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19 AMANDA CRISTINA GOMES VIEGAS LÚCIO FLÁVIO, UM “PASSAGEIRO DA AGONIA”? IMAGENS E ETHÉ DE UM SUJEITO BIOGRAFADO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA 2013

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19  

 

 

 

 

 

AMANDA CRISTINA GOMES VIEGAS

LÚCIO FLÁVIO, UM “PASSAGEIRO DA AGONIA”?

IMAGENS E ETHÉ DE UM SUJEITO BIOGRAFADO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA

2013

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AMANDA CRISTINA GOMES VIEGAS

LÚCIO FLÁVIO, UM “PASSAGEIRO DA AGONIA”?

IMAGENS E ETHÉ DE UM SUJEITO BIOGRAFADO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado

em Letras da Universidade Federal de São João del-

Rei, como requisito parcial para a obtenção do título

de Mestre em Letras.

Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da

Cultura

Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social

Orientadora: Profa. Dra. Dylia Lysardo-Dias

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI

2013

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Banca Examinadora:

___________________________________________________

Profa. Dra. Dylia Lysardo-Dias - UFSJ

Orientadora

_____________________________________________________

Prof. Dr. William Augusto Menezes - UFOP

Titular

____________________________________________________

Profa. Dra. Suely da Fonseca Quintana - UFSJ

Titular

_______________________________________________ 

Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo

Coordenador do Programa de Mestrado em Letras

São João del-Rei, 30 de julho de 2013

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Aos meus pais, Benedito e Sílvia, por não medirem esforços para que eu chegasse até aqui.

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59  

AGRADECIMENTOS

À Profª. Drª. Dylia Lysardo-Dias, pela orientação baseada em confiança e

compreensão. Sou grata pelos seus valiosos ensinamentos e conselhos para minha

formação acadêmica.

Aos amigos da turma do “discurso” de 2011 e 2012, especialmente Vitor, Sabrina,

Fernanda, Carla, Tatiana e Eliane, pelos momentos felizes e “dramáticos” que

passamos pela caminhada.

À minha família: meus pais, meus irmãos (Sérgio, Sávio e Alessandra), minha

sobrinha (Bruna), pelo incentivo a continuar meus estudos e por sempre acreditarem

que eu seria capaz.

Ao Teófilo, pelo companheirismo, pelas palavras de incentivo e pela compreensão

da minha ausência nesses dois anos de estudo.

Aos amigos de longa data, pelo incentivo e carinho e principalmente por escutarem

minhas lamentações nos momentos difíceis.

À amiga Ronessa, pela ajuda com a tradução do abstract e pelas palavras

animadoras em meio às dificuldades enfrentadas nos estudos.

Ao Programa de Mestrado em Letras da UFSJ, pela convivência com professores

com os quais aprendi imensamente.

À agência de fomento CAPES, pelo apoio financeiro.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo identificar e analisar as imagens e os ethé de Lúcio

Flávio, um dos bandidos mais procurados pela polícia carioca da década de 1970,

na obra Lúcio Flávio: o passageiro da agonia no intuito de verificar como a

qualificação “passageiro da agonia” é construída pelo perfil apresentado pelos

múltiplos enunciadores que se articulam nessa narrativa de cunho biográfico. Foram

utilizados como categorias de análise os modos de organização (i) descritivo,

através dos procedimentos de nomeação e qualificação, e (ii) narrativo, através do

componente actancial, propostos por Patrick Charaudeau (2009) . O estudo dos ethé

privilegiou sua dimensão discursiva, com base nas proposições de Ruth Amossy

(2005) e Dominique Maingueneau (2004, 2005, 2006). A pesquisa mostrou que a

trajetória de vida e as características atribuídas a Lúcio Flávio pelas diferentes vozes

presentes na obra apontam para um criminoso singular, que foge do estereótipo do

bandido comum, e cujos momentos finais de vida são marcados pela previsível e

inevitável derrocada.

PALAVRAS-CHAVE: Biografia – Imagem – Ethé

 

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ABSTRACT

The aim of this paper is to identify and analyze the images and the ethe of Lúcio

Flávio, one of the most wanted criminals by the police of Rio de Janeiro, in the

1970s, in the book 'Lúcio Flávio: o passageiro da agonia', in order to verify how the

qualification as 'passageiro da agonia' is constructed by the profile presented by

multiple enunciators that articulate themselves in this biographical narrative. It was

used as categories of analysis the methods of organization (i) descriptive, through

the appointment procedures and qualifications, and (ii) narrative through the

component actantial proposed by Patrick Charaudeau (2009). The study of the ethe

favored its discursive dimension, based on proposals from Amossy Ruth (2005) and

Dominique Maingueneau (2004, 2005). The research has shown that his trajectory of

life and the characteristics attributed to him by the different voices present in this

book suggests a singular criminal who does not match with the stereotype of the

common criminals and whose final moments of life were marked by predictable and

inevitable downfall.

KEYWORDS: Biography - Pictures - Ethe

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................

09

CAPÍTULO 1: ESCRITAS BIOGRÁFICAS

1.1 Apresentação e características da escrita biográfica Lúcio Flávio: o

passageiro da agonia................................................................................................

13

1.2 Aspectos e características das escritas biográficas e da biografia de Lúcio

Flávio.......................................................................................................................

16

1.3 A vida de Lúcio Flávio em meio à conturbada década de 1970......................... 28

1.4 Algumas considerações...................................................................................... 35

CAPÍTULO 2: VOZES QUE NARRAM: DIALOGISMO E POLIFONIA EM LÚCIO

FLÁVIO: O PASSAGEIRO DA AGONIA

2.1 Aspectos enunciativos: dialogismo e polifonia.................................................... 38

2.2 Análise de aspectos enunciativos na biografia de Lúcio Flávio.......................... 42

2.3 José Louzeiro como fonte enunciativa................................................................ 46

2.4 A questão do interdiscurso: o livro, o filme e as entrevistas de José Louzeiro... 48

2.5 Algumas considerações...................................................................................... 53

CAPÍTULO 3: AS IMAGENS DE LÚCIO FLÁVIO

3.1 Discurso e imagens............................................................................................. 55

3.2 Imagens a partir da descrição. ........................................................................... 57

3.3 Imagens a partir da narração.............................................................................. 72

3.4 Algumas considerações...................................................................................... 82

CAPÍTULO 4: OS ETHE DE LÚCIO FLÁVIO

4.1 A noção de ethos................................................................................................ 84

4.2 Análise dos ethé em Lúcio Flávio: o passageiro da agonia................................ 88

4.3 Algumas considerações..................................................................................... 96

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 97

REFERÊNCIAS........................................................................................................ 101

ANEXOS................................................................................................................... 104

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INTRODUÇÃO

No início da década de 1970 no Brasil, uma época conturbada pela ditadura

militar, uma figura que desafiava a lei era alvo constante da mídia: Lúcio Flávio Vilar

Lírio. Um dos pioneiros em assaltos a bancos no país, Lúcio Flávio roubou vários

deles, cometeu alguns assassinatos e fugiu mais de 20 vezes da prisão. Em uma de

suas fugas, ele saiu pela porta da frente, como afirma o jornalista José Louzeiro, em

entrevista ao blog Estranho Encontro1. Lúcio Flávio negociava com policiais e,

muitas vezes, pagava pela sua liberdade, concedendo propina às autoridades.

Esses fatos nos levam a crer que ele não era um bandido qualquer. Com sua

inteligência a serviço do crime, como citou Louzeiro na entrevista, Lúcio Flávio

protagonizava assaltos espetaculares e isso o destacava no mundo do crime carioca

naquela época.

Por conta da sua vida ativa no crime, ele era um dos bandidos mais

procurados do país. Na entrevista citada, José Louzeiro afirma que Lúcio Flávio era

vaidoso e megalômano: ele avisou ao repórter que estava cobrindo plantão no jornal

O Globo, mediante um telefonema na madrugada, que iria assaltar uma agência

bancária na Urca na manhã seguinte. Louzeiro foi ao local e disse que o assalto foi

fenomenal.

O repórter disse também que havia prometido a Lúcio Flávio escrever sua

história. Em 1975, após a morte de Lúcio Flávio, José Louzeiro publicou um livro

com a história desse criminoso. A obra intitulada Lúcio Flávio: o passageiro da

agonia2, que mais tarde gerou um filme3, lançado em 1977, com o mesmo nome e

com sucesso de bilheteria, foi uma das primeiras a ser escrita no gênero romance-

reportagem, gênero em voga na época nos Estados Unidos.

O romance-reportagem, ou livro-reportagem, é um gênero que mescla a

realidade e a literariedade segundo Vilas Boas (2002). Trata-se de uma prática

jornalística e literária capaz de acolher com relativa folga a seguinte hipótese:

biografias têm enfoque humano pela via da escrita impressa, mas algumas possuem

                                                            1 Dados colhidos de uma entrevista de José Louzeiro no blog Estranho Encontro. Disponível em: <http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2006/05/biografia-entrevista-jos-louzeiro.html>. Acesso em: 3 jun. 2012. 2 LOUZEIRO, 1990 (edição utilizada como objeto de análise neste trabalho.) 3 Lúcio Flávio: o passageiro da agonia. Direção Hector Babenco. 118 min. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=EmrfrjQ_EwE>. Acesso em: 20 jun. 2012.  

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elementos jornalísticos, como o compromisso com os fatos (passado) e com a

clareza (acessibilidade).

A história de Lúcio Flávio foi narrada em terceira pessoa, mas por um

narrador-onisciente, ou seja, um narrador que se coloca como aquele que tudo sabe

da consciência dos personagens, inclusive do protagonista da história. Na biografia

de Lúcio Flávio, são vários os enunciadores, porque é reproduzida a (suposta) fala

dos vários personagens: Lúcio Flávio, alguns de seus familiares, amigos, policiais e

outros bandidos. Pela pluralidade de vozes presentes na história, consideramos a

obra como uma biografia explicitamente polifônica.

Tendo em vista essa configuração, este trabalho tem como objetivo identificar

e analisar as imagens construídas pela obra de um sujeito polêmico do mundo do

crime da década de 1970 que teve sua história contada na literatura e no cinema.

Nosso interesse pela obra surgiu a partir da singularidade de apresentar

várias vozes que caracterizam Lúcio Flávio: a voz do biógrafo é apresentada pelo

viés de outros personagens e a voz do biografado é forjada por diálogos

supostamente de autoria de Lúcio Flávio. Ao mesmo tempo em que a narrativa

apresenta diversas vozes, estas convergem a um mesmo enunciador, pois a história

é contada pelo prisma de José Louzeiro.

A partir desse jogo de vozes, quais imagens elas constroem de Lúcio Flávio?

Como Lúcio Flávio é descrito pelos sujeitos que assumem a enunciação? Como

seus ethé são configurados a partir do que supostamente Lúcio Flávio pensa e fala

sobre si?

Por se tratar de uma obra de cunho biográfico, o trabalho de identificar e

analisar as imagens e os ethé de Lúcio Flávio se torna pertinente para o estudo da

vida dessa figura ímpar dos anos 1970. Mediante o procedimento de análise de

descrição e narração é que chegamos às imagens e aos ethé do personagem Lúcio

Flávio.

Como aporte teórico, utilizamos, para a realização desta pesquisa, autores

que se dedicam às teorias sobre biografias, como Philippe Lejeune (2008), que é um

dos precursores nos estudos sobre escritas biográficas com sua obra o Pacto

Autobiográfico. Também nos valemos das contribuições de Leonor Arfuch (2010)

com O espaço biográfico e Sérgio Vilas Boas (2002, 2008), que aborda as biografias

jornalísticas e a tensão entre o real e o imaginário, citando inclusive o livro-

reportagem, gênero ao qual a obra estudada nesta pesquisa foi classificada em seu

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prefácio escrito por Ildásio Tavares4. Mozahir Bruck (2009) é um autor que também

aborda a relação entre o real e o imaginário nas biografias, além da relação com a

literatura. Já Pierre Bourdieu (1996), no texto A ilusão biográfica, fala sobre a criação

de uma história de vida, de um ideal que acaba sendo uma ilusão ao se escrever

uma biografia.

Para a abordagem das imagens de Lúcio Flávio, apresentamos primeiramente

a concepção de discurso proposta por Eni Orlandi (1994) e Patrick Charaudeau

(2009). Em seguida, abordamos a relação entre discurso e imagens segundo

proposições de Cristia Miranda (2007). Para a análise das imagens, utilizamos o

modo de organização descritivo e o modo de organização narrativo, no interior da

Teoria Semiolinguística, propostos por Charaudeau (2009). A descrição cria

representações a partir do ser, ou seja, a partir das qualificações atribuídas ao

sujeito. A narração, por sua vez, cria representações a partir do fazer, ou seja, a

partir das ações do sujeito.

Em relação ao ethos, inicialmente fizemos uma abordagem histórica iniciada

com Aristóteles (2011), passando por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca

(2005), que abordam o ethos no âmbito da retórica. Quanto ao ethos no campo

discursivo, utilizamos Ruth Amossy (2005), que considera o ethos no âmbito da

Análise do Discurso sem deixar de lado a definição de Aristóteles em relação a essa

prova discursiva. Outro autor com o qual trabalhamos nessa mesma linha é

Dominique Maingueneau (2004, 2005), que relaciona o ethos à enunciação. Para

ele, o ethos é parte constitutiva da cena de enunciação, sendo tão importante quanto

o vocabulário, por exemplo.

Em termos metodológicos, realizamos uma caracterização das escritas

biográficas para situar a obra em análise e, em seguida, a contextualização histórica

do Brasil na década de 1970 de forma a relacionar os acontecimentos do país nessa

década à história de Lúcio Flávio. Abordamos teoricamente aspectos enunciativos

como o dialogismo, a polifonia e o interdiscurso e fizemos um estudo desses

aspectos na obra analisada.

                                                            4  Texto intitulado Romance-reportagem, de autoria de Ildásio Tavares, publicado originalmente no Jornal de Letras em junho de 1976 e como prefácio da obra analisada nesta pesquisa: Louzeiro (1990).

 

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Em relação às imagens, primeiramente, as inserimos no campo das

representações e, em seguida, realizamos a análise das imagens de Lúcio Flávio

utilizando os modos de organização descritivo e narrativo propostos por Charaudeau

(2009). O estudo das imagens na biografia foi realizado a partir da identificação dos

diferentes componentes que fazem parte da descrição e da narração, como a

nomeação, a qualificação e o componente actancial. Em relação aos ethé, que

consideramos como imagens de si, a análise foi feita a partir da voz do personagem

Lúcio Flávio, utilizando como categoria de análise a qualificação proveniente do

modo de organização descritivo proposto pelo teórico citado.

Finalmente, a análise de ambos os aspectos, imagens e ethé, permitiu

concluir que Lúcio Flávio é caracterizado somente pela sua voz como um

“passageiro da agonia”. Essa caracterização pode ser depreendida pelo fato de que

as autoqualificações representam Lúcio Flávio como um bandido que tinha as

rédeas dos seus atos, mas que foi perdendo essas rédeas na sucessão dos

acontecimentos. Citamos: a desconfiança que tinha dos seus amigos, a traição que

sofreu pelos policiais com os quais negociava, o sentimento de ter feito seus pais

sofrerem e a não-concretização do seu desejo de viver como gostaria ao lado da

mulher que amava e do filho. Ele considerava estar preso em uma “roda” que não

parava de girar. Logo, ele era um passageiro, por ser conduzido e por não poder

conduzir sua própria vida. Conduzido a um caminho de angústia e sofrimento por

não poder decidir qualquer coisa sobre sua vida e por não poder mudar essa

situação.

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CAPÍTULO 1: ESCRITAS BIOGRÁFICAS

O objetivo deste capítulo é apresentar a obra que utilizamos como nosso

objeto de estudo, o livro Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, e inseri-lo no âmbito

das escritas biográficas abordando os elementos composicionais de uma biografia.

Baseamo-nos, sobretudo, em Lejeune (2008), Arfuch (2010), Vilas Boas (2002,

2008), Bruck (2009) e Bourdieu (2006). Além disso, elaboramos uma

contextualização da época da vida do biografado a partir de um breve enfoque de

fatos históricos ocorridos na década de 1970 no Brasil.

1.1 Apresentação e características da escrita biográfica Lúcio Flávio: o

passageiro da agonia

 

“A vida de um homem pode muito bem surgir através da narrativa de um

outro” (LEJEUNE, 2008, p. 121). A fala ou a escrita do modelo pode ser coletada e

montada por um terceiro. É dessa forma que pode nascer uma biografia ou uma

escrita de cunho biográfico, como a obra analisada nesta pesquisa.

O livro Lúcio Flávio, o passageiro da agonia possui 20 capítulos, além do

prefácio, escrito por um crítico, e do posfácio, provavelmente elaborado pela editora,

apresentando brevemente o autor José Louzeiro. A edição aqui analisada é a de

1990 publicada pela editora Círculo do Livro, em São Paulo.

A primeira edição foi publicada em 1975. Louzeiro, em entrevista concedida

ao blog Estranho Encontro, afirmou ter escrito o livro após a morte de Lúcio Flávio,

que ocorreu em 1975. Louzeiro disse na entrevista que Lúcio Flávio ligou para o

jornal em que o repórter trabalhava avisando sobre um assalto que ele iria fazer no

dia seguinte, oferecendo a Louzeiro a notícia em “primeira mão”. Perguntado pela

autora do blog se o projeto de escrever o livro tinha sido combinado entre Louzeiro e

Lúcio Flávio, Louzeiro respondeu:

Eu prometi que escreveria um livro sobre ele. No filme está assim: ‘Vocês podem acabar comigo, mas não acabam com a minha história. Estou contando para um jornalista.’ O jornalista era eu. Fui para São Paulo, fiquei na ‘Folha de São Paulo’ uns anos e, depois, quando eu voltei para o Rio em 75, ele tinha sido assassinado. Aí eu resolvi, em cima da história dele, escrever um livro (Trecho da entrevista de José Louzeiro disponível no blog Estranho Encontro).

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A narração da vida de Lúcio Flávio é feita em terceira pessoa e o narrador

não participa da história, ou seja, ele é onisciente e conhecedor dos pensamentos

de alguns personagens, principalmente dos pensamentos de Lúcio Flávio. A obra,

de cunho biográfico, é classificada como um romance-reportagem em seu prefácio,

escrito pelo crítico Ildásio Tavares em um texto originalmente publicado no Jornal

das Letras em junho de 1976, intitulado Romance-reportagem. Tavares (1990)

afirma que:

Realizou Louzeiro, a meu ver, uma pequena obra-prima do gênero. Desde a maneira como a temática é abordada, à fidelidade da linguagem e a desabrida coragem que teve de nos revelar, sem toques eufemísticos, uma realidade que continua a se processar em nossos dias. (p. 12).

O livro-reportagem, como modalidade de comunicação jornalística, tem

espaço próprio na indústria cultural e pode ser posicionado como a literatura da

realidade (LIMA, 2004). O gênero romance-reportagem teve origem nos Estados

Unidos, segundo Tavares (apud LOUZEIRO, 1990), e quando surgiu houve uma

divisão de opinião dos críticos em relação a ele: muitos elogiavam e outros

atacavam. Entretanto, os livros eram um sucesso de vendas. Para Tavares (apud

LOUZEIRO, 1990), “Louzeiro é repórter e ficcionista ao mesmo tempo, pois soube

pegar um personagem real, decompô-lo e criar um novo personagem exteriormente

semelhante a Lúcio Flávio” (p. 12).

O livro-reportagem, para Vilas Boas (2002), mescla a realidade e a

literariedade. Ele é uma prática jornalística e literária capaz de acolher a seguinte

hipótese: biografias têm enfoque humano pela via da escrita impressa, mas algumas

possuem elementos jornalísticos, como o compromisso com os fatos (passado) e

com a clareza (acessibilidade).

Segundo Vilas Boas (2002), o objeto macro da narrativa biográfica é gerar

conhecimento sobre o passado de alguém ou de alguma coisa. Entretanto, a

biografia não consegue conter a totalidade dos acontecimentos testemunhados, em

dado momento ou em determinado lugar, mas somente alguns aspectos escolhidos.

Os biógrafos precisam manter um diálogo interminável entre presente e passado.

Uma biografia não pode ser escrita a menos que o biógrafo estabeleça algum tipo de

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contato com a mente do biografado e a sua. Trata-se de uma relação de

reciprocidade.

O autor define a narrativa jornalística não-periódica, ou livro-reportagem,

como o relato de um conjunto de acontecimentos com sequência e andamento

lógicos. Alguns episódios narrados no livro, como assaltos e fugas da prisão, bem

como a figura de Lúcio Flávio, foram relatados por veículos midiáticos

contemporâneos, como o site Cyber Polícia, que conta a história de outros bandidos

famosos, e pelos blogs e sites5, nos quais encontramos entrevistas do autor do livro

José Louzeiro. A revista Veja6 (edição 496), publicada na época do lançamento do

filme, dedicou uma matéria de capa intitulada “Lúcio Flávio” A vida real no cinema. A

reportagem primeiramente conta um pouco sobre a vida de Lúcio Flávio e a sua

relação com o Esquadrão da Morte para então abordar o filme Lúcio Flávio: o

passageiro da agonia, por meio dos relatos do diretor Hector Babenco, do roteirista

José Louzeiro (autor do livro homônimo) e do protagonista que interpretou Lúcio

Flávio, o ator Reginaldo Faria. A reportagem também relata a revolta da família de

Lúcio Flávio com a história retratada no filme, além do sucesso de bilheteria que o

filme foi em São Paulo e em mais quatro estados brasileiros que a revista não cita

quais são. O diretor e o roteirista aguardavam apreensivos pela exibição no Rio de

Janeiro, pois eles não imaginavam a reação do público na cidade onde se passa a

maior parte do filme.

Em depoimento dado à revista Veja (edição 496), o autor, José Louzeiro,

disse que foi necessário pedir autorização ao governo para lançar o filme, homônimo

do livro, no país. A exibição do filme foi permitida desde que não aparecessem

cenas com policiais fardados e viaturas policiais. Como a história do filme é muito

parecida com a do livro, o esquema de corrupção aparece em algumas cenas em

                                                            5  Site Cyber Polícia – História da Polícia Operacional Investigativa. Disponível em: <http://www.cyberpolicia.com.br/index.php/crime-e-criminosos/ bandidos/ bandidos nacionais /121-lucio-flavio>. Acesso em: 4 jun. 2012. Entrevista com o autor José Louzeiro no blog Estranho Encontro. Disponível em: <http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2006/05/biografia-entrevista-jos-louzeiro.html>. Acesso em: 3 jun 2012. Página do escritor José Louzeiro. Disponível em: <http://www.louzeiro.com.br/index.html>. Acesso em: 3 jun. 2012.  6 Veja. São Paulo: Abril, ed. 496, 8 mar. 1978. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/acervodigital/>. Acesso em: 3 jun. 2012.

 

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que Lúcio Flávio se relacionava com alguns policiais planejando assaltos e algumas

fugas da prisão.

Em relação à história do livro, Tavares (apud LOUZEIRO, 1990) afirma a

existência de dois mundos que se chocam: o mundo dos marginais e o mundo dos

policiais. Entretanto, não há mocinhos ou bandidos segundo o crítico. Este descreve

Lúcio Flávio como um personagem “duro”, “cruel” e “inescrupuloso”, mas na medida

de um código de valores desenvolvido a partir da necessidade de sobreviver numa

selva.

No posfácio intitulado “O autor e sua obra”, texto provavelmente elaborado

pela editora, há a afirmação de que o livro deu início ao gênero romance-reportagem

no Brasil, recriando situações de impacto político e social: “Em ‘Lúcio Flávio: o

passageiro da agonia’ (1975), José Louzeiro dava início ao ‘romance-reportagem’,

recriando situações de impacto policial ou político” (p. 245).

Há ainda, no posfácio, uma pequena biografia do autor e menção a seus

outros livros. Também foi mencionado que a história contada no livro foi adaptada

para o cinema, sendo o próprio Louzeiro o roteirista e Hector Babenco o diretor. A

vida de Louzeiro e algumas das obras que escreveu serão mais detalhadas no

capítulo dois deste trabalho.

1.2 Aspectos e características das escritas biográficas e da biografia de Lúcio

Flávio

 

Lejeune (2008), uma das referências nos estudos biográficos, considera que a

biografia e a autobiografia, em oposição a todas as formas de ficção, são textos

referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, eles se propõem a

fornecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto e a se

submeter, portanto, a uma prova de verificação. Seu objetivo não é a simples

verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro; não o “efeito de real”, mas a

imagem do real. Dessa forma, esses textos referenciais comportam o que ele chama

de pacto referencial.

Segundo Lejeune (2008), na biografia, o autor e o narrador estão por vezes

ligados por uma relação de identidade. Essa relação pode permanecer implícita ou

indeterminada, ou ser explicitada, por exemplo, em um prefácio. Pode ser também

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que nenhuma relação de identidade seja estabelecida entre o autor e o narrador. Na

edição aqui analisada de Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, essa identidade não

é explicitada pelo autor do livro, mas sim por um crítico literário que esclarece que a

história se trata de um romance-reportagem. O título do prefácio “Romance-

reportagem” já situa o leitor que a obra está inserida nesse gênero. O autor do

prefácio, Tavares (apud LOUZEIRO, 1990), explica a controvérsia que existe em

torno desse gênero nos Estados Unidos e afirma que Louzeiro escreveu uma

pequena obra-prima no gênero:

Grande tem sido a controvérsia nos Estados Unidos em torno do gênero romance-reportagem, que foi iniciado pelo já consagrado romancista Truman Capote, com seu best seller A sangue frio, onde narra assassinatos que de fato ocorreram nos Estados Unidos. Outros autores seguiram a trilha aberta por Capote [...]. Veio a acontecer uma curiosa ambivalência. Por um lado, os livros vendiam horrores e tinham apoio de alguns críticos. Por outro lado, eram atacados pelos críticos que ainda estão à espera da great novel que não acreditavam poder ser realizada desta forma (p. 9). Realizou Louzeiro, a meu ver, uma pequena obra-prima do gênero. Desde a maneira como a temática é abordada, à fidelidade da linguagem e a desabrida coragem que teve de nos revelar, sem toques eufemísticos, uma realidade que continua a se processar em nossos dias (p. 12).

A relação do personagem (no texto) com o modelo (referente extratextual) é

uma relação de identidade, porém trata-se, sobretudo, de uma relação de

semelhança (LEJEUNE, 2008). No caso do sujeito do enunciado, a relação de

identidade não tem o mesmo valor que para o sujeito da enunciação: ela é

simplesmente um dado do enunciado que está no mesmo plano que os outros, não

vale como prova e precisa ela própria ser provada pela semelhança. Segundo o

autor, o que opõe a biografia à autobiografia é a hierarquização das relações de

semelhança e identidade: na biografia, é a semelhança que deve fundamentar a

identidade; na autobiografia, é a identidade que fundamenta a semelhança. “A

identidade é o ponto de partida real da autobiografia; a semelhança, o impossível

horizonte da biografia” (p. 39).

A leitura, segundo Lejeune (2008), depende do nome próprio e do uso que se

faz dele no texto e no título do livro publicado. O nome, na medida em que figura no

título do livro, programa certo tipo de leitura: ele suscita a curiosidade biográfica e o

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investimento imaginário na existência de um outro. Todos conhecem o slogan

subjacente a qualquer literatura ‘vivida’: verdadeiro como a vida, belo como um

romance. O nome próprio utilizado como título anuncia a modalidade da obra e

como deve ser lida. Ele coloca em primeiro plano o interesse pela forma individual e

concreta de uma vida, como afirma Lejeune (2008).

Foi justamente o nome que figura como título da obra que é nosso objeto de

análise que nos chamou atenção para estudá-la. O nome próprio, Lúcio Flávio, e seu

complemento, o passageiro da agonia, nos fazem pensar em como o criminoso

Lúcio Flávio teria sua imagem representada ao longo da narrativa desse livro, já que,

em outras fontes que consultamos, como entrevistas do autor, sites e artigos que

falam sobre Lúcio Flávio, ele era visto como um criminoso valente, que desafiava a

lei, além de ser uma figura que fugia dos estereótipos de bandido daquela época: ele

vinha de uma família de classe média, era considerado bonito pela mídia por possuir

cabelos claros e olhos verdes, e também era visto como uma pessoa muito

inteligente, já que planejava assaltos mirabolantes a bancos e fugas espetaculares.

Como então poderia ser um “passageiro da agonia”? O nome próprio e seu

complemento “o passageiro da agonia” que compõem o título do livro figuram em

nosso trabalho como elementos importantes conforme veremos mais adiante na

análise.

Arfuch (2010) possui uma visão um pouco diferente da de Lejeune (2008) em

relação à biografia. Para ela, o que realmente importa no gênero biográfico não é

precisamente o “conteúdo” do relato por si mesmo, mas as estratégias ficcionais que

o biógrafo utiliza. O auge das biografias costuma oferecer frequentemente entradas

pouco reconhecíveis entre ficção, obra documental, romance histórico, “caso”

psicanalítico ou fofoca, segundo a autora.

No que diz respeito ao biográfico, na medida em que os “fatos” da vida de

alguém exigem uma historicidade do “acontecido”, questiona-se, segundo Arfuch

(2010), em qual direção a balança se inclinará: para a ficção ou para a historicidade?

Os gêneros canônicos, segundo a autora, jogarão um jogo duplo, ao mesmo tempo

história e ficção, entendida essa última menos como “invenção” do que como obra

literária, integrando-se ao conjunto de uma obra de autor e operando

simultaneamente como testemunho, arquivo, documento, tanto para uma história

individual quanto de época, pois a história particular de um sujeito pode vir

acompanhada de fatos que retratam certa época e lugar, retratam a sociedade.

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199  

Nesse ponto, Arfuch (2010) menciona dois espaços possíveis na biografia: o

público e o privado. A fronteira entre esses dois espaços não é bem delimitada, pois

eles se entrecruzam numa e noutra direção: não só o íntimo/privado sairia de seu

caminho invadindo territórios alheios, mas também o público não alcançaria o tempo

todo o estatuto da visibilidade; antes, poderia recuar, de maneira insondável, sob a

mesma luz da superexposição.

Toda biografia ou relato de experiência, para Arfuch (2010), é, num ponto,

coletivo, expressão de uma época, de um grupo, de uma geração, de uma classe,

de uma narrativa comum de identidade. É essa qualidade coletiva, como marca

impressa na singularidade, que torna relevantes as histórias de vida tanto nas

formas literárias tradicionais quanto nas midiáticas e nas ciências sociais. Dessa

maneira, a autora afirma que biográfico excede em muito uma história pessoal.

Concordamos com Arfuch (2010): segundo ela, o biográfico excede a história

pessoal ao afirmarmos que a narrativa de vida do Lúcio Flávio não se trata somente

de contar a história desse homem, mas também de relatar a existência de uma

organização criminosa, como o Esquadrão da Morte, que envolvia autoridades

policiais. A narrativa leva ao conhecimento dos leitores a existência da corrupção

existente entre os homens da lei, aqueles que faziam valer a lei para os civis

utilizando formas cruéis, como a tortura e a morte daqueles que não se

conformavam em ser passivos diante da situação política do Brasil. Além disso, esse

grupo praticava o extermínio de bandidos considerados perigosos como Lúcio

Flávio. Podemos afirmar, assim, que o livro do repórter investigativo José Louzeiro

possui, além do caráter biográfico, um caráter de denúncia.

A biografia, segundo Arfuch (2010), é um gênero que se move entre o

testemunho, o romance, o relato histórico, o ajuste a uma cronologia, a invenção do

tempo narrativo, a interpretação minuciosa de documentos e a figuração de espaços

reservados. Sua valoração como gênero não deixa de ser controversa, pois muitas

vezes pensa-se na biografia como uma escrita que é obrigada a respeitar a

sucessão das etapas da vida, a buscar causalidades, a outorgar sentidos e a

justificar nexos esclarecedores entre vida e obra (ARFUCH, 2010).

Para a Arfuch (2010),

A excessiva publicação de biografias em nossos dias mostra tanto sua resistência ao tempo e aos estereótipos do gênero quanto a

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busca de novos posicionamentos críticos a respeito de seu inegável trabalho ficcional: mostra também o favor sustentado do público, que busca nelas esse algo a mais que ilumine o contexto vital da figura de algum modo conhecida (p. 139).

Entretanto, há também exercícios de escrita que, sem abandonarem o modelo

de narração da vida de um personagem existente, se afastam da fidelidade histórica

para dar lugar a novos híbridos – em nosso cenário atual, o auge de narrações

romanceadas em torno de personagens históricos bem conhecidos, sem a

pretensão de veracidade. Esse é o caso da história de Lúcio Flávio: um homem

bastante conhecido na época da publicação da obra, que conta fatos de sua vida

mesclando realidade e ficção.

Como a biografia sempre está inserida em um contexto de espaço e de

tempo, concordamos com Arfuch (2010) que esse gênero envolve a relação do

sujeito com seu contexto imediato, aquele que permite se situar no

(auto)reconhecimento: a família, a linhagem, a cultura, a nacionalidade. Nenhum

retrato de um sujeito consegue se desprender da moldura de uma época e, nesse

sentido, a biografia fala também de uma comunidade. Ao ler Lúcio Flávio: o

passageiro da agonia, podemos levar em consideração todo o contexto em que o

personagem está inserido: um criminoso proveniente da classe média mineira,

morador do Rio de Janeiro, que violava o sistema da segurança da polícia da

década de 1970 com suas várias fugas das prisões e seu envolvimento com a

polícia corrupta daquela época.

A narrativa da vida do Lúcio Flávio remete, portanto, às circunstâncias sociais

e culturais da década de 1970 no Brasil no que diz respeito a ações de criminosos

que estavam ligados a organizações corruptas da época, como era o caso do Lúcio

Flávio e dos policiais que faziam parte do Esquadrão da Morte. Mais do que a

história particular de um bandido, a obra é um relato da esfera de crimes que

vigoravam em determinada época em nosso país.

A partir de um horizonte analítico, é possível apreender a circulação narrativa

das vidas, comuns e singulares, discernir semelhanças e especificidades, à luz de

uma concepção dos gêneros discursivos em acordo com isso segundo Arfuch

(2010). Espaço onde algumas formas são naturalmente incluídas, por tradição ou

inovação, e outras tornam duvidosa a aplicação mesma do atributo “biográfico”,

traçando assim uma fronteira sempre provisória. Mas é a insistência, e até a

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219  

subversão dessas formas, o que torna justamente o espaço significante na medida

em que permite ter acesso a uma época.

Para Vilas Boas (2008), a biografia poderia ser também uma

metabiografia:

Metabiografia é um modo de narração biográfica que dá atenção também aos exames e autoexames do biógrafo sobre o biografar e sobre si mesmo. Mas por que pensar nisso? Porque análise e autoanálise são partes constitutivas do processo de construção de uma vida pela escrita. Esse processo é do biógrafo, do biografado e de ambos, juntos, harmônicos em um cenário volátil; metabiografia porque qualquer processo biográfico extravasa e consagra o relacionamento sujeito-sujeito (p. 41).

Além de sugerir que o biógrafo faça uma metabiografia, em que as reflexões

do autor poderiam fazer parte da obra ao contar a vida do biografado, Vilas Boas

(2008) toca em outros pontos importantes sobre a biografia. Um deles é a diferença

entre uma biografia e um livro de ficção. Segundo o autor, o livro pode até

perseverar, mas não é uma fonte de consulta, ao passo que uma biografia, quando

bem escrita, é fonte de consulta mesmo quando dramatizada por recursos

narrativos.

Vilas Boas (2008) aborda a relação entre público e privado. Todo biógrafo

autoconsciente reconheceria que o mundo das experiências comuns, que se

movimentam entre o público e o privado, é importante em uma biografia que

pretenda escapar à visão rasa (típica do jornalismo de noticiários) de que uma

pessoa constrói sozinha seu universo consagrador.

Ao sugerir que a biografia possa ser também uma metabiografia, o autor

afirma que seria pertinente que a escrita da vida de alguém levasse em conta tanto a

normalidade quanto a suposta extraordinariedade da pessoa a ser biografada, que,

aliás, pode ser qualquer pessoa. Para ele, normalidade e extraordinariedade não

são nem uma forma e nem uma forma (um molde); não são concretas nem objetivas;

não são virtudes nem defeitos a priori. Por isso, ele defende que o biógrafo deve

apresentar facetas diversas de seu herói, e não apenas a extraordinária carreira.

Em Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, Louzeiro narra a vida de Lúcio

Flávio, ora com episódios comuns a um bandido, tais como assaltos, planejamento

de crimes e fugas; ora com episódios que remetem a extraordinariedade, como o

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fato de um bandido ter uma inteligência acima da média, sua família ter sido

abastada, ele ter interesse por arte e pintar quadros.

Outra questão colocada por Vilas Boas (2008) é a fronteira entre o real e o

imaginário. Para ele, em uma biografia enfrenta-se o real. Mas não está em jogo a

razão ou a irracionalidade, e sim uma esfera que transcende a dicotomia

racional/irracional. O que brota é um universo fluido, misterioso, não-irracional.

Quando se constrói ou reconstrói um personagem ou uma história de vida, as

fronteiras do real e do imaginário se diluem. A arte biográfica não é feita apenas de

fatos verificáveis.

Vilas Boas (2008) afirma que, guardadas as proporções, a biografia que se

atinge e se publica é algo incidental como qualquer outra “coisa” estudada pelas

ciências ou como qualquer matéria jornalística publicada em periódicos. Nas

palavras desse autor:

Não há nenhuma ‘pessoa realmente real’ por trás de um texto biográfico. O biografado existe em um sistema de ‘discurso’. Mas um dos postulados da (meta)biografia é o de que há uma pessoa lá fora (fora da biografia convencional) que viveu uma vida interior e exterior, e essa vida precisa ser escrita simplesmente porque é vida e é obra, simultaneamente (p. 164).

A “pessoa real” existiu, talvez já tenha morrido, deixou sua marca em outras

pessoas e experimentou emoções tipicamente humanas como vergonha, amor, ódio,

culpa, raiva, desespero, compaixão etc. Essa pessoa que sente, pensa e vivencia é

o real possível em um processo biográfico. Sua história de vida pode ser elevada ou

diminuída pelo biógrafo. Mas sempre devemos nos lembrar de que os personagens

são criados na forma de textos e de outros sistemas de discurso.

Chegamos a uma questão importante a ser discutida levando-se em

consideração a biografia que analisamos nesta pesquisa: como o biógrafo narra a

vida do seu biografado? Segundo Vilas Boas (2008), o biógrafo de um morto não

pode realmente dizer com segurança que seu personagem, por exemplo, pensou ou

sentiu determinada coisa. Construções narrativas como “ele/ela pensou” ou “ele/ela

sentiu” só seriam possíveis com a participação efetiva do personagem. Se fossem

possíveis, imprimiriam um toque reflexivo-literário. No entanto, em biografias de

mortos de longa data, o “pensa/pensou” e o “sente/sentiu”, quando aparecem, e

raramente aparecem, talvez signifiquem mais ou menos o seguinte: há indícios, com

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bases em cartas, diários ou relatos de diálogos, de que ele/ela pensou ou de que

ele/ela sentiu tal e tal coisa em dado momento.

Além de constar no prefácio da edição que analisamos de Lúcio Flávio: o

passageiro da agonia que a obra é um romance-reportagem, as afirmações feitas

por Vilas Boas (2008) também confirmam o caráter literário dessa biografia. A

narração é feita em terceira pessoa e o narrador é onisciente. Ele conhece o íntimo

dos personagens. Essa característica seria improvável em uma biografia de cunho

documental.

Caso haja algumas especulações em relação ao que o biografado pensou ou

sentiu, o biógrafo ficaria continuamente excluído, ou dispensado, do pacto que

estabeleceu com seu biografado. De acordo com Vilas Boas (2008), o principal

atrativo da biografia parece residir, em parte, em sua exigência por uma visão

integral e coerente das relações humanas.

No jornalismo, afirma Vilas Boas (2008), é mais comum a narração do ponto

de vista em terceira pessoa, ao estilo do narrador onisciente neutro. Em primeira

pessoa, ocorre o uso do foco denominado narrador-protagonista com maior

frequência. Para fazer seu personagem “reviver”, o biógrafo tem de se apoiar na

magia da linguagem em diálogos (desde que inseridos exatamente como citados),

em alusões, em detalhes confiáveis, em dinâmicas interpessoais e em alguma força

dramática, não menos que o romancista.

O biógrafo, segundo o autor, “se esforça pela frase bem-posta, pela metáfora

cabível, pela aliteração florescente” (VILAS BOAS, 2008, p. 196). No ato de

composição, ele de alguma forma é um ilusionista – dá forma e ordem ao caos da

existência; cria a ilusão de uma vida se desdobrando. Para mostrar uma vida sendo

vivida, a maioria dos biógrafos opta por contar suas histórias sequencialmente. Uma

biografia exemplar apresenta uma pessoa viva em um mundo vivo; é acurada,

coerente e convincente – é verdade para a vida de seu sujeito e para a história.

Vilas Boas (2008) trata de um elemento importante da biografia: o tempo. Ao

partir do fato de que o biógrafo conhece de antemão o destino de seu personagem,

o autor encara o tempo biográfico de duas formas, distinguindo duas dimensões: a

cronologia íntima do biografado (vivo ou morto), que pode ou não ser acessada; e o

tempo da narrativa na – dentro da – biografia.

Assim, a visão de tempo na biografia passa a envolver passado, memória e

trama. O passado já faz parte da vida do biografado em toda obra, pois sem ele não

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haveria narrativa. Quanto à trama, Vilas Boas (2008) afirma que a biografia não

pode prescindir dela. No jornalismo literário, a trama, no sentido de tecedura, é

igualmente fundamental à narrativa; e esta requer, no mínimo, cenários,

personagens, ações e uma voz de autor, alguém com uma personalidade discernível

e algum sentido de relacionamento com o leitor, telespectador, ouvinte e internauta,

a fim de conduzi-lo na direção de um ponto, um desfecho.

A trama gera ação humana não apenas dentro do tempo, mas dentro da

memória de quem acompanha a narrativa. Portanto, trama e memória são

elementos temporais em planos bastante diversos: o plano do biógrafo, o plano do

biografado, o plano do processo de biografar e o plano de quem lê.

É possível que o biógrafo trabalhe com episódios. Episódios construídos em

pequenos intervalos de tempo, dentro dos quais se possa evidenciar as quatro

dimensões mencionadas anteriormente. Os episódios não precisam ser cronológicos

em uma sequência que vá do nascimento até a morte. Para haver narrativa, nossa

atenção precisa ser movida adiante por milhares de contingências. Vilas Boas

(2008) cita Ricouer, que afirmou que, em vez de previsível, o final da história precisa

ser aceitável.

Louzeiro, autor da obra estudada neste trabalho, apresenta uma sequência de

fatos cronológicos ao longo da narrativa. A partir de um episódio de um roubo, a

história de Lúcio Flávio vai ganhando sequência até culminar em sua morte. Ao

longo da narrativa, alguns personagens, inclusive o personagem Lúcio Flávio, vão se

lembrando de episódios que retomam fatos da infância do protagonista, o que

também ajuda a manter uma certa lógica sequencial dos acontecimentos na

narrativa.

Bruck (2009) faz um estudo sobre as biografias literárias e apresenta alguns

paradigmas desse gênero ao longo dos séculos. O paradigma atual, segundo ele, é

o moderno e seu marco divisório é a Primeira Guerra Mundial. Essa época

corresponde a uma crise de valores que afeta todas as dimensões da convivência

humana. As velhas crenças e doutrinas caem por terra; o homem heroico cede lugar

a um homem complexo, contraditório, manietado por suas complexidades. Não se

crê mais no modelo de homem “monolítico”, incólume em relação a desvios em sua

trajetória de vida.

De acordo com Bruck (2009), o novo modelo da biografia sofre dupla pressão:

por um lado, da objetividade e da isenção exigidas pela abordagem científica; por

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outro, da construção ficcional. O gênero biográfico parece trazer em si uma ambição

de criar um efeito de vivido. Para criar esse efeito do real, segundo Dosse (apud

BRUCK, 2009), é preciso que se lance mão dos recursos retóricos no modo de

narração.

Outra questão tratada por Bruck (2009) é a memória. O acionamento da

memória a transforma em discurso, mas apenas em parte. A memória não substitui

ou sequer repõe o passado; apenas atesta sua ausência. O que o biógrafo faz é

produzir versões e novas cenas, muitas delas tão imaginativas quanto aquelas

apresentadas pelas suas fontes, sejam documentais, entrevistados, outras obras

biográficas etc.

Portanto, a memória não deve ser vista como algo estritamente ligado à

verdade como Bruck (2009) deixa claro. Para o autor, uma das hipóteses que

norteiam essa investigação é de que tanto no exercício literário como na construção

de um texto historiográfico/jornalístico estão presentes as mesmas circunstâncias

discursivas que, mesmo firmadas por intencionalidades e contratações distintas e

quase antagônicas, possuem como instância realizadora e fundadora a própria

linguagem.

Ainda em relação à forma de biografar, Bruck (2009) afirma que, se para

alguns autores é possível explicitar detalhadamente a trajetória de um biografado,

para outros, no entanto, isso se revela um grande engano. Nesse ponto, o autor cita

Bourdieu (apud BRUCK, 2009), que chamou esse “engano” de ilusão biográfica. Em

certa medida, o biografado pode ajudar a criar essa ilusão quando está envolvido na

escrita, como ao conceder uma entrevista, por exemplo.

Bourdieu (1996) afirma que o biografado possui uma propensão a tornar-se o

ideólogo de sua própria vida, selecionando, em função de uma intenção global,

certos acontecimentos significativos e estabelecendo entre eles conexões para lhes

dar coerência, como as que implicam a sua instituição como causas ou, com mais

frequência, como fins. O biografado conta com a cumplicidade natural do biógrafo,

que, a começar por suas disposições de profissional da interpretação, só pode ser

levado a aceitar essa criação artificial de sentido. Para o autor, na construção de um

relato biográfico ou autobiográfico, é quase impossível evitar que se caia nesta dupla

ilusão: da singularidade das pessoas frente às experiências compartilhadas ou da

coerência perfeita numa trajetória de vida.

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Hoje, o status de ficcional ou factual, segundo Bruck (2009), depende de um

contrato implícito; no caso do jornalismo, o de narrar um fato verdadeiro; no da

literatura, o de privilegiar a imaginação e a concepção estética. Mas a exclusão de

conteúdos não-ficcionais do conceito de literatura pode interferir profundamente na

forma de recepção de um texto. Às vezes, basta mudar seu suporte material. Com

isso, uma reportagem pode ganhar status literário quando impressa em livro.

Publicações categorizadas como biografias e autobiografias, diários e livros

de memórias ou, em uma área de mais influência do jornalismo, os livros-

reportagens e romances-reportagem, entre outros, se mostram um dos mais

importantes filões do mercado editorial na atualidade. Os processos de hibridização

dessa escrita contemporânea acabam por criar, no entanto, dificuldades para uma

clara categorização desses relatos segundo Bruck (2009).

Bruck (2009) destaca alguns objetivos que a construção biográfica possui.

Dentre eles, o autor cita o objetivo informativo, o objetivo interpretativo e o objetivo

crítico. O objetivo informativo diz respeito à recuperação histórica, de exemplaridade

de uma vida, mas também de uma singularidade. Ao mesmo tempo em que se

busca que o biografado se estabeleça como uma referência pela exemplaridade de

sua vida, também a biografia o consagra como figura popular, como figura única.

Já o objetivo interpretativo diz respeito à reconstituição de processos e busca

de nexos causais. As biografias interpretativas se dão em uma dupla perspectiva: na

associação entre o contexto histórico, cultural, político, econômico e social e o

desenrolar dos fatos e circunstâncias da vida do biografado e a relevância e o

protagonismo da figura biografada em episódios específicos de determinada época.

E o objetivo crítico relaciona o biografado e sua obra, em geral, de natureza

artística. As biografias com esse objetivo relacionam a obra do biografado com os

diversos aspectos e passagens mais marcantes de sua vida, sendo que a descrição

e a análise do trabalho deixado têm mais relevância e merece mais atenção do que

propriamente o relato minucioso de sua vida.

Na biografia de Lúcio Flávio, predomina o objetivo interpretativo pelo fato de

haver uma relação entre o contexto histórico, cultural e social da época e o

desenrolar dos fatos da vida do biografado em episódios específicos dessa

determinada época.

A biografia do Lúcio Flávio é a narração da vida de um bandido associada a

um contexto cultural de corrupção de homens diretamente relacionados à lei

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(policiais) do nosso país e de um contexto social e econômico que empurra jovens

sem oportunidade para o mundo do crime. Essa associação é lembrada

principalmente pelo fato de o livro ter como autor um repórter que transitava entre o

mundo policial e o do crime. Essa vivência entre esses dois mundos é declarada

pelo autor da biografia em entrevista ao blog Estranho Encontro.

Bruck (2009) também aborda a questão do contrato. O que esse autor chama

de contratação biográfica abriga muitos outros interesses e intenções além do

exclusivo desejo de estabelecimento de uma narrativa de maior ou menor

intensidade de investimento estético – tenha esta um objetivo informativo,

interpretativo ou crítico. Segundo o autor, as biografias tanto quanto materializar a

memória do que passou, podem, ao condensar a imagem do biografado, contribuir

para cravar, de modo definitivo, a imagem desses atributos e rotulações presentes

no senso comum, que apenas reforçam a perspectiva dos riscos que envolvem a

construção biográfica em termos de seus efeitos reducionistas.

Vilas Boas (apud BRUCK, 2009) salienta que as biografias se diversificam em

função da proposta contratual definida para a produção do projeto. Ao propor um

tipo de biografia, portanto, o contrato já estará explícito. O autor aponta quatro

categorias de formatos de contrato que nortearão a confecção biográfica: as

biografias autorizadas, as biografias ditadas, as biografias não autorizadas e as

biografias encomendadas.

Seria difícil classificar a biografia de Lúcio Flávio dentro de uma dessas quatro

categorias. Pelo prefácio do livro, notamos que se trata de um romance-reportagem

pelo título do texto “Romance-reportagem”. Logo, o pacto assumido com o leitor

seria baseado na verossimilhança: o personagem era o bandido Lúcio Flávio. Trata-

se de uma pessoa que existiu. Alguns episódios presentes na narrativa conferem

com fatos presentes nas entrevistas de José Louzeiro, em reportagem divulgada em

sites, blogs de jornais e na revista Veja sobre o biografado, mas a ficção se faz

presente pelos diálogos entre os personagens e seus pensamentos que ganham voz

por meio do narrador.

Em relação ao sujeito biografado, Vilas Boas (2002) afirma que os biógrafos

tendem a preferir biografar um indivíduo (bandido ou herói) que ao menos mereça

seu respeito e estimule sua capacidade individual de investigação, pois livros sobre

vidas célebres despertam a atenção de grupos heterogêneos de leitores. Logo, o

biografado geralmente é alguém que tem certo destaque na sociedade, seja pelo

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seu trabalho como político, artista ou filantropia, ou, como no caso de Lúcio Flávio,

pelo destaque que a mídia lhe dava (afirmamos isso com base nas entrevistas e

sites que citamos anteriormente) ao noticiar seus assaltos, fugas e todos seus

delitos cometidos na sociedade. Esse destaque da mídia era dado a esse bandido

pela singularidade: ele tinha bom nível cultural e escrevia cartas aos jornais com o

intuito de denunciar policiais corruptos que faziam parte do Esquadrão da Morte.

Outros fatores entram no “conflitante” jogo da criação biográfica, segundo

Vilas Boas (2002), como o mercado, as preferências pessoais do autor e sua relação

com o personagem central, entre outros. Além disso, o objeto-livro decorrente da

captação, seleção e interpretação do biógrafo também é um produto social,

documento de resgate do passado de alguém.

1.3 A vida de Lúcio Flávio em meio à conturbada década de 1970

Lúcio Flávio nasceu em 1944 na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais7. Era

membro de uma família de classe média alta que foi perdendo aos poucos o

prestígio e o dinheiro com a instauração da ditadura militar. Seu pai, Osvaldo Vilar,

era cabo eleitoral das campanhas políticas mineiras, mas quando o partido do qual

fazia parte – o PSD8 – foi extinto, Osvaldo Vilar mudou-se com sua família para o

Rio de Janeiro. Lúcio Flávio passou parte da sua juventude em bairros cariocas –

Benfica e Bonsucesso – de classe média-baixa.

Em artigo9 publicado no blog do promotor e professor Lélio Braga Calhau, a

advogada Heloísa Quaresma afirmou que, após a extinção do partido do qual o pai

de Lúcio Flávio fazia parte, a família começou a passar por dificuldades financeiras e

Lúcio Flávio não se conformava com a pobreza. Além disso, Lúcio Flávio teria sido

cogitado para ser candidato a vereador pelo PSD, mas seu pai, alegando falta de

                                                            7 Segundo dados do blog do Jornal do Brasil em que recapitula notícias do passado. Disponível em: <http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=29220>. Acesso em: 9 jun. 2013. Entretanto, comenta-se que ele teria nascido na cidade de Nova Era, Minas Gerais, informação não confirmada.  8  Sigla do Partido Social Democrata.  9 Artigo intitulado “Estudos Criminológicos: De Lúcio Flávio a Leonardo Pareja”, escrito com respaldo em fontes midiáticas como os jornais O Globo e Jornal do Brasil, revista Veja e o livro Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, publicado em 23 jan. 2010. Disponível em: <http://www.leliobragacalhau.com.br/estudos-criminologicos-de-lucio-flavio-a-leonardo-pareja/>. Acesso em: 9 jun. 2013.  

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condições financeiras para a campanha, recusou a ideia. O fato é tido como a maior

frustração da vida de Lúcio Flávio.

Conforme biografia analisada neste trabalho, Lúcio Flávio lamenta-se pelo

fato de o pai não o ter apoiado em sua candidatura a vereador em Belo Horizonte, o

que foi motivo para várias discussões de Lúcio Flávio com o pai. O jovem acusava o

pai de ter sido o culpado por ter entrado na vida do crime, pois lhe negou a chance

de uma carreira política. Transcrevemos a seguir um trecho da biografia em que

Lúcio Flávio menciona a falta de coragem do pai em apoiá-lo para que se

candidatasse a vereador:

Excerto 1 (E1): - Pra você não há mais esperança. Está completamente perdido. Era o pai falando. Lúcio dizia coisas desagradáveis que no momento da raiva não podia controlar: - Você é o grande culpado. Sempre com seu medo. Sua vida terminou sendo uma merda. A viver assim prefiro morrer. Por que não teve coragem de financiar minha campanha a vereador? Por que se acovardou? Em Belo Horizonte a gente tinha amigos. Por que saímos de lá como uns fugitivos? Você, na verdade, é o culpado. Não se esforçou para dar a oportunidade que pretendia (LOUZEIRO, 1990, p. 41).

O nome de Lúcio Flávio, segundo Quaresma (2010), apareceu nas páginas

policiais dos jornais cariocas pela primeira vez em 1964, quando foi descoberta uma

quadrilha de ladrões de automóveis que, entre outubro de 1963 e junho de 1964,

havia roubado oito veículos. No entanto, seu nome desapareceu por um período de

cinco anos dos jornais do Rio de Janeiro, apenas voltando a aparecer em 1969.

Lúcio Flávio estava agindo em outro estado, em Pernambuco, onde também

conseguiu uma fuga sensacional da Casa de Detenção do bairro São José, em

Recife, em 1967.

A partir de 1969, quando uma nova quadrilha de ladrões de carros foi

descoberta no Rio de Janeiro, o nome de Lúcio Flávio reapareceu na mídia. Ele foi

identificado como figura principal no comando da quadrilha, posição que ocupou

após o assassinato do líder Marcos Aquino Vilar, crime do qual Lúcio era o principal

suspeito.

Segundo dados do jornal O Globo citados por Quaresma (2010), foi nesse

homicídio que pela primeira vez apareceu ao lado do corpo o desenho da caveira,

que mais tarde foi identificado como o símbolo do Esquadrão da Morte. É dessa

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época que vêm as ligações de Lúcio Flávio com um dos policiais acusados de

pertencer ao Esquadrão da Morte, Mariel Mariscot de Matos. Na história narrada por

Louzeiro, há fortes indícios de que Mariel foi retratado como o policial Moretti, tanto

no livro como no filme, com o qual Lúcio Flávio possuía estreita relação de

negócios10. Em entrevista à revista Veja, o diretor do filme Hector Babenco afirmou

que o filme só seria liberado pela censura caso os nomes reais dos policiais

envolvidos com esquemas de corrupção não aparecessem (cf. nota de rodapé 5).

Essa aliança com o policial Mariel Mariscot, no entanto, não durou muito,

segundo Quaresma (2010), pois, logo depois, Lúcio Flávio iniciou uma série de

denúncias sobre o envolvimento de policiais em suas fugas e crimes. Um dessas

denúncias foi uma carta enviada ao jornal O Globo por Lúcio Flávio e publicada na

íntegra em 31 de janeiro de 1974, em que ele afirma que apontaria “todos os

policiais, guardas e funcionários que, com a mesma mão que exibem uma

carteirinha de polícia, recebem míseras propinas para levarem armas, fazerem

trapaças, traindo a pobre e calejada Sociedade que lhes outorga o dever de

defendê-la” 11.

Com a morte de Marcos Aquino, Lúcio Flávio formou um grupo com seu irmão

Nijini Renato Vilar Lírio, seu cunhado Fernando Gomes de Oliveira e o amigo Liece

de Paula Pinto. Em sua biografia, todos esses personagens estão presentes com os

nomes verdadeiros. Juntos, eles arquitetaram esquemas de assaltos a bancos,

hotéis e outros estabelecimentos, assim como roubo de carros. Entre os fatos

lembrados pelos jornais sobre a vida de Lúcio Flávio, as fugas são sempre

apontadas como marcantes.

Quaresma (2010) afirma que Lúcio Flávio fugiu de instituições policiais,

durante toda sua trajetória: 34 vezes, incluindo presídios de segurança máxima.

Quando ele morreu, assassinado por um companheiro de cela enquanto dormia,

existiam, oficialmente, contra ele 74 processos. No entanto, policiais citam um

levantamento mais amplo que indicaria a soma de 400 processos por roubo de

carros e 130 por assaltos, estelionato e coautorias em outros crimes.

Em relação à sua vida pessoal, na biografia, assim como no filme, consta que

Lúcio Flávio tinha um caso com uma mulher chamada Janice e um filho chamado                                                             10 Segundo o policial Antônio Carlos de Faria, autor do site Cyber Polícia. 11 Referência da carta encontrada no artigo de Helena Quaresma: “As razões do fugitivo” numa carta a O Globo. O Globo, Rio de Janeiro, 31 jan. 1974.  

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Leo12. A reportagem de revista Veja menciona Janice e traz uma foto dela com Lúcio

Flávio com a seguinte legenda: “Lúcio Flávio e Janice: a crônica de dois pobres

amantes nas páginas dos jornais, em 1974” (p. 64). Entretanto, nos sites e blogs

consultados que falam sobre Lúcio Flávio não há menção à mulher ou ao filho de

Lúcio Flávio. Em uma entrevista concedida ao programa Leituras13, exibida em 2012,

Louzeiro afirma que Lúcio Flávio não tinha mulher nem filho. Sua vida amorosa,

assim como dados de nascimento são uma incógnita pelo fato de nossas fontes

(biografia, sites, blogs, reportagem e entrevistas com autor) trazerem dados

diferentes ou omitirem esses dados. Sua cidade natal não é mencionada na

biografia ou entrevistas do autor, somente no blog do Jornal do Brasil, que afirma

que Lúcio Flávio nasceu em Belo Horizonte.

Como toda biografia é, num ponto, coletivo, expressão de uma época, de um

grupo, de uma geração, de uma classe, de uma narrativa comum de identidade,

conforme afirmou Arfuch (2010), faz-se necessário retomar o contexto do Brasil na

década de 1970, época de atuação do bandido Lúcio Flávio.

Em abril de 1964, uma ação dos militares depôs o então presidente João

Goulart. Essa ação ficou conhecida como golpe militar. Em 2 de abril de 1964, o

presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu a presidência da

República. Apesar disso, o poder de fato passou a ser exercido por uma junta de

militares autodenominada Comando Supremo da Revolução. O regime instaurado

com o golpe de 1964 apresentava-se como uma intervenção militar de caráter

provisório, que pretendia reinstaurar a ordem social e retomar o crescimento

econômico, contendo o avanço do comunismo e da corrupção.

No dia 9 de abril de 1964, o Comando Supremo baixou o Ato Institucional n° 1

(AI-1), que, segundo Skidmore (1988), estabelecia: eleições indiretas para

presidente da República; suspensão temporária da estabilidade dos funcionários

públicos; suspensão da imunidade parlamentar e cassação de mandatos eletivos;

suspensão dos direitos políticos por dez anos; fortalecimento do poder do presidente

da República, que poderia apresentar projetos de lei e emendas constitucionais que

deveriam ser votadas em 30 dias, do contrário seriam aprovadas por decurso de

prazo; e decretação do estado de sítio sem aprovação parlamentar.                                                             12 Não se tem referência no livro sobre a data de nascimento dele. 13    Programa Leituras exibido pela emissora TV Senado, exibido em 25/02/2012. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ArdYNDg53rI&feature=youtube>. Acesso em: 5 jun. 2013.  

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Obedecendo ao calendário eleitoral estipulado pelo AI-1, no dia 11 de abril

de 1964, o Congresso elegeu o marechal Castelo Branco como presidente da

República. Em 15 de abril de 1964, com a posse de Castelo Branco, iniciou-se uma

longa sucessão de governos militares no país.

Nesse contexto da ditadura é que Lúcio Flávio agia como criminoso. Como

vimos no tópico anterior, foi em 1964 que ele começou a aparecer na mídia

envolvido com uma quadrilha de roubos de carros. Nesse ano, iniciaram-se as

perseguições políticas e torturas a quem se opusesse ao Estado. A mídia ainda

possuía uma relativa liberdade para se expressar segundo Boris Fausto (1995).

Em março de 1967, foi eleito presidente o general Costa e Silva. A partir daí,

a perseguição política se intensificou e a liberdade de imprensa foi praticamente

extinta. A situação piorou com a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5),

decretado em 1968 e que vigorou até 1979. Acobertada pelo novo instrumento

militar legal, a censura atingiu a imprensa, não poupando nem mesmo os jornalistas

de mais prestígio. Skidmore (1988) citou o exemplo de Carlos Castello Branco, o

mais conhecido colunista político do Brasil, que foi preso, juntamente com o diretor

do seu jornal, Jornal do Brasil. Posteriormente, seria preso também o editor do

mesmo jornal, Alberto Dines.

Em 1969, Costa e Silva sofreu um derrame e dois ministros assumiram

temporariamente os cargos de presidente e vice-presidente. Em 25 de outubro de

1969, por meio de uma eleição indireta, foi eleito como presidente o general Emílio

Médici, que governaria o país até 1974. Foi o governo mais repressor quanto à

censura na imprensa e quanto aos grupos contrários ao governo.

Só podiam ser publicadas notícias que passassem pela avaliação do governo.

Jornais que desobedecessem a essa regra sofriam punições como tortura aos

editores, diretores e funcionários, além de muitas vezes terem suas sedes

destruídas. Em setembro de 1972, o governo militar decidiu assumir mais

diretamente o controle da imprensa. As ordens eram dadas por escrito especificando

o que não podia ser publicado. Na lista de assuntos proibidos, a prioridade era para

as atividades do aparelho de segurança e a luta pela sucessão presidencial

(SKIDMORE, 1988).

Segundo Quaresma (2010), Lúcio Flávio reapareceu nas páginas das

crônicas policiais em 1969, época em que a censura era mais rigorosa. Entretanto,

seu nome não aparecia somente como procurado pela polícia. Ele era audacioso,

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pois tinha a coragem de denunciar a existência do Esquadrão da Morte e os policiais

que faziam parte desse grupo de extermínio (cf. trecho que citamos da carta que

Lúcio Flávio enviou ao jornal O Globo, p. 35).

Os esquadrões da morte eram organizações compostas por policiais civis que

atuavam em vários estados como São Paulo, Rio do Janeiro, Alagoas e Espírito

Santo. Segundo Meneghetti (2011), esses grupos surgem e se sustentam em

contextos econômicos favoráveis à exploração de atividades ilegais, além de

parasitarem o poder político, beneficiando-se dele ao mesmo tempo em que

trabalham para ele. O autor afirma que os fundamentos dessas organizações

constituem-se numa relação simbiótica com a exploração de contravenções como

tráfico de drogas e armas, roubo de carros, venda de proteção policial, exploração

de jogos ilegais, prostituição, tráfico de influência e outras, associando-se com o

poder político em benefício recíproco e de proteção por meio do corporativismo

policial e político em solidariedade criminosa.

O Esquadrão da Morte do Rio de Janeiro, grupo com o qual Lúcio Flávio

manteve relações por um tempo, surgiu por volta da década de 1960. Os motivos

apontados por Meneghetti (2011) para o surgimento desse grupo foram os altos

índices de criminalidade e o sentimento de insegurança da população no final dos

anos 1950 e início dos anos 1960. Os conflitos armados entre bandidos e policiais

nessa época tornaram-se comuns, provocando mortes de policiais, o que gerava

revolta e atiçava o sentimento de vingança dos policiais.

O objetivo dos esquadrões era ocultado, mas os jornais noticiavam que era

matar bandidos perigosos e considerados irrecuperáveis. Formado por homens

discretos e silenciosos, era quase impossível saber sobre suas missões, o que

dificultava a cobertura dos fatos por parte da imprensa.

Com a existência desses grupos, a mentalidade de matar tornou-se presente

na sociedade formando uma cultura de extermínio de bandidos, que permaneceu em

vários outros grupos além daqueles formados pelos policiais civis, como os dos

matadores de aluguel, com participação de policiais ou não. Meneghetti (2011)

afirma que não era possível afirmar a existência de apenas um esquadrão da morte,

mas de vários, cada um funcionando à sua maneira e atendendo a interesses

específicos.

Com o apoio político do governo da ditadura e com notícias “construídas”

pelos jornais a favor da ação dos policiais dos esquadrões da morte, a população via

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nas execuções praticadas por esses grupos o meio mais eficiente de eliminar

bandidos perigosos e diminuir a criminalidade.

A violência, no entanto, não estava presente somente no universo deles ou

das torturas e execuções de pessoas acusadas de serem contrárias às ideias do

governo. Segundo Skidmore (1988), os interrogatórios sobre crimes comuns, como

roubos e assaltos, muitas vezes incluíam maus-tratos físicos que praticamente não

deixavam marcas (espancamento com uma vara enrolada em toalhas úmidas,

choques elétricos, quase sufocação etc.).

Na biografia de Lúcio Flávio, há um relato de um espancamento durante um

interrogatório em que era suspeito de ter matado dois bandidos que faziam parte da

sua quadrilha, Marco Aurélio e Armandinho. Transcrevemos um trecho em que a

violência foi utilizada pelo delegado Bechara14 para interrogar Lúcio Flávio:

E2:

- Tira a roupa dele. Completamente nu, Lúcio Flávio é amarrado à cadeira, braços algemados para trás. - Por que mataram Armandinho e Marco Aurélio? – pergunta Bechara. - Coisa particular. Bechara se enfurece com a resposta, segura Lúcio pelos cabelos, aplica-lhe violenta bofetada. - Aqui não tem nada de particular, patife. Quero saber de tudo. Por que mataram os dois? - Não responde. Um dos encapuzados aplica-lhe uma cutelada no ombro, Lúcio chora de dor, mas não fala. [...] Bechara volta a fazer a pergunta, mas sabe que jamais Lúcio Flávio responderá. Mesmo assim, interroga. O encapuzado do estilete crava-o de novo na altura dos rins. Lúcio contorce-se, enquanto se inicia a sessão de pancadaria. Ignora o que aconteceu depois disso. Não sabe quanto tempo permaneceu desacordado. Quando abriu os olhos, muito devagar, em qualquer dia, e pôde mexer com as mãos, e pôde escorregar os dedos de leve pelo rosto, sentiu que estava todo cheio de ferimentos. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 49, 51).

Em 1974, com a eleição de Ernesto Geisel para presidente, houve uma

pequena abertura em relação à repressão. Diminuíram os casos de perseguição

política e a censura não era mais tão repressiva quanto a do governo anterior.

                                                            14 No livro Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, assim como no filme, os nomes dos policiais foram trocados. Os nomes dos bandidos, familiares e amigos de Lúcio Flávio foram mantidos segundo consta na reportagem citada da revista Veja.  

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Geisel, segundo Skidmore (1988) e Fausto (1995), não fazia parte do grupo dos

militares “linha dura”. Esse afrouxamento em relação à censura é que permitiu que a

história de Lúcio Flávio fosse publicada na forma de um livro por volta de 1975 e no

cinema em 1977. O diretor do filme, Hector Babenco, em entrevista à revista Veja

(edição 496), disse que alguns anos antes a exibição do filme não seria liberada.

Isso porque tanto o livro quanto o filme relatam a violência existente na sociedade

carioca com os assaltos e roubos de carros cometidos pela quadrilha de Lúcio Flávio

e a ineficiência do governo em prover segurança para a população. Além disso,

ambas as obras mostram a corrupção policial pela menção do Esquadrão da Morte

da capital Rio de Janeiro e também o fraco sistema de segurança das delegacias e

penitenciárias da época, já que Lúcio Flávio conseguira fugir desses

estabelecimentos pelo menos 34 vezes.

Além dessa “abertura” em relação à censura, o filme Lúcio Flávio: o

passageiro da agonia teve permissão para ser exibido porque só mostrava a

fragilidade e a corrupção da polícia civil. Como condição para liberar a exibição da

película, os produtores tiveram que se comprometer a não deixar que fossem ao ar

cenas que denegrissem a imagem da polícia federal segundo Hector Babenco em

entrevista à revista Veja (edição 496).

Portanto, a trajetória relatada pelo filme passa pelo crivo do Estado que só

permitiu a exibição de uma biografia de um bandido nas telas na época da ditadura

porque as cenas não denegriam a imagem do governo. A Polícia Federal é que

capturou Lúcio Flávio e o prendeu antes de sua morte na prisão.

1.4 Algumas considerações

Neste capítulo, procuramos inserir a obra Lúcio Flávio: o passageiro da

agonia no âmbito das escritas biográficas. Por meio de elementos e características

apresentados que compõem as biografias por intermédio dos autores citados como

Lejeune (2008), Arfuch (2010), Vilas Boas (2008), Bruck (2009) e Bourdieu (1996),

vimos que esse tipo de escrita transita entre o real e o ficcional, entre o público e o

privado, entre a expressão de um indivíduo, assim como o de uma época. A obra

Lúcio Flávio: o passageiro da agonia apresenta esses aspectos, os quais apontamos

ao longo do capítulo.

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Lejeune (2008) considera as biografias como obras referenciais pela relação

direta com o factual e afirma que o objetivo dos textos biográficos não é a simples

verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro; não o “efeito de real”, mas a

imagem do real. A obra Lúcio Flávio, o passageiro da agonia é um romance-

reportagem cuja dimensão referencial tem a ver com os dados históricos que

apresenta. O fato de ter no título o nome do personagem biografado remete às

formulações de Lejeune (2008) sobre como o nome no título do livro está

relacionado ao tipo de leitura que deve ser feita da obra: é um “pacto” de leitura.

Diferentemente de Lejeune (2008), Arfuch (2010) não tem como foco principal

em seu estudo sobre o espaço biográfico se uma biografia é uma obra referencial ou

se há uma relação de identidade entre biógrafo e biografado. A autora explora os

elementos ficcionais presentes nesse tipo de escrita. Para ela, a biografia transita

entre o testemunho, o romance, o relato histórico, o ajuste a uma cronologia, a

invenção do tempo narrativo, a interpretação minuciosa de documentos e a

figuração de espaços reservados. Assim, a biografia não deve ser vista como algo

estritamente referencial.

Além de Arfuch (2010), Vilas Boas (2008) faz algumas considerações acerca

da literariedade que pode existir nas biografias, mesmo aquelas escritas no âmbito

do jornalismo. Assim, ele afirma que os livros-reportagens, por exemplo, mesclam a

realidade e a literariedade. Bruck (2009) também aborda questões referentes à

realidade e à ficção presentes nas biografias. Bourdieu (1996), ao mencionar a

ilusão biográfica, também trata da questão da ficção e da realidade na biografia, já

que essa ilusão trata-se de um engano dos biógrafos em relação a explicitar

detalhadamente a trajetória de um biografado.

Alguns dos elementos ficcionais da biografia analisada que se destacam são

os diálogos entre os personagens e as reflexões de Lúcio Flávio sobre sua vida.

Como o livro foi escrito após a morte do biografado e não foi feita nenhuma

entrevista com ele para que o autor pudesse reproduzir certos diálogos ou reflexões,

afirmamos que há um caráter ficcional nesses diálogos. Entretanto, não

desprezamos certos fatos narrados que são semelhantes a alguns fatos vividos por

Lúcio Flávio, como assaltos, roubos e seu assassinato.

Além disso, ao apresentarmos o perfil e algumas características do biografado

consultando outras fontes além da biografia, chegamos à conclusão de que Lúcio

Flávio se destacava na sociedade (pelos crimes e cobertura que a mídia fazia sobre

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eles), o que o torna, segundo os apontamentos de Vilas Boas (2002), um indivíduo

que mereceu o respeito e estimulou a capacidade individual de investigação do

biógrafo. A vida de pessoas célebres, sejam heróis ou bandidos, desperta a atenção

de diferentes tipos de leitores conforme Vilas Boas (2002). Prova disso é o sucesso

de bilheteria do filme inspirado na biografia de Lúcio Flávio de acordo com a revista

Veja (edição 496).

Pelo fato de uma biografia ser expressão de uma época e não somente de um

indivíduo, como afirma Arfuch (2010), consideramos o contexto histórico e social em

que Lúcio Flávio vivia e que foi retratado em sua história para um estudo mais

completo da sua vida, o que pode contribuir para nossa conclusão em relação ao

seu comportamento, levando-nos a uma melhor percepção das suas imagens e dos

seus ethé.

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CAPÍTULO 2: VOZES QUE NARRAM: DIALOGISMO E POLIFONA EM

LÚCIO FLÁVIO, O PASSAGEIRO DA AGONIA

O objetivo deste capítulo é apresentar os aspectos enunciativos, dialogismo e

polifonia, presentes na biografia em questão. Antes de elucidar esses dois aspectos,

porém, discorremos sobre a enunciação, baseando-nos em Bakhtin (1992, 2003) e

Benveniste (1989). Para contemplar a relação entre dialogismo e o gênero biografia,

baseamo-nos em Arfuch (2010). Considerando outras fontes em que buscamos mais

informações sobre a vida de Lúcio Flávio, abordamos o interdiscurso, a partir de

Maingueneau (2008) e Orlandi (1994, 2010), para relacionarmos a biografia, o filme

sobre Lúcio Flávio e algumas entrevistas do autor e roteirista José Louzeiro. Tal

abordagem foi feita com o intuito de analisarmos como essas outras fontes ajudam a

compor a imagem dessa personalidade retratada em nossa pesquisa.

2.1 Aspectos enunciativos: dialogismo e polifonia

O emprego da língua, segundo Bakhtin (2003), efetua-se em forma de

enunciados concretos e únicos que são proferidos pelos integrantes dos diversos

campos da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas

e as finalidades de cada campo da atividade humana. Para o autor, o enunciado é a

unidade real da comunicação discursiva. Entende-se, assim, que, para que haja

comunicação, é necessário que haja enunciado, que é visto como o produto da

enunciação.

De acordo com Bakhtin (1992), a enunciação ocorre a partir da interação de

dois indivíduos socialmente organizados, e, mesmo que o interlocutor, a quem cabe

a capacidade responsiva ao enunciado do locutor, não esteja presente no momento

em que houve a enunciação, ainda assim a enunciação existirá. Essa interação

entre os sujeitos instaura o caráter dialógico da enunciação, que é caracterizada

pelo teórico como fenômeno da interação social, um fazer coletivo e que não pode

ser tratada como atividade individual.

Bakhtin (1992) afirma que o sentido ou o tema da enunciação é concreto,

único, individual e expressa a situação histórica no momento da enunciação. A

enunciação não é repetível, mas ela é composta por elementos repetíveis, que são

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os enunciados. Estes podem se repetir, mas sua inscrição histórica no tempo e o

contexto em que aparecem são únicos. Logo, a enunciação, que é o resultado do

uso dos enunciados, não pode se repetir devido às suas características relacionadas

ao tempo, às variações psicológicas do emissor e aos aspectos linguísticos da

enunciação.

Citamos neste ponto Benveniste (1989), pois ele considera que “a enunciação

é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (p. 82).

Para ele, a enunciação se define, como realização individual, em relação à língua

como um processo de apropriação: o locutor se apropria do aparelho formal da

língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices específicos e de

procedimentos acessórios. Já que a apropriação da língua nesse ato de enunciar é

individual, logo as características da enunciação mencionadas por Bakhtin (1992)

relacionadas ao tempo e aspectos linguísticos, por exemplo, serão utilizadas pelo

locutor de modo único, tornando a enunciação algo impossível de ser repetido.

Baseando-se em Bakhtin, Rechdan (2003) afirma que a distinção entre tema

e significação, termos já citados, está relacionada à questão da compreensão. Todo

tipo de compreensão deve ser ativo e deve conter já o indício de uma resposta. Ao

compreendermos a enunciação de outrem, orientamo-nos em relação a ela,

encontrando o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da

enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma

série de palavras nossas, formando uma resposta. Assim sendo, a compreensão é

uma forma de diálogo, pois a partir do que ouvimos formulamos alguma resposta

para aquela enunciação.

A noção de compreensão deixa margem para o diálogo, já que supõe uma

réplica por parte do outro a que o enunciado foi dirigido. Para Rechdan (2003),

nessa noção pode-se resumir o esforço dos interlocutores em colocar a linguagem

em relação frente a um e a outro. O locutor enuncia em função de uma interação

face a face ou não de um interlocutor, requerendo deste uma atitude responsiva,

com antecipação do que o outro vai dizer, isto é, experimentando ou projetando o

lugar de seu ouvinte. Uma enunciação significativa propõe uma réplica:

concordância, apreciação ou ação, por exemplo. A enunciação instaura um

movimento dialógico dos enunciados em confronto com os nossos próprios dizeres e

com os dizeres dos outros.

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Na visão de Bakhtin (1992), a verdadeira substância da língua é constituída

pelo fenômeno social da interação verbal realizada por meio da enunciação. A

interação verbal constitui a realidade fundamental da língua. Essa interação não

pode ser vista somente como o diálogo face a face entre os interlocutores, mas sim

como a noção bakhtiniana de diálogo que é mais ampla, envolvendo qualquer tipo

de comunicação verbal. Dessa forma, o texto impresso, assim como a comunicação

oral, constitui um elemento da comunicação verbal. O discurso escrito é também

dialógico, pois ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas

e objeções potenciais, e assim por diante.

Portanto, o diálogo realiza-se na linguagem e está presente em qualquer tipo

de discurso. O dialogismo é constitutivo da linguagem, pois mesmo entre produções

consideradas monológicas, há uma relação dialógica; sendo assim, todo dizer é

dialógico.

Na visão bakhtiniana, o dialogismo é parte constitutiva da linguagem e está

sempre presente na interação verbal. Já a polifonia se caracteriza pela presença de

vozes independentes e polêmicas em um discurso. Dialogismo, portanto, é diferente

da polifonia.

A polifonia nem sempre está presente no discurso, mas o dialogismo sim. Até

nos textos monofônicos, o dialogismo está presente por meio de diálogos

mascarados, pois somente uma voz se faz ouvir; as demais são abafadas. Na

polifonia, o dialogismo pode parecer mais visível por se deixar ver por meio de

muitas vozes polêmicas. Assim, como afirma Rechdan (2003), há distinção entre a

polifonia (dialogismo polifônico) e a dialogia (monofonia ou dialogismo monofônico).

Em relação aos aspectos teóricos da polifonia, baseamo-nos em Bakhtin

(2002) que analisa a polifonia nos romances de autoria do escritor russo Fiódor

Dostoiévski. Em relação a Dostoiévski, Bakhtin (op. cit.) afirma que

Suas obras marcam o surgimento de um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum. A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características mas tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis (p. 18).

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Na concepção de Bakhtin (2002), Dostoiévski inaugura uma nova posição do

autor com relação ao herói de seu romance, uma posição que é dialógica, ou seja,

que está em diálogo. A voz do herói é tão verdadeira quanto a do autor e os dois

dialogam entre si. Isso garante a liberdade do herói, sua falta de acabamento, sua

incompletude, que, para Dostoiévski, é a representação mais realista do homem.

Essa independência do herói pode parecer contraditória pelo fato de ele ser

uma criação do autor. Entretanto, Bakhtin (op. cit.) afirma que não há contradição.

Há uma liberdade dos heróis nos limites do plano artístico e, nesse sentido, ela é

criada do mesmo modo que a não-liberdade do herói objetificado. Criar, segundo

Bakhtin, não significa inventar. Toda criação é concatenada tanto por suas leis

próprias quanto pelas leis do material sobre o qual ela trabalha. Ela é determinada

por seu objeto e sua estrutura; por isso, não admite o arbítrio e, em essência, nada

inventa, mas apenas descobre aquilo que é dado no próprio objeto.

Dessa maneira, a liberdade dos heróis é que permite a existência de uma

relação dialógica com o autor, conferindo, assim, a polifonia às obras de Dostoiévski.

A polifonia apresentada por Bakhtin (2002) diz respeito à concatenação das vozes

narrantes na obra, ou seja, à voz do herói e à voz do enunciador.

Bezerra (2005), seguindo a linha de Bakhtin, afirma que o autor do romance

polifônico deixa que as personagens e suas consciências se definam por elas

mesmas no diálogo com outros sujeitos-consciências, pois as sente a seu lado e à

sua frente como consciências equivalentes dos outros; nenhuma voz se sobrepõe a

outra. Essas vozes são tão infinitas e não-conclusivas, assim como a do autor.

A polifonia é caracterizada pela posição do autor como “regente do grande

coro de vozes” que participam do processo dialógico segundo Bezerra (2005). Esse

autor é ativo na medida em que rege vozes que ele cria ou recria; entretanto,

deixando que se manifestem com autonomia. Para Pires e Tamanini-Adames

(2010), o ativismo do autor tem um caráter dialógico especial e está diretamente

vinculado à consciência ativa e igualitária do outro. Esse ativismo estabelece uma

relação dialógica entre a consciência criadora e a consciência recriada, participando

do diálogo em que há a interlocução com outras vozes, inclusive com a voz do autor.

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2.2 Análise de aspectos enunciativos na biografia de Lúcio Flávio

Arfuch (2010) aborda questões relativas ao dialogismo de Bakhtin ao propor

um mapeamento do espaço biográfico na contemporaneidade. Ela afirma que a

concepção bakhtiniana do sujeito habitado pela alteridade da linguagem, compatível

com a psicanálise, habilita a ler, na dinâmica funcional do biógrafo, em sua

insistência e até em sua saturação, a marca da falta, esse vazio constitutivo do

sujeito que convoca a necessidade de identificação e que encontra no valor

biográfico, como ordem narrativa e atribuição de sentido à (própria) vida, uma

ancoragem sempre renovada.

Dessa maneira, todo relato biográfico só conseguirá se estabelecer, segundo

Bakhtin (apud ARFUCH, 2010), a partir de um contexto em que se deve aceder à

própria biografia em seus momentos precoces (o nascimento, a origem, a primeira

infância), por meio das palavras alheias, por uma trama de lembranças de outros

que fazem uma unidade biográfica valorizável.

Arfuch (2010) reflete sobre o dialogismo de Bakhtin:

se a descoberta do princípio dialógico bakhtiniano colocava em questão a unicidade da voz narrativa, como abordar o quem do espaço biográfico? Como se aproximar desse entrecruzamento das vozes, desses eus que imediatamente se desdobram não só num você mas também em outros? Tanto Lejeune, ao escolher a expressão de Rimbaud para o título de seu livro (Je est un autre), quanto Ricouer (Soi-même comme un autre) assinalam, nessa espécie de oximoro, o descentramento e a diferença como marca de inscrição do sujeito no decurso narrativo (p. 122).

Essa marca de inscrição é uma marca linguística segundo Arfuch (2010). O

romance é o território privilegiado para a experimentação na medida em que pode

operar no marco de múltiplos “contratos de veracidade”, enquanto a margem se

estreita no espaço biográfico, entre relato factual e ficcional.

A variedade de possibilidades de inscrição da voz narrativa no espaço

biográfico, que vai das formas canônicas às menos discerníveis, dialogam com a

polifonia bakhtiniana, pois o que está em jogo não é, segundo Arfuch (2010), uma

política de suspeita sobre a veracidade ou a autenticidade da voz, ou seja, o

pertencimento, mas a aceitação do descentramento constitutivo do sujeito

enunciador.

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Dessa forma, acreditamos que, ao escrever a vida de alguém, o autor já entra

em um processo dialógico com aquele que foi biografado. Esse processo não

consiste no simples conhecimento do autor sobre os fatos da vida do biografado e a

transcrição desses fatos para um livro. É mais do que isso: para Arfuch (2010), os

autores, comprometidos com seu objeto de estudo, renunciam à literalidade da

transcrição para realizar uma trama significante das vozes, tentando resgatar, na

articulação de fragmentos de diferentes enunciadores, uma tonalidade expressiva

longe dos tropeços do oral e da artificialidade do “escrito”. Eles buscam na

autenticidade das vozes, uma forma de modulação vívida e literária.

A obra Lúcio Flávio, o passageiro da agonia faz essa articulação entre vários

enunciadores, conferindo um caráter literário, mas sem fugir do factual. Realidade e

ficção estão entrelaçadas nessa obra a partir da polifonia criada pela forma de

narrar: diversas vozes presentes para contar a história do Lúcio Flávio que poderão

ser observadas a seguir.

Consideramos que a voz do biografado sobre si e dos demais personagens

sobre ele não é uma mera visão objetiva do autor, José Louzeiro, sobre Lúcio Flávio.

Essa constatação pode ser confirmada pela entrevista que Louzeiro concedeu ao

blog Estranho Encontro, no qual afirmou que ouviu a história do próprio Lúcio Flávio

antes de publicá-la e por meio de reportagens que saíram na época da morte de

Lúcio Flávio, como a reportagem citada da revista Veja (edição 496), em que vários

fatos da vida do protagonista estão de acordo com os fatos narrados por Louzeiro.

Além disso, Louzeiro contou na entrevista cedida ao blog que sentia muito por Lúcio

Flávio não ter podido ler sua história em um livro, já que Louzeiro só o publicou após

a morte do biografado.

A peculiaridade da obra analisada é que se trata de uma narrativa de cunho

biográfico em que o próprio biografado e outros personagens ganham voz por meio

de diálogos. Essas vozes são autônomas e, podemos dizer polêmicas,

características de um romance polifônico segundo Bakhtin (2002).

Pode ser um pouco arriscado falarmos em romance polifônico, que, como

vimos, trata-se de um tipo de romance inaugurado por Dostoiévski conforme Bakhtin

(2002). Entretanto, por se tratar de uma narrativa em que há a presença de várias

vozes e vários sujeitos que ganham voz, arriscamo-nos a falar que a obra Lúcio

Flávio: o passageiro da agonia possui um caráter polifônico mais acentuado.

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As vozes presentes na biografia em questão são autônomas e cada

personagem possui uma consciência que não é “dominada” pela voz do autor. A

autoconsciência do “herói”, ou seja, de Lúcio Flávio, é perceptível em alguns trechos

da obra, principalmente quando ele reflete sobre sua posição na sociedade como um

criminoso, como podemos observar nos excertos a seguir:

E3: [Lúcio se recorda da frase do coronel Mendonça que disse que arte se faz com dez gramas de talento e novecentos e noventa de trabalho duro.] - Pura verdade. Uns nada fazem por falta de tempo ou condições. Eu não faço porque sou legalidade e crime, vida e morte, água cristalina cobrindo o lodaçal. A mão que procura os traços para fazer girar o moinho é a mesma que matou Marco Aurélio, Armandinho e Domingão (LOUZEIRO, 1990, p. 155).

O excerto E3 é uma reflexão de Lúcio Flávio sobre sua posição perante a arte

e o crime ao mesmo tempo. Segundo consta na narrativa, antes de virar um

bandido, ele quis ser pintor. Entretanto, não seguiu esse caminho, mas sim o

caminho do crime. Em uma das vezes em que foi preso, um coronel permitiu que

Lúcio Flávio tivesse a oportunidade de pintar telas e ler livros sobre arte. Ele arriscou

a pintar quadros e gostava dessa atividade, mas teve que abandonar mais uma vez

a arte, pois tinha surgido uma oportunidade para fugir da prisão.

Em outro trecho, ele pensa sobre sua situação como bandido:

E4: [Em sua segunda prisão retratada na narrativa, Lúcio pensa sobre o lugar em que está.] [...] Os piores do país estavam ali. Os mais temidos, os que tinham proporcionado as mais sensacionais matérias para a imprensa, os que tinham passado semanas inteiras nas manchetes. Não se sentia orgulhoso disso. Nem triste. Era o que era (LOUZEIRO, 1990, p. 110, 111).

Lúcio Flávio pensa em sua prisão como um lugar para os criminosos mais

perigosos do Rio de Janeiro e se considera como um dos mais perigosos.

Entretanto, dizia não ter nenhum sentimento por estar (e viver) naquela situação.

Essa reflexão, no entanto, é muito diferente da que veremos a seguir:

E5: Adeus, Janice. Adeus, Leo. Adeus, Antônio Branco, Maneta, Padre. Adeus, Béni. Que Deus te mantenha nas lonjuras do deserto. Adeus,

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Dondinho. Não chore mais por mim, mãe. Não se preocupe mais comigo, pai. Já estou tão morto, que nem posso odiar Nadja. Me sinto tão distante e tão perto de Nijini. Não pertencemos a este mundo. Somos passageiros da agonia, perdidos num vendaval. Todas as portas se fecham ante a nossos olhos. Marchamos em torno de uma rocha gigante, puxando as correntes da nossas contradições, dos nossos erros e dos erros de todos os mortais. A nós não nos cabem sentimentos, nem amarguras. Mataram Maneta porque era amargo. Antônio Branco e Horroroso pelo mesmo motivo. Somos o lado mau da espécie. A mancha que deve ser apagada a ferro e fogo. Perdi a corrida para você Bechara que é muito pior do que eu, Antônio Branco, Horroroso, Liece, Nijini e Fernando C.O. um bandido não deve ter fraquezas. Por ser bandido, ele deve agir na sombra, no momento em que menos se espera. [...] Nós confundimos tudo. Misturamos erros com acertos, amor com ódio, lealdade com traição. Um imperdoável romantismo nos corrompeu. Bechara é o grande mestre. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 236).

Essa é uma reflexão feita no final do livro, quando Lúcio Flávio já tinha sido

preso diversas vezes e quando tinha perdido seu irmão Nijini e seus colegas

assassinados por bandidos ou policiais que faziam parte do grupo de extermínio

Esquadrão da Morte. Existe uma gradação dessas reflexões de Lúcio Flávio sobre si

ao longo da narrativa: ele demonstra uma autoconsciência sobre si e sobre seus

atos que vão mudando de acordo com os acontecimentos como sucesso em um

roubo, prisões, fugas, momentos felizes com sua mulher e seu filho e fracasso dos

seus planos.

A partir da voz do Lúcio Flávio que se faz presente, seja por meio de reflexões

como essa citada, seja em diálogos, é que iremos identificar seu ethos na obra.

Suas imagens serão mostradas a partir das outras vozes presentes na história:

vozes que o caracterizam e que revelam quem foi Lúcio Flávio.

Em relação às outras vozes presentes na narrativa, citamos alguns diálogos

em que certos personagens não somente falam sobre Lúcio Flávio ou com ele, mas

deixam vir à tona o que pensam sobre ele mediante caracterizações, como

observamos nos excertos E6 e E7:

E6: [Dondinho fala sobre Lúcio Flávio a um policial.] - Ele foi sempre respeitado pelos outros. Quando se enfezava brigava com menino bem maior. E levava a melhor. Em outras vezes trazia um livro com figuras e vinha me mostrar. Olhava aquelas gravuras de cidades distantes, dizia que um dia ia até lá. E me convidava também para ir. Era assim o Noquinha. Um menino

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sonhador. Quer ir a lugares distantes, desses que a gente vê nas revistas. - Vovô então acha que esse bandido é um bom cara? – pergunta o policial. – Não tou falando de bandido, moço – respondeu Dondinho. – Falo do garoto que veio pra cá com certa idade e terminou de se criar. Se deu no que deu foi culpa nossa. Ou mais nossa do que dele. É esse mundo aí fora que tá transformando as pessoas e as próprias coisas. [...] - Vovô – diz o policial –, as pessoas são o que são. Se a gente for analisar tudo direitinho não prende ninguém (LOUZEIRO, 1990, p. 32).

Nesse trecho, o vizinho de Lúcio Flávio, que o viu crescer, ainda o vê como

um garoto sonhador que não tem culpa por ser um bandido. Já o policial o vê

simplesmente como um bandido que, como qualquer bandido, merece ser preso.

Transcrevemos a seguir o diálogo entre Lúcio Flávio e o policial 132. Lúcio

Flávio estava sendo procurado pela polícia mineira, pois estava naquele momento

em Belo Horizonte. Sabendo que seria difícil escapar dessa situação, o policial 132

propõe a Lúcio Flávio que se deixasse prender e depois o ajudaria a fugir da prisão:

E7: - Acho que um flagrante de prisão, lavrado daqui a pouco, resolveria tudo. Janice e o menino voltavam depois. Nada de complicar a menina nisso. - Voltar ao presídio, como cachorro, com o rabo entre as pernas. É o tipo de proposta que não se faz a um amigo. - Pode não ser boa, mas é inteligente. E tu tem fama de homem inteligente. Até amanhã estarei na cidade. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 205, 206).

O policial 132 diz a Lúcio Flávio que ele tem fama de inteligente. Nos

diálogos, as caracterizações de Lúcio Flávio aparecem pelas vozes de outros

personagens em toda a narrativa.

2.3 José Louzeiro como fonte enunciativa

É importante neste trabalho considerarmos a voz enunciativa do autor da obra

estudada, já que ele enuncia por meio das vozes do narrador, dos personagens

periféricos e do personagem principal, Lúcio Flávio. Ao narrar os fatos sobre o

biografado, Louzeiro dá a entender que conhecia a vida de Lúcio Flávio.

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Segundo consta no posfácio da edição de Lúcio Flávio: o passageiro da

agonia analisada neste trabalho, José de Jesus Louzeiro nasceu em setembro de

1932, em São Luís, Maranhão. Aos 16 anos, já se iniciava no jornalismo (no jornal O

Imparcial, no Maranhão) na condição de aprendiz de revisor gráfico. Em janeiro de

1954, transferiu-se para o Rio. Trabalhou em diversas revistas e jornais. Foi repórter

de polícia por mais de 20 anos. Sua profissão pode tê-lo motivado a escrever obras

que remetem a casos reais de crimes e de personagens que faziam parte da esfera

do crime.

Além de Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, Louzeiro escreveu outros

livros: um livro sobre Aracelli, uma criança de oito anos assassinada em 1973 no

estado do Espírito Santo, intitulado Aracelli, meu amor15; um sobre o garoto de rua

Pixote, intitulado Pixote, infância dos mortos16, que conta a história de menores

abandonados que viveram nas ruas e que foram encaminhados para instituições

para crianças e adolescentes criminosos; e escreveu também Em Carne Viva17,

lembrando o drama de Zuzu Angel e de seu filho Stuart Angel morto na década de

1960 pela ditadura militar.

Os três livros citados acima, além do livro estudado nesta pesquisa, foram

apenas algumas das obras de cunho jornalístico-investigativo que Louzeiro

escreveu. Ele também é autor das biografias de Elza Soares, intitulada Elza Soares

– Cantando Para Não Enlouquecer – a "intérprete guerreira" da música popular

brasileira e do Gregório Fortunato, o guarda-costas de Getúlio Vargas, intitulada O

Anjo da Fidelidade. Portanto, ele é um biógrafo com uma lista extensa de obras que

narram vidas de pessoas envolvidas em crimes, como Lúcio Flávio e Pixote, e de

pessoas célebres como Elza Soares. O fato de ser um repórter investigativo pode

conferir credibilidade à sua atuação como biógrafo, já que escritores desse tipo de

narrativa devem pesquisar e investigar a vida do seu personagem para conquistar

seu público leitor. Há um suposto trabalho de busca em fontes documentais.

José Louzeiro teve uma intensa carreira no jornalismo, como já afirmamos.

Foram mais de 20 anos como repórter investigativo e, como escritor, são mais de 50

obras entre romances-reportagem, biografias, roteiros de filmes e de novelas, além

de vários contos.

                                                            15 LOUZEIRO, José. Aracelli, Meu Amor. 1. ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1976. 16 LOUZEIRO, José. Infância dos Mortos (Pixote).1. ed. São Paulo: Record, 1977. 17 LOUZEIRO, José. Em Carne Viva. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 1980. 

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Consultamos algumas entrevistas dadas por Louzeiro, atualmente com 80

anos de idade18. Nessas entrevistas, ele conta como ingressou na carreira

jornalística e como se inspirou para escrever seus famosos romances-reportagens e

roteiros de filmes neles baseados, principalmente seu primeiro livro do gênero: Lúcio

Flávio: o passageiro da agonia.

Em entrevista ao blog Estranho Encontro, Louzeiro discorre sobre a figura de

Lúcio Flávio: um bandido vaidoso, megalômano e cobiçado pelas moças da época

por ser bonito e porque utilizava sua inteligência a serviço do crime: ele fugiu muitas

vezes da prisão, algumas até pela porta da frente, e negociava com policiais e até

delegados das prisões em que esteve preso. Essas qualificações referentes a Lúcio

Flávio na referida entrevista são semelhantes às qualificações presentes no livro

sobre Lúcio Flávio.

Nas entrevistas do programa Leituras e da TV Web, Louzeiro afirma que

Lúcio Flávio roubava por prazer. Ele não precisava disso e sempre distribuía o

dinheiro dos assaltos aos bancos ou os carros roubados para os pobres sem querer

parecer, no entanto, com o lendário bandido Robin Hood, pois Lúcio Flávio, segundo

Louzeiro, não gostava que os outros soubessem que ele fazia isso. Esse perfil de

Lúcio Flávio destoa da figura retratada no livro. O personagem na narrativa escrita

por Louzeiro era ambicioso e não repartia o dinheiro dos seus roubos com os

pobres.

José Louzeiro, nas duas entrevistas citadas, conta que Lúcio Flávio vinha de

uma família de classe média, abastada. Ele roubava para “aparecer”, por ser

vaidoso. O autor também afirma que Lúcio Flávio era um bandido formado pela

ditadura por ele ser uma pessoa de posses e mesmo assim um bandido. Em outras

fontes já citadas neste trabalho, como o site Cyber Polícia, o blog do Jornal do Brasil

e o artigo escrito por Quaresma (2010), Lúcio Flávio aparece como membro de uma

família mineira que pertencia à classe média. Mas com a ditadura e o fim do trabalho

do seu pai como cabo eleitoral do ex-presidente Juscelino Kubitschek, a família foi

para o Rio de Janeiro e passou por dificuldades financeiras. Lúcio Flávio não se

                                                            18 Entrevistas concedidas ao blog Estranho Encontro (cf. nota nº1), revista Veja (cf. nota nº 5) e revista Cult on line: entrevista intitulada “Mapa do Crime”. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/ home/2013/02/mapa-do-crime/>. Acesso em: 10 jun. 2013. Entrevista concedida ao articulista Carlo Nina da TV WEB Mhario Lincoln do Brasil. Disponível em: <http:/www.youtube.com/watch?feature=endscreen&=6bNVmSTpmOw&NR=1>. Acesso em: 5 jun. 2013.  

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conformava com esse novo modo de viver da família e, por isso, entrou para o

mundo do crime.

A fonte enunciativa José Louzeiro, presente no livro Lúcio Flávio: o

passageiro da agonia diverge da fonte enunciativa presente nas entrevistas citadas

em relação a algumas caracterizações de Lúcio Flávio referentes aos motivos que o

levavam a praticar crimes. A partir dessa divergência, tratamos o interdiscurso de

forma a observar como os diferentes relatos sobre esse criminoso contribuem para a

cristalização de certas imagens acerca de Lúcio Flávio para além da escrita

biográfica analisada.

2.4 A questão do interdiscurso: o livro, o filme e as entrevistas de José

Louzeiro

O interdiscurso, segundo Maingueneau (2008), é um conjunto de unidades

discursivas que pertencem a discursos precedentes com os quais um discurso

particular se relaciona de forma implícita ou explícita.

Para Orlandi (1994), o interdiscurso é o conjunto do dizível, que é histórica e

linguisticamente definido. O dizível refere-se ao já dito, exterior àquele que a

pronuncia, apresentando-se como um conjunto de discursos na memória.

O interdiscurso é chamado por ela de memória discursiva:

[...] o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada (ORLANDI, 2010, p. 31).

O discurso ganha sentido, conforme Maingueneau (2008), ao se relacionar

com outros discursos em uma relação de confronto. As palavras do sujeito em um

discurso testemunham sua realidade e suas formações discursivas em que

coexistem diferentes formações discursivas, surgindo o interdiscurso.

Dessa forma, relacionamos neste item três discursos que possuem uma

estreita ligação entre eles: o livro Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, o filme

homônimo e algumas entrevistas citadas anteriormente de José Louzeiro, autor do

livro e roteirista do filme. Apesar de o filme ser uma produção em formato diferente

do discurso escrito e algumas entrevistas pertencerem ao domínio oral, foi possível

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estabelecer a relação interdiscursiva com os discursos escritos, pois, como afirma

Maingueneau (2008), a prática discursiva pode ser considerada uma prática

intersemiótica, que integra produções de vários formatos.

Esses discursos se inter-relacionam ao terem como tema o bandido Lúcio

Flávio. O tema e o vocabulário fazem parte de um sistema de restrições semânticas

globais que, segundo Maingueneau (2008), dá conta do interdiscurso. Assim, a

presença desses sistemas de restrições nos discursos aqui analisados nos dá

subsídios para observarmos em que medida eles contribuem para a composição de

certas imagens de Lúcio Flávio.

O tema é importante pelo seu tratamento semântico. Maingueneau (2008)

afirma que para um discurso ser aceito ele precisa impor alguns temas que, por sua

vez, são impostos pelo campo discursivo ao qual certo(s) discurso(s) pertence(m).

Os discursos discutidos neste item abordam o mesmo conteúdo temático: o bandido

Lúcio Flávio. O livro e o filme tratam mais enfaticamente desse tema, pois são obras

sobre a vida desse homem; já as entrevistas tratam do tema somente em alguns

momentos quando o autor é solicitado a falar sobre ele.

Quanto ao vocabulário, sua importância está no valor semântico: as palavras

adquirem estatuto de signos de pertencimento e os enunciadores utilizam unidades

lexicais que marcam sua posição no campo discursivo segundo Maingueneau

(2008). Os campos semânticos relacionados nesses discursos colaboram com a

constituição da imagem com a qual o enunciador orienta o coenunciador a elaborar

de Lúcio Flávio.

No livro e no filme aparecem termos caracterizadores de Lúcio Flávio como

“passageiro da agonia” no título das obras; a palavra “inteligente” está presente tanto

nas obras quanto nas entrevistas; e o termo “vaidoso” nas entrevistas referindo-se a

uma qualificação de Lúcio Flávio. Há vários termos (cf. anexo I, grade 2, p. 106) que

marcam a posição de Lúcio Flávio em um campo discursivo.

Tanto a temática do filme e do livro quanto os termos que o qualificam no livro

contribuem para a compreensão das imagens de Lúcio Flávio como um bandido

bonito e que atraía as mulheres. Para reforçar essa imagem, seu papel no filme foi

interpretado por um galã da televisão brasileira da época: Reginaldo Faria. Pela

notoriedade que os jornais lhe davam devido às suas ações criminosos, Lúcio Flávio

era um “bandido famoso”; no livro, os policiais o ironizaram por ele já estar se

tornando uma “vedeta” pelo fato de suas fotos sempre aparecerem nos jornais. No

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filme, aparecem cenas nas quais vários jornais noticiam assaltos, prisões e fugas de

Lúcio Flávio. São também notícias os depoimentos nos quais delatava policiais que

faziam parte do Esquadrão da Morte do Rio de Janeiro.

Há, no entanto, uma imagem de Lúcio Flávio presente em duas entrevistas de

Louzeiro que destoa das imagens do livro e do filme. Na entrevista da TV Web e do

programa Leituras, Louzeiro contou que Lúcio Flávio roubava somente pelo prazer

de sentir o perigo e de chamar a atenção porque sua família ainda tinha dinheiro na

época em que ele roubava. Ele dava o dinheiro que roubava para os pobres, e,

apesar de roubar carros, ele possuía carro, dado pelo pai.

No livro e no filme, o que é contado é que ele precisava do dinheiro, pois sua

família já não tinha mais “posses”, e Lúcio Flávio, muitas vezes, tinha que pagar

muito dinheiro aos policiais ao negociar fugas e facilitações de assalto a bancos. Ele

era extorquido e até roubado. Assim, aos poucos, Lúcio Flávio foi perdendo sua

autonomia e, de alguma forma, sendo vítima de um esquema de corrupção.

Louzeiro, nas entrevistas citadas neste trabalho, discorre sobre a figura de Lúcio

Flávio como um bandido inteligente, vaidoso e megalômano (cf. entrevista do blog

Estranho Encontro, anexo 3, p. 122), que roubava somente para perturbar, por

diversão (segundo entrevista da TV Web).

O filme, homônimo ao livro, reforça mais a imagem de um homem belo e

cobiçado pelas mulheres ao ter como ator, que interpreta Lúcio Flávio, Reginaldo

Faria. Além de possuir características físicas semelhantes às de Lúcio Flávio: olhos

verdes e cabelos claros, o ator era considerado um galã do cinema nacional. Atuou

em vários filmes nas décadas de 1970 e 1980, dentre eles: Cidade Ameaçada

(1960), Assalto ao Trem Pagador (1962), Selva Trágica (1963), Os Paqueras (1969),

Roberto Carlos a 300 Quilômetros por hora (1972) e Quem tem medo do

Lobisomem? (1974).

As reproduções de algumas fotos de Lúcio Flávio e do ator Reginaldo Faria

no papel de Lúcio Flávio também ajudam a compor a imagem do biografado

representado: na (i) capa do livro da quarta edição (1978), que foi a edição mais

próxima ao lançamento (1975) que encontramos; (ii) na capa da edição analisada

neste trabalho (1990); no (iii) cartaz do filme lançado em 1977; e na (iv) capa da

revista Veja (edição 496) publicada em 3 de junho de 1978.

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(i) Capa da 4ª edição do livro. Fonte: Google Imagens. (ii) Capa da edição do livro analisada neste

trabalho (número da edição não informado no livro).

Fonte: Google Imagens.

(iii) Cartaz do filme lançado em 1977. (iv) Capa da revista Veja (edição 496) de 1978. Fonte: Google Imagens. Fonte: Acervo Digital da Revista Veja.

Em (i), a foto de Lúcio Flávio que estampa a capa do livro é em preto e branco

e está abaixo do título. Lúcio Flávio não tem um olhar direto, não olha para frente;

seu olhar parece perdido, não se fixa em lugar algum. Em (ii), capa da edição da

biografia de 1990, tem-se uma foto com o mesmo olhar não-fixo de Lúcio Flávio;

porém, a foto é colorida e está “rasgada”, aos pedaços. A qualificação “o passageiro

da agonia” não está mais abaixo do nome “Lúcio Flávio” como na capa anterior, mas

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sim em cima do nome, o que confere mais ênfase à qualificação. A foto aos pedaços

pode remeter à desconstrução do bandido Lúcio Flávio; pode ser até mesmo sua

destruição, configurando-o como um “passageiro da agonia”, qualificação que

parece estar acoplada ao seu nome devido à sua localização na capa.

No cartaz do filme (iii), está estampada a foto do ator Reginaldo Faria, que

interpretou Lúcio Flávio no cinema. A foto traz uma figura agressiva, com olhar

ameaçador. Ao contrário das capas das edições do livro (i) e (ii), o fotografado olha

pare seu interlocutor; é um olhar direto e interpelador. Além disso, há uma mão

empunhando uma faca suja de sangue e um jornal com a manchete “15ª prisão de

Lúcio Flávio”, o que remete à violência e ao fato de Lúcio Flávio ser um criminoso. A

estampa de um jornal na capa do filme lembra também o fato de Lúcio Flávio ser

uma “notícia”, fato que aparece tanto no livro quanto nas cenas do filme.

A capa da Veja (iv) com título “Lúcio Flávio” A vida real no cinema traz a foto

do ator Reginaldo Faria com a legenda: “O ator Reginaldo Faria em ‘Lúcio Flávio: o

passageiro da agonia’.” Na foto, o ator está de perfil e sorrindo, o que contrasta com

a foto do cartaz do filme em que sua figura não é mais a do ator, mas sim do

personagem Lúcio Flávio.

Essas reproduções corroboram as imagens presentes na biografia e no filme

sobre Lúcio Flávio: um bandido bonito, como pode ser visto na capa da sua biografia

(i) e por isso interpretado por um galã do cinema nacional da época (iv); agressivo,

por isso a presença da faca ensanguentada no cartaz do filme; famoso, por isso a

reprodução de uma capa de jornal com a notícia de uma prisão de Lúcio Flávio (iii);

e um sujeito que está se “esfacelando”.

2.5 Algumas considerações

Concordamos com Arfuch (2010) no que se refere ao caráter dialógico das

biografias: há um descentramento constitutivo do sujeito enunciador. São várias

fontes e vozes às quais o biógrafo recorre na composição de sua narrativa.

Em relação à polifonia proposta Bakhtin (2002), consideramos que a obra em

análise possui os requisitos para ser considerada uma obra polifônica: o herói possui

uma autoconsciência e há a presença de várias vozes de outros personagens

trazidas por meio dos diálogos na narrativa. Além disso, há uma concatenação das

vozes narrantes na obra da voz do herói e da voz do enunciador. Segundo Bezerra

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(2005), a polifonia é caracterizada pela posição do autor como “regente do grande

coro de vozes” que participam do processo dialógico. Esse autor é ativo na medida

em que rege vozes que ele cria ou recria; entretanto, deixando que se manifestem

com autonomia.

Essa autonomia dos personagens e a concatenação das “vozes narrantes” na

obra Lúcio Flávio: o passageiro da agonia nos permitem afirmar que a obra possui

um caráter polifônico acentuado.

Para realizarmos uma pequena análise interdiscursiva entre o livro, o filme e

as entrevistas de José Louzeiro, levamos em consideração a proposta de

interdiscurso de Maingueneau (2008). Segundo ele, o interdiscurso é um conjunto de

unidades discursivas que pertencem a discursos precedentes com os quais um

discurso particular se relaciona de forma implícita ou explícita. Nesse sentido, o filme

foi baseado no livro com título homônimo e as entrevistas retomam a figura de Lúcio

Flávio como bandido com algumas caracterizações presentes no livro e no filme.

Todos esses discursos relacionam entre si por terem como assunto principal a

vida de Lúcio Flávio, remetendo-se ao já dito, exterior àquele que a pronuncia,

apresentando-se como um conjunto de discursos na memória, como afirma Orlandi

(1994), em relação ao interdiscurso.

Observamos que as imagens de um bandido bonito e inteligente perpassam

todos os discursos que compõem os materiais utilizados em nossa análise

discursiva. Porém, a imagem de Lúcio Flávio como “passageiro da agonia” não está

presente nas entrevistas de Louzeiro quando fala sobre a história de Lúcio Flávio. As

reproduções que trazem fotos de Lúcio Flávio e do ator Reginaldo Faria que o

interpretou no cinema ajudaram-nos a identificar características presentes nos

discursos do livro, do filme e da entrevista como a beleza e a agressividade.

Observamos, assim, que as caracterizações de Lúcio Flávio como um

bandido inteligente, bonito, famoso e de classe média promovem a cristalização de

um certo perfil: o senso comum aponta para o bandido como alguém como pobre, de

pouca instrução e que foge aos padrões de beleza vigentes. Como afirmou Vilas

Boas (2002), os biógrafos tendem a preferir biografar um indivíduo, seja bandido ou

herói, que ao menos mereça seu respeito e estimule sua capacidade individual de

investigação, como nos parece Lúcio Flávio: um bandido que não deixa de ter traços

de um herói, sobretudo quando escapa de ser preso.

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CAPÍTULO 3: AS IMAGENS DE LÚCIO FLÁVIO

O objetivo deste capítulo é identificar e analisar as imagens de Lúcio Flávio

utilizando o modo de organização descritivo e o modo de organização narrativo

propostos por Charaudeau (2009). Antes disso, porém, abordamos conceitualmente

o discurso, segundo Orlandi (1994) e Charaudeau (2009), e sua relação com as

imagens, conforme Miranda (2007). Além de Charaudeau (2009), também nos

embasamos em Bourdieu (1989), para abordar questões referentes à nomeação, e

em Miranda (2007), para abordar a qualificação.

3.1 Discurso e imagens

O discurso, segundo Orlandi (1994), pode ser definido como um processo

social cuja especificidade está em que sua materialidade é linguística, existindo,

pois, uma construção conjunta entre o social e o linguístico. Em um sentido amplo, o

discurso pode ser visto como efeito de sentido entre locutores.

Para Orlandi (1994), ao se pensar o discurso como efeito de sentidos entre

locutores, tem de se pensar a linguagem de uma maneira muito particular,

considerando-a necessariamente em relação à constituição dos sujeitos e à

produção dos sentidos. Isso quer dizer que o discurso supõe um sistema

significante, mas supõe também a relação desse sistema com sua exterioridade, já

que sem história não há sentido, ou seja, é a inscrição da história na língua que faz

com que ela signifique; daí, os efeitos entre locutores e a dimensão simbólica dos

fatos.

A consideração do discurso leva a uma outra prática analítica seja sobre a

linguagem, seja sobre a sociedade, seja sobre o sujeito. No discurso, o mundo é

apreendido, trabalhado pela linguagem, e cabe ao analista procurar apreender a

construção discursiva dos referentes (ORLANDI, 1994).

Charaudeau (1999), de forma semelhante ao que foi citado acima em relação

à prática analítica proposta por Orlandi (op. cit.), afirma que uma linguística

considerada do discurso deve integrar, em sua análise, as condições de produção

do ato de linguagem. A linguística do discurso busca esboçar determinadas

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problemáticas em que se privilegiam os efeitos de sentidos produzidos no/pelo

discurso como linguagem posta em acontecimento.

A linguística do discurso, segundo Charaudeau (1999), integra, na sua análise

e em sua relação com o mundo, as condições de produção do ato de linguagem que

passa a operar numa relação triangular entre o mundo com o real construído, a

linguagem como forma-sentido em difração e um sujeito (eu/tu), intersubjetivo em

situação de interação social.

Sobre o ato de linguagem, Charaudeau (2009) afirma que

[ele] deve ser concebido como um conjunto de atos significadores que falam o mundo através das condições e da própria instância de sua transmissão. Daí pode-se concluir que o objeto de conhecimento é o do que fala a linguagem através do como fala a linguagem, um constituindo o outro (e não um após o outro). O mundo não é dado a princípio. Ele se faz através da estratégia humana de significação (CHARAUDEAU, 2009, p. 20, 21).

O ato de linguagem configura-se como o objeto da análise discursiva na

perspectiva da Teoria Semiolinguística (doravante TS) proposta por Charaudeau

(2009). Uma análise semiolinguística do discurso é semiótica por se interessar por

um objeto que se constitui numa intertextualidade que depende dos sujeitos da

linguagem, que procuram extrair dela possíveis significantes; é linguística pelo fato

de o instrumento que utiliza para interrogar esse objeto ser construído ao fim de um

trabalho de conceituação estrutural dos fatos linguageiros (CHARAUDEAU, 2009, p.

21).

Os modos de organização do discurso constituem os princípios de

organização da matéria linguística. Esses princípios dependem da finalidade

comunicativa do sujeito que pode ser enunciar, descrever, contar, argumentar.

A análise das imagens e dos ethé de Lúcio Flávio serão feitas a partir dos

modos de organização dos discursos descritivo e narrativo. Esses modos permitem

elucidar as representações de Lúcio Flávio, que aqui chamamos de imagens, pela

descrição do processo de narração. Utilizamos como componente de análise a

nomeação e a qualificação, referentes à descrição, e o componente actancial,

referente à narração.

Há outros componentes elencados por Charaudeau (2009) no interior dos

modos descritivo (localizar-situar) e narrativo (processos e sequências). Entretanto,

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somente os componentes citados no parágrafo anterior é que tiveram uma

ocorrência significativa no material analisado, permitindo, assim, o estudo das

imagens e dos ethé do sujeito biografado.

Para Miranda (2007), a descrição pode se constituir como um ato discursivo

para se referir ao ser, ou à coisa descrita, representando-o e colocando-o, ao

mesmo tempo, na interação. É nesse sentido que a descrição passa a ser prática

discursiva, um modo de organização discursivo, uma vez que permite identificar

como o ser descrito é representado no/pelo discurso.

Descrever é um procedimento discursivo estreitamente ligado ao narrar.

Charaudeau (2009) pontua que, se narrar consiste em desenvolver uma sequência

de ações, em um tempo e espaço de determinados personagens, descrever consiste

em fazer existir tais personagens, mediante as nomeações e qualificações que os

singularizam e os especificam.

A representação, quando faz existir os seres, os singulariza, os especifica e

também os situa no espaço e no tempo. Miranda (2007) afirma que a descrição

utiliza os recursos semânticos, e às vezes sintáticos, para representar. A nosso ver,

os componentes da descrição, nomear e descrever, cumprem esse papel de

representar, pois tanto dar existência ao ser (nomear) quanto atribuir uma qualidade

ao ser são formas de representá-los.

A narrativa, segundo Charaudeau (2009), corresponde à finalidade do “que é

contar?” e, para fazê-lo, descreve ações e qualificações, utilizando os modos de

organização do discurso narrativo e descritivo. Ao descrever as ações, esses modos

põem em evidência o “fazer” do sujeito que por meio das suas ações pode ser

representado. Dessa forma, tanto descrever quanto narrar implicam em representar

o sujeito, ou seja, atribuir-lhes imagens.

3.2 Imagens a partir da descrição

Para que haja comunicação, segundo Charaudeau (2009), é preciso a

existência de um dispositivo cujo centro é ocupado por um sujeito falante –

representado pelo locutor, que fala ou escreve – em relação a um parceiro –, o

interlocutor. Esse dispositivo é formado e composto pela situação de comunicação

em que os parceiros se encontram; os modos de organização do discurso que

constituem os princípios de organização da materialidade linguística; a língua e o

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texto que são o resultado material do ato de comunicação e que resulta das

escolhas daquele que se comunica dentre as categorias de língua; e os modos de

organização do discurso em função das imposições feitas pela situação de

comunicação.

Esse dispositivo comunicacional fornece subsídios para análises discursivas

de diversos tipos. Proposta no interior da TS, essa forma de composição do ato de

comunicação dá margem para que estudemos os efeitos de sentido presentes em

um texto criado por um locutor que utiliza componentes do dispositivo da

comunicação em função de certos efeitos que pretende produzir em seu interlocutor.

Para Charaudeau (2009), descrever consiste em ver o mundo com um “olhar

parado” que faz existir os seres a partir do momento em que os nomeiam, localizam

e atribuem-lhes qualidades que os singularizam. Descrever consiste em identificar

os seres do mundo, classificando-os, sem precisar estabelecer entre eles uma

relação de causalidade.

Para elucidar o descritivo como um modo de organização do discurso, o autor

distingue a finalidade de um texto – explicar, comentar, informar – do seu modo de

organização – descritivo, narrativo, argumentativo. Um texto pode ter, por exemplo,

seu modo de organização descritivo (e isso poderá ser observado pelas categorias

internas, ou discursivas, que estruturam o texto) e ter, ainda, uma finalidade

explicativa, informativa, didática, culinária, por exemplo. A organização de um texto e

o seu funcionamento discursivo atribuem uma identidade ao texto. Disso, podemos

concluir que o modo de organização discursivo atribui ao texto uma aparência e uma

estrutura específicas, evidenciadas por determinadas categorias discursivas.

Charaudeau (op. cit.) distingue os atos de narrar e descrever. Narrar consiste

em desenvolver uma sequência de ações, em um tempo e espaço de determinados

personagens. Descrever consiste em fazer existir tais personagens por meio das

nomeações e qualificações que os singularizam e os especificam. No entanto,

descrever está relacionado a contar, pois as ações só adquirem sentido em relação

às identidades e às qualificações de seus actantes.

Os diferentes componentes do princípio de organização são encenações para

certo número de procedimentos discursivos: o componente de nomear suscita

procedimentos de identificação. O componente de localizar-situar suscita os

procedimentos de construção objetiva do mundo. E o componente de qualificar

suscita os procedimentos de construção tanto objetiva quanto subjetiva do mundo. A

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identificação é que faz existir os seres do mundo pelo ato de nomear. Os seres são

representados por um referente material ou não-material.

O trabalho de categorização, de explicitação e de classificação consiste na

capacidade de fazer existir em estado explícito, de publicar, aquilo que permanecia

em estado de experiência individual. A categorização, portanto, representa um poder

social: o de constituir grupos segundo Bourdieu (1989). Da categorização surge, por

exemplo, o senso comum, que pode ser proveniente de uma imagem cristalizada.

Esse trabalho de categorização, de classificação, é feito a todo o momento:

a propósito das lutas que opõem os agentes acerca do sentido do mundo social e da sua posição nesse mundo, da sua identidade social, por meio de todas as formas do bem dizer e do mal dizer [...] elogios, congratulações [...] ou insultos, censuras [...] (BOURDIEU, 1989, p. 142).

Nomear, em nossa visão, é dar existência; também é uma forma de

categorizar, classificar. Bourdieu (1989) afirmou que uma das formas elementares

do poder político, nas sociedades arcaicas, tenha sido a nomeação. Nomear, neste

caso, era dar existência a cargos de poder.

As nomeações ou designações, conforme Miranda (2007), inserem-se dentro

de um contexto maior de produção de sentido. Elas dependem do sujeito descritor,

do outro a quem se dirige a descrição; portanto, do ato enunciativo em si.

Há nomeações, de caráter particular, dos agentes particulares que a partir do

seu ponto de vista particular produzem nomeações como sobrenomes, alcunhas,

insultos, calúnias etc. Há também nomeações sob o ponto de vista autorizado de um

agente autorizado como um crítico, autor consagrado, porta-voz do Estado etc.

Nomear, segundo Charaudeau (2009), é dar existência a um ser mediante

uma operação que consiste em perceber uma diferença na continuidade do universo

e de uma operação que relaciona essa diferença a uma semelhança, constituindo o

princípio da classificação. É o resultado de uma operação que faz existirem seres

significantes no mundo ao classificar esses seres.

Alguns procedimentos linguísticos utilizam categorias de língua para servir

aos componentes de organização descritiva. As categorias referentes à nomeação

são: a denominação, a indeterminação, a atualização, a dependência, a designação,

a quantificação e a enumeração (CHARAUDEAU, 2009).

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A seguir, listamos suas características:

i) Na denominação, os seres são identificados sob formas de nomes comuns ou

de nomes próprios, cujo pape, é identificar os seres do ponto de vista

geral (classe de pertinência) ou particular (especificidade).

ii) A indeterminação encontra-se em gêneros que inscrevem o relato numa

atemporalidade (“Num dia de maio”) em lugares não identificados (“Em

algum lugar”). Ela também pode aplicar-se a personagens pela

denominação por meio de um nome comum, pelo uso da inicial de um

nome próprio ou pelo uso de asteriscos em lugar do nome, para criar

efeitos de mistério.

iii) A atualização, com o uso de artigos, permite produzir efeitos discursivos de

singularidade, de familiaridade, de evidência ou de idealização.

iv) A dependência, com o uso de possessivos, permite produzir efeitos

discursivos de apreciação.

v) A designação, pelo uso de demonstrativos, permite produzir efeitos de

tipificação.

vi) A quantificação: o uso de quantificadores permite produzir efeitos de

subjetividade.

vii) A enumeração, com uso de dêiticos, de artigos ou de nomes no plural não

precedidos de artigo (efeito de indefinição), permite fazer lista de seres

(humanos ou não-humanos), qualidades, lugares e ações que produzem

efeitos discursivos diversos.

Os procedimentos identificados em nossa análise com uma recorrência

significativa para que fossem analisados foram a denominação e a enumeração.

Em um romance, ou escrita biográfica como é o caso da obra que

analisamos, o nome serve para identificar tanto o herói quanto os personagens

secundários. As evocações simbólicas são constituídas a partir das formas de

denominação. Analisamos somente as denominações de Lúcio Flávio, já que iremos

nos deter na imagem do biografado, e não dos personagens secundários da história.

São poucas as ocorrências de denominação diferentes na história dadas a

Lúcio Flávio. Além do seu nome próprio, que aparece na maioria das vezes quando

o personagem é citado, também aparece somente Lúcio, aparecem apelidos como

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Noquinha (três vezes) e Noca (uma vez) pelos quais Lúcio Flávio era chamado pelos

vizinhos quando era criança.

E8: [Um policial conversava com Dondinho, vizinho da família de Lúcio Flávio, para obter algumas informações.] - O senhor conhece bem a família de Lúcio? – perguntou o policial. - Desde que apareceu por aqui. Os Lírio vieram de Minas. E, pelo que via e sentia, era uma família de posses. Depois o povo começou a contar histórias. Que seu Osvaldo Lírio tinha sido uma figura importante lá na política do PSD mineiro. Um cidadão de lá me disse um dia que, não fosse seu Osvaldo Lírio, o irmão de Marcial Lago não tinha sido eleito. E sabe quem ajudou o pai na campanha? [...] - O Noquinha. É assim que se chama Lúcio Flávio por aqui. - Noquinha? – repete o policial, como se não tivesse entendido da primeira vez (LOUZEIRO, 1990, p. 31, grifo nosso). E9: [Dondinho conta a Lúcio Flávio sobre o episódio em que os policiais estiveram no morro, procurando por Lúcio.] - Como eles são desaforados, hem, Noca? [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 66, grifo nosso). E10: [Não obtendo respostas sobre o paradeiro de Lúcio Flávio, um dos policiais pergunta ao dono do bar.] - E se o No-qui-nha aparecer aqui e tacar fogo num de vocês, como acabou de fazer com Armandinho e Marco Aurélio, o que é que vão achar do bom menino? (LOUZEIRO, 1990, p. 34, grifo nosso)

A denominação por apelidos confere uma relação de amizade e afeto de

Lúcio Flávio com Dondinho. Já esse mesmo nome dito pelo policial produz um efeito

de sentido de perplexidade pelo fato de Lúcio Flávio ser chamado assim (excerto 9)

e um efeito de deboche (excerto10) pelo contexto utilizado pelo policial, assim como

a denominação garoto, precedida da qualificação bom, nesse mesmo excerto.

Há igualmente o nome comum garoto dito por um policial para tentar

persuadir Dondinho a contar o paradeiro de Lúcio Flávio:

E11: [Um policial tentando descobrir o paradeiro de Lúcio Flávio, indagando Dondinho.] - E onde está Lúcio Flávio? – insistiu o policial. [...] - [...] Só queremos saber uma coisinha sem importância. Não vamos fazer mal pro garoto. Já vi que você vai ter de beber bastante para aclarar as ideias. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 36, grifo nosso).

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Lúcio Flávio também foi chamado pelo nome próprio Jorge que seria um

pseudônimo pelo qual seu irmão o chamava quando estavam em situação de perigo

quando não se podia mencionar o nome verdadeiro. Em E12, Lúcio Flávio estava

sendo procurado pela polícia, por isso o nome “falso”:

E12: [...] Nijini Renato galgou rapidamente a escadaria precária do casarão e não viu ninguém. Foi avançando pelo corredor, começou a chamar pelo nome que identificava o irmão: - Jorge! (LOUZEIRO, 1990, p. 38, grifo nosso)

Outros nomes comuns utilizados para se referir a Lúcio são bandido e

bandidão. Esses nomes referem-se à representação de Lúcio Flávio na sociedade,

na qual ele era visto como um bandido:

E13: [...] Pra onde foi o preto velho que sabe histórias do bandido? (LOUZEIRO, 1990, p. 34, grifo nosso) E14: [Momentos antes do interrogatório.] - Senta aí bandido. [...] - Leva o bandido para o confessionário (LOUZEIRO, 1990, p. 47, grifo nosso). E15: [Policial pede a Lúcio que se acalme.] - Te guenta, bandidão. Tu é sabido lá fora (LOUZEIRO, 1990, p. 122, grifo nosso).

As denominações Lúcio Flávio, Noquinha, Noca e Jorge identificam o

personagem de um ponto de vista particular. Os nomes próprios têm como propósito

identificá-lo dentre os demais personagens. Já os nomes comuns garoto, bandido e

bandidão colocam o personagem em uma classe de pertinência, o que remete a

certas classes de pertencimento.

Cada forma de denominação produz um efeito de sentido em relação ao

tratamento de Lúcio Flávio naquele contexto. Os apelidos, por exemplo, exceto

quando repetido pelo policial, foi pronunciado por um vizinho que tinha afeição por

Lúcio Flávio. Observamos dessa maneira que Lúcio Flávio possuía relações de

amizade, pois Dondinho o tratava de maneira carinhosa ao chamá-lo assim.

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Essa situação, porém, contrasta com as situações em que Lúcio Flávio era

chamado de bandido ou de bandidão. Esses nomes comuns remetem a

representações pouco valorizadas em nossa sociedade. Esses nomes comuns

colocam Lúcio Flávio em uma classe de pertencimento da qual fazem parte os maus

elementos da sociedade se levarmos em consideração essa categorização

baseados no senso comum conforme citamos Bourdieu (1989).

A identificação pelo pseudônimo Jorge, pelo contexto em que foi empregado,

nos remete à condição de Lúcio Flávio como um fugitivo da lei que não poderia ter

sua identidade revelada em público.

O segundo procedimento linguístico que identificamos na narrativa foi a

enumeração. Porém, só encontramos uma ocorrência. A enumeração permite fazer

listas de seres, qualidades, lugares e ações que produzem efeitos discursivos

diversos. Há uma ocorrência no livro em que a enumeração foi utilizada para

descrever a sequência de ações de Lúcio Flávio para fugir da prisão:

E16: Na escuridão em que não podia determinar as horas, iniciou lentamente a fuga. [...] O homem saído do fundo da terra, fedendo a fezes, urina e suor. O homem nascendo do último instante de promiscuidade, vindo das entranhas do solo, ele que poderia ter se confundido com os vermes, avolumados na matéria pútrida. [...] (LOUZEIRO,1990, p. 61, grifos nossos).

Nessa descrição das ações de Lúcio Flávio, percebemos sua audácia e

coragem em fugir da prisão. A passagem também nos remete à sujeira, a um

renascimento que aconteceu de forma a causar asco, nojo do homem que saía da

terra. Essa fuga pode ser vista, então, como um renascimento após o desânimo do

personagem no cárcere; uma atitude de coragem após quase se entregar à morte na

prisão. Essa enumeração confere um efeito discursivo dramático à ação praticada

por Lúcio Flávio.

No modo de organização discursivo, nomear é uma atividade que nos permite

atribuir aos seres uma existência por consenso. Qualificar é outra atividade, distinta

por determinadas categorias linguístico-discursivas e operações lógicas, do ato de

nomear. Entretanto, como afirma Miranda (2007), a qualificação completa a

nomeação, pois consiste em atribuir ao ser, de maneira explícita ou não, uma

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qualidade que o caracterize e o especifique, distinguindo o ser e o objeto de outros

seres e de outros objetos existentes no universo.

Quanto à qualificação, Charaudeau (2009) afirma que ela permite ao sujeito

falante satisfazer o seu desejo de posse sobre o mundo quando singulariza,

especifica de forma particular, em função de sua própria visão das coisas ou de uma

visão específica do mesmo sujeito que descreve. Tal procedimento passa pela

racionalidade, mas também pelos sentimentos. A partir dele, depreendemos que os

sujeitos falantes são os seres que vivem na coletividade e que praticam ou

desobedecem às normas sociais. As normas relacionam os seres a suas

características. Logo, o ato de qualificar é testemunha do olhar do sujeito que

descreve ao mesmo tempo em que remete o sujeito descritor aos lugares que ocupa

socialmente.

Isso pode ser explicado pelo fato de que as qualificações são partes do

imaginário de construção e apropriação do mundo por parte do sujeito descritor. Ao

qualificar, muitas vezes, as visões normativas, fruto do consenso social, se impõem

ou entram em conflito com as visões individuais que o sujeito descritor possui sobre

o mundo.

Assim, Charaudeau (2009) conclui que o modo descritivo serve

principalmente para construir uma imagem atemporal do mundo. O descritivo se

expande fora do tempo. Descrever fixa lugares, por meio da localização, e épocas a

partir da situação e maneiras de ser e de fazer das pessoas características dos

objetos.

Charaudeau (op. cit.) salienta que a qualificação atribui um sentido particular

aos seres nomeados. O componente qualificar, portanto, faz com que um ser seja

alguma coisa – meidante suas qualidades e comportamentos –, suscitando

procedimentos de construção ora objetiva, ora subjetiva do mundo.

Esses procedimentos de construção estão diretamente ligados à encenação

descritiva. Essa encenação é ordenada pelo sujeito falante que se torna um sujeito

descritor. Segundo Charaudeau (op. cit.), o descritor pode intervir de maneira

explícita ou não, mas nos dois casos ele produz certos efeitos como os efeitos de

realidade e de ficção, por exemplo.

Os procedimentos de construção subjetiva e os efeitos de realidade e de

ficção permitem ao sujeito falante descrever os seres do mundo e seus

comportamentos por meio da sua visão pessoal que nem sempre pode ser

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verificável. Essa atividade se exerce a propósito da descrição dos seres humanos

em seu aspecto físico, gestual, gostos, identidade, manias, comportamentos e

palavra; dos seres não-humanos como objetos, meio ambiente, dos seres

conceituais e a fenômenos que são objeto de definições.

Há duas maneiras de se construir subjetivamente uma descrição: a primeira,

como resultado de uma intervenção pontual do narrador a propósito da descrição do

mundo; a segunda, como construção de um mundo mitificado pelo narrador que

existe de maneira unificada no âmbito de um imaginário simbólico.

Os efeitos de realidade e de ficção são tratados em conjunto, já que o

fenômeno de alternância entre esses dois modos de visão do mundo é o que

constitui o interesse de muitos relatos, construindo uma imagem dupla de narrador-

descritor, ora exterior ao mundo descrito, ora como parte interessada na

organização desse mundo. Tais efeitos, com essa dupla imagem, são encontrados

em textos que pertencem ao gênero fantástico, em alguns textos jornalísticos e nas

autobiografias em que o relato pretende apresentar uma dominante realista ao

mesmo tempo em que se pode perceber a subjetividade do descritor.

Esses efeitos são importantes em um trabalho que utiliza as categorias de

qualificação na análise. Eles podem ser percebidos na obra analisada a partir do

jogo de vozes. Quando Lúcio Flávio “fala”, parece existir um jogo com o real. Pode

ser a tentativa do autor de incutir algum fato ou lembrança que o próprio Lúcio Flávio

lhe contou quando Louzeiro o ouviu antes de escrever o livro. Entretanto, a

onisciência do narrador leva a um jogo com a ficção, pois, em qualquer tipo de

biografia, seria impossível o biógrafo conhecer e descrever os pensamentos e

sentimentos íntimos do seu biografado.

Mais do que tratar a oposição entre realidade e ficção nessa obra, o intuito ao

analisar a qualificação é tentar identificar as imagens do Lúcio Flávio a partir de

elementos que conferem ao personagem alguma caracterização. Levamos em

consideração adjetivos (inteligente, desconfiado, sério), ações (assaltos,

assassinatos, fugas) e pensamentos (reflexões sobre sua condição de bandido) que

remetem diretamente ao personagem. Após a identificação dessas qualificações e

sua listagem feita no formato de grade (cf. grade 2, anexo 1, p. 106), procedemos à

análise dos trechos que veremos a seguir.

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Transcrevemos alguns trechos em que há caracterizações de Lúcio Flávio a

partir da ótica do narrador. Nos dois primeiros trechos, que estão no início da

narrativa, Lúcio Flávio foi caracterizado como uma pessoa calada e pensativa:

E17: [Durante a fuga, após assaltar o banco, Lúcio e o bando estão no carro.] Nijini Renato contava o dinheiro. - Já conferi trinta e cinco mil. - Mais do que você ia depositar – diz Micuçu, rindo. -Todos acham graça. Só Lúcio não percebe a brincadeira. Estava sério, olhar perdido na distância. [...] Os companheiros tagarelavam, riam, contavam piadas. Ele olhava e não dizia nada (LOUZEIRO, 1990, p. 23, grifos nossos).

E18:

Lúcio Flávio, sentado no asfalto, queixo apoiado nos joelhos, mãos trançadas nas pernas, estava distante. [...] Em silêncio, viajando por caminhos que ninguém poderia cruzar, via como é curta a ponte que liga o bem e o mal. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 29, grifos nossos).

Essas descrições sobre o comportamento introspectivo de Lúcio Flávio o

caracterizam como uma pessoa pensativa e calada, mais centrada, e talvez esse

seja um dos motivos pelos quais ele chefiava o bando dando ordens a seus colegas

na maioria das ações como os assaltos aos bancos.

Ele também foi descrito como uma pessoa constantemente mal-humorada, e

esse comportamento era conhecido pelos colegas do bando, como podemos

observar no trecho seguinte:

E19: [...] Um dia em meio à conversa franca, embora Lúcio fosse sempre o menos comunicativo, Lígia arriscou uma consideração que ninguém ousaria dizer. E, para espanto dos demais, Lúcio Flávio não se mostrou zangado. [...] (excerto 24, p. 82, grifos nossos).

O excerto a seguir, (E20), mostra Lúcio Flávio como uma pessoa que

raramente estava de bom humor. Quando ele se mostrava bem-humorado, os

colegas estranhavam. Essa característica também pode ser relacionada como algo

ligado aos chefes de bandos, que devem impor respeito aos demais, evitando

brincadeiras que possam fazer com que o líder se iguale aos demais. Essa imagem

de uma pessoa séria e mal-humorada pode coincidir com nosso senso comum sobre

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o comportamento de um chefe de gangue que precisa impor respeito por meio do

seu comportamento e ações:

E20: [...] Lúcio estava num dia bem-humorado. [...] Nunca tinham visto Lúcio Flávio tão alegre, nem tão bêbado (LOUZEIRO, 1990, p. 83, grifo nosso).

Em outro excerto, (E21), Lúcio Flávio é caracterizado como uma pessoa feliz.

Entretanto, ele está na companhia da mulher e do filho, o que demonstra que, diante

dos colegas, dos bandidos que liderava, ele se mostrava sério e pensativo, como se

não estivesse aberto a brincadeiras, sempre preocupado com as ações do bando. Já

com a família, ele podia se sentir relaxado, pois não precisava se impor como um

líder:

E21: [Lúcio está na companhia do filho, Léo, e de Janice, sua mulher] [...] Era naquele instante, um homem feliz. Um momento que dificilmente poderia ser igualado (LOUZEIRO, 1990, p. 196, grifo nosso).

A qualificação a seguir remete à infância do Lúcio Flávio. Seu vizinho

Dondinho contava a um policial que desde criança Lúcio Flávio impunha respeito ao

ganhar brigas de outros garotos; às vezes, garotos até maiores do que ele. Essa

caracterização pode ser uma tentativa do autor de traçar um perfil de Lúcio Flávio a

partir da infância. Essa qualificação contribui para a formação de uma imagem de

líder do Lúcio Flávio, mostrando que ele sempre foi respeitado:

E22: [Dondinho falando a um policial sobre Lúcio Flávio.] - Ele foi sempre respeitado pelos outros. Quando se enfezava brigava com menino bem maior. E levava a melhor. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 32, grifo nosso).

Nos excertos a seguir, há outras qualificações que geralmente estão

associadas ao perfil de um bandido de acordo com o senso comum. Essas

qualificações foram inseridas a partir de expressões como “delinquente de alta

periculosidade” e “inimigo público número 1”:

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E23: [Ao chegar à delegacia.] [...] Lúcio Flávio não precisava ver para saber que os olhares estavam concentrados nele. Depois da quinta fuga da penitenciária, era considerado delinquente de alta periculosidade, avançando rapidamente para o lugar de destaque: inimigo público número 1. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 42, grifo nosso).

Outra expressão é a qualificação “rebelde” e o (bandido) de “altíssima

periculosidade”:

E24: [...] A solitária seria algo muito camuflado e seguro, reservada aos mais rebeldes, como ele, cujo destino era a morte. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 61-62, grifo nosso).

E25:

[...] Lúcio foi transferido para um cubículo dos fundos da galeria, onde só ficavam os que eram considerados de altíssima periculosidade. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 152, grifo nosso).

A expressão “mais perigoso assaltante do país” também ajuda a traçar uma

imagem de bandido perigoso. As expressões aqui expostas também remetem à

figura de um líder de um bando, já que somente os mais audaciosos e perigosos

tinham os atributos suficientes para liderar uma gang:

E26:

[Lúcio estava sendo conduzido ao Rio de Janeiro, após o último assalto a uma agência bancária de Belo Horizonte.] [132] [...]também abriu um jornal e pôs-se a ler, exatamente na página em que eram enumeradas as peripécias de Lúcio Flávio, considerado o mais perigoso assaltante do país e que havia fugido pelo menos vinte vezes dos presídios mais seguros. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 212, grifo nosso).

Lúcio Flávio também foi caracterizado como “machão” e “valente” não

somente entre seu bando, mas entre os bandidos que estavam na prisão. Além

disso, ele era um exibicionista segundo as qualificações atribuídas a ele pelo

narrador:

E27:

[Lúcio propôs um novo jogo ao chegar a uma cela onde já estavam seis detentos. Só um detento aceita.] Os outros prisioneiros não respondem. Limitam-se a sorrir. Estava claro que se tratava de uma disputa entre os dois que tinham

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fama de machões. E Lúcio, nesses momentos, gostava de exibir-se. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 126, grifos nossos).

E28: [Lúcio ganhou o jogo.] [...] Lúcio sentia certa satisfação. Estava eleito o machão da cela. Arrependia-se de não ter apostado o canivete (LOUZEIRO, 1990, p. 128, grifo nosso).

No excerto a seguir, apesar de se tratar de um pensamento de Lúcio Flávio,

ele se lembra de qualificações que outra pessoa atribuiu a ele. Lúcio Flávio foi

caracterizado como alguém que gostava de se exibir como um homem valente:

E29: [Lúcio lembrava-se de julgamentos anteriores.] [...] O psiquiatra diria que era mais uma forma de exibicionismo. Qualquer coisa que dissesse estava catalogada. Se pulava do muro, era exibicionismo. Se induzia os companheiros a motim, era recalque (LOUZEIRO, 1990, p. 217, grifos nossos).

Outras qualificações atribuídas a Lúcio Flávio são inteligente (“É um bandido

de elevado Q.I.”) e famoso (“Tá virando vedeta.”). Essas atribuições possuem cunho

positivo, mas foram dadas pelos policiais a Lúcio Flávio com ar de deboche:

E30: [Um policial debocha de Lúcio.] [...] O rapaz merece respeito. É um bandido de elevado QI (LOUZEIRO, 1990, p. 123, grifo nosso).

E31: [Outro policial fala sobre Lúcio.] - Tá virando vedeta. Toda hora os jornais falam dele (LOUZEIRO, 1990, p. 123, grifo nosso).

No excerto seguinte, outro policial, em outro contexto, qualifica Lúcio Flávio

como “inteligente”, conversando diretamente com ele. Com essa qualificação, o

policial 132 queria convencer Lúcio Flávio a se entregar para a polícia. Mesmo

utilizada com esse intuito, ela não deixa de contribuir para traçar um perfil do

personagem:

E32: [Lúcio ouve a proposta de 132 que o quer prender e não acha uma boa proposta, ao que 132 responde.]

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- Pode não ser boa, mas é inteligente. E tu tem fama de homem inteligente. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 205, grifo nosso).

Segundo consta na narrativa, além de a mídia destacar a beleza e a

inteligência de Lúcio Flávio, atributos geralmente estranhos a um perfil de um

bandido, ela falava sobre fugas e assaltos mirabolantes que nem sempre eram fatos

verdadeiros, transformando Lúcio Flávio em um mito, em um herói de gibi como se

tivesse certos poderes para realizar tais proezas:

E33: [...] As descrições das fugas prestavam-se à inclusão de lendas e fatos que na verdade nunca ocorreram. A imaginação dos repórteres levava-os a transformá-lo numa espécie de herói de gibi, como o próprio Lúcio dizia (LOUZEIRO, 1990, p. 213, grifo nosso).

Há outra passagem que relaciona a imagem de Lúcio Flávio à de um herói:

E34: [Um policial chega ao bar onde Dondinho e o outro policial estavam conversando. O primeiro pergunta ao segundo se tem alguma novidade.] - O homem aqui é herói e tem nome de mulherzinha. Um crioulo velho que já se mandou disse que o nome dele é Noquinha (LOUZEIRO, 1990, p. 34, grifo nosso).

Nessa passagem, são os vizinhos de Lúcio Flávio que conviveram com ele

desde a infância que o veem como uma pessoa boa, um herói, segundo um policial

que estava à procura de Lúcio Flávio e mencionou o fato com certo ar de deboche.

Os vizinhos pareciam ter na verdade um afeto por Lúcio Flávio. Percebemos isso

pela menção do policial ao apelido de Lúcio Flávio naquele bairro. Era uma forma

carinhosa de tratamento que Lúcio havia recebido quando moleque.

No mesmo excerto, (E10), em que o policial utiliza a denominação Noquinha,

ele menciona o fato de Lúcio Flávio ter fama de “bom menino” entre os vizinhos. O

policial utiliza essa qualificação com ironia:

E10: [Não obtendo respostas sobre o paradeiro de Lúcio Flávio, um dos policiais pergunta ao dono do bar.]

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- E se o No-qui-nha aparecer aqui e tacar fogo num de vocês, como acabou de fazer com Armandinho e Marco Aurélio, o que é que vão achar do bom menino? (LOUZEIRO, 1990, p. 34, grifo nosso)

Há duas passagens seguidas em que um ladrão que dividia a cela com Lúcio

Flávio se remete a ele ironicamente. Na primeira passagem, o preso ironiza o fato de

Lúcio Flávio ser considerando um grande marginal:

E35: [Ao ser levado para cela, um preso debocha de Lúcio.] - Sabe quem tá aqui, pessoal? Lúcio Flávio! O tremendo marginal (LOUZEIRO, 1990, p. 213, grifo nosso).

Na segunda passagem, a referência irônica que o bandido faz a Lúcio como

“príncipe dos ladrões” remete tanto ao fato de Lúcio Flávio ser belo quanto ao fato

de ser valente e por isso liderar grupos de bandidos.

E36: [O mesmo preso continua a falar sobre Lúcio.] - É o rei dos malandros. O príncipe dos ladrões e de toda a corja de vagabundos. Tem cara de mulher mas dizem que é valentão (LOUZEIRO, 1990, p. 213, grifo nosso).

A ironia19 presente nas qualificações descritas é recorrente quando Lúcio

Flávio é caracterizado pelos policiais. Acreditamos que os enunciadores nesse caso

são irônicos pelo fato de os personagens não se darem bem com Lúcio Flávio.

As qualificações de Lúcio Flávio – introspectivo, sério, perigoso, inteligente e

herói – constroem uma imagem de líder, causando uma discrepância com o título da

obra: Lúcio Flávio, o passageiro da agonia. Vimos até agora que as qualificações

apresentadas em nada configuram um homem que vive na agonia.

Entretanto, a partir de certo momento da narrativa, quando os planos de Lúcio

Flávio começam a dar errado e quando ele começa a desconfiar dos seus amigos,

as qualificações a ele atribuídas mudam e traçam outras imagens do personagem.

Uma das primeiras qualificações que fazem parte desse outro viés da

caracterização de Lúcio Flávio é dada pelo policial Moretti. Ele acusa Lúcio Flávio de

ser um homem desconfiado, conforme o excerto a seguir:

                                                            19  Consideramos ironia como “figura pela qual se quer fazer entender o contrário do que se diz”. (BERRENDONNER apud OLIVEIRA, 2006, 7).  

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E37: [Moretti faz uma piada com Lúcio.] - Que cara desconfiado, meu Deus! Vai acabar ficando com medo da própria sombra (LOUZEIRO, 1990, p. 90, grifo nosso). E38: [Moretti fala a Lúcio.] - Vai ser desconfiado assim no inferno. É impossível trabalhar (LOUZEIRO, 1990, p. 158, grifo nosso).

As qualificações atribuídas a Lúcio Flávio pela voz do narrador e dos

personagens formam imagens de Lúcio Flávio a partir de caracterizações sobre seu

humor, sério e pensativo perto do bando e feliz perto da família ou quando estava

bêbado; sobre sua conduta, perigoso e exibicionista; sobre o que ouviam falar sobre

ele, inteligente e famoso; e sobre algumas atitudes, como a desconfiança em certos

momentos. Dessa forma, observamos que essas vozes que descrevem Lúcio Flávio

como um bom menino, bandido, inteligente, exibicionista e desconfiado não o

qualificam como alguém que seja um “passageiro da agonia”.

3.3 Imagens a partir da narração

O modo narrativo leva o leitor a descobrir um mundo construído no desenrolar

de uma sucessão de ações ligadas umas às outras se transformando num

encadeamento progressivo. Esse modo organiza o mundo de maneira contínua

numa lógica de coerência que é marcada pelo início e fim.

A narrativa é uma totalidade e o narrativo um de seus componentes afirma

Charaudeau (2009). A narrativa corresponde à resposta à pergunta “o que é

contar?” e, para responder a ela, descreve ações e qualificações; ou seja, utiliza os

modos de organização narrativo e descritivo, este explorado no tópico anterior.

Podemos dizer que essa lógica também está presente no modo descritivo, já

que foi por meio das qualificações sucessivas conferidas a Lúcio Flávio que sua

imagem e seu ethos foram se moldando ao longo da narrativa.

O modo de organização narrativo é caracterizado por uma dupla articulação

segundo Charaudeau (2009). A primeira articulação, chamada organização da lógica

narrativa, está voltada para o mundo referencial e é o resultado de uma projeção

sobre a história de algumas das constantes manifestações semânticas da narrativa

que permite descobrir os procedimentos da encenação narrativa. A segunda

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articulação, chamada organização da encenação narrativa, constrói o universo

narrado ou contado sob a responsabilidade de um sujeito narrante que se acha

ligado por um contrato de comunicação ao destinatário da narrativa. Esse sujeito

age sobre a configuração da organização lógico-narrativa e sobre o modo de

enunciação do universo narrado jogando com sua própria presença.

Charaudeau (op. cit.) menciona a lógica narrativa que é uma hipótese do que

constitui a trama de uma história que se supõe despojada de suas particularidades

semânticas e que se julga existir aquém da configuração enunciativa. O autor sugere

que essa construção seja feita com a ajuda de certos componentes: actantes,

processos e sequências.

Os actantes desempenham papéis relacionados à ação da qual dependem.

Eles podem ser hierarquizados sob o ponto de vista de sua natureza e sob o ponto

de vista de sua importância na trama narrativa. Os processos unem os actantes

entre si, dando uma orientação funcional à sua ação. Já as sequências integram

processos e actantes numa finalidade narrativa segundo certos princípios de

organização.

Consideramos somente o actante principal da história: Lúcio Flávio.

Colocamos em um quadro (cf. quadro 1, anexo 2, 115) os excertos em que há ações

de Lúcio Flávio e verificamos, de acordo com um questionário proposto por

Charaudeau (2009), se esse actante agia ou sofria uma ação. A partir disso,

destacamos características de como ele agia ou o modo como sofria certas ações.

Esse questionário consiste na averiguação das seguintes informações sobre

o actante: ao agir, podemos destacá-lo como: (i) agressor (quando comete um

malefício), (ii) benfeitor (quando transmite um benefício), (iii) aliado (quando associa-

se a outro actane para auxiliá-lo ou defendê-lo), (iv) oponente (quando contraria os

projetos e as ações de um outro actante) e (v) retribuidor (quando dá a um outro

actante uma recompensa ou uma punição). Ele poderia agir de modo voluntário (ato

intencional) ou involuntário (não-intencional) e de forma direta (afrontamento direto)

ou indireta (por meio de fingimento ou intermediário).

No caso de sofrer a ação, ele poderia ser vítima (quando afetado

negativamente pela ação de outro actante) ou beneficiário (quando afetado

positivamente pela ação de outro actante). Caso figurasse como actante-vítima, ele

poderia reagir por meio da fuga (evita o afrontamento), resposta (age contra seu

agressor) ou negociação (tenta neutralizar a negociação).

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Caso fosse identificado como actante beneficiário e reagisse, ele o faria por

meio da retribuição (age retribuindo de forma benéfica o outro actante) ou da recusa

(ele recusa o benefício).

Em relação aos tipos de qualificação, ela pode ser positiva (prestígio, virtude,

força, inteligência, destreza) ou negativa (má reputação, imoralidade, desonestidade,

estupidez).

Destacamos 24 excertos da narrativa (cf. grade 1, anexo 2, 115) em que

Lúcio Flávio é o actante principal da ação, sendo que em 19 excertos ele age e em

quatro ele sofre a ação. Nas situações em que age, Lúcio Flávio é destacado em

sete situações como agressor, agindo de forma voluntária e direta, na maioria das

vezes com qualificações negativas como podemos verificar nos excertos a seguir.

Esses excertos mostram as ações de Lúcio Flávio que o qualificam de forma positiva

ou negativa, expressando, assim, imagens desse personagem. O texto entre

colchetes é a nossa classificação em relação ao actante.

E39: [Marco Aurélio tentava explicar a Lúcio que não o havia enganado.] ‘Lúcio Flávio não esperou ele terminar. Acionou o gatilho. [Lúcio atira em Armandinho.] Lúcio Flávio encostou o cano da arma no ouvido esquerdo de Armandinho, fez outro disparo (LOUZEIRO, 1990, p. 16). [Agressor; age de maneira voluntária e direta; qualificações positivas para os demais membros do seu grupo (força); qualificações negativas para a sociedade (violento)].

E40: [Lúcio após matar Armandinho e Marco Aurélio revela aos outros companheiros do bando] - Não gosto de fazer isso. Era o jeito. Bandido sem moral é pior do que puta do Mangue (LOUZEIRO, 1990, p. 18). [Agressor e retribuidor (pune outro actante) ao mesmo tempo; age de forma direta; qualificações negativas (violento e vingativo); qualificação positiva (justiceiro).]

E41: [Lúcio rende o segurança do banco que iria assaltar.] - Vamos assaltar o banco e não gostamos de barulho. [...] Lúcio Flávio repetiu: - Todo mundo deitado no chão. O expediente terminou. [...] O gerente sem querer abrir o cofre, Lúcio chegou perto. - Anda, filho da puta. Um segundo mais e leva um tiro no meio da cara (LOUZEIRO, 1990, p. 20, 21).

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[Agressor; age de forma direta; qualificação negativa (assaltante violento).] E42: [Lúcio vai conversar com 132, o policial que o capturou.] - Um movimento em falso e te queimo! A ameaça não precisava ser repetida. O detetive conhecia a fama de Lúcio, sabia muito bem com quem estava lidando (LOUZEIRO, 1990, p. 73). [Agressor; age de forma direta; qualificação positiva (força); qualificação negativa (agressividade).] E43: [Lúcio quer saber informações sobre quem o espancou na delegacia.] Lúcio tira o revólver, as coisas engrossam para o lado de 132. - Fica sabendo de uma coisa, filho da puta, não pensa que tou muito interessado em negociar com Moretti. Não pensa que, pelo fato de servir de intermediário [...] não possa te queimar aqui e agora. [...] Quero os nomes e já. Vou esperar cinco minutos [...]. Se tua cabeça ruim não te ajudar, então já não merece estar vivo. Quem tem cabeça ruim deve ir logo pro inferno (LOUZEIRO, 1990, p. 76, 77). [Agressor; age de forma direta; qualificação positiva (força); qualificação negativa (agressividade).] E44: [Lúcio se exalta com 132.] - Escuta bem o que vou dizer, canalha. Daqui pra frente só eu dou as cartas. [...] Se tu roer a corda, vou te estourar os miolos [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 79). [Agressor; age de forma direta; qualificação positiva (força); qualificação negativa (agressividade).] E45: [Na segunda vez em que sua prisão foi retratada, Lúcio dividia a cela com Nelson Caveira. Ele se irritou com a história que Nelson contou e o espancou.] E, sem que Nelson Caveira esperasse, saltou sobre ele, furiosamente, desferindo socos e pontapés. A princípio o magricela não se defendeu, depois passou a reagir, embora de pouco adiantasse. Lúcio era mais forte e ágil. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 118). [Agressor; age de forma direta; qualificação negativa (violento).] E46: [Lúcio conversa com o pai de Marco Aurélio.] - Matei seu filho. Não vai voltar mais. É o que merecia (LOUZEIRO, 1990, p. 140). [Agressor; age de forma direta; qualificação negativa (assassino).]

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A partir dos excertos E39 a E46, observamos a imagem de Lúcio Flávio como

um agressor, que age por vontade própria, e essa imagem é corroborada por

qualificações negativas: violento, agressivo e assassino. Isso reforça a análise de

algumas qualificações no modo descritivo de Lúcio Flávio, pelas quais ele é

caracterizado como um bandido de alta periculosidade.

Há, porém, algumas qualificações de cunho positivo. Lúcio Flávio é um

homem forte por certas atitudes a ações, como nos enunciados E39, E42, E43 e E44:

E39: Lúcio Flávio não esperou ele terminar. Acionou o gatilho [Lúcio atira em Armandinho.] Lúcio Flávio encostou o cano da arma no ouvido esquerdo de Armandinho, fez outro disparo (LOUZEIRO, 1990, p. 16).

E42: - Um movimento em falso e te queimo! A ameaça não precisava ser repetida. O detetive conhecia a fama de Lúcio, sabia muito bem com quem estava lidando (LOUZEIRO, 1990, p. 73).

E43: Lúcio tira o revólver, as coisas engrossam para o lado de 132. - Fica sabendo de uma coisa, filho da puta, não pensa que tou muito interessado em negociar com Moretti. Não pensa que, pelo fato de servir de intermediário [...] não possa te queimar aqui e agora. [...] Quero os nomes e já. Vou esperar cinco minutos [...]. Se tua cabeça ruim não te ajudar, então já não merece estar vivo. Quem tem cabeça ruim deve ir logo pro inferno (LOUZEIRO, 1990, p. 76, 77). E44: - Escuta bem o que vou dizer, canalha. Daqui pra frente só eu dou as cartas. [...] Se tu roer a corda, vou te estourar os miolos [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 79).

No excerto 40, em que Lúcio Flávio é agressor e retribuidor ao mesmo tempo,

há uma qualificação negativa, pois ele assassinou Marco Aurélio e Armandinho. Mas

há uma qualificação que tende para o lado positivo: ele se diz uma pessoa que não

gostava de injustiça:

E40: - Não gosto de fazer isso. Era o jeito. Bandido sem moral é pior do que puta do Mangue (LOUZEIRO, 1990, p. 18).

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O segundo maior número de ocorrências foi de Lúcio Flávio como benfeitor.

Destacamos cinco ocorrências em que Lúcio Flávio transmite um benefício a

alguém, conforme podemos ver nos enunciados seguintes:

E47: [Reunido com sua gang em um apartamento antes de colocar mais um plano em ação.] Lúcio Flávio prontificou-se a fazer o café (LOUZEIRO, 1990, p. 13).

[Benfeitor; age de maneira voluntária; qualificação positiva em sua ação (mostrou-se prestativo).

E48: Na chácara se fala o que tem de falar – diz ele. (pergunta para Armandinho) - Que carro está com você? [...] - Pra ninguém desconfiar que você deu no pé, acho bom deixar o carro na garagem. [...] Leva-se só o indispensável. Nada de mudanças (LOUZEIRO, 1990, p. 14). [Benfeitor; age de maneira voluntária; qualificação positiva (liderança).] E49: [Lúcio vê o irmão machucado pela surra que levou na prisão.] - Quem fez isso? - Os caras da 8ª. Lúcio pede a Lígia que faça uma aplicação com gelo, pede a Liece que vá a farmácia comprar pomada para desinflamar. [...] Lúcio entra no banheiro. Senta-se no vaso, fica pensando na situação em que metera Nijini (LOUZEIRO, 1990, p. 85). [Benfeitor; age de forma voluntária; qualificação positiva (cuida do irmão).] E50: [Klauss alerta Lúcio sobre Moretti ao que Lúcio responde.] - Sei disso. Quero defesa pro grupo todo (LOUZEIRO, 1990, p. 107). [Benfeitor; age de forma voluntária;qualificação positiva (protetor).] E51: [Lúcio fala sobre os planos futuros caso o próximo assalto ao banco dê certo.] - Se acontecer o que espero – diz ele – então vamos ter uma verdadeira festa de fim de ano. Fica-se com o dinheiro e na mão o cabresto de toda essa canalha que não vale nada mas pode falar grosso, dar uma de autoridade. Liberta-se o Micuçu e até o Zé Branco, se me der na telha. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 169).

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[Benfeitor (pretende beneficiar alguém); age de forma voluntária; qualificação positiva (solidário).]

Esses enunciados constroem uma imagem diferente da imagem dos

enunciados em que o actante é agressor. Aqui, Lúcio Flávio é benfeitor, age por

vontade própria, e todas as qualificações são positivas. Ele é caracterizado como

uma figura solidária na maioria desses excertos. É preciso ressaltar, porém, que ele

é solidário para com seus companheiros e seu irmão. Trata-se de tentar ajudar seus

companheiros, mesmo que para isso ele precise utilizar a violência com outras

pessoas, como policiais, por exemplo, que espancaram seu irmão (cf. E38). Essa

imagem de pessoa solidária contrasta com a imagem de um bandido perigoso e

vingativo que aparece na narrativa como pudemos ver nas qualificações referentes

ao modo descritivo.

Nos excertos seguintes, Lúcio Flávio age como um retribuidor. Mas essa

retribuição muitas vezes é uma forma de vingança. Na maioria dos excertos, as

qualificações são negativas. Uma qualificação positiva desse actante retribuidor foi a

de líder:

E52: Lúcio começou a história de poucas palavras. [...] - O que vocês não conseguiram entender é que só macho entra nas grandes jogadas. Nada de pensar em coisas isoladas. Imaginar que me podiam fazer de trouxa. [...] - E pra quem tem cabeça dura só há um remédio – afirmou Lúcio Flávio. Estava com o dedo no gatilho, apontando a arma para Marco Aurélio (LOUZEIRO, 1990, p. 15). [Retribuidor (dá a um outro actante uma punição); age de maneira direta; qualificações negativas (vingativo).] E53: [Lúcio conversa com o policial Moretti.] [...] E daqui em diante vai ser assim. Chefio a merda da gang. Dou as ordens Quem não achar bom que se foda. E quem desistir, mando liquidar (LOUZEIRO, 1990, p. 89). [Retribuidor (quer agir com Moretti com firmeza e dar o troco, já que o policial deixou Lúcio ser espancado na prisão e ficou com o dinheiro que Lúcio havia roubado); age de forma direta; qualificação positiva (liderança).] E54: [Lúcio vai a casa de um dos seus espancadores na delegacia em Pilares.]

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- Vamos lhe dar uma lição. A última que receberá. Mas nada de pressa (LOUZEIRO, 1990, p. 94). [Retribuidor (dá a Constâncio, que o espancou, uma punição); age de forma direta; qualificação negativa (vingativo).] E55: [Após ter sofrido um golpe supostamente por Moretti, Lúcio começa a pensar em outro assalto. Klauss pergunta o que fariam com Moretti.] - E Moretti? - Deixa ele e Bechara pensar que nos derrotaram. Se volta de surpresa e se cobra o que nos devem, com juros. Não perdem por esperar (LOUZEIRO, 1990, p. 184). [Retribuidor (pretende punir alguém); pretende agir de forma direta; qualificação negativa (vingativo); qualificação positiva (paciente).]

Nas passagens E56 e E57, Lúcio Flávio atua como aliado. Na primeira

passagem, ele dá um conselho aos companheiros; na segunda, ele toma uma

decisão que deve beneficiar todos. A qualificação referente a esse actante é de líder.

Mesmo atuando como um aliado, Lúcio Flávio não deixa de ter uma imagem de

chefe:

E56: Lúcio reaparece na sala e aconselha que não divaguem sobre coisas sérias. Senta-se na poltrona, vai tomando o café na caneca (LOUZEIRO, 1990, p. 14) [Aliado (dá um conselho); age de maneira voluntária; qualificação positiva (liderança).] E57: [Durante a fuga após o assalto ao banco, Lúcio dá algumas ordens aos companheiros] - Temos de andar naquele rumo, até ver o que vai acontecer.[...] - Que fazemos com o carro? – quis saber Nijini. - Muito fácil. Só riscar um fósforo. Queimado, ninguém vai encontrar qualquer impressão que nos comprometa – diz Lúcio Flávio (LOUZEIRO, 1990, p. 24). [Aliado; age de forma voluntária; qualificação positiva (liderança).]

Na passagem seguinte, Lúcio Flávio atua como oponente. Ele contraria a

opinião dos seus companheiros que queriam matar um jovem que lhes ensinou o

caminho para a estrada durante uma fuga. Ao mesmo tempo em que Lúcio Flávio é

oponente dos seus companheiros, ele é solidário ao jovem por deixar que ele

vivesse. A qualificação mais adequada a Lúcio Flávio nessa situação é a de uma

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pessoa solidária à situação do outro, uma característica subentendida que um líder

deve possuir:

E58: [Durante a fuga, os bandidos procuram o caminho da estrada e são ajudados por um morador da região. Nijini sugere que mate o homem, pois podem entregá-lo à polícia. Lúcio não concorda.] - Deixem o homem em paz – afirmou Lúcio, encerrando a conversa. – Se fizer alguma sacanagem, quando os tiras aparecerem já estaremos longe. Isso é que interessa. [...] O importante é sair logo daqui (LOUZEIRO, 1990, p. 28). [Oponente (contraria os projetos de outrem); age de maneira direta; qualificação positiva (solidário).]

A passagem a seguir, (E59), mostra Lúcio Flávio como agressor e retribuidor

simultaneamente. Ele é um actante agressor por ter matado dois homens que faziam

parte da sua gang e retribuidor por ter agido dessa forma para se vingar (retribuir de

modo negativa) da maneira como os dois agiram com Lúcio Flávio: enganando-o.

Nesse excerto, as qualificações são negativas (Lúcio Flávio é um homem violento e

vingativo) e há uma qualificação positiva (Lúcio Flávio como justiceiro, fazendo o que

acha certo com pessoas que o traem). Essa qualificação de justiceiro só é

considerada positiva dentro dos “princípios” dos bandidos, e não para a sociedade,

que pune essas ações.

E59:

[Lúcio, após matar Armandinho e Marco Aurélio, revela aos outros companheiros do bando] - Não gosto de fazer isso. Era o jeito. Bandido sem moral é pior do que puta do Mangue (LOUZEIRO, 1990, p. 18). [Agressor/Retribuidor (pune outro actante); age de forma direta; qualificações negativas (violento e vingativo); qualificação positiva (justiceiro).]

Nos excertos a seguir, quando sofre a ação, Lúcio Flávio figura somente

como vítima. No excerto 60, Lúcio Flávio é considerado vítima da sociedade: ela que

faz as pessoas que não possuem condições financeiras para viver a se

transformarem em bandidos. Lúcio Flávio também é caracterizado como vítima da

falta de ação dos seus pais: negligência da mãe por não pedir a Iemanjá pelo filho e

falta de diálogo por parte do pai.

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E60: [Dondinho fala sobre Lúcio Flávio a um policial.] - Não tou falando de bandido moço [...] Falo do garoto que veio pra cá [...] e aqui acabou de se criar. Se deu no que deu foi culpa nossa. É as pessoas aí fora que tá transformando as pessoas [...]. Foi Dona Zulma que não procurou Iemanjá. Foi seu Osvaldo Lírio que muitas vezes brigava com os garotos. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 32). [Vítima (da sociedade, dos pais de Lúcio Flávio).]

No excerto 61, ele é vítima da violência do delegado Bechara em um

interrogatório. Nos enunciados 62 e 63, Lúcio Flávio é vítima de policiais corruptos

que o roubam. Ele é caracterizado nesses últimos dois excertos como ingênuo e até

mesmo como displicente por ter tomado um táxi logo após ter assaltado uma

agência bancária e por ter deixado o carro em que estava seu dinheiro sem

vigilância. Há, nesses excertos, a imagem de homem ingênuo que contrasta com a

imagem de um homem inteligente presente em E30 e E32.

E61: Lúcio [...] chamou um táxi [...]. O carro avançou silencioso. [...] Não rodaram cinqüenta metros, quando dois homens levantaram-se do banco traseiro. Um deles segurou Lúcio no pescoço, o outro agarrou-o pelos braços. O carro parou, ele foi passado para junto dos desconhecidos, esmurrado no rosto e no estômago, braços virados para trás e algemados. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 39). [Vítima; Qualificação negativa (ingenuidade ao tomar um táxi em plena fuga, fraqueza).] E62: [Durante o interrogatório na delegacia, Lúcio é agredido por policiais para que confesse que matou Armandinho e Marco Aurélio.] Bechara volta a fazer a pergunta, mas sabe que jamais Lúcio Flávio responderá. Mesmo assim, interroga. O encapuzado do estilete crava-o de novo na altura dos rins. Lúcio contorce-se, enquanto se inicia a sessão de pancadaria. Ignora o que aconteceu depois disso. Não sabe quanto tempo ficou desacordado. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 51). [Vítima.] E63: [Lúcio conta aos companheiros como perdeu o dinheiro do assalto ao banco no Rio de Janeiro.] [...] Enquanto parei pra tomar um café com Klauss – diz Lúcio – alguém levou o Karmann-Ghia que Moretti emprestou. Nele tava todo o meu dinheiro e boa parte do de Klauss. Até hoje não sei como foi. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 199).

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[Vítima; qualificação negativa (descuidado, ingênuo).]

Ao extrair os excertos da narrativa em que Lúcio Flávio é actante,

observamos por meio das suas ações que ele muitas vezes age de forma direta e

voluntária como agressor (em oito enunciados num total de 25 analisados), como

benfeitor (cinco), como retribuidor (quatro), aliado (dois), agressor e retribuidor ao

mesmo tempo (dois) e oponente (um). Quando Lúcio Flávio sofre a ação, ele

aparece como vítima (quatro enunciados)20.

A partir da análise dos enunciados, notamos que as imagens de Lúcio Flávio

como um sujeito agressivo são as mais recorrentes. Mesmo quando age como

retribuidor, ele retribui algo de forma negativa por meio da vingança. Entretanto, ele

agiu como oponente para argumentar com seu bando que não precisava matar um

homem. Isso foi algo positivo. Ao agir como aliado, ele estava dando ordens, tomava

a posição de um líder. As imagens nesse contexto é majoritariamente a de um

bandido violento e de um líder (era ela que direcionava as ações do seu grupo).

As ações que o caracterizam como vítima aparecem em contextos diferentes

como pode se observado nos excertos analisados. Fazendo uma síntese das

imagens presentes nos excertos, observamos o seguinte: em E60, Lúcio Flávio se

sente vítima da sociedade e por isso teria virado bandido; em E62, ele é vítima da

violência do delegado Bechara quando foi espancado em um depoimento; e em E61

e E63, ele é vítima de roubo: sua imagem é a de um homem ingênuo e descuidado,

já que não soube evitar a ação dos policiais que o roubaram.

3.4 Algumas considerações

Neste capítulo, mediante a análise dos procedimentos discursivos propostos

por Charaudeau (2009), a nomeação e a qualificação, no interior do modo descritivo,

e o componente actancial, no interior do modo narrativo, identificamos e analisamos

as imagens de Lúcio Flávio.

Partimos do pressuposto, conforme Miranda (2007), de que a descrição pode

se constituir como um ato discursivo para se referir ao ser, ou à coisa descrita,

representando-o e colocando-o, ao mesmo tempo, na interação. Vimos, nos

                                                            20 Essa contagem foi feita a partir dos excertos apresentados na grade 01 no anexo 2, página 115. 

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componentes pertencentes da descrição, o nomear e o qualificar, ferramentas para

analisar as imagens de Lúcio Flávio.

O ato de nomear dá existência ao ser e o classifica em uma certa interação

discursiva. As nomeações dadas a Lúcio Flávio pelo narrador e pelos outros

personagens da narrativa “criam” um personagem Lúcio Flávio e o colocam em

certas classes de pertencimento que ajudam a moldar seu perfil. Denominações

como Noca e Noquinha remetem ao ambiente da vizinhança de Lúcio Flávio, onde

as pessoas o tratavam com afetividade. Já as denominações bandido e bandidão

colocam Lúcio Flávio em classes de pertencimento de um criminoso, fora da lei. As

denominações menino e garoto também se remetem ao ambiente de afetividade da

vizinhança. Embora tenham sido ditos por um policial de forma debochada, elas

foram ditas ao vizinho de Lúcio Flávio que o tratava assim.

A qualificação, segundo Miranda (2007), completa a nomeação, pois consiste

em atribuir ao ser, de maneira explícita ou não, uma qualidade que o caracterize e o

especifique, distinguindo o ser e o objeto de outros seres e de outros objetos

existentes no universo. Levamos em consideração adjetivos (inteligente,

desconfiado, sério) e ações (assaltos, assassinatos, fugas) que remetem

diretamente ao personagem para analisar suas imagens. A partir dessas

qualificações, observamos que as imagens de Lúcio Flávio são as de um bandido

inteligente, perigoso, mal-humorado e desconfiado.

Em relação à análise do componente actancial do modo narrativo,

observamos a imagem de um agressor e de um homem vingativo na maioria das

ocorrências analisadas. Mas também não podemos desprezar as ocorrências em

que Lúcio Flávio aparecia como vítima. Logo, sua imagem é tanto a de um agressor

(de outros bandidos, do policial 132) quanto a de vítima (da sociedade, de policiais

corruptos e do delegado Bechara.

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CAPÍTULO 4: OS ETHÉ DE LÚCIO FLÁVIO

O objetivo deste capítulo é identificar e analisar os ethé de Lúcio Flávio a

partir da voz atribuída a seu personagem na biografia. Inicialmente, faremos um

percurso teórico, abordando o ethos retórico, proposto por Aristóteles (2011), o

ethos na Nova Retórica, proposto por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), e o ethos

no âmbito da Análise do Discurso levando em consideração as proposições de

Auchlin (2001), Amossy (2005), Maingueneau (2004, 2005, 2006) e Charaudeau

(2008). Após apresentar essas perspectivas teóricas, faremos análise dos ethé do

sujeito biografado.

4.1 A noção de ethos

O ethos, ou imagens de si no discurso, pode configurar-se como uma

estratégia discursiva por parte do orador direcionada a seu ouvinte. Uma das mais

tradicionais definições sobre o ethos foi elaborada por Aristóteles na obra a Retórica.

Ele definiu um dos elementos da persuasão que mais tarde viria a ser chamado

ethos. Segundo o teórico, existem três tipos de meios de persuasão por meio do

discurso: o ethos, o pathos e o logos. “O primeiro depende do caráter pessoal do

orador; o segundo, de levar o auditório a uma certa disposição de espírito; e o

terceiro, do próprio discurso no que diz respeito ao que demonstra ou parece

demonstrar” (ARISTÓTELES, 2011, p. 45).

Em relação ao ethos, que é o elemento que nos interessa neste trabalho,

Aristóteles (2011) afirma:

A persuasão é obtida graças ao caráter pessoal do orador, quando o discurso é proferido de tal maneira que nos faz pensar que o orador é digno de crédito. [...] Esse tipo de persuasão, semelhantemente aos outros, deve ser conseguido pelo que é dito pelo orador, e não pelo que as pessoas pensam acerca de seu caráter antes que ele inicie seu discurso. Não é verdadeiro, como supõem alguns autores em seus tratados sobre retórica, que a honestidade pessoal revelada pelo orador em nada contribui para seu poder de persuasão; longe disso, pode-se considerar seu caráter, por assim dizer, o mais eficiente meio de persuasão de que dispõe (p. 45).

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Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) retomam os estudos da retórica em

meados do século XX, mas com nova visão acerca dos elementos que a compõem;

por exemplo, o orador, o auditório e a argumentação. O conceito de ethos estudado

pelos antigos, também foi estudado por esses dois autores. Segundo Perelman e

Olbrechts-Tyteca (2005), o ethos pode ser resumido à impressão que o orador, por

suas palavras, dá de si mesmo ao auditório.

Ao propor uma nova retórica, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) versam

sobre a importância de uma argumentação coerente que o orador deve ter: ele deve

evitar o autoelogio e ter uma fala coerente para que consiga atingir seu público da

melhor maneira possível mediante o vigor do raciocínio, clareza e nobreza.

Auchlin (2001) se baseia na noção de ethos proposta por Aristóteles ao

afirmar, assim como o teórico, que o ethos possui a ideia de que a confiança ligada

à prova ética deve ser um efeito do discurso e não de estar prevenido sobre o

caráter do orador. Isso supõe que o ethos deve ser distinto da reputação e que é

possível delimitar a extensão a ser dada ao “discurso”.

Amossy (2005) afirma que “O simples ato de tomar a palavra implica a

construção de uma imagem de si” (p. 10). Essa imagem, no entanto, não é dita

explicitamente pelo orador (ou locutor). Ela é percebida pelo público a partir do

estilo, competências linguísticas e enciclopédicas e crenças que escapam no

discurso e são suficientes para construir a representação daquele que fala ou

escreve.

Para Maingueneau (2005), a eficácia do ethos decorre do fato de que ele

envolve de alguma forma a enunciação sem ser explicitado no enunciado.

Entretanto, ele reconhece que o público pode construir representações do ethos do

enunciador antes mesmo que este fale. Dessa forma, o autor faz a distinção entre

ethos discursivo e ethos pré-discursivo. Este refere-se à imagem do locutor que a

plateia faz antes mesmo que ele enuncie algo.

O ethos discursivo corresponde à definição de Aristóteles. É o ethos

estritamente ligado ao ato de enunciar. Há discursos em que somente esse tipo de

ethos pode ser depreendido, como um romance, por exemplo, em que não dispomos

de representações prévias do locutor. O ethos pré-discursivo corresponde às

imagens que os coenunciadores fazem do locutor antes mesmo de ele proferir um

enunciado. Esse tipo de ethos, segundo Maingueneau (2005), é mais comum de ser

concebido no domínio político, por exemplo, quando os enunciadores que ocupam

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constantemente a cena midiática são associados a uma imagem que cada

enunciação pode ou não confirmar. No entanto, o autor afirma que “mesmo que o

co-enunciador não saiba nada previamente sobre o caráter do enunciador, o simples

fato de que um texto pertence a um gênero de discurso ou a um certo

posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos” (p. 71)

Para Charaudeau (2008), o ethos relaciona-se ao cruzamento de olhares:

olhar do outro sobre aquele que fala e olhar daquele que fala sobre a maneira como

ele pensa que o outro o vê. Logo, para construir a imagem do sujeito que fala, esse

outro se apoia ao mesmo tempo nos dados preexistentes ao discurso – o que ele

sabe a priori do locutor – e nos dados trazidos pelo próprio ato de linguagem. Os

dados pré-existentes correspondem ao ethos pré-discursivo e os dados trazidos pelo

ato de linguagem correspondem ao ethos discursivo percebido a partir da

enunciação proferida pelo locutor.

Maingueneau (2006) reformulou a proposição do ethos no âmbito da análise

do discurso e o concebe para além de um meio de persuasão, como a retórica o fez:

Enquanto a retórica ligou estreitamente o ethos à oralidade [...] pode-se propor que qualquer texto escrito, mesmo se ele o nega, tem uma vocalidade específica que permite relacioná-la a uma caracterização do corpo do enunciador, a um fiador que, por meio do seu tom, atesta o que é dito (o termo tom tem a vantagem de valer tanto paro o escrito quanto para o oral) (p. 61).

Segundo Maingueneau (2006), a incorporação do leitor significa mais do que

uma simples identificação a uma personagem fiadora: ela implica um mundo ético do

qual o fiador é parte pregnante e ao qual ele dá acesso. Esse mundo ético é ativado

por meio da leitura e é um estereótipo cultural que subsume um certo número de

situações estereotípicas associadas a comportamentos.

A qualidade do ethos remete à imagem desse fiador, ou seja, o corpo do

enunciador, que por meio do seu discurso confere a si próprio uma identidade

compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado. É criado,

assim, conforme Maingueneau (2004), um paradoxo constitutivo: é por meio de seu

próprio enunciado que o fiador deve legitimar sua maneira de dizer. O

reconhecimento dessa função do ethos nos afasta de uma concepção de discurso

segundo a qual os “conteúdos” dos enunciados seriam independentes da cena da

enunciação que os sustenta. Desse modo, não podemos dissociar a organização

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dos conteúdos e a legitimação da cena de fala, que é o próximo tema que o autor

aborda.

Para Maingueneau (2005), o ethos é parte constitutiva da cena de

enunciação. Ele é tão importante quanto o vocabulário ou os modos de difusão que

o enunciado implica por seu modo de existência. O discurso pressupõe essa cena

de enunciação para poder ser enunciado e deve validá-la por sua própria

enunciação: qualquer discurso, por seu desdobramento, institui a situação de

enunciação que o torna pertinente.

Todo discurso, de acordo com Maingueneau (2004), pretende convencer

instituindo a cena de enunciação que o legitima. Tomar a palavra significa assumir

um risco. A cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário. É a enunciação

que, ao se desenvolver, constrói progressivamente o seu próprio dispositivo de fala.

A fala supõe, segundo Maingueneau (2004), uma certa situação de

enunciação que vai sendo validada progressivamente por intermédio da própria

enunciação. Desse modo, a cenografia é um tanto paradoxal, pois é ao mesmo

tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra. Ela legitima um enunciado

que, por sua vez, deve legitimá-la. O que diz o texto deve permitir validar a própria

cena por intermédio da qual os conteúdos se manifestam.

De acordo com Maingueneau (2005), a cena de enunciação integra três

elementos: cena englobante, cena genérica e cenografia. A cena englobante

corresponde ao tipo de discurso; ela confere o estatuto pragmático do discurso,

podendo ser literário, religioso etc. A cena genérica é a do contrato associado a um

gênero, a uma instituição discursiva, como o editorial, o sermão, a lista telefônica

etc. E a cenografia é construída pelo próprio texto e não é imposta pelo gênero; por

exemplo, um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral,

profética etc.

Baseado nessa tripartição, o autor estipula dois polos nos quais os gêneros

discursivos se encaixam: o primeiro abrange os gêneros que se atêm à sua cena

genérica e que não admitem cenografias variadas como a lista telefônica por

exemplo; o segundo polo abrange os gêneros que exigem uma escolha de uma

cenografia, como os gêneros publicitários e literários. Entre esses dois polos, há um

meio-termo que são os gêneros suscetíveis de cenografias variadas, mas que,

geralmente, se atêm à sua cena genérica rotineira.

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A cenografia não se desenvolve plenamente a não ser se puder controlar seu

próprio desenvolvimento. Isso acontece quando o enunciador mantém uma certa

distância em relação ao coenunciador. Este não pode agir imediatamente. Esse é o

caso da escrita. No caso dos discursos orais, em que o enunciador e o coenunciador

estão “ao vivo”, eles podem enunciar por meio das suas próprias cenografias, pois

agem no campo dos atos imprevisíveis pelo fato de a ameaça aos fatos passar para

o primeiro plano.

A reconstrução da cenografia pelo leitor, segundo Maingueneau (2005), é

feita com o auxílio de indícios diversificados, cuja descoberta se apoia no

conhecimento do gênero do discurso e do ritmo por exemplo. Em uma cenografia, a

figura do enunciador e do coenunciador são associadas a um momento e a um lugar

dos quais supostamente o discurso surge.

A cenografia, assim como o ethos, implica um processo paradoxal: desde seu

surgimento, o discurso supõe uma certa cena de enunciação que se valida

progressivamente por essa mesma enunciação. A cenografia legitima um enunciado

que, por sua vez, deve legitimá-la; deve estabelecer que essa cena de onde a fala

emerge é a cena requerida para enunciar. São os conteúdos desenvolvidos pelo

discurso que permitem especificar e validar a cena e o ethos pelos quais esses

conteúdos surgem.

Para Maingueneau (2006), desde que haja enunciação, alguma coisa da

ordem do ethos se encontra liberada. A partir desse dado incontrolável, muitas

explorações do ethos são possíveis em função do tipo e do gênero de discurso em

questão e também em função da disciplina.

Maingueneau (2010) retoma a ideia de que ethos discursivo é coextensivo a

toda enunciação, isto é, o destinatário é necessariamente levado a construir uma

representação do locutor, que esse último tenta controlar, mais ou menos

conscientemente e de maneira variável, segundo os gêneros de discurso.

4.2 Análise dos ethé em Lúcio Flávio: o passageiro da agonia

Iniciaremos a análise do ethos a partir dos três elementos que integram a

cena da enunciação: cena englobante, cena genérica e cenografia.

A cena englobante corresponde ao tipo de discurso. Ela confere o estatuto

pragmático do discurso. Segundo Maingueneau (2005), ao se deparar com um

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discurso, o interlocutor precisa identificar qual é a cena englobante na qual é preciso

se situar para interpretar esse discurso, como esse discurso interpela o leitor e em

função de qual finalidade ele foi organizado. Lúcio Flávio: o passageiro da agonia faz

parte do jornalístico e do literário por se tratar de um romance-reportagem que,

segundo Vilas Boas (2002), mescla esses dois discursos. Tanto o discurso literário

quanto o jornalístico interpelam o leitor como um “ouvinte” da história de Lúcio Flávio

e sua finalidade é fazer conhecer a história desse homem.

A cena genérica refere-se ao contrato associado a um gênero, a uma

instituição discursiva. Na biografia, a cena genérica é a de um romance biográfico:

trata-se da história de um indivíduo e comporta elementos de ficção. Os fatos e a

ficção se articulam no texto. O prefácio revela a cena genérica: nele, Tavares (apud

LOUZEIRO, 1990) afirma que a obra é um romance-reportagem.

Essas duas cenas formam conjuntamente o que Maingueneau (2004) chama

de quadro cênico do texto. É esse quadro que define o espaço estável no interior do

qual o enunciado adquire sentido – o espaço do tipo e do gênero de discurso.

Não é diretamente com o quadro cênico que se confronta o leitor, conforme

Maingueneau (2004), mas com uma cenografia. A cenografia leva o quadro cênico a

se destacar para o segundo plano e ela é construída pelo próprio texto e não é

imposta pelo gênero. Assim, um sermão pode ser enunciado por meio de uma

cenografia professoral ou profética por exemplo. Lúcio Flávio: o passageiro da

agonia é uma escrita biográfica encenada por meio de uma cenografia de romance.

O leitor da obra em questão reconstrói a cenografia a partir de indícios como

o prefácio, tipo de narrador e formato do texto por exemplo. O discurso surge no

momento em que o texto é escrito pelo autor (enunciador) no formato de um

romance direcionado aos leitores (coenunciadores).

Analisamos, a seguir, excertos em que os ethé do Lúcio Flávio podem ser

depreendidos a partir das qualificações conferidas a ele por sua própria voz, que é

forjada pelo autor em diálogos e pensamentos do personagem ao longo da narrativa.

No excerto 64, Lúcio Flávio pensava em como era uma pessoa perigosa e

ficou admirado quando um homem foi lhe servir café na cela e não se intimidou por

estar diante de um bandido perigoso:

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E64: [Lúcio recebera de um homem na cela café com biscoitos. O homem entrou na cela sem qualquer proteção e sem medo do perigo que Lúcio poderia oferecer.] Lúcio admirava-se com aquele homem indiferente ao seu poder de periculosidade (LOUZEIRO, 1990, p. 218, grifo nosso).

Há outro excerto em que Lúcio Flávio reconhece ser perigoso e temido. No

entanto, ele não parece se orgulhar disso naquele momento:

E65: [Em sua segunda prisão retratada na narrativa, Lúcio pensa sobre o lugar em que está.] [...] Os piores do país estavam ali. Os mais temidos, os que tinham proporcionado as mais sensacionais matérias para a imprensa, os que tinham passado semanas inteiras nas manchetes. Não se sentia orgulhoso disso. Nem triste. Era o que era (LOUZEIRO,1990, p. 110-111, grifo nosso).

Nos excertos 64 e 65, o ethos de Lúcio Flávio é de um bandido perigoso e

famoso. Sua foto estampada em vários jornais pelo país é vista por ele como sinal

de notoriedade.

No excerto 66, Lúcio Flávio mostra para seus colegas que é valente, como

todo líder dever ser, mas parece que ele não se sente assim:

E66: [Lúcio pensa sobre si.] [...] Para os comparsas batia o pé e gritava alto: sou o que sou e quem for frouxo não me acompanha. Na verdade não era nenhum valente, como ninguém é. [...] (excerto 34, p. 122, grifo nosso).

Uma peculiaridade de Lúcio Flávio quanto às suas qualificações é que ele

queria parecer justo em certas situações, o que vai de encontro à imagem de um

bandido. No trecho a seguir, ele explica à Lígia, namorada do seu amigo, porque

resolveu se desquitar na Justiça. Ele se considera um bandido diferente por

contribuir ao menos um por cento com a lei. Ele ironiza a Justiça, que é falha, e por

isso existem os bandidos:

E67: [...] Por que um bandido (não é isso mesmo, Lígia) haveria de se preocupar com essas coisas que são próprias dos merdas da classe média e da pequena burguesia? Muito simples, minha cara: sou um

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bandido diferente. Nós todos aqui fazemos noventa e nove por cento das coisas erradas. Segundo a legislação dos honestinos. Por que não colaborar ao menos um por cento com eles? Afinal, graças ao trabalho que desenvolvem estamos aqui. Graças à imbecilidade policial, à corrupção e aos sonhos de grandeza de cada um, estamos aqui (LOUZEIRO, 1990, p. 83, grifo nosso).

Diante de algumas decisões que deveria tomar sobre o bando Lúcio Flávio

não queria parecer injusto:

E68: [Lúcio propõe um serviço a Klauss: que vigie Moretti.] Klauss: - E se descobrir o cara dando alô do lado errado? Lúcio: - Primeiro me comunica. Não quero parecer injusto. Se pega o nome do careta, confirma e queima. Desde que se confirme, não pode ser de outro modo (LOUZEIRO,1990, p. 106, grifo nosso).

Lúcio Flávio, ao pedir o desquite legalmente, parece querer desafiar a Justiça:

faz algo dentro da lei pelo menos em alguma situação e a viola na maior parte do

tempo ao agir como um criminoso. No segundo caso, (E68), ele não quer ser injusto

com os amigos da gang. Ele age como um líder que tem consciência dos seus atos,

e não como um ladrão inconsequente qualquer.

No excerto a seguir, E69, Lúcio Flávio se vê como herói e diz representar um

herói para o irmão:

E69: [...] Pra muito garoto por aí, sou uma espécie de herói de gibi. Por que não seria pra meu irmão? [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 68, grifo nosso).

Nos enunciados 70 e 71, Lúcio Flávio responde à acusação do polical Moretti

de que seria um homem desconfiado. Ao responder Moretti, Lúcio cria um ethos de

um homem cauteloso, seguro das suas atitudes:

E70: [Lúcio responde a piada feita por Moretti.] - Não sou apavorado. Você sabe disso. Trabalho com cautela. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 90, grifos nossos).

E71: [Lúcio responde a Moretti.] - Acho que isso é prova de segurança (LOUZEIRO, 1990, p. 158).

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A partir do momento em que a insegurança aparece rondando Lúcio Flávio,

ele começa a ter pensamentos confusos em relação ao bem e ao mal, ao medo e à

coragem, à covardia e à valentia. Em contraposição às qualificações positivas que

destacamos anteriormente, começam a aparecer nos capítulos finais da história de

Lúcio Flávio qualificações negativas como pode ser notado a seguir em E72:

E72: [Lúcio se recorda da frase do coronel Mendonça que disse que arte se faz com dez gramas de talento e novecentos e noventa de trabalho duro.] - Pura verdade. Uns nada fazem por falta de tempo ou condições. Eu não faço porque sou legalidade e crime, vida e morte, água cristalina cobrindo o lodaçal. A mão que procura os traços para fazer girar o moinho é a mesma que matou Marco Aurélio, Armandinho e Domingão (LOUZEIRO, 1990, p. 155, grifo nosso). E73: [Lúcio pensava em como as coisas aconteciam ao contrário.] - Tenho medo de escuro e vivo nas trevas; tenho medo de sangue e sou um criminoso (LOUZEIRO, 1990, p. 188).

Em E72, Lúcio Flávio estava se lembrando do que o coronel Mendonça lhe

disse quando ofereceu na prisão uma oportunidade para que ele pintasse telas.

Lúcio Flávio aceitou pintar e por algumas vezes foi para uma sala especial onde

esboçou alguns desenhos. Em meio ao desenvolvimento dessa tarefa, que estava

agradando a Lúcio Flávio, pois ele já tivera o sonho de ser pintor, surgiu uma

oportunidade para que ele fugisse da prisão.

Em E73, Lúcio Flávio ficou em dúvida por um momento se continuava na

prisão pintando, pois essa era uma chance de mudar e sair da vida do crime, ou se

fugiria no dia de mais um dos seus julgamentos com a ajuda dos seus comparsas:

E73: [Lúcio pensava em como as coisas aconteciam ao contrário.] Tenho medo de escuro e vivo nas trevas; tenho medo de sangue e sou um criminoso (LOUZEIRO, 1990, p. 188).

Os ethé de Lúcio Flávio nos últimos dois excertos transcritos se configuram

como o de uma pessoa insegura sobre seus sentimentos, mas ao mesmo tempo

segura em relação aos seus atos. Apesar de alguns medos e dúvidas, Lúcio Flávio

não negava ser um bandido.

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Quando Lúcio Flávio obtém algum sucesso nos assaltos a bancos e fugas das

prisões, ele se coloca como forte, inteligente, valente e perigoso. No entanto,

quando os assaltos já não terminam como planejado e ele acaba sendo preso, ele

pensa nos julgamentos pelos quais já passou e o julgamento que ele estava

aguardando. Lúcio Flávio se sente em certo momento uma vítima da sociedade:

E74: [Lúcio pensava no julgamento.] [...] o juiz aproveitando para, das culminâncias de sua autoridade, distribuir justiça àquele pobre pecador, cego e doido, que não tinha jeito de atinar com o caminho que a sociedade lhe apontava (LOUZEIRO, 1990, p. 217, grifo nosso). E75: Que venha mais esse julgamento. Sou o cristão mais julgado da face da Terra. Só Lúcio Flávio tem pecados, só ele pratica desmandos, só ele merece a punição em grau máximo (LOUZEIRO, 1990, p. 217, grifo nosso).

O ethos de vítima presente nesses excertos antecede as qualificações

negativas de Lúcio Flávio que virão mais a seguir na história. As qualificações de um

homem fraco, impotente e covarde diante da realidade do universo do crime vão se

delineando a partir desse momento da narrativa. Lúcio Flávio já não sabe em quem

confiar e começa a perder o controle sobre suas ações. Quando fica sabendo da

morte do seu irmão, Nijini Renato, que também era bandido, Lúcio Flávio qualifica os

bandidos, e a ele mesmo, como pessoas que não merecem ligações afetivas e nem

consideração:

E76: [Lúcio pensava na morte do irmão Nijini.] Bandidos não têm pai, nem mãe. Estão soltos no mundo. Quando morrem, deve ser motivo de satisfação. Nós somos bandidos. Não merecemos consideração. Me esqueça, pai. Aproveitem a morte de Nijini, façam também meu enterro (LOUZEIRO, 1990, p. 222, grifos nossos).

Ele se qualifica como um bandido que não merece compaixão nem mesmo da

família.

No excerto a seguir, os bandidos pagavam não só pelos seus erros, mas

também pelos erros de todos os mortais. Eles eram puxados por correntes. Isso gera

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um efeito de sentido de que eles não tinham escolha. Tornar-se bandido era uma

consequência dos erros que todas as pessoas cometiam:

E77: Todas as portas se fecham ante nossos olhos. Marchamos em torno de uma rocha gigante, puxando as correntes das nossas contradições, dos nossos erros e dos erros de todos os mortais (LOUZEIRO, 1990, p. 236).

Há dois excertos, E78 e E79, que remetem ao fato de Lúcio Flávio estar num

caminho do qual não conseguia se desviar: o mundo do crime. Nesses excertos, não

há qualificações que possam remeter ao ethos de Lúcio Flávio de forma mais clara,

mas seu conteúdo evidencia uma certa angústia do personagem por não poder se

livrar de um universo do qual não queria mais fazer parte.

O excerto a seguir trata-se de uma conversa entre Dondinho e Lúcio Flávio,

que estava sendo procurado pela polícia:

E78: - Noca – prossegue Dondinho. – por que tu não passa uma esponja em tudo que já aconteceu e não começa de novo, filho? - Não dá mais, Dondinho. Não posso voltar. Andei muito nessa estrada e ela não tem volta. Já pensei nisso. Pensei, imaginando que era que eu ia me dizer. Mais cedo ou mais tarde. Qualquer dias desses, vão encontrar um jeito de acabar comigo (LOUZEIRO, 1990, p. 67).

O segundo excerto mostra um pensamento do personagem Lúcio Flávio em

uma cela da prisão:

E79: Como fugir das pás do moinho? Como interromper a correnteza do rio? Era impossível. [...] Um dia na solitária, no descampado de silêncio, patas do cão sem nome arranhando as pedras, teve um desejo que foi invadindo-lhe o corpo, dominando-o até atingir os olhos rasos de lágrimas. Gostaria de ser um cão, como esse, sem dono e sem companhia. Ir por aí. Pelos caminhos e gramados. Perder-se onde o sol tira faíscas da areia, derrama ouro na grama e as borboletas ganham o mel e as flores (LOUZEIRO, 1990, p.123).

Esses dois excertos, embora estejam no início (E78) e na metade (E79) da

narrativa, antecipam o sentimento de derrota e angústia de Lúcio Flávio diante da

impossibilidade de seguir outro caminho a não ser o do crime.

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O excerto a seguir é um dos mais significativos em relação ao ethos de Lúcio

Flávio, pois nele está presente a qualificação “passageiro da agonia”, que é o título

da biografia.

E80: [Lúcio se despede, em pensamento, das pessoas que conhece.] Adeus, Janice. Adeus, Leo. [...] Adeus, Dondinho. Não chore mais por mim, mãe. Não se preocupe mais comigo, pai. Já estou tão morto, que nem posso odiar Nadja. Me sinto tão distante e tão perto de Nijini. Não pertencemos a este mundo. Somos passageiros da agonia, perdidos num vendaval. Todas as portas se fecham ante nossos olhos. Marchamos em torno de uma rocha gigante, puxando as correntes das nossas contradições, dos nossos erros e dos erros de todos os mortais. A nós não cabem sentimentos, nem amarguras. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 236, grifos nossos).

É o próprio Lúcio Flávio que se autoqualifica, por meio de uma expressão que

ficará como síntese de sua trajetória, ao mesmo tempo em que representa um modo

de “ler” sua vida.

No excerto seguinte, Lúcio Flávio afirma que os bandidos são o “lado mau da

espécie” e por isso merecem morrer. Ele admite sua fraqueza, sua falta de agilidade

para lidar com Bechara, um delegado corrupto, que, segundo Lúcio Flávio, era pior

do que ele:

E81: [Lúcio Flávio pensa nos companheiros mortos, nos policiais que tramavam os crimes.] [...] Mataram Maneta porque era amargo. Antônio Branco e Horroroso morreram pelo mesmo motivo. Somos o lado mau da espécie. A mancha que deve ser apagada a ferro e fogo. Perdi a corrida pra você, Bechara, que é muito pior do que eu [...]. Um bandido não deve ter fraquezas. Por ser bandido, ele deve agir na sombra, no momento em que menos se espera. [...] Nós confundimos tudo. Misturamos erros com acertos, amor com ódio, lealdade com traição. Um imperdoável romantismo nos corrompeu. Bechara é o grande mestre. [...] (LOUZEIRO, 1990, p. 236, 237, grifos nossos).

Na parte final da história de acordo com os excertos E72 a E81, os ethé de

Lúcio Flávio são de vítima, de fraco e de um homem amargurado. Ele não via mais

saída para sua vida. Ele estava preso em uma “roda” que o puxava cada vez mais

para o abismo desse mundo do crime, onde ele pagava pelos seus erros e pelos

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erros de todos os outros seres da sociedade (E80). Dessa forma é que ele se

representa como um “passageiro da agonia”.

4.3 Algumas considerações

A identificação e a análise dos ethé partiram das qualificações que Lúcio

Flávio atribuiu a si mesmo ou das reflexões que fazia acerca da sua vida. Alguns

ethé do personagem assemelham-se a algumas imagens já analisadas: bandido

perigoso e agressivo no início da narrativa; vítima ao final dela. No entanto, a

representação de um bandido que era “passageiro da agonia” foi encontrada

somente na análise dos ethé, pois os outros personagens e o narrador mostravam

um bandido famoso, inteligente, perigoso, que em nada se assemelha a um

“passageiro da agonia”. A obra, ao dar voz ao personagem, permite ter acesso à

suposta avaliação que Lúcio Flávio faz de si de forma a comparar com o que os

outros achavam dele.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O livro Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, um romance-reportagem de José

Louzeiro, é uma narrativa biográfica sobre Lúcio Flávio, um bandido que teve grande

destaque na década de 1970 na mídia pelos assaltos a bancos, roubos de carros,

fugas das prisões e negociações com policiais corruptos que faziam parte do

Esquadrão da Morte.

A história de um criminoso, que, segundo outras fontes além do livro,

chamava a atenção por características peculiares, atraiu o nosso interesse. A

motivação principal, porém, para esta pesquisa, foi a caracterização desse bandido

como “passageiro da agonia” e a composição da obra (o uso de diálogos em que

aparecem várias vozes, incluindo a voz do personagem Lúcio Flávio). Daí, surgiram

as seguintes questões: que imagens essas vozes constroem de Lúcio Flávio? Como

Lúcio Flávio é descrito pelos sujeitos que assumem a enunciação? Como seus ethé

são configurados a partir do que supostamente Lúcio Flávio pensa e fala sobre si?

Para responder a essas questões, identificamos e analisamos as imagens de

Lúcio Flávio pela análise dos procedimentos de nomeação e qualificação

provenientes do modo de organização discursivo descritivo proposto por

Charaudeau (2009) e do componente dos actantes proveniente do modo de

organização discursivo-narrativo proposto pelo mesmo autor.

A categoria de nomeação faz com que o personagem exista, dá nome ao ser;

nesse caso, nomeia Lúcio Flávio. Elencamos poucas ocorrências em que o

personagem foi denominado de outras maneiras. Quando isso ocorreu, ele foi

denominado pelos apelidos Noca e Noquinha de forma carinhosa pelo seu vizinho

ou debochada pelo policial. O nome Jorge aparece apenas uma vez e é dito por

Nijini quando Lúcio Flávio estava sendo procurado pela polícia. As imagens que

depreendemos do contexto dessa denominação juntamente com o contexto das

denominações bandido e bandidão são de um bandido, um homem fora da lei, um

criminoso.

Quanto às qualificações de Lúcio Flávio pelas vozes de outros personagens e

na voz do narrador, elas variam no decorrer da narrativa. No início da história, Lúcio

Flávio é caracterizado pelo narrador como um homem sério, sempre pensativo e

raramente de bom humor. Dondinho, vizinho que viu Lúcio Flávio amadurecer, o

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qualifica como um menino forte, que impunha respeito, mas ao mesmo tempo

sonhador. Alguns policiais, como 132 e outros que o interrogaram, e alguns

bandidos o qualificam de forma irônica como bandido valente, bonito, inteligente e

famoso, remetendo ao fato de Lúcio Flávio sempre ser notícia nos jornais. O

narrador, ao citar a mídia, diz que Lúcio Flávio era visto como herói de gibi pelo fato

de os jornais contarem histórias nem sempre verdadeiras como roubos e fugas

espetaculares. Ao ser capturado e preso, Lúcio Flávio era qualificado como um

homem perigoso e violento. Quando Lúcio Flávio não tem mais êxito nos crimes que

cometia, quando estava preso em armadilhas provavelmente feitas por policiais

corruptos, ele passa a ser qualificado pelo narrador e pelo policial Moretti como uma

pessoa desconfiada.

Em relação às suas ações, Lúcio Flávio, na maioria das vezes, age como

agressor, característica de um criminoso. Quando ele é um actante que recebe uma

ação, ele é visto como uma vítima, vítima da sua ingenuidade, da sociedade e da

violência dos policiais em interrogatórios.

As entrevistas do autor do livro, José Louzeiro, que citamos neste trabalho,

confirmam essas imagens de Lúcio Flávio que divergiam das imagens dos bandidos

da época. Essas características conferem a Lúcio Flávio o status de uma pessoa

que merecia ter sua história contada, já que suas características e suas ações

partem da extraordinariedade que, conforme Vilas Boas (2008), pode ser um quesito

para que uma pessoa mereça ter sua história contada em um livro. José Louzeiro

constrói o “seu” Lúcio Flávio por meio dos recursos linguístico-discursivos que

mobiliza. E o biografado já estava morto quando o livro foi escrito, o que elimina a

possibilidade de contestação. Assim, o biógrafo-jornalista tem relativa liberdade para

romancear uma trajetória de vida por si só interessante pelo inusitado de algumas

situações. O bandido Lúcio Flávio é um personagem agressivo: era temido por

outros ladrões, assaltava bancos e conseguia fugir de prisões consideradas de alta

segurança; ele negociava com policiais conseguindo facilitações em assaltos e

fugas, mas era um criminoso que sabia pintar e conhecia um pouco de arte; e ainda

teve vontade de ser político antes de ser um criminoso.

As imagens de Lúcio Flávio no livro são reforçadas pelas palavras do autor

nas entrevistas que concedeu ao blog Estranho Encontro, à TV Web e à revista

online Cult, reforçando as representações de Lúcio Flávio. É importante deixar claro

que essas imagens não correspondiam aos estereótipos da época em que o livro foi

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escrito. Apesar de os estereótipos serem constituídos como representações

amplamente difundidas e estabilizadas (LYSARDO-DIAS, 2001), eles podem variar

de uma época para outra, pois, segundo Florêncio (2011), no âmbito das ciências

sociais, o estereótipo tem uma função aglutinadora de ideias, costumes, crenças e

comportamentos compartilhados socialmente em uma dada época.

Nos dias de hoje é cada vez mais comum a mídia noticiar crimes cometidos

por pessoas qualificadas com algumas características semelhantes às de Lúcio

Flávio. Logo, o estereótipo de que o bandido é pobre, sem formação escolar e

aparência física ruim pode ter alterado. O caso do jogador de futebol Bruno, por

exemplo, o goleiro de um famoso time brasileiro que foi acusado de encomendar a

morte da ex-amante: Bruno ficou rico e passou a ser assediado pelas mulheres,

assim como Lúcio Flávio também era assediado pelas mulheres. Também é comum,

atualmente, os “filhos” da classe média roubarem para manter o vício das drogas ou

matarem inocentes em atos de vandalismo, como jovens que matam mendigos

assassinados por exemplo. Assim, jovens com boa condição econômica, com boa

aparência e com boa formação educacional fazem parte da lista de criminosos que

estampam as notícias dos jornais sem que isso hoje pareça algo tão fora do perfil de

um criminoso.

Retomando os ethé, percebemos que as imagens de Lúcio Flávio

depreendidas por meio da fala do personagem vão se aproximando da qualificação

“passageiro da agonia” na medida em que os planos de Lúcio Flávio não dão mais

certo. O termo “passageiro”21 remete tanto a um indivíduo que é transportado num

veículo, um viajante, quanto aquilo que passa rapidamente, transitório. Assim, Lúcio

Flávio tanto pode ser tomado como um viajante – alguém que transita pelo mundo

do crime - quanto alguém que está em uma constante situação de aflição por

encontrar-se na marginalidade. Quando está livre é perseguido por policias, quando

está preso quer fugir. O personagem, mediante suas divagações sobre sua própria

figura e sobre suas ações, deixa “escapar” a imagem de um homem cansado,

derrotado por seus inimigos (o delegado Bechara e o policial Moretti). Ele sentia-se

uma vítima por estar atrelado ao mundo do crime, do qual não conseguia livrar-se.

Ele afirmava estar preso a esse mundo e isso já no fim da narrativa representava

uma agonia. Ele queria ganhar muito dinheiro em um último assalto e sair do país

                                                            21 Acepções segundo o dicionário Houaiss. Dicionário Houaiss on line. Disponível em: <http://200.241.192.6/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame>. Acesso em: 31 jul. 2013. 

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1009  

com sua companheira e seu filho. Percebendo que esse desejo estava cada vez

mais difícil de ser realizado devido a mais uma prisão e com o assassinato do seu

irmão e dos seus comparsas, Lúcio Flávio vê sua trajetória mudar.

A história de Lúcio Flávio tem o desfecho que condiz com a imagem de

“passageiro da agonia”: ele foi morto em uma prisão por um colega de cela. Ou seja,

no espaço transitório de cumprir uma punição, sua vida chegou ao fim.

Em tempos de bandidos como Fernandinho Beira-Mar, Lúcio Flávio vai

ficando cada vez mais distante. Mudou o mundo do crime, hoje dominado pelo

tráfico de drogas, cada vez mais banalizado; mudou a mídia, que faz circular com

maior rapidez e espetacularização as notícias, ampliando seu impacto; mudaram os

criminosos, mais ousados, administradores de esquemas bem estruturados e com

uma vida mais curta; mas continuam a atrair mulheres, às vezes as moças da classe

média, que namoram poderosos traficantes capazes de lhes oferecer status e

conforto material.

A figura do advogado adquiriu maior centralidade: hoje, eles também ganham

destaque, sendo porta-vozes dos seus clientes e dando entrevistas a jornais e a

programas de televisão. Eles são, muitas vezes, um elo importante entre o

criminoso, a Justiça e a sociedade.

Diante de todas essas mudanças, há muito mais do que o bandido e a polícia,

muito mais do que as figuras de vilões e heróis.

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1019  

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ANEXOS

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ANEXO 1 Grades de análise dos excertos do livro Lúcio Flávio: o passageiro da agonia de acordo com modo de

organização do discurso descritivo. Componentes: Nomeação e qualificação.

Modo de Organização Descritivo: Procedimentos Discursivos

Grade 1: Identificação de Lúcio Flávio

Nomeação Procedimento

01 Lúcio Flávio (p.11) Denominação.

02 “... irmão de Lúcio.” (p. 11) Denominação.

03 [Dondinho contava casos sobre Lúcio Flávio a um

policial.]

“- O Noquinha. É assim que se chama Lúcio

Flávio por aqui.

- Noquinha? - repete o policial, como se não

tivesse entendido da primeira vez.” (p. 31)

Denominação.

04 “(...) Pra onde foi o preto velho que sabe histórias

do bandido?” (p. 34)

Denominação.

05 [Um policial tentando descobrir o paradeiro de

Lúcio Flávio, indagando Dondinho.]

“- E onde está Lúcio Flávio? – insistiu o policial.

(...)

- (...) Só queremos saber uma coisinha sem

importância. Não vamos fazer mal pro garoto. Já

vi que você vai ter de beber bastante para aclarar

as ideias. (...)” (p. 36)

Denominação.

06 “(...) Nijini Renato galgou rapidamente a escadaria

precária do casarão e não viu ninguém. Foi

avançando pelo corredor, começou a chamar pelo

nome que identificava o irmão:

- Jorge!” (p. 38)

Denominação.

07 [Momentos antes do interrogatório.]

“- Senta aí bandido.

(...)

- Leva o bandido para o confessionário.” (p. 47)

Denominação.

08 [Durante a fuga da solitária, Lúcio é identificado de

algumas formas que remetem ao próprio ato de

fugir.]

“(...) Na escuridão em que não podia determinar

as horas, iniciou lentamente a fuga. (...) O

homem saído do fundo da terra, fedendo a

Enumeração.

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Grade 2: Qualificação do personagem Lúcio Flávio

Ocorrência

Qualificação

01 [Durante a fuga, após assaltar o banco, Lúcio e o

bando estão no carro.]

“Nijini Renato contava o dinheiro.

- Já conferi trinta e cinco mil.

- Mais do que você ia depositar – diz Micuçu,

rindo.

Todos acham graça. Só Lúcio não percebe a

brincadeira. Estava sério, olhar perdido na

Sério.

Preocupado.

fezes, urina e suor. O homem nascendo do

último instante de promiscuidade, vindo das

entranhas do solo, ele que poderia ter se

confundido com os vermes, avolumados na

matéria pútrida. (...)” (p. 61)

09 [Dondinho conta a Lúcio sobre o episódio em que

os policiais estiveram no morro, procurando por

Lúcio.]

“- Como eles são desaforados, hem, Noca? (...)”

(p. 66)

Denominação

10 [Policial pede a Lúcio que se acalme.]

“- Te güenta, bandidão. Tu é sabido lá fora.” (p.

122)

Denominação.

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distância.

(...) Os companheiros tagarelavam, riam,

contavam piadas. Ele olhava e não dizia nada.”

(p. 23)

02 “Lúcio Flávio, sentado no asfalto, queixo apoiado

nos joelhos, mãos trançadas nas pernas, estava

distante. (...) Em silêncio, viajando por

caminhos que ninguém poderia cruzar, via

como é curta a ponte que liga o bem e o mal. (...)”

(p. 29)

Pensativo.

03 [Dondinho falando a um policial sobre Lúcio

Flávio.]

“- Ele foi sempre respeitado pelos outros.

Quando se enfezava brigava com menino bem

maior. E levava a melhor. Em outras vezes

trazia um livro com figuras e vinha me mostrar.

Olhava aquelas gravuras de cidades distantes,

dizia que um dia ia até lá. E me convidava

também para ir. Era assim o Noquinha.

Um menino sonhador. (...)” (p. 32)

Forte, impunha respeito.

Sonhador.

04 “- Vovô então acha que esse bandido é um bom

cara? – pergunta o policial.” (p. 32)

Bandido (má pessoa).

Boa pessoa.

05 [Um policial chega ao bar onde Dondinho e o

outro policial estavam conversando. O primeiro

pergunta a este se tem alguma novidade.]

“- O homem aqui é herói e tem nome de

mulherzinha. Um crioulo velho que já se mandou

disse que o nome dele é Noquinha.” (p. 34)

Herói (querido pelos moradores do

bairro onde morou com os pais).

06 [Não obtendo respostas sobre o paradeiro de

Lúcio Flávio, um dos policiais pergunta ao dono

do bar.]

“- E se o No-qui-nha aparecer aqui e tacar fogo

num de vocês, como acabou de fazer com

Armandinho e Marco Aurélio, o que é que vão

achar do bom menino?” (p. 34)

A qualificação de “bom menino” é

utilizada com certa ironia, mas não

deixa de ser uma caracterização

dada a Lúcio Flávio.

07 [Ao tomar um táxi e ser pego pelos policiais, um

deles debocha de Lúcio.]

“- Vamos ver lá em Pilates até onde vai a

macheza deste bicho.” (p. 39)

Lúcio demonstrava coragem nos

interrogatórios.

O qualificador “bicho” remete a

alguém violento, que age por

instinto.

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08 [Um policial ao pegar a mala de dinheiro que

Lúcio carregava.]

“Chefe, olha só! O pinta tá forrado de grana.” (p.

40)

Alguém com boa aparência.

09 [Ao chegar na delegacia.]

“(...) Lúcio Flávio não precisava ver para saber

que os olhares estavam concentrados nele.

Depois da quinta fuga da penitenciária, era

considerado delinqüente de alta

periculosidade, avançando rapidamente para

o lugar de destaque: inimigo público número

1. (...)” (p. 42)

Bandido perigoso.

Delinquente.

10 [Ao pedir um sanduíche na sala de

interrogatórios, Lúcio ouve como resposta:]

“- O príncipe não quer também uma cerveja? –

perguntou o tipo mulato baixo.” (p. 43)

Remete ao fato de Lúcio Flávio

pensar que pode ter um tratamento

diferenciado na prisão.

11 [O delegado se irrita com Lúcio durante o

interrogatório.]

“- Aqui não tem nada de particular, patife.” (p. 49)

Desprezível, mau caráter.

12 [Durante o interrogatório, Lúcio apanha e

desmaia. O delegado tenta reanimá-lo.]

“- Acorda, vagabundo.” (p. 50)

Mau caráter.

13 [Lúcio se recorda do que disse a um ex-

companheiro de cela.]

“- Sou bandido, mesmo!” (p. 53)

Lúcio se autoafirma um bandido.

14 “(...) A solitária seria algo muito camuflado e

seguro, reservada aos mais rebeldes, como

ele, cujo destino era a morte. (...)” (p. 61, 62)

Rebelde, perigoso.

15 “(...) Pra muito garoto por aí, sou uma espécie

de herói de gibi. Por que não seria pra meu

irmão? (...)” (p. 68)

Herói com sentido de aventureiro,

destemido.

16

“(...) Um dia em meio à conversa franca, embora

Lúcio fosse sempre o menos comunicativo,

Lígia arriscou uma consideração que ninguém

ousaria dizer. E, para espanto dos demais,

Lúcio Flávio não se mostrou zangado. (...)” (p.

82)

Introspectivo, mal humorado.

17 [Lúcio explica a Lígia porque queria se desquitar

na justiça.]

“(...) Por que um bandido (não é isso mesmo,

Bandido esperto. Lúcio despreza

a ineficiência da justiça em

contraposição à sua esperteza.

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Lígia) haveria de se preocupar com essas coisas

que são próprias dos merdas da classe média e

da pequena burguesia? Muito simples, minha

cara: sou um bandido diferente. Nós todos aqui

fazemos noventa e nove por cento das coisas

erradas. Segundo a legislação dos honestinos.

Por que não colaborar ao menos um por cento

com eles? Afinal, graças ao trabalho que

desenvolvem estamos aqui. Graças à

imbecilidade policial, à corrupção e aos sonhos

de grandeza de cada um, estamos aqui.” (p. 83)

18 [Após Lúcio dizer o que colocamos no item 25, há

a seguinte menção a seu humor.]

“(...) Lúcio estava num dia bem-humorado. (...)

Nunca tinham visto Lúcio Flávio tão alegre,

nem tão bêbado.” (p. 83)

Raramente ele se demonstrava

alegre e bem humorado.

19 [Moretti faz uma piada com Lúcio.]

“- Que cara desconfiado, meu Deus! Vai acabar

ficando com medo da própria sombra.” (p. 90)

Desconfiado.

20 [Lúcio responde a piada feita por Moretti no item

22.]

“- Não sou apavorado. Você sabe disso.

Trabalho com cautela. (...)” (p. 90)

Cauteloso.

21 [Lúcio se irrita ao perceber que Moretti descobriu

o esconderijo do bando.]

“(...) Nós precisamos é morrer. Bandido burro

tem de ser cortado a bala. É o que precisa

acontecer com a gente. Somos um bando de

bostas, bancando o Jesse James.” (p. 101)

Lúcio se autoqualifica como

ingênuo.

22 [Lúcio se recorda de uma conversa com

Dondinho sobre Moretti.]

“- É um homem perigoso, Noca. Traz o capeta

escondido na sombra.

‘E eu, quem sou, Dondinho? Porventura me

diferencio dele? Apenas represento o outro

lado da medalha. Do medalhão que traz no

pescoço’.” (p. 105)

Pessoa de má índole e má conduta

assim como o policial corrupto.

23 [Lúcio propõe um serviço a Klauss: que vigie

Moretti.]

Klauss: “- E se descobrir o cara dando alô do lado

Quer parecer justo dentro das

possibilidades que a vida como

bandido permite ser.

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errado?”

Lúcio: “- Primeiro me comunica. Não quero

parecer injusto. Se pega o nome do careta,

confirma e queima. Desde que se confirme, não

pode ser de outro modo.” (p. 106)

24 [Em sua segunda prisão retratada na narrativa,

Lúcio pensa sobre o lugar em que está.]

“(...) Os piores do país estavam ali. Os mais

temidos, os que tinham proporcionado as

mais sensacionais matérias para a imprensa,

os que tinham passado semanas inteiras nas

manchetes. Não se sentia orgulhoso disso. Nem

triste. Era o que era.” (p. 110, 111)

Bandido perigoso.

25 [Lúcio pensa sobre si.]

“(...) Para os comparsas batia o pé e gritava

alto: sou o que sou e quem for frouxo não me

acompanha. Na verdade não era nenhum

valente, como ninguém é. (...)” (p. 122)

Comporta-se como líder, homem

forte na presença dos comparsas.

Na verdade não se sentia assim.

26 [Um policial debocha de Lúcio.]

“(...) O rapaz merece respeito. É um bandido de

elevado QI.” (p. 123)

Inteligente, se difere dos demais

bandidos.

27 [Outro policial fala sobre Lúcio.]

“- Tá virando vedeta. Toda hora os jornais

falam dele.” (p. 123)

Figura recorrente na mídia, famoso.

28 [Outro policial fala sobre Lúcio.]

“- Mas se fosse tão sabido não se deixava

agarrar.” (p. 123)

Ingênuo.

29 [Lúcio propôs um novo jogo ao chegar em uma

cela onde já estava seis detentos. Só um detento

aceita.]

“Os outros prisioneiros não respondem. Limitam-

se a sorrir. Estava claro que se tratava de uma

disputa entre os dois que tinham fama de

machões. E Lúcio, nesses momentos, gostava

de exibir-se. (...)” (p. 126)

Corajoso e exibicionista.

30 [Lúcio ganhou o jogo.]

“(...) Lúcio sentia certa satisfação. Estava eleito

o machão da cela. Arrependia-se de não ter

apostado o canivete.” (p. 128)

Machão, líder.

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31 [Lúcio pensa em sua mãe.]

“- Minha mãe já teve no inferno. Me suportou e a

Nijini Renato. Sem querer, sou a encarnação do

Satanás.” (p. 143)

Pessoa má, mas não por

vontade própria.

32 “(...) Lúcio foi transferido para um cubículo dos

fundos da galeria, onde só ficavam os que eram

considerados de altíssima periculosidade. (...)”

(p. 152)

Perigoso.

33 [Lúcio pensando na prisão e sobre si mesmo.]

“O ódio não termina nunca. E aqui é a vasilha

onde todo o ódio do mundo se junta. Adeus

traços suaves e inteligentes de Picasso, adeus

formas angulosas e dramáticas de Portinari. Não

serei o pintor. Sou a própria pintura. O ser

descomunal de Goya.” (p. 152)

Figura digna de ser retratada,

personagem, pintura.

34 [Lúcio se recorda da frase do coronel Mendonça

que disse que arte se faz com dez gramas de

talento e novecentos e noventa de trabalho duro.]

“- Pura verdade. Uns nada fazem por falta de

tempo ou condições. Eu não faço porque sou

legalidade e crime, vida e morte, água

cristalina cobrindo o lodaçal. A mão que

procura os traços para fazer girar o moinho é a

mesma que matou Marco Aurélio, Armandinho e

Domingão.” (p. 155)

Homem “bom” em oposição ao

homem criminoso.

Ser paradoxal.

35 [Moretti fala a Lúcio.]

“- Vai ser desconfiado assim no inferno. É

impossível trabalhar.” (p. 158)

Desconfiado.

36 [Lúcio responde a Moretti.]

“- Acho que isso é prova de segurança.” (p.

158)

Homem prevenido.

37 [Lúcio pensava em como as coisas aconteciam

ao contrário.]

“Tenho medo de escuro e vivo nas trevas;

tenho medo de sangue e sou um criminoso.”

(p. 188)

Ele se caracteriza como um homem

que tem medo, mas ao mesmo

tempo é corajoso por viver nas

trevas e ser criminoso.Mais uma

vez se caracteriza como um homem

paradoxal.

38 [Lúcio está na companhia do filho, Léo, e de

Janice.]

“(...) Era naquele instante, um homem feliz. Um

Homem feliz.

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momento que dificilmente poderia ser igualado.”

(p. 196)

39 [Lúcio ouve a proposta de 132 que o quer prender

e não acha uma boa proposta, ao que 132

responde.]

“- Pode não ser boa, mas é inteligente. E tu tem

fama de homem inteligente. (...)” (p. 205)

Inteligente.

40 [Lúcio estava sendo conduzido ao Rio de Janeiro,

após o último assalto a uma agência bancária de

Belo Horizonte.]

“[132]... também abriu um jornal e pôs-se a ler,

exatamente na página em que eram enumeradas

as peripécias de Lúcio Flávio, considerado o

mais perigoso assaltante do país e que havia

fugido pelo menos vinte vezes dos presídios mais

seguros. (...)” (p. 212)

Assaltante perigoso.

41 “As descrições das fugas prestavam-se à

inclusão de lendas e fatos que na verdade nunca

ocorreram. A imaginação dos repórteres

levava-os a transformá-lo numa espécie de

herói de gibi, como o próprio Lúcio dizia.” (p.

213)

Herói de gibi.

42 [Ao ser levado para cela, um preso debocha de

Lúcio.]

“- Sabe quem tá aqui, pessoal? Lúcio Flávio! O

tremendo marginal.” (p. 213)

Bandido conhecido.

43 [O mesmo preso continua a falar sobre Lúcio.]

“- É o rei dos malandros. O príncipe dos

ladrões e de toda a corja de vagabundos. Tem

cara de mulher mas dizem que é valentão.” (p.

213)

Rei dos malandros.

Príncipe dos ladrões.

Sua beleza contrasta com sua

valentia, com o fato de ser ladrão.

44 [Lúcio se irrita com o deboche do preso,

conhecido como Simão.]

“(...) O que Simão, o Barbicha não sabia, é que

um homem ferido e acuado vira bicho

selvagem. E Lúcio tinha virado um bicho, só

que os comparsas não podiam ver. Foi por isso

que, ao menor sinal de Simão, um pontapé no

estômago o estatelou no cimento. (...)” (p. 214)

Furioso, violento.

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1139  

45 [Lúcio pensava no julgamento.]

“(...) o juiz aproveitando para, das culminâncias

de sua autoridade, distribuir justiça àquele pobre

pecador, cego e doido, que não tinha jeito de

atinar com o caminho que a sociedade lhe

apontava.” (p. 217)

Pobre pecador.

Vítima da sociedade.

46 [Palavras do Lúcio.]

“Que venha mais esse julgamento. Sou o cristão

mais julgado da face da Terra. Só Lúcio Flávio

tem pecados, só ele pratica desmandos, só

ele merece a punição em grau máximo.” (p.

217)

Vítima de julgamentos.

47 [Lúcio lembrava-se de julgamentos anteriores.]

“(...) O psiquiatra diria que era mais uma forma

de exibicionismo. Qualquer coisa que dissesse

estava catalogada. Se pulava do muro era

exibicionismo. Se induzia os companheiros a

motim, era recalque.” (p. 217)

Era considerado exibicionista nos

julgamentos.

48 [Lúcio foi encaminhado para uma cela em que

ficaria sozinho.]

“... levaram-no para a cela. (...) Ficava no final de

uma galeria, mas tinha a vantagem de ser

exclusivamente para ele. Isso significava estar

no pavilhão dos elementos irrecuperáveis. É a

regalia que o perverso merece.” (p. 218)

Homem irrecuperável.

Perverso.

49 [Lúcio recebera de um homem na cela café com

biscoitos. O homem entrou na cela sem qualquer

proteção e sem medo do perigo que Lúcio

poderia oferecer.]

“Lúcio admirava-se com aquele homem

indiferente ao seu poder de periculosidade.”

(p. 218)

Lúcio se considerava perigoso.

50 [Lúcio pensava na morte do irmão, Nijini.]

“Bandidos não têm pai, nem mãe. Estão soltos

no mundo. Quando morrem, deve ser motivo de

satisfação. Nós somos bandidos. Não

merecemos consideração. Me esqueça, pai.

Aproveitem a morte de Nijini, façam também meu

enterro.” (p. 222)

Bandido que não merece ter

ligações afetivas com ninguém.

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51 [Lúcio se despede, em pensamento, das pessoas

que conhece.]

“Adeus, Janice. Adeus, Leo. (...) Adeus,

Dondinho. Não chore mais por mim, mãe. Não se

preocupe mais comigo, pai. Já estou tão morto,

que nem posso odiar Nadja. Me sinto tão distante

e tão perto de Nijini. Não pertencemos a este

mundo. Somos passageiros da agonia,

perdidos num vendaval. Todas as portas se

fecham ante nossos olhos. Marchamos em torno

de uma rocha gigante, puxando as correntes das

nossas contradições, dos nossos erros e dos

erros de todos os mortais. A nós não cabem

sentimentos, nem amarguras. (...)” (p. 236)

Fraco, sem forças.

Passageiro da agonia.

52 [Lúcio pensa nos companheiros mortos, nos

policiais que tramavam os crimes.]

“(...) Mataram Maneta porque era amargo.

Antônio Branco e Horroroso morreram pelo

mesmo motivo. Somos o lado mau da espécie.

A mancha que deve ser apagada a ferro e fogo.

Perdi a corrida pra você, Bechara, que é muito

pior do que eu (...). Um bandido não deve ter

fraquezas. Por ser bandido, ele deve agir na

sombra, no momento em que menos se

espera. (...) Nós confundimos tudo.

Misturamos erros com acertos, amor com

ódio, lealdade com traição. Um imperdoável

romantismo nos corrompeu. Bechara é o

grande mestre. (...)” (p. 236, 237)

Lado mau da espécie.

Deixou-se vencer pelos inimigos.

Referência: CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso – Modos de Organização. São Paulo:

Contexto, 2009.

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1159  

ANEXO 2

Grades de análise dos excertos do livro Lúcio Flávio: o passageiro da agonia de acordo com modo de

organização do discurso narrativo. Componente actancial.

Modo de Organização Narrativo: Princípio de Organização – Categorias do discurso

Grade 1: componente actancial

Actante: Lúcio Flávio Observações

Age Sofre a ação

01 [Reunido com sua gang em um

apartamento antes de colocar mais

um plano em ação.]

“Lúcio Flávio prontificou-se a fazer o

café.” (p. 13)

Benfeitor.

Age de maneira voluntária.

Qualificação positiva em sua ação

(mostrou-se prestativo).

02 “Lúcio reaparece na sala e

aconselha a que não divaguem

sobre coisas sérias. Senta-se na

poltrona, vai tomando o café na

caneca.” (p. 14)

Aliado (dá um conselho).

Age de maneira voluntária.

Qualificação positiva (liderança).

03 “Na chácara se fala o que tem de

falar – diz ele.

(pergunta para Armandinho)

- Que carro está com você?

(...)

- Pra ninguém desconfiar que você

Benfeitor.

Age de maneira voluntária.

Qualificação positiva (liderança).

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1169  

deu no pé, acho bom deixar o carro

na garagem. (...) Leva-se só o

indispensável. Nada de mudanças.”

(p. 14)

04 “Lúcio começou a história de

poucas palavras. (...)

- O que vocês não conseguiram

entender é que só macho entra nas

grandes jogadas. Nada de pensar

em coisas isoladas. Imaginar que

me podiam fazer de trouxa. (...)

- E pra quem tem cabeça dura só há

um remédio – afirmou Lúcio Flávio.

Estava com o dedo no gatilho,

apontando a arma para Marco

Aurélio.” (p. 15)

Retribuidor (dá a um outro actante

uma punição).

Age de maneira direta.

Qualificações negativas

(vingativo).

05 [Marco Aurélio tentava explicar a

Lúcio que não o havia enganado.]

“Lúcio Flávio não esperou ele

terminar. Acionou o gatilho.”

[Lúcio atira em Armandinho.]

“Lúcio Flávio encostou o cano da

arma no ouvido esquerdo de

Armandinho, fez outro disparo.” (p.

16)

Agressor.

Age de maneira voluntária e

direta.

Qualificações positivas para os

demais membros do seu grupo

(força).

Qualificações negativas para

a sociedade (violento).

06 [Lúcio após matar Armandinho e

Marco Aurélio revela aos outros

companheiros do bando]

“- Não gosto de fazer isso. Era o

jeito. Bandido sem moral é pior do

que puta do Mangue.” (p. 18)

Agressor/Retribuidor (pune outro

actante).

Age de forma direta.

Qualificações negativas (violento

e vingativo).

Qualificação positiva (justiceiro).

07 [Lúcio rende o segurança do banco

que iria assaltar.]

“- Vamos assaltar o banco e não

gostamos de barulho.

(...) Lúcio Flávio repetiu:

- Todo mundo deitado no chão. O

expediente terminou.

(...) O gerente sem querer abrir o

cofre, Lúcio chegou perto.

Agressor.

Age de forma direta.

Qualificação negativa (assaltante

violento).

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- Anda, filho da puta. Um segundo

mais e leva um tiro no meio da

cara.” (p. 20, 21)

08 [Durante a fuga após o assalto ao

banco, Lúcio dá algumas ordens

aos companheiros]

“- Temos de andar naquele rumo,

até ver o que vai acontecer.(...)

- Que fazemos com o carro? – quis

saber Nijini.

- Muito fácil. Só riscar um fósforo.

Queimado, ninguém vai encontrar

qualquer impressão que nos

comprometa – diz Lúcio Flávio.” (p.

24)

Aliado.

Age de forma voluntária.

Qualificação positiva (liderança).

09 [Durante a fuga, os bandidos

procuram o caminho da estrada e

são ajudados por um morador da

região. Nijini sugere que mate o

homem, pois podem entregá-lo à

polícia. Lúcio não concorda.]

“Deixem o homem em paz – afirmou

Lúcio, encerrando a conversa. – Se

fizer alguma sacanagem, quando os

tiras aparecerem já estaremos

longe. Isso é que interessa. (...) O

importante é sair logo daqui.” (p. 28)

Oponente (contraria os projetos

de outrem).

Age de maneira direta.

Qualificação positiva (consciente).

10 [Dondinho fala sobre

Lúcio a um policial.]

“Não tou falando de

bandido moço (...) Falo

do garoto que veio pra cá

(...) e aqui acabou de se

criar. Se deu no que deu

foi culpa nossa. É as

pessoas aí fora que tá

transformando as

pessoas (...). Foi Dona

Zulma que não procurou

Iemanjá. Foi seu Osvaldo

Vítima (da sociedade, dos

pais de Lúcio Flávio).

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Lírio que muitas vezes

brigava com os

garotos.(...)” (p. 32)

11 “Lúcio (...) chamou um

táxi (...). O carro avançou

silencioso. (...) Não

rodaram cinqüenta

metros, quando dois

homens levantaram-se do

banco traseiro. Um deles

segurou Lúcio no

pescoço, o outro agarrou-

o pelos braços. O carro

parou, ele foi passado

para junto dos

desconhecidos,

esmurrado no rosto e no

estômago, braços virados

para trás e algemados.

(...)” (p. 39)

Vítima.

Qualificação negativa

(ingenuidade ao tomar um táxi em

plena fuga, fraqueza).

12 [Durante o interrogatório

na delegacia, Lúcio é

agredido por policiais

para que confesse que

matou Armandinho e

Marco Aurélio.]

“Bechara volta a fazer a

pergunta, mas sabe que

jamais Lúcio Flávio

responderá. Mesmo

assim, interroga. O

encapuzado do estilete

crava-o de novo na altura

dos rins. Lúcio contorce-

se, enquanto se inicia a

sessão de pancadaria.

Ignora o que aconteceu

depois disso. Não sabe

quanto tempo ficou

desacordado. (...).” (p.

Vítima.

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51)

13 [Lúcio vai conversar com 132, o

policial que o capturou.]

“- Um movimento em falso e te

queimo!

A ameaça não precisava ser

repetida. O detetive conhecia a

fama de Lúcio, sabia muito bem

com quem estava lidando.” (p. 73)

Agressor.

Age de forma direta.

Qualificação positiva

(força).

Qualificação negativa

(agressividade).

14

[Lúcio quer saber informações sobre

que o espancou na delegacia.]

“Lúcio tira o revólver, as coisas

engrossam para o lado de 132.

- Fica sabendo de uma coisa, filho

da puta, não pensa que tou muito

interessado em negociar com

Moretti. Não pensa que, pelo fato de

servir de intermediário (...) não

possa te queimar aqui e agora. (...)

Quero os nomes e já. Vou esperar

cinco minutos (...). Se tua cabeça

ruim não te ajudar, então já não

merece estar vivo. Quem tem

cabeça ruim deve ir logo pro

inferno.” (p. 76, 77)

Agressor.

Age de forma direta.

Qualificação positiva

(força).

Qualificação negativa

(agressividade).

15

[Lúcio se exalta com 132.]

“- Escuta bem o que vou dizer,

canalha. Daqui pra frente só eu dou

as cartas. (...) Se tu roer a corda,

vou te estourar os miolos (...).” (p.

79)

Agressor.

Age de forma direta.

Qualificação positiva

(força).

Qualificação negativa

(agressividade).

16

[Lúcio vê o irmão machucado pela

surra que levou na prisão.]

“- Quem fez isso?

- Os caras da 8ª.

Lúcio pede a Lígia que faça uma

aplicação com gelo, pede a Liece

que vá a farmácia comprar pomada

para desinflamar. (...) Lúcio entra no

banheiro. Senta-se no vaso, fica

Benfeitor.

Age de forma voluntária.

Qualificação positiva

(cuida do irmão).

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pensando na situação em que

metera Nijini.” (p. 85)

17

[Lúcio conversa com o policial

Moretti.]

“(...) E daqui em diante vai ser

assim. Chefio a merda da gang.

Dou as ordens Quem não achar

bom que se foda. E quem desistir,

mando liquidar.” (p. 89)

Retribuidor (quer agir com Moretti

com firmeza e dar o troco,

já que o policial deixou Lúcio

ser espancado na prisão e

ficou com o dinheiro que

Lúcio havia roubado).

Age de forma direta.

Qualificação positiva (liderança).

18

[Lúcio vai a casa de um dos seus

espancadores na delegacia em

Pilares.]

“- Vamos lhe dar uma lição. A última

que receberá. Mas nada de pressa.”

(p. 94)

Retribuidor (dá a Constâncio,

que o espancou, uma punição).

Age de forma direta.

Qualificação negativa (vingativo).

19 [Klauss alerta Lúcio sobre Moretti ao

que Lúcio responde.]

“- Sei disso. Quero defesa pro grupo

todo.” (p. 107)

Benfeitor.

Age de forma voluntária.

Qualificação positiva (protetor).

20 [Na segunda vez em que sua prisão

foi retratada, Lúcio dividia a cela

com Nelson Caveira. Ele se irritou

com a história que Nelson contou e

o espancou.]

“E, sem que Nelson Caveira

esperasse, saltou sobre ele,

furiosamente, desferindo socos e

pontapés. A princípio o magricela

não se defendeu, depois passou a

reagir, embora de pouco

adiantasse. Lúcio era mais forte e

ágil. (...)” (p. 118)

Agressor.

Age de forma direta.

Qualificação negativa (violento).

21 [Lúcio conversa com o pai do Marco

Aurélio.]

“- Matei seu filho. Não vai voltar

mais. É o que merecia.” (p. 140)

Agressor.

Age de forma direta.

Qualificação negativa (assassino).

22 [Lúcio fala sobre os planos futuros

caso o próximo assalto ao banco dê

certo.]

Benfeitor (pretende beneficiar

alguém).

Age de forma voluntária.

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Referência: CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso – Modos de Organização. São Paulo:

Contexto, 2009.

 

“- Se acontecer o que espero – diz

ele – então vamos ter uma

verdadeira festa de fim de ano.

Fica-se com o dinheiro e na mão o

cabresto de toda essa canalha que

não vale nada mas pode falar

grosso, dar uma de autoridade.

Liberta-se o Micuçu e até o Zé

Branco, se me der na telha. (...)” (p.

169)

Qualificação positiva

(solidário).

23 [Após ter sofrido um golpe

supostamente por Moretti, Lúcio

começa a pensar em outro assalto.

Klauss pergunta o que fariam com

Moretti.]

“- E Moretti?

- Deixa ele e Bechara pensar que

nos derrotaram. Se volta de

surpresa e se cobra o que nos

devem, com juros. Não perdem por

esperar.” (p. 184)

Retribuidor (pretendo punir

alguém).

Pretende agir de forma

direta.

Qualificação negativa

(vingativo).

Qualificação positiva

(paciente).

24 [Lúcio conta aos

companheiros como

perdeu o dinheiro do

assalto ao banco no Rio

de Janeiro.]

“(...) Enquanto parei pra

tomar um café com

Klauss – diz Lúcio –

alguém levou o Karmann-

Ghia que Moretti

emprestou. Nele tava

todo o meu dinheiro e

boa parte do de Klauss.

Até hoje não sei como foi.

(...)” (p. 199)

Vítima.

Qualificação negativa

(descuidado, ingênuo).

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ANEXO 3 Entrevistas

E N T R E V I S T A D E J O S É L O U Z E I R O A O B L O G E S T R A N H O E N C O N T R O

T E R Ç A - F E I R A , M A I O 3 0 , 2 0 0 6

Biografia Entrevista - José Louzeiro

Para quem sente-se atônito e não compreende a questão da violência urbana e da desigualdade

social no Brasil, recomendo a leitura urgente dos livros do jornalista e escritor José Louzeiro,

assim como uma revisão atenta dos quase vinte filmes que Louzeiro roteirizou até hoje, a

maioria baseados em suas polêmicas reportagens.

Maranhense radicado no Rio de Janeiro desde 1954, Louzeiro teve o privilégio de levar para

as páginas da literatura, e dali para a grande tela, uma parte considerável da crônica policial

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dos anos 60, 70 e 80, utilizando-a como objeto de profundo estudo dos abismos que separam

ricos e pobres no país.

Alguns desses livros e filmes se tornaram tão célebres que, fazendo parte do inconsciente

nacional, aos poucos não diferenciamos mais personagens das obras que geraram. Lúcio

Flávio, o famoso bandido carioca, hoje parece indissociável do filme-denúncia oriundo do

livro de Louzeiro. Idem a história de Pixote, realizada com base no texto de sua autoria. Não

fosse o talento de Louzeiro, provavelmente esses dramas exemplares da sociedade brasileira

já teriam sumido na poeira do tempo ou se perdido no anonimato.

Os leitores do Estranho Encontro ganham a oportunidade de conhecer um pouco da

emocionante vida deste homem de 73 anos, incisivo e coerente em suas palavras, que guardou

na bagagem do que viu e ouviu nas redações dos jornais e delegacias de polícia uma

infinidade de histórias para contar. E que, nesta entrevista, relembra um pouco de tudo, com a

necessidade dos que ainda tem muito a dizer.

ESTRANHO ENCONTRO – Louzeiro, para começar queria que você falasse um pouco da sua infância, do seu ambiente familiar. JOSÉ LOUZEIRO – Eu sou filho de um operário, pedreiro, que se tornaria pastor presbiteriano. Meu pai tinha um nome originalíssimo: Aproniano. Nunca vi ninguém com um nome igual. Aproniano. Era pescador, igual ao pai dele, meu avô Severo. Severo Louzeiro. Era Loureiro, mas depois eu vou explicar por que virou Louzeiro. Minha mãe, filha de tabelião, era de um lugar chamado Pinheiro; meu pai, de Guimarães. Ambos do Maranhão. Casaram, tiveram muitos filhos. Nós éramos 12. Mas todos foram morrendo, principalmente os homens. Éramos doze, por aí. Fui o primeiro a nascer homem e a ficar vivo. Tinha uma segunda mãe, a chamada mãe de leite, Teodora, uma negra maravilhosa. Ela dizia: “Esse vai ficar vivo”, e então me dava umas comidas especiais, me dava muito leite, e realmente sobrevivi. EE – Então seu pai se tornou pastor? JL – E daí eu tive uma infância e uma juventude muito ligadas à religião. Lia a Bíblia de noite para o meu pai, parece até a cena de um filme chamado “Vidas Amargas”, com o James Dean, em que ele é obrigado a ler a Bíblia para o pai. Aquela mesma história. Como ela é dividida em versículos, às vezes eu saltava alguns, mas meu pai puxava minha orelha. Ele sabia todos de cor. Quando eu pulava, ele sabia. Aí eu desisti, passei a ler certo. EE – Isso tudo em São Luís. JL – É. A gente morava num subúrbio chamado Cambôa do Mato. E era engraçado porque o subúrbio começava aonde acabava o calçamento. Não tinha luz na rua, não tinha nada. Até

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hoje é mais ou menos assim... Eu fiz um primário relativamente bom. Depois, no início do ginásio, fui um péssimo aluno. Era forte, brigava na rua, naquelas ganguezinhas: quando passa de um subúrbio para o outro, estourava a briga. Enfim, eu de fato não cumpria nada do que a Bíblia mandava [risos]. E não estudava, nem lia. Os únicos livros que havia lá em casa eram a Bíblia e os almanaques que distribuíam para vender remédio. Esses, a minha avó Dorotéia guardava. Até que um dia meu pai chegou para mim e disse: “Você é um vagabundo, não estuda, não faz nada. O que é preciso para você estudar?”

EE – E o que você pediu? JL – Bem, lá não se dormia em cama, dormia-se em rede. E a minha rede era estendida em cima de um bando de saco de cimento, de pedra e tijolos. “Se você fizer para mim um quarto com uma mesa, uma cadeira e com um porta, eu vou estudar.” E ele fez. E eu estudei [risos]. Aí digamos que esse quarto ficou pronto em uma... vamos admitir, hipoteticamente, em uma quinta-feira. Até quarta-feira eu brinquei na rua. Na quinta, eu entrei para esse meu quarto e a minha vida mudou. Completamente. EE – Isso com quantos anos? JL – Eu devia ter uns 12 anos, 13 anos, por aí. Os colegas de rua ficaram pensando que eu havia sumido. Comecei a adquirir livros, alguns amigos do meu pai me davam, e comecei a ler. Queria ser alguém, foi interessante. De uma hora pra outra [risos]. Não demorou muito, não. Até porque eu tinha que provar a ele que era verdade. EE – E a sua mãe, Louzeiro? JL – Minha mãe era uma pessoa maravilhosa. O apelido dela era Mundiquinha, chamava-se Raimunda. Pessoa de uma paciência fantástica, com uma coisa muito bonita na vida: o meu pai, fanático, convertia todo mundo na rua, só a minha mãe ele não conseguiu converter [risos]. Quando eu queria brigar com ele, eu dizia: “Você não conseguiu converter a minha mãe!” Ela era católica, mantinha um santuário bonito em casa, com os santos da devoção. Um dia meu pai levou o pastor, o superior dele na igreja, e quebraram as cabeças dos santinhos todos. Eu fiquei uma fera. A minha avó, Dorotéia, também de uma paciência incrível, me contava histórias. Havia dois tipos: uma de pura fantasia e outra, de terror, para me fazer dormir rápido. Sempre dormia antes do final dessa, e sempre era mais ou menos a mesma: a de um homem chamado Tamancão, leproso... Olha só, totalmente inverídico o negócio... que de noite aparecia nas ruas de São Luís calçando tamancos, e não fazia nada. Um homem enorme, faltava o braço, faltava o nariz, as orelhas estavam caindo. Vinha de noite pra que alguém conversasse com ele, mas não conseguia, todo mundo fechava as janelas e as portas. Era “A História do Tamancão”. Essa que me fazia dormir...

EE – E nessa época vocês ainda eram Loureiro? JL – Já éramos Louzeiro, devido ao meu avô Severo. Meu avô Severo não acreditava em nada, não ia à igreja, nem católica, nem protestante, e aos 80 anos gozava meu pai: “Sai agora de noite, dá uma volta por aí, você tem 40 anos de idade”. Ele tocava violão e morreu depois de tocar numa festa onde comeu vatapá, que nem é um prato do Maranhão. Naquele tempo não havia geladeira em casa de pobre, então aquilo foi feito durante o dia e ele comeu à noite.

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Morreu de uma desinteria total, parece que já estava estragado o camarão, foi um negócio terrível. Morreu com 82 anos; se não, acho que ainda estaria vivo até hoje[risos]. O sobrenome dele era Loureiro. No tempo vago produzia lousas para as escolas. Eram de madeira: a lousa preta e o giz, branco. Ele cortava aquelas tábuas de cedro, fazia as lousas para as crianças. Aos poucos, as pessoas passaram a chamá-lo de “louzeiro”. Então ele trocou o nome de Loureiro para Louzeiro. E hoje eu tenho essa origem que vem de alguma coisa que escrevia, não é? [risos]. EE – [risos] Desde sempre. Mesmo no início, antes de você ganhar o quarto.. JL – Eu não gostava de ler, mas quando ganhei esse quarto, quando entrei naquele ambiente todo pintado, com uma lousa que o meu avô fez, com uma cadeira confortável, com uma pequena estante onde comecei a colocar os livros, aí sim eu comecei a ler. Teve uma hora que o meu pai achou que eu tinha que ir ao médico, a um psiquiatra... EE – [risos] JL – [risos] ... porque eu tinha ficado maluco. Fiquei maluco. Aí a minha mãe: “A culpa é sua.” [risos] Porque para almoçar era uma dificuldade. Sair dali. Baixou um santo, e até hoje sou um leitor fanático. Não tem televisão, não tem nada que dê jeito. Eu vejo televisão, mas o meu negócio são livros. EE – Louzeiro, e como você começou no jornalismo? JL – No ginásio eu tinha um bom professor, chamado Luiz Rêgo. Um belo dia, o Luiz Rêgo me disse: “Pega este envelope, não abra.” Eu não abria, não tinha nenhum interesse. “Vá no jornal chamado ‘O Imparcial’, entregue lá para o Emanuel. Vá lá.” Ele era amigo do Emanuel. Eu fui. Cheguei lá, o Emanuel, que bebia à beça, disse: “Desça e converse com o Carneiro. Você vai começar a trabalhar como aprendiz de revisor.” Ou seja, era um pedido de trabalho que o Luiz Rêgo tinha feito em meu nome. Ele me aturava. Um tempo antes havia gostado de uma composição que eu tinha feito com letrinhas de forma caprichadas, só para encantá-lo.

EE – Foi assim que você acabou se tornando aprendiz de revisor... JL – Desta forma. Eu me lembro que o Carneiro era um cara enorme, a barriga enorme, andava sem camisa, todo sujo de tinta. Era o chefe da oficina. Me deu os papéis, provas gráficas que naquele tempo eram umedecidas com água. Gostei muito, porque as primeiras coisas que eu li eram da página literária que o Sarney mantinha no jornal. Ele estava começando também, no mesmo jornal. Eu ficava lendo aqueles artigos e o Carneiro, como eu fazia direitinho, passou a me manter só nesse negócio. De ler essas matérias, para imprimir só no fim de semana. Ou seja, era outro caminho para a literatura. Li poemas do Ferreira Gullar, li poemas do Sarney e de outros intelectuais. Bom, daí desse suplemento eu passei a fazer revisão com os revisores normais, mas não me interessei muito por aquilo e fui para a reportagem de polícia. Tive a ajuda de um repórter famoso, chamado Moacyr de Barros. Eu saía junto com ele, para ver as coisas, e então virei repórter de polícia. Passei mais de 30 anos nessa área. EE – E a vinda para o Rio?

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JL – Eu vim em 54, janeiro de 54, devido a uma reportagem. Fui fazer uma matéria em um município afastado. A acusação que se fazia era a de que um rapaz, cujo nome eu não lembro, tinha sido espancado pelos capangas do Vitorino Freire. Uma figura nociva no Maranhão, senador, o dono do estado. O rapaz foi espancado porque era ladrão no Piauí e fugiu pro Maranhão, mas o jornal inventou que o bom era pegar este cara, botar na primeira página como ele tendo sido espancado, quase morto, com fio elétrico pelo pessoal do Vitorino. Deram uma surra no cara, ele com as costas todas cortadas. Quem fez a matéria fui eu. O Vitorino Freire, claro, mandou botar o meu nome na lista para morrer. O jornal ficou preocupado: eram cinco na lista. Três morreram. Acharam melhor me mandar para o Rio. EE – O início no Rio deve ter sido conturbado, pelo jeito. JL – Eles me deram alguns trocados, meu pai também ajudou. Eu vim em um avião Skymaster, da Lloyd Aéreo. Esse Skymaster eram as velhas fortalezas que, durante a Segunda Guerra, transportavam armas e jipes, de Natal para a África. Eu olhei e pensei: “É impossível esse negócio voar”. Era gigantesco, com três motores de cada lado da asa, um troço gigante. A empresa parece que tinha dez desses aviões, e fechou quando caiu o último [risos]. Antes de fechar, ainda havia três, e eu vim em um deles. EE – [risos] Você se lembra dos seus primeiros momentos profissionais, depois da viagem? JL – Sim, me lembro. Vim para trabalhar no “O Jornal”, mas acontece que a pessoa que havia me convidado não tinha cacife para convidar ninguém e, de repente, não havia nada que eu fizesse. Fui então trabalhar em uma empresa que vendia material gráfico, alemã, chamada Oscar Flues, na Praça Mauá. Eu cobrava dívidas dos donos de gráficas e cartonagens. A Oscar Flues vendia material de segunda mão, recondicionado. Fiquei nisso um ano, até que comecei a trabalhar na “A Revista da Semana”, na Lapa. A “Revista” concorria com “O Cruzeiro”, do Chateaubriand. A partir daí fui me envolvendo no jornalismo, trabalhei bastante no jornal do Tenório Cavalcanti, “A Luta Democrática”. Depois no “Diário Carioca”, no “Correio da Manhã”, aí enganchei na reportagem de polícia, mesmo. Às vezes eu trabalhava em dois jornais e colaborava com um terceiro. EE – Já na reportagem de polícia, como foi o seu envolvimento na literatura, enquanto escritor? JL – Nesse período inteiramente tumultuado, escrevi um livro de contos, chamado “Depois da Luta”. Aliás, teria que ser “Antes da Luta”, o título está errado. Publiquei em 1958, por conta própria; o editor fez um preço barato, então publiquei. Em 60 eu fiz uma novela, a minha primeira novela. Com o tempo, fui publicando muitos. Tenho mais de cinqüenta livros publicados. EE – Louzeiro, vamos dar um salto para o primeiro roteiro de cinema escrito por você a partir de um livro seu, o “Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia”. Queria que você falasse um pouco da sua convivência com essa figura lendária da bandidagem carioca. JL – Eu estava cobrindo férias de alguém, no “O Globo”, e também trabalhava na “Última Hora”. Um dia, de noite, de madrugada, uma voz estranha... Você sabe logo que é alguém que está botando lenço na boca, para não ser reconhecido. E aí só pode ser bandido. Umas duas da

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madrugada, três, aquela voz estranha procurando alguém de “O Globo”. Ele: “Olha, aqui é o Lúcio Flávio.” A polícia inteira estava procurando o cara. “Mas é de verdade?” “É de verdade.” “Então faz o seguinte: daqui a 5 minutos você me liga de novo.” Porque aí eu iria gravar, já tinha um gravador deste tamanho. Ele: “Se for para gravar, eu não ligo. Faz o seguinte: me liga. Eu vou lhe dar um telefone, você liga”. Ele deu um telefone, eu liguei. Esperto, o cara. Você começa a saber que está lidando com um cara que não é bobo. Liguei, ele atendeu; era um boteco, uma barulheira. “É o seguinte: amanhã a gente vai fazer um ganho num banco bonitinho que tem na Urca.” A Urca só tem duas ruas, a Marechal Cantuária e a Avenida Portugal. “Aquele banco do chapéu, do guarda-chuva. A gente vai fazer um ganho e, se você for lá, com certeza vai ter uma boa matéria.” EE – Mas ele fez isso por quê? Pela vaidade, então. JL – Vaidosíssimo. Megalômano. Eu fui, não disse para ninguém porque a gente esconde para o outro não saber[risos]. Foi um assalto fantástico, um assalto fantástico. Uma menina muito bonita, quando ele já ia saindo, correu atrás dele para dar um beijo. Essa cena não está no filme. A menina ia dar um beijo e ele teve um tremor, porque acionou o gatilho e não havia mais balas. A menina se salvou, mas quando chegou ao carro ele borrou-se todo. EE – O projeto do livro foi combinado em conjunto por vocês dois? JL – Eu prometi que escreveria um livro sobre ele. No filme está assim: “Vocês podem acabar comigo, mas não acabam com a minha história. Estou contando para um jornalista.” O jornalista era eu. Fui para São Paulo, fiquei na “Folha de São Paulo” uns anos e, depois, quando eu voltei para o Rio em 75, ele tinha sido assassinado. Aí eu resolvi, em cima da história dele, escrever um livro. O livro que ele não escreveu, uma pena ele não ter podido ler. Os editores tiraram 3 capítulos, porque ficaria muito grande. Tiraram. Um dia, quando eu republicar de novo, vou colocar os 3 capítulos que estão faltando. EE – Você pode adiantar pra gente o que eles contêm? JL – Um é bem interessante. O Lúcio Flávio foi o único bandido que fugiu 16 vezes da prisão, pela porta da frente. Para fugir de prisão é preciso ser um gênio. E ter muito dinheiro. Ele só fugia pela porta da frente, era uma pessoa com uma boa formação. Só para você ter uma idéia, o pai do Lúcio Flávio era o principal assessor, cabo eleitoral, do Juscelino Kubitscheck. Eu tinha uma foto com o Lúcio menino, o pai e o Juscelino. EE – Quais eram os métodos dele para as fugas? JL – Certa vez ele chegou para o diretor do [presídio] Frei Caneca e disse: “Seu Fulano, eu vim aqui lhe dizer o seguinte: a sua prisão é uma imundície.” Era ousado. “Que administração o senhor faz, que não tem sequer condições de pintar isso aqui? Eu quero ser preso num negócio mais ou menos limpo.” Aí o cara: “Não tenho verba pra isso.” “Bem, se quiser eu lhe dou as tintas. Eu posso até pintar o meu pedaço.” E não é que o cara topou? O Lúcio Flávio telefonou para alguém e de repente começaram a chegar os caminhões com tinta. Muito bem. Foram arrumando as tintas no canto, aqueles galões, a coisa demora. Prisão é como igreja, não acontece nada de uma hora pra hora. Um belo dia, havia um monte de latas de tinta amontoadas; um policial pegou algumas, botou no Fusquinha e roubou. Quando chegou em

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casa, abriu. Estava cheio de armas. “Se essa está cheia de armas, as outras também devem estar. E agora, eu faço o quê? Eu fico calado, espero o motim? Vai morrer um bando de gente.” A mulher dele: “Eu acho melhor você contar. Vai sair preso como ladrão, mas pelo menos presta um serviço aos seus colegas.” Foram lá e não deu outra. Dez latas. Duas tinham armas; oito, tinta. Mas havia alguma indicação que os policiais não conseguiram descobrir, que dizia em qual havia arma e em qual havia tinta. O Lúcio Flávio foi chamado. “Então o senhor queria dar um golpe?” “Não senhor. Eu estou fazendo o meu papel de preso, eu quero fugir. E o senhor é que tem que se virar, para não deixar que eu fuja. A hora que puder, eu fujo.” [risos] EE – [risos] E os outros capítulos retirados? JL – O Lúcio não fumava, nem bebia, mas pedia que trouxessem fósforos. Dos fósforos ia tirando a pólvora e colocando em uma lata: acabava tendo latas e latas de pólvora. Pegava papel de jornal, molhava, embolava, fazia um bando de bolinha. Com uma agulha ele imantava o fio de linha com pólvora. Passava a agulha por dentro das bolinhas. Fazia um cordão com uma bolinha aqui, outra bolinha, outra bolinha. E cada cara do grupo dele que saía, saía com bolinhas e largava aquilo em lugar estratégico. Muito bem. Teve uma festinha na prisão. O diretor estava comemorando não sei o que, veio o Secretário de Segurança e assessores. Quase que no mesmo momento, veio também um carro da lavanderia. Nessa hora em que estava todo mundo reunido, hasteando bandeira, o Lúcio Flávio acendeu um fósforo e tocou fiozinho que saiu queimando a pólvora e começou a estalar: pá, pá, pá! Os policiais sacaram as armas, começaram a dar tiros, gerou um pandemônio. O grupo do Lúcio rendeu o cara da lavanderia, amarrou o motorista e foi embora. Fugiram dez. Pela porta da frente. Tem mais o outro capítulo que eu não me lembro direito, mas esses dois eu quero recolocar. O Lúcio era altamente inventivo. Uma inteligência a serviço do crime. EE – Em relação ao filme, como foi a abordagem do pessoal da produção, para o roteiro? Como eles chegaram até você? JL – Eu ia fazer o filme com o Roberto Farias. Aí o Roberto tinha ido para Cannes. Jornalista vive em um sufoco que não tem tamanho, eu precisava de alguém que me desse um adiantamento para trabalhar no roteiro. E eu nunca tinha trabalhado em roteiro nenhum. Nesse período eu perdi o contato com o Roberto. EE – O Babenco entra nessa hora. JL – Um argentino me telefona, de repente. Alguém com a pronúncia bem espanholada mesmo: “Olha, eu sou o Babenco. Li o seu livro, queria colocá-lo no cinema, estou apaixonado por ele.” Jornalista não acredita em nada. “Bom, vamos fazer o seguinte. Que horas são no seu relógio?” “São 11 horas.” “Quando for 2 horas da tarde, se você estiver aqui em casa, porque às 4 eu saio para a ‘Última Hora’, a gente faz negócio. Se não, você me esquece.’” Ele chegou 1 e meia, por aí. Era um jovem, fiquei até com pena. O cara veio lá de São Paulo, uma bolsa deste tamanho, todo grandalhão e afobado. Ele disse logo: “Vou lhe arranjar o dinheiro, isso não é problema.” O que já é muito grave de se dizer. Mas aí fechamos negócio. Gostei muito quando ele me disse: “Eu quero fazer um filme como o livro.” Pensei: “vou jogar na disposição desse cara”. E por isso fiz negócio com ele. O Roberto ficou

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chateado quando voltou. O filme não é lá uma obra-prima, mas foi um sucesso muito grande. E feito em quatro semanas, era 1977. Em plena ditadura, denunciava o “Esquadrão da Morte” que as autoridades negavam existir. EE – O roteiro é seu, não é? JL – Meu e do Jorge Durán, grande roteirista. Eu não sabia fazer roteiro nenhum. Gostava muito de ler textos de teatro. Gostava, não. Gosto. Mas cinema é diferente. O Jorge ajudou muito, ficamos amigos. É talvez um dos melhores roteiristas que eu conheço. Foi quem me despertou para esse negócio do conflito, ajudou muito os meus livros, ele nem sabe disso. Hoje, o conflito, para mim, é indispensável em qualquer coisa. Você vai ver um programa desses na televisão: se não tiver o conflito, dançou. Os conflitos, a armação da história, eu aprendi com o Durán. A dramaturgia é uma ciência, e quem não estiver em cima de conflito e de plots, pode encerrar, porque está fora do contexto. O Durán sabe disso tudo. Então a minha trajetória pessoal no cinema foi através do Babenco e do Durán. EE – Depois do “Lúcio Flávio” você fez o roteiro de “Os Amores da Pantera” com o Milton Alencar, com quem você trabalharia muitas vezes. JL – O Milton é uma pessoa queridíssima, mas sempre se dividiu muito. Ele poderia ter sido um grande cineasta, mas se dividiu muito. Esforçado. Nós fizemos muitos filmes juntos. Começou com o Jece Valadão, no estúdio da Magnus Filmes. EE – E do “Os Amores da Pantera”, o que você lembra do roteiro? JL – Do “Os Amores da Pantera” eu me lembro do Jece Valadão [risos]. EE – Ele encomendou o roteiro? JL – Houve uma época em que o Jece foi muito amigo meu. Ele sempre quis fazer um filme sobre o Lúcio Flávio, acabou até fazendo: “Eu matei Lúcio Flávio”. O Jece até me convidou para fazer o roteiro, mas não aceitei. Não poderia fazer “Lúcio Flávio” e dizer que quem matou o Lúcio foi aquele policial, o Mariel Maryscotte. Aliás, ele não ia com a minha cara. Quando fiz o filme ele achou que deveria ter colocado o nome dele – Mariel. Eu coloquei Moretti. O Mariel era um dos homens do “Esquadrão da Morte”; um dos Homens de Ouro, junto com o Sivuca e companheiros de grupos de extermínio.

EE – Escuderia Le Cocq, coisas assim... JL – Imagina. Eu sempre fui contra esse pessoal. Ele ficou marcando o Jece e chegou uma hora em que o Mariel arranjou dinheiro com os bicheiros para a produção. Queriam que eu elaborasse o roteiro, a proposta era essa: ganhe um apartamento de três quartos na Zona Sul, aonde quiser, e faça o roteiro. Mas eu sou muito teimoso. “Não faço.” Fazer um filme contra o Lúcio Flávio, não senhor, de jeito nenhum. Fiquei sem o apartamento [risos]. EE – Você já chegou a ser preso por apologia ao crime? JL – Algumas vezes, mas coisa rápida. No “Correio da Manhã” fiquei umas três vezes preso, a prisão era pertinho. O “Correio da Manhã” era na Gomes Freire e naquela rua que atravessa, Consolação esquina de Inválidos, tem o que hoje está semi-destruído, que era o Palácio da

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Polícia. Fui preso ali umas três ou quatro vezes. Dois dias, três dias, meio dia, uma hora. Por coisas que às vezes até desconhecia o motivo. EE – Louzeiro queria falar agora sobre outro roteiro seu baseado na crônica policial, “O Caso Cláudia”, de 79. JL – “O Caso Cláudia”. “O Caso Cláudia” foi dirigido pelo Miguel Borges. EE – Eu queria entender uma coisa. Ele é todo calcado na morte da Cláudia Lessin Rodrigues. O que é óbvio, a começar pelo título. Por que no final consta que todos aqueles episódios são inverídicos? “Qualquer semelhança...” JL – Medo do diretor, para não ser processado pelo Comandante, o pai dela. EE – Ah, o pai dela era Comandante... JL – ... de Aviação Comercial. EE – O Miguel encomendou o roteiro a você e ao Valério Meinel. Ou não? JL – O dono de uma editora – Arte Nova, Álvaro Pacheco – que ficava no bairro de São Cristovão, foi quem nos encomendou esse filme. Para mim e para o Valério Meinel. Foi o Valério Meinel que ajudou a descobrir o caso, antes da polícia. Ele e o fotógrafo Gallo, junto com o detetive War War, que cunhou uma frase: “a mecânica do evento”. Tudo dele era mecânica do evento. Pois bem, encomendaram o filme e nós fizemos o roteiro. Nunca mais soubemos nada a respeito desse filme. Também a gente vai deixando pra lá... Fez sucesso na Argentina, um sucesso grande. EE – Você tem alguma história interessante dos bastidores? JL – Eu estive na televisão, no programa do Flávio Cavalcanti, da Tv Tupi. O Flávio me convidou, mas não me disse com quem eu estaria. Para mim, era um programa a respeito do filme, mas quando eu chego, lá encontro o pai da Cláudia, o Comandante. Não me lembro agora do nome; estava bastante zangado. Acontece que eu sabia uma história completa da menina nos Estados Unidos, em Nova Iorque. “Está bem, Comandante. Isso não está no filme. O senhor quer que eu diga ou não diga?” “Imagina, o senhor pode dizer, não há nada a esconder.” “Eu acho que há. Depois que eu disser, o senhor vai entender que há.” Aí o Flávio: “Então vamos!” Claro, era o Flávio Cavalcanti... “A menina namorava um cabeludo americano, tocador de guitarra. O senhor foi ao FBI, mandou pegar a menina, botar dentro do avião e prender o rapaz. Essa que é a história. A menina veio para o Rio de Janeiro na marra. E o senhor sabe quem é o rapaz agora? Ele é o líder de uma banda. Está lá, vivo. E o senhor trouxe a sua filha, ela encantou-se com um delinqüente daqui, o Michel Frank, filho do representante de relógios Mondaine, da Suíça. Ela namorou uma figura rica, não é isso o que o senhor queria? Só que esse rico era um patife e ela morreu. O senhor...”, aí ele chorou, “...o senhor é o responsável pela morte da sua filha. O senhor é o responsável. Isso eu não botei no filme. Nós temos os jornais. A sua filha sendo presa nos Estados Unidos, está tudo registrado.” EE – O nome desse roqueiro, você se lembra?

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JL – Não me lembro do nome dele, é famoso hoje, mas esqueci o nome. Naquela hora, então, o comandante chorou, foi uma loucura, depois quis me abraçar. “Não, não. O senhor é o responsável pela morte da sua filha.” Jogaram a menina no Chapéu dos Pescadores. Olha só o padrão dos caras: quando eles a jogaram a maré estava cheia, só que o corpo ficou enganchado. Quando a maré secou, a menina estava nua, aquele corpo enganchado na pedra, e os bombeiros jogando corda para puxá-lo. Por outro lado também, não foram os rapazes que a mataram. Ela cheirou demais, eles meteram a mão pela boca da menina no momento em que começou a ficar enlouquecida, tentando desenrolar-lhe a língua. A mão do Michel ficou toda arranhada de dentes. Essa que é a história. Ninguém a matou, não, ela morreu de overdose. E quem descobriu foram o Valério Meinel e o Gallo. EE – E o roteiro seguinte foi o do “Pixote, A Lei do Mais Fraco”, baseado no livro “Infância dos Mortos”, escrito por você. Como o Babenco fez o contato? JL – Desde o “Lúcio Flávio” eu já estava pensando em escrever o “Pixote”, o que só fui fazer em 77. Por volta de 1980, o Babenco comprou os direitos, mas ele não iria fazer “Pixote”, aconteceu por acaso. Ele estava trabalhando em cima de um livro do Márcio Souza sobre a Amazônia, com um conteúdo histórico, a respeito da borracha, da construção do teatro maravilhoso que há em Manaus. O Babenco é muito hábil, ele ouve todo mundo, afinal, era uma superprodução, com roupas antigas, um montão de gente. Enquanto no “Pixote” ele teria que fazer um filme em que roupa é o que não tem; são shorts, aquela atmosfera miserável, mesmo. Ele, então, preferiu fazer o “Pixote”, roteiro meu e do Durán. Só que o meu nome foi tirado. Porque o Babenco deveria aparecer como diretor, o Duran, o roteirista e eu o argumentista. O Babenco não cumpriu o acordo, fiquei sem meu percentual de 2%. Meu pobre percentual. E aí houve que eu me chateei, fui para o advogado e não fizemos o terceiro filme, que seria o “Brincando de Viver”, sobre a escritora louca Maura Lopes Cançado, autora de um diário chamado “Hospício É Deus”. EE – "Hospício É Deus"! Estou procurando esse livro há um tempão... JL – Fui amigo pessoal dela, mas às vezes até me arrependia, porque todos os problemas dela, ela passava pra mim. Todos, inclusive, ou principalmente, os sentimentais. Certa vez ela namorou um detetive mau caráter que começou a tratá-la como prostituta. Foram dormir no Marialva, um hotel pertinho do “Correio da Manhã” e do Palácio da Polícia; esse hotel está lá até hoje. Sentindo-se humilhada, Maura meteu o revólver do amante na bolsa e foi à redação de madrugada me comunicar que ia matar o policial. Só não matou logo porque não sabia acionar o revólver 38, que por sinal estava cheio de balas. Como eu aprendi a lidar com loucos, em vezes de fazê-la desistir – que é o que ela queria, para entrar na lamentação –, e eu cheio de trabalho, o jornal não podia atrasar, disse a ela de maneira enfática que o melhor de matá-lo seria a pauladas[risos]... EE – [risos] JL – Expliquei que há um “pau de bobina”, roliço e forte: com dois belos golpes ela mandaria

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o amante para o céu. Pedi ao meu assistente que pegasse um pau de bobina enquanto ela tomava um cafezinho. Quando Maura viu a peça surpreendeu-se, bateu com a xícara em cima da mesa e disse que eu era louco. Se ela batesse com aquele pau na cabeça do detetive, iria espirrar miolo pelas paredes. Decepcionada comigo, foi embora esquecendo o revólver, que no dia seguinte devolvi ao policial, que me disse chamar-se Toninho. O que devia ser mentira, pois eu nem perguntei o nome dele, que chegou na redação perguntando por Maura. Essa e outras histórias, pretendo colocar em filme no qual a Maura se encontra com Dom Quixote, em Jacarepaguá, numa clínica em que ela era interna. EE – E as repercussões iniciais do Pixote, livro e filme, na época? JL – Foi muito interessante, porque tanto na época do livro, quanto na época do filme, aqui no Brasil não teve a menor importância. A burguesia ainda não era assaltada pelos meninos de rua. Acho que os meninos de rua então prestaram um grande serviço social a este país; quando nada, abriram o mercado de trabalho: todo mundo agora tem porta de ferro, o carro anda com a vidraça pra cima, não pode enguiçar. Tudo pode enguiçar no carro, menos o vidro da janela para evitar os meninos vendedores nos sinais. Eles acabaram prestando um grande serviço social neste país de patifes, ladrões e picaretas. Quem é sério neste país? Este é que é o problema. Aonde é que anda a classe política deste país? Está precisando ser varrida, jogada no lixo. Eu digo um negócio, tomara que eu não acerte. Os bandidos é que vão acabar botando o país nos eixos. Só há bandido! Agora, o bandido que rouba um queijo, vai em cana. O Delúbio e os seus comparsas, isso aí rola num papo indefinido e acaba ficando tudo por isto mesmo. Os milhões afanados não são devolvidos nunca. EE – O livro tem essa inquietação que você captou no ar em 77. JL – Era a época da ditadura, e se você prestar atenção, os meninos é que são os heróis. Você não tem idéia do que eles passam na Padre Severino [instituto de correção para menores]. E às vezes eles são pegos na rua porque estão a serviço da polícia. Isso não quer dizer que seja da polícia toda, mas de uma boa parte, sim. Roubando para dividir dinheiro com o policial. Depois largam eles no camburão, e quem não faz isso morre cedo. Outro dia, 2 ou 3 policiais bêbados entraram em um boteco lá de Caxias e mataram 29 pessoas. Quase todos meninos. Mataram e mataram. O que aconteceu com os assassinos? Até hoje oficialmente não sabemos. As vítimas eram todas pobres. Soldados do Exército mataram há pouco tempo um menino que descia de uma viela no morro, conduzindo um guarda-chuva fechado. Um inteligente militar pensou que fosse uma metralhadora e não pensou duas vezes. Metralhou um menino de 16 anos. O que aconteceu com o assassino? Não sei, ninguém sabe. Quando repórter eu não era querido por ninguém, muito menos pelo jornal. Porque eu nunca fiz composição com polícia, nem com ninguém. Tive amigos que faziam muito isso e morreram mal. EE – Como era a sua relação com Fernando Ramos da Silva, o protagonista de “Pixote”? JL – Com o apoio do ex-prefeito de Caxias, Hydeckel Freitas, eu trouxe a família do Fernando para o Rio, no final dos 80. Na época ele estava sendo perseguido pela polícia em Diadema, São Paulo. Com Pixote e sua mãe, Dona Zefa, vieram 2 irmãos – assaltantes procurados pela Rota paulista – e um tio que não queria nada com o trabalho. Hydeckel conseguiu emprego para todos eles e com seu dinheiro, não o da Prefeitura, comprou uma

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casa confortável no bairro da Paulicéia, em Caxias. Havia garagem, uma geladeira, um freezer, cheios de comida – que o Fernando trocava por drogas –, além de uma pequena biblioteca, 3 quartos e um jardinzinho rodeando. Nesse dia ele me disse: “Você é o pai que eu não tive.” Dona Zefa, não acreditando que a escritura da casa coubesse em 2 folhas de papel, vendeu a casa pela metade do preço para um oficial da Marinha, comprou uma Kombi velha, botou o que coube no veículo e, como se estivesse fugindo, partiu de volta para Diadema. Hydeckel Freitas quando soube dessa decisão, chorou. Seu sonho era mandar Fernando estudar dramaturgia nos Estados Unidos. Queria adotá-lo. Fernando foi vítima da glória que alcançou e não soube administrar, nem tinha idade pra isso. Outra pessoa que muito ajudou o Fernando foi o Babenco, que mandou transformar o barraco onde ele morava, antes de vir para o Rio, numa casinha de alvenaria. O ator foi fuzilado por policiais da Rota que terminaram inocentados, como sempre acontece. Era um péssimo ladrão, roubou na vizinhança uma televisão velha e por essa insensatez, acabou morto.

EE – Em 1996, o José Joffily rodou o “Quem Matou Pixote?”, baseado em outro livro seu

com um gancho sobre o mesmo tema, o “Pixote, a Lei do Mais Forte”.

JL – Porque o mais forte é a polícia.

EE – Como é que surgiu esse filme?

JL – Surgiu por iniciativa da Cida Venâncio, mulher do Fernando Ramos da Silva. Ela

escreveu um livrinho sobre ele e procurou o José Joffily, que se interessou, pediu que eu

ajudasse e ajudei. Além desse, outra fonte foi o livro que eu escrevi sobre o Fernando, cujos

direitos dediquei à filha dele durante as primeiras edições. Nem sei em quantas edições já

está. A menina parecia muito com o pai, quando botava aquela touquinha, então... Ajudei um

pouco no filme. O Zé é muito bom, gosto muito dele, acho a fita legal. O Bomtempo faz o

papel de um policial diabólico. Acho inclusive que a marcação de luz e certos

enquadramentos são melhores do que os do “Pixote”, de Babenco. Tem uma boa marcação de

luz. E o Zé tem uma qualidade no set que eu admiro. Quando as coisas estão muito enroladas,

ele fecha os olhos e pára [risos]. Pára [risos]. É engraçado. Faz isso para não perder a

concentração. É dose pra elefante rodar um longa neste país voltado para o cinema americano.

EE – Agora, voltando para 1982, passamos para um outro filme bem barra pesada. O

“Escalada da Violência”, do Milton Alencar.

JL – Esse não chegou a ser exibido, chegou?

EE – Saiu em vhs.

JL – Mas não chegou a ser exibido. Foi produzido por um dos sócios da Supergasbrás,

milionário. Ele resolveu fazer um filme, aliás, nós metemos essa idéia na cabeça dele, e então

surgiu o “Escalada da Violência”, do Milton Alencar.

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EE – E o roteiro todo seu?

JL – O roteiro todo meu.

EE – Aproveitando, claro, as suas experiências como repórter. Tem muita coisa verídica ali?

JL – Muito, muito. Graças ao Sérgio Farjalla, mestre em efeitos especiais, bolamos um carro

que rendeu uma bela explosão. O filme ficou bom, é o melhor trabalho do Milton.

EE – O conflito central, do cara ter perdido a filha e a esposa, é verídico também ou aí já foi

ficção?

JL – É verídico...

EE – ... O cara ficou louco mesmo...

JL – Trata-se de uma reportagem em 35 milímetros. Como nunca foi para o cinema – o

produtor, Valdemar, não concordou com o percentual de 50% cobrado pelos exibidores – o

filme enferrujou na lata. Mas isso era lei de mercado, o Valdemar detestava esse tipo de lei.

Pra piorar, era a ditadura, período em que havia uma grande contradição entre a ideologia de

direita e a produção de quase 100 filmes malandramente contra o regime. Eram produzidos

pelos condutores da política de exceção, através da Embrafilme, dirigida por Roberto Faria e

apoiadíssima pelo Ministro João Paulo dos Reis Velloso, que arranjava o dinheiro. Uma

pessoa devotada ao cinema, infelizmente esquecida até pelos diretores beneficiários – e não

foram poucos – da sua astúcia.

EE – Outro filme bem interessante para a cinematografia brasileira é o “Amor Maldito”, de

1984, dirigido pela Adélia Sampaio. O primeiro de temática inteiramente lésbica feito no

país. Quando entrevistei a Monique Lafond, ela me disse que a Adélia ou você ficaram

sabendo primeiro da história. História verídica também, não é?

JL – É, aquela história surgiu primeiro no jornal. Contactei a Adélia, que nesse tempo estava

vindo do teatro. Hoje ela voltou para o teatro novamente, apesar de ter tudo para ser uma boa

diretora. Quem dá vida ao filme é a Monique. Muito bonita, atlética, fazia bastante ginástica.

O filme também é muito bem dirigido. E em relação ao fato de ser o primeiro integralmente

com a temática lésbica, eu sabia e a Adélia também. Aliás, você precisava ver os narizes

torcidos e tudo o mais. Até hoje, imagina. Agora, ninguém sabe que se você for na história

antiga, antiga mesmo, na Grécia, por exemplo, todos aqueles filósofos tinham os seus

amantes. Todos. O Sócrates tinha a Xantipa e os namorados. A humanidade foi sempre assim.

Qual é o problema? O diabo são os preconceitos. Onde está o escândalo de uma mulher viver

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com outra? A Adélia pretende fazer outros filmes desse tipo, inclusive mais trabalhados.

Quando se fala “mais trabalhados”, significa “com mais dinheiro” e vários tratamentos de

roteiro.

EE – Passando para o “Noite”, de 85, do Gilberto Loureiro. Do que você se lembra?

JL – Esse tem uma história muito curiosa. Foi produção da Mariza Leão, baseado no livro

“Noite”, do Érico Veríssimo. O Gilberto é uma bela pessoa, e Loureiro, quase que era

Louzeiro. Bom desenhista, arquiteto, enquanto eu fazia as seqüências, ele desenhava

storyboards. Tive vontade de publicar um livro com os desenhos, mas não foram guardados.

O filme seguiu bem até perto do final, depois houve desentendimentos dele com os atores.

Um exemplo: em determinado momento da fita, havia uma menininha linda, de quem eu não

me lembro o nome. Ela aparecia só na mente do personagem, que era um louco. De repente,

mexeram no roteiro, a garotinha ficou sendo uma imagem do real. Como outra qualquer.

Perdeu a força da subjetividade. Aí o louco perdeu também a razão de ser. Era um belo filme.

Uma luz especialíssima, um figurino de primeira qualidade.

EE – Mas nesse, então, você fazia as cenas e o diretor ia preparando o storyboard.

JL – Algo que não é comum no Brasil. O storyboard, que aqui muita gente não sabe o que é, e

num instante desenhava. Não sei por que, parece que ele inibiu-se depois desse filme. Nunca

fez mais nada. Uma pena. Loureiro é um profissional de muita sensibilidade. Além de um

desenhista inspirado.

EE – Chegamos ao “O Homem da Capa Preta”, de 86, do Sérgio Rezende...

JL – “O Homem da Capa Preta”. O Sérgio estava querendo fazer um filme chamado “Soco

Inglês”. Eram uns trogloditas que promoviam desordens, davam cotoveladas para afundar

capota de carro e outras maluquices do mesmo tipo. Eu achava aquilo um pouco sem pé nem

cabeça. Do meu lado, no chão, havia uma pasta grande, com os originais do livro da Sandra

Cavalcanti, a filha do Tenório. Eu via que aquela história não tinha futuro, e o Sérgio também.

Aí disse: “Sérgio, leva esse original aqui, que eu ainda não acabei de ler, é da filha do

Tenório.” No dia seguinte, ele reapareceu encantado. “Vamos esquecer o soco inglês e fazer

isto aqui.” E começamos. Movimentamos a Sandra e a Dalva Lazarone, para dar mais

informações sobre o deputado. Além das que eu tinha.

EE – Da época de jornal?

JL – É, de quando trabalhei com ele na “Luta Democrática”. Muita coisa que se faz na

redação, ninguém em casa fica sabendo. Acho que este é um filme dos bons. Não concordo

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com o final de metralhar o muro, um muro de tijolos, como aquele que está ali, aparente. Ali

deveria estar uma figura qualquer. Coloca a figura de um milico qualquer e fuzila em cima.

Uma coisa visual, cinema é visual. Não se fez nada disso. Ficou-se na suposição do que vão

achar. Não acharam nada e o final se perde. Mas o José Wilker está muito bem e a direção do

Sérgio Rezende é firme, com momentos especialíssimos.

EE – Tudo o que se fala do Tenório é real? Ou está mais para lenda urbana?

JL – O Tenório é uma figura que está pronta aí para fazerem outro filme. O que ele aprontou

não está escrito. Apareceu o lado bom porque, claro, as filhas estavam muito envolvidas. O

filme ficou bem cotado, o fotógrafo, César Charlone, trabalhava com publicidade. Em uma

cena, com o José Wilker fumando, a foto está lindíssima. A Marieta Severo faz o papel da

mulher do Tenório, Dona Zina, o apelido era Zina, que fingia ser surda porque o Tenório, em

casa, não conversava, fazia discurso. Para não ouvir, ela fingia ser surda, usava aparelho. Não

era surda, não [risos]. Isto não está no filme. Quer dizer, está no filme mas não está

explicitado. É um negócio importante. A mulher passar a vida inteira com um trambolho no

ouvido, para não escutar as maluquices do marido. É tema para um outro filme. O Sérgio não

se interessou por este detalhe. Também sou culpado, ia poucas vezes ao set. Quando o

roteirista aparece lá, de repente, passa a impressão de que ele está fiscalizando ou interferindo.

Sempre tive horror de ser chato. Vou às filmagens quando sou convidado.

EE – Louzeiro, para finalizar, uma pergunta que eu sempre faço. Dentro do que você

construiu para o cinema brasileiro nesses roteiros, o que você acha que permanece? Aliás, a

princípio não era nem para você ter entrado para o cinema [risos]...

JL – [risos]

EE – ... O que você acha que ficou do garoto que entra naquele quarto simbólico, mágico,

cresce e chega ao jornalismo, à literatura, ao cinema.

JL – Para responder à pergunta, preciso fazer uma homenagem ao meu avô Severo. Com meu

pai eu nunca pesquei; com meu avô Severo eu ia pescar. A gente pegava uns fachos, acendia e

jogava a tarrafa para pegar camarão ou siri. Se fosse dia, era só jogar a isca num fio azul que

logo os siris apareciam. À noite, a pesca do camarão era comandada pelos fachos. Meu avô

tinha um cacoete, que na época eu não entendia. Tão logo a sua cestinha de vime se enchia de

siris ou camarões, ele remava para voltar pra casa. Certa ocasião, reclamei, e ele me deu esta

lição “Aprenda a se satisfazer com o que suas mãos podem carregar. Nada de amealhar.” No

mundo capitalista, meu avô estaria perdido. Agora a filosofia é a seguinte: amealhar e

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amealhar, enquanto o povo morre de fome. Mas a violência é desencadeada pelos excluídos, e

muitos ricos com seus carros importados já não podem sair de casa. Senhoras milionárias

usando jóias, nem pensar. Os condomínios sofisticados neste país inteiro são guardados pelos

excluídos. Tomara que eles tão cedo não resolvam vingar-se dos seus exploradores.

por Andrea Ormond às 10:12 PM 

Disponível em: http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2006/05/biografia-entrevista-jos-louzeiro.html. Acesso em: 03 jun 2012.

Entrevista de José Louzeiro à revista CULT (on line)

Mapa do crime José Louzeiro, que tem reeditada obra censurada durante a ditadura, declara o fim da imprensa e defende atuação de Dilma

TAGS: criminalidade, Editora Prumo, José Louzeiro, Literatura brasileira

ANA PINHO Ao longo de seus 80 anos, José Louzeiro já viu muito. Foi repórter de polícia durante 25 anos, em uma época de imaginário coletivo povoado por crimes chocantes e lendas urbanas – vários deles postos no papel por seus cerca de 50 livros, como Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (Abril Cultural) e O Estrangulador da Lapa (Record). Também escreveu uma dezena de roteiros de cinema e TV, sendo o mais conhecido Pixote: A lei do mais fraco, dirigido por Hector Babenco, sobre um garoto de rua envolvido num submundo de violência em São Paulo. Comemorando seus 60 anos de jornalismo e literatura, a Editora Prumo, fundada por Paulo Rocco, reeditou cinco de suas mais de 50 obras, em sua maioria combinações de suas reportagem e romances. O primeiro título relançado, Aracelli, meu amor, é talvez o mais polêmico, censurado à época da ditadura pelo uso de nomes reais ao relatar uma investigação sobre o cruel assassinato de uma menina de 8 anos, em 1973, em Vitória. De sua casa no Rio de Janeiro, o autor falou à CULT sobre as mudanças na imprensa e na criminalidade brasileiras. CULT – O que significa a reedição de suas obras para você? José Louzeiro – Num país como o nosso, que não tem respeito por coisas sérias – por dinheiro se tem muito respeito, principalmente dos políticos – é sempre agradável. Espero que nós avancemos no caminho da editoração, para que os editores realmente paguem os autores. [Não pagar os autores] acontece, né? Quando o autor morre e deixa [sua obra] pendurada por aí, [ela] acaba mesmo. A indústria editorial americana funciona de maneira diferente: os direitos autorais são cobrados e são pagos, e pode-se viver à custa do que escreveu, não é como no Brasil. De qualquer maneira, já acho que se publica aqui melhor que antigamente.

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Sua percepção da violência urbana mudou ou continua a mesma? Piorou. Antigamente, os delinqüentes eram no geral pessoas de origem pobre, de morro. Hoje há delinqüência nas famílias da chamada classe A. Mas tive uma exceção na minha época: o Lúcio Flávio, de O Passageiro da Agonia [livro adaptado para filme, dirigido por Hector Babenco] era de família bem situada. O pai dele era amigo do presidente JK. Roubava carro, e tinha carro comprado legalmente. E o que ele ganhava gastava em bebida, dava aos pobres. Era realmente um exagero em suas atividades. Os brasileiros estão mais ou menos acostumados com a criminalidade? Isso piorou também. As armas são adquiridas com mais facilidade, é difícil saber quem é policial e quem é bandido. Se fossem fazer um exame rigoroso no negócio das drogas, os policiais estão metidos até os cabelos nisso, até porque não vivem só do salário que ganham. Hoje, eles chegam ao morro e atiram. E o que vai acontecer com eles? A polícia vai ser realmente uma instituição que defende os direitos do trabalhador? Vemos brigas de policiais com delinqüentes, até mortes de alguns policiais. É o costume. Vai se generalizando. É uma questão política, não é uma questão social. Os políticos estão se dando bem. Uma situação ridícula. Felizmente temos pessoas sérias, como o ministro Joaquim Barbosa e a presidenta Dilma. Foi preciso haver uma mulher pra dar um corretivo nesse país de macho safado e desonesto. Como seu trabalho era recebido no passado? Na época, o que eu estava fazendo era uma aberração. Pensavam que não poderia render mais que aquilo. Acabou que rendeu. Hoje não mais interessa ninguém, a imprensa acabou. Agora tem dois ou três jornais. A imprensa daquele tempo destacava com rigor as coisas, se aprofundava. Não porque o dono fosse um homem correto, mas porque se não fosse assim o jornal acabava. Você é um brasileiro pessimista? Não sou totalmente pessimista, sou realista. Acho que temos pessoas admiráveis, como o Joaquim Barbosa. Qualquer outro ficaria calado, pra que se meter em confusão? Ele não. Ele está brigando. E ele que se cuide, ou então vai acabar preso [risos]. Foi esse descalabro, essa imprudência toda que me motivou muito a escrever.

Revista Cult on line: entrevista intitulada “Mapa do Crime”. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/ home/2013/02/mapa-do-crime/ Acesso em: 10 jun. 2013.

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ANEXO 4

Reportagens sobre Lúcio Flávio

Reportagem do Blog Jornal do Brasil

29 de janeiro de 1975: O assassinato do Bandido Lúcio Flávio

29/01/2012 - 00:00 | Enviado por: Lucyanne Mano

Uma facada no pescoço, que seccionou a carótida, e vários ferimentos no peito, mataram, na madrugada, o criminoso Lúcio Flávio, 31 anos, na cela 7 da galeria D do presídio Hélio Gomes, no Rio de Janeiro. O assassino, outro detento, Mário Pedro da Silva, alegou legítima defesa. Lúcio Flávio e Mário teriam brigado após uma roda de carteado. Prestes a dar um novo depoimento à Justiça, Lúcio Flávio era a principal testemunha nas investigações sobre as atividades exercidas pelo Esquadrão da Morte no estado. Com sua ajuda, foram condenados vários policiais, a começar por Mariel Mariscotte, acusado por ele de participação no Esquadrão da Morte, e de liderança em outra organização, de estelionato e roubo de automóveis.

Lúcio Flavio Vilar Lírio nasceu na capital mineira em 1944. Mas foi no Rio, morando em Bonsucesso que se especializou em roubo de carros e assalto a bancos. Liderava uma quadrilha formada pelo irmão Nijini, o cunhado Fernando C.O. e o amigo Liece de Paula, associava-se a policiais e atuava em todo o país.

Altamente articulado e considerado o mais alto QI da marginalidade carioca, em doze anos de carreira no crime, com mais de quinhentos processos, quase cem anos de penas de detenção, destacou-se também pelas fugas espetaculares. Ao todo, chegou a escapar de 16 penitenciárias. "Sou bandido porque gosto", dizia sempre perante à Justiça, acostumado a assumir a culpa dos crimes que praticava.

A trajetória de Lúcio Flávio no crime organizado, aliada à sua condição de testemunha-chave num processo envolvendo integrantes da própria Polícia e às contradições no depoimento de Mário Pedro foram aspectos extremamente contrastantes às circunstâncias excessivamente banais apresentadas na versão oficial de sua morte.

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O assassino de Lúcio Flávio logo teria o mesmo destino, assassinado por outro preso, que por sua vez, também seria assassinado dentro da prisão.

Em 1977, O cineasta Hector Babenco lançou o filme Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia, baseado no livro homônimo do escritor José Louzeiro, vencedor de quatro Kikitos de Ouro no Festival de Gramado de 1978, nas categorias de Melhor Ator (Reginaldo Farias), Melhor Ator Coadjuvante (Ivan Cândido), Melhor Fotografia e Melhor Edição.

Segundo dados do blog do Jornal do Brasil em que recapitula notícias do passado. Disponível em: http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=29220. Acesso em: 09 jun. 2013.

Texto Retirado do site Cyber Policia

(Home page criada pelo policial civil aposentado Antonio Carlos Correa de Faria.)

Lúcio Flávio Villar Lírio

As fotos registram a última prisão de Lúcio Flávio, pela Polícia Civil de Minas Gerais, ao

lado de seus comparsas. Sua saga chegaria ao fim logo depois, no RJ.

Lúcio Flávio, com QI acima da média (131), foi o precursor em assaltos a bancos no Brasil,

sendo o marginal mais procurado pela polícia na década de 70 por seus diversos crimes em

vários estados da federação. Usava ainda os nomes de Marcos WOLKLLEVITT Júnior,

Rafaelio WANDENKOCK e Marcelo Fleming SPTISCAKOFF sendo transformado em um

mito ou anti-herói pela indústria cinematográfica brasileira e mídia que o colocaram em um

patamar como vítima da polícia carioca e Mariel Mariscot, policial carioca assassinado pelo

crime organizado, como seu principal algoz. Era tido como o bandido refinado e inteligente,

filho da classe média alta carioca dos anos 60 e 70. Lúcio Flávio Vilar Lírio virou bandido em

1968, depois de ver interrompida sua candidatura a vereador em Vitória (ES) pelo golpe

militar. Aos 30 anos, colecionava 32 fugas, 73 processos e 530 inquéritos por roubo, assaltos

e estelionato. De família abastada, dizia que praticava seus delitos porque gostava da

adrenalina que lhe era impingida na hora dos assaltos aos bancos. Mas acima de tudo era um

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bandido e foi um dos pioneiros em roubos a bancos no Brasil. Ficou notabilizado por suas 32

fugas de presídios e cadeias, além de ajudar a desmascarar e desmistificar um grupo de

policiais cariocas que pertenciam ao “Esquadrão da Morte”, dentre eles Mariel Mariscot, que

acabou preso por sua ligação com marginais.

Foi dono de uma frase célebre até os dias de hoje, quando questionado no momento de

sua prisão em Belo Horizonte, sobre a polícia de Minas: "Bandido é bandido, polícia é polícia.

como a água e o azeite não se misturam". É uma mensagem expressiva, apesar de proveniente

de um bandido, porque em sua essência, o policial que tem relacionamento com bandido, não

merecia a honraria de ser chamado de polícia, pois era (e é) bandido com todas as letras.

Sua última prisão ocorreu em Belo Horizonte em 30/1/74 pelos policiais “Murilo

Preto”, Nério Barbosa e equipe da Furtos e Roubos, na Pensão Nossa Senhora Auxiliadora, ao

lado da Santa Casa de Misericórdia, junto com um de seus parceiros. Foi sua última prisão,

sendo recambiado para a Penitenciária Frei Caneca, no Rio de Janeiro, onde foi morto por

“Marujo”, seu companheiro de cela com 28 facadas, em 1975. “Marujo” também foi

assassinado por outro companheiro de cela que por sua vez também foi morto no interior da

prisão. Assim como seu líder, os comparsas de Lúcio Flávio também foram caindo um a um,

alguns em razão de balas da polícia, outros assassinados dentro de presídios.

Liéce de Paula Pinto e Nijini Renato Villar Lírio (irmão mais novo de Lucio Flávio)

foram executados por policiais da Entorpecentes do Rio de Janeiro, quando se encontravam

na Rua General Góis Monteiro em Botafogo. Para dar a aparência de um confronto, os corpos

dos dois bandidos foram colocados dentro de um Karmanguia (esportivo da Volks na década

de 70) e levados para a Av. Princesa Isabel em Copacabana, ao lado do Hotel Plaza, onde

foram novamente metralhados simulando resistência a prisão. Rivaldo Morais Carneiro o

“Martha Rocha”, Antonio Branco e Francisco Rosa da Silva, “o Horroroso”, também

membros da quadrilha de Lúcio Flávio foram metralhados e mortos no Presídio Evaristo

Moraes Filho, na Quinta da Boa Vista, após liderarem o conflito e matar friamente o Coronel

PM Darci Bitencourt, que fizeram de refém. Fernando C. O, comparsa e cunhado de Nijini

Villar Lírio foi morto dentro do complexo prisional Frei Caneca por outros bandidos, a golpes

de estoque feito artesanalmente com um vergalhão de cerca de 30 centímetros. Júlio Augusto

Diegues, o “Portuguesinho”, braço direito de Lúcio Flávio, mesmo preso na antiga

carceragem da Furtos e Roubos, em Benfica, na companhia do criminoso “Lobisomem”

estrangulou dois criminosos rivais no interior daquela unidade. Tempos depois eram também

assassinados.

Site Cyber Polícia – História da Polícia Operacional Investigativa. Disponível em:

http://www.cyberpolicia.com.br/index.php/crime-e-criminosos/ bandidos/ bandidos nacionais

/121-lucio-flavio. Acesso em: 04 jun 2012.

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ANEXO 5

Artigo retirado do Portal do promotor de justiça, professor e escritor Lélio Braga Cabral

Estudos Criminológicos: De Lúcio Flávio a Leonardo Pareja

por Heloísa Helena Quaresma

Introdução

Ousados, bonitos, inteligentes, capazes de atos surpreendentes, eles foram meninos “levados” na infância, mas sempre muito carinhosos com os pais. Estudaram em conhecidos colégios religiosos e gostavam de música, livros e poesia, mas a perda da boa situação financeira das famílias de classe média alta teria abalado a vida de ambos para sempre.

Os primeiros desentendimentos com policiais foram por brigas ou latas de lixo chutadas na madrugada. Mais tarde, carros e dinheiro roubados eram usados para diversão em fins de semana prolongados ou férias. Por fim, as ações criminosas se intensificaram e eles foram ganhando a cena pública como figuras obrigatórias da crônica policial brasileira. Suas histórias ocupavam páginas inteiras de jornais e revistas, com destaque para o dia da notícia das mortes trágicas – eles foram assassinados na prisão.

A mesma história, mas dois personagens de famílias, lugares e épocas diferentes. Está clara acima a existência de um fio condutor que as une, possível de ser percebido a partir da leitura de jornais e revistas que contaram as histórias de Lúcio Flávio Vilar Lírio, década de 70, e Leonardo Pareja, década de 90. Entendemos que não é por uma coincidência de comportamento das personagens que é possível emparelhar as duas histórias, mas a ação de construção das notícias criminais é um processo de configuração que realiza a mediação da pré-compreensão do mundo da ação e a devolução do texto ao nosso mundo.

Analisando as narrativas criminais de épocas diferentes, que registram momentos pontuais da vida de Lúcio Flávio Vilar Lírio e de Leonardo Pareja como contraponto, a escolha dos personagens ocorreu pela comparação efetuada entre eles pelos jornais que narraram às histórias dos mesmos.

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O que num primeiro instante pode parecer uma coincidência de atos e comportamentos, neste trabalho nos faz lembrar que encontramos a infância como motor para o comportamento criminal, a beleza e a inteligência acima da média, o perfil classe média, o envolvimento afetivo da família, a trajetória na bandidagem, a lista dos crimes, penalidades e o tom de recorde que isso apresenta, as fugas espetaculares, as frases de efeito, a iniciativa de falar aos meios de comunicação por telefone ou carta, a escrita de poemas, as palavras dos especialistas sobre as personagens como alerta do que deve ser evitado, o bandido social que faz denúncia da corrupção policial, o delinqüente perigoso e o bárbaro em contraponto ao herói romântico que foge para vingar o irmão, ama a liberdade, defende a honra da família, se preocupa com amigos, ama a namorada, dá importância à justiça, protege a sociedade, desafia a ordem e não teme a morte.

O nome de Lúcio Flávio passou a ser destaque na crônica policial carioca a partir de 1964, quando foi desbaratada uma quadrilha de ladrões de automóveis que, entre outubro de 1963 e junho de 1964, havia roubado oito veículos. No entanto, seu nome desaparece por um período de 5 anos dos jornais do Rio de Janeiro, apenas voltando a aparecer em 1969. Algo que “não se explica por uma eventual regeneração: Lúcio agia então em Pernambuco, onde também conseguiu uma fuga sensacional da Casa de Detenção do bairro São José, em Recife, em 1967″. [1]

Lúcio Flávio era filho de uma família de classe média mineira. Ele nasceu em 1944, em Minas Gerais. Seu pai, Osvaldo Vilar, era cabo eleitoral das campanhas mineiras, mas perdeu as regalias do ofício e deixou de viver as sombras do extinto PSD. Ainda com os filhos pequenos, um total de oito, a família Vilar teve que se mudar para o Rio de Janeiro, se instalando em Benfica e Bonsucesso.

“Desde que mudaram de Belo Horizonte para o Rio, desde que o velho (Osvaldo Vilar) fizera a campanha de Carlos do Lago, desde que recusara cargos no governo de Juscelino Kubitschek, as coisas foram murchando ao seu redor”. [2]

Após a extinção do partido, Osvaldo Vilar, funcionário público aposentado, e Zulma Vilar, professora primária de escola particular, começaram a ter dificuldades financeiras. Os jornais narram que Lúcio Flávio se revoltou contra o pai e não se conformava com a pobreza. Além disso, teria Lúcio Flávio tido o nome cogitado para ser candidato a vereador pelo PSD, mas Osvaldo, alegando falta de condições financeiras para a campanha, recusou a idéia. [3] O fato é tido como a maior frustração da vida de Lúcio Flávio.

Em 1969, é desbaratada uma nova quadrilha de ladrões de carro, no Rio de Janeiro, e Lúcio Flávio é identificado como membro. Não apenas como simples integrante, mas como figura principal, posição que ocupou após o assassinato do líder da quadrilha Marcos Aquino Vilar, crime do qual Lúcio era o principal suspeito.

Foi nesse homicídio que pela primeira vez apareceu ao lado do corpo o desenho da caveira, que mais tarde foi identificado como o símbolo do Esquadrão da Morte. É dessa época que vêm as ligações de Lúcio Flávio com um dos policiais acusados de pertencer ao Esquadrão da Morte, Mariel Mariscot de Matos. [4]

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Uma aliança que não durou muito, pois logo depois Lúcio Flávio iniciou uma série de denúncias sobre o envolvimento de policiais em suas fugas e crimes. Em uma carta enviada ao jornal O Globo por Lúcio Flávio, e publicada na íntegra em 31 de janeiro de 1974, ele afirma que apontaria “todos os policiais, guardas e funcionários que com a mesma mão que exibem uma carteirinha de polícia, recebem míseras propinas para levarem armas, fazerem trapaças, traindo a pobre e calejada Sociedade que lhes outorga o dever de defendê-la”. [5]

Com a morte de Marcos Aquino, Lúcio Flávio formou um grupo com seu irmão Nijini Renato Vilar Lírio, seu cunhado Fernando Gomes de Oliveira e o amigo Liece de Paula Pinto. Juntos, eles arquitetaram um eficiente esquema de assaltos a bancos, hotéis e outros estabelecimentos, assim como roubo de carros. Entre os fatos lembrados pelos jornais sobre a vida de Lúcio Flávio, as fugas são sempre apontadas como lembranças marcantes.

Lúcio Flávio fugiu de instituições policiais, durante toda sua trajetória, 34 vezes, incluindo presídios de segurança máxima. Quando Lúcio Flávio morreu, assassinado por um companheiro de cela enquanto dormia, existiam, oficialmente, contra ele 74 processos. No entanto, policiais afirmavam que um levantamento mais amplo indicaria a soma de 400 processos por roubo de carros e 130 por assaltos, estelionato e co-autorias em outros crimes. [6]

O goiano Leonardo Rodrigues Pareja, personagem que será o contraponto de Lúcio Flávio Vilar Lírio, tem apontado em sua biografia nos jornais e revistas da época o fato de ser o filho único de uma família rica que perdeu tudo o que tinha. Em entrevista publicada na revista VEJA, [7] Leonardo Pareja conta que tinha 10 anos quando o pai, dono de uma transportadora em Goiânia, perdeu o patrimônio.

O pai, que era caminhoneiro, enriquecera após ganhar um prêmio na loteria federal. Na mesma entrevista, questionado sobre o porquê de ter virado bandido, respondeu que queria uma vida de aventuras. Quando era adolescente, com 16 anos, gostava de desafiar a polícia. Ainda segundo a mesma entrevista, foi preso pela primeira vez aos 12 anos, por fazer baderna na rua ao voltar de um show com uns amigos. Depois disso, segundo palavras da personagem, perdeu o medo. Aos 15 anos, andava de carro e moto roubados.

Aos 21 anos, foragido do Centro Penitenciário Agroindustrial de Goiás (Cepaigo), onde cumpriu 1 ano e meio de uma pena de nove anos por roubo de carros e assalto a postos de gasolina, Leonardo realizou o feito que lhe deu notoriedade: o seqüestro de Fernanda Viana, de 13 anos, com início em 31 de agosto de 1995.

Fernanda, sobrinha de um dos filhos do senador Antônio Carlos Magalhães, foi mantida refém por cerca de sessenta horas. No dia 31 de agosto, Leonardo e Ricardo Sérgio Rocha assaltaram o publicitário Paulo Gadelha Viana, que estava acompanhado da filha Fernanda, em Salvador. Como garantia de que Paulo faria o depósito numa conta bancária por eles indicada, os seqüestradores levaram Fernanda para um hotel em Feira de Santana, na Bahia. Ricardo Sérgio foi preso e Leonardo, cercado pela polícia, manteve a menina como refém. [8]

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No dia 3 de setembro, depois de manter Fernanda por cerca de sessenta horas como refém, Leonardo obtém um carro e a promessa de que poderia fugir. Ele fugiu num Monza, levando junto o advogado Luiz Augusto Lima da Silva, que se ofereceu para trocar de lugar com a menina. Abandonando o advogado no caminho, Pareja furou um cerco de mais de 300 policiais e seguiu para Goiás. [9]

Em 2 de outubro, já em Goiás, Leonardo Pareja telefonou para a Rádio Subaé, de Feira de Santana, e disse que até dezembro voltaria ao local para libertar o comparsa, Ricardo Sérgio. Foi a partir dessa ligação que a polícia conseguiu localizá-lo. O jornal O Globo, de 5 de outubro de 1995, registra que a partir do rastreamento telefônico, um cerco de 200 policiais foi feito no município de Aparecida de Goiânia, do qual Leonardo conseguiu escapar após mudar a aparência usando cabelos descolorados e barba rala.

Nesse dia, houve um tiroteio e Cíntia Martins Ferreira, de 13 anos, foi atingida na perna e Leonardo foi acusado de autor do disparo. [10] A fuga do seqüestrador só teve fim quando ele decidiu se entregar, em 12 de outubro de 1995. Em entrevista ao O Globo, publicada no dia 13 de outubro, Leonardo explicou que resolveu se entregar, pois já havia vencido o jogo com a polícia e não tinha mais graça. [11]

Cinco meses após sua volta ao Cepaigo, no dia 28 de março de 1996, se apresentou como um dos 11 líderes de uma rebelião. Negociou a liberdade de seus cúmplices e conseguiu sair do presídio, com outros presos e os reféns, dirigindo um carro. Pareja foi recapturado no dia seguinte, mas, ainda em fuga, surpreendeu a todos parando em um bar para tomar uma cerveja. [12]

Já rendido no 7º Batalhão da Polícia Militar, em Goiânia, em entrevista coletiva, criticou o tratamento dado aos presos, advertiu sobre a possibilidade de outras rebeliões no país, afirmou que o “crime não compensa” e, ainda, falou do medo de ser morto ao retornar ao presídio. [13]

Tanto o jornal O Globo, de 24 de maio de 1996, como o Jornal do Brasil, de 6 de abril de 1996, publicaram que os detentos que fugiram, mas foram recapturados, criticavam o plano de Pareja. Enquanto os presos que participaram da rebelião e não conseguiram fugir o classificavam como traidor.

Ele permaneceu preso no quartel da Polícia Militar, em Porangatu (GO), mas foi reencaminhado ao presídio. Oito meses após a fuga, no dia 9 de dezembro de 1996, Leonardo Pareja foi assassinado fora de sua cela com sete tiros à queima-roupa disparados de uma pistola calibre 45. Ele foi o último líder, dos 11 que encabeçaram a rebelião em março do mesmo ano, a ser morto. [14]

É inerente ao ser humano a faculdade de intercambiar experiências, é na narrativa que a vida configura sua existência. Fatos e personagens existem no tempo a partir do momento em que são contados. Por isso, não se pode ignorar que existe uma correlação entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana, que não é puramente acidental.

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O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da existência temporal. Porém, em um mundo cada vez mais contraditório, buscam-se parâmetros para entender porque, apesar de ambíguas, as coisas são assim. Vale ressaltar a intervenção dos meios de comunicação nesse processo de mediação simbólica.

A narrativa se torna, nesse sentido, o lugar de explicação e de apresentação de diferentes experiências passíveis de ser vividas, cada dia mais de forma segura, em casa, no sofá, lendo jornal ou assistindo televisão. Não é preciso viver um crime, para saber contá-lo. Na contemporaneidade, a narrativa é midiatizada. Tanto é assim que, quando discutimos algo, parte de nossos argumentos fortes se baseia no que lemos, ouvimos ou assistimos nos meios de comunicação.

As palavras “passado, presente e futuro” desaparecem e o próprio tempo figura como unidade eclodida desses três êxtases temporais. Isso não significa que o tempo deixa de carregar traços irredutíveis à representação linear, como as estações, o dia, as horas. Na contemporaneidade, habitamos o tempo mundo, cujos primeiros esboços surgiram no final do século XIX, com a instituição da hora mundial, a partir do Meridiano de Greenwich. Um tempo criado devido a interesses econômicos de navegação, comunicação e comércio internacional.

No caso de Lúcio Flávio, destacamos os registros de sua morte pelos jornais. [15] O companheiro de cela que o assassinou, Mário Pedro da Silva, conhecido como “Marujo”, recebeu pouco destaque pelos jornais. O tema não era o assassino, mas o morto notório. Ele foi entrevistado, fotografado, algumas falas de efeito foram destacadas, como “é só mais um crime para mim”, porém o nome dele, quando lembrado, sempre vinha seguido da explicação “assassino” ou “matador de Lúcio Flávio”.

É presente no imaginário social a percepção que toda história tem princípio, meio e fim. Mesmo que essa estrutura seja usada na ordem inversa para contar uma história, em algum momento nos é apresentada a explicação para que haja entendimento, ligação entre os fatos iniciais e finais, que estão correlacionados.

Contamos histórias porque finalmente as vidas humanas têm necessidade e merecem ser contadas. Porém, nenhuma obra é completamente fechada, ela tem lacunas, buracos, desafiando-nos a configurar vários aspectos por si mesmo. Nesse momento, o leitor, abandonado pela obra, carrega o peso da tessitura da intriga.

Notas

[1] A ESTATÍSTICA do fugitivo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, fev 1974.

[2] LOUZEIRO, José. Lúcio Flávio: passageiro da agonia. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

[3] ASSASSINATO desde 1972 era previsto. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 jan. 1975. 1º Caderno, p. 18.

[4] NOVE anos de fugas e crimes. O Globo, Rio de Janeiro, 2 dez. 1972.

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[5] AS RAZÕES do fugitivo numa carta a O Globo,. O Globo, Rio de Janeiro, 31 jan. 1974.

[6] UM delinqüente, mais de 500 processos. O Globo, Rio de Janeiro, 30 jan. 1975. Grande Rio, p. 13.

[7] LEITE, Virginie. A polícia é burra. Veja, São Paulo, 25 out. 1995. Entrevista, p. 7-10.

[8] RIBEIRO JÚNIOR, Amauri. Seqüestrador se entrega em Goiás. O Globo, Rio de Janeiro, 13 out. 1995. O País, p. 13.

[9] JÚNIOR, Waldomiro. Mil policiais caçam seqüestrador na Bahia. O Globo, Rio de Janeiro, 5 set. 1995.

[10] SEQUESTRADOR escapa novamente. O Globo, Rio de Janeiro, 5 out. 1995. O País, p. 9.

[11] RIBEIRO JÚNIOR, op. cit. 13 out. 1995.

[12] MACEDO, Ana Paula; MOREIRA, Marco Antônio. Pareja desfruta de mais de 6 horas de fuga e fama. O Globo, Rio de Janeiro, 5 abr. 1996. O País, p. 8.

[13] QUERO mudar de vida. O Crime não compensa. O Globo, Rio de Janeiro, 8 abr. 1996. O País, p. 4.

[14] MARQUES, Hugo. Pareja é morto quatro dias após descoberta de túnel. O Globo, Rio de Janeiro, 10 dez. 1996. O País, p. 8.

[15] De acordo com o que encontramos nos jornais, Lúcio Flávio Vilar Lírio foi morto em 29 de janeiro de 1975. Numa madrugada, após desentendimentos, “Marujinho” desferiu vários golpes no peito de Lúcio Flávio utilizando um pedaço de vergalhão.

Autor: Heloísa Helena Quaresma

Advogada. Formada em Direito pela Universidade Paulista - UNIP - campus Brasília. Tem vários artigos publicados: ambito juridico; metajus; clubjus; jurisway; direitonet, entre outros sites. Artigo publicado em: 23 jan. 2010. Disponível em: <http://www.leliobragacalhau.com.br/estudos-criminologicos-de-lucio-flavio-a-leonardo-pareja/>. Acesso em: 9 jun. 2013.