179 anos do levante dos malês

Post on 14-Dec-2015

5 Views

Category:

Documents

0 Downloads

Preview:

Click to see full reader

DESCRIPTION

Uma versão deste texto foi publicada em Jornal A Verdade.

TRANSCRIPT

179 anos do Levante dos Malês

O Brasil do período regencial foi palco de diversos conflitos que tinham como objetivo a tomada do poder ou a reivindicação por melhores condições de vida. É nesse contexto que está inserida a Revolta dos Malês1, ocorrida entre os dias 25 e 27 de janeiro de 1835. Considerada a maior rebelião escrava que se tem notícias no Brasil, foi organizada por africanos escravizados, em sua maioria Haussás e nagôs, em um domingo de festa de Nossa Senhora da Guia, um momento de distração de seus opressores e por isso favorável à rebelião.

O plano era que acontecesse nas primeiras horas da manhã do dia 25, mas teve que ser antecipada e realizada ainda de madrugada porque foram denunciados. Os rebeldes pensaram em levar o movimento ao Recôncavo, onde tinham contatos e de onde fugiram alguns escravos para lutar nas ruas da capital. Já derrotados, os rebeldes tentaram deixar a cidade para se unir a escravos de um engenho no Cabrito, saída de Salvador e entrada do Recôncavo, o que nunca conseguiram.

Alguns fatores contribuíram para proporcionar a revolta na Bahia e não em outro estado, uma delas era a composição dos cativos. Salvador tinha na época da revolta em torno de 65.500 habitantes, dos quais cerca de 40% eram escravos. Entre a população não escrava, a maioria era também formada por africanos e seus descentes, e os brancos não passavam de 22%. Entre os homens e mulheres escravizados, 63% eram nascidos na África, mas chegavam a 80% na região dos engenhos de açúcar, o Recôncavo.

A origem dessa população também foi fator importantíssimo, pois na época da revolta a maior parte era embarcada no golfo do Benim (portos de Ajudá, Porto Novo, Badagri, Lagos); era uma região de conflitos coloniais em que a maioria dos guerreiros capturados era trazida para o Brasil escravizada, e foram alguns desses últimos grupos os mais diretamente ligados à revolta, com cerca de 30% de língua iorubá.

A cidade de Salvador tinha uma economia baseada na escravidão, que girava em torno da cana-de-açúcar produzida no Recôncavo; os escravos eram empregados em todo tipo de atividade rural, mas não estavam restritos a ela, atuando em diversas atividades.

A organização dos cativos foi facilitada pela possibilidade de trabalho na área urbana, que lhes dava maior independência. A negociação frustrada pela liberdade também poderia ser fator desencadeador de conflitos, caso o escravo tivesse meios financeiros para pagar pela alforria e o senhor se negasse a concedê-la.

À época do movimento de 25 de janeiro, cerca de 7% da população de Salvador era composta por africanos libertos; esse número correspondia a 25% da população africana da cidade. Africanos (escravizados ou libertos) interagiam cotidianamente, fortalecendo vínculos e laços de solidariedade que constantemente se desdobravam em ações políticas, constituindo-se, inclusive, como fator de mobilização para o levante de 35. A solidariedade e identidade étnica foram aglutinadores nesse caso específico, pois os revoltosos eram, em sua maioria, nagôs (mais de 80% dos réus escravos contra 30% dos africanos de Salvador). Para se ter uma idéia, cinco dos sete líderes identificados2 eram nagôs.

Organizado e executado exclusivamente por africanos – isso deixa de fora os crioulos3 – o levante foi um movimento político que tinha um projeto de tomada do poder onde, apoiados por africanos não muçulmanos, foram responsáveis por planejar e mobilizar os rebeldes. Nas ruas, guerrearam usando um abadá4 branco e amuletos protetores com cópias em papel de rezas e passagens do Corão dobradas e enfiadas em bolsinhas de couro ou pano, feitas por mestres muçulmanos, muitos deles líderes da revolta.

1 Africanos de religião muçulmana.2 Os escravizados Ahuna, Pacifico Licutan, Sule ou Nicobé, Dassalu ou Damalu e Gustard. O liberto Manoel Calafate era nagô, e também o escravo tapa Luís Sanim e o liberto haussá Dandará.3 Negros nascidos no Brasil.4 Espécie de camisolão tipicamente muçulmano.

As mulheres tiveram papel importante na organização do Levante dos Malês, circulando pela cidade na realização de seus afazeres. A quituteira Luiza Mahin é a mais lembrada delas: liberta de nação nagô, teria participado de diversas conspirações na Bahia. Em poema do poeta e abolicionista Luiz Gama, seu filho, ela é descrita como “pagã que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. Luiza Mahin não teria sido condenada com os réus do levante de 35, depois da Sabinada foi para o Rio de Janeiro e nunca mais voltou.

A posse dos amuletos foi considerada como prova de rebeldia por isso, apesar de nem todos os africanos muçulmanos na Bahia de 1835 terem participado da revolta; muitos inocentes foram acusados, presos e condenados. Foram dadas sentenças que iam desde a prisão ou prisão com trabalho, até a morte ou deportação para a África. Morreram mais de 70 rebeldes contra uns dez opositores. O medo de um novo levante se difundiu pelas demais províncias do Império. Os jornais publicaram notícias sobre o acontecido na Bahia e as autoridades aumentaram a vigilância e a repressão sobre a população africana.

A repressão e o controle sobre a população escravizada que se seguiu foram severas, fazendo com que as revoltas escravas praticamente desaparecessem; mas seu principal mérito foi a diminuição do tráfico africano, proibido desde 1831, apesar de continuar existindo o contrabando de escravos. A partir desses acontecimentos foi reduzida drasticamente a entrada de africanos novos.

Escravidão e resistência no Brasil estão entrelaçadas de maneira que não se pode falar de um sem lembrar o outro. Foram diversas as formas de resistir ao cativeiro, variando desde a mais simples, como as manobras e negociações cotidianas, até as mais articuladas como os levantes e as sociedades quilombolas. Suicídio, infanticídio, feitiços e envenenamentos, tudo mostra que não existiu uma paz entre senhores e escravos, como tentou nos fazer acreditar Gilberto Freyre.

Os homens e mulheres sequestrados de seu continente iniciaram a luta dos negros no Brasil pela liberdade; nunca passivos, construíram com seus braços a nação da qual até hoje são excluídos. Lutaram, guerrearam, resistiram. Lembrar a história de luta desses companheiros e companheiras é tomar para si suas conquistas e reviver seu passado inspirador, reconhecendo o papel que eles cumpriram por mostrar que é possível a luta contra a opressão, mesmo em sua face mais cruel que é a posse institucionalizada de um ser humano por outro. Escravizados ou não, esses homens e mulheres devem ser reconhecidos por todos que lutam por uma sociedade justa.Luiza Mahin, presente!

Bibliografia:GONÇALVES, Aline Najara da Silva. Luiza Mahin : uma rainha africana no Brasil. 1.ed. – Rio de Janeiro : CEAP, 2011. REIS, João José. A Revolta dos Malês em 1835. Universidade Federal da Bahia. Disponível em: www.educacao.salvador.ba.gov.br/documentos/a-revolta-dos-males.pdf. Consultado em 25/01/2014.Recôncavo Rebelde: Revoltas escravas nos engenhos Baianos. Disponível em: http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n15_p100.pdf. Consultado em 25/01/2014.

Jessica Mara Raul - Historiadora

top related