a arquitectura religiosa gótica em portugal no século xiv: o
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A Arquitectura Religiosa Gtica em Portugal no Sculo XIV:
O Tempo dos Experimentalismos
Introduo
1.Objectivos, Metodologia e Fontes
"No no conhecimento que est o fruto
mas no acto de aprender"
So Bernado, De Consideratione ad Eugenium Papam
Objectivos
Ao iniciar um estudo sobre a arquitectura religiosa gtica no sculo XIV em
Portugal pretendeu-se, acima de tudo, trazer para a luz e valorizar um tema que nos parece
da maior importncia e cujas anlises at ao momento tm frequentemente relegado para
segundo plano: o facto de o sculo XIV se apresentar com uma diversidade de tipologias
arquitectnicas que levam ao questionamento da possibilidade dessa centria se afirmar
como um momento de experimentao na arquitectura medieval portuguesa. Esta
possibilidade marcou assim o ponto de partida de uma investigao centrada na tentativa de
identificao, compreenso e distino das diferentes tipologias, de forma a procurar
entender-se se as mesmas so herdeiras de uma arquitectura proveniente dos sculos
anteriores ou se se estabelecem como modelos inovadores at ento no experimentados.
Por outras palavras, tentar perceber se nos encontramos ou no perante um perodo de
experimentalismos. Cumpre definir desde j o conceito de experimentalismo por que nos
guimos para procurar compreender as particularidades do sculo XIV: entendemos como
experimentalismo toda a soluo, voluntria ou derivada de condicionantes especficas, da
qual resultam construes que no se podem inserir dentro de qualquer tipologia padro
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preexistente e confinada ao territrio em que se manifestam. No queremos com isto referir
meras solues alternativas apresentadas dentro de um modelo mais comum (e que
entendemos como solues menos difundidas, mas no experimentais), mas sim,
exclusivamente, estruturas cujo resultado final se afirma como uma experincia pontual
dentro do panorama geral da arquitectura portuguesa do sculo XIV.
A problemtica havia sido j sugerida por alguma historiografia do sculo XX1, mas
todas as possveis questes por ela levantada e consequentes concluses no chegaram a ser
colocadas. essa lacuna que agora se procura preencher, havendo, porm, a ntida
conscincia de que, dada a complexidade e dimenso do tema e os limites impostos por um
trabalho desta natureza, alguns aspectos podero no ser tratados em toda a sua plenitude.
Em paralelo, procurou-se definir se, para l da existncia dos experimentalismos,
existe alguma tipologia "padro" no sculo XIV portugus, uma tipologia que se possa
considerar dominante e que se afirme sobre as restantes.
Finalmente, associado a este objectivo, surgiu-nos um terceiro, que foi a tentativa de
compreenso da importncia que as diferentes ordens religiosas tiveram no
desenvolvimento do gtico portugus, bem como o de tentar compreender de que forma a
sua arquitectura se interliga.
Muito embora sejam analisadas neste estudo construes que no pertencem a
nenhuma ordem religiosa, como as igrejas paroquiais e algumas capelas privadas inseridas
em ss ou em igrejas paroquiais, a verdade que a grande maioria das construes
abordadas est vinculada a uma determinada ordem, seja ela monstica, conventual ou
militar. Procurou-se, assim, perceber se a cada ordem se pode associar uma determinada
tipologia construtiva, se a existir essa "tipologia de ordem", ela rgida e exclusiva, se se
pode considerar alguma ordem (ou ordens) religiosa como responsvel por qualquer
espcie de experimentalismo arquitectnico, "criando" a sua prpria arquitectura ex nihilo e
at que ponto essa arquitectura extravasa para l dela mesma e vai, ou no, influenciar
construes que no pertenam a nenhuma ordem, como as igrejas paroquiais. Dentro deste
1 Mrio Chic dedica j um captulo ao sculo XIV em A Arquitectura Gtica em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1968, e a palavra experincias mesmo utilizada por J. C. Vieira da Silva no captulo 3.1.3 da Histria da Arte Portuguesa, poca Medieval, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 122.
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enquadramento tornou-se particularmente importante compreender o significado da ordem
de Cister em Portugal, uma vez que a sua implantao no territrio acompanha o
nascimento do gtico no nosso pas e, como, tal a influncia que as construes
cistercienses exercem sobre os edifcios que lhe so posteriores pode ser determinante.
Tambm o papel das ordens mendicantes se reveste de uma importncia extrema, uma vez
que os seus conventos comeam a ser erguidos num perodo de consolidao do gtico e
muitos deles so j edificados no sculo XIV, podendo estas ordens ser "agentes" de
experimentao em Portugal.
Metodologia
A organizao formal deste trabalho passou pela sua estruturao num bloco nuclear
subordinado questo dos experimentalismos (Parte II), antecedido de uma introduo e de
um primeiro bloco de contextualizao relativo implantao do gtico em Portugal e ao
papel das novas ordens religiosas face ao gtico (Parte I). A Introduo encontra-se
dividida em dois captulos: no primeiro abordam-se as questes tericas de definio de
objectivos e metodologia inerentes investigao, fazendo-se igualmente uma referncia s
fontes utilizadas. No segundo analisa-se, ainda que sumariamente, o nascimento da
arquitectura gtica, ao qual a tese est subordinada. Trata-se de um captulo que envolve,
para l das questes artsticas, problemas de enquadramento histrico, filosfico e
teolgico, uma vez que se procura compreender a essncia do Gtico enquanto
materializao de um determinado pensamento filosfico e teolgico medieval, ou seja,
entender as transformaes subjacentes renovao esttica e tcnica2.
O ncleo seguinte (Parte I) dedicado implantao da arquitectura gtica no
territrio portugus e s ordens religiosas que acompanham o nascimento e
desenvolvimento da arte gtica e que, como tal, tm uma importncia crucial para a
arquitectura deste perodo. Analisaram-se nesta parte a Ordem de Cister, as Ordens
2 Como afirmou Georges Duby para compreender a arte deste tempo [leia-se o tempo do gtico] de teologia (...) que devemos informar-nos., in O Tempo das Catedrais, A Arte e a Sociedade, 980 - 1420, Lisboa, Editorial Estampa, 1988, p. 101.
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Militares (Ordem do Templo e Ordem do Hospital), as Ordens Mendicantes (Franciscanos,
Clarissas e Dominicanos) e a introduo do gtico nas catedrais nacionais.
Procurou-se compreender o nascimento destas ordens de um ponto de vista histrico
e filosfico, uma vez que, para l das questes de natureza arquitectnica propriamente
dita, a abordagem da arte destas ordens engloba (tal como o conceito de gtico) problemas
de enquadramento histrico-filosfico (e mesmo teolgico), dado que se procura
compreender o pensamento subjacente arte das novas ordens e a forma como esta arte se
ir reflectir no nosso territrio. Relativamente Ordem de Cister, foi, antes de mais,
fundamental uma anlise do pensamento de So Bernardo de Claraval, figura lapidar do
sculo XII e um dos principais responsveis pelo desenvolvimento de uma esttica artstica
que vrios autores classificam como esttica cisterciense.
Assim, na primeira parte abordam-se questes cronologicamente anteriores
formulao da problemtica de base, de forma a contextualizar e melhor compreender o
problema dos experimentalismos. Deste modo, efectuou-se uma pesquisa sobre os
antecedentes arquitectnicos do sculo XIV, ou seja, sobre a implantao da arquitectura
gtica em Portugal no final do sculo XII e ao longo do sculo XIII, de forma a ser possvel
definir e entender as tipologias destas duas centrias para depois compreender a forma
como o sculo XIV se enquadra e/ou autonomiza face s mesmas. Esta anlise foi dividida
em quatro captulos que correspondem a contedos temticos distintos (ainda que
entrecruzados), relacionados com arquitecturas inseridas em contextos religiosos diferentes:
leia-se, construes associadas Ordem de Cister, construes associadas s Ordens
Militares, construes associadas s Ordens Mendicantes e construes catedralcias. Esta
organizao dos captulos foi depois subdividida, em cada um deles, de acordo com as
tipologias especficas das construes, de forma a ser mais fcil estabelecer paralelismos
com os captulos da segunda parte.
Qualquer destes captulos se mostrou relevante em termos de contribuio para o
esclarecimento da problemtica fundamental. O estudo da arte cisterciense, porm, revelou-
se essencial, na medida em que a introduo do Gtico no nosso territrio est
indissociavelmente ligada a esta ordem, sendo necessrio compreender se todo o posterior
panorama da arquitectura gtica recebeu influncias da arte de Cister. A compreenso da
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arquitectura cisterciense torna-se, pois, essencial na subsequente anlise da arquitectura do
sculo XIV. Tambm o papel das ordens mendicantes e da sua arte se revestiu de uma
importncia extrema, uma vez que as construes destas ordens no nosso territrio se vo
desenvolver a partir da segunda metade do sculo XIII e no sculo XIV.
Uma vez estabelecidas as tipologias das primeiras construes gticas no nosso
territrio e definidos os pontos fundamentais sobre a implantao da arquitectura gtica em
Portugal, passamos a dedicar-nos ao problema central da nossa tese: a anlise das tipologias
do sculo XIV em Portugal (e a forma como estes edifcios so ou no herdeiros das
construes ducentistas), desenvolvida ao longo da II parte.
A seleco das construes do sculo XIV a analisar colocou-nos variadssimos
problemas. Em primeiro lugar, o perodo cronolgico a abranger, mais concretamente o
trmino exacto da nossa anlise, uma vez que em Histria da Arte um balizamento
cronolgico muito rgido se torna sempre problemtico e potencialmente falacioso. No que
respeita ao sculo XIV, contudo, afigura-se-nos que a mutao fundamental nas tipologias
gticas se d com a edificao de um dos mais importantes complexos conventuais
portugueses, o Mosteiro de Santa Maria da Vitria e mais concretamente ainda com a
campanha de Mestre Huguet. Com a aco deste mestre no estaleiro batalhino fecha-se um
ciclo arquitectnico em que, apesar da diversidade tipolgica, patente uma marca de
homogeneidade associada ao despojamento inerente a todas as construes e inicia-se um
novo, que coloca novas questes e problemticas, relacionadas com a designada
arquitectura ps-batalhina (ou do ciclo batalhino) que extravasa j os nossos fins. Esta
circunstncia facilitou a concluso do nosso objecto de trabalho, uma vez que a interveno
de Huguet na Batalha se verifica justamente com a transio para o sculo XV.
A segunda questo, absolutamente fundamental, era qual o corpus construtivo a
analisar e qual a sua organizao. Inicialmente fez-se uma catalogao pelo tipo de
categoria religiosa em que as construes se inseriam: igrejas monsticas ou conventuais,
igrejas de ordens militares, igrejas paroquiais, ss, etc. Esta catalogao, porm, veio a
revelar-se progressivamente desadequada, uma vez que se perdia com esta diviso o elo de
ligao subjacente temtica da tese, que a questo dos experimentalismos. Optou-se
ento por fazer uma diviso das construes consoante a sua tipologia arquitectnica -
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igrejas de trs naves com cabeceira escalonada, igrejas de trs naves com capela-mor,
igrejas de uma s nave com cabeceira tripartida, igrejas fortificadas, capelas funerrias e
claustros. Seleccionou-se, deste modo, um corpo tipolgico suficientemente vasto para
poder ser representativo das diferentes tipologias desenvolvidas ao longo do sculo XIV,
embora no tenhamos tido a ambio (ou pretenso) de esgotarmos toda a arquitectura
deste sculo. Duas obras fundamentais, mas complexas, levantaram-nos problemas de
insero nos referidos captulos, uma vez que so estruturas que fazem parte integrante de
igrejas, mas no se podem incluir num captulo dedicado a igrejas, por no serem uma
igreja propriamente dita referimo-nos charola da S de Lisboa e ao coro da Igreja de
So Francisco em Santarm. O facto de serem ambas resultado de uma aco mecentica
rgia levou-nos a inseri-las num captulo intitulado experincias reais, uma vez que nos
parece que a originalidade e magnificncia tipolgica destas duas construes no pode
deixar de estar subordinada ao patrocnio rgio. Em termos de organizao metodolgica, o
ncleo fundamental a que corresponde a Parte II ficou, assim, dividido em sete captulos
subordinados a diferentes tipologias.
Dentro deste contexto, um dos conjuntos arquitectnicos mais importantes deste
estudo foi, inevitavelmente, o ncleo composto pela arquitectura mendicante, na medida em
que a expanso do Gtico em Portugal est indissociavelmente ligada a estas ordens, tendo
o posterior panorama da arquitectura gtica sofrido a sua influncia. A compreenso da
arquitectura mendicante torna-se, pois, essencial na anlise da arquitectura do sculo XIV,
sendo tambm primordial entender se se pode falar de um modelo mendicante. Contudo, a
anlise do conjunto mendicante colocou problemas particulares, uma vez que a priori
parecia sustentvel no desmembrar este grupo de construes e trat-las dentro de uma
lgica interna de arquitectura pertencente a uma ordem religiosa; esta anlise, vivel num
tipo de abordagem no tipolgico, revelou-se, contudo, impraticvel numa leitura global do
sculo XIV, dado que (entre outras questes) a vertente feminina da ordem franciscana, as
clarissas, coloca problemas exclusivos relacionados com as caractersticas particulares dos
casos de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra e de Santa Clara de Vila do Conde. Assim, era
foroso subordinar a arquitectura mendicante lgica interna do conjunto regida pela
problemtica de fundo dos experimentalismos e das diferenas tipolgicas. No obstante, a
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arquitectura mendicante manteve-se em geral como um corpo uno, e embora algumas
igrejas sejam abordadas em captulos diferentes, estes no so absolutamente estanques
havendo entre todos uma interligao.
Uma vez determinados os edifcios a analisar, procurou-se seguir o mesmo padro
de abordagem para todos, privilegiando a anlise esttica e artstica de cada edificao, a
sua estrutura, a sua planta, alados e diferentes aspectos construtivos, como arcos, abbadas
e capitis (privilegimos o estudo da arquitectura sobre a escultura, embora esta tambm
no tenha sido negligenciada), no s pela necessidade imprescindvel de uma tal
abordagem numa tese em Histria da Arte, como tambm porque esse estudo permitiu a
obteno de um objectivo fundamental, que foi o estabelecimento de tipologias comuns.
Lamentavelmente as condies de runa de muitas das construes ou a impossibilidade da
sua reconstituio conjectural no permitiram que tal intuito pudesse ser sempre
concretizado.
Considerou-se ainda a conjuntura histrica de cada um dos edifcios a fim de
poderem ser tiradas ilaes sobre o seu enquadramento, tendo em ateno, nomeadamente,
aspectos como a evoluo da independncia do reino ou a importncia dos mecenatos
(rgios, episcopais ou nobres).
Esto, assim, sumariamente descritos os propsitos (e metodologia) subjacentes
elaborao desta tese e que, apesar de todos os obstculos que lhe esto inerentes,
pensamos ter conseguido alcanar.
Fontes
A investigao efectuada para a elaborao deste trabalho centrou-se na pesquisa
bibliogrfica levada a cabo em diversas bibliotecas nacionais e estrangeiras3, feita
pessoalmente ou atravs da importao de cpias de obras a existentes por meio dos 3 Biblioteca Nacional de Portugal, Biblioteca de Arte da Fundao Calouste Gulbenkian, Biblioteca da Universidade Clssica de Lisboa - Faculdade de Letras, Biblioteca da Universidade Nova de Lisboa F.C.S.H., Biblioteca da Universidade Nova de Lisboa F.C.S.H. / Departamento de Histria da Arte, Biblioteca da Universidade de Coimbra Faculdade de Letras, Biblioteca da Universidade do Porto Faculdade de Letras e Faculdade de Arquitectura, Biblioteca Joo Paulo II da Universidade Catlica, Biblioteca Municipal do Porto, Bibliothque Nationale de Paris e Bibliothque de la Sorbonne.
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servios de emprstimo da Biblioteca Nacional de Lisboa. No caso da Bibliothque
Nationale de Paris e da Bibliothque de la Sorbonne os artigos foram trazidos em mo. A
investigao em arquivos no foi determinante no nosso trajecto, uma vez que j existem
estudos e tradues dos principais documentos relacionados com as construes abordadas
e os objectivos fundamentais deste estudo no passavam pela procura de documentao
histrica indita.
A anlise destas construes envolveu no apenas uma pesquisa bibliogrfica, mas
tambm a observao dos edifcios in loco e respectivo levantamento fotogrfico, bem
como a deslocao a Frana, Alemanha, Inglaterra e Itlia para uma anlise directa de
algumas construes pertencentes Ordem Cisterciense, s Ordens Mendicantes e Ordem
do Templo4.
4 Foram visitadas as abadias cistercienses de Fontenay, Pontigny, Fontfroide, Valmagne e Silvans em Frana e Maulbronn na Alemanha; as igrejas mendicantes de Esslingen am Neckar e Regensburg na Alemanha, a igreja dos Jacobinos de Toulouse em Frana e as igrejas italianas de So Francisco de Assis, Santa Clara de Assis, Santa Maria Gloriosa dei Frari em Veneza e Santa Maria Novella em Florena; e a Temple Church em Londres. Foram ainda alvo de uma observao directa a Abadia de Saint Denis em Paris e algumas catedrais francesas como a Notre Dame de Paris e a Notre Dame de Reims, entre outras.
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2. Os Pressupostos Fundadores da Arte Gtica
o prprio conceito de Idade Mdia que bastante difcil de definir
e o prprio termo, na sua explcita etimologia, como se tivesse sido inventado
para poder integrar uma dezena de sculos que ningum conseguia situar5
A Idade Mdia no apenas o perodo em que foram lanadas as fundaes da
civilizao europeia, mas igualmente o perodo em que enraizamos algumas das nossas
mais profundas crenas e preconceitos, bem como os ideais pelos quais lutaramos e
morreramos6. Dos vrios perodos em que a Histria (e consequentemente a Histria da
Arte) foram divididos por uma necessidade de compartimentao e organizao da mesma,
a Idade Mdia parece ser aquele que mais problemas levanta no que toca ao seu
entendimento, aos seus conceitos e at mesmo s suas balizas cronolgicas.
Devastada e humilhada por uma pliade de figuras do Renascimento italiano cujos
objectivos polticos passavam pelo enaltecimento do Imprio Romano e da sua Arte, a
Idade Mdia nunca se recomps completamente do oprbrio que desde ento sobre ela se
abateu. Ainda hoje (em crculos menos esclarecidos como a televiso ou o cinema) a ideia
de obscurantismo ou de idade das trevas impera. Inevitavelmente essa carga negativa
acabou por englobar tambm uma das principais manifestaes artsticas do perodo
medieval a Arte Gtica. A arquitectura desse tempo, mais do que qualquer outra vertente,
foi particularmente atacada.
A compreenso de um determinado perodo artstico passa sempre pelo
entendimento da sua conjuntura, da sociedade em que se insere, dos pressupostos culturais
e ideologias filosficas que o possam ter influenciado. E, como se referiu, a Idade Media
5 Umberto Eco, Arte e Beleza na Esttica Medieval, Lisboa, Editorial Presena, 1980, p. 10
6 G. Barraclough, What Is to be Done about Medieval History?, in New York Review of Books, 4 Junho 1970, p.51, cit. por G. Constable, The Many Middle Ages, p.4, in Bilan et Perspectives des tudes Mdievales en Europe. Actes du premier Congrs Europen d'tudes Mdivales, Spoleto, 27-29 Mai 1993, Spoleto, Congrs Europen d'tudes Mdivales, 1993, d. par Jacqueline Hamesse Louvain-La-Neuve : Fdration Internationale des Instituts d'tudes Mdivales, 1995
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no uma poca de fcil compreenso. A actual historiografia medieval tem procurado
clarificar alguns problemas, mas um conceito consensual e homogneo de Idade Mdia
algo que no existe da problemtica cronolgica s divises regionais, a Idade Mdia
enfrenta vrios obstculos que impedem uma concepo/compreenso global da mesma. Na
realidade, o simples facto de nos estarmos a referir a um perodo que se estende por mais de
mil anos levanta problemas bvios: no pode existir homogeneidade durante um to longo
intervalo temporal; ao invs de falarmos de uma Idade Mdia, deveramos referir-nos a
vrias idades mdias. Esta questo j foi, alis, abordada por alguns autores 7.
O problema torna-se, obviamente, mais complexo quando se recua at Alta Idade
Mdia e nos encontramos perante uma Europa fragmentada e desorganizada pelo fim da
homogeneidade romana, pelos surtos sucessivos de invases dos povos do Norte e pela
confrontao com uma nova religio ainda em processo de consolidao. Apesar de alguns
destes problemas se desvanecerem durante a Baixa Idade Mdia, e consequentemente
durante o perodo artstico em anlise, a questo principal mantm-se exactamente o que
foi a Idade Mdia? Como defini-la e atravs de qu? Da arte, da filosofia, do sistema
econmico, do sistema poltico? E podemos aplicar os mesmos critrios econmicos,
polticos, e artsticos a toda a Europa? No compete a um trabalho que versa sobre Arte
procurar dar resposta a estas questes que tm vindo a ocupar os historiadores medievais ao
longo das ltimas dcadas. O objectivo deste captulo no o entendimento do perodo
histrico mas sim da sua arte o gtico. Se para alcanar este objectivo no possvel
isolar a arte e se torna necessria uma anlise mais abrangente, esta tambm no passa pela
soluo das questes acima abordadas. Parece-nos antes que para entender o gtico
preciso compreender o pensamento que lhe deu origem, enquadr-lo na sua poca sim, mas
em termos mentais (para alm, naturalmente dos enquadramentos econmico-sociais).
Definido por Georges Duby, desde a dcada de sessenta, como o tempo das catedrais, o
Gtico uma arte originariamente ligada a edifcios religiosos e consequentemente 7 Veja-se entre outros Jacques Heers, A Idade Mdia, uma Impostura, Lisboa, Edies Asa, 1994, G. Constable, "The many Middle Ages", in Opus Cit. e Les Tendences Actuelles de l' Histoire du Moyen ge en France et en Allemagne, Actes des Colloques de Svres (1997) et Gttingen (1998), org. CNRS e Max-Planck Institut fr Geschichte, dir. Jean-Claude Schmitt e Otto Gerhard Oexle, Paris, Publications de la Sorbonne, 2003
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religio. Torna-se ento fundamental entender a Arte Gtica enquanto produto de um
determinado pensamento filosfico medieval, ou seja, compreender as circunstncias
ideolgicas e culturais que levaram renovao esttica e tcnica.
Com este captulo pretende-se, assim, compreender e analisar as questes inerentes
ao pensamento filosfico subjacente ao Gtico.
2.1 Suger, Saint Denis e o nascimento da Arte Gtica
Dentro da conjuntura filosfico-teolgica do sculo XII, na qual se enquadra o
nascimento da arte gtica, encontram-se trs vertentes fundamentais as ideias do abade
Suger de Saint-Denis, principal responsvel pela recuperao dos escritos do Pseudo-
Dionsio e habitualmente considerado o criador de uma arquitectura de luz; o
pensamento escolstico derivado das escolas de Paris e arredores; e, por fim, o iderio
cisterciense de despojamento e ascetismo preconizada por So Bernardo de Claraval8. Neste
captulo abordaremos as duas primeiras questes, e na I Parte, dedicada s novas ordens
religiosas e com um captulo sobre a Ordem de Cister, analisaremos a figura de So
Bernardo, o seu papel na definio de uma esttica cisterciense e a forma como essa
esttica se repercutiu no desenvolvimento da arte gtica.
Parece ser ponto assente que a arte gtica est indissociavelmente ligada aco de
uma figura fundamental para a Histria e Arte do sculo XII: Suger [c. 1081-1151] 9, abade
de Saint Denis, entre 1122 e 1151, conselheiro real de Lus VI [1081-1137, r. 1108] e de
8 interessante constatar que as datas de edificao da Abadia de Saint-Denis e da Abadia de Fontenay, exemplo perfeito da arte cisterciense e antnimo esttico/espiritual de Saint-Denis, so coincidentes.
9 Para uma informao mais detalhada da vida de Suger ver J. F. Benton, "Introduction: Suger's Life and Personality", in Abbot Suger and Saint-Denis, a Symposium, New York, edited by Paula Liber Gerson / The Metropolitan Museum of Art, 1986 e F. Gasparri, "Introduction. I. Vie de Suger", in Suger, Oeuvres, vol. I, Paris, Les Belles Lettres, 1996.
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Lus VII [1120-1180, r. 1137], e regente de Frana 10 aquando da ausncia de Lus VII entre
1147 e 1149, em virtude da II Cruzada.
atravs do plano de reconstruo da Abadia de Saint Denis, - abadia claramente
associada ao poder real e dinastia dos Capetos 11 -, que Suger desenvolve
progressivamente a partir de 1125 12, mas que apenas vir a concretizar em 1137, que os
princpios fundamentais do gtico ficam estabelecidos. Entre os principais contam-se o uso
da luz e a sua relao com a estrutura do edifcio, bem como o equilbrio das propores.
Alguns destes princpios so defendidos por Suger nas suas obras, nomeadamente no
Scriptum Consecrationis 13 e nos famosos versiculi includos na Gesta Suggerii Abbatis 14,
10 O envolvimento de Lus VII na II Cruzada no mereceu o apoio de Suger que, alis, inicialmente recusou a regncia do pas. A proposta, porm, havia sido feita por So Bernardo numa assembleia reunida pelo rei em tampes em Fevereiro de 1147, justamente com o objectivo de discutir a questo da regncia, e o prprio Suger que acaba por se ver "obrigado" a deixar a deciso para o Papa. A Eugnio III, So Bernardo escreve que "se existe na Igreja dos Gauleses um receptculo de honra, se existe na Corte do rei um servidor to bom como David, na minha opinio, esse no pode seno ser o venervel Suger" (So Bernardo, "Epstola 309"). O Papa aceita o concelho de So Bernardo e Suger nomeado regente a 8 de Junho de 1147. So igualmente nomeados dois co-regentes, o bispo de Reims, Samson Mauvoisin e o senescal Raoul de Vermandois. A obra de Suger enquanto regente foi sbia e ponderada. Ver sobre o assunto F. Gasparri, "Introduction. I. Vie de Suger", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., vol. I, pp. XXIII-XXX. Sobre algumas das tomadas de posio de Suger face Cruzada e aos cruzados ver A. Grabois, Militia and Malitia: The Bernardine Vison of Chivalry, in The Second Crusade and the Cistercians, New York, St. Martins Press, 1992.
11 A nova arte foi reconhecida por todos os contemporneos como sendo propriamente a arte de Frana. Desabrochou na provncia que tinha ento este nome, aquela onde Clvis morrera, entre Chartres e Soissons. Fixou em Paris o foco da sua irradiao., G. Duby, O Tempo das Catedrais, Opus Cit., p. 99; "A arte gtica, que a partir de 1140, se difunde por toda a Ile-de-France, coincidindo com a exploso demogrfica e econmica, com o crescimento do poder Capeto e com o auge das metrpoles religiosas e intelectuais (Chartres e a sua Escola, Paris e o seu novo meio escolar, Laon e os ltimos focos do seu centro teolgico, Sens e a sua cria arcebispal), manifesta um esprito, um estilo e um programa novo.", J. Le Goff, La Baja Edad Media, Madrid, Ediciones Castilla S.A., 3 ed., 1973 p. 163.
12 Com este objectivo, Suger ir procurar alargar o patrimnio da abadia, de forma a fazer face s despesas. Sobre este assunto ver F. Gasparri, "Introduction. I. Vie de Suger", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., pp. XXI-XXII.
13 O texto sobre a Consagrao de Saint-Denis, foi escrito pouco depois da consagrao da cabeceira, em 1144, com o objectivo de apresentar uma narrao da extraordinria cerimnia de consagrao dos vinte altares da cabeceira, uma cerimnia "que pela sua grandeza e magnificncia criava um 'concerto angelical', a transposio dos visibilia aos invisibilia, dando uma prfigurao do reino celeste, da unio do cu e da terra numa nica Repblica: a verdadeira vocao da igreja de Saint-Denis tal como a pretendia Suger", F. Gasparri, "Introduction / III. Les Oeuvres do Premier Volume", in Suger, Oeuvres, vol. I, Paris, Les Belles Lettres, 1996 p. LV.
14 Terminada durante o perodo de regncia, entre 1148 e 1149, o seu objectivo era descrever a actividade de Suger durante o seu abaciado, de acordo com um pedido feito pelos monges da abadia, durante uma reunio de Captulo, no 23 ano de abaciado de Suger (portanto, entre 12 de Maro de 1144 e 11 de Maro de 1145).
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em que a ideia da luz exaltada. A exaltao da luz e o entendimento da luz como reflexo
de Deus no , porm, uma inveno de Suger; o abade de Saint Denis vai basear todo o
seu pensamento nas correntes neo-platnicas que foram divulgadas na Alta Idade Mdia,
por um lado atravs de Santo Agostinho e, por outro, atravs da obra A Hierarquia Celeste,
do Pseudo-Dionsio (ou Pseudo-Dinis/Denis) Areopagita15, autor do sculo V ou VI,
erroneamente identificado com o discpulo de So Paulo, Dionsio Areopagita e com o
bispo-mrtir de Paris16. Sabemos pouco sobre a identidade do Pseudo-Dionsio ou sobre a
data exacta em que a sua obra, habitualmente referida como Corpus Dionysiacum17, foi
escrita; a primeira referncia histrica ao Corpus data de um Conclio levado a cabo em
Constantinopla, em 53318, sendo, porm, a partir da aco de So Mximo, o Confessor19
que se verificou uma crescente admirao pela mesma, que passou a ser objecto de estudo e
de interesse pelos filsofos medievais. O Corpus Dionysiacum passar a ter uma
A obra est dividida em duas partes: a primeira, com vinte e trs captulos, remete para a gesto da abadia; a segunda, com onze captulos, descreve as obras de embelezamento e de reconstruo da basilica, a aquisio de tesouros e o restauro de algumas peas. a obra que melhor revela a personalidade do abade, "o seu talento de construtor, de artista e de 'antiqurio', de praticante da filosofia e da teologia polticas.", F. Gasparri, "Introduction / III. Les Oeuvres du Premier Volume", in Suger, Oeuvres, Opus Cit. p. LVI. Para uma leitura completa das obras ver Suger, Oeuvres, vol. I, crit sur la Conscration de Saint-Denis (Scriptum Consecrationis Ecclesiae Sancti Dionysii), L' Oeuvre Administrative (Gesta Suggerii Abbatis) e Histoire de Louis VII (De Glorioso Rege Ludovico Ludovici Filio), texte tabli, traduit et comment par Franoise Gasparri, Paris, Les Belles Lettres, 1996. Para uma melhor compreenso das mesmas ver a Introduo de F. Gasparri, bem como as notas aos textos. Para uma interpretao de algumas das palavras utilizadas por Suger e passveis de mais de um significado ver P. Verdier, "Some New Readings of Suger's Writings", in Abbot Suger and Saint-Denis, a Symposium, New York, edited by Paula Liber Gerson / The Metropolitan Museum of Art, 1986.
15 Para uma leitura completa da obra ver "La Hirarchie Cleste", in Oeuvres Compltes, traduction, prface et notes par Maurice de Gandillac, Aubier/ Paris, ditions Montaigne, 1943 [reedio de 1995].
16 So trs as figuras de nome Dionysius que ao longo do final da Alta Idade Mdia se vo fundir numa s: Dionysius/Denis, o Areopagita convertido por So Paulo no sculo I d.C. (a converso do Aeoropagita aparece mencionada nos Actos dos Apostolos, 17,34); Dionysius/Denis, bispo de Paris martirizado no sculo III na sequncia das perseguies de Domiciano e patrono da Abadia de Saint-Denis; e por fim, Dionysius/Denis, filsofo do sculo V ou VI autor da Hierarquia Celeste que serve de inspirao a Suger.
17 Constituda por Os Nomes Divinos, A Teologia Mstica, A Hierarquia Celeste, A Hierarquia Eclesistica e dez Cartas (incluindo uma dirigida a So Joo exilado em Patmos). Ver Pseudo-Denys L' Aropagite, Oeuvres Completes, Opus Cit.
18 Cfr. Maurice de Gandillac, in Pseudo-Denys L' Aropagite, "Introduction", Oeuvres Compltes, Opus Cit., p. 14.
19 Para uma anlise sumria da relao entre a obra deste monge bizantino [580-662] e a obra do Pseudo-Dionsio ver Maurice de Gandillac, "III. L' Influence Dionysienne / A. Maxime Le Confesseur", in Pseudo-Denys L' Aropagite, Oeuvres Compltes, Opus Cit., pp. 46-49.
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divulgao ainda maior com a traduo para latim de Joo Escoto Ergena20, por ordem do
imperador Carlos, o Calvo [823-877]21.
Para o Pseudo-Dionsio, Areopagita, a Criao um acto de iluminao, ideia que
concilia a filosofia neo-platnica com a teologia da Luz de So Joo Evangelista, cujo
Evangelho abre com um Prlogo que associa Deus Luz (...) N Ele estava a vida / e a
vida era a Luz dos homens. / A Luz resplandece nas trevas / mas as trevas no a admitiram22. A
ideia fundamental da Hierarquia Celeste do Pseudo-Dionsio a transformao de Deus
em luz. Deus luz. Uma luz intemporal, no criada mas criadora. Mais uma vez a ideia tem
razes no Evangelho de So Joo, onde o prprio Cristo se assume como Luz: "Eu sou a Luz
do mundo; quem Me segue no andar nas trevas, mas ter a luz da vida"23. E nesta luz todo o
ser tem lugar; toda e qualquer criatura iluminada por Deus e transmite essa iluminao de
acordo com a sua escala na hierarquia terrestre: "[120 B] Toda a boa ddiva e todo o dom
perfeito vm do alto, descendo do Pai das Luzes24. Acrescentemos que, quando sob o impulso do
Pai, a Luz sai de si para se dividir e para nos iluminar com os seus dons excelentes, apenas ela
que, como poder reunificador, nos restitui ao nosso estado primitivo elevando-nos em direco ao
alto,[121 A], ela que nos converte ao Um e simplicidade divinizadora do Pai unificador. Pois
de acordo com a Palavra Sagrada, tudo vem Dele, tudo regressa a Ele"25. Assim, todo o universo
20 A obra (originalmente escrita em grego) havia j sido traduzida pelo bispo de Paris e abade de Saint-Denis, Hilduino [775-840], mas o imperador considerara essa traduo inintelgivel. Para uma anlise sumria da relao entre a obra de Joo Escoto Ergena (ou Erigena) [810-877] e a obra do Pseudo-Dionsio ver Maurice de Gandillac, "III. L' Influence Dionysienne / B. Jean Scot Eriugne", in Pseudo-Denys L' Aropagite, Oeuvres Completes, Opus Cit., pp. 49-53.
21 mesmo possvel afirmar que a partir da traduo e anlise da obra feita por Ergena que o Pseudo-Dionsio ir entrar no II milnio. A partir desta traduo "o pensamento pseudo-dionisino ir penetrar em toda a tradio teolgica e mstica da Idade Mdia, com dois grandes representantes nos sculos posteriores: Hugo de Saint-Victor no XII e Alberto o Grande no XIII.", F. Gasparri, "Introduction / II. Suger et Saint-Denis", in Suger, Oeuvres, vol. I, Paris, Les Belles Lettres, 1996, pp. XXXIII.
22 Evangelho segundo So Joo, "Prlogo", 4-5, in Bblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bblica, 1988.
23 Idem, ibidem, 8, 12, in Opus Cit. E anteriormente So Joo assim o definira no "Prlogo", 6-9, "Surgiu um homem enviado por Deus, cujo nome era Joo. / Veio como testemunha, para dar testemunho da Luz, / a fim de todos crerem por Seu intermdio./ Ele no era a Luz, mas veio para dar testemunho da Luz. / O Verbo era a luz verdadeira / que, vindo ao mundo / a todo o homem ilumina."
24 Para consultar a citao integral ver Tgo I, 17, in Bblia Sagrada, Opus Cit.
25 Pseudo-Denys L' Aropagite, "La Hierarchie Celeste", in Oeuvres Completes, Opus Cit., cap. I/1, p. 185. A ltima citao deriva de S. Paulo "Porque da parte d' Ele, por meio d' Ele e para Ele so todas as coisas.", Rom. 11, 36, in Opus Cit..
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luz fluida. De tal concepo deriva tambm a ideia de que possvel regressar a Deus
atravs da contemplao da luz e consequentemente dos objectos que so particularmente
luminosos e brilhantes26.
Os escritos do Pseudo-Areopagita foram, deste modo, uma das obras fundamentais
na elaborao teolgica do sculo XII e tiveram um forte impacto no abade de Saint Denis,
que procurou pass-los prtica aquando da reconstruo da abadia parisiense. O contacto
de Suger com a obra do Pseudo-Dionsio Areopagita deve-se ter processado por intermdio
de uma terceira figura, o abade Hugo de Saint-Victor [m. 1141], eminente filsofo do
sculo XII e autor de um comentrio Hierarquia Celeste, datado da dcada de 112027.
Suger no era um telogo na verdadeira acepo da palavra e provavel que tenha
recorrido anlise que Hugo de Saint-Victor, figura proeminente do universo teolgico-
intelectual de Paris, elaborou sobre a obra dionisina28. Os contactos que Suger pode ter
tido com o mestre mais ouvido na Paris daquele tempo, o ilustre mestre da Escola de Saint-
Victor, seu exacto contemporneo, no podem seno t-lo confortado na sua viso do
26 Um exemplo "[333 A] A veste pontifical significa o seu poder de se elevar espiritualmente at aos espectculos divinos e msticos e de a eles consagrar uma vida inteira.", Pseudo-Denys L' Aropagite, "La Hierarchie Celeste", in Opus Cit., cap. XV/4, p. 240. "Aceita-se o luxo, no em primeira instncia, para o prazer do homem, mas como exaltao da glria de Deus e instrumento do processo anaggico atravs do qual o esprito pode alcanar os immaterialia", F. Gasparri, "Introduction / II. Suger et Saint-Denis", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., pp. XXXV.
27 A sua anlise da obra foi, alis, particularmente relevante para a importncia que as ideias do Pseudo-Dionsio alcanaram no sculo XII: "A interpretao de Hugo preparou o terreno para a incorporao da tradio dionisina nas tradies teolgicas e contemplativas do Ocidente medieval.", G. A. Zinn, Jr., "Suger, Theology, and the Pseudo-Dionysian Tradition", in Abbot Suger and Saint-Denis, a Symposium, New York, edited by Paula Liber Gerson / The Metropolitan Museum of Art, 1986, p. 34. Esta anlise deve ser situada em ano incerto, depois de 1120 e antes de 1125. Ver F. Gasparri, "Introduction / II. Suger et Saint-Denis", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., pp. XXXV.
28 G. A. Zinn Jr., vai mesmo ao ponto de afirmar que o programa iconogrfico que Suger escolheu para as portas de bronze do portal central (e s quais dedicou um poema), deriva da interpretao particular que o Abade Hugo teria de A Hierarquia Celeste, segundo a qual "apenas atravs do Cristo crucificado, elevado e ascendente pode uma pessoa ter acesso ao verdadeiro significado do mundo material que leva Verdadeira Luz.", G. A. Zinn, Jr., "Suger, Theology, and the Pseudo-Dionysian Tradition", in Opus Cit., p. 35. Para consultar o poema ver, Suger, L Oeuvre Administrative/ 4. Les portes de bronze [et] dores", in Oeuvres, Opus Cit., pp. 115/117. Para uma anlise mais detalhada das ideias de G. A. Zinn Jr. ver o artigo do autor supra citado. Ver tambm F. Gasparri, "Introduction / II. Suger et Saint-Denis", in Suger, Oeuvres, Opus Cit. Entender Hugo de Saint-Victor como principal responsvel pelas opes escolhidas poder ser excessivo, mas lgico aceitar que Suger tenha discutido com Hugo de Saint-Victor, seno a prpria arquitectura e todo o programa iconogrfico do portal (e mesmo isso no seria descabido), pelo menos as componentes teolgicas que lhe serviram de base.
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mundo. Comentador, em 1125, da Hierarquia Celeste (...) e esprito prtico, autor de uma
practica geometria, Hugo concedia nos seus ensinamentos um lugar importante s artes
mecnicas e a sua obra est recheada de referncias arte enquanto suporte do espiritual29.
A abadia de Saint Denis vem, deste modo, a desempenhar um papel fundamental no
nascimento da arte gtica. A primeira abadia, dedicada ao santo patrono de Frana, foi
iniciada em 603 e funcionou desde a poca merovngia como necrpole real, o que lhe
granjeou um prestgio imenso30. Contudo, em incios do sculo XII, o espao edificado
tornava-se pequeno para as funes que lhe estavam destinadas, sendo que ao mesmo
tempo Suger possua ambies face abadia, propondo-se, assim, reestruturar a igreja31.
Suger vai procurar transformar a abadia no centro espiritual de toda a Frana e num local de
peregrinao para os francos, uma vez que era o local de sepultura de figuras como Pepino,
o Breve e Carlos, o Calvo, bem como o santurio do patrono francs. Durante o seu
abaciado, que vai de 1122 a 1151, data da sua morte, Suger no ter oportunidade de
reedificar toda a abadia32, centrando-se a sua aco nos extremos do edifcio entre c. 1135
e 1140, o nrtex, com a respectiva fachada, e, entre 1140 e 1144, a cabeceira33.
29 Franoise Gasparri, Suger, Moine, Abb, Btisseur, Homme d tat, in Dossiers dArcheologie, n 261, Mars 2001, p. 20. Sobre este assunto ver tambm Conrad Rudolph, Artistic Change at St-Denis, Abbot Sugers Program and the Early Twelfth-Century Controversy over Art, Princeton / New Jersey, Princeton University Press, 1990, cap. 8.
30 Para uma cronologia dos vrios perodos e fases de construo da abadia ver, Abbot Suger and Saint-Denis, a Symposium, cap. III, Architecture, New York, edited by Paula Liber Gerson / The Metropolitan Museum of Art, 1986, S. Gardner, "Saint-Denis Abbey. I. Architecture: 1. Carolingian / 2. Early Gothic", in The Dictionary of Art, New York, Grove, 1996, vol. 27 e C. Bruzelius, "Saint-Denis Abbey. I. Architecture: 3. Rayonnant / 4. From 1789", in The Dictionary of Art, New York, Grove, 1996, vol. 27. 31 Referindo-se s dimenses reduzidas da igreja e falta de espao para todos os fieis, Suger escreve que, enquanto novio, "em novo afligia-me do exterior e chegando idade madura desejava ardentemente encontrar uma soluo"; quando finalmente teve a oportunidade, enquanto abade, "propusemo-nos com todo o nosso corao, com toda a ternura do nosso esprito, a trabalhar rapidamente no engrandecimento desse espao", Suger, crit sur la Conscration de Saint-Denis (Scriptum Consecrationis Ecclesiae Sancti Dionysii), cap. 2, in Oeuvres, Opus Cit., p. 11.
32 Porm, "a descoberta de Crosby das vastas fundaes da nave, do sculo XII, provam, no apenas que Suger queria substituir a nave antiga, mas tambm que esse trabalho chegou mesmo a comear.", in W. Clark, "Suger's Church at Saint-Denis: the State of the Research", in Abbot Suger and Saint-Denis, a Symposium, New York, edited by Paula Liber Gerson / The Metropolitan Museum of Art, 1986, p. 105. F. Gasparri coloca a hiptese de o abade no ter podido continuar a obra devido sobrecarga das novas funes de regncia. Ver "Introduction / II. Suger et Saint-Denis", in Oeuvres, Opus Cit., p. XLV. O prprio abade fala sobre a possibilidade de poder no ser ele a completar a obra. Ver Suger, "L' Oeuvre Administrative", cap. 7 La poursuite de l' un et l' autre ouvrage, in Oeuvres, Opus Cit., vol. I, pp. 1 21-123. Quanto existncia de um
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A fachada [Fig. 1] introduz j alteraes a nvel da composio do conjunto, com
um maior nmero de aberturas face s antecedentes construes romnicas e com a roscea
central a fazer aqui a sua primeira apario, tendo esta fachada no seu conjunto
influenciado a maioria das suas congneres gticas posteriores34.
Se em termos das ideias do abade, da herana dionisina e da influncia de Hugo de
Saint-Victor a fachada j um espao privilegiado35, arquitectonicamente, a nvel da
transio de um universo romnico para um universo gtico, ser na zona da cabeceira -
que se afirma como uma das obras mais marcantes da arquitectura religiosa medieval - que
iremos encontrar os elementos mais decisivos36 [Figs. 2 e 3].
Estruturada segundo o modelo romnico das chamadas igrejas de peregrinao,
com uma capela-mor semi-circular de arcadas abertas para o deambulatrio, o projecto de
Suger ultrapassa o modelo romnico na forma como as capelas radiantes se organizam
elas deixaram de ser espaos independentes uns dos outros para se fundirem numa rea
claustro datado ainda do perodo do abaciado de Suger as informaes so mais escassas. Que existiu um claustro medieval, cuja cronologia se pode inserir no sculo XII e que foi demolido em meados do sculo XVIII, na sequncia da modernizao das dependncias monsticas, um facto aceite; mas a sua construo at 1151, data da morte de Suger, muito discutvel e o mais provvel que seja j posterior ao abaciado de Suger. Sobre o assunto ver L. Pressouyre, "Did Suger build the Cloister at Saint-Denis?", in Abbot Suger and Saint-Denis, a Symposium, New York, edited by Paula Liber Gerson / The Metropolitan Museum of Art, 1986.
33 Ver, para a cronologia das obras do Abade, Abbot Suger and Saint-Denis, a Symposium, cap. III, Architecture, Opus Cit., S. Gardner, "Saint-Denis Abbey. I. Architecture: 1. Carolingian / 2. Early Gothic", in Opus Cit.
34 Sobre a fachada ver S. Gardner, "Saint-Denis Abbey. I. Architecture: 1. Carolingian / 2. Early Gothic", in Opus Cit., p. 540; sobre as concluses derivadas das escavaes arqueolgicas feitas na fachada ver W. Clark, "Suger's Church at Saint-Denis: the State of the Research", in Opus Cit., pp. 105-108. Sobre a descrio da fachada pelo prprio Suger ver "L' Oeuvre Administrative", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., p.113.
35 Sobre a importncia que A Hierarquia Celeste e a anlise/interpretao da mesma por Hugo de Saint-Victor tiveram na fachada ver G. A. Zinn, Jr., "Suger, Theology, and the Pseudo-Dionysian Tradition", in Opus Cit. e F. Gasparri, "Introduction / II. Suger et Saint-Denis", in Suger, Oeuvres, Opus Cit.
36 S. Gardner considera mesmo que a cabeceira de Saint-Denis "marca um dos mais significativos pontos de viragem da arquitectura medieval.", in Op. Cit., p. 540. Para questes relacionadas com a planificao, geometrismo do espao e concluses derivadas das escavaes arqueolgicas na zona da cabeceira ver W. Clark, "Suger's Church at Saint-Denis: the State of the Research", in Opus Cit., pp. 108-116. Um outro aspecto importante prende-se com o universo escultrico e com a influncia que os capiteis vegetalistas de Saint-Denis tero tido no desenvolvimento de uma nova gramtica; W. Clark in "Suger's Church at Saint-Denis: the State of the Research", in Opus Cit., p. 121, nota 37, considera que o desenvolvimento do acanthus dionisino, poder explicar o desaparecimento dos capiteis historiados no incio do gtico.
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contnua, constituindo como que um segundo deambulatrio - (...) essa extenso elegante e
notvel distribuindo uma coroa de oratrios e graas qual [a igreja] inteira brilhar com a
luminosidade admirvel e ininterrupta de vitrais resplandescentes iluminando a beleza interior."37
Suger aplicou aqui o principio de substituio da pedra em beneficio da luminosidade e o
resultado um espao estrutural e arquitectonicamente leve e translcido. "Verticalidade e
luminosidade, estes eram os componentes da opus novum38: duplas janelas rasgam-se em
cada uma das setes capelas permitindo a entrada de luz de forma transbordante. A
estrutura e o abobadamento [das capelas radiantes] surgem em funo da nova amplitude
das janelas. A procura de luminosidade condicionou a arquitectura39. Esta uma ideia
chave: a ideia de que a arquitectura gtica resulta de uma busca de iluminao do espao. A
anulao das paredes de separao entre as capelas, que permite efectivamente uma
iluminao ininterrupta, cria igualmente uma espacialidade mais ampla e fluida.
Tem sido considerado, porm, que a ideia de Suger no foi completamente original
e que o processo de procura de uma maior amplitude espacial j havia sido tentado na
cabeceira da igreja parisiense de Saint-Martin-des-Champs40. Esta igreja romnica fundada 37 Suger, "crit sur la Conscration de l' glise de Saint-Denis (Scriptum Consecrationis Ecclesiae Sancti Dionysii)", cap. 7, in Oeuvres, Opus Cit., p. 27.
38 Franoise Gasparri, Suger, Moine, Abb, Btisseur, Homme dtat, in Dossiers d Archeologie, Opus Cit., p.22
39 Anne Prache, L' Architecture de l Abbaye de Saint-Denis, in Dossiers dArcheologie, n 158, Mars 1991, p. 44. Relativamente parte superior da cabeceira no tempo de Suger, apenas se podem colocar hipteses, uma vez que os andares superiores foram desmantelados no sculo XIII. Ver S. Gardner, "Saint-Denis Abbey. I. Architecture: 1. Carolingian / 2. Early Gothic", in Opus Cit., p. 541 e C. Bruzelius, "Saint-Denis Abbey. I. Architecture: 3. Rayonnant / 4. From 1789", in Opus Cit., p. 542. Ver tambm as concluses dos estudos feitos por S. Crosby e W. Clark in W. Clark, "Suger's Church at Saint-Denis: the State of the Research", in Opus Cit., pp. 114-115.
40 Ver sobre a igreja e a influncia que esta exerceu em Saint-Denis M. Bur, Suger, Abb de Saint Denis, Regent de France, Paris, Perrin, 1991, p. 238. Sobre as possveis influencias na edificao da cabeceira de Saint-Denis, inclundo a igreja de Saint-Martin-des-Champs, ver tambm J. Bony, "What Possible Sources for the Chevet of Saint-Denis?", in Abbot Suger and Saint-Denis, a Symposium, New York, edited by Paula Liber Gerson / The Metropolitan Museum of Art, 1986. Qualquer dos autores refere tambm a hiptese de uma influncia das rotundas paleocrists. Ver M. Bur, Ibidem, p. 239 e J. Bony, Ibidem, pp. 134-136. J. Bony, no artigo supracitado, p. 136, considera tambm fundamental a ideia de que Suger ter rejeitado o pesado sistema de suportes romnicos e optado por um retorno ao estilo de colunata utilizado no perodo paleocristo. A viagem de Suger a Roma e Santa S, em 1123, permitiu ao abade um contacto directo com as baslicas romanas, sendo provvel que esta viagem tenha tido um profundo impacto esttico em Suger. Sobre esta deslocao e sobre o impacto das construes romanas/paleocrists ver F. Gasparri, "Introduction / I. Vie de Suger", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., vol. I, pp. XV-XVII e "Introduction / II. Suger et Saint-Denis", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., vol. I, p. XLIV.
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graas a um mecenato do monarca Henrique I, em 1059 e consagrada em 1067, vai ser
alterada na zona da cabeceira pouco depois de 113041. A cabeceira de Saint-Martin-des-
Champs apresenta um deambulatrio duplo, com capelas, num esquema idntico ao que
Suger define para Saint-Denis, muito embora a espacialidade, a irregularidade das
propores e o equilibrio e harmonia geral do espao fossem distintos42. Apesar da
inspirao, o abade de Saint-Denis aperfeiou o plano para a sua igreja, nomeadamente a
nvel da regularidade e equlibrio das propores 43 [Figs. 4 e 5].
Com a edificao da cabeceira de Saint-Denis a arquitectura medieval sofre uma
transformao profunda, emergindo a ideia de Arte Gtica como Arte da Luz.
Recentemente, alguns autores44 questionaram o facto de Suger poder ser considerado um
arquitecto da luz ou de que o abade tenha sido verdadeiramente movido pelas teorias do
Pseudo-Areopagita. Um deles, Conrad Rudolph, afirma mesmo que o recurso s teorias da
luz apenas um argumento para justificar uma arquitectura opulenta. Mas o facto que o 41 Anteriormente ter existido uma baslica funerria merovngia, edificada entre o sculo VI e VII, e reestruturada no perodo carolngio, mas as informaes sobre estes perodos so escassas. Em 1079 Filipe I entrega a igreja e respectiva colegiada Ordem de Cluny, frente da qual se encontrava o famoso So Hugo [1024-1109, abade desde 1049 at sua morte]. A partir de 1093 d-se incio construo de uma nova igreja (substituda no sculo XIII), prolongando-se as obras ao longo das primeiras dcadas do sculo XII e edificando-se pouco depois de 1130 a cabeceira. Em 1800 a igreja transformada em Muse des Arts et Mtiers (aberto ao pblico em 1802) e ao longo do sculo XIX so levadas a cabo obras de recuperao dos espaos. O site oficial do Museu possui um historial/cronologia bastante detalhado. Ver http://www.arts-et-metiers.net
42 Saint-Martin-des-Champs destinava-se a funcionar como uma espcie de cripta exterior, colocada em torno da antiga abside do sculo XI a um nvel ligeiramente inferior; a irregularidade do espao visvel na falta de concordncia entre os pilares da fila exterior do deambulatrio e os que circundam o espao central. Ver J. Bony, "What Possible Sources for the Chevet of Saint-Denis?", Opus Cit., p. 135.
43 Uma questo que se levanta relativamente ao planeamento arquitectnico tem a ver com a definio do que que foi efectivamente delineado pelo abade. Sabemos que dois arquitectos trabalharam nas campanhas de Saint-Denis durante o abaciado de Suger um iniciou o trabalho do nartex/fachada e o segundo concluiu esta rea e foi responsvel pela edificao da cabeceira. O que no sabemos at que ponto o abade poder ter desenhado esboos pelos quais os arquitectos se tero guiado, ou se se ter limitado a expor uma ideia, materializada pela pena dos arquitectos. Em ultima anlise, a questo fundamental que a ideia pertenceria a Suger e derivaria do seu contacto com Saint-Martin-des-Champs, mas tambm, e sobretudo, do seu conceito de arquitectura religiosa e da importncia que questes como a luz e a geometria tinham para o abade. Sobre a relao com Saint-Martin-des-Champs ver Bur, Opus Cit., pp. 238-242 e J. Bony, "What Possible Sources for the Chevet of Saint-Denis?", in Opus Cit., pp. 134-138. Sobre o trabalho dos arquitectos ver S. Gardner, "Saint-Denis Abbey. I. Architecture: 1. Carolingian / 2. Early Gothic", in Opus Cit., p. 540.
44 Ver Conrad Rudolph, Artistic Change at St. Denis, Abbot Sugers Program and the Early Twelfth Century Controversy over Art, Opus Cit., e Roland Recht, Le Croire et le Voir, LArt des Cathdrales (XIIe Xve Sicle), Paris, Gallimard, 1999.
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programa arquitectnico de Suger privilegia a luz (quer seja natural, quer, enveredando por
uma outra vertente, artificial atravs do brilho do ouro e das pedras preciosas), o que nos
leva a questionar a argumentao deste autor. J na exaltao da fachada/portal Suger havia
sublinhado a importncia da luz A obra nobre resplandece, mas que essa obra que brilha na
sua nobreza / ilumine os espiritos para que eles, se dirijam atravs de verdadeiras luzes,/ para a luz
verdadeira onde o Cristo a verdadeira porta45. E aqui no possvel ignorar que Suger se
refere a uma iluminao espiritual, proveniente de uma iluminao material, sem dvida,
mas aludindo necessidade de os espritos de quem entra na abadia serem iluminados no
sentido metafsico da palavra46. -nos actualmente praticamente impossvel saber se Suger
estava verdadeiramente imbudo da metafsica da luz ou se, efectivamente, se serviu das
teorias do Pseudo-Dionsio apenas para justificar o seu programa artstico - da arquitectura
a todo o conjunto de peas de ourivesaria que constituam o tesouro da abadia. O
entusiasmo que ele coloca nos seus escritos e a forma como fala do espao iluminado
fazem, porm, crer que o abade entendia verdadeiramente a sua obra como uma iluminao
Enquanto que a parte posterior, nova, unida anterior, / a basilica resplandece, iluminada no
seu meio47./ Porque resplandece o que est brilhantemente unido s coisas luminosas; / e
atravessada por uma luz nova a obra nova resplandece, / aumentada no nosso tempo, e era eu,
Suger, que dirigia enquanto essa obra era realizada48. H nesta frase um orgulho
incomensurvel na sua obra, obviamente tambm na sua prpria pessoa49, mas esse orgulho
pessoal deriva daquilo que foi alcanado, da capacidade de criar um espao novo, envolto
45 Suger, L Oeuvre Administrative, in Oeuvres, Opus Cit., vol. I, p. 117.
46 Veja-se sobre este assunto Erwin Panofsky, L Abb Suger de Saint-Denis, Paris, ditions de Minuit, 1974, captulo IV, A Nova Arte e a Metafsica da Luz.
47 Subentenda-se aqui a baslica pr-existente, uma vez que a parte central da baslica (ou seja, as naves) s foi reconstruda aps a morte de Suger.
48 Suger, L Oeuvre Administrative, in Oeuvres, Opus Cit., vol. I, p. 121
49 Esta no a nica inscrio com o nome de Suger: entre inscries em pedra e inscries em objectos litrgicos, o nome do abade aparece catorze vezes. No se deve, porm, ir ao extremo de acusar o abade de narcisismo ou de orgulho excessivo, uma vez que Suger mais no fez do que seguir o tipo de modelo de inscrio clssica posteriormente utilizada ao longo da Idade Mdia. Veja-se a este propsito Franoise Gasparri, nota 188 ao L Oeuvre Administrative de l' Abb Suger (Gesta Suggerii Abbatis)", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., vol. I, p. 210. Ver ainda sobre esta questo e sobre as representaes de Suger em pedra e vitral, a mesma autora in "Introduction / II. Suger et Saint-Denis", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., vol. I, pp. LII-LIII.
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numa luminosidade completamente nova - uma "lux nova"50 nas suas prprias palavras.
Claramente Suger apercebeu-se da diferena entre o efeito visual e esttico da cabeceira de
Saint Denis e as anteriores obras romnicas, mesmo aquelas onde os elementos tcnicos do
gtico comeavam a aparecer51. Ser lgico acreditar que ao planear um espao to distinto
dos anteriores Suger se limitasse a tentar obter uma desculpa para o luxo utilizado ? E que
para alcanar essa desculpa tenha enveredado por uma to original soluo artstica ? No
nos parece suficientemente credvel que tal esforo derivasse apenas de uma tentativa de
justificao. Afigura-se sobejamente plausvel que o abade partilhasse, na realidade, das
teorias do Pseudo-Dionsio sobre a luz e que tenha procurado transp-las para a sua
criao52. Ao faz-lo revolucionou a arquitectura ocidental53.
2.2 Pensamento escolstico e opus novum
A sociedade parisiense (bem como de toda a regio da le-de-France) de meados da
centria dominada, intelectualmente falando, pela supremacia das escolas urbanas. No
decurso do sculo XII, as escolas urbanas tomam decisivamente a dianteira s escolas
50 Tambm aqui uma referncia explcita Luz de que nos fala So Joo no incio do seu Evangelho. Sobre isso ver Erwin Panofsky, LAbb Suger de Saint-Denis, Opus Cit., pp.42/43
51 Alis, a noo de diferena entre o [que hoje definimos como] romnico e gtico est patente na prpria descrio (por vezes pouco clara) que o abade faz da construo da cabeceira, na qual se refere necessidade de harmonizar a obra antiga (a capela existente na cripta que Suger acreditava ser do perodo de Hilduno) com a obra nova, sublinhando que no so iguais e mencionando a "beleza do comprimento e da largura" da obra nova. Ver Suger, "crit sur la Conscration de l' glise de Saint-Denis (Scriptum Consecrationis Ecclesiae Sancti Dionysii)", cap. 7, in Oeuvres, Opus Cit., vol. I, p. 27.
52 Esta questo prende-se tambm com problemticas complexas relacionadas com o entendimento da luz e da sua funo enquanto forma de acesso a Deus. A ideia da luz passa para l da importncia de iluminar e mesmo do significado da presena Divina, ela , em ltima instncia, uma forma de ascenso, uma forma de chegar at Deus. "A iluminao gtica significa algo mais para l da presena da luz divina: ela implica a clarificao e a compreenso; em termos arquitectnicos ela concretiza-se numa estrutura lgica resultante da interaco da luz e da substncia material. A forma da catedral gtica pode, assim, ser justamente definida como matria espiritualizada., in C. Norberg-Schulz, La Signification dans l Architecture Occidentale, Bruxelles, Pierre Mardaga diteur, 1977, pp. 221-222.
53 Esta problemtica da relao arquitectura gtica/luz e o seu impacto no territrio portugus , contudo, uma rea ainda pouco trabalhada pela investigao nacional. A anlise das obras arquitectnicas abordadas ao longo da dissertao aponta, porm, no sentido de uma maior conteno face exaltao da importncia da iluminao, que, no sendo descurada, assume, na maioria dos edifcios nacionais, um menor destaque.
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monsticas. Sados das escolas episcopais, os novos centros escolares emancipam-se delas
pelo recrutamento dos professores e dos alunos, pelos programas e pelos mtodos. A
Escolstica filha das cidades.54
O desenvolvimento das escolas urbanas, no final do sculo XI e ao longo do XII, vai
fazer-se em oposio s escolas monsticas, procurando alcanar Deus atravs da cincia
mas cada vez mais por meio dos processos racionais do pensamento, ao invs da via mstica
das escolas monsticas. Os novos mtodos e conceitos filosfico-teolgicos culminam no
sculo XIII com as obras de Roberto Grossatesta [c/ 1175-1253] e de So Toms de Aquino
[1225-1274]. A dialctica valorizada entre as artes liberais e as artes mecnicas assumem
uma posio de relevo que at a lhes era tendencialmente negada. Ora, todo o pensamento
escolstico vai tambm ser influenciado pelas correntes neoplatnicas retomadas por Santo
Agostinho e pela metafsica da luz do Pseudo-Denis, Areopagita.
Ao longo do sculo XII autores como Gilbert de la Porre [1076-1154], Thierry de
Chartres [c/ 1100-c/1150], Joo de Salisbury [c/ 1115-1180] e, j no sculo XIII, Roberto
Grossatesta, So Boaventura [1221-1274] e So Toms de Aquino iro desenvolver a ideia
da luz enquanto sinnimo de belo, sendo os dois conceitos associados a Deus55. O mestre de
Oxford e bispo de Lincoln, Roberto Grossatesta define assim o seu conceito de luz - [A
luz] bela em si mesma, dado que a sua natureza simples e compreende em si todas as coisas
simultaneamente. Por isso maximamente unida e proporcionada em relao a si prpria de
maneira conforme igualdade: a beleza , de facto, harmonia das propores 56.
Desta frase possvel extrair um outro aspecto importante que ocupou o
pensamento escolstico desde meados do sculo XII e que ser tambm visvel na
arquitectura gtica: a importncia da proporo enquanto sinnimo de belo. Entre as mais
54 Jacques Le Goff, A Civilizao do Ocidente Medieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1984, vol. I, p. 113.
55 E. Bruyne afirmou mesmo que " no sculo XIII que a esttica da luz aparece de uma forma sistemtica." in L' Esthtique du Moyen Age, Louvain, ditions de l Institut Suprieur de Philosophie, 1947, p. 71. Para uma listagem de alguns dos autores medievais influenciados pelas obras do Pseudo-Dionisio ver Maurice de Gandillac, "III. L' Influence Dionysienne / C. Perspective Cavalire sur sept Sicles Dionysiens", in Pseudo-Denys L' Aropagite, Opus Cit., pp. 49-57.
56 In Hexaemeron, cit. por Umberto Eco in, Arte e Beleza na Esttica Medieval, Opus Cit., p. 62.
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importantes escolas do sculo XII encontra-se a Escola de Chartres57. Para l da
redescoberta de Aristteles e Plato, a Escola de Chartres vai tambm desenvolver alguns
conceitos pitagricos de valorizao do nmero enquanto princpio do Universo, derivando
daqui o destaque dado proporo. Alis, j Santo Agostinho havia teorizado sobre o belo
associado geometria e proporo.
Qual a influncia destas ideias na arquitectura gtica? Essa uma questo
pertinente. Se a arquitectura gtica foi estruturada com base na geometria e no nmero, e
considerando que a Escola de Chartres era um dos mais prestigiados locais de estudos
geomtricos e numricos, pode-se assumir que as influncias teolgicas, filosficas e
matemticas da escola de Chartres foram uma das bases tericas da arquitectura gtica. O
prprio Suger fala no Scriptum Consecrationis "da ajuda de instrumentos geomtricos e
aritmticos"58, sendo que neste caso a utilizao da palavra instrumentos pode,
eventualmente, ser entendida no sentido, no de utenslios, mas sim de "um meio para
tornar a obra mais digna e gloriosa"59, ou seja, de uma forma figurativa de referir a
existncia de preocupaes geomtricas e aritmticas, de proporo e equilibrio das formas.
Sobre esta problemtica, Erwin Panofsky apresenta uma sntese pertinente:
muito pouco provvel que os construtores dos edifcios gticos tenham lido Gilbert de la
Porre ou Toms de Aquino no seu texto original. Mas eles estavam em contacto com a
doutrina escolstica de milhares de outras maneiras, independentemente do facto de a sua
actividade os colocar automaticamente em contacto com aqueles que concebiam os
programas litrgicos e iconogrficos. Eles tinham frequentado a escola; eles tinham ouvido
57 De mrito reconhecido desde o sculo XI, sob o domnio do bispo Fulbert [c/ 960-1028], por onde passaram Bernard de Chartres [chanceler 1119-1126], Gilbert de la Porre [chanceler 1126-1140], Thierry de Chartres [chanceler 1142-1150], Guillaume de Conches [mestre 1120-1150] e Joo de Salisbury [discpulo de Guillaume de Conches e bispo de Chartres entre 1176-1180], para citar apenas os mais clebres. Para uma breve informao sobre a Escola de Chartres ver J. Le Goff, Os Intelectuais na Idade Mdia, Lisboa, Gradiva, s.d., pp. 66-77.
58 Suger, "crit sur la Conscration de l' glise de Saint-Denis (Scriptum Consecrationis Ecclesiae Sancti Dionysii)", cap. 7, in Oeuvres, Opus Cit., vol. I, p. 27.
59 F. Gasparri, nota 51 ao "crit sur la Conscration de l' glise de Saint-Denis (Scriptum Consecrationis Ecclesiae Sancti Dionysii)", in Suger, Oeuvres, Opus Cit., vol. I, p. 187. A autora refere que a palavra instrumentum era passvel de diversas interpretaes e que, por exemplo, Thierry de Chartres, mestre da catedral entre 1141 e 1150, designa de instrumentum as quatro artes do Quadrivium, atravs das quais o "artificium do Criador visvel nas coisas". Idem, Ibidem, p. 187, nota 51.
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sermes; eles tinham podido assistir s disputationes de quolibet que, tratando de todas as
questes do momento, tinham-se tornado acontecimentos sociais bastante parecidos com as
nossas peras, os nossos concertos ou as nossas leituras pblicas (...) a totalidade do saber
humano mantinha-se acessvel ao esprito normal e no especializado60.
Independentemente de Panofsky ter procurado, com algum exagero, fazer a Arte
Gtica depender quase que exclusivamente do pensamento escolstico, esta afirmao em
concreto particularmente vlida. A conjuntura filosfico-teolgica do sculo XII (e
posteriormente ainda do sculo XIII) dominada por esse pensamento que extravasa para
l das prprias escolas atingindo todos aqueles que possuam um contacto mnimo com o
meio intelectual urbano. E a Escolstica, entre outros valores, ir defender a harmonia
atravs do nmero e da proporo, bem como a importncia da luz enquanto sinnimo de
beleza associada ao Criador. A Arte religiosa reflecte a mudana de viso que diferentes
idades possuram relativamente possibilidade de representar a verdade transcendental
numa obra de arte; uma renovada experincia religiosa produz habitualmente uma nova
resposta para esta questo. Isto eminentemente verdadeiro no que respeita Idade
Gtica61. E acima de todas as transformaes tcnicas o Gtico, ao nascer e expandir-se
em Frana, a teologia da luz materializada no templo sagrado, e tambm a procura e
sistematizao do equilbrio absoluto das propores, a perfeio das formas.
* * *
Em Portugal, as vertentes espirituais que marcaram o nascimento (e
desenvolvimento) do gtico em Frana, no iro ter todas o mesmo peso. Na realidade, as
questes associadas luz, por exemplo, possuem um impacto distinto no territrio
portugus e a arquitectura gtica portuguesa no ir absorver o modelo das catedrais do
Norte de Frana, no vindo, consequentemente, a erguer construes similares.
60 Erwin Panofsky, Architecture Gothique et Pense Scolastique, Paris, ditions de Minuit, 1974, pp. 84/85
61 Otto Von Simson, A Catedral Gtica, Origens da Arquitectura Gtica e o Conceito Medieval de Ordem, Lisboa, Editorial Presena, 1991, p.33
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Paralelamente as problemticas relacionadas com o nascimento e desenvolvimento
do gtico no nosso territrio prendem-se com as condies polticas da formao do reino,
bem como com as questes prprias da espiritualidade das ordens que as introduzem e
expandem, da derivando, como se ver, uma arquitectura com caractersticas prprias.
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Parte I:
A Implantao da Arquitectura Gtica em Portugal.
O Papel das Ordens Religiosas
1. A Ordem de Cister
A Minha Casa ser chamada a Casa de Orao
Isaas, 56,7
1.1 O pensamento de So Bernardo e a esttica cisterciense
A introduo ao estudo da arte cisterciense, incluindo as manifestaes
arquitectnicas, engloba problemas de enquadramento histrico, filosfico e at mesmo
teolgico, uma vez que se procura assimilar toda a essncia desta arte de forma a
compreender como ela se ir reflectir no nosso territrio.
Para o entendimento destes conceitos , antes de mais, fundamental uma anlise do
pensamento de So Bernardo de Claraval, figura lapidar do sculo XII e um dos principais
responsveis pelo desenvolvimento de uma esttica artstica que vrios autores classificam
como esttica cisterciense. A sua aprovao de uma determinada forma de construo62
levou mesmo a definir um estilo arquitectnico adoptado em vrias casas da Ordem, estilo
esse que foi, inclusive, denominado plano bernardino e cuja problemtica ser
desenvolvida mais adiante.
Uma das questes que nos surgem ao abordar a influncia da arquitectura
cisterciense no Gtico saber se, de certa maneira, So Bernardo no ser um dos
62 Veja-se nas pginas 42-43 as questes relacionadas com a construo de Himmerod feita de acordo com as directrizes de So Bernardo e levada a cabo pelo seu arquitecto. Veja-se Karl Heinz Esser, Les Fouilles a Himmerod et le Plan Bernardin, in Melanges Saint Bernard, Dijon, 1954.
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responsveis directos pelo opus novum, ou se ir apenas influenciar um estilo j
emergente63. De facto, com a sua crtica ao luxo excessivo nos santurios, So Bernardo
pugna por uma arquitectura despojada em termos decorativos, onde a pureza da construo
e a proporo das formas so essenciais (o referido plano bernardino). E estas so
premissas fundamentais da arte gtica. , pois, importante esclarecer qual foi,
efectivamente, o papel dos cistercienses e do seu lder espiritual, So Bernardo.
As questes que se colocam na prossecuo deste objectivo so vrias e complexas.
Um primeiro ponto a abordar tem a ver com o balizamento cronolgico de So Bernardo.
Bernardo nasce na Borgonha, na regio de Fontaine-les-Dijon, em 1090 , no seio de uma
famlia aristocrata, e continuar um aristocrata at sua morte64. O seu percurso, porm,
no ser o de um nobre, mas sim o de um monge. Em 111265 junta-se Ordem beneditina
de Cister, recentemente fundada por Roberto de Molesme [c. 1028-1111], dando entrada no
mosteiro de Cister, com quatro irmos e um tio. No ano seguinte, encontrando-se Cister
excessivamente povoado, o abade Estvo Harding [antes de 1066-1134] decide criar as
primeiras casas-filhas La Fert (18 de Maio de 1113), Pontigny (31 de Maio de 1114),
Claraval (25 de Junho de 1115) e Morimond (25 de Junho de 1115). A Bernardo entregue
a fundao do mosteiro de Claraval.
63 Esta questo tambm j havia sido alvo de preocupao para Angiola M Romanini, "O Projecto Cisterciense", in Histria Artstica da Europa, sob a direco de G. Duby e M. Laclotte, A Idade Mdia, Tomo II, por G. Duby, Lisboa, Quetzal Editores, 1998.
64 Pierre Rich, Bernard de Clairvaux, in Dossiers d Archeologie, n 229, Citeaux 1098/1998, 900 Ans de lAbbaye de Cteaux, L pope Cistercienne, Dec. 1997 Janv. 1998, Dijon, Editions Faton, p. 16. As prprias expresses usadas pelo Santo nos seus textos - por exemplo, a introduo de termos como Milites Christi ou apenas Miles, e a ideia sistemtica do combate espiritual - remetem para o universo cavaleiresco onde foi educado. Talvez o mais perfeito testemunho da fora das suas origens seja a obra De Laude Novae Militiae, escrita entre 1132-1135 para a Ordem do Templo, uma Ordem monstico-militar, composta por cavaleiros. Era filho de Tescelin de Chtillon e de Aleth de Montbard.
65 A data de entrada de S. Bernardo no Mosteiro de Cister levanta algumas dvidas, indicando alguns autores o ano de 1112 e outros o de 1113. Na tabela cronolgica apresentada por Dominique Bertrand e Guy Lobrichon no artigo Une Introduction Concertante, in Bernard Clairvaux, Histoire, Mentalits, Spiritualit, Prface de Thomas Merton, Drme, Comission d Histoire de L Ordre de Cteaux, 1953, pp. 32-41 refere-se o ano de 1113, data indicada na Vita Prima. Actualmente, porm, acredita-se que So Bernardo tenha entrado em Cister no ano de 1112, tendo os seus familiares seguido os seus passos entre 1112 e 1113. Ver Aires A. Nascimento, Cister, Documentos Primitivos, introduo, traduo e notas de Aires A. Nascimento, Lisboa, Edies Colibri, 1999, p. 21
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Assim sendo, preciso ter em conta que Bernardo de Claraval surge apenas na
chamada segunda gerao cisterciense e a fundao do mosteiro de Claraval por
Bernardo ( data ainda Bernardo de Fontaine) remonta, pois, apenas a 1115; mas a Ordem
em si j tinha quase vinte anos de existncia.
O Mosteiro de Cister fundado por Roberto de Molesme, na floresta com o mesmo
nome, datava de 1098 e este havia sido inicialmente designado como o Mosteiro Novo.
Antes existira j a comunidade de Molesme, fundada cerca de 1075 por Roberto66, data
prior da fundao beneditina de Saint-Ayoul de Provins67.
Bernardo de Fontaine junta-se a Cister em 1112 e o impacto das suas aces
verifica-se, sobretudo, a partir da ascenso ao abaciado de Claraval, ou seja, a partir de
1115. Antes de So Bernardo toda uma primeira gerao de cistercienses havia j
procurado definir um estilo de vida humilde e despojado, sendo estes, alis, objectivos
fundamentais na estruturao da Ordem. A fundao da Ordem de Cister nasce, na
realidade, da necessidade de reforma das instituies monsticas, que ento se fazia sentir
um pouco por toda a Europa, e, de baixo desse ponto de vista, insere-se num quadro
conjuntural prprio do incio do novo milnio68. So Bernardo ir, contudo, afirmar-se
66 A abadia/comunidade de Molesme foi fundada com o apoio de um eremita de nome Aubri ou Alberico (m. 1109), que, com alguns discpulos, vivia retirado na floresta de Collan, perto de Molesme. As informaes sobre Alberico e o seu papel na fundao de Molesme so muito escassas, mas o papel de Alberico foi certamente determinante no desenrolar dos acontecimentos. A sua interveno foi igualmente importante na deciso de abandonar Molesme e fundar um mosteiro novo. Jean- Baptiste Auberger afirma mesmo que (...) o verdadeiro fundador de Cister foi Alberico e no Roberto, que procurava acima de tudo uma reforma interna do mosteiro de Molesme., in La Lgislation Cistercienne Primitive et sa Relecture Claravalliene, in Bernard Clairvaux, Histoire, Mentalits, Spiritualit, Prface de Thomas Merton, Drme, Comission d Histoire de L Ordre de Cteaux, 1953, p. 181.
67 Sobre os primeiros anos da Ordem de Cister ver Jean-Baptiste Auberger, Cteaux, Les Origines, in Dossiers d Archeologie, n 229, Citeaux 1098/1998, 900 Ans de lAbbaye de Cteaux, L pope Cistercienne, Dec. 1997 Janv. 1998, Dijon, Editions Faton; J. F. Leroux-Dhuys, Cistercian Abbeys, History and Architecture, ditions Mengs / Konemann,1998, cap. III, From Molesme to Cteaux. 1075-1119, Marcel Pacaut, Les Moines Blancs, Histoire de L Ordre de Cteaux, Librairie Arthme Fayard, 1993
68 No existem em Histria criaes ex nihilo, e isto vlido para Cister. Esta Ordem no deve ser considerada como um fenmeno isolado (...) Verificavam-se incontestavelmente novas necessidades no monaquismo ocidental, correntes de ideias, tentativas mais ou menos felizes. no quadro deste movimento que convm recolocar a reforma cisterciense, reforma que surge como resultado necessrio de uma lenta evoluo comeada mais de um sculo antes da sua fundao. Dom Maur Cocheril, tudes sur le Monachisme en Espagne et au Portugal, Paris-Lisbonne, les Belle Lettres/Livraria Bertrand, 1966, p. 129. Recordem-se, para citar apenas alguns exemplos: em Inglaterra, a reforma de So Dustan [909-988], abade de Glastonbury, em 943-944 (Estvo de Harding estava, naturalmente familiarizado com esta reforma); em
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como um dos mais exacerbados defensores dos ideais de simplicidade e ascetismo, no
apenas dentro da Ordem, mas em todo o panorama medieval europeu. Pela sua fora
espiritual e pelo seu carisma Bernardo ser, sem dvida, a fonte inspiradora da segunda
gerao que ir fundar toda a restante espiritualidade, at ao sculo XVII.69.
Os primeiros testemunhos escritos sobre o estilo de vida cisterciense comeam a
chegar-nos ao longo da dcada de 1110: a Carta de Caridade e Unanimidade70 de Estvo
Harding data de 1113/1114. E o Exordium Parvum, novamente de Estvo Harding,
Itlia, os Camldulos, fundados por So Romualdo [925-1027], em Camaldoli, perto de Arezzo, e a Ordem de Vallombrosa, fundada na Toscana, em 1038, por So Joo Gualberto [995-1073]; Estvo Harding conheceu Gualberto aquando da sua viagem a Itlia e possvel que alguns aspectos da Ordem de Cister, como a ligao entre casa-me e casas-filhas, tenham sofrido influncia de Vallombrosa; paralelamente igualmente nesta Ordem que vamos encontrar as primeiras referencias aos Conversos que, depois, tambm iro aparecer na Ordem de Cister; a Ordem da Cartuxa, fundada em 1086, por So Bruno de Colnia [c.1030-1101], no deserto da Cartuxa (So Bruno e So Roberto de Molesme chegaram a conhecer-se); e em Frana, a reforma levada a cabo, em 1094, por Odon de Tournai no Mosteiro de Saint-Martin de Tournai (a proximidade cronolgica e at mesmo geogrfica deste movimento em comparao com o de Cister, leva tambm a pensar numa possvel influncia mtua). Em ltima anlise este surto de renovaes poderia recuar mesmo at aco de Bento Aniano [c. 750-821] e fundao do Mosteiro de Aniano (Aniane, perto de Lodve, no Languedoque), no qual impe a verdadeira regra beneditina revista por ele prprio afim de dar novamente um pleno valor espiritual ao oficio divino e ao trabalho manual e, de no abrir imoderadamente o monaquismo ao exterior. (...) Exerce, assim, uma influncia profunda que se traduz pelo retorno regra beneditina em inmeros mosteiros do Languedoque, do Macio Central e da Borgonha. Marcel Pacaut, Les Ordres Monastiques et Religieux au Moyen Age, Opus Cit., p. 67. Veja-se sobre estas questes Dom Maur Cocheril, Ibidem e Marcel Pacaut, Ibidem, pp. 56-70 e 110-138
69 Joel Regnard, Cteaux, esprit et pratique, in Dossiers d Archeologie, n 229, Citeaux 1098/1998, 900 Ans de lAbbaye de Cteaux, L pope Cistercienne, Dec. 1997 Janv. 1998, Dijon, Editions Faton, p. 30
70 Ao que tudo indica (e tendo em conta uma referncia mesma no documento de fundao de Pontigny, atribudo ao ano de 1114) a Carta de Caridade (Carta Caritatis Prior) um documento redigido a partir de 1113, que visa estabelecer um determinado numero de ideais de vida comunitria comuns a todas as casas da Ordem. Foi aprovada em Captulo Geral em Setembro de 1119 e obteve aprovao do Papa Calisto II, a 23 de Dezembro de 1119. Em data incerta, mas seguramente antes de 1130, a Suma Cartae Caritatis sintetiza a Carta Caritatis, embora especificando mais pormenorizadamente alguns aspectos pontuais. Cerca de 1165-1173 (e na sequncia da reviso feita, em 1151, para o pedido de aprovao ao Papa Eugnio III, concedido a 1 de Agosto 1152) introduziram-se estatutos complementares derivados de problemas surgidos ao longo dos anos, constituindo-se assim a Carta de Caridade Posterior (Carta Caritatis Posteriori). Ver quadro cronolgico apresentado por A. Nascimento em Cister, Documentos Primitivos, Opus Cit. Ver igualmente Jean-Baptiste Auberger La Lgislation Cistercienne Primitive et sa Relecture Claravalliene, in Opus Cit., Ren Locatelli, Rappel des Principes Fondateurs de l Ordre Cistercien, Aux Origines du Modle Domanial, in L Espace Cistercien, Actes du Colloque, Abbaye de Fontfroide, Mars 1993, sous la direction de Lon Pressouyre, Paris, Comit des Travaux Historiques et Scientifiques, 1994 e Juan M de la Torre, El Carisma Cisterciense y Bernardiano, in Obras Completas de San Bernardo, vol I, Introduccin General y Tratados (1), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, edicion preparada por Los Monjes Cistercienses de Espaa, prlogo de Dom J. Leclercq, Tomo I, 1983, pp. 18-21.
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remonta (na sua forma primitiva) a 1115/111971. Estvo, genial intrprete da primeira
gerao cisterciense, fixou os traos essenciais da espiritualidade da sua ordem: autntica
fidelidade regra, pobreza e, sobretudo, caridade.72
A figura de Estvo Harding, terceiro abade do mosteiro de Cister [1109-1133] ser
lapidar na estipulao e definio dos estatutos de Cister e ter igualmente uma aco
determinante na vida de So Bernardo, uma vez que Estvo quem encarrega o jovem
monge da fundao de Claraval.
Quando Estvo Harding chega ao governo de Cister a Ordem ainda no possua
estatutos especficos que definissem as premissas e regras pelas quais os monges se deviam
reger. Os encontros anuais dos abades em captulos haviam j procurado definir uma
uniformidade de hbitos e costumes, mas ser Estvo quem ir estruturar a organizao
interna da Ordem ao elaborar a partir de 1113/1114 a Carta Caritatis, uma Carta de
Caridade e Unanimidade, que estipula a criao de captulos gerais anuais nos quais os
assuntos fundamentais para o bom funcionamento e homogeneidade da Ordem seriam
discutidos. A aprovao papal da Carta Caritatis marca o comeo legal da Ordem e a
partir desta data que se comea a falar de cistercienses.
A composio pelo terceiro abade de Cister do Exordium Parvum (ou de um esboo
do que viria a ser o Exordium Parvum73) no qual se renovam os ideais de humildade,
pobreza e despojamento, fundamental para a estruturao desses conceitos e ter reflexos
em obras posteriores, nomeadamente no Exordium Cistercii74 (Exrdio de Cister), em que
71 A atribuio do Exordium Parvum a Estvo Harding foi feita no sculo XVII por B. Tissier. Na dcada de cinquenta J.A. Lefvre rebateu essa teoria, situando o texto cerca de 1151-1152. A teoria no foi, porm, consensualmente aceite e muitos historiadores continuam a considerar Harding o autor do Exordium Parvum. Ver nomeadamente Maur Standaert, tienne Harding (saint), in Spiritualit Cistercienne, Histoire et Doctrine, Paris, Beauchesne, 1998, p. 139. A problemtica tambm abordada por A. Nascimento, in Cister, Documentos Primitivos, Opus Cit., pp.21-24. Este autor considera que provvel que a forma actual do Exordium Parvum seja resultado de intervenes posteriores, onde se reflectem tenses que se tornam mais evidentes entre 1130 e 1150 entre cistercienses e cluniacenses. Nessas condies, um Exrdio Primitivo que acompanharia os documentos apresentados ao Papa e bem assim, posteriormente, a bula de aprovao, teria sofrido remodelaes, mas elas so difceis de determinar, p. 23.
72 Maur Standaert, tienne Harding (saint), in Opus Cit., p. 141
73 Ver nota 71, na pgina 30.
74 A datao e atribuio do Exordium Cistercii tambm no linear. Sobre o assunto A. Nascimento escreve o seguinte: Ultrapassada est a opinio que atribua este texto ao prprio Estvo Harding, mas no sem
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esses ideais vo ser expressos inclusive nos ornamentos litrgicos, clices sagrados e
alfaias litrgicas75.
Antes da famosa Apologia bernardina Estvo havia j exortado pobreza e
despojamento76, mas este abade no enveredou pela questes artsticas no h na Carta
Caritatis aluses s representaes pictricas, escultricas ou prpria arquitectura (alis, e
talvez, contraditoriamente, Estvo Harding ir ser o responsvel por uma das mais
luxuosas Bblias iluminadas da Ordem cisterciense - a Bblia de 1109). E quanto ao
Exordium Cistercii, em que essas directrizes se encontram, parece ser posterior Apologia,
pelo que se pode supor que tenha j sido influenciado por ela. Estvo foi contudo,
definitivo na orientao quanto aos hbitos de pobreza e nisso antecede So Bernardo,
estabelecendo directrizes e normas de uma forma inclusive mais sistemtica do que o abade
de Claraval viria a fazer. Bernardo, porm, ir mesmo entrar no domnio da arte e com isso
marcar as legislaes posteriores. Se fosse necessrio caracterizar ambas as figuras, poder-
se-ia dizer que tienne teve mais o carisma da instituio e da organizao da nova ordem e
Bernardo o da intuio e da inspirao mstica (...) da conjugao do carisma destes dois
homens que resulta o sucesso da ordem de Cister.77
maior razo se apontou a sua origem claravalense e se sublinharam relaes de semelhana com expresses utilizadas por S. Bernardo em data prxima dos anos de 1123 ou 1124, pelo que se poder presumir que o autor seja algum dos secretrios do fundador de Claraval. Todavia a imagem de Estvo Harding demasiado elaborada e elogiosa para ser consentida por ele; pelo que ser mais prudente atribuir a redaco actual a data posterior sua morte, circunstncia que nos leva para dez anos mais tarde, por 1134. O intervalo de confirmao haver que coloc-lo antes de 1147, data do manuscrito mais antigo., in Cister, Documentos Primitivos, Opus Cit., p. 47
75 L-se o seguinte nos captulos XXV e XXVI: XXV.1. Que seja consentido fazer ou no com ouro, prata, pedras preciosas e seda. 2. As toalhas dos altares e os paramentos do ministro no tenham seda, com excepo da estola e do manpulo; a casula seja de uma s cor e no mais. 3. Qualquer das alfaias do mosteiro, vasos e utenslios, no sejam de ouro, de prata e de pedras preciosas, com excepo do clice e da col
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