grupos agricultores denominados de Tupi-
Guaranis, caracterizada pela presença de cerâmica nos sítios arqueológicos com uma
decoração típica: os corrugados e ungulados e as cerâmicas pintadas. O termo Tupi-
Guarani também é a denominação de um tronco lingüístico de origem amazônica, cujos
povos falantes migraram para o sul, chegando na costa de Santa Catarina ao redor de 910
anos atrás. Resumindo então, teríamos um grupo mais antigo de pescadores coletores
vivendo na costa catarinense desde 5020 anos atrás, que entrará em contato com um grupo
de caçadores-coletores ceramistas com agricultura incipiente vindos do Brasil Central, ao
redor de 1300 anos atrás. Ambos os pescadores-coletores sem cerâmica e pescadores-
coletores ceramistas entrarão em contato com um grupo ceramista agricultor originário na
Amazônia ao redor de 910 anos atrás, 400 anos antes da invasão dos Portugueses, há 500
anos atrás.
A arte rupestre do litoral catarinense jamais foi encontrada, até o presente momento,
em associação direta com quaisquer sítios arqueológicos de uma destas tradições culturais
da pré-história de Santa Catarina mencionados anteriormente. Isto torna difícil saber qual ou
quais grupos culturais realizaram estas inscrições. Da mesma forma, não é possível saber
quando foram realizadas estas inscrições, uma vez que não é possível datá-las, pois são
apenas sulcos nas rochas, sem um contexto estratigráfico ou associação direta com outros
artefatos que podem ser datados. Mas antes de começarmos a pensar em quem ou quais
grupos realizaram este tipo de arte, vamos rever alguns conceitos sobre arte, bem como
apresentar algumas formas de se estudar e explanar a arte pré-histórica.
Arte
De acordo com Robert Layton, arte é um fenômeno difícil de definir porque esta
definição depende da moda e da ideologia de quem a define. Nossos impulsos artísticos
podem ser expressos utilizando-se várias formas de mídia, entre elas a poesia, a dança, a
escultura e as pinturas e, dentro destas formas, utilizaremos outros recursos como o tipo de
linguagem na poesia, o tipo de expressão corporal na dança, a manufatura de formas
tridimensionais na escultura e o uso de pigmentos na pintura. Cada uma destas formas de
expressão de arte obedecem a certas regras, por exemplo, as regras da gramática na
linguagem utilizada na poesia, assim como as regras do estilo na pintura e na escultura, para
representar seus temas.
Para Layton existem duas maneiras de definir arte que ultrapassam os limites culturais
de quem a define, isto é, definições de aplicação universal. A primeira define arte em termos
de sua estética e a segunda define arte como uma comunicação simbólica. Em termos de
estética os objetos são produzidos com a intenção de serem agradáveis esteticamente e
pragmaticamente funcional. Esta abordagem tem uma longa história na cultural ocidental, e
é baseada na idéia de que as qualidades essenciais da arte estão na organização formal,
isto é, na criação da composição balanceada, com expressões quase matemáticas de ritmo e
harmonia. Na arte como comunicação simbólica, os objetos são produzidos para mostrar a
percepção do mundo ao nosso redor, através do uso de imagens.
A investigação da intenção do artista e a resposta dos membros de sua comunidade
são muito importantes. É muito difícil ou mesmo impossível saber os pensamentos e idéias
de um artista. Estes pensamentos e idéias somente podem ser entendidos através dos
meios que o artista usa para comunicá-los. Normalmente, nossa compreensão de tais
pensamentos e idéias expressos na arte não é baseada na experiência de quem a fez, mas
sim nas experiências de nós próprios. Para Layton, portanto , quando utilizamos critérios
estéticos para identificar objetos da arte de outros povos nos deparamos com dois
problemas. Primeiro, nós não podemos imaginar que, no mundo, todo os povos utilizam os
mesmos critérios estéticos que nós ocidentais. Mesmo na nossa própria história, nossos
critérios estéticos mudaram radicalmente. Segundo, nós não podemos assumir que o
significado que certos objetos de arte têm para nós, como pessoas de uma outra cultura, seja
aquele que o artista deu a sua obra. Para o autor, o objeto de arte que alguém observa é
meramente uma tangível expressão cultural, portanto uma construção mental, expressada de
acordo com as convenções culturais de representação visual da sociedade a qual o artista
pertence. Layton ainda nos alerta de que um objeto de arte, provavelmente tem qualidades
representativas em um variado número de níveis culturais.
A nossa tendência natural ao olhar estas inscrições é tentar compreender seu
significado, certamente havendo uma interpretação diferente para cada pessoa que as
observe, uma vez que não temos o artista que as realizou para nos dizer seus significados.
O que torna um pouco mais complicado a interpretação destas inscrições é seu estilo
predominantemente geométrico. Formas geométricas são as mesmas em qualquer lugar do
mundo, mas seu significado pode ser distinto para cada sociedade que as utiliza em sua arte.
Como nossos artistas pré-históricos não estão mais presentes na costa catarinense, e não
deixaram nenhum relato onde pudéssemos resgatar informações sobre as inscrições nas
rochas, é muito difícil sabermos o real significado da arte pré-histórica local.
A arqueologia da arte
Embora existam estas dificuldades quanto à interpretação, há muitas formas de se
trabalhar a arte pré-histórica para se conseguir obter mais informações sobre as mesmas. A
primeira etapa do trabalho do arqueólogo, ao trabalhar com estas inscrições, é documentá-
las da melhor maneira possível, utilizando-se de filmes, fotografias, desenhos e cópias em
plástico, para que as mesmas possam ficar definitivamente registradas. Uma vez
documentadas, estão salvas para que possam ser estudadas em laboratório ou levadas ao
conhecimento do público em geral, através de livros, exposições e documentários como este.
Um relato descritivo de cada inscrição é realizado, muitas vezes sob a forma de uma ficha de
campo, onde dados sobre tamanho, profundidade dos sulcos, posição geográfica, altura do
solo, distância de outras inscrições e outros são registrados. Cada pesquisador registra as
informações que julga serem importantes para sua análise. Uma vez realizada a
documentação básica das inscrições o próximo passo é a caracterização do estilo das
inscrições, o qual é definido pela predominância de um determinado tipo ou motivo.
Pesquisas prévias
Os primeiros estudos realizados, e divulgação das inscrições pré -históricas da costa
catarinense foram realizados por Pe. Rohr, quem acreditava ser esta arte produzida pela
Tradição cultual Tupi-Guarani. Posteriormente , André Prous (1977) fez um estudo
superficial, apresentando os seguintes resultados: Primeiro, a arte rupestre da costa
catarinense são as únicas existentes em todo o litoral brasileiro e não pode ser comparada
com nenhum conjunto de arte pré-histórica conhecido atualmente, sendo considerada
portanto uma criação local, denominada de Tradição Litorânea Catarinense. Segundo, dos
14 tipos representados, 12 são geométricos e dois biomorfos bem geométricos. A
distribuição destes tipos, segundo Prous, parece ser distinta entre as ilhas ao sul e ao norte
da Ilha de Santa Catarina, sugerindo origens distintas.
Após estes estudos iniciais, alguns levantamentos fotográficos forma feitos por
amadores e arqueólogos. Dentre estes destaca-se o levantamento fotográfico de Keller
Lucas, o qual excede sua característica essencialmente documental e peca por realizar uma
interpretação da arte pré-histórica local, utilizando analogia etnográfica sem critérios
científicos, ignorando os estudos realizados por arqueólogos profissionais.
Cabe mencionar também alguns estudos de graduação em antropologia (UFSC) sobre
a reutilização dos motivos das inscrições rupestres da costa catarinense, pela população
moderna, em camisetas ou mesmo em logotipo de empresas.
Aguiar (1997) realizou também um levantamento fotográfico, bem como uma boa
quantidade de cópias das inscrições, em decalque plástico, apresentadas parcialmente em
seu trabalho de conclusão do curso de graduação em História e exposições fotográficas. É
deste trabalho de Aguiar que surgiu o documentário mencionado anteriormente, pois De Masi
foi seu co-orientador e acompanhou os trabalhos de campo, documentando as inscrições e o
trabalho de campo em VHS. Outras exposições de levantamentos fotográficos parciais
foram também realizadas por Comerlato na mesma década.
O levantamento de Aguiar parece ser, até o momento, o mais extensivo, indo além de
qualquer pesquisador anterior. Embora sua análise ainda seja superficial, necessitando de
um tratamento estatístico adequado, seus resultados contradizem aqueles produzidos por
Prous (1977), pois não encontra as mesmas diferenças entre ilhas localizadas ao norte e ao
sul da Ilha de Santa Catarina. Os dados mostram um padrão comum em todas as ilhas, com
poucas exceções, as quais não são representativas o suficiente para caracterizar diferenças
difusionistas. Aguiar tenta correlacionar os motivos artísticos das inscrições com algumas
das tradições culturais pré -históricas da costa. Sabemos que todos os grupos pré -históricos
das três tradições culturais da costa catarinense utilizavam pigmentos de cor vermelha,
laranja e amarela, produzidos a partir de óxidos de ferro, obtidos pela oxidação de rochas
vulcânicas ricas em ferro, abundantes nas ilhas. Estes pigmentos poderiam ser utilizados
para pinturas corporais e pinturas de adornos e adereços, utilizados por crianças e mulheres,
como atestam alguns sepultamentos no Rio Vermelho, no grupo mais antigo de pescadores-
coletores locais. Alguns sepultamentos apresentam cor vermelha depositada sobre o corpo,
indicando a utilização do pigmento vermelho nos rituais funerários.
Embora estejamos falando de inscrições e não de pinturas, a existência dos
pigmentos indicam a existência de arte gráfica sob a forma de pinturas corporais ou outra
forma qualquer, em todos os grupos pré-históricos costeiros. Fazendo uma correlação com
as representações gráficas encontradas na cerâmica das Tradições Itararé e Tupi-Guarani,
Aguiar encontrou uma maior similaridade entre as inscrições e as representações gráficas
encontradas na cerâmica da Tradição Tupi-Guarani. As representações gráficas da cerâmica
utilizadas por Aguiar não sejam provenientes de sítios arqueológicos locais, mas da região
sul do Brasil como um todo. Isto dificulta a analogia, pois deveriam ser usados exemplares
de representações gráficas da cerâmica Tupi-Guarani do mesmo local onde as inscrições
são realizadas, isto é da região costeira. O experimento analógico de Aguiar, embora
perigoso, é valido e coloca novas possibilidades para pesquisas futuras, através de um
questionamento mais sério sobre quais grupos realizaram tais inscrições, ao invés de cair em
um interpretacionismo comum aos amadores, os quais desvalorizam os trabalhos sérios e
competentes de arqueólogos profissionais e apenas desinformam a população em geral.
A interpretação da Arte Pré-histórica
Como foi mencionado anteriormente , a questão interpretativa tradicionalmente tem
passado, basicamente, por duas abordagens básicas. Uma é através de sua estética e
função e a outra através de seu significado simbólico. Tendo isto em mente nós vamos
agora revisar como a arte pré-histórica da Europa foi estudada. A arte do paleolítico superior
europeu é bem conhecida, sob a forma de pinturas predominantemente em cavernas, sendo
muito divulgadas no mundo todo, sendo o sul da França um dos locais mais conhecidos,
além das cavernas em Altamira, na Espanha. As primeiras explanações funcionalistas desta
arte, na década de 50, foram feitas por Abbe Breuil, um pesquisador e sacerdote francês que
acreditava que as imagens tinham um caráter mágico. A arte então representava a caçada a
ser realizada, assegurando desta forma que o animal fosse caçado com sucesso e que o
mesmo animal tivesse fertilidade. Esta forma de interpretação mudou na década de 60, com
uma abordagem estruturalista, através do trabalho de Leroi-Gourhan, o qual foi influenciado
pelos trabalhos de Annette Laming-Emperaire (1962) e Max Raphael (1945). Leroi-Gourhan
realizou um levantamento empírico sobre o modo de produção e localização das imagens.
Estes trabalhos ficaram conhecidos como “a interpretação dos mitogramas”, porque os
pesquisadores supunham que as imagens eram feitas e colocadas em determinados locais
devido a uma estrutura mitológica subliminar, as quais as imagens se referiam.
Determinadas representações de espécies de animais predominariam sobre outras e
estariam colocadas em locais específicos, com um significado não específico, mas com
propriedades simbólicas, com um caráter predominantemente dualístico, macho-femea,
caracterizando o que Leroi-Gourhan chamaria de “santuário”, provavelmente relacionados a
ritos religiosos de fertilidade, sendo que as diferenças em determinadas associações dessa
temática dualística com outros símbolos, poderiam estar possivelmente relacionadas a
diferenças étnicas.
Mais recentemente Lewis-Williams, na década de 90, baseado em seus estudos sobre
os Kung! San, da África do Sul, sugeriu uma explanação alternativa para a arte pré -histórica
do Paleolítico Europeu. Para ele a interpretação dicotômica macho-fêmea existe somente na
mente dos pesquisadores, que assim interpretaram esta arte pré -histórica. Para Lewis-
Williams (1991) a arte precisa ter um significado e um lugar na sociedade que a produz.
Para ele muitos pesquisadores não trabalham o significado da arte do pré-histórica por não
acreditarem em outras explanações que vão além daquelas relacionadas à tecnologia e
subsistência. Em última instância, para o autor, esta recusa é gerada pelo excesso de
empiricismo e a rejeição de qualquer tipo de analogia etnográfica.
A proposta de Lewis-Williams é de que a arte Paleolítica está relacionada com práticas
shamanísticas, assim como é para os San, na África. Durante os rituais shamanísticos as
pessoas entram em transe, através do qual predizem o futuro, curam pessoas doentes,
mudam o clima, controlam animais, e fazem viagens para fora do corpo etc. Lewis-Williams
e Dowson propõem um modelo com três estágios alterados de consciência, os quais derivam
de pesquisas neuropsicológicas. No primeiro e mais leve estágio de transe a pessoas vêem
pulsantes e luminosas formas geométricas, tais como redes, pontos, grupos de curvas e
linhas paralelas e filigranas. Este estágio é criado por componentes físicos do sistema
nervoso humano, portanto podem ser experimentados por todas as pessoas independente
de seu grupo cultural. Cultura começa a ser importante no segundo estágio de alteração de
consciência, onde se tenta fazer sentido do fenômeno experimentado anteriormente no
primeiro estágio. As várias formas geométricas podem ser interpretadas como objetos de
associação religiosa ou mesmo emoções próprias. No terceiro e mais profundo estágio, as
percepções do primeiro estágio tendem a ser periféricas ou combinadas com alucinações de
pessoas, animais, monstros etc. Neste estágio as pessoas sentem que eles são parte
daquilo que eles estão experimentando, chegando a sentir transformações físicas, tornando-
se um animal.
Este modelo então é aplicado para entender a arte pré-histórica na África do
Sul, onde existem dados etnográficos, isto é, dados sobre grupos humanos que ainda hoje
praticam arte shamanística. Os autores encontram evidências dos três estágios alterados de
consciência durante o transe shamanístico. O mesmo modelo também foi utilizado com
sucesso para explicar a arte dos Tukano, na América do Sul, e a arte rupestre dos Coso, na
América do Norte, os quais sabe-se possuírem arte shamanística também. O reverso parece
ser verdadeiro, isto é, arte que não é relacionada com transe shamanístico não pode ser
explanada pelo mesmo modelo.
Este modelo em seguida foi aplicado na arte pré-histórica do Paleolítico Europeu, e os
três estágios alterados de consciência foram identificados pelos pesquisadores, concluindo-
se que a arte deste período está relacionada a transes shamanísticos.
Para Layton a arte em sociedades simples, como as sociedades pré-históricas da
costa catarinense e de outros locais do mundo, está freqüentemente embebida de religião.
De acordo com Victor Turner (1968:437) religião é um termo multivocal que varia seu
significado dependendo do contextos históricos e sociais em que é utilizado. Contudo,
muitas definições de religião referem-se ao reconhecimento de um poder controlador
transhumano que pode ser pessoal ou impessoal. Os especialistas em religião denominam
diferentemente estas formas de poder. Quando tal poder é impessoal os antropólogos o
denominam mágica, e aqueles que o usam, mágicos. Onde o poder é personalizado como
uma deidade, deuses, espíritos, demônios, gênios ou algo parecido, os antropólogos falam
de religião. Os sistemas religiosos contêm ambos, mágica e crenças religiosas. Aqueles
que atuam nos rituais religiosos sem necessariamente entrar em contato com o sobrenatural
são chamados de sacerdotes, e aqueles que se comunicam com o sobrenatural e muitas
vezes são veículos deste, são denominados shamãs. Os primeiros estão preocupados com
a conservação e manutenção de um sistema de crenças e práticas consideradas como
verdades sagradas, criadas pelos fundadores do sistema social ou religioso. Os shamãs
atuam em sociedades pequenas, simples, multifuncionais, onde a vida religiosa incorpora a
crença em uma multidão de deidades, demônios, espíritos naturais e deuses ancestrais. Em
sociedades simples todo o adulto tem uma função religiosa, mas os idosos são os que têm
mais. Com a idade avançada os idosos perdem a capacidade de caçar ou plantar, portanto
seu papel religioso torna-se proeminente. Nestas sociedades, mulheres tendem a ter mais
reconhecimento como religiosas do que em sociedades mais desenvolvidas. Existe uma
tendência à especialização nestas sociedades, baseada em uma série de atributos, tais
como o conhecimento sobre hervas, técnicas de cura, capacidade de entrar em transe etc.
Durkheim, em seu livro “Formas elementares da vida religiosa”, de 1912, coloca que o
homem está constantemente consciente que ele é cercado por uma força social, limitando e
dirigindo suas ações individuais. Para ele esta consciência é que gera as crenças religiosas.
Em seus estudos na Austrália, Durkheim sugere que os aborígines são conscientes da força
coletiva de seu grupo social, e ele somente pode expressar esta consciência através de
símbolos, no caso os totens, os quais são representações dos grupos sociais simbolizados
por animais e plantas. Durkheim denominou a religião aborígine Australiana de totemismo.
Para Horton (1965) a vida social é a fonte dos modelos que as sociedades simples
freqüentemente utilizam, para poder conceituar a natureza das forças menos palpáveis que
eles experienciam. Para ele a estrutura social fornece a área mais marcadamente ordenada
e regular da sua experiência, onde seu ambiente biológico e inanimado é muito mais
previsível. Tanto para Durkheim como para Horton, o pensamento religioso tem uma ordem
básica na analogia entre mundo social e natural. Para Layton duas críticas, ao menos,
devem ser feitas ao totemismo de Durkheim. Primeiro, é a noção simplista de que cada
grupo social tem um relação única e específica com uma espécie animal. Segundo, é a
suposta origem social da religião. Para Layton a religião dos aborígines, ao invés de ser
somente uma representação dos grupos sociais, ela integra aspectos morais e políticos do
mundo social, com animais e plantas, e o mundo físico de riachos e colinas.
Voltando às inscrições da costa catarinense que estamos observando, e
tentando relacionar aos modelos explanatórios mencionados anteriormente, podemos nos
perguntar se é possível utilizá-los em nosso caso. A primeira diferença que surge é o fato da
arte na costa catarinense ser essencialmente à céu aberto nos costões rochosos, junto ao
mar, e não pinturas dentro de cavernas ou abrigos, como é arte do Paleolítico Europeu, ou
da África do Sul, ou mesmo na maioria das regiões brasileiras. Todas as tradições culturais
pré-históricas a que podem ser relacionadas são sociedades simples de pescadores-
coletores ou de agricultores. O estilo da arte pré-histórica da costa catarinense é
caracterizado por ser essencialmente geométrico, com alguns motivos naturalistas. Alguns
estudiosos de arte acreditavam que o estilo geométrico seria mais antigo que o naturalista,
mas esta idéia já não existe, podendo os estilos naturalista e geométrico coexistirem em uma
mesma cultura ou terem origens independentes em diferentes contextos. Uma vez que os
motivos são essencialmente geométricos e não representações realistas, o modelo
funcionalista da magia de caça e fertilidade fica descartado, uma vez que ele é utilizado para
explicar as representações naturalistas, isto é, figuras que representam uma animal sendo
caçado, ou uma fêmea prenha. O modelo estruturalista, dualístico macho-fêmea, em termos
interpretativos, ainda é de difícil utilização, uma vez que não existem levantamentos precisos
da distribuição espacial das inscrições, bem como um tratamento estatístico dos motivos,
sofisticado o suficiente para se elaborar uma relação espacial das inscrições e sua
freqüência. Um empecilho, novamente, é o fato da arte ser essencialmente geométrica, sem
ser possível obter um “bestiário”, isto é, uma relação entre as representações de diferentes
animais e sua localização espacial, como no trabalho de Leroi-Gourhan. .
Finalmente, o modelo de transe shamanístico, o qual, poderia ser aplicado com
sucesso para explanar as inscrições com motivos essencialmente geométricos. Os dados
etnográficos ou mesmo etnohistóricos, sobre arte shamanística, para as tradições culturais
da costa catarinense não existem, dificultando a criação de um modelo etnohistórico ou
etnográfico para embasar tal interpretação. Ao mesmo tempo é difícil imaginar shamãs em
transe nestes costões rochosos, realizando suas inscrições e não pinturas, como é o caso da
Europa, África e outros locais. Tais inscrições devem exigir uma quantidade considerável de
energia e tempo para sua realização, considerando o acesso ao local onde as inscrições são
realizadas, nos costões rochosos, as técnicas de manufatura, produzindo-se sulcos nas
rochas. Certamente aspectos metodológicos de um ou outro modelo podem ser utilizados
nos estudos da arte pré-histórica da costa catarinense. O aspecto interpretativo deste tipo
de arte deve ser feito com muito cuidado, pois é muito fácil incorrermos em erro, vendo o que
nós queremos ver. A interpretação deve vir somente depois que sejam realizados trabalhos
minuciosos e sérios, como um levantamento exaustivo das inscrições, sua localização, suas
quantidades etc, e uma análise estatística dos motivos representados. O que existe até
agora não é suficiente para criarmos um modelo explanatório interpretativo de tais inscrições
e suas relações com as tradições culturais locais.
Conclusão
Embora se conheça a distribuição regional da culturas pré -históricas regionais e
locais em Santa Catarina; se possa estabelecer uma correlação com os grupos Indígenas
sobreviventes ao impacto da invasão européia, é difícil estabelecer uma correlação direta
entre a arte pré-histórica do litoral e os grupos pré-históricos locais. É possível que esteja
relacionada a um modo de vida adaptado ao mar, uma vez que se encontra nos costões
rochosos de ilhas, nas quais a realização da agricultura seria extremamente difícil, embora
as mesmas não sejam muito distantes do continente . Portanto, um grupo que poderia estar
relacionado a esta arte é o de pescadores-coletores que estão nas ilhas desde 5000 A. P.
A presença da cerâmica Gê parece não alterar significativamente o modo de vida das
populações adaptadas ao mar, as quais continuam com sua dieta predominantemente
marinha. Portanto a aquisição de tecnologia cerâmica não implica em consumo de milho,
mandioca ou pinhão, fontes de uma dieta rica em carboidratos (C 4) das populações
indígenas horticultoras. Portanto, os estudos futuros devem testar hipóteses de correlação
entre arte rupestre local e grupos humanos adaptados ao modo de vida marinho, sejam eles
com ou sem cerâmica.
Embora hajam vários estudos sobre a arte rupestre do litoral catarinense, todos são
incompletos, considerando que muitos são apenas levantamentos fotográficos, faltando um
estudo etnohistórico sério sobre as sociedades simples registradas pelos europeus. Os
modelos existentes, como demonstrados anteriormente, são limitados e podem causar
problemas interpretativos àqueles que os tentarem transpor para os estudos das inscrições
rupestres do litoral catarinense. Os estudos etnohistóricos poderiam tentar estabelecer
modelos interpretativos da arte gráfica destes grupos, associados ao pensamento mítico-
religioso e a sua adaptação ao meio ambiente. A maior parte dos trabalhos etnográficos ou
etnohistóricos focam nas relações de contatos inter-étnicos entre europeus e sociedades
indígenas. Naturalmente, primeiro é preciso checar sobre a existência de documentos que
possibilitem tais estudos.
Estudos futuros
Associados aos levantamentos básicos o que pode e deve ser realizado são estudos
de preservação. Tais estudos de preservação devem considerar elementos tais como: um
levantamento dos tipos de plantas e liquens que crescem sobre as inscrições, pois os
mesmos destroem a superfície da rocha, conseqüentemente as inscrições, uma análise da
composição mineralógica das rochas para se conhecer o tipo de composição mineralógica da
rochas, para se determinar que tipo de soluções químicas podem ser utilizadas nas rochas
para conter o crescimento de liquens e outros vegetais, muitos dos quais podem apenas ser
retirados de cima das rochas. Também é necessário um levantamento de como a águas das
chuvas, do mar, o vento e sol afetam as inscrições para que se criem projetos de
preservação baseados. O escoamento das águas das chuvas ou fontes naturais por sobre a
rocha acaba gerando superfícies erosivas ou depositando material que podem colaborar com
o desaparecimento das inscrições. Finalmente, tais projetos de preservação devem conter a
ação humana por sobre estas inscrições, a qual pode ser devastadora em todo o seu
espectro. A Ilha do Campeche tornou-se um ponto turístico bem conhecido nos recentes
anos. Após seu tombamento pelo IPHAN a ilha vem sofrendo uma porção de adequações e
estudos para receber o fluxo turístico que tem aumentado nos anos recentes. Tais estudos
não são ainda suficientes para se estabelecer critérios específicos sobre a utilização da área
como um parque de visitação e entretenimento.
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