amkoullel o menino fula parte 2

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5/11/2018 AmkoulleloMeninoFulaParte2-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/amkoullel-o-menino-fula-parte-2 1/28 Rafzes A DUPLA HERANC;A Na.Africa tradicional, 0 individuo e inseparavel de sua linhagem, que conti- nua a viver atraves dele e da qual ele e apenas urn prolongamento. E por isto que, quando desejamos homenagear alguem. 0 saudamos charnando-o repetidas vezes, nao por seu nome pr6prio, que corresponderia no Ocidente ao nome de batismo, mas pelo nome de seu cla; "Ba' Ba!", ou "Diallol Diallo!", ou "Cissel Cisse!" Porque nae se esta saudando 0 individuo isolado e sim, nele, toda a linhagem de seus ancestrais. Assim, seria impensavel para 0 velho africano que sou, nascido na aurora deste seculo na aldeia de Bandiagara, no Mali, iniciar 0 relate de rninha vida pessoal sem evocarprimeiro. ainda que apenaspara situa-las, minhas duas linhagens, a paterna e a materna. Ambas sao fulas e estiveram ligadas, se bem que em campos opostos, aos acontecimentos historicos, por vezes tragicos, que marcaram meu pais ao longo do seculo passado. Toda a hist6ria de minha familia esta, na realidade, ligada a de Macina (regiao do Mali situada no que se chama 0 Arco do Niger) e as mr-errasque a dilaceraram, Especialmente, aquelas que opuseram os fulas do lmpe- rie Fula de Macina e os tucolores do exercito de EI Hadj Omar, 0 grande conquista- dor e chefereligioso islamico oriundo do oeste e cujo imperio, depois de veneer e anoorver Q Imperio Fula de Macina em 1862, estendeu-se do leste da Cuine ate ~ombuctu,:no Mali. Cada uma de minhas duas linhagens mantem laces de parentesco. diretos indiretos, com urn destes dois grandes partidos antagonicos, E, portanto, uma ~ta heranca, ao mesmo tempo hist6rica e afetiva, que recebi ao naseer e marcou aeontecimentos de minha vida. 23

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Rafzes

A DUPLA HERANC;A

Na.Africa t rad icional, 0 individuo e inseparavel de sua linhagem , que conti-

nua a viver atraves dele e da qual ele e apenas urn prolongam ento. E por isto que,

qu and o d ese jam os homen ag ear a lg uem . 0 sa ud amos c harn an do -o re pe tid as v ez es,

nao por seu nom e pr6prio, que corresponderia no O cidente ao nom e de batism o,

m as pelo nom e de seu cla; "Ba' B a!", ou "Diallol Dia llo! ", ou "Cissel Cisse! " Po rque

nae se esta saudando 0 individuo isolado e sim , nele, toda a linhagem de seus

ancestrais.

A ssim , seria im pensavel para 0 velho africano que sou, nascido na aurora

d este se culo n a ald eia d e B and iag ara , no Ma li, inic ia r 0 re late d e rn inh a vid a pe sso al

sem evocarprim eiro. ainda que apenaspara situa-las, m inhas duas linhagens, a

paterna e a m aterna. Ambas sao fulas e estiveram ligadas, se bem que em cam pos

o postos, a os ac onte cim en tos h isto ric os, p or v eze s trag ico s, q ue m arc aram meu pa is

ao longo do seculo passado. Toda a hist6ria de m inha fam ilia esta, na realidade,

ligada a de M acina (regiao do M ali situada no que se cham a 0 Arco do Niger) e as

m r-e rras q ue a d ila ce raram, E sp ec ialm en te, a qu ela s q ue op use ram os fula s d o lm pe -rieFula de M acina e os tucolores do exercito de EI Had j Omar, 0 g rande conqu is ta -

dor e chefereligioso islam ico oriundo do oeste e cujo im perio, depois de veneer e

anoorver Q Imperio Fula de M acina em 1862, estendeu-se do leste da Cuine ate

~ombuctu,:no Mali.

C ada um a de m inhas duas linhagens m antem laces de parentesco. diretos

indiretos, com urn destes dois grandes partidos antagonicos, E , po rta nto , uma

~ta heranca, ao m esm o tem po hist6rica e afetiva, que recebi ao naseer e m arcou

ae on tec im en to s d e m in ha v ida .

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AMKOULLEL, 0 ME NINO FULA

I .

"N ao tao d ep ressa!" exclarnara 0 le ito r n ao -a fric ano, pouco fam ilia riz ado

com os grandes n0111esde nos-sa historia. "An te s d e p ro sse gu ir, 0 que sao - para

com e~ ar - os fulas e os tucolores?"

Comece rn os p or m eu s .an cestra is, o s fu las. S ea p erg un ta e f ac il de f ormula r,

a resposta ja nao 0 e . Porque este povode pastores noma des que conduziu seus

rebanhos atraves de toda a A frica savanica ao sul do S aara entre 0Oceano A tl an tico

eo O ceano I ndico durante m ilenios (com o 0 testem unham as gravuras rupestres de

bovinos das g ru tas d o T assili descob ertas po r H en ri L ho te), faland o francam en te,

constitui-se urn enigm a da historia. Ninguem jamais c on se gu iu d es vendar 0miste-

rio de suas origens. Q uase todas as lendas e tradicoes orais dos Iulas m encionam

um a origem oriental m uito antiga. M as, dependendo da versao, esta origem e asvezes arabe, iem en ita o u p ales-tin a; as vezes, hebraica e as vezes ain da m ais lon gin-

qua, buscando sua fonte na India. Nossas tradicoes evocam grandes correntes m i-

gratorias vindas "doleste" em epoca mu ito d istan te , e alg umas d ela s, atrav essan do

a Africa de leste para oeste, teriam chegado a regiao de Futa Toro, no Senegal. E

desta regiao, muito mais tard e, n uma epoca ma is p roxima a nossa, p artiram nov ae

m ente em direcao ao leste, em novos fluxos m igrat6rios.

Q uanto aos sabios e pesquisadores europeus, talvez intrigados com a aPa-

rencia fisica dos fulas, de tez relativamente clara (m as que pode tornar-se mais

e scura s egundo 0 grau d e m esticag em ), nariz lo ng o e reto e I ab ios frequ en tem ente

muito fines, tentaram encontrar a solucao para este enigma de acordo com sua

re sp ec tiv a d isc ip lin a (h isto ria , lin gu istic a.a ntropo logia , e tn ologia ). C ada um partiu

de sua hipotese, pondo as vezes tanta energia em defende-la quanto em com bater

ados outros. M as nenhum chegou a um a resposta exata. Na m aior parte das vezes,

con corda-se em atribu ir aos fulas o rig em rn ais o u m eno s /I o rie ntal", com g rau mu ito

v aria do d e mestica gem en tre u rn elemen to n an -n eg ro d e o rig em semitica o u h am itic a

e o s negro s sud an eses. P ara o s h istoriad ores african os.m oderno s. os fulas seriam de-o rig em puramen te afric an a.

D e qualquer maneira - e ai reside a profunda originalidade dos fulas -

atraves do tem po e do espa~o, das m igracoes, das.m esticagens, das contribuicoes

exteriores e das inevitaveis adaptacoes ao m eio am biente, eles souberam m anter

sua identidade e preservar sua lingua, seus fu nd amen t o s c ultu rais ex trema men te

ricos e.ate a epoca de su a islam izacac.su as tradicoes relig iosas e iniciaticas. T udo

isso,ligado a urn agudo sentim ento da propria identidade e nobreza. S em duvida, ja

nao sabem de on d e vern, m as sabern quem sao. "0fu la con hece a si m esm o", dizemos bambara s.

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RAizns

Meu velho amigo Sado Diarra, chefs daaldeia de Yerernadio, perto de

Bamako, assimexprimia, com malicia e poesia, 0 pensamento dos bambaras a re s-

peito dos fulas: "Os fulas Sao uma mistura surpreendente. Rio branco no pais de

aguas negras.rio negro no pais de aguas brancas, e um povo enigm atico que turbi-lhoes caprichosos trouxeram do sol nascente e espalharam de leste a.oeste por quase

todosos cantos".

C om efeitc.aosahor de m il circunstancias historicas m ais ou m enos conheci-

das, osfulasdispersaram -se com o fogo fatuo por todasas zonas habitaveis da savana

africana ao sui do Saara. "Presentes em todos os lugares, mas sem dornicilio em

parte algum a",.sem pre em busca de novos olhos d' agua e ricas pastagens, durante

o dia tangiem seus grandeszebus cornchifres ern Iorrnadelira ou de Iua crescents,

ea.noite dedicavam-sea torneios de improvis acao poe tic a. O raop rim idos. dispersesem d iaspora s OU fixadosa forca ern zonas de concentracao: ora conquistadores,

orgahizando-se em .reinos, apos sua isJam iza~ ao chegarao a fundar grandes irnpe-

rio s. E ntre d es, 0 Im perio de Sokoto (regiao da Nigeria) fundado no secu lo XV II I

por Ousm ane dan Fodio eo Im perio de M acina (regrao do M ali), fund ado no inicio

do seculo XIX por Cheikou Amadou, nocoracao do fertildelta in terio r d o rio N iger.

S eculos antes da fundacao deste ultim o im perio, ondas sucessivas de paste-

res fulas vindos sobretudo de Futa Tore e do Ferlo senegales, atraidos pelas vastas

pastagens de M acina, haviam -se fixado nesta regiao. M eus longinquos ancestraispaternos ai thegaram por volta do fim do seculo Xv. Instalaram-se na margern

direita do Bani (afluente do Niger), entre D jenne e M opti, naregiao denom inada

Faka la , o u "p ara tO dOS!',p ois o s fulas alico ab itaram comdiversas e tn ias .locai s:

bambaramarka, bozo, somono, dogon, etc.

Quando, em 1818, Cheikou Amadoufundou no pais a dina! ou Estado Islamico,

que os historiadores.denom inaram 0 ImperioFula teocratico de Macina (cuja histo-

ria relatei em outra publicacao'), a populacao de to d o 0 delta do Niger ja era pte do-

m inantem ente fula, M eusancestrais paternos, os B a e os Hamsalah, que ocupavamfuncoes de chefiano Fakala, juraram fidelidade a C heikou Am adon. Nem por isto

d eix aram d ecriar g ad o.p ois n en hu rn fu la d ig no d este n ome.rn esmo sed en tarizad o,

saberia viver sem ocupar-se.porpouco que fosse, de urn rebanho. Nemtantopor

razoes econom icas, m as devido ao am or ancestral pelo anim al irm ao, quase sagra-

do, seu.companheiro desde a .aurora dos tempos. "U rn fula sem rebanho e urn

principesem corea", diz urn ditado,

1. 0 auto r refere-sea ob ra LEmpire P eul d u M a cin a, em co- au to ria c om J , . Daget , I FAN, Dakar ,

1955. (NT)

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AMKOULLEL,O MENINO FULA

A com unidade da d ina , c riada conforme 0modele da p rim eira comunid ade

m uculm ana de M edina, prosperou durante vinte e oito anos.sob a sabialideranca de

C heik ou Amado u. E ste lib ero u o s fu las d o d om in ic d os so beran os locais, reag rup ou-

os e sedentarizou-os no coracao de um Estado poderoso e independente e, coisanada facil, regulam entou as datas e trajetos de transum ancia do gado em sincronia

com as populacoes agrkolas locais. D epois de sua m orte em 1845 e da m orte de seu

filho Am adou-Cheikou em 1853, a situacao da comunidade se deteriorou sob 0

reinado de seu neto Amadou-Arnadou, que m orreu em 1862 durante a tom ada da

cap ital, H amdallaye, p elos ex ercitos tu colo res d e E l H ad j Omar. 0 Im perio Fula de

M acina, em que m inha lirihagem paterna havia prosperado. fora venc ido .

A go ra en tram emcen a esses tu co lo res, cujo nome, p ela p ro pria so no rid ad e,

surpreende urn pouco0

leitor nao-iniciado. C abe urriapequena explicacao. E stenom e, que nao tern nada a ver com cores', deriva da palavraarabe ou berbere

tekrout; que antig amen te d es ig nava to da a regiao do Fu taToro senegales. Os mouros

(de lin gu a arab e) ch amavam os hab itan tes deste pais de teksrir ( singu la r - tekrouri i .

De acordo com Maurice D elafosse, este nom e, deformado pela prom incia uolofe

para to ko ro ro u to ko lo r, tra nsfo rrn ou -se , n uma u ltima d efo rmac ao fo netic a fran ce-

sa, em toucouleur.

No deco rrer d e u rn lo ng in quo p ro ce sso h is t ori c o n a o elu cid ad o, o s h ab ita nte s

deste pais, apesar de pertencerem a etnias diferentes (sem duvida predom inante-

m ente fula apos a chegada m acica destes ao Futa T oro, m as tam bem serere, uolofe,

soninque etc.), acabaram por falar a lingua fula. Esta, por sua vez, tornou-se para

eles urn fator de unidade linguistic a e, portanto, cultural'. 0 "povo tucolor" nao e .

assim , um a etnia no sentido exato da palavra, m as urn conjunto de etnias unidas

pelo uso da m esm a lingua, e, no decorrer do tem po, m ais ou m enos m isturadas por

c as amento s. Os tu co lo re s autodenominam-se bslpulet; " aque le s que f alam 0puler"

( is to .e ,0 fula). Tam bem sao cham ados de Futsnke. "os do Futa".

A pura tradicao fu la, sob retud o a religio sa e iniciatica, p erp etuo u-se en tre o s

u nico s fu las p asto res d a "alta brousse 4" ,isto e, entre aqueles que viviam longe das

c id ades e a ld eia s.

2. Toucouleurs: ern frances, 0 nome sugere "todas as cores". (NR)

3. A hipotese retomada por Maurice Delafosse, segundo a qual, ao chegarem a Futa Toro os

fulas teriam adotado uma lingua local que se tornaria a linguaJula, nao resiste a uma analise

para qualquer pessoa que conheca 0 mundo' e a tradicao fula do interior.

4. Brousse: formacao estepica da Africa, caracterizada por vegetacao rasteira de gramineas

misturada corn algumas arvores e arbustos, Tambem qualquer area fora db perimetro da

cidade. Em portugues, a palavra mais aproximada seria "sertao", (NT)

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RAfzES

Os dois povos que naquele ano de 1862 travaram combate em Macina, nas

cercanias de Hamdallaye, possuiam muitos pontos em comum: a religiao, a lingua,

as vezes a etnia e ate 0 territ6rio de origem, porque os ancestrais dos fulas de Macina

tambem tinham vindo do Futa Toro muitos seculos atras, Mesmo assim, os "fulas deMacina" e os "tucclores de EI Hadj Omar" constituiam duas entidades politicas

distintas. Como a hist6ria devera se desenrolarem torno deles, conservarei essas

duas denominacoes para facilitar a compreensao do leitor, Eles pr6prios, mais tarde,

se designariam pelos termos de "velho Futa" ( futaki 'ndi) para os fulas de Macina

presentes na regiao ha seculos e "novo Futa" (futakeri) para os tucolores que vie-

ram com EI Hadj Omar,

MEV AVO MATERNO PATE POULLO

No seio do exercito tucolor que entrouvitorioso em Hamdallaye, encontra-

va-se urn fula de Futa Toro que, tempos arras, havia abandonado tudo para seguir

EIHadj Omar. Chamava-se Pate Poullo, do cla Diallo e era meu futuro avo materno.

Eu ouviria contar sua hist6ria muitas vezes.

Pastor fula da alta brousseda regiao de Dienguel (Senegal), Pate Poullo era

urn -s i ja t igw'

s,

quer dizer, urn grande mestre em iniciacao, especie de sacerdote eportanto chefe espiritual de sua tribo. Como todos os silet igui, possuia poderes

extraordinarios: vidente, adivinho, curandeiro, era habil na avaliacao dos homens e

na compreensao da silenciosa linguagem de sinais da brousse. Apesar de jovem,

ocupava posicao importante em seu meio. Mas urn dia, durante uma viagem, teve

oportunidade de ver e ouvir EI Hadj Omar, grande mestre da confraria islamica

Tidjaniya' que viajava pela regiao de Futa Toro.

Assim que retornou para junto da familia, Pate Poullo convocou os irmaos,

parentes mais importantes e os representantes c ia tribo e contou-lhes sua intencao

de abandonar tudo para seguir El Hadj Omar. "Quis primeiro Ihes pedir permis-

sao", disse. "Se aceitarern, deixarei todo 0meu rebanho como indenizacao. Partirei

de maos vazias, a.nao ser pelos cabelos da cabeca e as vestes do corpo. Quanto ao

meu cajado de sils t igw; antes de partir 0passareiritualmente aquele mais qualifica-

do para herda-lo."

5. Nao confundir corn salt igui ou sal i t igui (chefe).

6. T id ja niya : uma das principais confrarias islamicas da.Africa Negra e da Africa do Norte. Asconfrarias tturuq, "caminhos", singular - tar iqa) nao sao seitas, pois nao sao exteriores ao

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AMKOULLEL, 0 MENINO FULA

A surpresa dos parentes foi grande, m asafinal todos concordararn: "S iga seu

carninho e que a paz, sornente a paz, 0 acompanhe!" E foi assimque meu avo,

abandonando riquezas, rebanhos e poder, m unido de urn sim ples cajado de pastor,

tomou a estrada para juntar-se a EI Hadj Omar.Quando 0 encon trouem uma cidad e cujo n om e esqu eci, aprese nto u-se: "X ei-

que Omar, ouvi teu charnado evim, Eu m e chama Pate Poullo D iallo e sou urn 'fula

verm elho', urn fula pastor da alta brousse. A fim de me I iberar, dei meu rebanho a

m e u s irm aos, Eu era tao rico quanta pode ser urn fula. Portanto, naoe para adquirir

riquezas que vim juntar-me a ti, mas apenas para responder a um apelo de Deus,

porque um .fula nao deixa seu rebanho para procurar outra coisa.

Tambem nao vim a teu encontro para adquirir conhecimento,pois, neste

mundo, nada podes me ensinar que eu ja nao saiba. Sou um silet igui, u rn ini ciadofu la . Conheco 0 visivel e 0 invisivel. T enho, com o se diz, 0 'ouvido da brousse':

entendo a lingua dos passaros, leio 0 rastro dos pequenos animais no chao e as

m anchas lum inosas que 0 so lp ro je ta a tra ve s d as fo lh ag en s; s ei in te rp re ta r 0 sussur-

ro dos quatro grandes ventos e dos quatro ventos secundarios, assim com o a passa-

gem das nuvens atraves do espa~o, porque para m im tudo e sinal e linguagem . Este

saber que esta em mim , eu naoposso abandona-lo, e quem sabe te podera ser iitil?

N asviagens com teus com panheiros, eu poderia 'falar pela brousse' e guiar-te por

e ntre s ua s a rmad ilh as.Nao vim a ti para as coisas deste m undo. Peco-te que m e recebas no Isla e te

seguirei aonde fores, m as com um a condicao: no dia em que D eus fizer triunfar tua

causa e dispuseres de podere grandes riquezas, pero-te que nunca me nomeies

para qualquer posto de com ando - chefe de exercito, chefe de provincia, chefe de

aldeia, nem mesmo chefe de bairro. Porque a um fula que tenha abandonado seu

rebanho nao se pode oferecer nada queseja m ais valioso.

Se te sigo, e unicarnente para que m e guies na direcao do D eus U nico".

M uito com ovido, EI H adj Omar aceitou as condicoes de m eu avo e realizou a

cerim onia de conversao. E, de fato, durante toda sua vida, m eu avo jam ais aceitou

honrarias ou funcoes de comando. Entre os dois homens firmou-se uma alianca

Isla, mas tipos de farnilias espirituais intern as, algo como ordens diferentes (franciscana,

dominicana) no interior do catolicismo. A Africa subsaariana foi islamizada essencialmente

pelas confrarias que ali desempenharam um importante papeJ tanto no plano religioso

como noplano social e mesmo politico. (Vet minha obra Vie et en seign em en ts d e T iern o

B ok et; Ie sa ge d e B an d ia ga ra , Le Seuil, colecao Points Sagesse, Paris, 1980, anexo Sout ismee t c o n /r er ie s e n Is lam ) .

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RAIZES

puramente espiritual, que logo se desdobrou em amizadeprofunda, Como teste-

munho de confianca.El H adj Omar encarregou Pate Poullo da.guarda.e manu te n-

gao de seu pequeno rebanho pessQ al,heran< ;:a cia m ae fula, R ebanho que 0 seguia a

todo lugar e do qual tirava, assim como do fruto de suas aula s na e sc ola· coran ic a q ue

nunca abandonou, 0alimento e a man uten cao d a p ropr ia fam ilia .

A partir desse dia, sob a ban deira deE l H ad] Omar, Pate Poullo seguiu-o em

seu periplo em dlre~ ao ao leste.E foi assim que, no ano de 1862, entraram como

vencedores em H am dallaye, capital do Im perio Pula de M acina, fundado quarenta

e qua tr o anos ante s porCheikou Amadou.El Hadj Omar a i permaneceu por dais

anos, No decurso dos ultimos nove meses, todos as seus inimigos (fulas, kuntas de

T ombuctu e.outros) ccligaram -se para fazer-lhe u rn c ere o. E stes e xe rcito s, a campa -

dos ao redor da solids muralha q ue e le havia mandado erigir para protegerecid ad e, n ao d eix av am passar nada. 0 bloq ueio fo i implacavel, a fom e, atroz. Os

tu co lo re s fo ram reduzidos a s condic tre sma is extremas .

Poi.durante este periodo dramatic a q ue P ate Poullo, g lCa< ;:asa lgumas gotas

de leite, se tornou am igo de urn sobrinhode ElHadj Omar, Tidjani Tall (filho de

Amadon Seydou Tall, i rrnao maisvelho de El Hadj Omar). N in gu em su sp eitav a

aindaque T idjani 'I alliria tornar-se m ais tarde soberano do R eine 'I ucolor de Macina,

fundaria a cidade de Bandiagara onde nasci e desempenharia p ap el d ete rm in an te

na historia de minha familia, tanto paternacomo materna, influenciandoindiretam ente m eu proprio destine.

Urn d ia , duran te 0 oerco, um a vaca leiteira, burlando a vigilancra dos solda-

dos in im igos, c on se gu iu chega r ate os portoes da muralha de pro te<;:ao .Puseram-na

sem demora para dentro d a cidade, onde, n atu ra lmente , fie ou sob os bons cuidados

de Pale Poullo. Toda noire, ele saia da cidade sem se deixar surpreender, para

procurarcapim com o qual alim en tar av aca. E pela manha.apos ordenhar 0 animal,

levava uma grande cabaca de leite a El Hadj Omar, quedividia a preciosa bebida

entre es rnembros de sua familia, ele proprio e Pate. P oullo. M as m eu avo habituara-se a .I ev ar tambe rn , escondido em urn pequeno odre, urn PO uC ()de leite a Tidjani,

c ujo d estin e h av ia lido nos tra ce s doro sto , gri:l<;:as.auas est ranhas faculdades, "Eis

aqui 0 resto do leite de seu p ai/E l H ad j Omar", d iz ia.ele, "B eb a-o ese ra se u herder-

r o." E T id jani b eb ia .Foi assim que nasceu entre eles u rn v in cu lo so lid o, fundado na

a fe ic ao e no re co nh ecim en to , e que jamaisse desfez ,

7 . N a trad i~ ao african a, 0 t io paterno e considerado com o urn pai e e diretamente.responsavelpela e ria nc a,

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AMKOULLEL, 0 ME NINO FULA

Quando, em 1864, a situacao se tornou insuportavel, E l H adj Omar decidiu

enviar seu sobrinho Tidjani ern busca de reforcos. Recom endou-lhe que fosse a

Dukombo, na regiao habit ada pelos dogon, procurar seu am igo, 0 no tavel E lle

Ko sso dio , e p ed ir-lh e aju da p ara re cru ta r u rn e xe rc ito q ue v ie sse so co rre-lo . D eu -lh egran de q uantidad e d e au to para facilitar a tarefa e design ou tres so ldad os tuco lores

para acom panha-lo. Em seguida, cham ou m eu avo: "Pate Poullo, va com Tidjani.

Voce lh e s era ma is uti! do que a m im . O utrora, voce m e prom eteu 'falar pela brousse' .

Hoje, desejo que voce 'fale pela brousse ' a Tidjani. V a com ele e seja seu guia, seu

b atedo r. C ertifiqu e-se de qu e 0 cam inho nao apresenta perigo, depois volte atras e

diga-lhe 0 que fa ze r" .

E l H adj Omar tom ou as m aos de T idjani, colocou-as entre as de-PatePoullo e

disse: "C onsidere P ate Poullo seu pail com o se fosse eu m esm o. E le sera para voce e

seus com panheiros os olhos e ouvidos da brousse. Tudo 0 que the m andar fazer,

faca, Se lhes disser que acam pem , acam pem . Se disser que levantem acam pam en-

to, levantem acam pam ento. E nquanto estiverem na brousse, segu ir ao estr it amen-

te seus conselhos; m as assim que estiverem em um a cidade, que nao e m ais dom inic

dele, a iniciativa recaira sobre voce. E u os confio um ao outro, e os dois a A llah, que

n ao tra i jamais".

A prov eitand o a escu rid ao d a n oite, 0p equ eno g rup o g uiad o p or P ate'P ou llo

conseguiu sair de H am dallaye e cruzar as linhas inim igas sem ser visto. Rapida-

m ente, chegaram sem problem as a cas a de Ellee Kossodio em Dukombo. Este

comecou pot lev ar T id ia nia c asa d o g ra nd e c aca do r d ogon Dommo , a se te q uilome tro s

dali, no curacao de U lna grande planicie em form a de bacia, num lugar cham ado

Bsnnys sr», "a grande tigela", porque era ali que os elefantes tinham 0 costum e de

m atar a sede, E ste e 0 lugar onde T idjani fundaria m ais tarde a capital de seu reino

que seria cham a do BanIlyagara pelos tucolores e que, transcrito m ais tarde num

registro po r um I uncio nario fran ces como B and iagara, co nservaria este nome.

Foi nesta ocasiac.creio eu. que se deu um acontecim ento hist6rico envol-

venda meu avo, 0 qual teve papel importante na futura escolha deste localpo r Tid jani.

C om o era seu costum e, Pate PouU o fora explorar os arredores. Ao voltar,

e nco ntro u T id ja ni re po usan do a sombra de uma grande e frondosa acacia. U m

pouco m ais adiante, um a pequena acacia perm itia ao sol penetrar folgadam ente

atrav es d e su a ra la fo lh ag em . L ev ado p ela in sp ira ca o, P ate Pou llo e xc lamou: "Como ,

T idjani! Seu pai, E I H adj Omar, esta na sornbra (prisioneiro, privado dos m eios de

acao) e voce tarnbem se senta a sombra? Quem entao vai se por ao sol por voces?

Levante-se e va sentar-se na pedra aos pes da pequena acacia la adiante. Nao e 0

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RAIZES

momento de ficar a sombra, mas ao sol". (Em fula, "por-se a sombra" significa

repousar depois de terminar 0 trabalho; "ficar ao solo quer dizer trabalhar.)

Tidjani, que obedecia cegamente os conselhos de Pate Poullo desde que fos-

.sem relacionados aos rnisterios da brousse , levantou-se e recolheu sua sela e arreios.Os tucolores que 0 acompanhavarn surpreenderam-se. "Francarnente, Tidjani! Pate

Poullo da ordens a voce como se voce fosse seu filho: Levante-se ... sente-se aqui ...

sente-se ILl!Sem dizer palavra, Tidjani foi sentar-se na pedra. PatePoullo, que

acompanhara toda a cena, declarou: "Tidjani, filho de Amadou Seydou Tall!A voce,

que .aceitou sentar-se nestapedra, tenho uma coisa a dizer. Palavra de fula do

Dienguel. Um dial voce fundara aqui uma capital, de que todo o Arco do Niger

ouvira falar e de onde ninguem. a nao ser a morte natural, 0podera desalojar. Neste

dial pedirei que me de 0 terreno sobre 0 qual esta esta pedra, para que nele eu facaminha morada".

Quafro anos mais tarde, Tidjani instalaria e desenvolveria neste local a capi-

tal de seu reino, onde reinaria sozinho por vinte anos, ate sua morte. A pedra sobre

a qual se sentara,bem conhecida em Bandiagara, encontra-se ate hoje no patio da

propriedade que herdei de minha mae, que ela, por sua vez, havia herdado do pail

Pate Poullo.

Meu avo explicou mais tarde que, se Tidjani tivesse permanecido naquele

dia a sombra da grande acacia, e se a oracao de a sr (memento da tarde quando 0 solanuncia seu declinio) ali 0 houvesse surpreendido, jamais teria se tornado chefe,

nem fundado seu reino neste local. Certamente, esta nao e uma logica muito

cartesiana. Mas para nossos anciaos, sobretudo para os "homens de conhecimento"

(s]iat iguipara os fulas, doma para os bambaras), a 16gica apoiava-se em outra visao

de mundo, em que 0 homem se ligava de maneira sutil e viva a tudo que 0 cercava.

Para eles, a configuracao das coisas em determinados momentos-chave da exis-

tencia possuia urn significado preciso, que sabiam decifrar. "Esteja a escuta", dizia-

se na velha Africa, "tude fala, tudo e palavra, tudo procura nos comunicar urnconhecimento ..."

Auxiliado por Elle Kossodio e seus amigos, Tidjani conseguiu levantar na

regiao urn exercito de cern mil homens. Neste meio tempo, soube que Hamdallaye

havia sido completamente destruida por urn incendio e que EI Hadj Omar, insti-

gado por seus homens, escapara e conseguira chegar a Deguembere, na regiao

dogon. Com seus filhos e seus ultimos companheiros, refugiara-se em urna gruta

na encosta de uma montanha e ali estava. cercado pelos exercitos fulas e kuntasde Tombuctu.

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AMKOULLEL, 0 MENINO FULA

T id jan i fo rco u a marc ha em so co rro d o tio . M as q uan do ch eg ou a D eg uembere

ja era tarde. P or razoes que nunca fo ram elucidadas, um barril de polvora exp lodira

na gruta eEl H ad j Omar h av ia morrido com os seu s no acidente.

L ou co d e calera e tristeza, T id jan i av an co u a frente de seus hom ens sobre osexercitos fulas e kuntas e os em purro\1 para longe. N a perseguicao aos fugitivos,

entregou-se a um a repressao feroz ao.longo da regiao. D epois da grande batalha de

Sebara, em que derrotou os fulas de F akala, m andou executar todos os m em bros do

sexo m asculino, independente da idade, das grandes fam ilias do antigo Im perio

F ula. E ram essen cialm ente fam ilias aparentadas ao fun dador do I mp erio, C heik ou

Amadou, e fam ilias B a.e H am salah. Em Sofara, so em rninha fam ilia paterna qua-

renta pessoas foram executadas em um dia; eram todosmeus avos, tics-avos,

ou tios paternos. A penas dois m eninos escaparam : H am pate Ba.,m eu futuro pai,q ue se en co ntrav a lo ng e dalinaquele m om ento, e um jovem prim o de quem ignoro

o paradeiro .

D epois de passar por diferentes cidades da regiao, T id jani d ecidiu instalar a

capital de seu reino em B andiagara, que era um aarea bern protegida. D e la, pede

comandar um a serie de op eracoes v itoriosas contra os inim igos. T ornou-se 0 chefe

local, m as nao sem guerrear durante m uito tem po ainda co ntra os focos de resisten -

cia fulas espalhad os pela regiao e apoiados pelos k untas deT ombuctu. P ate P oullo,

que adminis tr ava 0 rebanho real, estava sem pre a seu lado. V am os deixa-los por

algum tem po, para juntar-nos a este jovenzinho salvo por m ilagre do m assacre e

que se tornaria m eu pai.

MEU PAl HAMPATE:

o CORDEIRO NA TOCA DO LEAO

Nao guardei qualquer lem branca de m eu pai. I nfelizm ente, quando 0perdi,

nem havia com pletado tres anos de vida neste m undo agitado onde, tal qual urn

caco de cabaca levado pelo rio, flutuaria m ais tarde ao sabor dos acontecim entos

po litic os ou r el ig io so s s us cita do s pela p re sen~a colonia l.

U r n d ia, q uan do tin ha q uatro o u cin co an os. b rin cav a p erto d e N iele D emb ele,

a excelente mulher que era m inha "serva-m ae" desde meu nascimento, e que

haviapassado avida ao lado de m eu pai. P erguntei-lhe: "N iele, com o era m eu pai?"

8. "S erv e-m ae": freq uentern ente uma m oca b ern jov em q ue cu id av a da crian ca a partir d e seu

n ascim en to o u ten ra id ad e, au xilian do a m a e .

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RAfzES

Surpresa, ela emudeceu por urn instante. Em seguida, exclamou: "Seu pai!

Meu born amo!" E para meu grande espanto, caiu em prantos, puxou-me e apertou-

me com forca contra 0 peito.

"Falei algumacoisa errada?", perguntei. "Nao devemos falar de meu pai?""Nao, nao. voce nao disse nada errado", respondeu Niele. " E que voce me

comoveu; reacendeu em meu espirito a lembranca daquele que salvou minha vida

quando eu eracrianca, tirando-me das maos de uma ama cruel e voluntariosa que

sempre me batia e mal me dava 0que comer. Hampate nao foi somente seu pai;por

sua bondade e afeicao, foi meu pai tambem.

Voce quer saber como ele era? Bern, era de estatura media, bern proporcio-

nado - nao era uma bola de carne bochechuda. Silencioso como uma caverna da alta

brousse, quase nunc a falava, a nao ser para dizer0

essencial. Seus labios finos defula mal Ihe descobriam os dentes brancos num meio sorriso que the iluminava

constantemente a face. Mas, cuidado! Se olhasse alguem fixamente, seus olhos de

leao macho podiam faze-lo mijar-se de terror! Se me perguntou sobre seu pai hoje,

e porque chegou 0momento de voce conhecer sua historia ..."

Sentei-me a seu lade e foi entao que ela me contou, pela primeira vez, do

comeco ao fim, a incrivel historia de Hampate, relatada como urn romance em nossa

familia, assim como em varias outras casas de Bandiagara. Eu ja havia escutado

trechos, mas desta vez foi narrada so para mim, como a urn adulto.Eclaro que nao

guardei tudo aquele dia, mas eua ouviria muitas vezes depois, 0 que me.permite

introduzir no relata de Niele algumas definicoes de datas, sobretudo historicas.

Niele COme<;oupor me contar as circunstancias nas quais eu havia perdido

em Sofara, emuma unica manha, "quarenta avos", e como Harnpate, urn menino

de uns doze anos, escapara milagrosamente. Ja orfao de pai e mae, nesse triste

dia ele perdeu todos os apoios naturais: os tios que faziam 0 papel de pais e todos

os primos.

Depois da execucao, os fulas notaveis de Fakala foram autorizados a entetrar

seus mortos. Ao proceder as identificacoes, constataram que 0 corpo do jovem

Hampate nao se encontrava entre as vitimas de Sofara.Por meio de discretas inves-

tigacoes pela regiao. souberam que 0menino se encontrava em Kunari, onde corria

o risco de ser descoberto qualquer dia, pois 05 exercitos e os governantes de Tidjani

estavam por todos os cantos.

Assim que a tormenta seacalmou urn pouco, eles se organizaram. Era pre-

ciso salvar de qualquer maneira 0 jovem Hampate. unico sobrevivente masculine

de uma familia dizimada, e encontrar urn meio de livra-lo da sorte que 0ameacava,

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AMKOULLEL, 0 MENINO FULA

A estirpe dos H am salah nao devia m orrer. 0 proprio. C heikou Amadon, veneravel

fundador do I mperio F ula de M acina, dissera urn dia: "O s H am salah do Fakalasao

'ouro hum ane'. S e fosse possivel, eu os sem earia com o plantas para te-los sem pre

entre nos".A eonselho de dois fulas qne haviam aderido a6 re i Tidjani em Bandiagara , os

notaveis decidiram esconder Hampatena p ropr ia c ap ita l onde.vivia 0 re i. "E le s era

procurado em todos o s 'lu ga re s" , p en sa ram , " 1 1 1 e 1 \ O S a sombradomonarcaque

condenou.toda su afam ilia". Q uem im aginaria que um a evelha serefugiaria na toea

do leao? H assane Bocoum ,um diaw ando? de Fakala, foientarregado de resgatar

H am p~te e leva-lo em segredoa Bandiagara, a casa de alguem de confianca. O ra,

durante sua estada longe da fam ilia, ldafi1pate eriata grande amizade com um

menino de sua id ad e, B alew el D ik o, descendente do fam osoC ueladio, antigo rei deK unari.Este m enino seafeicoara de tal m aneira a H am pate quese reeusou catego-

ricam ente a separar-se dele. B alew el pediu qutorizctQ ao ao pai para fazer parte

da expedicao que levaria H ampate. C om o nossasduas fam ilias eram ligadas, 0

pa i ace itou .

Em B anciiagara vivia entao urn velho acougceiro ch am ado A llam odio. P er" '

tencia a c la sse dos rimeibe (s in gu la r - dJ 'madjo), istoe, ,i cativos da casal/ IOou.servos

ligadosa fam ilia porh eranca, N a posicao de antigo dimadjo dos H am salah.ele era

to ta lmente d ed ic ado a .fam ilia . O ra , e ste v elh o a cougue iro re fu gia do em Bandia ga ra .havia caido nas boas gra~as do rei T idjani de tal form a, que este 0 alfo rriara e lh e

co nfiara a tarefa d e fornecer-came a to do s o s tu co lo re s. Men-avo P ate P ou llo, que se

tom ara adm inistradordos rebanhos de T idjani, tinha ordem de por todos as. d ias a

9,Diawando (plural- diawambe): etnia.que vivia.cornos fulas desde a mais remota antigii idade,

compartilhando inclusive seu idiorna,

10. Em suaorigem, 0,5 cativos eram aqueles cujas aldeias haviam side saqueadas ou qLletinham

caido prisioneirosde guer.ra. Podiam ser vendidos e submetidos a todo tiro de obrigaeoes.

Sells descendentes acabaram pot Iormar, noseio da sociedade africana dasavana, urna

classe espccial..n dosrJmidbe (singular - dJ/nadjiJ em fula: wolosso em bambara, "nascido

nacasa=l.Em geral, t ra ta -s e de femi li as de servos, l ibe rtos au nao. que.permanecem.l ige rlos

a umacasa "nobre" durante gera~6es, e cia qual compartilham a sorte e muitas vezesio

nome.Lrna pessoa tornava-se dimedja a partir da primcira OU segundageta<;aortascida na

casa, Os rimaibeeraminalienaveis eseuspatroes eram obrigados a . fornecer aeles, assim

como a toda a familia, alojamento, alimentacso e protccao. Ospatrties rices frequentemente

lhes confiavarn a gestao de seus bens e quase sernpre a educacae de seus filhos. Tarnbem

existiam aldeias de hjnaibeag.ri'cultores. Os cativos cornprados e socorridos por meu pai

(verpifg. 45)a5nda nao eram rimaibe porque pcdiam ser vendidos. Tornaram-se rimsibe em

suacasa.

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RAfzES

disposicao de A11amodio a quantidade de animais necessaria para cobrir a demanda

dos habitantes. Com efeito, durante todo 0 reinado de Tidjani, nenhum tucolor,

nenhum fula aliado, nem qualquer membro de sua corte precisou pagar pela pr6-

pria subsistencia. 0 Estado 111esornecia alimento, e grandes refeicoes diarias eram

oferecidas aos pobres.

As visceras dos animais ficavam para Allamodio, que tirava urn born lucro

da venda. mas nao utilizava 0 dinheiro a nao serpara socorrer os miseraveis.

Sua bondade era tao proverbial que lhe valera 0 nome de Allarnodio, palavra fula

que significa literalmente: "Deus e born". Jamais um.homem havia merecido tanto

seu nome! Sua casa se tornara 0 refugio de todos os infelizes, orfaos de guerra ou

vitimas do destine que, ao chegar a Bandiagara, n3,osabiam para onde ir ou como

viver. Uns trinta meninos e uns vinte adultos sem recurs os viviam em sua vasta

propriedade.

o rei Tidjani, que muito 0 estimava, declarara sua morada inviolavel, Al-

guns cortesaos enciumados foram dizer-lhe um dia: "Tidjani, seu acougueiro-

chefe abriga sem 0 menor controle qualquer urn que the peca hospitalidade".

Tidjani respondeu: "Se urn homem que e meu inimigo entra na casa de Allamodio,

ainda que nao se tome meu amigo, cessa de ser meu inimigo". Portanto, nin-

guem mais indicado do que A11amodio para acolher e esconder em sua casa 0

descendente dos Hamsalah de Fakala, familia a qual ele se mantivera visceralmente

ligado. Hassane Bocoum confiou-lhe Hampate "em nome de todo 0 Fakala", reco-

mendando-lhe expressamente jamais revelar sua verdadeira identidade, 0 que

seria a rnaneira mais certa de envia-lo ao cerniterio. Harnpate e seu pequeno

companheiro Balewel Diko receberam a mesma recomendacao de manter discricao

e prudencia.

Assim, os dois amigos instalaram-se na casa de A11amodio, que lhes ensinou

a profissao de ajudante de acougueiro. Para filhos de grandes farnilias, tal profissao,

urn tanto desprezada, nao era a rnais indicada, mas Hampate e Balewel souberam

superar esse preconceito. Em reconhecimento ao benfeitor que corria grande risco

abrigando-os sem declarar sua presenca.xledicaram-se por inteiro ao trabalho,

desejosos unicamente de ajudar 0 novo "pai", que ja nao era muito jovem.

Hampate -aD contrario de mim! - era capaz de ficar 0 dia inteiro sem falar.

"Born dia", "ate logo", "sim". "nao", "nao faca assim", "perdao", "obrigado" cons-

tituiarn 0essencial de seu vocabulario. Sua conduta seria e sua discricao, assirn como

a coragem e fidelidade de Balewel, sensibilizaram 0velho acougueiro. Logo passou

a depositar neles total confianca e a depender deles. Chamava-os com afeto de

"minhas maos e meus pes".

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AMKOULLEL, 0 MENINO FULA

Urn bela dial Allamodio fez de Hampate seu tesoureiro. Confiou-lhe as cha-

ves de sua loja de mantimentos B de seus cauris" e incumbiu-o de receber e efetuar

pagamentos na cidade.

Passaram-se os anos. Hampate e Balewel viviam em paz, no mais completo

anonimato, aparentemente esquecidos do poder real. Nada os fazia supor que urn

dia isto poderiamudar.

Durante esse tempo, Bandiagara nao cessara de se desenvolver. Tornara-se

a renomada e florescente capital do reino tucolor de Macina, dirigida com mao de

mestre por Tidjani (filho de) Amadou Seydou Tall (que para sirnplificar, chamare-

mas doravante Tidjani Tall), enquanto a parte oeste do antigo imperio tucolor de El

Hadj Omar ficara sob a autoridade do filho mais velho de El Hadj Omar, Ahrnadou

Cheikou, sultao de Segu e comandante dos crentes".

Com 0 passar dos anos. a colera e 0 ressentimento de Tidjani Tall contra os

responsaveis pela morte do tio El Hadj Omar foram se apaziguando. Alem disto,

pouco a pouco, numerosos fulas de Fakala tinham se aliado a ele. Urn fula chamado

Tierno Haymoutou Ba.,que fora amigo pessoal e chefe do exercito de El Hadj Omar,

desernpenhava agora as Juncoes de generalissimo dos exercitos e chefe do conselho

de notaveis. Ele controlava sobretudo os fulas.aliados que serviam sob suas ordens

nas tropas de Tidjani. Tierno Haymoutou Ba, grande protetor dos Iulas refugiados

de Macina e de Fakala, soube desempenharpapel moderador junto ao rei e, sem

sombra de diivida, sua presen~a em Bandiagara suscitou numerosas adesoes.

Cracas. talvez, a esta feliz influencia, gra~as tambem aos conselhos de nu-

merosos outros marabus" de sua corte, Tidjani Tall compreendera que 0 terror nao

e uma base solida para a autoridade e que a melhor meio de assegurar a paz

repousava no perdao e no respeito a vida dos outros, seus bens e seus costumes.

Como homem de grande inteligencia e prudente chefe de Estado que era,

decidiu empreender uma politica de reparacao e de reconciliacao entre os fulas de

Macina e os tucolores residentes em seu Estado. Para evitar que os conflitos degene-rassem e se perpetuassem no tempo, promoveu uma verdadeira fusao entre as

duas comunidades do reino par via de casamentos. Promulgou uma lei segundo a

qual toda mulher fula que tivesse perdido 0 marido na guerra deveria se casar de

11. Cauri: pequeno buzio utilizado no passado como moeda.

12 . Comandan te dos crentes: titulo protocolar dos c alifa s. (NT )

13.Marabu: entre os muculmanos, sabio que se consagra a pratica e ao ensino da vida reli-

giosa. (NT)

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RAIZES

novo com urn tucolor, ao passo que toda mulher tucolor que houvesse perdido 0

marido na guerra deveria se casar com Urnfula de Macina - salvo, e claro, nos ca 05

proibidos pelo Alcorso. Decretou, tambem, que nenhumprisioneiro de guerra no-

bre" de nascence, isto e, livre, poderia ser reduzido a cativo. Estas leis tiveram urnresultado tao feliz que 0 povo, sempre pronto a achar apelidos, batizou Tidjani de

Hela hemmba, que quer dizer "0 quebra-e-conserta".

Alguns meses apos a promulgacao desta lei, 0exereito de Tidjani, em uma de

suas expedicoes contra os focos de resistencia fula, tomou a cidade de Te:nengu, de

onde trouxe prisioneiros. Entre eles figurava uma grande dama: fula de Macina,

Anta N'Diobdi Sow, bisneta dos Hamsalah e pertencente a familia de Sammodi,

fundador da cidade de Diafarabe. Era uma tia materna de Hampate. Como seu

marido havia morrido em combate, de acordo com a nova lei, prometeram-lhe a

liberdade sob condicao de que aceitasse casar-se com urn tucolor.

Anta N'Diobdi nao era apenas de linhagem nobre, como extremamente bela

e depersonalidade forte. As propostas de casamento choveram. Contavam-se nu-

merosos pretendentes entre os chefes militares, chefes de provincia, gran des

marabus ou personagens .influentes da corte de Tidjani. A todos, Anta N'Diobdi

respondia com altivez: "Jamais me casa:rei com umhomem cujas maos tenham sido

enegrecidas e empesteadas pel a p61vora do fuzil e que, alem disto, seja urn poltrao.

S6 urn poltrao pode aceitar combater com urn fuzil. Esconder-seatras de uma arvo-

Ie e matar a distancia nao e guerrear! A bravura esta no combate com a lanca ou

com 0 sabre, olhos nos olhos, peito contra peito! S6 aceitarei como marido alguem

que nunca tenha se valida de urn fuzil. Alem disto, na iniciacao feminina fula sou

'rainha de leite', e leite e polvora nao combinam. A p61vora sujaria meu leite ..."

Ospretendentes recusados consideraram-seinsultados e reclamaram amar-

gamente a Tidjani. Este, com a curiosidade espicacada ao maximo, quis ver com os

pr6prios olhos essa mulher intratavel e ouvir com os pr6prios ouvidos as palavras

que ihe eram atribuidas. Ordenou que a trouxessem a sua presen\a.

"Pelo que pude compreender", ele lhe disse, "voce nao deseja se casar com

nenhum de meus bravos companheiros porque eles se teriarn sujado com a p61vora

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14.A palavra fula dfmo (horon em bambara) traduzida de forma aproximada como "nobre"

significa, na realidade, "homem livre". E nobre .aquele que nao e "cativo" (nota 10), nem

membro de uma casta de artesaos (ver pag. 110,nota 5). Todo fula, por exemplo, considera-

se nobre pelo simples fato de ser um fula. Com 0 tempo, as Juncoes de comando deram

origem a um tipo de aristocracia do poder, mas urn simples pastor fula, quest6es de poder

it parte, eonsiderava-se tao nobre quanta urn rei,

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AMKOULLEL, 0 ME NINO FULA

do fuzil. Voce nao sabe que enquanto todo mundo come 0milhete moido para se

alimentar, s6 os bravos aspiram pelas narinas 0p6 negro do fuzil para se cobrirern

de gI6ria?"

Anta N'Diobdi sorriu e abaixou pudicamente a cabeca.

"Estamos chegando a urn acordo, nao e minha irma?"

"Veneravel rei,jamais estivemos em campos tao opostos como sobre este pon-

to em particular. Nem e preciso dizer que pode me.impor seu ponto de vista e mes-

mo sua vontade, mas nunca me convencera de que urn homem que comb ate com

um fuzil e tao corajoso quanto aquele que ataca seu inimigo com 0 sabre ou a Ianca."

Isto foi uma grande temeridade de sua parte, pois todos os tucolores da corte

lutavam com fuzis. Porem, compreendendo perfeitamente a.alusao depreciativa da

mulher fula, Tidjani nao se ofendeu. Procurou encontrar uma desculpa no sofrimen-

to pela perda do marido e a humilhacao dos seus.

"Pois, ja que tern horror dos que respiram 0 p6 negro", disse-lhe sorrindo,

"tarnbern entre meus bravos tenho fulas 'orelhas verrnelhas'" como voce, nascidos

do leite e da manteiga, e que nunca quiseram lutar ao meu lado a nao ser com arm a

branca. Entre eles, ha urn que prezo muito: e urn grande s1iatigui da regiao do

Dienguel que outrora abandonou seu rebanho, seu poder e todos osbens para

seguirEl Hadj Omar com a {mica condicao de que este 0 ajudasse a realizar sua

uniao com Deus. Eu 0 considero como urn pai.Pertence ao claDiallo e se chama PatePoullo. Minha irma, aceite conhece-lo e ele lhe fara uma visita. Se ele lhe agradar,

£icarei muito feliz."

Como exigi a 0pudor fula, Anta N'Diobdi manteve os olhos baixos e voltou

para casa sem responder. Dias mais tarde, recebeu a visita de Pate Poullo. Era urn

homem de tez clara, alto, forte e bern feito de corpo, que jamais havia.lutadoa nao

ser com lanca e sabre. Ele lhe agradou, "Ao menos", pensou, "este nao vai sujar

meu leite com 0 p6 do fuzil!" 0 si lat igui fula nao poderia deixar de ser apreciado

pela rainha de leite. 0 casamento foi celebrado. Da uniao nasceriam seis criancas,

entre as quais minha mae, Kadidja,

Naquela epoca, gra<;as a protecao de Tierno Haymoutou Ba, muitos fulas do

Fakala haviam acabado por se instalar em Bandiagara. A maior parte deles

frequentava a casa de Anta N'Diobdi. Visto que antes morava em Tenengu, ela

15.0relhas verrnelhas: expressao que designa as fulas de raca pura, frequentemente aindaligados a vida pastoril tradicional,

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RAfzES

ignorava tudo a respeito do salvamento de Hampate, que acreditava morto junto

com os outros. Urn dia, uma griote" de Fakala refugiada em Bandiagara £oivisita-

laoDurante a conversa, a mulher disse: "Seu sobrinho Hampate esta em Bandiagara".

"Hampate? Nao e possivel, ele esta morto."

Nao. ele esta vivo. Se nao acredita, perguntea Mamadou 'Iane, 0 homern de

confianca de todos os refugiados de Fakala."

Sem demora, Anta N'Diobdi mandou chama-lo. "0 que me disseram e ver-

dade?" perguntou-lhe. "Sim, Harnpate esta bern vivo." E contou-lhe entao em que

eomdi<;:oes0 menino havia escapade ao massacre ecomo ele 0 tinha trazicio a

Bandiagara. "Recebemos ordem", acrescentou, "de esconde-lo na casa de Allamodio

e assegurar-nos de que viva no mais completo anonimato. E ate agora, e 0 que

tsmos feito."

Perturbada com a noticia, Anta N'Diobdi mandou imediatamente busear 0

sobrinho. Ao ve-lo atravessar a soleira da porta da casa, chorou de alegria. Quis

saber tudo sobre sua vida. Harnpate contou-Ihe sua hist6ria.

Anta N'Diobdi deu gra<;:asa Deus por ter permitido que pelo menos urn

membro varao de sua familia fosse poupado. Depois, como era de esperar, pediu ao

sobrinho que fosse morar em sua casa, Para Sua surpresa, 0 jovem recusou-se.

"Mae", disse, "perdoe-me, mas devo ficar com Allamodio. Este velho acougueiro

tornou-se meu pai e meu lugar e a seu lado. Nao posso abandona-lo." Muito contra

a vontade, Anta N'Diobdi teve de deixa-lo partir.

A imensa alegria que experimentara desmoronou de urn s6 golpe, por urn

motive que nao podia suportar e que pouco a pouco a foi consumindo: que seu

sohrinho, tinico membro sobrevivente da familia Hamsalah, vivesse rebaixado ao

myel de urn miseravel acougueiro e, ainda par cima, no anonimato. Chegada a

noite, nao disse palavra, sabre 0 acontecido, ao marido; mas a partir desse dia, a

tristeza apoderou-se dela com tal forca que nao conseguia mais comer nem beber.

Na'O ria mais, passava as noites chorando e gemendo, entoando lamentos sobre atriste sina de sua familia.

Pate Poullo logo notou essa mudanca e inquietou-se. Acreditou, primeiro,

em uma crise passageira, mas vendo as semanas correrern decidiu romper 0 silen-

cio. "Anta", disse-lhe, "ha algum tempo voce esta mudada. Nao e rna is a mesma.

Parece arrependida de nossa uniao. No entanto, pertenco a uma linhagem tao pura

quanto a sua. 0 rei me honra com sua amizade e confianca, Nao sou qualquer urn

16 . Coo te : feminine degn'ot Ver pag, 13, nota 1 e pag. 110, nota 5.

39

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AMKOULLEL, 0 MENINO FULA

em Bandiagara. No plano m aterial, sou bem rico; voce tem m il cabecas de gada a

seu dispor e admin istro vinte m il cabecas.do reb anho real. B em , tod a m in ha fortu na

esta a sua disposicao Faca com ela 0 que quise r. S eja fe liz , fa ca -me fe liz e poupe -me

de ter de ouvir m eus rivais escarnecerem m aldosam ente: 'N6s bem sabiam os queA nta N 'D iobdi nao.seria feliz com Pate Poullo!' E se por desgraca rninha ternura e

fortuna nao forem capazes de faze-l a feliz, e achar necessario retom ar a qualquer

pre~o a mao que com tanta generosidade me entregou, diga-o. Pode ser que eu

consiga sob reviver a estainfelicidade e vergonha. M esm o se m eu coracao estiver

d esesperad o, sera com um sorriso no s labio s q ue direi: 'Peca-rne 0 d iv 6rcio se q ui-

ser', e se voce 0 pedir, aceitarei d eixa-la p artir; m as jarnais, jam ais. m inh a b oca se

ab rira de von tade pro pria para dizer: 'E u a d ivorcio'". Po rtanto, saiba qu e se urn dia

voce tiver de partir, esse dia m arcara para m im a entrada num a escuridao alem -tum ulo e sera 0 inicio de um a noite sem fim ."

Sem receber resposta, Pate Poullo levantou-se, pegoua lanca e saiu da casa

com o urn sonam bulo. Anta N 'D iobdi quedou-se im 6vel, arrasada. Q uando Pate

Poullo voltou, tarde da noite, encontrou a m ulher curvada no m esm o lugar onde a

deixara ao sair. A proxim ou-se dela. C om suavidade tom ou-lhe a cabeca entre as

m aos e a apoiou contra opeito. A jovem tinha os olhos tao verm elhos quanta a flor

da paineira. Seu rosto estava inchado de tanto chorar. Perturb ado, rate Poullo Ihe

disse: "A nta, m esm o que 11aOfosse seu m arido, com o hi dfmo, fula nobre e bem -

nas cido . tenho d ire ito a sua co nfian ca e devo aju da-la a supo rtar seu sofrim en to. E u

lhe sup lico, f ale comigo !"

Anta N 'D iobdi, que havia desfeito seu penteado de fula, afinallevantou a

cabeca, Afastou as mechas que lhe escondiam a face, e com a voz enfraquecida,

abriu 0coracao:

"Sim , e verdade", disse, "estou sendo esm agada pelo peso de um sofrim en-

to, m as nao tern nada a ver com voce. Principalm ente, nao pense que eu seja infeliz

a seu lad o, muito ao co ntrario l 0 n 08 50 , fo i u rn e nco ntro fe liz. Ma s 0 qu e m e con som e

ha urn m es, 0 q ue torna m in has no ites inso nes, m e us dias insuportaveis. os alim en-

tos sem sab or e a beb ida insipida, e u rn fa to q ue c on ce rn e a h onra de m inha fam ilia,

u rn fato tao delicad o q uanta g rave."

"Q ual e. entao , esse fato, A nta?"

"V oce sabe que m inha fam ilia de Fakala faz parte das fam ilias de M acina

c ujo s rep re sen tan te s m ascu lin os, tan to a du lto s como cria ncas, fo ram cond en ad os a

4.0

1 7. " E u a d iv orc io ": tra du cao lite ral d a ex pre ssao african a q ue p asso u tal q ual p ara 0 "frances

africanc".

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RAIZES

.m orte pelo rei Tidjani Tall e que quarenta dos m eus foram executados em um so dill

e m Sofara."

"C laro , sim , em seil", ex clarn ou .P ate P ou llo . "I nfelizm en te. as leis d a g ue rra

aparentam-se mais iii reflexes de bestas ferozes do q.ue aocomportamento de ho-mens normals."

"Pois bern.entre os corpos dos homens de minha familia, constatou-se que

faltav am d ais m en in os, Ora, acabo de descobrir aqui rnesm o em nossavizinhanca,

aqui em Bandia ga ra , urn dos meninossobreviverrtes. E meu p ro prio so brin ho

H am pate,fiIho de minha Ialecida irm a. E le vive escondido na casa de Al lamodio , 0

a<;:a1\gueiro-chefedo reiem total anonimato. Ninguem sabe quem ele e, 0 que me

desespera e verum descendentedos Hamsalah, urna esperance de meu povo e de

R1mha familia, viversernnome, na promiscuidade aviltante de urn acougue, 'HaqU.a·seurn mes luto para m e conformer com esta ideia , mas nao consigo . Hesi te i em

falarporque nao queria que urn m al-entendido ou urn conflito se instalasse entre 0

f~iTidjani '8 voce, mas como quer saber a razao de meu sofrimento, direi tudo. A

v~tClade e que nao posso mais suportar esta sitvac;i\o. Assim, eis 0 qlJe decidi: inde-

pendente de qual possa sero resultado, pe<;:oque leve rneu sobrinho Hampateao re i

J'icijanielhe revele suaverdadeira identidade para que todo rnundo saiba quem ele

e . V oce togara ao rei, de sua parte ou cia m inha, com o preferit, que poupe a vida de

meu sohrinho. S e de recusar, pedira que execute Rampate de imediato para quesua alma va juntar-se sem demora a de seus pais que 0 precederarn no outro

m undo, onde ele talvez nao esteja em pior situacao do que aqui."

P ate. Poullo olho u a m ulher fixam errte.sua face pareceu congelar-se, brota-

ram -lh e g ro ssas g otas d e su or "V o cesab e a o q ue ex po e seu so brin ho ?" p erg un to u-lh e.

"S im , eu sei, D eliberadam ente escolhi para ele a m otte antes que 0 anonima-

tO I que e eutra forma de morrerPrefiro ve-lo .morto e enterrado sob sell nome

v erd ad eiro a v e-lo v iv er sem id en tid ad e ..C ostaria tarnbem de qu e dissesse a T idjan i

Q ;seguinte: se mandar executar meu sobrmho, eu compreenderei seu ato e nemm:~&rno0 condenarei, E a lei da guerra. Eu rnesma, s.e com uma virada cia sorte

Vie .s se a vence- lo , naohesitariaem manda r c orta r-lh e 0 pescoc;o. Mas,pec;o-lhe 0

favor de poupar aos despejos de m eu sobrinho a 'exposiC ;ao humilhante'" des con-

derndos para que eu possa ente rra -lo c om hon ra ."

l~LA "exposicao humilhante" ,instit\lida em Bandiagarapara es prisioneiros de guerra execu-

f adu s, con si st ia e rnen tr egar 0 cadaver ascriancasque the atavam os pese as mans e 0

arrastavam ate uma fossa comum.

41

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AMKOULLEL, 0 MENINO FULA

Pate ·Pou llo f ez de tudo para dobrar a determ inacso da mulh er e con ven es-

la .~ .renuneiar a uma em preitada tao perigosa, m as de nada adiantou. Convocou

entao H am patea sua casa, colocou-o a par da decisao de sua tia e perguntou-Ihe 0

que p en sa va.Harnpate, que tinha entao dezessete ou dezoitoanos, resp on deu : "S en do

Anta N 'D iobdi minha mae e unica parente que me testa, tem sabre mim todos as

direitos.inclusive-o de vida e de m orte..e estafora de quesrao recusar 0 destine que

escolheu para m im , D evo-lhe .respeitc e obediencia, Aqui ern Bandiagara, e ela

quem vela pela honra de m inha fam ilia. Se acha que d(ivom orrer pata salvar esta

honta, bem , que eu morral"

"Pelas contas de rezar do xeique ElH adj Om ar!" exclam ou Pate Poullo. "Se

Tidjanisoubesse que especie d e irtim igo s tern d e ertfren tar, ficaria ainda mil vezes

rna is a le rt a!"

"N ao.som os inim igos pessoais de. T idjani T all", interveio A nta N 'D iobdi,

"m as defendem os nOS5 0povo e nossa honra. E possiv el v en eer 0 in im ig o fisicamsn -

te e reduzi -lo a e sc ravid ao , ma s [a rnais scpodera dom esticar sua alm a e seu espirito

a ponto de im pedi-lo depensar."

D iante de tal determinacao, Pate P oullo nao tinhaoutra escolha a nao sst

c ondu zir Hampate aorei e implo rar su a clemen tia. P araisto , escolheu uma sexta-

feira, dia santo d o I sla, q uand o T id jan i oo sturn ava disp en sar muito s fav orese co nce-

der gra<;as, Na sexta-feira seguinte, depois de assistir a g ran de o ta\aa coletiva

na mesquita, Pate Poulloe Hampate, acornpanhados p o r Balewel, que havia decidi-

docompartilhar em tudo a sorte d e Hampate, d irig iram -s,e ae palacio. Fate Pou llo

figurava entree) numero muito .restrito de notaveis que podiam entrar no palacio

real a qualquer hora do dia ouda noite. Bastava-lhe dar aos guardas ,a senha do

mom enta. C racasa este "abre-te sesam e", os tres com panheiros atravessaram sern

problem as tres vestibules bem vigiados e foram esperar ao pe da escada que dava

acesso aos apartarnentos privativos do rei, no prim eiro andar ..

U rn pouco m ais tarde, T idjani.voltou da rnesquita onde se havia dernorado.A ssim que viu Pate Poullo.seu rosto abriu-senum grande sorriso: "Ah.ai e sta rn eu

pai.P atel Q ue esta ssxta-feira seja urn dia de felicidadepara todos nos!"

"Q ue D eus 0 ouca, Tidjani, filhode A rnadou, filho de Seydou TaU !" respon-

deu P ate P oullo. T idjani lancou urn olhar rapido e inquiridor em dire< ;2ioa R amp ate

e Ba lewel. "0 que 0 traz atem inha casa, pal Pate?", perguntou. "Aposto que veio

m e apresentarestes belos [ovens." E seguiu em dire¢ao a escada.

"Sim , venhoapresenta-los e suplicar pel a causa de um deles, a que se cham a

Hampate, Seu com panheiro cham a-sa B alew el D ikoe decidiu com partilhar a sorte

de Ham pate, nao im porta 0 que possa acontecer a ele."

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~~============~--====================---------------------------------------- .

RAIZES

T id ja ni c omeco u a su bir a s e sc ad as, le va nd o P§tteP ou llo p ela mao . < 1 0 q ue fez

de errado este jovem ?", perguntou. "Eu lhe direi quando estiverm os no salao de

au dienc ia s", re spo nde u P ate P oullo . E fe z sina l aos dois jov ens p ara espe ra -lo.

Q uando chegaram ao salao, T idjani ausentou-se ummom ento para trocar deroupa. V oltou em seguida, vestindo urn sim ples tourt i (bata que chegaa altura do

joelho, usadapor baixo do bubu 1 9 ) e ca lcas bu fantes e in st alou -se con fo rt ave lmen te .

Ser recebido com essa indumentaria era uma grande prova de intim idade e de

confianca em relacao a P ate P oullo. "B ero",disse ele, "que crim e, entao.com eteu

seu pro teg ido?"

"T rata-se de urn c rim e com 0 qual ele nao tern nada aver. Seu crim e e 0 de ter

nascido na fam ilia dos B a e dos H am salah de Fakala. N esta condicao, ele e atingidopela condenacao a m orte decretada contra todos os m em bros de sua fam ilia. E le

tornou-se rneu sobrinho por alianca, porque m e casei com sua tia A nta N 'D iobdi."

"A h!, e 0 sobrinho daquela mulher fula de quem tanto adm irei a beleza e

a eoragem!"

"S im , e ela m e obrigou a vir apresenta-lo, sejam quais forem as consequen-

eia s." E P ate P oullo transm itiu fielm ente ao rei a pro posta d a mulh er. "A ssim , Fama

(rei), venho pedir que poupe a vida de H arnpate, que doravante e m eu filho, assirn

como meu p rimogenito ."

T idjani m anteve-se calado urn bom tem po, e em seguida disse: "Pai P ate'. E

a segunda vez que enfrento A nta N 'D iobdi, estaalm a rnasculina alojada num corpo

fem inino. V oce lhe dira que eu m esm o a adoto com o tia, prim eiro por ser sua esposa

e tambem porque amo aqueles que tern 0 sentido e 0 culto da honra. Quante a

H am pate, eu 0 considero com o um a tentacao que D eus colocou em m eu cam inho

para vet ate onde poderia chegar rninha vinganca. S8 as centenas de inim igos

executados em Sofara, Fatom a e K onna nao vingaram a m orte de m eu pai El H ad]

Omar; nao sera com certeza a m orte de m ais este jovem que a vingaral M eu caro pai

P ate ,fiqu e tra nqu ilo. A ceito seu pe dido e c onc edo pub licamente a H ampate 0 indul-

to de sua pena de morte.M as", acrescentou sorrindo, "tenho de Ihe revelar umacoisa: dez dias depois da chegada de H am pate a B andiagara eu ja fui inform ado de

su a prese n~ a. E u seria urn ch efe bern m ed io cre se ig norasse 0 que se passa em meu

eino, sobretudo em rninha cidade. N ao quis inquietar H am pate, dizendo a m im

m esm o que 0 prop rio D eus 0 con fia va a rn im . P are cia in se ns ato .ria v erd ad e, e sc on -

der urn condenado no proprio rega~o daquele que havia pronunciado a sentence.

19 .Bubu : g rand e tu nic a, v es timenta tip ic a dos mucu lrnano s a fr ic anos .(NT)

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A M KO U L L E L, 0 MEN IN 0 FULA

Agora que Hampate, que era meu h6spede involuntario, se tornou meu prime ~ i a

que e . seu sobrinho - vou.lhe.Iazer um a doacao. Dou-lhe 0 necessario para dotar e

desposar um a m ulher, urna propriedade debom tam anho, um cavalo ajaezado, um

fuiil, sete lancas, uma alabarda. um sabre, uma pe~a de tecido azul da Cuine desessenta covados. um a pet;a de cretone bianco, urn. turbante ham ;:a ace tinado , um

par de betas bordadas, dois pares debabuchas de Djenne e dez vacas leiteiras,

G ostaria tambem de que se alistasse nas tropas fulas de rneu exercitocomandadas

pG r Tierno H aym outou B a. A ssim , ele nan m ais sera um acougueiro anonim o."

Pate Poullo estava feliz como urn fula cuja vaca tivesse acabado de parir

um bezerro! COmo nao podia pendurar-senopeseoco do rei.Indinou-seem profun-

do agradecimento, 0 rei 0 fez erguer-se:"Por favor, pai Pate, tal gesto nao cabe

entre n 6s!"Hampate e B alew el, q uehaviam p erman ec id o ao p e daescada, foram eonvi-

dados a subir. Pate Poullo inform ou Hampate s ob re a g ra~a con cedid a pelo re i e os

ric o s presentescom os quais ele 0 cob ria . Em segu id a, c orn un ic ou -lh e.o d es ejo d o re i

de que se alistasse em seu exeI cito sob as ordens de T ierno H aymoutou B ~.H am pate

fic ou um in sta nte ems ile rrc io , os o lhosba ixos : em seguid a, disse: "A grade~o a D eus

e ao re i T idjani Am ad ou Seydon.Tall par ter-m s poupado a vida. Estou m uito honra-

do pelo gesto generos.o do rei e lhe agrade~o do fundo do coracao. Mas, no que

cnncem e a m eu alistam ento, que ele m e perm ita dizer: existem tres eoisas que m e

recuse a fazer: primeiro, tomar em armas contra meu povo, quer dizer, contra os

fulas de M acina: segundo, tomar em armas contra 0 rei Tidjani, que ao inves de

m andar rnedegolar.ebre.seus braces magnanim os e m e cobre de presentes, tercel-

ro, abandoner 0 velho Allamodio que foi para mim um verdadeiro pai. Prometi a

m im mesmo ficar a seu lado a,te m inha motte ou a dele".

Com estas palavras. Instalou-se na sala urn pes ado silentio qu e parece u

durarseculos, B a t e Poullo temia 0 p io r. Ma s orei Tidjani.Ionge-dese zan gar, excla-

mou: ((VVallaye! Por Deus! 0san gu e nob re.falo ul [o vem leal, voce.merece 0 respeito

e a a dm iracao de todos, inclusive do rei". E estendendo a m ao em dire~ao a H am pate

e B alew el, disse-lhes: "V aoe vivam em B andiagata, com o m uculm anos livres, des-

frutando d e todos o s dire itos devido s aOS cidad aos tuc elores d e no ssa c ida del"

o rei nao deixou B alew el de m aos vazias. Presenteou-o com um cavalo, um

fu zil, um a alabarda, sete lanca se t I e s t ra jes valiosos.

A compan hado pe los d ois jove ns, Pate P oullo tomo uo c arn inh o de casa ..F eliz

e orgulhoso com o um conquistador retornando de um a batalha, contou.a m ulher a

boa nova, A alegria de A nta N 'D iobdi nao tinha lim ites. M as, quando 0marido lhe

repetiu as p ala vra s de Hampate declarando ao rei as tres coisas que jam ais faria,

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RAIZES

quase perdeu 0 f61ego! A ideia de que 0 sobrinho continuaria a ser um ajudam e de

acougueiro na casa de A llamodio a sufocou. D emorou para se recuperar, ate que

refletiu, e d is se : "Esta certo, e rna is vergonhoso ser ingrato do que ser acougueiro".

V irou-se para H am pate:"V a", disse-lhe, "volte para a casa de A llam odio, sirva-o,eu aceito. M inha alm a chorara todos os dias de despeito, m as m inha razao secara as

lagrim as que 0 orgulho de fam ilia me fara derramar. Quando e a honra que nos

obriga a aceitar urn sacrificio, este se torna sublim e. V oce escolhe viver na obscuri-

dade opaca, quando urn sol grande e radioso se oferece para espalhar sua luz sobre

v oc e. Que 0Senhor possa levarem conta sua conduta e I aca com que de voce surjam

filh os q ue e le vem 0 se u n ome!"

Aqui terin in e a histo ris d e N iel« 0 que se segue Iium e reco nstituici io a

pa rtir d os releto s tra n sm itid os pe/a fa m fl ia / pelo s sto res pro ta go nistss Oll testemu-

n ha s d esta histone. em p articu la r B a /ew el Diko.

Sem pre seguido de seu fiel companheiro, Hampate continuou a viver junto

ao velho acougueiro Allamod io .. Pou co depois de sua reabilitacao, fundou em

Bandiagara a primeira associacao (waaide , em fula) de jovens fulas originarios

de M acina e, em seguida, gra< ;as a o encorajam ento do rei que gostara desta inicia-

tiv a, s ua wsslde ab riu -se a men in os d e div ersa s o rige ns. E ssa a sso cia ca o. p orsin al,

muito rnais tarde desem penharia importante papel na politica de Bandiagara,

ja que favorecia as boas relacees recom endadas pelo rei entre os tucolores e os fulas

d e Macin a,

P assaram -se os anos. A llam odio, que envelhecera, apoiava-se cada vez m ais

nos dois jovens para gerit seus neg6cios. H ampate nao se ocupava s6 da contabilida-

de; tarnbem comprava na regiao, para A llamodio e para si.m esmo, animais cuja

carne era vendida em proveito rm ituo.

A ssim que os fulas de Fakala, em sua m aioria criadores de gado, souberam

que 0 herdeiro dos Ham salah estava fora de perigo, comecaram a enviar-lhe ani-

m ais para 0 abate com 0intuito de ajuda-lo. C orn 0 decorrer dos anos, H am pate

tornou-se urn intermediario de confianca entre os criadores de varias regi6es do

A reo do N iger e os com erciantes de gado de B andiagara. D e suas diversas atividades,

obtinha um a boa renda que utilizava em grande parte para cornprar.infelizes cati-

vos, principalm ente criancas, com a intencao de alforria-los ou m elhorar-lhes a sor-

te.A gia assim tanto por bondadenatural com o por dever religiose, em obediencia it

injuncao e ao exem plo do proprio profeta M uhammad,

D urante sua vida comprou quinze cativos. Alforriou seis: os outros nove

sem pre se recusaram a deixa-lo. Tratava-os m ais com o filhos adotivos do que como

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46

AMKOULLEL, 0 MENINO FULA

servicais. Entre eles, havia dais que salvara de amos crueis, e queamava especial-

mente: Beydari e Niele Dernbele. Esta ultima, uma crianca mianka da regiao de San

(Mali), tornou-se mais tarde, para meu irrnao mais velho Hammadoun e para mim,

a.mais atenciosa e carinhosa serva-mae. Quante a Beydari, homem deconfianca de

meupai, foi designado por ele em seu leito de morte como unico herdeiro e chefe

de toda a familia!

Beydari havia sido capturado com a idade de onze ou doze anos na tomada

de Busse (localidade da circunscricao de Tugan, na atual Burkina-Faso). Nessa epo-

ca, a escravidao ainda nao tinha sido abolida nas colonias francesas eo menino foi

presenteacio a um suboficial nativo do exercito frances, que 0 levou para Bandiagara

e 0 vendeu a urn griot dos Tall, chamado Amfarba. Este 0 destinou ao service

domestico de suas mulheres.

o minimo que se pode dizer e que a pobre rnenino nao caiu num ambiente

. caridoso. Trabalhavasem descanso, do chamado a oracao matinal ate tarde da noite,

as vezes ate a meia-noite, realizando atividades acima de suas forcas. Alimentava-

se das sobras dos pratos e daquilo que conseguia raspar do fundo das panelas. Ap6s

deis.anos dessa vida de fame e fadiga, andando quase nu e dormindono chao (e,na

estacao seca, as noites sao extrema.mente frias nessa regiao), 0 infeliz era s6 pele e

osso. Caminhando em agua estagnada, havia contraido 0 "verme da Cuine", urn

parasite cujas larvas se acumulam na parte inferior das pernas, onde ficam a espera

de urn novo contato com a agua para escapar do corpo do hospedeiro. Seus pes e

tornozelos haviam inchado desmesuradamente. Apesar de seu estado, certa manha

uma das mulheres de Amfarba 0 rnandou fazer compras no rnercado a um

quil6metro de distancia, Sob urn sol escaldante, com as pernaS inchadas e doloridas,

o menino nao conseguia dar vinte passos sem procurar um raro canto de sombra

onde tefrescar os pes nus, queimados pela terrafervente. Como tardasse em voltar,

a mulher de Amfarba.reclamou com 0 marido. Acusou 0 rnenino de nao passar de

urn preguicoso, urn desobediente, que com certeza se divertia parando pelo cami-

nho. Amfarbafoi tornado pela c6lera. Pegando seu chicote de pele de hipop6tamo,

saiu a ptocura do menino, que encontroulogo adiante. Equilibrando a cesta cheia na

cabeca, Beydari avancava com dificuldade, 0 corp a brilhando de SUOT, gemendo a

cada passo.

"Seu vagabundo, preguicoso, desobediente!" vociferou Amfarba. "Vamos,

tome isto !" E se p6sachicotear 0 pobre rnenino, que, no esforco para correr, fez as

bolhas de suas pernas estourarem antes do tempo. Apesar do sangue que salpicava

as pes da crianca, Amfarba continuou a chicotea-lo.

F.

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5/11/2018 Amkoullel o Menino Fula Parte 2 - slidepdf.com

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RAIZES

Foi entao que H am pate, que voltava da mesqu ita , a pa re ceu p rovidencia l-

znente num a curva do cam inho. 0 m enino precipitou-se sobre ele: "0 p ap ai", g ri-

I "salve-m e, salve-m e! E le vai m e rnatarl Ele vai me matar". E jogou-se nos

::raf;OS de Hampate justa no momenta em que Amfarba ia desferir urn golpe que

rom certeza acabaria com ele.

H am pate agarrou a m ao de Amfarba no.ar. "Q ue brutalidade!" exclarnou,

in tlig nadG . "Vo ce n ao tern co racao ? Vo ce trataria seu filh o o u p aren te d esta rn an ei-

G_ Este m enino sofre com o voce. E urn ser humane, tern urn pai e uma mae em

alznm lugar deste m undo."

Amfarba respondeu com raiva: "P ois bern, se tern tanta pena dele, com pre-

cl"Hatnpa te tomou -o a o p e-d a-I etra : "Certol Diga 0 preco".

"C ern m il cauris", resp ondeu Am farba. H arnpate tiro u 0 a ne l d e c orn alin a

:':0 dede e 0 entregou a Amfarba: "L eve este anel a O usm ane D jennonke e peca-lhe

. :em m il cauris de m inha parte. E le tratara de m e devolver 0 ariel". Depois re co lheu

cesta con tendo os produto s com prado s pela crianca e a estendeu a Am farba: "L eve

W opara sua rnulher voce rnesm o", disse. "Este m enino nao e m ais seu cativo!"

H am pate levou 0 m enino para sua casa. A ssim que chegaram , batizou-o

B ey dad , n ome q ue sig nifica "acrescimo" o u "b en eficio ". com 0 s en tido de "bencao".

"JepQis~ trato u d ele. Q uan do saro u, v estiu -o com boas ro up as. 8 ey dari esp erav a q ue

c m andassem fazer alguns trabalhos, mas, para seu grande espanto, m en pai lhe

~ simplesmente: "V a brincar, va juntar-se aos meninos de sua idade". Na ver-

c : de, nem sem preB eydari obedecia a risca esta recom endacao, porque am ava

2..:ima de tudo ficar ao lado de m eu pai. Seguiaco por toda parte e s6 ia brincar com

- eompanheiros depois que meu pai term inasse seu trabalho. Nessa epoca. fez

zrazade com urn m enino da fam ilia real, 0 jo vem p rin cip e Ko re ic hi T aU , e a de riu a

.= :.aassocia~ao de jovens. Para citar urn exernplo do com portam ento de m eu pai,

~ ~ de com prar roup as novas aBeydari, com o e costume as vesperas das grandes~nraSmucu lm an as, in fo rm av a-se so bre q ual seria 0 traje d o jo vem p rin cip e. E ntao ,

rava urn igual para B eydari.

o velho Allam odio, venda que H ampate tratava Beydari com o urn filho,

~din considera-lo com o neto. E foi assim que B eydari aprendeu a profissao de

e _ gueieo que exerceu durante toda a vida".

:-_0prop-Do Beydari quem me relatou estes epis6dios. Mais tarde ele seria mais conhecido

?Of ?eU novo nome, Zeydi.

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AMKOULLEL, Q MENINO FULA

Entrem entes, O .rei T id jan i T all h avia falecido . S eu p od er manteve-se sobre

toda M acina de 1864 ate sua m orte em .1888. Como sab ern os, n oin ic io d e seu rein ad o

p romovera ex ecu co es em rn assa . D eslo cara ald eias e p op ula ~i5 es: p ara in stalar uma

adrn inistracao local, alern de gu errear por m uito tem po co ntra fo cos d e resistencia.

M as, com o correr do tem po, as coisas se aealm aram urn pouco e, afinal, este hom em

que fora chamado de "0 qu ebra-e-con serta" talvez tenh a sido um d os ch efesm ais

valorosos que reinararn na regiao do A rea do N iger. A ssim com o fora implacevel na

conquista. gra~ as a sua penetrants eom preerrsao da politica local, dem onstrou ser

u rn che fe p rudente n a adm in is tra ca o de se u.re in o ..A inda .c orre um .d ita do em Macin a:

"Q uan do T idjani chegou, 0 povo ex clamou , Woro ro y e n bOJ 1~Ii dja n i Willi.' (Oh!

Estamos perdidos, T id ja ni c hegou). Ma s, em seu funeral, este mesrno povochorou

dizendo, Wo ro ro y en boni, T id ja n i m eyi! (E stam os perd id o s. IJ dja n i m orreu l)",

Hampate ja nao era mais urn jovenzinho quando se casou e rn p rimeira s

nupcias com uma de suas primas, Baya. Essa uniao permanec:eu esteril. Criou-se

uma.situacao desagradavel, pais tod o 0 Pakala e 0 P em aye esperav am p elo s filho s

de Hampate, para reviver a estirpe dos Hamsalah. Osnotaveis fulas de Fakala

refugiados em B andiagara com ecaram a consul tar m arabus, adivinhos e videntes

de todas os tipos, para saber sesuas e sperancas s eriam a tend idas . Oson ic .u lo sfo ram

unanim esB aya nao teria filhos de Ham pate, pois seus respectivos flgenios" pro-

criadores eram incompativeis. E stas in felizes p rev rso es influ en ciaram a humo r de

B ay a. T om ou-se am arg a; era qu ase impossivel conv iver cornela . Nao podia.super-

tar nrnguem a seu lado: m al tolerava a propria som bra. Ate qu e fo i lo ng e d em ais,

Um dia em que H am pate estava.ausente, B alew el D iko, 0 amigo de.s empre ,

fo i a cas a de B aya acsm panhado por alguns com panheiros desua asscciacao, Ele

pediu 0 jantar. B aya nao podia recusar, porqueera costum e dos membro s d a.a sso -

ciacao jantar todanoite nacasa de um e outre sucessivam ente. A s esposas jaesta~

Y am habituadase, de qualquer maneira, Has g ran des fam flias africanas s~mpre

h av ia co rn id a su fieie ntep ara a co lh er convidados de ultim ahora ouestrangeiros de

paS Sagem . A ssim , B aya fez serv ir um a.refeicao, m as sern parar de p rag uejar: fIAh!

como e desagradavel ser esposa de urn vagabundo que se esquece de voltar para

cas a nahora das refei90es! Eu rrao sou nem escrava nem rnulher de baixa extracao

para que urn rnarido .insolente m e trate dessa m aneira. D e verdade, estou cheia

deste H am pate!" E seja intencionalm ente, seja por reflexo involuntario, proferiu

uma grosseria a respeito da falecida mae de Haillpate. Em uma epoca em que um

insulto a mae era a mais grave das of e n s as, reso lvid a m uitas vezesa go lpes de lan ca

ou de faca, foi u m grande desaforo de sua parte, ainda m ais chocante por ser profe-

ridona presenca de am igos do maridr; Na v erd ade, era um a afro nta im perd oavel.

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RAfzES

Balewel, para quem Hampate e ele pr6prio eram uma coisa s6, e que S€

iderava como seu a lter ego , indignou-se: "Como, Baya! Voce ousa insultar a

_-", de Hampate em minha presence? Teria preferido ouvir de sua boca uma

contra minha propriamae do que contraa.rnae de Hampate. Pare com isso!""E se eu nao parar", retorquiu Baya, "0 ceu tombara sobre a terra? As

tanhas vomitarao 0 conteudo de seu estomago de fogo?"

"Nao acontecera nada disto", respondeu Balewel, "e sim a morte de seu

samento conosco."

"Com voces, quem?" Disse Baya, zombeteira.

"Conosco, Hampate e Balewel." Zombando, Baya repetiu a ofen sa. No auge

-;>mdigna<;ao, Balewel disse-lhe: "Parta desta casa, eu a divorcio, eu a divorcio!" A

::s"tl5 palavras, todos os amigos de Hampate levantaram-se como um s6 homem ....;cixaram a casa sem terminar a refeicao, gesto muito grave na Africa, onde nao

accitar acomida de uma mulher e sinal de rejeicao e ruptura. Isto significava clara-

J te : "Todos os amigos de Hampate se divorciaram de voce".

Baya foi tornada por uma fiiria terrivel. Correu para seu quarto, recolheu e

emarulhou depress a todas as suas roup as e utensilios domestic os e mandou coloca-

sob 0alpendre que protegia a entrada da casa. Ela mesma estendeu urna esteira

c cmnodou-se, esperando 0 retorno do marido. Quando Hampate, que ignorava

-: completo 0 incidente, voltou para casa, encontrou a mulher sob 0 alpendre,

5e'ffiada com as costas eretas ao Iado da bagagem, parecendo esperar nao se sabia a

~2. Hampate, como vimos, nao era extrovertido nem Ioquaz. Sem sair de sua

qililidade habitual (seus amigos diziam que ele era calmo e limpido como 06leo

~eamendoim), comecou por saudar a mulher; depois the perguntou: "Por que estes

rulhos? 0 que est a acontecendo?"

"0 que acontece e que aquele deusinho, seu amigo Baiewel Diko, se divor-

de mim em seu nome e por sua conta. Assim, aprontei minha bagagem e

que voce confirme essa decisao."

"Se aquele deusinho, meu amigo Balewel Diko, se divorciou de voce em meu

", replicou com calma Hampate, "voce esta mesrno divordada". E sem mais

alavra. entrou na casa.

Aterrorizada Baya desmanchou-se em lagrimas. Pediu que transportassem

" _ _ !!a gem para a casa de seus pais, 0 que foi feito na mesma noite pelos emprega-

- _ ~Hampate. No dia seguinte, quando a novidade se espalhou pela aldeia, todos

= _ am razao a Baiewel e Hampate, Eis algo que, sem duvida, e muito dificil de ser

_ ::upreendido por uma mentalidade moderna. Como admitir que alguem possa

~a iniciativa de "divorciar" a mulher do amigo e que, alem do mais, este aceite

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AMKOULLEL, 0 ME NINO FULA

o fato sem discutir?E que, antigamente, 0verdadeiro amigo nao era "outro"; ele era

n6s mesmos, e sua palavra era nossa palavra. A amizade verdadeira era colocada

acima do parentesco, salvo em questoes de sucessao. E por isto que a tradicao

recomendava ter muitos cornpanheiros, mas nao amigos "verdadeiros" em dema-

sia. Os parentes gozavam do mesmoprivilegio. 0 irmao, 0 pai ou a mae podiam

"divorciar" urn homem em sua ausencia e emgeral 0 interessado inclinava-se,

aceitando. Nao se pode dizer que fosse urn costume, pois nao era.fato muito frequente.

mas quando acontecia era aceito, porque nao se tomava uma decisao dessas leviana-

mente - caso contrario, a comunidade, familiar ou ciaaldeia, se oporia.

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