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ANTNIO MANUEL HESPANHA *, AS ESTRUTURAS POLTICAS EM PORTUGAL NA POCA MODERNA +.Talvez no haja histria mais difcil de fazer do que a Histria da poca Moderna. No que existam fontes a menos, como acontece, frequentemente, na Histria Antiga ou na Histria Medieval. Por outra palavras, o problema dos historiadores que se dedicam a este perodo no o de se saber pouco sobre ele. antes o de, aparentemente, se saber demais. Na verdade, o comum das pessoas tem imensas ideias feitas sobre uma srie de coisas que se passaram na poca Moderna, sobretudo em Portugal. A histria que se fez desde h sculos - por vezes quase desde o momento em que os factos se passaram - fixou no senso comum uma srie de imagens, que hoje esto to enraizadas que custa muito remov-las ou mesmo apenas rev-las. Por exemplo, ao falar das grandes figuras da histria de Portugal, desde D. Sebastio at ao Marqus de Pombal, passando por Vasco da Gama, o Infante D. Henrique ou D. Joo V, evocada toda uma srie de imagens, de sentimentos, de apreciaes ou, mesmo, de elementos iconogrficos, muitos dos quais hoje se sabe j no corresponderem a qualquer verdade histrica. Neste sentido, a histria banaliza-se, torna-se uma galeria de representaes esperadas e j sabidas. A melhor maneira de fazer histria romper com estes lugares comuns, procurando retratos mais libertos dos nossos sentimentos e do nosso saber intuitivo. Mas, tambm, da nossa actual maneira de sentir, de pensar, de agir e de reagir. Ento, o passado surge-nos como algo de diferente e de inesperado, que documenta a variedade histrica dos homens e das culturas. O mundo actual, se estivermos atentos sua diversidade, j nos d conta de que os homens so muito diversos, como muito diversas so as suas formas de viver e de conviver. A histria, contada como um relato da diversidade, no faz seno aumentar essa riqueza do humano, mostrando-nos outras formas de viver, de sentir a vida e de organizar. Nesse sentido, ela constitui uma galeria, no de tipos familiares e previsveis, mas de tipos estranhos e inesperados. Os nossos trisavs, de que a Histria Moderna se ocupa, eram, de facto, uns sujeitos bizarros, com os quais teramos seguramente muita dificuldade em nos entendermos.1. 1. A ordem social como ordem natural.

* Professor catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; Investigador do Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail: [email protected]. + As obras citadas, so-no, de forma abreviada (que pode ser completada com recurso bibliografia final. 1 Para ir mais alm: Antnio Manuel Hespanha, "Para uma teoria da histria polticoinstitucional do Antigo Regime", cit., 7-90; Poder e instituies no Antigo Regime. Guia de estudo, cit., 1992, 128 pp..2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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A poca Moderna herda do perodo medieval a ideia de que existe uma ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as coisas, e fixando uns e outras a um curso quase to foroso e inevitvel como a sequncia das estaes do ano ou o fluir dos acontecimentos naturais. Tratava-se, afinal, de uma sociedade de fortes razes camponesas, habituada aos ritmos montonos da vida natural; e, para alm disso, de uma sociedade tradicionalista, onde a vida comunitria tinha hbitos longamente estabelecidos, cuja observncia era tida como obrigatria. A prpria Bblia, que era lida tanto por catlicos como por protestantes, parecia confirmar esta ideia de que tudo estava organizado desde a origem, ao relatar a Criao do Mundo e o modo como Deus teria ordenado as criaturas, animadas e inanimadas, umas para as outras e todas para a Sua glria. Tambm a organizao da cidade (a poltica) tinha como fundamento esta ordem divina da Criao. Apesar de se reconhecer que os membros de cada comunidade podiam estabelecer algumas normas particulares de organizao poltica, pensava-se que a generalidade das regras de vida em comum (a constituio social, digamos) estavam fixadas pela natureza. A sociedade dizia-se ento - era como corpo, em que a disposio dos rgos e as suas funes estava definida pela natureza. Assim, era da natureza das coisas que os sbditos seguissem os ditames dos governantes, que estes tivessem que governar em vista do bem comum, que a mulher obedecesse ao marido, que o casamento fosse monogmico e indissolvel, que os poderosos protegessem os mais fracos, que os amigos ou parentes se favorecessem mutuamente. Os juristas - que, ento, eram aqueles que pensavam a organizao poltica - identificavam a justia com o respeito por estes equilbrios sociais. Esta ideia do carcter natural da constituio social - i.e., de que a organizao social depende, no fundamental, da natureza das coisas - faz com que se atenue muito a importncia da ideia de indivduo e de vontade. Na verdade, as leis fundamentais (a "constituio") de uma sociedade (de um reino) dependeriam to pouco da vontade como a fisiologia do corpo humano ou a ordem da natureza. No era, de facto, a vontade humana - nem a dos governantes, nem a dos governados - que definia o que era justo ou injusto, o que era lcito ou ilcito, o que era politicamente possvel ou impossvel. Pelo contrrio, o justo, o lcito e o politicamente possvel estavam definidos numa ordem do mundo anterior e superior vontade dos homens, mesmo dos monarcas. O indivduo no estava, assim, na origem da constituio poltica ou da organizao social; era esta, pelo contrrio, que lhe atribua um determinado papel social ou um certo conjunto de direitos e deveres. So estas ideias - ento muito difundidas por telogos e por juristas acerca da relao entre ordem poltico-social e natureza que explicam algumas das caractersticas mais notrias das sociedades de Antigo Regime. Por exemplo, que o ttulo de rei passe de pais para filhos, como qualquer caracterstica natural que se transmite pelo sangue, sem interveno da vontade dos sbditos. Ou que os poderes do rei no dependam da sua prpria vontade, mas das funes que a natureza atribui aos governantes em vista da realizao do bem comum. Ou que os direitos e deveres dos membros da comunidade domstica nem sequer possam ser modificados por lei, uma vez que decorrem de uma natureza da2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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famlia que se considera estar acima da lei do rei. Ou, finalmente, que o uso das coisas que so de nossa propriedade no dependa do nosso arbtrio, mas dos fins para que a natureza no-las deu, em vista, no apenas do nosso interesse, mas tambm dos interesses da comunidade. Era este ideal de vida honesta - isto , de vida conforme natureza das coisas - que explica a antipatia com que a sociedade tradicional recebe as novas ideias, que comeam a surgir no Renascimento, de que o indivduo est no centro do mundo e de que toda a constituio social e poltica h-de depender da sua vontade 2. A estes temas da ordem como equilbrio desigual, da mobilidade social e do individualismo dedicaremos os nmeros seguintes. 2. O individualismo. Os sculos XV e XVI so pocas de grandes modificaes nos horizontes culturais e sociais europeus. A Reforma quebra a unanimidade religiosa, o Renascimento provoca uma mudana nos modelos do gosto e tambm nas referncias culturais. Os Descobrimentos tornam conhecidos outros mundos e outras culturas, algumas delas totalmente desconhecidas at ento, outras radicalmente diferentes da europeia. Muito do que parecia indiscutvel e natural, revela-se problemtico e artificial. Nestas circunstncias, torna-se muito difcil continuar a acreditar numa ordem estvel do mundo, onde cada coisa tenha um lugar fixo, insensvel s mudanas dos tempos ou das latitudes. Parece, agora, que mais sensato pensar a ordem social, no como o reflexo de uma ordem natural forosa, mas como baseada em acordos artificiais e provisrios, a que os homens vo chegando, para, em cada conjuntura poltica, evitar a anarquia originria e estabelecer a paz. Em contraste com a sensibilidade poltica anterior, isto significava desligar a ordem da sociedade de qualquer ordem natural ou metafsica. Ou seja, significava pensar que o estado de natureza - em que os homens estavam, antes de acordar nessas bases de convivncia (contrato social) - no era um estado de harmonia natural, como antes se tendia a julgar, mas um estado de anarquia e de guerra de todos contra todos. Por detrs desta ideia pessimista acerca da natureza humana est, seguramente, o traumatismo das guerras sociais e de religio que assolaram a Europa durante o sc. XVI, mas tambm uma nova ideia de acerca da natureza do homem. Este deixa de ser considerado como uma pea na grande mquina do Universo, mas antes como um elemento auto-determinado e dinmico, possuindo uma energia prpria. Isto lev-lo-ia a afirmar-se perante os outros, a tentar modelar as relaes sociais e polticas de acordo com os impulsos da sua vontade e a apropriar-se das coisas externas de modo a transform-las em suas prprias.

Desenvolvimentos: ngela Barreto Xavier e A. M. Hespanha, "A representao da sociedade e do poder", cit., 121-145.2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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Este novo individualismo destri completamente a ideia anterior de que a ordem social e poltica independente e superior vontade. Pelo contrrio. A constituio da sociedade agora vista como sendo o produto de um pacto, cujas clusulas apenas dependem da vontade dos contraentes. Da que todos os governos estabelecidos (ou seja, aceites, expressa ou tacitamente) sejam, em princpio, justos. Por isso que o individualismo - e contratualismo que da decorre - pde dar origem a vrios tipos de regime, por vezes radicalmente diferentes quanto maneira de entender as relaes entre os cidados e o poder. Nuns casos, o contratualismo veio a legitimar principados absolutos como as vrias manifestaes de despotismo esclarecido tpicas da segunda metade do sc. XVIII - por se entender que, no pacto social, os cidados tinham transferido todos os seus poderes originrios para os governantes (contratualismo absolutista), ficando o prncipe livre de qualquer sujeio ou limite. Noutros casos, o contratualismo legitimou regimes de poder limitado, liberais ou democrticos, como os que surgiram em Inglaterra na sequncia da Glorious Revolution, das revolues Americana e Francesa ou das revolues liberais dos finais do sc. XVIII e incios do sc. XIX. Por se poder entender que o contedo do contrato social nunca poderia contrariar os objectivos ltimos pelo qual ele teria sido celebrado, ou seja, instaurar uma ordem social e poltica que permitisse ao mximo a realizao dos impulsos de cada um, devendo por isso os direitos naturais permanecerem eficazes mesmo depois de constitudo um governo. Mas no apenas no plano da constituio poltica e do regime de governo que o individualismo marca a fase final da poca Moderna. Pode dizer-se que isto se passa em todos os domnios da vida social. Todas as relaes sociais passam a ser tidas como desprovidas de qualquer ncleo natural e, por isso, livremente modificveis pela vontade. Um bom exemplo o do casamento, que comea a ser visto como um simples contrato e, por isso, dissolvel por vontade das partes. E, na verdade, o divrcio passa a ser progressivamente admitido (em Frana, a partir de 1804, com o Code civil, de Napoleo). Outra manifestao desta concepo individualista o novo modo de conceber a propriedade das coisas. Se esta antes estava limitada por uma srie de direitos da comunidade, como os usos colectivos (de pastoreio, de caa, por exemplo) ou os direitos dos vizinhos (servides de passagem, por exemplo), agora ela concebida como um direito absoluto sobre as coisas prprias, sem quaisquer restries impostas ou pelos interesses comunitrios ou pela solidariedade social (propriedade capitalista) 3. 3. Um Estado moderno?

3 Para ir mais alm: Lus Reis Torgal, Ideologia poltica, cit..; Lus Cabral de Moncada, "Origens do moderno direito portugus ...; Angela Barreto Xavier e A. M. Hespanha, "A representao da sociedade ..., cit., 121-145. 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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esta configurao do poder que se costuma designar por Estado Moderno. A questo da existncia ou no de um Estado moderno ou da cronologia da sua instituio est ligado a um certo contexto da reflexo sobre a sociedade e o poder. Nos meados do sculo passado, Karl Marx caracterizou o advento da modernidade (capitalista) pela separao entre a esfera da poltica e a esfera da economia. Ao passo que, no modo de produo feudal, a explorao econmica se fazia por processos polticos (cobrana da renda feudal), no capitalismo a drenagem da mais valia para as classes exploradores realiza-se no mbito da economia, constituindo a poltica apenas a moldura externa do processo de explorao. Com isto, pe-se termo confuso entre propriedade e autoridade que teria caracterizado o sistema feudal, separando-se o Estado da sociedade civil. Por outras palavras, o marxismo reserva o conceito Estado para a descrio de um modelo em que a poltica formalmente se destaca do processo de explorao, emergindo como (pretensa) portadora de interesses gerais ou supra-classistas. Por outra lado, e ainda na segunda metade do mesmo sculo, a teoria jurdica e poltica comeou a adoptar um estilo de anlise poltica que se preocupava menos com a conjuntura - com a anlise vnementielle da cena poltica - do que com as estruturas do poltico, nomeadamente com os grandes princpios (axiomas, conceitos) da teoria constitucional. Foi a isto que se chamou a adopo do mtodo jurdico pela teoria constitucional alem, francesa e italiana das ltimas dcadas do sculo. Para esta, a modernidade teria consistido na instaurao de um modelo novo de desenhar o poder, de acordo com o qual um nico plo poltico se arrogava o monoplio de poder em relao a uma comunidade territorial - um povo, um territrio, um Estado, um direito. A partir daqui, o conceito de Estado ganha uma nova referncia - a de um poder poltico nico e exclusivo sobre uma sociedade civil, ou seja, uma sociedade que palco de relaes e de interesses meramente privados. J no nosso sculo, Max Weber completa a carga conceptual da palavra Estado. Partindo da sua tipologia de modelos polticos - o modelo carismtico, o modelo tradicional, o modelo legal-racional -, Weber reserva o conceito de Estado para este ltimo, que seria o modelo tpico da modernidade em termos polticos. O Estado constituiria, assim, uma forma de organizao do poder caracterizada pela racionalidade, generalidade e abstraco. Uma forma racional de organizar (a burocracia, a racionalizao territorial, a seleco meritocrtica), uma forma abstracta e geral de regular (o direito igual), um modelo tambm impessoal de participao poltica (a democracia representativa). A palavra Estado , assim, tudo menos um termo vazio de sentidos. Nele est deposta uma carga semntica pesadssima, marcada por pensadores muito influentes na histria do pensamento poltico contemporneo. Dessa carga fazem parte algumas ideias fora, de resto parcialmente sobreponveis: o Estado foi a entidade que separou o pblico do privado, a autoridade da propriedade, a poltica da economia;

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o Estado foi a entidade que promoveu a concentrao de poderes num s plo e que, por isso, eliminou o pluralismo poltico tpico do Antigo Regime; o Estado foi a entidade que instituiu um modelo racional de governo, funcionando segundo normas gerais e abstractas.

J se v, a partir daqui, o que que implicitamente se assume quando se utiliza a palavra Estado. a conscincia do peso destas assunes e do modo como elas podem deformar a apreenso do passado que fez surgir a conscincia de que o Antigo Regime tinha que ser estudado com recurso a conceitos prprios, decalcados numa percepo e sensibilidade (incluindo, a afectividade) diferentes das relaes sociais e polticas. E, de facto, enquanto isto se passava no plano da teoria geral da histria, do lado da histria poltica estavam a dar-se movimentos confluentes, embora com uma origem terica muito diferente. Desde o sculo XIX que se mantinha, em toda a Europa, um filo de crtica ao modelo poltico institudo pelas revolues liberais. Era constitudo pelo pensamento poltico conservador-reaccionrio, que continuava mais ou menos ligado s formas de imaginar a organizao poltica tpicas da sociedade de Antigo Regime. Os representantes deste filo estavam em melhores condies, desde logo psicolgicas e afectivas, para entender e descrever com fidelidade o imaginrio poltico da antiga Europa, de que eram politicamente admiradores. O exemplo clssico de uma descrio desse tipo o da obra de Otto Gierke, nos finais do sc. XIX 4. Mas a ele se podem juntar o historiador belga mile Lousse que trabalhou sobre a organizao corporativa medieval - e, sobretudo, o historiador austraco Otto Brunner que, nos anos trinta, se dedicou descrio do mundo mental subjacente organizao poltica medieval e moderna - o imaginrio da casa, o imaginrio das relaes de fidelidade, o imaginrio da nobreza, o imaginrio das relaes senhor-sbdito 5. A influncia de O. Brunner na historiografia poltica do ps-guerra veio a ser muito grande, sobretudo na Alemanha e na Itlia. Paradoxalmente, no tanto sobre a historiografia conservadora, mas sobre historiadores crticos dos modelos polticos estabelecidos, que se encontravam com Brunner na sua crtica implcita ao paradigma democrtico-representativo. isto que explica esse estranho casamento, tpico da nova vaga de historiadores do poder e do direito dos anos setenta 6, entre uma formao terica de raiz marxista e os tpicos4 5

Das deutsche Genossenschaftsrecht, Berlin, 1868-1913. Otto Brunner (1939), Land und Herrschaft. Grundfragen der territorialen Verfassungsgeschichte Oesterreichs im Mittelalter, Wien 1939 (trad. it. da 5 ed. reelaborada, Terra e potere, intr. P. Schiera, Giuffr, Milano, 1983); "Das 'ganze Haus' und die alteuropaeische Oekonomik'" e Die Freiheitsrechte in der altstaendischen Gesellschaft, ambos em Neue Wege der Verfassungs- und Sozialgeschichte, Gttingen 1968 (2 ed.; existem trads. ital. e esp.); Adeliges Landleben und europaeischer Geist. Leben und Werke Helmhards von Honberg (16121688), Salzburg, 1949. 6 Por exemplo, Pierangelo Schiera, Johannes-Michael Scholz, Bartolom Clavero e eu prprio. Hoje, o grupo alargou-se muito.2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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historiogrficos de Otto Brunner, inspirados por uma viso poltica muito conservadora. No vou aqui repetir, em detalhe, as consequncias desta viragem historiogrfica 7. Mas saliento que ela desviou a ateno das reas clssicas da histria institucional, como a administrao pblica formal, o direito legislativo e oficial, para novas reas como as relaes clientelares e de fidelidade, o imaginrio e organizao domsticos, a disciplina informal. Ou seja, para elementos de controlo e disciplina que no s no cabem no imaginrio do Estado contemporneo, mas que por ele so positivamente reprimidos, como sinais de corrupo e de perverso. o que se passa, justamente, com a permanncia - quase que diria contra natura, em face dos dados empricos que todos j conhecem - da ideia de que o sistema poltico de Antigo Regime (com maioria de razo o medieval) se pode configurar como um sistema estadual. Explico melhor. A historiografia mais corrente tem difundido a imagem de que o sistema poltico da poca moderna se caracterizou, tambm em Portugal, por uma crescente absolutizao do poder real, logo a partir dos finais do sc. XV. Costumava-se apoiar esta viso com argumentos como o da decadncia das cortes, da curializao da nobreza, da criao dos juizes de fora e consequente enfraquecimento da autonomia municipal, do enriquecimento da coroa com a empresa dos descobrimentos. Alguns destes argumentos so pouco rigorosos. Os juizes de fora, ainda que fossem esses instrumentos do poder real de que tanto se fala, s existiam, at aos finais do sc. XVIII, em cerca de 20 % dos concelhos. Um livro meu, j com dez anos, provou isso abundantemente 8. Neste particular aspecto, o trabalho de Ana Cristina Nogueira da Silva 9 parece confirmar, mesmo nos finais do sc. XVIII, um grande apego dos concelhos s suas autonomias jurisdicionais, embora isso conviva com um projecto da coroa reordenador do espao poltico, numa perspectiva geomtrica e centralizadora, cujos argumentos so alis curiosamente incorporados, quando conveniente, no discurso localista dos concelhos. Embora os poderes dos senhores portugueses no fossem to extensos e incontrolados como no centro da Europa, cerca de 2/3 dos concelhos do reino pertenciam a senhores, que a administravam a justia. E, em cerca de 1/3 dos casos, estes senhores das terras podiam mesmo impedir a entrada dos magistrados rgios (corregedores) a cargo de quem estava inspeccionar o

Sobre ela, pode ver-se o meu prefcio colectnea Poder e instituies na Europa do Antigo Regime, Lisboa 1984, 541 pp., max. 26 ss.; Antnio Manuel Hespanha, Storie delle instituzione politiche ...cit... 8 ltima edio, Antnio Manuel Hespanha, As vsperas do Leviathan. Instituies e poder poltico (Portugal, sc. XVIII), Coimbra, Almedina, 1994, 682 pp. (reedio remodelada da edio espanhola de 1990). 9 Ana Cristina Nogueira da Silva, O modelo espacial do Estado moderno [...] cit., maxime 374 ss..2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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governo local. Tambm isto est abundantemente provado hoje, muito embora se discutam algumas questes relevantes neste plano: (i) qual o controlo efectivo dos senhores de terras sobre as suas terras; (ii) qual o grau de curialiao da nobreza portuguesa e em que que isso consistia 10; (iii) qual o impacto prtico da existncia de uma justia senhorial intermdia 11. Recentemente, trabalhos importantes, nomeadamente de Nuno Gonalo Monteiro, de Jos Manuel Subtil, de Mafalda Soares da Cunha, e de Maria Fernanda Olival, aprofundaram diversos aspectos do tema. Mas apesar de algumas restries postas por alguns destes autores - no creio que o argumento se tenha alterado profundamente. Nuno Monteiro 12 insiste no tema da progressiva concentrao da lata aristocracia num pequeno nmero de casas, cada vez mais curializadas e dependentes do favor rgio, numa lgica de prestao de servios contra o recebimento de mercs reais, nomeadamente as apetecidas e economicamente decisivas comendas das ordens militares; no entanto, a cultura poltica da merc e do benefcio filia-se numa economia da graa 13 com regras bastante estritas, que deixava pouco espao ao arbtrio rgio. A mesma economia da graa repassava a atribuio de distines das ordens militares, de que o rei era o gro-mestre desde os meados do sc. XVI, tema recentemente estudado por Maria Fernanda Olival 14. Tambm a, regras bastantes estritas de relao entre o servio e a merc limitavam uma plena disponibilidade dos recursos das ordens para a realizao de uma poltica da coroa; ao mesmo tempo que, ao encararem a merc como geralmente remuneratria de servios, introduziam importantssimas limitaes sua revocabilidade ou no renovao. certo que estes dois historiadores insistem no papel da coroa na estruturao do sistema poltico. Mas, para alm do que j se disse quanto s limitaes postas ao centro pela lgica objectiva desta economia da merc (como Fernanda Olival prefere chamar-lhe), no fica muito claro quem seja esse centro, nem quem idealiza e formula as suas estratgias ou projectos. Porque tambm resulta particularmente claro da prpria obra destes autores a contrastar com o que se passa no perodo iluminista, como mostra Jos Manuel Subtil, no seu estudo sobre o Desembargo do Pao 15 que a monarquia continua a ser eminente poli-sinodal e descerebrada pelo menos

Antnio Manuel Hespanha, "Une autre administration. La cour comme paradigme d'organisation des pouvoirs l'poque moderne", cit.. 11 V. o meu livro Portugal moderno. Poltico e institucional, cit., no captulo Os senhorios; bem como o livro de Nuno Gonalo Monteiro, O crepsculo dos grandes ...[...]. Sobre a corte, um programa metodolgico em Antnio Manuel Hespanha, "Une autre administration [...], cit.. 12 Nuno G. Monteiro, O crepsculo dos grandes ..., cit.. 13 A. M. Hespanha, Lconomie de la grce [...], cit.. 14 Maria Fernanda Olival, Honra, merc e venalidade[...], cit.. 15 Jos Manuel Subtil, O Desembargo do Pao [...], cit.. Aparentemente, a cerebrao do centro, em torno dos Secretrios de Estado, j se vem manifestando no reinado de D. Joo V. O teor da correspondncia de D. Joo V com os seus ministros de Estado, bem como a riqueza poltica dos memoriais de D. Lus da Cunha j o indiciam; estudos de Nuno Monteiro, ainda em curso, parece apontarem no sentido de uma decisiva politizao do cargo de Secretrio de Estado, que passa de um lugar acessrio e de estatuto desvalorizado a um lugar de acumulao de informao poltica sobre os assuntos de Estado e, por isso, a uma instncia decisiva na formao da poltica da coroa.2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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at aos meados do sc. XVIII. Em contrapartida, Mafalda Soares da Cunha 16 mostra como uma grande casa senhorial a dos Duques de Bragana - tinha uma coerente poltica de construo de redes clientelares prprias, cuja capilaridade se pode observar desde as camadas mais elevadas at s mais humildes da sociedade local. Ainda como poder autnomo, o da Igreja. A importncia da Igreja como plo poltico autnomo enorme, na poca Moderna. Por um lado, estamos - pelo menos no Sul da Europa - perante uma sociedade "integrista", em que se visa uma direco integral da vida pela moral crist; e em que, portanto, os actos mais mnimos e mais ntimos esto detalhadamente regulados. Este ambiente integrista explica tambm a influncia da teologia sobre outros universos normativos, nomeadamente, sobre o direito temporal e sobre a poltica 17. Por outro lado, de todos os poderes que ento coexistiam, a Igreja o nico que se afirma com bastante eficcia desde os mbitos mais humildes, quotidianos e imediatos, como as famlias e as comunidades, at ao mbito internacional, onde convive com os poderes dos reis e imperadores De um extremo ao outro, a influncia disciplinar da Igreja exerce-se continuamente. No plano da aco individual, pela via da cura das almas, a cargo dos procos, pregadores e confessores. No plano da pequena comunidade, pela via da organizao paroquial. No plano corporativo, por meio das confrarias especficas de cada profisso. Nos mbitos territoriais intermdios, por meio da disciplina episcopal. Nos reinos, por mecanismos como a vigncia temporal do direito cannico ou a existncia de um foro especial para clrigos. Para desempenhar a sua misso (de condutora, de me e de mestra), a Igreja dispunha, quer de normas disciplinares, quer de uma malha administrativa e jurisdicional sem paralelo na poca. O principal ncleo das normas com que a Igreja disciplinava a sociedade moderna estava contido no patrimnio doutrinal (ou dogmtico) da Igreja, integrando as obras dos telogos (teologia moral). Dentro destas, salientam-se as normas morais, visando o aperfeioamento individual, nos mbitos do comportamento para consigo mesmo (monastica), do comportamento no seio da famlia (oeconomia), ou ao comportamento no seio da repblica (politica). A cada um destes grupos correspondia um captulo da teologia moral, corpo literrio vastssimo, que vai desde as grandes snteses (como a segunda parte da Summa theologica, de S. Toms de Aquino, 1225-1274) at aos comentrios monogrficos ou aos "manuais de confessores", espcie de repertrios dos "casos de conscincia" para uso dos confessores. Outra fonte de disciplina eclesistica dos comportamentos era o direito da Igreja (direito cannico), conjunto de normas cuja observncia estava garantida pela existncia de uma completssima rede de tribunais da Igreja (foro

16 17

Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragana. 1560-1640 [...], cit.. A. M. Hespanha, Portugal moderno [...], cit., 129 ss...

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eclesistico) que aplicava aos contraventores sanes, quer do foro interno (penitncia, excomunho), quer do foro externo (condenaes pecunirias, priso em instituies da Igreja). O direito cannico no vigorava nem apenas para os clrigos, nem apenas nas questes relativas f. Pelo contrrio, aplicava-se a tambm a leigos e sobre matrias de natureza puramente temporais - como o pagamento de prestaes econmicas s instituies religiosas ou todos os negcios sobre os bens destas - ou que hoje so consideradas como tal. Um exemplo da ltima categoria o casamento, ento regulado exclusivamente pelo direito da Igreja. Estes sistemas de normas eram tornados efectivos por um conjunto de processos muito eficazes. Um delas era a pregao, nomeadamente a pregao dominical, que constitua um poderosssimo instrumento de disciplina das comunidades de crentes. Outro, a confisso, preceito pelo menos anual para cada fiel, por meio da qual se exercia uma disciplina personalizada e se atingiam os nveis mais ntimos da conduta de cada um. Se a pregao podia "entrar por um ouvido e sair pelo outro", a confisso implicava o risco da no absolvio e das penas cannicas que da decorriam. Nos casos mais graves, como a privao dos sacramentos ou a excomunho, estas penas expunham quem violasse os preceitos cannicos a situaes de marginalizao social que eram mais graves do que muitas das penas seculares. Pense-se na vergonha pblica que constituiria, nestes tempos, a impossibilidade de se casar pela igreja, de se ser padrinho, de frequentar os sacramentos, de receber a visita pascal, de ser enterrado canonicamente. Finalmente, a disciplina eclesistica dispunha de um outro instrumento de efectivao, as visitas feitas pelo bispo ou vigrio-geral a cada parquia da diocese, ocasio para proceder a uma devassa geral da vida da comunidade, quer quanto aos aspectos do culto, quer quanto a matrias de disciplina (como, por exemplo, a existncia de pecadores pblicos - adlteros, prostitutas, homossexuais, jogadores, usureiros). Tambm a malha administrativa do oficialato da Igreja no tinha equivalente na poca. Desde Roma at a uma parquia perdida da Beira, a Igreja dispunha de uma malha de oficiais e instituies que cobriam eficazmente o territrio e garantiam com uma eficcia absolutamente excepcional para a poca as diversas funes que lhe competiam, desde as puramente espirituais, at s do foro externo, como a realizao da justia ou a cobrana dos tributos eclesisticos. Claro que esta situao privilegiada da Igreja quanto ao controlo social era vista com preocupao pela coroa, que tentava atenu-la de diversas formas. Uma delas era o beneplcito rgio, institudo ainda durante a poca Medieval, que obrigava a que as "cartas de Roma" fossem sujeitas, antes da sua publicao, aprovao rgia (cf., Portugal, as Ordenaes afonsinas, de 1446, II,12). Outra, eram as leis contra a amortizao, contidas nas Ordenaes (II, 26), que proibiam as instituies eclesisticas de possurem bens imveis. A sua aplicao nunca foi, de facto, levada a cabo, mas o preceito impendeu sempre, como ameaa, sobre a Igreja, nas pocas de tenso poltica com a Coroa, como aconteceu no perodo filipino. Finalmente, outra prerrogativa rgia era a de proteger os seus sbditos naturais contra as violncias dos eclesisticos (a regia2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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protectio) ou de punir pela justia real os criminosos que no o tivessem sido devidamente pelas justias eclesisticas 18. Depois, se quisermos avaliar da importncia relativa do poder real, temos que pr a questo da eficcia da mquina administrativa da coroa e, mesmo antes, dos meios de conhecer o reino. O aparelho administrativo da coroa era muito dbil, como o grfico seguinte pode comprovar. Dos cerca de 1700 oficiais que a coroa tinha ao seu servio em meados do sc. XVII, uns 500 estavam na corte. No resto do pas, apenas 10 % das estruturas administrativas pertenciam coroa, o que quer dizer que, para cerca de 12 000 funcionrios concelhios, senhoriais e de outras entidades (excludos, em todo o caso, os oficiais eclesisticos), havia 1 200 da coroa 19.

Rendas dos oficiais da administrao portuguesa (excluindo a ultramarina), em 1640Corte e seus tribunais 21% Fazenda real Justia real 12% 11% Milcia real 0% Corporaes e senhores 6%

Outros 2% Concelhos 48%

A esta fragilidade dos aparelhos burocrticos soma-se a falta de recursos financeiros da coroa, pois a subida das suas rendas durante os scs. XVII e XVIII a que se refere o grfico seguinte - no era bastante para melhorar substancialmente o magro aparelho burocrtico a que antes nos referimos 20.

Para ir mais alm: Joaquim de Carvalho, As visitas pastorais e a sociedade de Antigo Regime, Notas para o estudo de um mecanismo de normalizao social, Coimbra, polic., 1985; Joaquim de Carvalho, "A jurisdio episcopal sobre leigos em matria de pecados pblicos: as visitas pastorais e o comportamento moral das populaes portuguesas de Antigo Regime", Rev. port. hist., 25(1990) 121-163; Ana Mouta Faria, "Funo da carreira eclesistica na organizao do tecido social do Antigo Regime", Ler histria, 11(1987) 29-46; Antnio Manuel Hespanha, Portugal moderno [...]. cit.. 19 Sobre este tpico, de novo, o meu livro As vsperas , cit.; ou, para a segunda metade do sc. XVIII, Jos Manuel Subtil, O Desembargo do Pao [...], cit.. 20 Sobre o tema, v. o captulo A fazenda do vol. O Antigo Regime, por mim dirigido na Histria de Portugal, coord. Por Jos Mattoso, Lisboa, Crculo dos Leitores, 1993, pp. 203-238.2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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Evoluo das despesas a preos correntes (1588-1766)

6.000

5.000

4.000

3.000

2.000

INDIA 1.000 BRASIL AFRICA 0 1588 ILHAS 1607 1618 1621 1627 1632

1641

REINO - Total 1681 1716 1720 1737

1766

A esta falta de meios da coroa para governar o Reino teramos ainda que acrescentar uma referncia ao deficiente conhecimento do prprio territrio de que no houve representaes cartogrficas detalhadas ou contagens demogrficas precisas at aos incios do sc. XIX 21 - e s dificuldades e demoras das comunicaes internas - ms estradas, deficiente servio de correios. Mas neste balano do impacto dos vrios poderes existentes no Reino esquecem-se, sobretudo, alguns dados fundamentais sobre a lgica global do sistema de poder na poca moderna. Ao contrrio do que acontece hoje, o poder poltico estava muito repartido nas sociedades modernas. Com o poder da coroa coexistiam o poder da Igreja, o poder dos concelhos ou comunas, o poder dos senhores, o poder de instituies como as universidades ou as corporaes de artfices, o poder das famlias. Embora o rei dispusesse de prerrogativas polticas de que outros poderes normalmente no dispunham - os chamados direitos reais, como a cunhagem de moeda, a deciso sobre a guerra e a paz, a justia em ltima instncia -, o certo que os restantes poderes tambm tinham atribuies de que o rei no dispunha. A Igreja, por exemplo, tinha uma larga esfera de competncias exclusivas - como, por exemplo, julgar e punir os clrigos. O mesmo acontecia com o poder do pai, no mbito da famlia; era impensvel que a coroa se intrometesse, por exemplo, na disciplina domstica ou na educao dos filhos. E por a em diante: a universidade julgava e punia os seus estudantes e professores; as corporaes regulavam os respectivos ofcios; as cmaras editavam as normas (posturas) relativas vida comunitria. Tambm o direito do rei (a lei) no era o nico direito. Ao lado dela, vigorava o direito da Igreja (direito cannico); o direito dos concelhos (usos e costumes locais, posturas das cmaras); ou os usos da vida, longamente estabelecidos e sobre que houvesse consenso, que os juristas consideravam como21

Ana Cristina Nogueira da Silva, O modelo espacial [...], cit..

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de obedincia obrigatria, tanto ou mais do que a lei do rei. De resto, como tambm mostrei num estudo com alguns anos 22, a lei do rei to pouco era aplicada de forma inexorvel e sistemtica. Os juzes entendiam que a aplicao da lei devia ser matizada pela avaliao da sua justeza em concreto, tarefa que lhes caberia essencialmente a eles e sobre a qual mantinham um poder incontrolado, escudados na doutrina jurdica do direito comum. No caso da lei penal, a sua aplicao devia, alm disso, ser misericordiosa 23. Da que, apesar de as Ordenaes portuguesas preverem a pena de morte para uma srie enorme de crimes, ela ser excepcionalmente aplicada, pelo menos at ao iluminismo. E, quanto s decises polticas, a vontade do rei estava sujeita a muitos limites. Ele tinha que obedecer s normas religiosas, porque era o vigrio (o substituto) de Deus na Terra. Tinha que obedecer ao direito, porque este no era, como vimos, apenas o resultado da sua vontade. Tinha que obedecer a normas morais, porque os poderes que lhe tinham sido conferidos o tinham sido para que ele realizasse o bem comum. E, finalmente, tinha que se comportar com um pai dos seus sbditos, tratando-os com amor e solicitude, como os pais tratam os filhos 24. E isto no era apenas poesia. Muitas entidades controlavam o cumprimentos destes deveres do ofcio de reinar. A Igreja, por exemplo, que continuava a deter a perigosa prerrogativa de excomungar o rei, desligando os sbditos do dever de lhe obedecer. Por isso que as crises com o Papado - que se multiplicavam durante os reinados e D. Joo V a D. Jos - eram politicamente to srias. Os prprios tribunais podiam suspender as decises reais e declar-las nulas. E isso acontecia frequentemente, tanto nos tribunais superiores como nos juzes concelhios, por todo o reino, em questes grandes e pequenas. Tudo isto estava abundantemente e solidamente sedimentado na teoria poltica que, at ao pombalismo, no cessou de repetir os tpicos corporativos, descrevendo o poder real como um poder limitado, a constituio como o produto indisponvel da tradio, o governo como a manuteno dos equilbrio estabelecidos, o direito como um fundo normativo provindo da natureza. Nestes termos, todos os acenos da teoria poltica moderna para um governo baseado na vontade, nomeadamente na vontade arbitrria do rei, eram geral e enfaticamente rejeitados 25. Digna de uma anlise porventura diferente a literatura histrica e poltica referente ao ultramar, em que os tpicos maquiavlicos da explorao da conjuntura e do artificialismo do poltico parece serem mais frequentes. Assim, os limites ao governo provinham mais deste controle difuso e quotidiano do que, como frequentemente se diz, da reunio regular das cortes

A. M. Hespanha, "Da 'iustitia' 'disciplina' [...], cit... Cf. a obra citada na nota anterior. 24 V., por ltimo, a dissertao de doutoramento de Pedro Cardim, O poder dos afectos, Lisboa, Faculdade de Cincias Sociais e Humanas - UNL, 2000. 25 Cf. A. M. Hespanha e ngela Barreto Xavier, A representao da sociedade e do poder, cit.. e bibl. a citada; cf. tambm a minha sntese, Antnio Manuel Hespanha, A fortuna de Aristteles no pensamento poltico portugus dos scs. XVII e XVIII, cit..23 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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que, nessa altura, tinham uma funo sobretudo consultiva e cerimonial 26. Sem o conselho {dos juristas}, o prncipe no pode editar leis, ainda que o possa fazer sem a convocao de cortes, escreve um jurista do sc. XVII, repetindo a opinio comum. Este breve conspecto das coisas sabidas - algumas delas arqui-sabidas - da histria poltica do Portugal moderno suficiente para mostrar como muitas das ideias ainda correntes sobre o advento do Estado e a sua cronologia no quadram, de todo em todo, com os dados empricos. A menos que Estado no tenha significado nenhum e se desconhea a carga semntica que no conceito foi depositado por quase 200 anos de teoria poltica. 4. O imprio e a metrpole. Toda esta imagem de centralizao ainda mais desajustada quando aplicada ao imprio ultramarino. A, alguns mdulos (Timor, Macau, costa oriental da frica) viveram em estado de quase total autonomia at ao sc. XIX. Mas mesmo a ndia era objecto de um controlo tornado muito remoto pelos 9 meses que demorava a comunicao com a metrpole 27. Apesar de, como j se sugeriu, a teoria da aco poltica relativa ao ultramar fosse algo mais permissiva. De qualquer modo, algumas concepes correntes sobre a histria poltica e institucional do Imprio Portugus carecem de uma profunda reviso, j que a viso dominante a da centralidade da coroa, com as suas instituies, o seu direito e os seus oficiais. A sobrevivncia dessa imagem pode ser explicada por uma interpretao ingnua ainda que ideologicamente significativa das instituies histricas, fundada em preconceitos enraizados acerca da relao colonial 28. Do ponto de vista do colonizador, a imagem de um imprio centralizado era a nica que fazia suficientemente jus ao gnio colonizador da metrpole. Em contrapartida, admitir um papel constitutivo das foras perifricas reduziria o brilho da empresa imperial 29. Do ponto de vista das elites coloniais, um colonialismo absoluto e centralizado condiz melhor com uma viso histrica celebradora da independncia. Se, por exemplo, lermos alguma historiografia brasileira (que, neste aspecto, exemplo nico e paradigmtico na rea ex-

26 Sobre as cortes, Pedro Cardim, Cortes e cultura poltica no Portugal do Antigo Regime, Lisboa, Cosmos, 1998. 27 Cf., por exemplo, A. M. Hespanha e Maria Catarina Madeira Santos, Os poderes num imprio ocenico, cit.. 28 Problemas semelhantes na historiografia italiana, Aurelio Musi, LItalia dei vicer , cit... 29 No por acaso que a historiografia romntica e nacionalista alimentou vrias teorias que destacavam o carcter intencional e programtico da expanso portuguesa - Plano das ndias, Escola de Sagres, Poltica de segredo. Ideia imperial e, talvez, a ideia de um Pacto colonial deliberada e cuidadosamente deliberado, estabelecendo o modelo de trocas comerciais entre a metrpole e o ultramar. 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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portuguesa) 30 bastante evidente a sua vinculao a um discurso narrativo e nacionalista, no qual a coroa portuguesa desempenhava um papel catrtico de intruso estranho, agindo segundo um plano estrangeiro e imperialista, personificando interesses alheios, explorando as riquezas locais e levando a cabo uma poltica agressiva de genocdio em relao aos locais, por usa vez considerados como basicamente solidrios, sem distino de elites brancas e populao nativa. Este exorcismo historiogrfico permite um branqueamento das elites coloniais, descritas como objectos (e no sujeitos) da poltica colonial. Esta situao seria porventura consistente com a situao dos goeses, mas no decerto com a dos brasileiros 31.

30 Este tpico tem, naturalmente, que ser muito matizado. Um caso extremo o de Raymundo Faoro (Faoro, 1973 [cito a ed. de 2000], que, embora anotando uma srie impressionante de argumentos anti-centralistas, est completamente cego por um modelo de interpretao absolutista e explorador da histria luso-barsileira, produzindo um texto em toda a base emprica invocada est em contradio com as interpretaes propostas (v.g., no que escreve sobre os poderes dos governadores e seus limites vrios, pp. l164/165; estruturas militares e ordenaanas (caudilhismo), 180 ss.; funcionrios, 193-194; limitaes fcticas e tericas do poder real, 199-200; descerebrao da polisonodia, 201; desde que se tirem as concluses opostas s suas, a sua sntese sobre o sistema poltico-administrativo, pp. 199-229, bastante boa. De grande qualidade, a sntese de Caio Prado, Jr., na Formao do Brasil contemporneo, ed. cit., pp. 313-346, se descontarmos algum optimismo quanto eficcia das intenes regulamentadoras do centro, bem como a crena em que a mincia da correspondncia com o Conselho Ultramarino representava domniop efectivo (ele prprio comenta: na realidade, a impossibilidade material de atender a tamanho acmulo de servio no s atrazava o expediente, de dezenas de anso vezes, mas deixava grande nmero de casos a dormir o sono da eternidade na gavetas dos arquivos, p. 314). Mas, sobretudo, a mais recente hostoriografia brasileira tem levantado essa hipoteca. Creio que justo destacar o contributo de Maria Odila Leite Dias, que promove uma leitura da histria brasileira liberta desa absessiva oposio metrpole-colnia (sobretudo em A interiorizao da metropole (1808-1835), Mota, Carlos Guilherme, 1822-Dimenses, S. Paulo, Perspectivas, 1972, 160-184; sntese da questo em Furtado, Jnia Ferreira, Homens de negcio. A interiorizao da metrpole e do comrcio nas minas setecentistas, S. Paulo, HUCITEC, 1999). Tambm os contributos daqueles que tm salientado a tenso entre a norma de governo e a sua massiva violao; desde logo, Caio Prado, 2000, 310; mas, mais recentemente, Laura de Mello e Souza, 1999, onde publica e destaca interessantes estudos sobre a indisciplina no prprio alvo central da disciplina da coroa no sc. XVIII, como a demarcao diamantina (sobre a qual, tambm, Anastasia, 1998, e Furtado, 1996. Na verdade, o que se passa tambm, com muita da historiografia brasileira que estende a todo o Antigo Regime as intenes centralizadoras dos finais do sc. XIX, retroprojectando, por isso, uma oposio Brasil-Metrpole de que no fcil falar antes da dcada 70 do sc. XVIII; antes, encontram-se tenses vrias: anti-fiscalismo, princpio do indigenato no provimento dos cargos, sentimentos contra o novo emigrante, localismo, anti-urbanismo, decadentismo e restauracionismo de uma poca de ouro j passada, sentido de inferioridade intelectual (v. alguns destes tpicos em Mota, 1996 (4 ed.).

Do lado portugus, um artigo de Lus Filipe Thomaz, hoje clssico, renovou a historiografia poltica do imprio portugus, sobretudo do oriental, embora sem ligao com o novo contexto terico da historiografia poltica moderna, inicialmente descrito. Cf Antnio Manuel, & Santos, Catarina Madeira Santos, Os poderes num imprio ocenico; com mais detalhes, Antnio Manuel Hespanha, Panorama da histria institucional e jurdica de Macau, cit..2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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4.1 Um projecto colonial ? O primeiro facto que deve ser realado a inexistncia de um modelo ou estratgia gerais para a expanso portuguesa. Existem, evidentemente, vrios tpicos usados incidentalmente no discurso colonial para justificar a expanso. Um deles era a ideia de Cruzada e de expanso da f. Mas, a par dele, vinha o do engrandecimento do rei ou o das finalidades do comrcio metropolitano ou, mais tarde, de populao. No entanto, este conglomerado no era harmnico, sendo que cada tpico levava frequentemente a polticas diferentes ou mesmo opostas. Aparentemente, o equilbrio dos vrios mudava com os tempos e com os lugares. As praas de Marrocos eram frequentemente justificadas por razes cavaleirescas e cruzadsticas, tambm invocadas em relao ndia, mas raramente presentes na justificao da expanso sub-sahariana, macaense ou brasileira. Pelo contrrio, os interesses mercantis, o proselitismo religioso e, mais tarde, os intuitos povoadores ou de drenagem demogrfica constituam, sucessivamente a justificao oficial da colonizao do Brasil. Os estabelecimentos de frica no mereceram uma detida literatura de legitimao; mas a evangelizao e a manuteno da paz eram a cobertura ideolgica oficial para a colonizao africana, sempre que esta no era simplesmente justificada com a prioridade histrica da chegada dos portugueses ou com os meros interesses econmicos do trfico negreiro. Assim, parece que no existe uma estratgia sistemtica abrangendo todo o imprio, pelo menos at aos meados do sc. XVIII 32. 4.2 A moldura institucional: falta de homogeneidade, de centralidade e de hierarquias rgidas. 4.2.1 Um estatuto colonial mltiplo. Uma descrio institucional da expanso portuguesa confirma este quadro atomstico 33. Realmente, embora os estabelecimentos coloniais portugueses tenham estado sempre ligados metrpole por um lao de qualquer tipo, faltou, pelo menos at ao perodo liberal, uma constituio colonial unificada 34. Desde logo, faltava um estatuto unificado da populao colonial. Alguns, os nascidos de pai portugus, eram naturais (Ord. fil., II, 55), gozando de um estatuto pleno de portugueses, usando o direito portugus e estando sujeitos s justias portuguesas. Outros eram estrangeiros, libertos da obedincia ao governo e ao direito portugueses 35. A sua nica obrigao era a de aceitarem a pregao e o comrcio; mas isto decorria, no de qualquer sujeio ao direito portugus, mas de normas do direito das gentes. Esta situao de naes livres vizinhas era muito instvel, j que os colonos usavam de qualquer pretexto para

A. J. R Russel-Wood., The Portuguese Empire, cit., 240. Cf. A. M. Hespanha, Panorama da histria institucional e jurdica de Macau, cit., maxime 9-37. 34 Mesmo ento, o estatuto constitucional de alguns dos territrios coloniais no era claro. 35 Tal era o caso dos ndios bravos brasileiros ou dos sobas amigos mas no vassalos de Angola.33 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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as reduzir obedincia por meio de uma guerra justa 36. Entre naturais e estrangeiros, existiam situaes diversas. Primeiro, a dos vencidos na guerra (justa), cujo destino dependia dos vencedores. De acordo com as leis da guerra, podiam ser mortos, reduzidos a cativeiro ou mantidos sob um regime mais ou menos duro de sujeio legal ou fiscal 37. Era o que se passava com os reinos angolanos de Ngola 38 ou com as naes Tapajs ou Tapuia 39. Finalmente, o estatuto daqueles que celebravam com o rei de Portugal um tratado de vassalagem; a sua integrao na ordem poltica ou jurdica portuguesa estava a fixada, podendo variar muitssimo. As instituies polticas nativas eram frequentemente preservadas, como instncias de mediao com o poder portugus. Por vezes, portugueses assistiam as autoridades locais (como em certas cidades indianas ou sobados africanos). No Brasil, portugueses de bons costumes eram enviados como capites das aldeias para governar as aldeias ndias, j que a capacidade dos nativos para se auto-governarem era tida como problemtica 40. Esta heterogeneidade de laos polticos impedia o estabelecimento de uma regra regular de governo, ao mesmo tempo que criava limites ao poder da coroa ou dos seus delegados. 4.2.2 Um direito pluralista. Um corpo geral de direito tambm faltava. Vrios so os factores que podem ser chamados a explicar o pluralismo e a inconsistncia do direito colonial moderno. O primeiro deles decorria da prpria arquitectura do direito comum europeu, baseada no princpio da preferncia das normas particulares (como os costumes locais, os estilos de decidir dos tribunais locais, os privilgios; numa palavra, os iura propria) s normas gerais (como a lei ou a doutrina jurdica geral, ius commune) 41. Para alm disso, o princpio de que a lei posterior revoga a anterior (lex posterior revogat priorem) no vigorava de forma muito rigorosa, j que os direitos adquiridos sombra do anterior regime podiam ser opostos ao

Detalhes sobre o regime de declarao de guerra justa em A. M. Hespanha, Antnio Manuel Hespanha, The constitution of Portuguese empire. Revision of current historiographical biases, cit. bibl. final. 37 Cf. Antnio Manuel Hespanha, Os africanos no Tratado da Justia e do Direito, de Lus de Molina, S.J., a ser publicado em Anlise social, 2001. 38 Antnio da Silva Rego, The Portuguese colonization in the 16th century: a study of the royal ordinances (Regimentos), cit.; Antnio Manuel Hespanha, Os africanos no Tratado da Justia e do Direito, de Lus de Molina, S.J., a ser publicado em Anlise social. 2001. 39 Pedro Puntoni, A guerra dos brbaros [...], cit.. 40 Lei de 13.11.1611, n. 4, em Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 325; v. tambm Andr Vidal de Negreiros (1655), ns. 43 ss., em Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., II, 710. 41 Antnio Manuel Hespanha, Panorama histrico da cultura jurdica europeia, cit., 9298.2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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novo e quaisquer decises reais que os judicialmente 42.

violassem podiam ser anuladas

Depois, a incoerncia do sistema jurdico derivava tambm de algo que j foi evocado a constituio pluralista do imprio, em que cada nao submetida podia gozar do privilgio de manter o seu direito, garantido por tratado ou pela prpria doutrina do direito comum, de acordo com a qual o mbito de um sistema jurdico era marcado pela naturalidade. Da que o direito portugus s se aplicasse aos naturais (Ord. fil, II, 55), governando-se os nativos pelo seu direito especfico. Isto quer dizer que os juzes portugueses, ainda que tivessem jurisdio sobre os nativos, lhes deviam aplicar o seu prprio direito, excepto para casos em que estavam em causa valores supremos da ordem jurdica ou tica europeia, nomeadamente do foro religioso 43. Decerto, a subordinao dos juzes de primeira instncia a tribunais de recurso, que seguiam o direito oficial e letrado, podia deformar esta regra, nos casos de recurso. Assim como a presena das jurisdies do colonizador, oferecia aos nativos a possibilidade de recorrer tambm a este direito contra as suas normas tradicionais, o que constitua um importante factor de desarticulao da lgica poltica e jurdica autctones 44. Mais do que uma verso estrita do direito nativo, o que tendia ento a vigorar na prtica era uma espcie de justia crioula. De qualquer jeito, criava-se uma ilha de direito autnomo e no oficial.45. A inconsistncia do sistema poltico-jurdico decorre, finalmente, da prpria natureza da alta administrao colonial, ainda mais claramente pluralista na sua base 46. 4.2.3 Uma estrutura administrativa centrfuga. 4.2.3.1 Vice-reis e governadores. Se a centralizao no pode ser real sem um quadro legal geral, to pouco pode ser efectiva sem uma hierarquia estrita dos oficiais, por meio da qual o poder real possa chegar periferia. Da que a eficincia da centralizao poltica derive, por um lado, da existncia de laos de hierarquia funcional entre os vrios nveis do aparelho administrativo e, por outro, negativamente, do mbito dos poderes dos oficiais perifricos ou da sua capacidade para anular, distorcer ou fazer seus os poderes que recebiam de cima. Um relance sobre a autonomia dos poderes na hierarquia poltica imperial , ento, decisivo. De acordo com a doutrina da poca, os governadores gozavam de um poder extraordinrio (extraordinaria potestas) 47, semelhante ao dos supremosA. M. Hespanha, As vsperas do Leviathan [...], cit., 472 ss.. Cf. A. M. Hespanha, The constitution of Portuguese empire. Revision of current historiographical biases, cit.. 44 Cf. Sanjay Subrahmanyam, O romntico, o oriental e o extico: notas sobre os portugueses em Goa, 34-35. 45 Detalhes, A. M. Hespanha, The constitution of Portuguese empire. Revision of current historiographical biases, cit.. 46 Cf., para o Brasil, as justas consideraes de Prado Jnior, 2000, 310.43 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00) 42

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chefes militares (dux). Tal como o prprio rei, podiam derrogar o direito em vista de uma ainda mais perfeita realizao do seu mnus. Nos regimentos que lhes eram outorgados 48 estava sempre inserida a clusula de que poderiam desobedecer ao regimento, sempre que uma avaliao pontual do servio real o justificasse. Da que, apesar do estilo altamente detalhado das clusulas regimentais e da obrigao de, para certos casos, consultarem o rei ou o Conselho Ultramarino, os vice-reis e governadores gozavam, de facto, de uma grande autonomia. Esta autorizao para criar direito ou, pelo menos, para dispensar o direito existente era uma consequncia normal da natureza das funes de governo ultramarino que lhes eram confiadas. De facto, eles lidavam, por um lado, com matrias mutveis, tal como as militares e martimas 49. Por outro lado, o seu contexto poltico no era o mundo estabilizado da poltica dos reinos europeus, em que a justia e o governo estava enraizados em tradies estveis e duradouras e formalizados em processos e frmulas fixados pelo tempo. Pelo contrrio, eles actuavam num mundo estranho e no balizado, ele prprio subvertido nos seus estilos pela erupo dos europeus, um mundo em mudana, semelhante ao que Maquiavel descrevia no seu famoso tratado, em que a justia tinha que ser criada, ex novo, pela vontade do prncipe, tirando partido da oportunidade e das mutveis circunstncias dos tempos. Por fim, os governadores ultramarinos estavam isolados da fonte do poder por viagens que chegavam a levar anos, tendo necessidade de resolver sem ter que esperar a demorada resposta s suas demoradas perguntas 50. Numa carta para o rei, Pero Borges, ouvidor geral do Brasil nos meados do sc. XVI (7.2.1550), escrevia Esta terra, Senhor, para se conservar e ir avante, h mister no se guardarem em algumas coisas as Ordenaes, que foram feitas no havendo respeito aos moradores delas [...] acontecem mil casos que no esto determinados pelas Ordenaes, e ficam ao alvedrio do julgador, e se nestes se houver de apelar, no se pode fazer justia [...]) 51. Assim, em regimentos sucessivos dados aos governadores do Brasil sempre se declarou que eles poderiam decidir os casos no previstos nos seus regimentos, aps conferenciarem com o Bispo, o Chanceler da Relao da Baa e o Provedor da

47 Sobre o estatuto poltico dos vice-reis, A. M. Hespanha, Panorama da histria institucional e jurdica de Macau, cit.,, 25-27; anlise mais detalhada, Catarina Madeira Santos, Goa a chave de toda a ndia, cit., 35 ss.. 48 Sobre estes regimentos, v., Catarina Madeira Santos, Goa a chave de toda a ndia, cit., 35 ss.., 37. Indicaes de fontes, para a ndia e Brasil, A. M. Hespanha, The constitution of Portuguese empire. Revision of current historiographical biases, cit.. 49 E porque as cousas do mar so incertas e h casos que se no podem prevenir antecipadamente: hei por bem que Vs, com o Almirante da dita frota, auditor, e sargento-mor, e capito de mar e guerra da capitania, disponham, nos tais casos, o que se vencer por mais votos ..., reg. de Salvador Correia de S, 35.3.1644, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., II, 621. 50 Quanto mais longe apartado esse Estado est de minha presena quanto mais carrego sobre vs a obrigao deste ponto [da justia], Reg. de Andr Vidal de Negreiros, governador e capito geral do Estado do Par e Maranho, 14.4.1655, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., II, 702 (d. 9). 51 Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 57. 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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Fazenda Real, numa curiosa combinao que torna manifestas as razes do Estado religio, justia e fazenda 52 Para alm da justia, tambm a graa constitua um atributo real 53, que permitia agir contra o direito (dispensar a lei), em ateno a uma justia excelsa e acima daquela que estava contida no rigor do direito. Aparentemente, a instituio da vice-realeza obedeceu ao propsito de dotar os governadores ultramarinos com uma dignidade quase real, permitindo-lhes o exerccio de actos de graa, tal como concesso de mercs, dada de ofcios, outorga de rendas, perdo de crimes 54. Porm, mesmo os simples governadores recebiam atribuies deste tipo, embora em escala mais restrita 55. 4.2.3.2 Donatrios, governadores locais e juzes. O que acaba de se dizer sobre a autonomia de vice-reis e governadores pode ser dito tambm de nveis inferiores, embora a fundamentao doutrinal e as razes polticas no sejam as mesmas. No Brasil, os capites donatrios e, mais tarde, os governadores das capitanias tinham tambm um larga autonomia de deciso. certo que, a partir de 1549, o governador geral era a cabea do governo do Estado, gozando de supremacia sobre donatrios e governadores das capitanias, devendo estes obedecer-lhes e dar-lhes conta do seu governo (cf. res. 16.5.1716, prov. 26.10.1722, CR. 14.11.1724). No entanto, esta dependncia ficava bastante limitada pelo facto de que, simultaneamente, eles deviam obedincia aos secretrios de Estado em Lisboa. Esta dupla sujeio criava um espao de incerteza hierrquica sobre o qual os governadores locais podiam criar um espao de poder autnomo efectivo. Da que a relao hierrquica entre o governador geral (ou vice-rei) e os governadores locais podia ser descrita, ainda nos incios do sc. XIX, da forma seguinte: os governadores das capitanias eram autnomos no que respeitava ao governo local (econmico) das suas provncias, estando sujeitos ao governador geral apenas em matrias que dissessem respeito poltica geral e defesa de todo o Estado do Brasil 56. A mais importante das atribuies dos donatrios, mais tarde dos governadores locais, era a concesso de sesmarias, a forma mais tradicional, contnua e decisiva de concesso de terras no Brasil (cf., v.g., Reg. Tom de

52 Cf. Reg. Francisco Geraldes de 1588, n. 48, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit.,1972, I, 276; reg. Gaspar de Sousa, 6.10.1612, n. 57, ibid., I, p. 435 (id. Reg. Andr Vidal de Negreiros, 1655, ibid., II, 710, n. 40.). Para a ndia, a situao era idntica, cf. Catarina M. Santos, Goa a chave de toda a ndia, 53. 53 A. M. Hespanha, Histria de Portugal moderno, cit., 215 ss..; sobre o uso da graa pelo vice-rei, Catarina M. Santos, Goa a chave de toda a ndia, 55 ss.. 54 Catarina M. Santos, Goa a chave de toda a ndia, 50 ss.. 55 Detalhes sobre as atribuies de graa dos governadores do Brasil, A. M. Hespanha, The constitution of Portuguese empire [...], cit.. Sobre o regime das mercs, nomeadamente de hbitos de ordens militares no ultramar, v. Maria Fernanda Olival, Honra, merc e venalidade [...],127 ss., 168 ss. 56 Cf. Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., II, 805-807. 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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Sousa, 1549, caps. 8/10)57. Os ouvidores dos donatrios deviam inspeccionar a legalidade da concesso e do uso da terra, depois de concedida. Com a contnua incorporao das capitanias na administrao directa da coroa, seja por vacatura, seja por compra, a concesso das sesmarias passou a competir aos governadores das capitanias, enquanto que a inspeco da legalidade era cometida a juzes demarcantes letrados propostos pelas cmaras 58. Resumindo, podemos dizer que um dos actos de poder mais importantes numa colnia de plantao a concesso de terras para agricultar dependia dos governadores das capitanias, enquanto que a avaliao sucessiva da legalidade do uso da terra pelos sesmeiros estava a cargo de magistrados mais ou menos dependentes das elites locais 59. Tambm no domnio da justia, era central o papel dos governadores e dos seus ouvidores que, de acordo com as primeiras doaes de capitanias, gozavam de plena jurisdio criminal e de uma vasta jurisdio cvel (at 100 000 rs.) em relao aos escravos, nativos e pees 60. Jurisdio que s veio a ser parcialmente restringida (nomeadamente, no crime, relativamente a ingnuos) pela criao do governo geral, em 1549. Nos nveis mais baixos da administrao, nomeadamente em matrias de justia, surgem novos factores de incoerncia e autonomia, originadas pelas deformaes, intencionais ou no, do direito, s mos de pessoas simples e ignorantes, que no sabem ler nem escrever, facilmente corrompidas ou assustadas pelos poderosos das terras. Frequentemente, os capites nomeavam condenados (degredados, desorelhados) 61. como ouvidores, situao que se manteve continuadamente 62. Magistrados locais deste tipo eram comuns em todo o imprio. Mas sua funo de periferizao do poder somava-se tambm a dos altos tribunais coloniais.

57 Base legal: Ord. fil., IV,43,13; para o enquadramento doutrinal, Jorge de Cabedo, Practicarum observationum [...], cit., II, dec. 112. Detalhes, A. M. Hespanha, The constitution of Portuguese empire [...], cit.. 58 Cf. Res. 27.11.1761 (cit. em Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., II, 780 ss.). 59 Sobre concesses mineiras, v. Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 295. 60 Cf. cf. carta de doao a Duarte Coelho, 25.9.1534, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 131 ss. (jurisdies, 132); mais tarde, reg. ouvidores gerais, 11.3.1669, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 83. 61 Carta Pero Borges, ouvidor geral do Brasil, para o rei (7.2.1550), ns. 3-4, 7, 12, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 53 ss.. 62 Sou informado que por a povoao do Rio Grande ir em crescimento e no haver nela modo de governo, nem quem administrasse a justia, e haver disso algumas queixas, e os Capites estarem absolutos, Reg. Gaspar de Sousa, 1612, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, n. 10, p. 416. Picturesque examples of the kind of khadis justice common in the periphery: Altavila, 1925 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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4.2.3.3 Relaes e desembargadores. As Relaes coloniais v.g., as de Goa, Baa e Rio de Janeiro tinham prerrogativas semelhantes aos tribunais supremos do reino (Casa da Suplicao, Casa do Cvel). A doutrina jurdica considerava-os como tribunais soberanos, colaterais, camarais, cujo presidente natural era o rei 63. As suas decises tm a mesma dignidade das decises reais, no podendo, no entanto, ser revogadas ou restringidas por actos rgios. Da que a administrao da justia, quer pelos ouvidores quer pelas Relaes, constitusse uma rea bastante autnoma e auto-regulada, no apenas porque os governadores no podiam controlar o contedo das decises judiciais, mas ainda porque os seus poderes disciplinares sobre os juzes eram dbeis e efmeros 64. Salientar a autonomia das Relaes muito mais do que um detalhe histrico. Desde o estudo clssico de Stuart Schwartz sobre a Relao da Baa 65, sabemos como eram fortes a solidariedades entre os seus desembargadores e as elites coloniais, nomeadamente a dos senhores de engenhos. Da que os juzes fossem muito mais do que simples tcnicos de direito, esforados aplicadores do direito rgio. Muito frequentemente, eles veiculariam com eficincia os interesses dos poderosos locais, no julgamento de questes to estratgicas como a interpretao de cartas de doao, a revogao de sesmarias, a instituio, sucesso ou desmembramento de propriedade vinculada (morgados e capelas). Podemos ento entender como estes rgos podiam funcionar como factores de periferizao da poltica colonial. Mas, mais do que isso. O regime estabelecido para a sindicncia dos governadores e vice-reis reala ainda mais a importncia das Relaes. De facto, um alvar rgio de 9.4.1623 atribuiu s Relaes, nomeadamente na ndia, a competncia tomar residncia aos governadores cessantes, embora isto tenha desencadeado dura polmica, j que os governadores se sentiam diminudos por esta supremacia outorgada s Relaes, para alm de que temiam os seus resultados prticos, numa altura em que j nem sequer se encontravam na colnia para organizar (ou manipular) a sua defesa 66. 4.2.3.4 Cmaras municipais. Os desembargadores eram apenas uma das vias que as elites locais usavam para colonizar a administrao. Outra das vias eram as cmaras, com as quais os

Cf. A. M. Hespanha, Histria de Portugal moderno , cit., 235 ss.. Na ndia e no Brasil, o Governador, como alter ego do rei, servia como Presidente da Relao (Reg. Relao da Baa, 7.3.1609: Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 385 ss.). 64 Cf. reg. Gaspar de Sousa, 6.10.1612, n. 46, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, p. 431. 65 Stuart Schwartz, Sovereignty and society in colonial Brazil. The High Court of Bahia and its judges, 1609-175, cit... 66 Resumo da discusso, em Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., II, 826. Mais detalhes, em A. M. Hespanha, The constitution of Portuguese empire [...], cit..2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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governadores mantinham frequentes conflitos 67. O exemplo porventura mais interessante o da cidade de Macau, no Sul da China. O municpio de Macau foi criado por volta de 1584, tendo o imperador Wan Li (1583-1620) atribudo o ttulo de mandarim a um dos seus vereadores, o Procurador da Cidade, dando-lhe o direito de julgar a populao chinesa. A cmara de Macau (Leal Senado) actuava, de facto, como um mediador remoto entre dois imprios, sempre na ptica dos interesses das elites locais, A sua independncia, mesmo no plano diplomtico, era notvel. Mantinha relaes directas com o vice-rei (Sunt) de Canto e controlava todo o trnsito polticodiplomtico, com o Extremo Oriente, incluindo as Molucas e o Japo. Isto permitiu uma fase urea de relaes com o imprio espanhol do Oriente e, atravs das Filipinas, com o imprio espanhol das Amricas, mesmo durante a guerra da Aclamao (1640-1688) 68. O principal esforo da poltica da coroa portuguesa em relao a Macau, desde os finais do sc. XVIII, foi o de reduzir o Leal Senado s dimenses de uma simples cmara municipal, o que s se consumou em meados do sc. seguinte 69. 4.2.3.5 Oficiais e servidores. A administrao do Brasil que constitui o exemplo mais importante de uma colnia de plantao, com uma populao residente enraizada e socialmente bem estruturada conheceu uma outra forma singular de combinar interesses sociais e poderes administrativos, a venalidade dos ofcios. A monarquia portuguesa nunca admitiu o princpio de que os cargos pblicos podiam ser vendidos, ao contrrio do que aconteceu com os exemplos tpicos da Espanha e de Frana. A venda privada de cargos era formalmente proibida (Ord. fil., I, 96 [venda pelos titulares]; II, 46 [venda por aqueles que tinha o poder de prover ofcios]); embora seja mais do que provvel que a maior parte das renncias nas mos do rei encobrissem vendas. A venda de ofcios pela coroa tambm estava excluda, embora apenas por lei especial (cf. CL 6.9.1616), sendo considerada como no admissvel pela doutrina da poca 70. Durante os anos 20 e 30 do sculo XVII, bem como depois de 1640, a condenao da venda dos ofcios era um tpico corrente na literatura anti-filipina 71. A patrimonializao dos ofcios existia, mas antes sob a forma de atribuio de67 Cf., panorama bibliogrfico; Ch. R. Boxer, Portuguese society in the tropics [...]; Nanci Leonzo, Instituies administrativas, em Maria Beatriz Nizza da Silva, O Imprio lusobrasileiro [...], cit., 321 ss., 1986, 321 ss.; Francisco Bethencourt, Histria da expanso [...], cit.1998, II, 343-361; III, 270-280. Sobre a Cmara de Goa e seus privilgios, Maria de Jesus dos Mrtires Lopes, Goa setecentista [...], cit.. 68 A. M. Hespanha, Panorama da histrica jurdica e institucional de Macau, cit., 22, 76 s.. Considerando, enfaticamente, Macau como uma repblica mercantil, Almerindo Lessa, Anthropologie et anthroposociologie de Macau.cit.. 69 A. M. Hespanha, Panorama da histrica jurdica e institucional de Macau, cit., 22, 76 s.., 54-56. 70 Cf. A. M. Hespanha, As vsperas [], 513; divergindo, com escassos fundamentos, para o caso especfico da venda de ofcios, Maria Fernanda Olival, Honra, merc e venalidade [...], cit., 245 ss.. 71 Faziam pratica neste reino coisa nunca vista entre portugueses: venderem-se a quem mais dava os ofcios que antigamente se davam de graa, Arte de furtar, cap. XVII). 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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direitos sucessrios aos filhos dos oficiais que tivessem servido bem; e era justamente o reconhecimento destes direitos que, provavelmente, obstaculizava de forma decisiva a venalidade, j que a coroa no podia vender os ofcios vacantes, sem violar estes direitos de sucesso, ao contrrio do que acontecia com a concesso de hbitos ou de foros de fidalguia 72. A situao no Brasil evoluiu, porm, num sentido diferente. O primeiro regimento de governo 73 proibia a criao de novos ofcios pelos governadores com base numa disposio das Ordenaes que reservava para o rei a criao de ofcios (cf Ord. fil., II, 26, 1; II, 45, 1,3,13, 15, 31). Para os ofcios j existentes, os governadores podiam nomear serventias, mas no d-los em propriedade. Em causa, no estava apenas o privilgio real de dada de ofcios 74, mas ainda o j referido direito dos filhos 75. Porm, no incio do sc. XVIII, o regime comeou a mudar. Um decreto real 76 estabeleceu que os novos ofcios (criados ou a criar, excludos os da fazenda) fossem dados a quem tivesse oferecido um donativo fazenda. No fundo, tratava-se de uma espcie de servio, que justificaria a merc do ofcio, nos quadros de uma lgica j conhecida. Mais tarde, o regime do donativo veio a ser estendido a todos os ofcios, mesmo os antigos (Prov. 23.12.1740). Da para o futuro, os ofcios foram vendidos em leilo, a quem mais oferecesse, segundo aquilo a que se chamou o direito antidoral e consuetudinrio 77. Depois de hesitaes legislativas vrias nas dcadas de 60 e 70, o sistema dos donativos foi restaurado em 1799 (CR. 11.12) para as serventias dos ofcios de justia. Esta informao est contida num comentrio ao regimento dos governadores do Brasil, da autoria de um vice-rei do incio do sc. XIX 78; aqui tambm dito que a prtica brasileira sobre ofcios era semelhante usada em quase todas as colnias do ultramar. Ou seja. Desde o incio do sc. XVIII que a propriedade ou, pelo menos, as serventias de todos os ofcios de justia (notrios e escrives, nomeadamente) estavam disposio das elites econmicas das colnias,

72 No entanto, existiam tambm obstculos de natureza ideolgica, como a condenao da simonia (v. A. M. Hespanha, As vsperas [...], 498 ss.).. 73 Cf., v.g., reg. Francisco Geraldes, 30.5.1588, n.45, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 275; reg. Gaspar de Sousa, 6.10.1612, n. 44, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 431; reg. Roque da Costa Barreto, 23.1.1677, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., II, 753. Em contrapartida, os primeiros capites donatrios tinham o direito de criar e prover os ofcios: carta de doao de Duarte Coelho, 25.9.1534, Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., I, 133. 74 A. M. Hespanha, As vsperas [...], 398 ss.. 75 Cf. ibid., n. 43, p. 430. 76 D. 18.5.1722, transmitido por Proviso 23.9.1723 (Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., II, 754). 77 Por antidoral entende-se o dever que se funda na gratido; no o que decorre de um acto sinalagmtico ou mercenrio, como a compra e venda (cf. Bartolom Clavero, Antidora [...], cit.]1991). J o termo consuetudinrio usado nos meados do sc. XVIII para designar as normas do regime dos ofcios que no obedecem ao padro moderno do ofcio como cargo no patrimonializado. Da que fosse consuetudinrio de acordo com a Legislao de Pombal relativa a ofcios (CL, 23.11.1770, Alv. 20.5.1774 os direitos dos filhos aos ofcios dos pais. Sobre a nova concepo dos ofcios, cf. Freire, 1789, I, 2, 20) 78 D. Francisco Jos de Portugal, que anotou o regimento dado a Roque da Costa Barreto (1677): Marcos Carneiro de Mendona, Razes [...], cit., II, 756. 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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nomeadamente do Brasil. A importncia deste facto no pode ser desconhecida ou subestimada. No sobretudo por causa do rendimento que a propriedade dos ofcios produzia 79; mas antes pela centralidade destes ofcios num ambiente poltico-cultural que j foi designado de civilt della carta bollata. Neste tipo de cultura poltica que era o da Europa moderna e das suas colnias os documentos escritos eram decisivos para certificar matrias decisivas, desde o estatuto pessoal aos direitos e deveres patrimoniais. As cartas rgias de doao (v.g., de capitanias) ou de foral, as concesses de sesmarias, a constituio e tombo dos morgados, as vendas e partilhas de propriedades, os requerimentos de graas rgias, a concesso de mercs, autorizaes diversas (desde a de desmembrar morgados at de exercer ofcios civis), processos e decises judiciais, tudo isto devia constar de documento escrito, arquivado em cartrios que se tornavam nos repositrios da memria jurdica, social e poltica. Tudo aquilo que importava nesta sociedade tinha que deixar traos a. Em contrapartida, a preservao, extravio, manipulao ou falsificao de documentos tinha um enorme significado poltico. Neste contexto, j se imagina a amplitude das lutas para o controlo dos arquivos e dos cargos da justia, bem como os investimentos que os poderosos estariam interessados em fazer na sua compra ou arrendamento, quer para desempenho prprio, quer para beneficiar apaniguados. De facto, parece que muitas compras se destinavam justamente a remunerao de favores ou a actos de proteco; com o que, alm do mais, se recebia em troca a garantia de que os papis, cmodos ou incmodos, estavam em boas mos. 4.3 Concluso. O quadro acima no esgota a imagem dos equilbrios polticos entre a metrpole e as colnias, durante a poca moderna. Na verdade, ele apenas fornece um rastreio dos nichos institucionais de onde o poder pode ser construdo, descrevendo brevemente as virtualidades polticas de cada um deles. De certa forma, trata-se de um quadro vazio, tal como a descrio de um tabuleiro de xadrez e das suas peas. Quase nada fica dito sobre o modo como num jogo concreto as peas se animam e com elas se constroem estratgias. No entanto, to pouco um jogo real se pode entender sem esta descrio puramente formal. Resta esclarecer que mesmo esta descrio formal est incompleta, pois nada se disse sobre outros planos de institucionalizao da vida colonial, como a Igreja, a administrao militar, a fazenda. Seja como for, parece difcil sustentar a partir do quadro descrito a tradicional imagem de um imprio centrado, dirigido e drenado unilateralmente pela metrpole. Esta agonia dos enviesamentos imperialistas vai obrigar reviso de uma grande quantidade de trivialidades pouco consistentes sobre o imperialismo e explorao metropolitanos ou a reduo das tenses polticas no Brasil colonial tenso entre a colnia e o reino. O que leva, por sua vez, a exagerar as rupturas da independncia.Para Portugal, sobre rendas de oficiais de justia, cf. A. M. Hespanha, As vsperas do Leviathan [...], 170 ss.2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00) 79

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5. Estruturas do imaginrio e conjuntura poltica a revoluo de 1640. O chamado perodo filipino e da Restaurao de 1640 outro bom momento para se estudar o confronto entre os dois paradigmas de governo tradicional-corporativo, moderno-estadualista a que nos referimos no incio deste texto. At porque re-colocar a questo nestes novos termos contribui para analisar a pr-compreenso do processo histrico e dos mecanismos politico-sociais do Antigo Regime sobre os quais repousa a tradio historiogrfica portuguesa 80. A primeira componente desta pr-compreenso constituda por uma leitura nacionalista da Histria. Quaisquer que sejam os mritos polticos do nacionalismo nos dias de hoje, j se tornou claro desde h muito, para a historiografia da Europa pr-revolucionria, que o recurso a um sentimento nacional como chave interpretativa levanta mais problemas do que aqueles que pode resolver 81. Concretamente, para a histria de 1580 e de 1640. Apesar dos testemunhos - frequentes j para o sculo XVI - de animosidade contra os castelhanos, o que certo que o sculo XV foi, no plano politico, um sculo de dares e tomares entre Castela e Portugal, pontilhado de projectos de unio, de sentido variegado, no seio de um vasto movimento de recomposio do espao politico ibrico. No sculo XVI, por sua vez, o intercambio cultural entre Espanha e Portugal, fomentado por uma ideia humanista da unidade da Hispania, foi intensssimo. O prprio Cames - de quem a historiografia romntica vulgariza o dito de que morreria contente, porque morreria com a Ptria - usa indistintamente o portugus e o castelhano. Mas a esta indiferenciao lingustica das camadas cultas haveria que juntar a imensidade de perfis biogrficos e acadmicos de artistas, professores universitrios, pilotos, mercadores e financeiros que frequentam indistintamente os dois reinos.

80 Tambm a historiografia espanhola no est liberta das suas pr-compreenses; vejase, por exemplo, o tom castelhanista do livro de Rafael Valladares, La rebelin de Portugal. 1640-1680. Guerra, conflito y poderes en la monarquia hispnica, Valladolid, Junta de Castilla y Len, 1998. 81 Martim de Albuquerque, A conscincia nacional portuguesa [...] 1974, 280 ss., que defende a existncia, em Portugal, de um sentimento de Estado nacional a partir dos finais do sculo XIV. Como, de resto, bem nota este A., a ideia, quando na poca esboada (e no o nem num primeiro plano da discusso nem de forma explcita e aberta), aparece sempre por forma indirecta, ou integrada na discusso da legitimidade (i.e., da ordenao do poder real ao bem comum, que seria mais difcil se o rei fosse estrangeiro), ou ligada ao tpico do carcter natural e imperecvel do reino e da casa real (que seria posto em perigo pela sua anexao ao senhorio de outro rei, sobretudo se ele fosse rei de reinos maiores). Estes, sim, so temas centrais da teoria (mesmo, da antropologia) poltica medieval e moderna. No j o tema do nacionalismo, que - apesar do impacto prtico que podia ter na conjuntura portuguesa de ento - carecia do estatuto terico que apenas receber com a teoria poltica revolucionria e romntica. 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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Que, em 1580, a diviso dos partidos no coincide, de modo algum, com divises nacionais coisa que se tornou clara depois dos estudos de Vitorino Magalhes Godinho e, mais recentemente, de Fernando Bouza Alvarez. Tal como foi sugerido por Jos Mattoso j para a crise dinstica de 1385, tambm em 1580 a 1gica da formao dos blocos polticos (que no eram, rigorosamente, apenas dois, o portugus e o espanhol) no era nacional, tendo antes que ver com fidelidades grupais, com convices jurdico-ideolgicas, com interesses polticos de segmentos particulares da sociedade portuguesa (o clero, os senhores, os crculos mercantis), com projectos de integrao dos espaos econmicos ultramarinos, etc.. E, do mesmo modo, tambm os espanhis no sufragavam unanimemente a unio, na qual alguns entreviam riscos graves para interesses gerais ou particulares. Perante isto, a explicao dada tradicionalmente para a adeso de uma importante parte dos grupos dirigentes e dos fazedores de opinio (nomeadamente, dos juristas) ao partido espanhol - a famosa compra - tem que ser posta de parte, como uma explicao muito redutora da complexidade dos motivos dos grupos que, a propsito da unio, se confrontaram. No plano da discusso poltica ento desenvolvida sintomtico que a questo da naturalidade do rei nunca tenha sido confundida com a da sua legitimidade e que aquela tenha estado sempre subordinada a esta. Na verdade, reis no naturais era coisa que no faltara nunca no panorama politico europeu, sendo, portanto, impossvel que a teoria jurdica e poltica da legitimidade do poder real se apoiasse decisivamente neste tema. O principio do indigenato (ou seja, a reserva dos ofcios para os naturais) desenvolveu-se, sobretudo, para garantir aos vassalos de reis que fossem senhores de vrios reinos, uma preferncia (ou uma reserva) dos ofcios do seu reino; ou at, num mbito politico mais limitado, para garantir essa reserva aos cidados de uma cidade frente a aliengenas. A naturalidade dos reis, essa era um elemento desejvel, na medida em que promovia o amor entre o rei e os vassalos e, com isto, facilitava o correcto desempenho do ofcio de reinar. Num contexto histrico em que a teoria do poder e a prtica poltica estava ainda profundamente dominada pelo paradigma patriarcal, nunca de mais encarecer os elementos simblicos que decorrem destas aproximaes entre a naturalidade dos laos domsticos no seio da casa e a naturalidade dos laos senhoriais no seio do reino. Mas convm no esquecer, porque ento tambm no se esquecia, que a naturalidade no provinha tanto do lugar do nascimento ou da nao dos pais (que domina a actual teoria da nacionalidade) como da ligao, pelo sangue, dinastia predecessora (que dominava a teoria feudal-senhorial da legitimidade do poder). Provada a legitimidade da sucesso, de acordo com a constituio tradicional do reino, estava cumprido o principal requisito de um governo legitimo. Realmente, e antes de tudo, o problema da legitimidade coincidia com o problema da constitucionalidade do ttulo e da constitucionalidade do exerccio do poder 82. E o peso que nisto tinha a questo da nacionalidade era mnimo.

Sobre os conceitos e o seu contexto doutrinal, A. M. Hespanha, Qust-ce que la constitution [...], cit..2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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O mesmo se passava no domnio da reflexo sobre a prtica poltica onde, mais do que a naturalidade, contava a residncia no reino ou, em alternativa, a facilidade de comunicao (includa a lingustica) entre o rei e o reino 83. Nas primeiras quatro dcadas de governo dos monarcas Habsburgos em Portugal, a questo central de organizao do governo foi esta de garantir um fluente acesso ao rei. Procura garantir-se a sua residncia em Portugal; sendo impossvel, a de um filho seu ou parente prximo. Estabelece-se que o idioma de governo seja, em Portugal, o portugus. Que as cortes sejam celebradas em Portugal e, continuamente, pede-se que o rei visite o reino e pagam-se para isso somas avultadas. A histria do Conselho de Portugal, criado, sucessivamente reformado, extinto, restabelecido, , afinal, a histria das tentativas para organizar estes circuitos de comunicao de forma conveniente para as elites de poder (que, naturalmente, no h que confundir com o reino, no conjunto complexo dos seus interesses). Para uns, os que momentaneamente dominavam o Conselho, este era o instrumento indicado; para outros, os cortesos outsiders, mais convenientes eram instituies informais, como juntas em que tivessem lugar garantido; para os pretendentes no integrados nestas elites, o melhor era a comunicao directa com o rei, despachando emissrios para a corte de Madrid e evitando as despesas da praxe (em luvas e empenhos) com os intermedirios polticos do Conselho, do Governo de Lisboa e das secretarias. Estes ltimos eram, seguramente, os que mais insistiam na necessidade de um rei residente, mais, por certo, do que na de um rei natural. Ou seja, o nacionalismo, s por si, no teve virtualidades (activas) para desencadear ou a resistncia ou a revolta. O que parece provado, quer pelos eventos de 1580 quer pela cronologia dos movimentos anti-castelhanos nos anos 30 do sculo seguinte, que justamente este sentimento nacional permaneceu como um elemento passivo at que factos polticos concretos tenham ofendido interesses sociais (de diversa natureza, desde a econmica simblica) que, esses sim, provocaram a revolta. O nacionalismo ter actuado, neste caso, sobretudo como um cimento ideolgico do bloco social contestatrio, facilitando a compatibilizao de interesses e pontos de vista em si destoantes. Na Restaurao, tambm o pathos nacionalista tem que ser bastante problematizado. Em estudo recente, em que explorei os captulos particulares das cortes de 1641, pude comprovar como, nessa reunio do reino, celebrada no centro nevrlgico da revoluo, dois meses depois de ela ter tido lugar, os tpicos nacionalistas ou, de um modo geral, relativos grande poltica esto quase ausentes, ocupando o primeiro plano dos procuradores, nestas como em cortes anteriores, temas de poltica sectorial ou local, relacionados muito mais com a vida quotidiana do que com a mudana dinstica ou a recuperao da independncia 84. S para quem tenha do imaginrio poltico e dos mecanismos polticos seiscentistas uma representao anacronicamente prxima da dos dias de hoje aquilo que acaba de se dizer constituir um motivo de escndalo ou surpresa.

Sobre o tema, Fernando Bouza lvarez, Portugal en la Monarquia Hispanica [...], cit.. Antnio Manuel Hespanha, "La Restaurao portuguesa en los captulos de las cortes [...], cit..84 2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00)

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A histria institucional e poltica mais recente tem procurado mostrar, como j se disse, que os modelos de organizao e de representao do poder nas sociedades de antigo regime obedeciam a paradigmas completamente diferentes dos de hoje. Por um lado, a sociedade poltica era imaginada como um corpo em que a integrao das diversas partes num todo no comprometia a identidade e autonomia destas, tal como, no corpo humano, a harmonia do todo no prejudica a especificidade e auto-regulao dos diversos rgos. Pelo menos at ascenso de Olivares ao poder, este modelo constitucional compsito constituiu a matriz de representao e de organizao da Monarquia Catlica, em que a catolicidade do todo se procurava articular com o respeito da autonomia de cada parte. Ao ponto de que, apesar da fora da ideia de unidade na teoria da monarquia, se ficcionasse uma pluralidade de corpos msticos do rei, cada um correspondendo a um dos seus reinos. Exprimindo esta ideia, algumas representaes cartogrficas da Pennsula do perodo filipino mostram, sobre as capitais dos vrios reinos da Monarquia, figuras reais distintas, com as legendas correspondentes a cada reino, embora a do rei de Espanha tenha atributos iconogrficos denotando a sua hierarquia superior. Na titulao passa-se o mesmo. Mas, sobretudo, esse tambm claramente o esprito do estatuto de Tomar, bem como da poltica do Prudente - no grande e no pequeno. Saliente-se que este desenho constitucional corporativo ou pluralista no era funcional em relao a todos os interesses segmentares. No o era, desde logo, em relao a uma poltica dinstica, ou de potncia, por parte da coroa, no plano internacional. Mas tam