00_investigacao filosofica, v. 6, n. 2, 2015
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Investigao Filosfica
Revista de Filosofia
ISSN: 2179-6742
Investigao Filosfica, v. 6, n. 2, Ago./Dez., Rio de Janeiro, 2015, 85 p.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO LGICA E METAFSICA
Coordenador
Rodrigo Guerizoli
Vice-Coordenador
Carolina de Melo Bomfim Arajo
Revista desenvolvida em parceria com o Programa de Ps-Graduao Lgica e Metafsica (PPGLM)
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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INVESTIGAO FILOSFICA
http://periodicoinvestigacaofilosofica.blogspot.com.br/
ifilosofica@gmail.com
Editores Responsveis Rodrigo Reis Lastra Cid
Luiz Maurcio Bentim da Rocha Menezes
Coordenadores Editoriais Luiz Helvcio Marques Segundo
Mayra Moreira da Costa
Pedro Vasconcelos Junqueira Gomlevsky
Conselho Editorial Danillo de Jesus Ferreira Leite
Guilherme da Costa Assuno Ceclio
Luis Fernando Munaretti da Rosa
Luiz Helvcio Marques Segundo
Luiz Maurcio Bentim da Rocha Menezes
Mrio Augusto Queiroz Carvalho
Mayra Moreira da Costa
Pedro Vasconcelos Junqueira Gomlevsky
Renata Ramos da Silva
Rodrigo Alexandre de Figueiredo
Rodrigo Reis Lastra Cid
Sagid Salles Ferreira
Tiago Lus Teixeira de Oliveira
Conselho Consultivo Alexandre Meyer Luz
Alexandre Noronha Machado
Carlos Eduardo Evangelisti Mauro
Desidrio Orlando Figueiredo Murcho
Guido Imaguire
Mrio Nogueira de Oliveira
Michel Ghins
Roberto Horcio de S Pereira
Rodrigo Guerizoli Teixeira
Rogrio Passos Severo
Srgio Ricardo Neves de Miranda
Ulysses Pinheiro
Equipe Tcnica Logotipo: Thiago Reis
INVESTIGAO FILOSFICA
Revista de Filosofia Semestral
Volume 6, nmero 2, 2015, 85p.
Publicao digital
ISSN: 2179-6742
1. Filosofia Peridicos. 2. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e
Cincias Sociais. Programa de Ps-Graduao Lgica e Metafsica. 3. Blog Investigao Filosfica.
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Sumrio / Contents
Editorial..................................................................................................... 01
Artigos/Articles
A biologizao da poltica e a politizao do biolgico: Poder e vida na operao
soberana
Pedro Lucas Dulci........................................................................................... 02
A relevncia do comum real no sistema tomista
Tiago Sebastio Reis......................................................................................... 23
O dilema pessimista do futuro da filosofia
Joo Carlos Silva............................................................................................... 39
Subjetividade em Kant a partir de uma leitura de Michel Foucault
Fabiane Marques de Carvalho Souza................................................................ 51
Resenhas/Reviews
Stuart Mill. Sobre a liberdade
Camila Pereira Lisboa....................................................................................... 76
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Investigao Filosfica, v. 6, n. 2, 2015. (ISSN: 2179-6742) Editorial
http://periodicoinvestigacaofilosofica.blogspot.com.br IF 1
Investigao Editorial
Damos aqui inicio ao volume 6, nmero 2 da revista Investigao Filosfica. O
primeiro artigo desta edio tem por objetivo problematizar a condio poltica
contempornea. O segundo artigo busca mostrar que algumas partes do sistema tomista
defendem que os universais estejam na realidade. O terceiro artigo tem por objetivo a
anlise filosfica do dilema relativo possibilidade, sentido e valor futuros da
investigao filosfica fundamental. O quarto e ltimo artigo desta edio tem por
objetivo pesquisar a tematizao da subjetividade em Kant a fim de esclarecer a leitura
deste ponto realizada por Michel Foucault. Por fim temos uma resenha da obra de Stuart
Mill intitulada Sobre a Liberdade.
Desejamos a todos uma boa e agradvel leitura filosfica.
Rodrigo Cid
Luiz Maurcio Menezes
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Investigao Filosfica, v. 6, n. 2, 2015. (ISSN: 2179-6742) Artigos/Articles
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A BIOLOGIZAO DA POLTICA E A POLITIZAO DO BIOLGICO:
PODER E VIDA NA OPERAO SOBERANA
Pedro Lucas Dulci1
RESUMO: o presente artigo tem por objetivo, a partir dos recentes acontecimentos envolvendo
refugiados e imigrantes para a Europa, problematizar a condio poltica contempornea.
Atravs da chave de leitura biopoltica de Michel Foucault e Giorgio Agamben, procuraremos
mostrar que o que est no centro das caractersticas distintivas da governamentalidade atual
uma biologizao da vida nua, ou seja, o mero preocupar-se com os corpos de indivduos
matveis ainda que, ao mesmo tempo, sejam insacrificveis. Para tanto, nos ocuparemos com os paradoxos jurdico-poltico envolvendo a noo de soberania, bem como a aporia envolvendo
o poder constituinte e o poder constitudo.
PALAVRAS-CHAVE: Refugiados. Biopoltica. Soberania. Homo Sacer. Poder constituinte.
Abstract: from the recent events involving refugees and migrants to Europe, this article
discusses the contemporary political condition. Through key biopolitics reading Michel
Foucault and Giorgio Agamben, will try to show what is at the core of the distinguishing
features of the current governmentality is a biologization of bare life. That is, the mere concern
itself with the bodies of killable individuals - although at the same time, they are insacrificveis.
To this end, we will work with the legal and political paradoxes involving the notion of
sovereignty, but also the aporia involving the constituent power and constituted power.
Keywords: Refugees. Biopolitics. Sovereignty. Homo Sacer. Constituent power.
Introduo
No ltimo ms de setembro, o mundo recebeu a foto do corpo de Aylan Kurdi
encontrado em uma praia de Bodrum. O menino srio de trs anos faleceu tentando,
junto com sua famlia, a travessia clandestina entre a Turquia e a Grcia. Ainda que a
imagem do corpo de uma criana morta em uma praia tenha causado uma consternao
internacional, Paulo Srgio Pinheiro, o lder da comisso da Organizao das Naes
Unidas que investiga crimes de guerra na Sria, nos garante que o espetculo de
cadveres nas praias da Europa era um fenmeno previsvel (BBC, 2015, s/p.), em
razo da situao catica que o pas atravessa. Talvez a comoo internacional no
tenha tido lugar em nosso meio antes porque nem todas as imagens de seres humanos
mortos na praia so to comoventes quanto de uma criana branca como o caso de
centenas de negros que morrem todas as semanas em botes que naufragam antes de
chegar praia, como acontece em Lampedusa, na Itlia, todos os anos. Nesse sentido,
aps o momento de sensibilizao mundial, agora que precisamos pensar a chamada
1 Doutorando em Filosofia (UFG).
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crise humanitria envolvendo os refugiados e migrantes contemporneos.
Desassociando de qualquer repetio atravs da comparao de imagens como
fizeram alguns entusiastas de redes sociais com outras fotografias histricas de crianas
em condio de abandono morte convm perguntarmos: o que est em questo na
atual odissia migratria em botes atravs do Mediterrneo?
Vrios so os fatos que nos chamam ateno nessas notcias, no entanto, o
filsofo esloveno Slavoj iek parece atingir o centro da questo quando sustenta que
esse incidente, envolvendo os refugiados e imigrantes, mostra que: a noo de
Agamben do homo sacer, o excludo da ordem civil que pode ser morto impunemente,
est em plena ao no corao da prpria Europa, que se v como ltimo bastio dos
direitos humanos e da ajuda humanitria em contraste, por exemplo, com os Estados
Unidos e os excessos da guerra ao terror (2011, p. 49-50). Em seguida, iek
desenvolve propriamente o seu argumento descrevendo um paradigma poltico de quase
dez anos, mas que ainda atual:
Em julho de 2008, como numa irnica anuncia teoria do estado de exceo de
Giorgio Agamben, o governo italiano decretou estado de emergncia em toda a
Itlia para enfrentar o problema do Prximo em sua forma contempornea
paradigmtica: a entrada ilegal de imigrantes da frica do Norte e da Europa
oriental. No incio de agosto, dando um expressivo passo alm nessa direo,
foram mobilizados 4 mil soldados armados para controlar pontos sensveis nas
grandes cidades (estaes ferrovirias, centros comerciais...) e, assim, elevar o
nvel de segurana pblica. Atualmente, tambm h planos de usar as foras
armadas para proteger as mulheres contra estupradores. Aqui, o importante
observar que o estado de emergncia foi institudo sem grandes protestos: a vida
continuou normalmente... No seria esse o estado do qual nos aproximamos nos
pases desenvolvidos do planeta, onde esta ou aquela forma de estado de
emergncia (empregada contra ameaas terroristas, imigrantes etc.)
simplesmente aceita como medida necessria para garantir o curso normal das
coisas? (IEK, 2011, p. 49).
A aluso de iek, no pargrafo supracitado, teoria do estado de exceo e do
homo sacer, ambas oriundas do pensamento de Giorgio Agamben, tem por inteno
mostrar que o que est em prtica corrente na gesto pblica dos pases mais
desenvolvidos do mundo uma clara expresso da xenofobia insensata e inaceitvel
para os padres democrticos, em prol de medidas sensatas de segurana pblica no
menos xenofbicas e racistas. Nas palavras de iek: essa viso de desintoxicao do
Prximo representa uma passagem clara do barbarismo direito para o barbarismo
berlusconiano de rosto humano (2011, p. 50). Aqui, a invocao da figura de Silvio
Berlusconi bastante significativa, pois se trata de um fenmeno poltico caracterstico
de nossa contemporaneidade pblica, em que tnhamos o poltico mais poderoso da
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Itlia agindo de forma absurda e totalmente desavergonhada, ora ignorando, ora
minimizando as investigaes legais sobre suas atividades criminosas que sustentam
interesses comerciais particulares a partir de suas influncias como chefe de Estado.
Com esse exemplo, presenciamos um rompimento com a dignidade poltica clssica,
onde tnhamos a esfera ideal do citoyen separada dos conflitos e interesses egostas
caractersticos do bourgeois. O procedimento de Silvio Berlusconi mostra, de maneira
sintomtica, que essa separao foi drasticamente extinguida. O que temos que: na
Itlia contempornea, o poder do Estado exercido diretamente pelo vil bourgeois que
explora de maneira clara e impiedosa o poder do Estado para proteger seus interesses
econmicos e discute seus problemas conjugais diante dos milhes (2011, p. 51) que
acompanham a transmisso televisiva, no pior estilo de um reality show.
A grande questo que paira sobre os que identificam esse rompimento com a
dignidade clssica do fazer poltico : como foi possvel chegar a tal ponto?
Acreditamos que a resposta sobre tal possibilidade se deu atravs da insero do mero
indivduo, como simples corpo vivente, nas estratgias de gesto poltica vigentes. Ou
ainda, para usarmos a terminologia original de Michel Foucault, o acoplamento da vida
no aparato governamental chamado de virada biopoltica. Por trs de cada um dos
exemplos especficos envolvendo os refugiados e migrantes mencionados
anteriormente, existe uma dinmica biopoltica que perpassa as principais prticas da
gesto pblica como um denominador comum. O propsito do presente artigo
explorar justamente essa dinmica, bem como os seus mais evidentes resultados a
figura do homo sacer como paradigma poltico.
1. A biologizao da poltica e a politizao do biolgico
Antes de explorarmos a zona de indiferena que existe hoje em dia entre as
principais categorias polticas (direita/esquerda; privado/pblico;
absolutismo/democracia etc.), convm retrocedermos um pouco para quando tal
indiferena no era to evidente. 2 Para tanto, Agamben recua at a Poltica de
2 Utilizamos a expresso to evidente como um modo sutil de questionar a preciso total da
diferenciao que apresentaremos a seguir. Fazemos isso, tendo em mente que a recuperao que
Agamben faz da filosofia poltica de Aristteles como a porta de entrada privilegiada para os gregos no assim to exclusiva. O brilhante professor argentino Fabin Luduea Romandini nos amplia o
horizonte quando nos lembra que: Agamben acentuou a distino entre zo e bos, tentando demonstra que, para os gregos, somente o bos era algo semelhante a uma vida qualificada e, portanto, o sujeito mais
prprio da poltica, enquanto a zo representava, por assim dizer, uma vida natural originalmente excluda
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Aristteles para mostrar que os gregos tinham, pelo menos, dois temos para fala sobre
aquilo que chamamos de vida. So eles: zo que exprimia o simples fato de viver
comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bos, que indicava a forma
o maneira de viver prpria de um indivduo ou de um grupo (AGAMBEN, 2002, p. 9).
Em outras palavras, enquanto a zo sempre dizia respeito simples vida natural dos
seres vivos, sejam eles quem for, a bos aponta para um estilo de vida qualificado, um
modo de vida particular. Nesse sentido, a simples vida natural no poderia ser objeto
dos assuntos da polis grega, antes, precisava estar restrita a o mbito do oikos, fazendo
com que o alvo da comunidade poltica seja radicalmente diferente do mbito privado
da casa enquanto a primeira visa o bem viver e a vida politicamente qualificada, a
segunda objetiva a simples vivncia e reproduo da vida. 3
Exclusiva de Aristteles ou no, tal diferena clara entre esses dois modos de
vida no permaneceu inalterada. Foi o filsofo francs Michel Foucault que, ao final de
sua anlise empreendida para compreender as sociedades modernas, identificou a
modificao do exerccio e da representao do poder soberano e junto dela, o fim da
clara separao entre zo e bos. Esquematicamente, podemos dizer, a partir de Vigiar e
Punir e A vontade de saber, que, enquanto por muito tempo as duas marcas
caractersticas do poder soberano fora o fazer morrer e deixar viver, relacionado figura
jurdica que confiscava e apropriava-se dos bens, dos corpos e da vida dos indivduos; a
partir da idade clssica o Ocidente viu a desqualificao da morte, e o desuso dos rituais
polticos que o acompanhavam, enquanto exerccio do poder soberano. A frmula agora
fazer viver e deixar morrer, tudo isto atravs da ordenao de normas para a gesto e
controle desta vida produzida e no mais fundamentalmente pelo direito que, como
nos mostrar Agamben, muitas vezes precisa ser suspenso para dar lugar s medidas de
do mundo da cidade. Esta leitura, indubitavelmente parcial, no leva em conta, para comear o corpus
platnico que acabamos de considerar. Somente com a excluso deste ltimo das verdadeiras origens da vida poltica que foi possvel concluir que existe algo como uma oposio to ntida entre zo e bos (ROMANDINI, 2012, p. 29). O objetivo de Luduea, como tambm o nosso, em explicitar tal opo de
leitura presente em Agamben no , de forma alguma, desmerecer a potencia que sua argumentao tem.
Antes, visa ampliar nossa compreenso sobre a operao soberana no ocidente. A hiptese de Luduea
que, j bem antes em Plato, era possvel afirmar quer: no existe nenhuma soberania que no se constitua, precisamente, sobre a zo, sendo esta o objeto originrio de toda a poltica (2010, p. 29-30). 3 Qualquer aluno do primeiro semestre de uma disciplina de filosofia poltica se lembraria da clebre
definio do ser humano como politikon zoon (Poltica, 1253a, 4). Quanto a essa exceo de Aristteles, Agamben explica que: ( parte o fato de que na prosa tica o verbo bionai no praticamente usado no presente), poltico no e um atributo do vivente como tal, mas uma diferena
especifica que determina o gnero zoon (logo depois, de resto, a poltica humana distinguida daquela
dos outros viventes porque fundada, atravs de um suplemento de politizao ligado linguagem, sobre
uma comunidade de bem e de mal, de justo e de injusto, e no simplesmente de prazeroso e doloroso) (AGAMBEN, 2002, p. 10).
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exceo em favor da vida e segurana da populao. Neste sentido, a imagem de poder
que opera contemporaneamente no mais caracterizada pela morte e pela lei, mas pela
vida e pela norma. Isto ele faz a partir atravs de duas esferas distintas, mas totalmente
interligadas: as disciplinas do corpo e as regulaes da populao. 4 Esta grande
tecnologia de duas fazes aquilo que Agamben chama de teoria unitria do poder em
Foucault abre-se assim a era de um bio-poder (FOUCAULT, 1988, p. 131-132).
Os movimentos de tal teoria podem ser melhor compreendidos a partir das seguintes
palavras do prprio Foucault:
concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do sculo XVII,
em duas formas principais; que no so antitticas e constituem, ao contrrio,
dois plos de desenvolvimento interligado por um feixe intermedirio de
relaes [os dois plos da relao unitria]. Um dos plos, o primeiro a ser
formado, ao que parece, centrou-se no corpo como mquina: no seu
adestramento, na ampliao de suas aptides, na extenso de duas foras, no
crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integrao em sistemas
de controle eficazes e econmicos tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: antomo-poltica do corpo humano. O
segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do sculo
XVIII, centrou-se no corpo-espcie, no corpo transpassado pela mecnica do ser
vivo e como suporte dos processos biolgicos: a proliferao, os nascimentos e a
mortalidade, o nvel de sade, a durao da vida, a longevidade, com todas as
condies que podem faz-lo variar; tais processos so assumidos mediante toda
uma srie de interveno e controles reguladores: uma bio-poltica da
populao. As disciplinas do corpo e as regulaes da populao constituem os
dois plos em torno dos quais se desenvolveu a organizao do poder sobre a
vida. A instalao durante a poca clssica, desta grande tecnologia de duas fazes anatmica e biolgica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida caracteriza um poder cuja funo mais elevada j no mais matar, mas investir sobre a vida de cima
para baixo (FOUCAULT, 1988, p. 131).
O pargrafo supracitado de importncia singular para a argumentao
foucaultiana que Agamben recuperar, em primeiro lugar, porque a primeira vez em
um livro que o filsofo introduz o conceito de biopoltica e, em segundo lugar, porque
ele o faz relacionando com os dois plos do que temos chamado de teoria unitria do
4 Foucault acrescenta que estas duas esferas distintas daquilo que chamamos de teoria unitria do poder,
ainda aparecem nitidamente separadas, no sculo XVIII. Do lado da disciplina as instituies como o Exrcito ou a escola; [...] do lado das relaes de populao a demografia, a estimativa da relao entre
recursos e habitantes, a tabulao das riquezas e de sua circulao, das vidas com sua durao provvel
[...] a Ideologia como doutrina da aprendizagem, mas tambm do contrato e da formao regulada do cor
social constitui, sem dvida, o discurso abstrato em que se procurou coordenar as duas tcnicas de poder
para elaborar sua teoria geral. De fato, sua articulao no ser feita no final de um discurso especulativo,
mas na forma de agenciamentos concretos que constituiro a grande tecnologia do poder no sculo XIX:
o dispositivo de sexualidade ser um deles, e dos mais importantes (1988, p. 132). Justamente por causa deste fator, pode-se compreender a importncia assumida pelo sexo como foco da disputa poltica. que ele e encontra na articulao entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia
poltica da vida. [...] Insere-se, simultaneamente, nos dois registros, d lugar a vigilncias infinitesimais, a
controles constantes (1988, p. 136).
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poder. Ele mostra que a substituio do universo de privilgios caractersticos do poder
soberano, que ocorreu a partir do sculo XVII, se desenvolveu em duas esferas distintas,
mas no antitticas. Na verdade, as duas tiveram seu desenvolvimento relacionado a
partir de um feixe intermedirio comum de relaes. A primeira faceta deste poder
sobre a vida centrou-se na ao sobre o corpo entendido com mquina, isto , na
ampliao das capacidades produtivas e da utilidade dos corpos atravs de seu
adestramento e vigilncia. O nome deste plo a antomo-poltica do corpo humano: o
crescimento simultneo da utilidade e da docilidade dos indivduos atravs de sua
integrao em sistemas de controle. O segundo plo j uma formao mais tardia e,
em certo sentido, resultado dos procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas
neste sentido, a nfase prioritria que a biopoltica assumir na pesquisa de Foucault
no um deslocamento novo de seu raciocnio, mas o reconhecimento de um
desdobramento necessrio daquilo que j estava sendo investigado em Vigiar e Punir.
Trata-se dos processos assumidos a partir do sculo XVIII que transpassou o corpo dos
indivduos enquanto mero ser vivo, o corpo-espcie, regulado por todo um suporte de
processos biolgicos. A biopoltica da populao trata-se daquela faceta do poder sobre
a vida que ocupou-se em regular e intervir em toda a esfera propriamente biolgica que
est envolvida uma sociedade tal como a natalidade, mortalidade, qualidade da sade,
longevidade, etc. Tudo isto, tambm atravs de sistemas de controle e interveno
eficazes e, principalmente, econmicos conforme ser explorado nos cursos da dcada
de 70 no Collge de France.
Esta bio-histria da sexualidade iniciada no primeiro volume sobre a
vontade de saber sobre as presses por meio das quais os movimentos da vida e os
processos da histria interferem entre si, na verdade ser chamada no interior do
pensamento de Foucault de: bio-poltica, para designar o que faz com que a vida e seus
mecanismos entre no domnio dos clculos explcitos, e faz do poder-saber um agente
de transformao da vida humana (FOUCAULT, 1988, p. 134). Contudo, no ser no
primeiro volume da Histria da sexualidade que o filsofo explorar o conceito a
exausto. Nos anos que seguiram a publicao do livro, de 1975 a 1979, Foucault
lecionar no Collge de France trs cursos de fundamental importncia para o tema: Em
defesa da sociedade, Segurana, territrio e populao e o Nascimento da biopoltica.
Cobrir o contedo destes cursos no s desnecessrio, devido aos bons comentrios
que temos acerca do tema, como tambm invivel para os propsitos que se coloca o
presente artigo. No obstante, faz-se necessrio destacar que ser a partir destes cursos
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que Agamben situar filosoficamente o limiar da modernidade biolgica que, dentre
outras coisas, significa essencialmente que: a passagem do Estado
territorial ao Estado de populao e o consequente aumento vertiginoso da
importncia da vida biolgica e da sade da nao como problema do poder soberano,
que se transformar ento progressivamente em governo dos homens (AGAMBEN,
2002, p. 11).
Agamben nos lembra que Hannah Arendt tambm identificou esse mesmo
processo de transformao nas sociedades modernas. 5 No entanto, alm de Arendt e
Foucault nunca terem dialogado diretamente motivo que impossibilitou relacionar
biopoltica aos campos de concentrao e de refugiados tambm a morte de Foucault o
impediu de desenvolver todas as implicaes que o conceito de biopoder carregava
consigo. Abre-se, portanto, um campo de investigao excepcional para a filosofia
poltica. O ingresso da zo na esfera da polis, a politizao da mera vida dos indivduos,
constitui um evento decisivo na modernidade e nenhuma das questes tico-polticas
que temos diante dos nossos olhos hoje podem ser compreendidas sem levar em
considerao esse fato. Ou ainda, nas palavras de Agamben, os enigmas que nosso
sculo props razo histrica e que permanecem atuais (o nazismo s o mais
inquietante dentre eles) podero ser resolvidos somente no terreno a biopoltica em
que foram intrincados (AGAMBEN, 2002, p. 12). To somente quando a assinatura
poder for recolocada nesse contexto de indistino das categorias clssicas da cincia
poltica, que talvez possamos fazer sair de sua ocultao moderna uma ao humana
distintamente poltica.
Uma das orientaes mais basilares que Agamben assume em seu projeto de
investigar esses enigmas contemporneos e propor alguma soluo, aquela que h
muito Foucault j nos instruiu: o decidido abandono da abordagem tradicional do
problema do poder, baseada em modelos jurdico-institucionais (a definio da
soberania, a teoria do Estado), para ir em direo de uma anlise sem preconceito dos
modos concretos com que o poder penetra no prprio corpo de seus sujeitos e em suas
formas de vida (AGAMBEN, 2002, p. 13). Nesta altura torna-se mais clara e evidente
o significado de uma teoria unitria do poder. Tal abordagem unitria no significa de
5 Segundo Agamben: Hannah Arendt havia analisado, em The human condition, o processo que leva o
homo laborans e, com este, a vida biolgica como tal, a ocupar progressivamente o centro da cena
poltica do moderno. Era justamente a este primado da vida natural sabre a ao poltica que Arendt fazia,
alis, remontar a transformao e a decadncia do espao pblico na sociedade moderna (AGAMBEN, 2002, p. 11).
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modo algum o esforo de analisar cada uma das duas direes que a assinatura poder
assume na poltica moderna isso porque, o trabalho de Foucault foi exatamente esse. 6
Ao invs disso, a investigao do filsofo italiano se ocupar com o elo em que esses
dois aspectos do poder convergem e do lugar a um centro unitrio no qual a dupla
direo poltica encontra sua razo de ser. Em sntese, se Foucault contestou as
abordagens tradicionais do problema do poder, baseada exclusivamente em modelos
jurdicos e institucionais, cabe agora perguntar: onde est, ento, no corpo do poder, a
zona de indiferenciao (ou ao menos, o ponto de interseco) em que tcnicas de
individualizao e procedimentos totalizantes se tocam? (AGAMBEN, 2002, p. 13).
Essa pergunta ditar o tom da presente genealogia teolgica da assinatura de poder,
tendo como objeto privilegiado esse ponto oculto de interseco entre o modelo
jurdico-institucional e o modelo biopoltico de poder.
No desnecessrio esclarecer esse carter teolgico que a genealogia da
assinatura de poder assumir nos trabalhos de Agamben. O protagonista eleito por
Agamben para ilustrar o processo de constituio da operao soberana no Ocidental
uma figura retirada do mbito religioso mais arcaico do direito romano. Trata-se do
homo sacer. Tal indivduo uma obscura figura do direito romano que tem seu papel na
vida pblica justamente quando ele colocado fora dela. Contudo, de maneira mais
clara, o que um homo sacer? Uma das definies mais precisas desta categoria pode
ser encontrada no gramtico Festus, quando este nos diz:
Sacer mons: Chamamos monte sagrado a um monte situado na outra margem do
Aniene, um pouco alm da terceira pedra militar, posto que o povo no momento
de separar-se do senado e logo aps a criao dos tribunos da plebe,
estabelecidos para ajud-lo, o consagrou a Jpiter no momento de retirar-se.
Porm, d-se o apelido de sacer ao homem que o povo julgou por um delito;
no permitido sacrific-lo mas aquele que o mata no condenado como
homicida, posto que a primeira lei tribuncia estabelece esta disposio: se algum mata aquele que sagrado por plebiscito, no ser considerado
homicida. Da que em linguagem familiar se chame sacer a todo homem mau e impuro (FESTUS, 1997, p. 422-424, traduo de Luduea).
A vida nua, a mera vida matvel de um indivduo includa nos tramites do
ordenamento jurdico tendo como principal caracterstica sua excluso, sua
matabilidade. Ou seja, o homo sacer aqui definido ao mesmo tempo como
6 Nas palavras de Agamben: por um lado, o estudo das tcnicas polticas (como a cincia do
policiamento) com as quais o Estado assume e integra em sua esfera o cuidado da vida natural dos
indivduos; por outro, o estudo das tecnologias do eu, atravs das quais se realiza o processo de
subjetivao que leva o indivduo a vincular-se prpria identidade e prpria conscincia e,
conjuntamente, a um poder de controle externo (2002, p. 13).
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insacrificvel e como suscetvel de ser executado por qualquer um. Justamente por tudo
isso um homo sacer, esta que talvez a mais antiga acepo do termo sacer nos
apresenta o enigma de uma figura do sagrado aqum ou alm do religioso, que constitui
o primeiro paradigma do espao poltico do Ocidente (AGAMBEN, 2002, p. 16). 7
De certa forma, portanto, a figura do homo sacer ser um paradigma
privilegiado para pensarmos a condio de mera vida, de vida nua, dos cidados
contemporneos nas democracias de direito. Nesse sentido, tanto a argumentao de
Agamben em Homo Sacer I, bem como a sua reconstruo no presente artigo,
assumiram a seguinte trajetria: em um primeiro momento (1) exploraremos o paradoxo
em que est imerso o exerccio do poder soberano no Ocidente, para que ento, em um
segundo momento, (2) possamos ilustrar tal dinmica com a aporia jurdica do poder
constituinte e poder constitudo.
Vale considerar, antes de terminar que em toda a investigao de Agamben, o
fator decisivo e propriamente inovador no , por um lado, a incluso da zo na polis
pois como Fabin Luduea bem mostrou, uma constatao que data da filosofia
platnica nem mesmo o simples fato de que vida tenha se tornado o objeto principal
dos clculos do poder estatal pois todas as concluses de Foucault j o fazem muito
bem. Aquilo que original e com capacidades para elucidar o contemporneo, na
filosofia de Agamben , sobretudo,
O fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceo se torna em todos
os lugares a regra, o espao da vida nua, situado originalmente margem do
ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espao poltico, e
excluso e a incluso, externo e interno, bos e zo, direito e fato entram em uma
zona de irredutvel indistino. O estado de exceo, no qual a vida nua era, ao
mesmo tempo, excluda e capturada pelo ordenamento, constitua, na verdade,
em seu apartamento, o funcionamento oculto sabre o qual repousava o inteiro
sistema poltico; quando as suas fronteiras se esfumam e se indeterminam, a vida
nua que o habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente sujeito e o
objeto do ordenamento poltico e de seus conflitos, o ponto comum tanto da
organizao do poder estatal quanto da emancipao dele. [...] Estes processos,
sob muitos aspectos opostos e (ao menos em aparncia) em conflito acerbo entre
eles, convergem, porm, no fato de que em ambos o que est em questo a vida
7 Conforme esclarece mais uma vez Luduea: a figura do homo sacer, ento, se encontra mais alm,tanto
do direito penal quanto do sacrifcio religioso, ainda que ao mesmo tempo tenha sua origem em uma
dupla exceo relacionada com ambas as esferas . A inteno de Agamben consiste ento em identificar a
excluso originria atravs da qual se constituiu a dimenso poltica (AGAMBEN, 2002, p. 91), isto , o espao em que se decidiu sobre a humanidade mesma do homem. Essa esfera no a -histrica, como j
se recriminou a Agamben, seno originria, quer dizer, completamente imbuda de historicidade enquanto
Ur-phnomenon da poltica em seu aspecto soberano. Tampouco se trata, desde logo, de um
essencialismo, seno de algo assim como a Entstehung da wirkliche Historie de que falava Friedrich
Nietzsche. O espao poltico do homem ocidental , para Agamben, um espao da excepcionalidade
originria (2013, p. 239).
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nua do cidado, o novo corpo biopoltico da humanidade (AGAMBEN, 2002, p.
16-17).
Com essas palavras, Agamben consegue expor a diferena especfica de sua
empreitada filosfica. O espao de vazio inoperante que caracterizado nas
democracias contemporneas coincide com o que ele chama de estado de exceo como
regra. Um espao em que a mera vida nua dos indivduos colocada margem do
ordenamento e, progressivamente, vai tornando-se a prpria vida poltica tpica. Tudo
isso faz com que as fronteiras daquelas categorias clssicas da filosofia poltica se
indeterminem, fazendo com que o cidado torne-se tambm simultaneamente, sujeito e
objeto do ordenamento poltico e de seus conflitos. justamente por isso que, mesmo
onde h luta, conquistas de direitos e de liberdades existem tambm um corpo sacro
um homo sacer sendo um pouco mais capturado e inscrito no nos ditames do controle
governamental razo essa que levar Agamben a problematizar os modernos direitos
humanos na seo final de Homo Sacer I.
No preciso dizer que o reconhecimento dessa aporia fundamental no interior
da operao soberana no significa desvalorizar ou mesmo abrir mo das conquistas da
democracia. O que Agamben pretende tentar compreender por que, justamente no
instante em que parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversrios e
atingido seu apogeu, ela se revelou inescapavelmente incapaz de salvar de uma runa
sem precedentes aquela zo (AGAMBEN, 2002, p. 17) zo essa que as democracias
de direto fizeram seus principais objetos de dedicao e esforos. Em outras palavras,
para o filsofo italiano, a experincia de decadncia continua nas democracias
ocidentais que foram apontadas j por Alexis de Tocqueville em A democracia na
Amrica, mas que atingiram seu cume nos estados totalitrios do novecentos talvez
possa ser explicada por essa aporia constituinte da poltica.
Precisamente em um perodo histrico em que a tica e a poltica no conhecem
outro valor do que a vida, se ocupar com as gigantescas contradies que essa postura
implica pode ser nossa nica possibilidade de fazer com que o fascismo no permanea
atual. Esses vinte e quatro sculos de teoria poltica desde Aristteles, parece que no
trouxeram nenhuma soluo, ao menos provisria, para tal aporia que se encontra na
base da poltica ocidental. O trono se mantm a partir do vazio da operao de captura
da vida pelo poltico. Ou ainda, nas palavras de Agamben: a poltica, na execuo da
tarefa metafsica que a levou a assumir sempre mais a forma de uma biopoltica, no
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conseguiu construir a articulao entre zo e bos, entre voz e linguagem, que deveria
recompor a fratura (2002, p. 18).
To somente uma poltica totalmente nova, isto , uma poltica que no seja
fundada sobre a operao de incluir a vida nua atravs de sua excluso, poder nos dar
condies de escapar deste beco sem sada em que se encontra a ao humana hoje. O
curso dessa investigao e descoberta de novos horizontes inclui muitos movimentos
argumentativos basilares, que passam desde uma reviso se reservas das principais
noes que as cincias humanas, a jurisprudncia e a antropologia acreditavam ter
definido, como tambm de uma crtica radical ao que est na base de muito do que foi
produzido na filosofia poltica. Nesse sentido, comearemos por nos perguntar sobre a
lgica da soberania.
2. A incluso da vida atravs de seu abandono: a lgica da operao soberana
Conforme procuramos deixar claro na introduo do presente trabalho, a
metodologia de crtica que Agamben empreende em toda a saga Homo Sacer bastante
coerente e segue um caminho bsico. Antes de apontar a necessidade de um poder
destituinte ou mesmo a urgncia de uma nova poltica, Agamben sempre inicia seus
raciocnios mostrando a condio paradoxal entre duas categorias clssicas da filosofia
poltica ou ontologia. Esse o primeiro movimento de toda e qualquer argumentao de
Agamben sempre seguido de um passo que evidncia a zona de indeterminao entre
essas duas categorias, para depois, ao final, apontar para a inoperosidade destituinte. Ou
ainda, nas palavras do comentador William Watkin: para Agamben, todos os conceitos
ocidentais de qualquer significncia derivam sua longevidade, consistncia e operao
do conflito dialtico interno entre elementos em comum e elementos prprios, ou seja,
cada conceito no Ocidente bifurcado (WATKIN, 2014, p. xii, traduo nossa).
A assinatura poder no ficaria de fora dessa dinmica caracterstica da
filosofia ocidental. Toda a primeira parte do livro Homo Sacer I dedicada ao
esclarecimento desse paradoxo existente na mais caracterstica operao de poder, qual
seja, a soberania jurdico-poltica. Antes de prosseguir, entretanto, vale elucidar
brevemente a razo pela qual tal operao soberana o paradigma privilegiado para
abordar a assinatura poder uma vez que, se nos lembrarmos do trabalho de Foucault,
temos em mente algo muito mais capilar e microfsico, ao invs de uma nica operao.
Contudo, precisamos situar tal escolha no todo da obra de Agamben, bem como, de sua
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relao com Foucault. Conforme buscarmos deixar claro nas sees anteriores,
Agamben identificou dois plos na obra de Foucault em que o poder abordado
tecnologias polticas e tcnicas do eu , uma vez que a inteno de Agamben
justamente abordar o poder a partir de um ponto de vista unitrio, a operao soberana
um excelente paradigma. 8 Nela observamos justamente esses dois plos em ao,
gerando uma figura igualmente unificadora, qual seja, o sujeito soberano. A partir de
um nome que mais se parece com uma contradio performtica, a figura do sujeito
soberano consegue expor melhor do que qualquer outra o paradoxo poltico em que
estamos inseridos. Conforme as palavras do prprio Agamben, em um texto publicado
muito anos antes de Homo Sacer I, podemos entender que:
este paradoxo muito antigo e, se se observa atentamente, est explicito no
mesmo oximoro em que se encontra a expresso: o sujeito soberano. O sujeito
(isto , aquilo que etimologicamente est sob) soberano (, por isso, aquilo que
est sobre). E talvez o termo sujeito (em conformidade ambigidade da raiz
indo-europeia da qual derivam as duas propores latinas de sentido oposto
super e sub) no tem outro significado que este paradoxo, este ficar l onde este
no est (AGAMBEN, 2005, p. 92).
Podemos observar que Agamben estava bastante ciente da situao paradoxal
em que o poder ocidental estava inserido quando escreveu o texto Bataille e o paradoxo
da soberania (1987). A diferena de sua abordagem para o que ir fazer em Homo
Sacer I no diz respeito tanto a questo, mas com quem ele estabelecer o dilogo.
Enquanto no primeiro ele est se referindo diretamente a questo de uma comunidade
livre do fascismo, a partir da obra de Bataille, Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot, em
Homo Sacer I, Agamben far uso do pensamento do jurista alemo Carl Schmitt, no
8 O termo paradigma que recorrentemente aparece tanto na obra de Agamben, quanto no presente
artigo, tambm tem um significado especfico no interior da filosofia do italiano. Em estreita relao com
sua filosofia da indiferena os paradigmas de Agamben so exemplos, ou melhor, quaisquer fenmenos de uma determina condio ou situao que exemplificam, de maneira completa, aquilo do que fazem
parte. O paradigma geralmente no o melhor exemplo ou a porta de entrada principal, mas qualquer
exemplo um caso distintamente indiferente. Nas palavras do prprio Agamben em A comunidade que vem: O ser que vem o ser qualquer [qualunque]. Na enumerao escolstica dos transcendentais (quodlibet ens est unum, verum, bonum seu perfectum, qualquer ente que se queira uno, verdadeiro, bom
ou perfeito), o termo que, permanecendo impensado em cada um, condiciona o significado de todos os
outros o adjetivo quodlibet [qualquer]. A traduo corrente no sentido de no importa qual, indiferentemente certamente correta, mas, quanto forma, diz exatamente o contrrio do latino: quodlibet ens [qualquer ente] no o ser, no importa qual, mas o ser tal que, de todo modo, importa isto , este j contm sempre uma referncia ao desejar (libet), o ser qual-se-queira est em relao
original com o desejo (2013, p. 9). Diante dessas palavras, um paradigma, tal como a operao soberana, um exemplo qualquer, que consegue carregar consigo o significado de tudo aquilo do qual ele
exemplifica.
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apenas para enunciar o paradoxo, como tambm para torn-lo inoperante. As palavras
so as seguintes:
O paradoxo da soberania se enuncia: o soberano est, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurdico. Se o soberano , de fato, aquele no qual o ordenamento jurdico reconhece o poder de proclamar o estado de exceo e de
suspender, deste modo, a validade do ordenamento, ento ele permanece fora do ordenamento jurdico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se
a constituio in toto possa ser suspensa (Schmitt, 1922, p. 34). A especificao ao mesmo tempo no trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo
pode ser formulado tambm deste modo: a lei est fora dela mesma, ou ento eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que no h um fora da lei (AGAMBEN, 2002, p. 23).
Ainda que toda a recuperao do contexto do pensamento de Schmitt seja um
projeto muito grande para o presente artigo, desde j podemos compreender o que est
em jogo na argumentao de Agamben. Esquematicamente, podemos dizer que o
paradoxo da soberania reside no fato do sujeito soberano estar, ao mesmo tempo, dentro
e fora do ordenamento legal. Este mesmo sujeito que tem o poder de suspender a
validade da lei, coloca-se, de forma totalmente legal, fora da lei. Em sntese, o paradoxo
o carter excepcional da soberania, dado que: o que esta em questo na exceo
soberana , segundo Schmitt, a prpria condio de possibilidade da validade da norma
jurdica e, com esta, o prprio sentido da autoridade estatal (AGAMBEN, 2002, p. 24-
25). Nesse sentido, a exceo uma espcie de excluso, em que o excludo, todavia,
no est absolutamente fora da relao com a norma. Daqui, portanto, nasce a situao
paradoxal.
Agamben, no entanto, sabia que, para alm do prprio Schmitt, outras pessoas j
haviam observado que o ordenamento jurdico-poltico tem uma estrutura de incluso
daquilo que , ao mesmo tempo, excludo. Gilles Deleuze j havia verificado em Mille
plateaux e Maurice Blanchot em Lentretien infini sem esquecer-se do prprio
Foucault na Histoire de la folie lge classique. No entanto, para o filsofo italiano a
exceo que define a estrutura da soberania , porm, ainda mais complexa (2002, p.
26) e por isso, ainda carecia ser melhor explorada. Isso Agamben faz destacando a
seguinte especificidade:
Aquilo que est fora vem aqui includo no simplesmente atravs de uma
interdio ou um internamento, mas suspendendo a validade do ordenamento,
deixando, portanto, que ele se retire da exceo, a abandone. No a exceo
que se subtrai regra, mas a regra que, suspendendo-se, d lugar exceo e
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somente deste modo se constitui como regra, mantendo-se em relao com
aquela. O particular vigor da lei consiste nessa capacidade de manter-se em relao com uma exterioridade. Chamemos relao de exceo a esta forma
extrema da relao que inclui alguma coisa unicamente atravs de sua excluso
(AGAMBEN, 2002, p. 26).
Existem dois pontos fundamentais nesse trecho. Em primeiro lugar, trata-se da
apresentao da operao soberana como a deciso sobre a exceo. Isso significa dizer
que a deciso do soberano no diz respeito a uma questo de direito ou uma questo
de fato, mas antes, e to somente, a prpria relao entre direito e fato. Soberano,
portanto, aquele que d conta dessa situao, a situao limite de toda a estrutura do
poder. Em outras palavras, a operao soberano, enquanto deciso pela exceo, a
forma originria do direito. Em segundo lugar, as palavras supracitadas de Agamben
nos mostram que, se a exceo a estrutura da operao soberana, ento a soberania
no , nem um conceito exclusivamente poltico, nem uma potncia externa ao direito
(como queria Schmitt) ou interna ao direito (como queria Hans Kelsen). Antes de tudo
isso, ela o processo de incluso da vida no direito que, seguindo a sugesto de Jean-
Luc Nancy, Agamben d o nome de bando. Conforme ele disse acima, aquilo que est
fora vem aqui includo no simplesmente atravs de uma interdio ou um
internamento, mas suspendendo a validade do ordenamento, deixando, portanto, que ele
se retire da exceo, a abandone. Ou seja, aquele que foi banido no simplesmente
algum que foi posto fora da lei, mas abandonado por ela. Ele no est indiferente e
alheio lei, antes, ocupa um limiar entre vida e direito, entre externo e interno. Do
sujeito soberano no possvel dizer se est fora ou dentro do ordenamento. Nesse
sentido, Agamben apresenta-nos uma nova forma de colocar o paradoxo da operao
soberana: no existe um fora da lei. A relao originria da lei com a vida no a
aplicao, mas o Abandono. A potncia insupervel do nmos, a sua originria fora de
lei, que ela mantm a vida em seu bando abandonando-a (AGAMBEN, 2002, p. 36).
Na sua forma arquetpica, portanto, o estado de exceo o princpio de todo
ordenamento jurdico, uma vez que ele abre o espao para o prprio estabelecimento de
determinado ordenamento. Essa sua estrutura fez com que Schmitt tivesse muita
dificuldade de estabelecer o nexo entre localizao (Ortung) e ordenamento (Ordnung)
que constitui o nmos da terra (cf. AGAMBEN, 2002, p. 27). Essencialmente ele era
o ilocalizvel, uma vez que ele o ponta-p de qualquer localizao jurdico-poltica.
Trata-se de uma verdadeira zona ilocalizvel de indiferena. No entanto, Agamben
prope uma localizao, ou ainda, para falarmos com Foucault, uma visibilidade para o
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discurso da exceo. Trata-se do campo de concentrao. Estabelecendo um contraste
com a visibilidade eleita pelo prprio Foucault para corresponder com a dinmica do
nmos, Agamben nos diz que: no o crcere, mas o campo, na realidade, o espao
que corresponde a esta estrutura originria do nmos (2002, p. 27). Mais do que uma
questo de preferncia, o que est em jogo aqui uma opo coerente com o argumento
que est sendo construdo. Justamente porque a inteno de Agamben no encontrar
uma visibilidade que apenas corresponda a um dos plos da teoria unitria do poder
como se presta a visibilidade do crcere foucaultiano em relao aos processos de
subjetivao sua escolha foi o campo. Enquanto a priso insere-se no espao do
direito carcerrio do ordenamento normal, o campo um verdadeiro espao de
abandono e exceo. Ou ainda, a constelao jurdica que orienta o campo , como
veremos, a lei marcial ou o estado de stio. [...] O campo, como espao absoluto da
exceo, topologicamente distinto de um simples espao de recluso (AGAMBEN,
2002, p. 27).
Nesta altura, sua exemplaridade nos ajuda a compreender o modo como a vida
includa nos clculos do poder e o paradoxo que tal operao gera. Conforme resume a
professora da Universidade do Porto, Eugnia Vilela, ou seja, toda a vida se torna
sagrada e toda a poltica se torna exceo (2010, p. 112). Caso tal dinmica paradoxal
no seja levada em conta em nossa ao poltica, o fascismo se manter
desgraadamente atual nas democracias hodiernas.
3. Poder constituinte e poder constitudo: um exemplo do paradoxo da soberania
Conforme vem sendo exposto at ento, a pretenso filosfica de Agamben no
se limita s dimenses polticas. Para que a lgica da operao soberana realmente
assuma as dimenses que o italiano diz que ela tem isto , toda a metafsica ocidental
, sua hiptese sobre a zona de indiferena precisa tangenciar outras reas do
conhecimento. Isso fez com que Agamben se esforasse por toda a primeira parte de
Homo Sacer I em explorar alguns exemplos em que essa dinmica paradoxal mostra-se
evidente. Um dos primeiros casos que ele apresenta, para alm do mbito estrito da
poltica com a linguagem. Sua tese que uma dimenso no-normativa (tal como o
estado de exceo) tambm acontece na linguagem. Ele nos lembra que igualmente a
linguagem pressupe o no-lingustico como aquilo com o qual deve manter-se em uma
relao virtual para poder denot-lo no discurso em ato (2002, p. 28).
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No obstante, Agamben tambm menciona um exemplo da matemtica, retirado
da teoria dos conjuntos, para igualmente ilustrar sua hiptese. Da mesma forma que na
teoria dos conjuntos se distingue pertencimento e incluso, isto , um termo pode
pertencer a um conjunto sem estar includo nele, ou vice-versa, Agamben sustentar que
a exceo configure uma forma de pertencimento sem incluso. Nas suas palavras: o
que define o carter da pretenso soberana precisamente que ela se aplica exceo
desaplicando-se, que ela inclui aquilo que est fora dela (2002, p. 32). A exceo
soberana, em termo da teoria dos conjuntos, portanto, aquilo que no pode ser em
nenhum caso includo, mas que vem a ser includo na forma da exceo algo como a
paradoxal incluso do pertencimento mesmo que o Puzzle de Bertrand Russell h muito
j enunciava, e que contemporaneamente Alain Badiou recuperou em categorias
polticas.
Com a apresentao de cada um desses exemplos, a inteno de Agamben
defender que, se a exceo a estrutura da soberania, a soberania no pode ser um
conceito exclusivamente poltico, nem uma categoria exclusivamente jurdica. Antes,
trata-se da estrutura originria na qual o direito se refere vida e a inclui em si atravs
da prpria suspenso (2002, p. 35). No entanto, dentre o conjunto de exemplos
enumerados pelo autor para apresentar o paradoxo da operao soberana, no existe
nenhum melhor do que o problema do poder constituinte e de sua relao com o poder
constitudo. A reconstruo de tal problemtica, feita por Agamben no captulo 3 de
Homo Sacer I, alm de ilustrar perfeitamente a dualidade que o italiano sempre busca
tornar evidente em suas argumentaes, tambm ser de fundamental importncia para
suas recentes pesquisas sobre aquilo que ele chamou de poder destituinte. Percorrendo
tal trajetria, nossa proposta, em estreita harmonia com o fio condutor do presente
trabalho, mostrar como Agamben expe a condio paradoxal insolvel das principais
categorias jurdico-polticas, faz emergir uma zona de indistino entre elas, para que,
por ltimo, introduza um terceiro elemento na relao que, no refora nem inicia outro
paradoxo, mas o depe e o inopera. Por tudo isso, convm reconstruir a argumentao
agambeniana sobre poder constitudo e constituinte.
Na conceitografia jurdica, o poder constituinte refere-se potncia originria
fora do jurdico, que cria e fundamenta um novo Estado; enquanto o poder constitudo
diz respeito prpria ordem constitucional preestabelecida. Ou seja, o primeiro est fora
do Estado, enquanto o outro se encontra no Estado. Daqui, para Agamben, nasce a
impossibilidade de compor de modo harmnico a relao entre os dois poderes (2002,
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p. 47). Essa questo no diz respeito apenas compreenso da natureza jurdica da
ditadura ou do estado de exceo, mas tambm nas recorrentes discusses sobre a
reviso do texto constitucional. Aqueles que reduzem o poder constituinte ao poder de
reviso, desconsideram sua potncia pr-jurdica de fazer nascer a constituio. Walter
Benjamin, por sua vez, colocou a relao entre os dois poderes como aquela entre a
violncia que pe o direito e a violncia que o conserva. Mesmo que essa oposio
fundamental de Benjamin no tenha condies de ser reconstruda aqui, j podemos
apontar para o que Agamben quer deixar evidente: ainda que o poder constituinte,
como violncia que pe o direito, seja certamente mais nobre que a violncia que o
conserva, ele no possui, porm, em si nenhum titulo que possa legitimar sua
alteridade (AGAMBEN, 2002, p. 48). Isso faz com que o relacionamento entre os dois
poderes se mantenha ambguo e irremediavelmente confuso. Justamente nesse
contexto, surge aquilo que Agamben procura deixar evidente:
Nesta perspectiva, a clebre tese de Sieys, segundo a qual a constituio supe antes de tudo um poder constituinte, no , como tem sido observado, um simples trusmo: ela deve ser entendida sobretudo no sentido de que a
constituio se pressupe como poder constituinte e, desta forma, exprime no
modo mais prenhe de sentidos o paradoxo da soberania. Como o poder soberano
se pressupe como estado de natureza, que assim mantido em relao de bando
com o estado de direito, assim ele divide em poder constituinte e poder
constitudo e se conserva em relacionamento com ambos, situando-se em seu
ponto de indiferena (AGAMBEN, 2002, p. 48).
Em tudo isso, mostra-se insolvel a questo de deixar clara a diferena entre os
dois poderes. Tal dificuldade fez com que recorrentemente na histria das ideias
polticas, uma fonte transcendente e infinita de autoridade fosse evocada para que
pudesse conferir uma soberania igualmente infinita nao tal como o caso do Ser
Supremo de Robespierre que Hannah Arendt nos lembra em Sobre a Revoluo. A
grande questo aqui, entretanto, no a de conceber um poder constituinte que nunca se
esgote em um poder constitudo. Antes, trata-se de distinguir os dois algo que, dada a
estrutura jurdica ocidental, para Agamben impossvel, fazendo com que surja uma
zona de indiferena entre eles que alimenta a operao soberana tal como tem sido
descrita aqui.
Quem problematizou essa mesma relao, mas de um ponto de vista totalmente
diferente, fazendo com que a questo assumisse uma dimenso absolutamente diversa
do que at ento apresentava, foi Antonio Negri. Em seu livro O Poder Constituinte:
ensaio sobre as alternativas da modernidade (1992), Negri busca sustentar a tese da
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total irredutibilidade do poder constituinte a qualquer forma de ordenamento constitudo
e, por conseguinte, uma reduo ao princpio da soberania. Ao contrrio, para Negri,
falar de poder constituinte falar de democracia, apresentando-o como expanso
revolucionria da capacidade humana de construir a histria, como ato de inovao e,
portanto, como procedimento absoluto (NEGRI, 2002, p. 40). Em tal aproximao do
poder constituinte ao prprio processo histrico democrtico, Negri busca deixar
evidente que o poder constituinte no apenas a fonte onipotente e expansiva que
produz as normas constitucionais de todos os ordenamentos jurdicos, mas tambm o
sujeito desta produo (2002, p. 7).
Para Agamben, no entanto, a grande contribuio que Negri traz discusso da
relao entre poder constitudo e constituinte encarar esse ltimo como uma potncia.
9 Isso faz com que o poder constituinte deixe de ser um conceito poltico para
transforma-se em uma categoria da ontologia. Conforme coloca Agamben, com essa
modificao de Negri,
O problema do poder constituinte se torna ento aquele da constituio da potncia (Negri, 1992, p. 383), e a dialtica irresolvida entre poder constituinte e poder constitudo deixa lugar a uma nova articulao da relao entre potncia
e ato, o que exige nada menos que repensar as categorias ontolgicas da
modalidade em seu conjunto. O problema se desloca, assim, da filosofia poltica
filosofia primeira (ou, se quisermos, a poltica restituda sua condio
ontolgica). Somente uma conjugao inteiramente nova de possibilidade e
realidade, de contingncia e necessidade e dos outros pthe to ntos, poder, de
fato, permitir que se fenda o n que une soberania e poder constituinte: e
somente se conseguirmos pensar de modo diverso a relao entre potncia e ato,
e, alis, alm dela, ser possvel conceber um poder constituinte inteiramente
livro do bando soberano. At que uma nova e coerente ontologia da potncia
(mais alm dos passos que nesta direo moveram Spinoza, Schelling, Nietzsche
e Heidegger) no tenha substitudo a ontologia fundada sobre a primazia do ato e
sobre sua relao com a potncia, uma teoria poltica subtrada s aporias das
soberanias permanece impensvel (AGAMBEN, 2002, p. 51-52).
No pargrafo supracitado, mais do que um comentrio ao movimento filosfico
que Negri empreendeu em sua investigao, Agamben aponta para o horizonte em que
sua prpria pesquisa se encaminhar. A afirmao da insolubilidade da aporia em que
esto envolvidas as principais categorias filosficas ocidentais, produz, pelo menos,
dois resultados imediatos: em primeiro lugar, ela torna muitos esforos intelectuais
9 Nas palavras do prprio Negri: o moderno , assim, a negao de toda possibilidade de que a multido
possa se exprimir como subjetividade. Numa primeira definio, o moderno consiste nisto. Portanto, no
estranho, nem pode ser considerado imprevisto, que ao poder constituinte no possa ser concedido
espao algum. Quando ele emerge, deve ser reduzido extraordinariedade; quando se impe, deve ser
definido como exterioridade; quando triunfa sobre toda interdio, excluso ou represso, deve ser
neutralizado num termidor qualquer. O Poder constitudo esta negao (2002, p. 448).
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incuos particularmente aqueles que insistem em proceder no interior da ontologia
que relaciona potncia e ato a exemplo do que tem sido feito desde Aristteles. Em
segundo lugar, ela necessariamente exige de Agamben, ou de qualquer outro que
subscreva suas constataes, no mnimo, o sinalizar de um novo conjunto conceitual
que trace os contornos de uma alternativa ontolgica da potncia.
A utilizao de alguns insights da teologia do apstolo Paulo por parte de
Agamben tem justamente esse propsito. Para Agamben, Paulo enfrentou uma situao
ontolgica de natureza anloga operao soberana nas democracias contemporneas.
Isso exigiu do apstolo traar os contornos de um pensamento que tem condies de nos
sinalizar horizontes muito promissores para o que Agamben chama de a filosofia que
vem. De forma esquemtica, Agamben argumenta que tal ontologia alternativa se faz
necessria, uma vez que a condio paradoxal que a relao entre poder constitudo e
poder constituinte exemplifica, tem nas razes de sua complexidade a relao entre
potncia (dynamis) e ato (enrgeia) em Aristteles. Da mesma forma que acontece com
na linguagem, na teoria dos conjuntos e no direito constitucional, no pensamento de
Aristteles, de fato, por um lado, a potncia precede o ato e o condiciona e, por outro,
parece permanecer essencialmente subordinada a ele (AGAMBEN, 2002, p. 52).
Aristteles, no entanto, faz questo de afirmar a existncia autnoma da potncia, para
evitar o problema de reduzir toda a potncia como existente somente no ato como
alguns juristas e polticos tentam reduzir todo poder constituinte ao poder constitudo.
Nesse sentido, o que ele se prope a pensar no livro Theta da Metafsica no , em
outras palavras, a potncia como mera possibilidade lgica, mas os modos efetivos de
sua existncia (AGAMBEN, 2002, p. 52). Mais do que isso, necessrio pensar na
potncia de forma que ela possa at mesmo no passar ao ato, ou seja, que se apresente
constitutivamente como potncia de no fazer ou no ser a impotncia (adynama) de
Aristteles.
Descrevendo dessa forma a natureza da potncia, Agamben acredita que
Aristteles legou filosofia ocidental o paradigma da soberania. Isso ele sustenta
porque, estrutura da potncia, que se mantm em relao com o ato precisamente
atravs de seu poder no ser, corresponde aquela do bando soberano, que aplica-se
exceo desaplicando-se (2002, p. 54). Nesse sentido, a potncia aristotlica, de certa
forma, sem funda soberanamente, isto , sem que nada a preceda nem a determina, a
no ser, o seu prprio poder de no ser (adynama). Conforme podemos ver em outras
discusses de Agamben, a partir da teoria de Carl Schmitt, a deciso soberana
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justamente aquele ato que o soberano realiza retirando a prpria potncia de no ser, ou
seja, deixando-se ser. Ou ainda, conforme sintetiza Agamben: a soberania sempre
dplice, porque o ser se auto-suspende mantendo-se, como potncia, em relao de
bando (ou abandono) consigo, para realizar-se ento como ato absoluto (2002, p. 54).
Consideraes finais
Podemos concluir, portanto, que a ambiguidade da relao entre poder
constitudo e poder constituinte, bem como seu paralelo ontolgico da teoria aristotlica
da potncia/ato, exemplifica de maneira paradigmtica a operao soberana no
Ocidente. Tal estrutura faz com que a tarefa de pensar uma constituio de uma
potncia totalmente emancipada desse paradoxo da soberania tal como quis Negri com
o poder constituinte, ou como o prprio Agamben intentar com o poder destituinte
seja to rdua. Isso porque, o que est em jogo no a necessidade que esse poder no
se esgote jamais em um poder constituinte pois at mesmo o poder soberano pode
manter-se indefinidamente apenas em potncia, sem passar ao ato e transformar-se em
uma constituio.
A grande questo est em pensar em uma potncia que no tenha o sentido
ltimo de sua relao em nenhum ato. Para Agamben, no entanto, isto implicaria,
porm, nada menos que pensar a ontologia e a poltica alm de toda figura da relao,
seja at mesmo daquela relao limite que o bando soberano; mas isto justamente o
que muitos hoje no esto dispostos a fazer por preo algum (2002, p. 55). A aporia
ontolgica revela aqui suas dimenses poltica. Mais do que isso, essa altura da em que
a investigao nos coloca deixar evidente nos ltimos momentos do presente trabalho
que a proposta de Agamben necessariamente precisaria ser algo da espcie de um
poder destituinte que no mais transitasse entre a colocao ou manuteno da
operao soberana, mas que a destitua e inopere.
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A RELEVNCIA DO COMUM REAL NO SISTEMA TOMISTA
Tiago Sebastio Reis1
RESUMO: Na Querela dos Universais, Toms de Aquino tradicionalmente tratado como um
realista moderado a respeito estatuto ontolgico dos universais. Contudo, em alguns textos, h uma ambiguidade que sugere uma posio conceitualista. Neste artigo, buscaremos mostrar que algumas partes do sistema tomista defendem que os universais estejam na realidade. Esses
universais seriam como uma natureza comum, matria comum ou forma comum, que seriam propriedades que compartilhadas por mais de um indivduo, mas possuem ser real
apenas nos indivduos e no possuem ser fora deles.
PALAVRAS-CHAVE: Toms de Aquino. Natureza Comum. Matria Comum. Forma Comum.
Abstract: In Problem of Universals, Aquinas is traditionally treated as a "moderate realist"
regarding the ontological status of universals. However, in some texts, there is an ambiguity
which suggests a position "conceptualist". In this article, we show that some parts of the
Thomistic system defend that universals are in reality. These universal would be like a
"common nature", "common matter" or "common form" which would be properties shared by
more than one individual, but they have the being real only in individuals and havent out them.
Keywords: Thomas Aquinas. Common Nature. Common Matter. Common Form.
Introduo:
Na Idade Mdia, apesar de seu ambiente tipicamente religioso e teolgico, havia
um problema genuinamente filosfico amplamente debatido entre os filsofos
conhecido como Querela dos Universais e que teria sido iniciada por Bocio
(BOCIO, 1994). Grosso modo, esse problema filosfico envolve a discordncia sobre
o estatuto ontolgico das propriedades universais, isto , propriedades que podem ser
atribudas a muitos indivduos. Por exemplo: homem um universal na medida em
que pode ser atribudo a muitos indivduos, assim como boi, cachorro, gato,
cadeira, planta e etc. Assim, quando usamos esses universais no nosso discurso,
pretendemos nos referir a algo na realidade fora do intelecto?
Desse modo, alguns filsofos, chamados de realistas ingnuos, defendiam que
o Universal se refere s ideias platnicas, as quais estofora do intelectocom o mesmo
modo de serque estno intelecto. Outros filsofos, chamados de realistas moderados,
defenderam que o universal se refere a propriedades comuns instanciadas nos
indivduos, isto , com um modo de ser diferente daquele que ocorre no intelecto2.
1 Mestre e Doutorando no PPGLM-UFRJ. Professor Substituto de Lgica Clssica no departamento de
Filosofia e de Biblioteconomia (2014-2015). 2 Para mais detalhes dessa oposio entre realistas moderados e realistas ingnuos ver nas referncias
OWENS, 1959.
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Contudo, h aqueles, chamados de conceitualistas, que defendem que o
universal no se refere a nada na realidade, pois tudo seria individual fora do intelecto,
inclusive as propriedades (sendo estas apenas semelhantes entre si), de modo que o
universal apenas uma forma de representar vrios indivduos e classifica-los
intelectualmente, existindoapenas dentro do intelecto como um conceito, da o nome de
conceitualismo. Por fim, outros filsofos, chamados de nominalistas, com uma
nfase na lgica, buscavam reduzir tudo o que h conceitualmente no intelecto a um
nvel lingustico para, neste nvel, poder analisar mais perfeitamente os raciocnios
lgicos. Assim, estes ltimos defenderam que o universal no est na realidade, assim
como os conceitualistas, mas foram alm e buscaram reduzir os conceitos universais do
intelecto a um mero flatusvocis(sopro da voz ou emisso da voz), isto , o
universal passou a ser tratado meramente como um termo ou um nome na
linguagem falada ou escrita, dai o nome nominalismo.Em suma, assim foi a Querela dos
Universais3, onde h uma discordncia a respeitodo estatuto ontolgico e gnosiolgico
do universal.
Tradicionalmente, Toms de Aquino e Duns Scotus (OWENS, 1957)so
considerados realistas moderados, mas h textos ambguos de Toms de Aquino que
do margem para uma interpretao prxima ao conceitualismo, no atribuindo
qualquer realidade aos universais, mas apenas a indivduos. nesse ponto que
buscaremos mostrar que, embora haja textos ambguos, o sistema tomista precisa
necessariamente que o universal seja considerado na realidade. Neste sentido,
verificaremos que o universal na realidade se refere quela propriedade que comum
a vrios indivduos e est instanciado neles.
Nesse artigo, buscaremos demonstrar que Toms um realista moderado
levando em considerao a grande importncia que o comum desempenha nas
diversas partes doo sistema tomista. Sendo assim, veremos que vrias partes do sistema
tomistano funcionam, caso consideremos que o universal no est na realidade. Para
facilitar a compreenso, sempre que utilizarmos a expresso aspecto comum, estamos
nos referindo a esse modo de ser do universal na realidade fora da alma.Vejamos a
seguir como Toms trata o aspecto comum em algumas reas do seu sistema filosfico.
1 Na Fsica ou Cosmologia4: sobre a Gerao e a Corrupo
3Para mais informaes ver nas referncias LIBERA, 1996.
4Selvaggi (1998) interessante para mais aprofundamentos.
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Para iniciarmos, ns temos que ter em mente algumas noes importantes acerca
do movimento, a saber: O movimento s pode ocorrer se houver na composio da
coisa uma parte que muda e outra que no muda. Desse modo, as coisas so compostas
por uma parte potencial, ou seja, a possibilidade de se realizar algo, que a parte que
no muda, e por uma parte atual, a realizao deste algo, que a parte que muda.
Algum poderia pensar: parece que s existe o ato nas coisas da realidade, de
modo que desnecessrio pensar na parte potencial. Afinal de contas, por que a parte
potencial se ns admitimos que a coisa estem ato? Para respondermos a esta pergunta
cabe a ns lembrarmos que a coisa no est apenas em ato, mas tambm est em
movimento e, por estar em movimento, precisamos defender a parte potencial para outro
ato. O movimento para Toms e Aristteles sempre a passagem de um estado em
potncia para um estado em ato. Se tudo na coisa estivesse em ato no seria possvel
haver o movimento. Por essa descrio, portanto, devemos concluir que a parte que
permanece a parte potencial, enquanto a que muda a parte atual, pois realiza a
determinao deste ser.
Para explicar o movimento ou a mudana das coisas na Fsica Aristotlica,
normalmente os professores de filosofia recorrem a uma explicao que diz o seguinte:
acidentes so os aspectos que mudam nas coisas, enquanto a substncia o aspecto que
no muda. Essa explicao acerca do movimento a mbito acidental no est incorreta,
embora esteja incompleta, uma vez que h certas mudanas que ocorrem no mbito de
substncia, a saber: a gerao e a corrupo desta substncia. Desse modo, no ocorre
apenas de as substncias existirem por si enquanto individuais, mas tambm ocorre um
movimento em mbito substancial de gerao e corrupo. Obviamente, o ato da
existncia individual da substncia no pode por si s explicar o movimento de gerao
e corrupo, o que nos leva a admitir a necessidade de haver, na prpria substncia,
uma composio de uma parte atual, enquanto individual, e outra parte potencial para
adquirir o movimento com o vir-a-ser. aqui que comea a aparecer a teoria do
hilemorfismo5, a qual defende que as substncias na Fsica so compostas de matria e
forma.
No composto substancial, o existir por si atribudo forma, j a sua
contraparte, a matria comum, puramente potencial, de modo que no existe por si,
5Em grego (hile) se traduz no portugus por matria e (morfe) se traduz por forma.
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mas pela forma6 numa substncia composta. S pela forma (enquanto comum) j
poderamos defender que o aspecto comum existe na realidade, porm a matria comum
tambm ser requisitada. Embora a matria comum seja pura potncia (no existe por
si), precisamos admiti-la nos indivduos da realidade devido ao movimento de gerao e
corrupo das substncias. Toms se expressa assim:
Ora, o existir por si convm forma, que o ato. Por onde,
considerando isto, a matria adquire o ser em ato na medida em que
adquire a forma, por outro lado, tambm considerando isto, acontece a
corrupo nela na medida em que a forma separada dela.7
Considerando o composto substancial, podemos dizer que ocorre o movimento
de corrupo de uma substncia 1 na medida em que a forma 1 se separa da matria
e ocorre o movimento de gerao de uma substncia 2 quando a matria comea a
existir pela unio com a forma 2 e, assim, sucessivamente8. Portanto, no movimento
de gerao e corrupo da Fsica, todas as substncias so compostas de matria, de
uma parte potencial que permanece e apta a receber outras atualizaes, e de forma, de
uma parte atual que muda, dando a atualizao do ser.
Neste passo, trs teses acerca da matria que impedem que a matria real seja, a
princpio, considerada individual, a saber: [1] a matria potencial para muitas formas9;
[2] a matria a parte que serve de sujeito10
para ser determinada pelas formas, as quais
tambm se sucedem nos compostos substanciais; [3] a matria no possui nenhum ato
por si mesma (ela pura potncia)11
. Desse modo, a matria no a mesma em relao
a todas as formas num sentido nico ou numrico, j que essa unidade individual j
pressuporia um determinado estado em ato enquanto individual, o que contraria a tese
[3]. Alm disso, se a matria fosse numericamente individual, a matria contrariaria a
tese [2], uma vez que no se determinaria pelas formas, mas j estaria determinada.
6 In VII Metaphys., lect.2, n.1285: (...) materia enim non potest per se existere sine forma, per quam est
ens actu, cum de se sit in potentia tantum; ipsa enim non est hoc aliquid nisi per formam, per quam fit
actu. 7 S.Th., I, q. 75, a. 6, res.: Esse autem per se convenit formae, quae est actus. Unde materia secundum
hoc acquirit esse in actu, quod acquirit formam, secundum hoc autem accidit in ea corruptio, quod
separatur forma ab ea. 8 S.C.G., lib.2, cap.33, n.1 - [...] na privao verdadeiramente sempre adjunta a uma forma contrria
uma vez que seja impossvel a matria existir sem qualquer forma. ([...] privatio vero semper adiungitur formae contrariae, cum impossibile sit materiam esse absque omni forma.) 9 S.C.G., lib.3, cap.86, n.1 materiam, quae est in potentia ad pluresformas; S.Th.I, q.7, a.1, res.
10 S.Th.I, q.75, a.5, ad.2.; S.Th.I, q.27, a.2, arg.1.
11 S.C.G., lib.1, cap.17, n.7 - Sic etiam Deus et materia prima distinguuntur, quorum unus est actus
purus, aliud potentia pura, in nullo convenientiam habentes.; S.Th.I, q.115, a.1, ad.2.
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Assim, partindo da tese [1], com a qual a matria teria uma unidade num sentido
do que comum a muitos atos, ou muitas formas. Quando falamos de comum no se
pretende defender uma unidade numrica, mas se pretende que esta unidade da
potncia da matria esteja em funo de muitos atos de formas, de modo que a
matria se torna diversa pela diversidade destes muitos atos, o que estaria de acordo
com a tese [2], pois a matria, enquanto sujeito, poderia se determinar de acordo com a
multiplicidade das formas especficas.
Portanto, a cada processo de gerao, a prpria matria se determina numa
espcie em funo da atualizao especficada forma, mas essas atualizaes nunca
completam a potencializao genrica da matria de modo que esta permanece em
potncia. Eis a grande diferena que h entre relao entre substncia e acidentes e a
relao entre matria comum e forma: A substncia continua tendo o mesmo ato da
individualidade ao longo das mudanas acidentais, enquanto a matria muda na medida
em queadquire um ato de ser numa espcie a cada atualizao da forma. Assim, temos
que dizer que a matria comum no tem nenhum ato por si mesma, mas apenas pela
forma, a qual a diversifica especificamente, de modo que estaremos de acordo com a
tese [3] tambm. Prossigamos com um texto de Toms:
A matria porm, segundo o que , est em potncia para a forma.
Logo, foroso que, segundo considerada em si, esteja em potncia
para a forma de todos aqueles dos quais matria comum. Contudo,
por uma forma una no se faz em ato, seno com relao quela
forma. Assim, permanece em potncia quanto a todas as outras
formas.12
[Grifo meu]
No artigo da Suma Teolgica que aparece o texto acima, Toms se contrape ao
pensamento de que matria tem uma unidade em funo da atualizao de uma forma
una. Entenda-se umaforma una como se tratando de forma comum enquanto
genrica. Contudo, existem duas maneiras de considerar o ato da forma comum no que
diz respeito potncia da matria comum:
Na primeira maneira [1],a forma, enquanto comum, se trata de uma atualizao
com grau de abrangncia igual ao grau da potencializao da matria. Assim, enquanto
a potencializao da matria ficaria num mbito genrico, a atualizao da forma
tambm ficaria num mbito genrico. Nesse primeiro modo, uma consequncia do grau
12
S.Th.I, q.66, a.2, res.: Materia enim, secundum id quod est, est in potentia ad formam. Oportet ergo quod materia, secundum se considerata, sit in potentia ad formam omnium illorum quorum est materia
communis. Per unam autem formam non fit in actu nisi quantum ad illam formam. Remanet ergo in
potentia quantum ad omnes alias formas.
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de abrangncia igual genrico ser o fato de que a atualizao da forma no especificar
a matria, mas a individuar diretamente. Apesar de no ser de fcil compreenso,
podemos simplificar dizendo que, uma vez que o comum tratado como distribudo em
muitos e a atualizao dessa distribuio ocorre num grau genrico, segue-se que
teremos a distribuio direta da individuao, de modo que a materialidade j seria
diretamente individuada.No contexto da citao acima, Toms diz que a matria no se
faz em ato por uma forma deste tipo, porque se trata do mbito sublunar.
Na segunda maneira [2],a forma, enquanto comum, pode se tratar de uma
atualizao com grau de abrangncia menor do que o grau da potencializao da
matria. Assim, enquanto a potencializao da matria ficaria num mbito genrico, a
atualizao da forma ficaria num mbito especfico. De fato, h textos onde Toms fala
da matria e da forma comuns13
, de modo que amatria recebe o ser na espcie14
.Toms
precisar defender tal posio quando diz respeito aos corpos sublunares, isto, , que
esto abaixo da lua.A matria comum, enquanto pura potncia, possui uma
potencialidadegenrica e a forma causa a diversidade com umaatualidade especfica,
de modo que o ato da forma no ser o suficiente para completar a potncia da matria,
sobrando uma parcela da potencialidade da matria que estar em funo de outra
forma e, por esta outra forma, receber outro ser.15
S podemos considerar um movimento qualquer se houver potencialidade,
como j vimos. Assim, o movimento de gerao e corrupo s pode acontecer se
houver um aspecto que sempre permanece em potncia, o qual seria a matria comum.
Diante disso, podemos explicar o motivo de Toms afirmar
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