almeida faria - o conquistador

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literatura portuguesa

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Almeida FariaO CONQUISTADOR

a Elisabeth Ambras e Andreas Thalmayr

"O romance mais estimulante do ano foi O Conquistador, deAlmeida Faria, um dos melhores romancistas do Portugal actual.A ambivalência semântica do título /"Conquistador/Sedutor/" é achave para a compreensão de uma complexa história de mitologiase auto-ilusÕes nacionais. Marcado pelo destino, e através devárias fases da experiência erótica, o herói alcança umconhecimento que desafia a imaginação do leitor. Escrita comverve e humor, a narrativa ascende a um cume inédito até hoje naficção portuguesa. O Conquistador é uma fábula excepcionalmenteimpressionante sobre a descoberta do eu e da consciência dacondição humana, conseguida pela via do erotismo."

Luís de Sousa Rebelo,

Capítulo 1

Acreditei durante muito tempo ter vindo ao mundo de um mododiferente de toda a gente. Foi minha avó Catarina - e as avósnunca mentem - quem me meteu esta ideia na cabeça. Costumavacontar-me que, num dia de inverno, de manhã cedo, apesar donevoeiro, o faroleiro João de Castro tinha ido à praia da Adragaapanhar polvos, quando deu comigo metido num ovo enorme, com acabeça, as pernas e os braços de fora.Como testemunhas presenciais minha avó citava um cavaleiromaneta, mestre equestre, que para ali ia montar acompanhado pelosseus três peÕes de brega, recrutados entre os mais aparvalhadosdas aldeias. Eles e o faroleiro assistiram estremunhados aoestranhíssimo espectáculo. E os cinco disputaram entre si quem iria ficar comigo.A meio da discussão foram atacados por uma cobra-marinha que estava aguardar-me. Mas João de Castro, com a lança que lhe servia para espetar os polvos entre as rochas, cortou à cobra monstruosa ácabeçorra diabólica, assim conquistando o direito à minha posse.Este faroleiro, de aqui em diante meu pai, vivia com a mulher,Joana Correia de Castro, no cabo da Roca, e por não terem filhoslhe interessava ficar com o enjeitado, quase normal uma vez saídoda casca. E lá me levou, ora ao colo ora às costas, por atalhose a corta-mato, até às pedregosas alturas da Roca, na esperançade não encontrar ninguém mais, para não ser obrigado a explicarquem era a criança a chorar esfomeada. Nunca na vida meu paidesmentiria a sogra, que não lhe perdoava a pobreza nem o ter-lheroubado a única filha, três vezes mais nova que ele. E Joana,minha mãe para todos os efeitos, deve ter gostado dessefilho-mistério que primeiro a assustou porque tinha seis dedosno pé direito, e logo a comoveu por vir roxo de frio, malembrulhado numa capa impermeável.Por muito que meus pais receassem irritar os ânimos difíceisde Catarina se pusessem em causa o seu relato, não compreendo queo não fizessem mais tarde, caso fosse outra a verdade. Sempresubscreveram a versão da minha avó, e aos poucos me acostumei aser uma ave rara.Na véspera do meu nascimento caíra sobre a serra de Sintra atempestade mais tremenda de que as pessoas se lembram. A aurorachegara enrolada em nimbos baixos, tão carregados de cúmulos em forma de couve-flor de chumbo, que nunca, em muitos anos deembarcado, meu pai observara tal espessura de nuvens, tal securade trovÕes confirmando o rifão: se trovão seco no céu reboa,tempo violento nos apregoa. João de Castro era um repositóriodestas regras rimadas, de teorias proverbiais com que explicavaas estranhezas que rodearam o dia memorável: relâmpagos ao nortee vento forte, se do sul vem, chuva também. Mas não foi chuva oque veio, foi uma catarata caída do firmamento, um entornar deaéreas águas sobre a terra e o mar já inchado do furor das vagas.O horizonte desapareceu completamente, uma escuridão de estanhoesfumado avançara dos lados do Norte de áfrica à velocidade deum tornado, atroando tudo com o barulho de todos os bombos etambores do universo. Minha mãe garantia que três vezes a terratremera. E o meu sisudo pai, com o seu fraco por filosofar,opinava que naqueles momentos a Serra era um ventre de grávidapercorrido pelos abalos que antecedem o parto. Uns uivos surdos,curtos, seguidos de outro mais demorado, desvairaram os animais

das vizinhanças, lançaram o pânico entre os humanos que viramtelhas e tectos abrindo, paredes estalando, soalhos rachando ouincendiando-se quando as brasas das lareiras se espalharam, quandoa fraca chama das velas de repente pegou fogo a panos que estavamperto, quando as chaminés de vidro dos candeeiros a petróleoexplodiram estilhaçadas. Houve quem corresse para fora de casa,preferindo o dilúvio ao estoirar dos telhados. O último estertorfora o pior, e não faltou quem se preparasse para o fim do mundo.Propensa a descortinar correspondências entre o ramerrão dasua vida e os portentos do Testamento Antigo, também JoanaCorreia de Castro se convenceu de que aquilo não era um dilúvioqualquer, era o Dilúvio a valer. Anos depois, sempre que euinsistia em voltar a ouvir o sucedido, tintim por tintim ou comvariaçÕes mínimas, ainda os seus dons efabulativos conseguiamtransmitir-me o pavor que sentira. Da mãe herdara minha mãe umgosto desmesurado pelas letras sagradas. O único livro que havialá por casa, muito manuseado, era o Breviário da Família e doLar, de dura capa escura que lhe dava um ar de solenidade. Nãome surpreendi por isso ao descobrir que Joana condimentava dereminiscências bíblicas as suas ousadas comparaçÕes da trovoadacom comportas imaginárias e açudes escancarados que de súbitoinundassem quintas e pomares em redor do farol da Roca e por aífora, como se os longos abismos, como se os lagos submersos quearmazenam as ardentes águas dos infernos inexplicavelmentetivessem crescido a ponto de rebentarem com as matrizes naturais,com as fontes e veios e nascentes cujo caudal se foi juntar àchuva que caía sem cessar.Muitas vezes, hoje mesmo, os sonhos me trazem imagens dacatástrofe. Sinto arrepios ao evocar as circunstâncias queprecederam e que de certo modo predisseram o instante em que via luz do dia.Sobre a hora do almoço desse dezanove de janeiro, o marmalhava contra os penhascos do Cabo, e a espuma chegava àsjanelas das casas dos faroleiros, que à cautela tinham ligado jáum dos geradores e os compressores de ar das sereias, como alertamáximo. O pior viria lá para a tarde, quando as trevasantecipadas impediram de perceber a extensão das enxurradas. Nacerração da noite as bátegas batidas por rabanadas de ventoarrancaram grandes árvores que as levadas arrastavam contra aspontes de pedra, em pouco tempo destroçadas, arrasando então tudoà volta, currais e gado, carros e carroças. Até dois ou trêsvelhos, levados na torrente, desapareceram sem deixar rasto. Oscolossais tonéis de madeira da Adega Regional, apesar de bemcheios e bem arrumados, foram arremessados pelas águas contra osportÕes altos, os gonzos despregaram-se, os portÕes cederam,pipas e tonéis rolaram várzea fora, ficaram enterrados no areãoda Praia das Maçãs no meio do entulho de troncos partidos,tábuas, terra da Serra e lixarada.Toda a noite o cavo ronco do rebentar das ondas abafararegularmente os avisos das sereias. As águas engrossadasderrubaram os muros de pedras sobrepostas entre courelas ehortas. Embora a maior parte dos cursos desmesurados fosselançada no mar, alguns formaram represas e charcos que a luzesbranquiçada dos sinais do Farol vagamente iluminava. Meu paifez nessa noite o seu quarto de quatro horas, mas de madrugadanão se foi deitar, ficou à espera da torna da manhã. E, assim que

começou a clarear, não viu razão para alterar o seu programahabitual. Em dias de folga costumava ir pescar; ou, se a pescanão desse e se a maré a isso se prestasse, procurava polvosescondidos nas rochas das praias próximas. Porém, naquele vintede janeiro, naquela derradeira madrugada do signo de Capricórnio,era provável que, para além da mania da pesca, o movesseprincipalmente a curiosidade em verificar os estragos causadospelo temporal.As veredas abertas pelos pescadores na falésia transbordavamem cascatas de lodo e lamaçal. Meu pai caminhava com cuidado acada passo, parando de quando em quando para estudar a melhormaneira de alcançar as ribanceiras mais secas e menos inclinadassobre a Praia. A ribeira inundara a estrada junto ao vale,cavando um estuário na areia onde a maré já vazava. Arena nãofaltava para as faenas fantásticas daquele cavaleiro que setornaria meu arauto. Tanto as descriçÕes de meu pai como as docavaleiro tauromáquico concordavam no aspecto apocalíptico daPraia, nos caminhos cortados, nas covas e barrancos e buracos,nos cadáveres de bezerros e de vacas semi-soterrados, num cavalo morto, de pataspara o ar e ventre inchado, de uma brancura baça, entre bocados desbotados deargamassa contra o paredão parcialmente destruído, coberto deágua parda. Vindas do mar, lufadas de névoa avançavam em direcçãoà Serra, como um exército desordenado recuando em debandada. Este espectáculocriou nos presentes, e ignoro se em meu pai, a convicção de que nãoseria casual a coincidência de el-rei D. Sebastião e eu termosvindo ao mundo a vinte de janeiro, dia do santo do mesmo nome.Apoiando-se em tais factos, o cavaleiro Alcides de Carvalho pôsa circular a lenda do meu nascimento. Quando cresci e percebi quealgo se esperava de mim, preferi, por instinto, fingir que nãoera nada comigo. Só muito mais tarde comecei a interrogar-me,como agora, quando olho aqui de cima, da Peninha, este mar hojecoberto de tiras de neblina.Sento-me diante desta paisagem, contemplo esta teimosanatureza idêntica a si mesma e indiferente aos homens tãomutáveis. Uma espécie de paz me faz aceitar quem quer que euseja, como sou, sem mais. Se reflicto, logo as questÕes voltama galope, mais assustadas pela sua nenhuma utilidade. Vá lá, digode mim para mim, vê se te acalmas. Que te importam as diferençasfísicas, por vária gente notadas, em relação aos pais que tegeraram, ou que só te adoptaram? Que interessam parecençasdessas? Que teus pais tossem morenos, altos, de feiçÕes e narizes compridos,enquanto tu és louro, entroncado, de olhos claros, curto o nariz, redonda a cara, a boca de carnudos lábios, o debaixo descaído como o de Catarina - que valor terá isso? Comtua avó és vagamente parecido, no feitio complicado, naimaginação que perde o pé à realidade. Mas nem estas poucassemelhanças garantem quaisquer laços de sangue. Ela é sólida,inabalável, ombruda e de altivo porte, mulher-homem, salvo nafragilidade por detrás do olhar. O desdém que mostrava pela gentemetia-me tal respeito que, na infância, não conseguia olhá-la defrente. Parece ter tido um caracter oposto ao do marido. Como asrazÕes amorosas não seguem as leis da lógica, viveram umcasamento sem história, ou seja, feliz.Não conheci meu avô, que se chamava João como meu pai. JoãoCorreia, para ser mais exacto. Sei que era irreverente e ágil naspiadas, de um humor imparável, sempre disposto a rir e a fazer

rir. Deixou uma auréola de pandego e versado em todos os génerosde farras. Ficavam famosas as festas em que ele convidava ou eraconvidado, a avaliar pelas mitológicas peripécias de que merestam ecos. Num jantar em sua casa, um amigo elogiou-lhe uma veza gravata de seda às riscas. Logo João se levantou da mesa, foià cozinha e, cinco ou dez minutos depois, voltou com uma omeletaimpecável, tendo dentro a gravata cortada aos bocados. Suponho que o férreo temperamento da mulher lhe terá acentuadoa vocação boémia. Quando ele voltava de madrugada, bem bebido eexcessivamente bem-educado, porque o vinho o tornava refinado,Catarina escondia a sua ira por detrás das mansas palavras, nessamanhã que as mulheres de árabe ancestralidade usam com suma arte.Ela própria me diria, anos mais tarde, quanto se orgulhava dodomínio que exerceu sobre o marido, e me recomendava cautela paraque não me acontecesse o mesmo, se caísse na asneira de casar.Expliquei-lhe então que as minhas pulsÕes não me permitiriamdedicar-me a uma mulher apenas, e nunca em regime exclusivo. Aírecebi o seu beneplácito, com alguns conselhos práticos.Esta avó Catarina viria a ser decisiva na minha vida. Desdeque me disse como nasci, devo tê-la considerado uma deusatutelar. Aos quinze anos e nove meses passei a morar em sua casa,o que nos aproximou cada vez mais. Controladora dos meusprematuros namoros, assim se indemnizava pelas libertinagens doseu Falecido. Não que o meu aspecto físico ou a minha índoleintrovertida me tornassem um símile desse avô semimítico, que sóvi em fotografias de família: olhos azul-escuros e vivaços,estatura meã, o ventre testemunhando os abusos da mesa e doálcool, têmporas cedo esbranquiçadas, orelhas agigantadas,atentas à música do mundo que ele tanto amava. No fundo dos seusolhos transparecia uma sombra qualquer, quem sabe sepressentimento da morte precoce, a onze de junho de milnovecentos e cinquenta e cinco, dia de São Barnabé; ou pena dedeixar a vida que lhe foi generosa e leve. A brincar, ganhavadinheiro e amizades. Uma vez, subindo de carro a Rua do Carmo,vendeu o seu descapotável a um amigo que, também de automóvel,descia no outro sentido. O assunto ficou arrumado em trêspenadas, sem que nenhum deles se apeasse, com a segurança quetransforma em vencedores aqueles que em si confiam.Ao contrário de meu avô, a incerteza é mais forte em mim. Ede boémio pouco tenho. Em comum, só uma ambígua atracção pelodesconhecido, e o gosto pelo risco. Gosto a que minha mãe tambémcedeu, ao fugir de casa com um marinheiro capaz de ser seu pai.Essa traição ao amor paterno terá levado o coração do meu avô adesfazer-se lentamente, até parar por desistência. Tinha eu anoe meio quando ele morreu. Recordo apenas, vagamente, a teimosatristeza de minha mãe, que passava dias sem falar, fechada sobresi, mais entregue ao luto que a própria Catarina, a qual, quandonos visitava, nunca vinha de preto. Assim que a avó chegava, omundo mudava de cor. Dormíamos no mesmo quarto, ela contava-mehistórias, passeava comigo, punha o meu mimo em dia. Sobretudoprocurava convencer-me a começar a falar. Porque os mutismos deJoana encontraram em mim um zeloso discípulo: embora dessemostras de entender o que me diziam, eu não pronunciava nem umsom, quanto mais uma palavra. Nas vãs tentativas de conversarcomigo, Catarina recorria à narrativa do meu aparecimento, por

ter esgotado todos os temas. Mas a verdade pode surgir da mentirarepetida. O meu bilhete de identidade marca a data de vinte dejaneiro de mil novecentos e cinquenta e quatro para o meunascimento, filho de João de Castro e de Joana Correia de Castro,natural da freguesia de Colares, concelho de Sintra. Nomecompleto: Sebastião Correia de Castro. Que nem me desagrada,porque não soa mal.A minha história preferida, e que não me cansava de ouvir, eraa daquele Rei com quem me orgulhava de partilhar o nome e quenasceu quatro séculos certos, dia por dia, antes de mim. Hojeconcordo que nomeiem est omen. E Catarina achava que, por SãoSebastião ter sido mártir da Cristandade, o rei meu homónimo se sentiu provavelmente obrigado a lançar-senuma absurda batalha contra os árabes, em pleno deserto, no mêsde agosto, sob um sol de quarenta graus. Com arrepiantesrequintes, Catarina descrevia o massacre sofrido pelo lusoexército, que incluía milhares de mercenários vindos devariados-países. Vendo-me mortificado por tão terrível sina, aavó dava-me alento dizendo que um dia o Rei voltaria, numa certamadrugada, no meio da neblina.Desde aí gosto de acordar em manhãs de nevoeiro. Sinto-meprotegido da nitidez excessiva das formas e dos ruídos, que mechegam abafados como debaixo de um lençol. Assaltado pelosupersticioso receio de não viver mais que D. Sebastião, emergulhado em súbita melancolia perante a precariedade da vida,refugiei-me há um mês, durante o Natal do ano passado, na ermidada Peninha. Os primeiros solitários escolheram este sítio oitoséculos atrás. Percebo que o fizessem. Diz-se que o fundador doeremitério aguentou, metido numa gruta, isolado no alto da Serra,entre a aspereza dos penedos, trinta e cinco anos seguidos. Nãopretendo atingir tal meta. Só quero repensar, até ao ameaçadormês de agosto, o que fiz e não fiz de mim.Destes cumes contemplo os lugares da minha meninice, a Foz doFalcão perdida na névoa, manchas brancas de casas, um telhadocaiado lá para os lados das Azenhas do Mar. Em dias claros vê-sea Pedra de Alvidrar saindo do mar em que me perco a olhar.Comecei a reconstruir uma antiga pousada de peregrinos, para nelaatravessar a invernia. O trabalho manual fatiga-me e faz esqueceroutros mais agradáveis, em que porém suei também, aperfeiçoandoas minhas artes. De nada mais preciso neste vinte de janeiro demil novecentos e setenta e oito, dia do meu vigésimo quartoaniversário.

Capítulo 2

Na nossa modesta casa do Farol, mesmo o meu berço eraartesanal. Sobre a base e as rodas de um triciclo estragado, nasquais assentava uma alcofa de esparto e uma capota improvisada,fabricou meu pai um ready-made surreal, a que nem faltava umpeixe de madeira pendurado no tejadilho, perpetuum mobile nadandono ar à mais ligeira brisa, ou ao meu espernear. à paternainvenção devo muitas viagens por mares imaginários, sobrevoadospor peixes-voadores e percorridos por extravagantes bichos,perdidos em profundos precipícios, entre turbulências eredemoinhos.No meu primeiro dia de anos, meu pai ofereceu-me um brinquedoainda mais bizarro, um pássaro munido de um minimotor que lhemovia os vários pares de asas. Suspenso do tecto do quarto porum quase imperceptível fio de pesca, o volátil adejava agitado,desajeitado, como se a cada instante fosse precipitar-se. Nãocaiu, mas depressa se enredou no fio, e assim se estragou eestropiou esse portento do paterno talento. Melhor prenda tive por volta do meu segundo aniversário,quando, de visita ao Farol, entrou em nossa casa um casal deliliputianos, reformados do circo e fixados na Azóia, a aldeiamais próxima. Como nomes artísticos escolheram DoraBela e D. Rodrigo. Formavam um par pícaro, equebravam a monotonia destes sítios. Armavamarraiais de Santo António por tudo e por nada,com balÕes e lanternas de papel encarnado, a vida transformadaem paródia diária. Numa das minhas recordaçÕes mais antigas surgeum presente deles, um balão azul com uma estrela vermelha,rodeada de pintalgada poeira. Deve datar dessa época o meu namorocom Dora Bela, meio-soprano de um metro. "Namoro" será exagero.Sei que me sentia bem sempre que ela saltitava àvolta do berço e me embalava em movimentossemelhantes às ondas da Adraga, movimentosque não me enjoavam nada - pelo contrário! Asvolúpias aumentavam assim que ela se debruçavapor cima de mim, trilando árias afrodisíacas. Nomeu corpo operavam-se mudanças nada desagradáveis, as quaisabruptamente terminaram no dia em que D. Rodrigo, essedesmancha-prazeres, se aproximou do meu berço e esbugalhou osolhos ao ver os erectivos resultados provocados pelos feitiçosda sua Bela. Fez um escândalo que mais ninguém entendeu, e assimdesapareceu da minha vida a mulher-miniatura e o seu mínimomarido. Mas nunca esqueci as cançÕes com carícias desta ardorosaDora que tão cedo trouxe os meus dotes à luz do dia.A sua saída teve em mim um efeito de eclipse. O manto daapatia voltou a cobrir a minha meninice, nada de excepcional mesucedeu, ou de nada me lembro. Chegam até mim cheiros longínquos,um fedor forte a óleo dos motores do Farol, a creosote oucreolina, a coisas de alcatrão, a líquidos para limpar amaquinaria. Tomei gosto às viagens nesse barco parado que era anossa casa, presa à poente extremidade deste continente, à costaalcantilada, calva do lado sul e nos recortes de pedra a piqueou em declive para as pequenas baías e as agitadas fraldas domar.Se a comparo com o meu abrigo na Peninha, a casa do Farol era

quase luxuosa. Entrávamos pela divisão principal, virada a sul,que servia de sala de estar e de visitas, onde nos dias de festase comia e se cumpria o dever de ser feliz. A cozinha, defronteda entrada, apesar de fustigada pela ventania, tinha o confortorelativo do lume da lareira, do forno arcaico em que minha mãecozia pão ou cozinhava um assado. O fogo, para amornar a água,ferver o leite, fazer as sopas, acendia-se num alto poial dianteda porta do forno, com o inconveniente de não servir para aqueceros pés nos inóspitos invernos. Por isso recorríamos à mesa dabraseira, junto à qual abancávamos, ou vindo o vento, nesseslonguíssimos serÕes pré-televisivos. Graças aos geradores doFarol, e à água trazida de uma mina na Serra até ali, possuíamos o privilégio, único na região naquela época, dacanalização e da luz eléctrica. O nosso espartano estilo de vida,porém, não permitia pensar noutros aquecimentos além das brasasde pinho, de sobro ou de azinho, em quantidades cuidadosamentecontroladas, para durarem o máximo.O meu melhor resguardo contra o frio era a cama, de colchãode algodão e grossas mantas. O quarto tinha pouco sol, mas pelafresta virada a oeste entravam as cores do poente e, à noite, osfeixes de luz do Farol deslizavam em silêncio pelas paredes. Issome consolava, e o consolo era maior quando Catarina dormia numacama improvisada a meu lado e me trazia, antes de se deitar, umcaldo fumegante ou um leite atabafado e cheio de mel, para medefender das nocturnas friezas. Assim eu adormecia como quementra no paraíso, e só sofria de madrugada, ao ir à casa debanho, pomposo nome para um cubículo construído há um século, naproto-história da higiene moderna. Lavava-me no lavatórioesmaltado, assente em armação de ferro, dessas com um balde embaixo e a saboneteira na prateleira circular, a meio. Enfim haviao trono da retrete de autoclismo junto ao tecto, na qual medemorava nos invernos, aquecendo-me ao calor das próprias fezes. Levava uma vida soturna e embotada. Até aos três anos nãoarticulava uma única palavra. Este atraso linguístico encontrouem meu pai, nas vizinhas, nos respectivos maridos, tantasleituras quantas as dos oráculos sibilinos. Houve quem garantisseque eu beijara um espelho de algibeira que me emprestavam parabrincar, e criança que beije espelho fica muda para sempre.Revelou-se falsa tal sabença, ainda que o meu incipientenarcisismo lhe desse certas probabilidades de acertar. Nãoquerendo atribuir culpas a quem inadvertidamente me tivessedeixado a sós com o espelho, meu pai opinava que eu tomara o bafode um gato vadio que andava por ali. Ora, é do conhecimento geralque, se um bebé se aproxima do focinho de um bicho, se arriscaa tatibitate.Um dos faroleiros era do parecer que a minha mudez provinhade me terem cortado as primeiras unhas à tesoura, e não com osdentes como manda o preceito. Ao que minha mãe, mais instruídaque a vizinhança, ripostava protestando contra tal superstiçãoe contra o mau agoiro de já me chamarem o Miúdo Tartamudo. Nemestava pelos ajustes quando as comadres quiseram usar dasmezinhas habituais em tais casos, mas acabou por concordar antea insistência de meu pai. E lá me deram banho em água passada porcu lavado, uma vez que não nasci com o cu virado para a lua; eme meteram num saco e me levaram às casas de três vizinhasdurante três dias consecutivos; e me fizeram atravessar sete

vezes a sala de entrada que, tendo duas portas, permitiria quea corrente de ar desentupisse as cordas da glote; e mataram umpiolho da minha cabeça na asa de um cântaro de barro, remédio comfama de nunca falhar; e me obrigaram a comer ovos-moles; erezaram muitos terços a Santa Clara preceptora e protectora dalinguagem, a quem minha mãe se dirigia já zangada:

Santa Clara vê se me consolas olha o menino que tenho ao colo que quer falar e não pode.

Perto do Pentecostes desentaramelou-se enfim a minha língua.Estávamos, meus pais e eu, sentados à chaminé quando cabeceei derepente e caí para diante, como se fosse aterrar de bruços nasbrasas. Minha mãe agarrou-me a tempo, impedindo que eu tombassedesamparado e, na melhor das hipóteses, ficasse desfigurado. Omeu futuro teria sido outro, ou nulo, se numa fracção de segundoos reflexos maternos não me salvassem do lume. Nesse mesmomomento saiu da minha garganta um ruído esquisito, e vomitei umapapa repulsiva, que caiu na lareira e ardeu logo ali numpestilento estrugir verde de bílis, semelhante às alforrecas queo mar atira à praia. Esta cena seria evocada vezes sem conta por minha mãe, que atribuía aquilo ao Santo Espírito em luta contrao Maligno.A sua fé no Paracleto levava-a a rezar "magníficas", como porcá chamavam ao Magnificat, e fora-se inflamando desde queparticipava dos Impérios. Aqui perto, no Penedo, todos os anosvinha sendo escolhido um rapazinho para Imperador do SantoEspírito, e na festa das ígneas Línguas ele desfilaria, investidode ceptro e manto e coroa, à frente da charanga e de um cortejo,até ao adro da igreja, onde um bezerro era solto e morto à vistade todos, para ser oferecido em bodo aos pobres e velhos etolhidos da freguesia. O meu dom do Verbo, aliás bem modesto, foipara minha mãe sinal inequívoco daquela descida do Espírito quepaira sobre as águas e que é Senhor da Palavra. A sua convicçãoseria confirmada por meu pai, que a seguir ao meu acidenteentrara de serviço e, ao subir ao Farol, reparara que uma grandeave branca voava em volta dos holofotes cuja forte luz furava asnuvens. E a ave girava devagar, vogava sem bater as asas, emcírculos concêntricos à volta do Cabo, sobre a nossa casatransfigurada por uma brancura fora do normal. Bom conhecedor dasaves marinhas, o meu Velho garantia que aquela era diversa detudo no céu ou na terra, e que ao desaparecer a ocidente tornouluminoso o nevoeiro, e que um sopro quente veio do sítio onde oSol se punha. Apesar de sempre céptico, meu pai correu a avisara mulher, e ambos ficaram longamente olhando o oceano passar dovioleta-imperial ao magenta.Nunca minha avó aceitou a teoria do milagre em relação àpreguiçosa aparição da minha voz. Mais se inclinava para explicarque, tendo eu vindo do mar, a água me entrara nos ouvidos e eunão ouvia os outros falarem; ou que engolira um bicho marinho que me enguiçara as cordas vocais.A cronologia da minha infância nem sempre me surge nítida.Julgo que a libertação da língua coincidiu com um período em quetive tréguas dos pesadelos que me assombraram muitos sonos.Segundo meus pais, muitas vezes eu acordava a berrar, como se

assaltado pelos diabos. Mas não eram diabos, eram homens que mequeriam estrangular, trespassar à espada, à lança ou à facada.Quando agora fecho os olhos, no deserto deste ascético fevereiro,regressam com violenta nitidez as lutas de dois gangs rivais quemutuamente tentam liquidar-se. Num dos bandos abunda gente deturbante, que pelos vistos me considera seu inimigo, não seiporquê, nem conheço os meus inesperados aliados. Por palpitesdistingo quem é quem, sob o sol e a poeirada que não me deixamver nada e me fazem vacilar de tonturas e vómitos.Durante noites e noites seguidas, como num livro de muitoscapítulos, vinham até mim amostras do que será o inferno, seexistir. Mesmo que não exista, haverá um qualquer limbo, zonaturva de onde saem estes terrores não vividos, ou esquecidos.Convencido de que uma ordem obscura se oculta sob o caosnocturno, escapam-me as razÕes destes pavores: a carne queimada,o cheiro a pó e a pólvora, o fumo escuro ardendo nos meus olhos,o pânico da dor, um tipo de cara repugnante, coberta por pústulase úlceras que lhe dão o aspecto de um lobo com febre. Arecorrência deste sonho tornou-se para mim mais inquietante aoencontrar, anos mais tarde, um marroquino que eu juraria terconhecido e que sofria de lupus eritematosus, moléstia que tantoaparece na pele como pode concentrar-se num órgão, e este, comouma bomba, explode.Os súcubos e íncubos que saltam de subterrâneos sinistros ede criptas, de túmulos e prisÕes de negras aranhas espreitandonos cantos, esperando que eu adormeça para me morderem; as florespútridas, infestadas por fungos, que me crescem na boca e mesufocam; tudo isso se desvaneceu durante uns tempos, para iratormentar outras vítimas, talvez. Livre destas indesejáveiscompanhias, passei a despertar mais tranquilo, encorajado pelolusco-fusco matinal, aguardando imóvel, deitado de costas; achegada da luz ainda aguada, enquanto preguiçosamente meesforçava por distinguir os objectos do quarto, à claridadeindecisa entre sombra ou cinza. Na cama eu estava protegido dasrajadas do nortalto, de todos esses perigos que meus paisempolavam e que lá fora me esperavam.O outono em que comecei a frequentar a escola trouxe-me, alémda novidade, o alívio de deixar o mundo fechado do Farol. Porsorte, Amélia, filha de outro faroleiro, era minha colega naprimeira classe. Juntos percorríamos todos os dias o compridocaminho a pé até à Azóia, sob os ventos perpétuos e aspersistentes névoas. Também havia manhãs de sol intenso, com todaa costa límpida, a norte até às Berlengas, a sul até ao caboEspichel. Mas o mau tempo é que me dava jeito, por me tornarprotector de Amélia.Depois dos amores por Dora Bela, Amélia era a minha segundanamorada, desta vez mais conforme com os sentimentos nobres.Desde que fui declarado responsável pela sua segurança, elainvestiu-se para mim de uma dignidade que devia tornar intocávela pequena pessoa posta à minha guarda. Mas tal função actuou aoinvés como estímulo para investigar tudo que em Amélia eradiferente e frágil.A sua simples proximidade me dava vontade de cheirar, dedesvendar os seus segredos. Mesmo o visível tinha nela ummistério que me deixava perplexo. Os olhos escureciam se nãohavia sol, mudavam de tonalidade tão depressa como as suas birras

e alegrias. Pressenti que a constante transformação definia asmulheres. O importante seria distinguir o que era modificação eo que era permanência nelas. Amélia foi nisso a minhaindiciadora. Os beijos que eu lhe dava, e as cócegas que lhefazia se a apanhava distraída, sabiam-me a beijos e cócegas emquem se fingia distraída, e esse inocente fingimento ainda mecomove.Por não haver rapazes da minha idade no Farol, eu inventavaa maioria dos meus jogos. Nem sei se chame "jogos" àsfantasmagorias com que preenchia o nada da minha vida. Entre osmeus passatempos, aquele que mais me entretinha era o da Corte,e consistia em criar, na minha cabeça, seres com um precisoaspecto físico, com personalidades e nomes bem distintos, vindosde longínquos países, expressando-se em línguas que eu imitavaem sons sem sentido. Não raras vezes falava alto com essa genteimaginária, o que assustava minha mãe ao dar comigo em grandesconversaçÕes com o invisível. Ela ficava em silêncio, inquietae incrédula, sem acertar no que dizer, benzendo-se, sussurrandojesusmariajosés e outras bizarrices beatas, cujos arrazoados meintrigavam.A avó, pelo contrário, interpretava os meus espectáculos comomais um certíssimo sinal de reencarnação predestinada. Sempre queme apanhava em flagrante diálogo com duques e duquesas, condese condessas, marqueses e marquesas, Catarina corria a buscaralguém da vizinhança para assistir à maravilha. Assim mealcunharam de Rei da Roca, nome que, quando cresci e comecei agostar de dançar, deformei em Rei do Rock."Pequenino: malandro ou dançarino", dizia meu pai ao ver-mepossesso da dança de São Vito mal a rádio transmitia Rock Aroundthe Clock Tonight. Essa máxima foi-se tornando profética à medidaque eu cada vez me interessava mais pelos raros bailes dosarredores. Na primeira festa carnavalesca em que participei,tinha seis ou sete anos, dancei todo o tempo com Amélia. Valsas,tangos e paso-dobles, então ainda na moda, serviram paraviajar em todos os sentidos entre as pernas dos adultos, ao longodas improvisadas salas de baile dos bombeiros e dos terreiros dasfeiras. Daí que ela fosse decretada minha namorada, coisa em queacreditou e que levei, durante dois anos, muito a sério.Principiei por descobrir com ela as delícias de fazer festas noseu nariz fininho com o meu grosso nariz. Tais experiências nosdemoravam ao regressar das aulas, sempre que estava bom tempo eeu a levava para fora da estrada, para vermos o mar, paraprocurarmos ninhos de pássaros ou para qualquer estratagemadestinado a estarmos longe dos olhares. Os nossos jogos decócegas terminaram no dia em que, sem querer e sem saber, Améliame tocou naquela parte que desata a crescer sob certos efeitos.De tal modo se assustou, que deu um grito e corou. E eu corei também.Nunca mais brincámos, e as nossas caminhadas tornaram-se umsuplício sem graça. Nos recreios já nem conversávamos. A minhafalta de à-vontade encheu-me de complexos e iria agravar-se senão fosse a amizade dos dois maiores cábulas da classe, quetiveram pena de tanta mazombice e vieram ter comigo. Talvez pornão estudarem, ou por não sentirem o apelo do saber, havia nelesmais disponibilidade que nos bem-comportados. Andavam aespecializar-se nos lados divertidos da vida, nas piadas e

partidas, nas inofensivas patifarias. Fora da inutilidade dasaulas é que eu aprendi nomes proibidos disto e daquilo,geralmente "daquilo", e a partir daí imaginei com erros erequintes as formas e feitios do que eu adivinhava sob a saia,sob a camisa da nossa mestra, dona Justina. Desistidefinitivamente do namoro com Amélia, que ainda não tinha idadepara aquelas inchaçÕes peitorais que tanto me fascinavam.Para não fazer triste figura impingi aos meus novos amigosque, na primavera anterior, eu seduzira uma espanhola. A qual,julgando-se sozinha na praia, se pusera em pêlo e não seatrapalhara quando lhe apareci, e perguntou-me se eu queriamostrar que era homem. Por supuesto, respondi, e ela dobrou-seaté as minhas bochechas ficarem presas entre os seus bamboleantesseios, e o sangue pulsava-me nas orelhas e debaixo das calças,ela ria e ria e naquela espanholada percebi que perguntava porqueé que eu não tirava a roupa também eu à rasca por nunca me terdespido diante de mulher além de minha mãe; pus me em tronco nu; elaexigiu mais; quando enfim lhe fiz a vontade, admirou-se ao veruma coisa tamanha num puto tão novo. Não querendo desiludir aexpectativa do meu auditório entusiasmado, eu ia acrescentandopormenores cada vez mais escabrosos. Graças a estas trapalhadastornei-me o mais popular da classe e logo de toda a faunamasculina da escola, à qual antes quase nem falava. Com bocadosde anedotas que eu ouvia aos faroleiros, fui enriquecendo o meureportório. Como a malta sequiosa enfiava os longos barretes dasminhas aldrabices, ainda hoje é mistério para mim. O únicoinconveniente foi ter-se firmado e confirmado a convicção de queeu era a Reencarnação de Sebastião, o Rei da Roca. Sendo assim,não admirava que eu soubesse mais que a maioria da rapaziada eentendesse várias línguas, o que me ajudou a alargar a lista dasconquistas a outras visitantes estrangeiras, para que nãojulgassem o Cabo só visitado por espanholas. Calhou bem, e daípor diante todas as turistas fizeram parte dos meus feitosfictícios, sempre na patriótica tarefa de defender a boa fama dahonra lusitana. Previ um futuro grandioso para mim. Se já tinhasucesso com aventuras inventadas, como seria quando eu passasseà prática?Logo que a filial reputação chegou aos ouvidos do meu Velho,ele ficou lisonjeado com tanta precocidade. Mas irritaram-no asexplicaçÕes disparatadas para justificar as minhas licenças emalandrices: que a lua fora minha madrinha, que eu andaria semprealuado, não pensando senão em coisas carnais, só porque na noiteanterior ao meu baptismo eu olhara longamente a lua cheia; agoraseria tarde para me talharem o mau-olhado, e um lugar no infernojá me estaria reservado.Minha mãe fez tudo para me curar do mal da lua. Embora nemsonhasse que desregramentos se divulgaram a meu respeito, pediuaos seus santinhos que me livrassem da má madrinha que leva aoslabirintos da lascívia. Segura de ser atendida, ladainhava queDeus me acrescentasse e o Demo arrebentasse e a Virgem Pura metirasse o quebranto lunar. Meu pai, em contrapartida, achavapreferível apelar a São Gonçalo, que me ajudaria a tratar dasmoças e a dar-lhes bom galo.

Capítulo 3

Para meu desprazer, o meu corpo não mostrava pressa emcrescer. Sendo o mais baixo da classe, jamais consegui deixar aprimeira fila, o que me desesperava por assim não escapar ao olhovivo de dona Justina. Na terceira classe esta fatalidade passoua agradar-me, e tornei-me fiel frequentador das aulas a quedantes procurava faltar. Chegava agora antes da hora e ficavamuito manso, meio basbaque, escutando cada frase, embevecido nossuaves sorrisos da professora. O meu enlevo foi ao ponto de pedirà minha mãe uma imagem de Santa Justina, que ela não conseguiuarranjar, mas em compensação ofereceu-me uma piedosa Vida dadita. Aí aprendi que sempre a Santa resistira às desonestaspropostas e às ameaças astuciosas de um certo Mago Cipriano quea queria desonrar. Mas a virtude dela era tão forte, que o Magose converteu à fé católica. Perseguidos ambos, nãoabjuraram. Meteram-nos então na cadeia, e depois numa caldeira,cheia de cera, de óleo inflamado e de pez a ferver. Nem o calornem a fúria do fogo tinham sobre eles poder; achavam mesmorefrescante a massa ardente. Foram enfim decapitados, sendo oscadáveres expostos aos cães e à bicharada, e os ossos levados aRoma para que Diocleciano os visse e saciasse assim a sua raiva.Um dia exibi estes conhecimentos diante de dona Justina. Eaproveitei para lhe dar um piropo a propósito da justa medida doseu nome, da proporção entre as três vogais e as quatroconsoantes, cuja soma dá o número sete, sinal da felicidade e dosdestinos raros. Não em vão se invocam os sete dias da criação,os sete anos que Jacob serviu Raquel, as sete últimas palavrasde Cristo na Cruz, os sete pecados mortais, as sete portas deTebas, os sete muros que cercam a Cidade Celeste, as sete obrasde misericórdia, os sete andares do céu, os sete dons do Espíritoque são as sete lâmpadas ardentes e os sete cornos e os seteolhos do Cordeiro, e os sete trovÕes alterosos sete vezessoltando seus estrondos enormes, e as sete igrejas da ásia e ossete combatentes contra a Besta de sete cabeças adornadas deestupendos diademas, e as sete espadas desembainhadas dos setetenebrosos mensageiros da Morte, e os sete reis sentados sobreas sete colinas de Roma, todos eles empenhados em espalhar peloplaneta as sete pragas, e as sete vezes que minha mãe me fezatravessar ao colo dela a divisão maior da nossa casa a fim deme ajudar a libertar a voz pouco apressada, a minha voz desejosade louvar as sete maravilhas de Justina, maravilhas fatais e nãomenores, em nada, que as sete maravilhas desta terra e que ossete planetas e que as sete estrelas do grupo das Plêiades, e queos sete braços dos sete candelabros empunhados pelos sete anjosque rodeiam o trono divino e que soarão as sete trombetas e uma um desselarão os sete selos e verterão os sete cálices da irano Dia do juízo.Tamanha erudição saída de uma cabeça leviana fê-la arregalaros olhos de pasmo. O que me deu a ousadia de passar à questão queme interessava: perguntei-lhe se todas as Justinas seguiam oexemplo da Santa que preferiu o martírio aos contactos carnais."Mas eu não sou santa nenhuma, que é que tu julgas?", gracejoua minha mestra. Longe de mim contradizê-la. Era chegado o momentoideal para um olhar descarado, semelhante aos olhares que eu meatribuía em mentirolas e fanfarronices que contava aos outros

rapazes. Com susto e surpresa meus, ela correspondeu com igualdescaramento, ou assim me pareceu. E a partir daí entrei emdelírio.As pantominices que impingi aos colegas devem ter chegado aosouvidos da mestra. Talvez fosse fantasia, mas podia jurar quedona Justina me olhava agora de maneira diferente. Afinal não meenganei, como se provou naquele sábado do Verão de São Martinhoem que a encontrei numa das enseadas ao pé da Praia da Ursa, aofim da tarde, admirando o poente junto à linha do mar. Como essessítios eram cenário, as minhas conquistas mentidas, confiei nafamiliaridade da paisagem para me ajudar na prova decisiva.Não pretendo ter sido o sedutor. Seria porém simplistaarmar-me em seduzido. A situação é que era sedutora em si, nãodo género delicodoce ou xaroposo, antes do tipo rude e rijo. Hálugares capazes de produzir profundas empatias, e esse eraseguramente um deles. Na falésia deserta uma árvore de troncoencorpado resistia às rajadas, agarrada aos rochedos que acercavam. Justina não era, benza-a Deus, tão agreste quanto asrochas de arestas afiadas, onde as colónias de mexilhão formavamviveiros de facas. E o sítio dava ao grande momento um saborbravio e bárbaro.Para não repetir aqueles preliminares que toda a gente está fartade saber, começarei inmediatamente. Com espanto verifiquei queesta Justina não era nada inexperiente. Não tirou as meias pretasnem o soutien florido, sob o qual meti os dedos frios,rapidamente repelidos. Protestando contra a má qualidade dosserviços, ela indicou à minha boca o caminho até ao seio maior.Para quem só mamara biberão, esta sensação era nova e portentosa. Não me descalcei nem me despi, a fim de não espantarJustina com o meu dedo extra nem me ensarilhar nos prosaísmos de desabotoar o complicado fato-macaco e o resto da farpela queminha mãe costurara. Retardando e travando se eu me precipitava,obrigando-me a voltar ao princípio sempre que a minha beijoquicedeixava a desejar, Justina instigava-me a melhorar o teor do meutrabalho. Até que as fintas a fatigaram e, quando eu já julgavaperdida a partida, ela mostrou-se disposta a consentir. Nesseinstante ouvi um silvo, e da árvore saiu uma horrenda cabeça dehomem com bigode e corpo de serpente. Pronto, pensei, estoutramado. Afinal o meu confessor tinha razão. Deus vê tudo, atéa minha mão entre as coxas da mestra.Justina não se intimidou, como se estivesse habituada àsapariçÕes e máscaras maléficas. Com a maior naturalidade, mandouque não me assustasse, que aquele monstrozinho era a alma penadado seu antigo marido. Não me convenci. Suspeitei que fosse, semtirar nem pôr, o hediondo fantasma do pecado que Catarinafrequentemente me descrevera, como se o conhecesse de ginjeira.Fechei os olhos, rezei um padre-nosso e, despachado o "não nosdeixeis cair em tentação mas livrai-nos do Mal, ámen", a medoespreitei a árvore. O bicho-careta enrolou-se sobre si mesmo àmaneira untuosa dos répteis, e desandou de vez. Assim que omostrengo se esfumou, procurei recuperar o terreno perdido. Denovo a minha mão direita subiu até às virilhas mestras, enquantoa esquerda, mais desastrada, lhe segurava a não delgada cinta.Lembrei-me, do lema paterno em relação à pesca: há que atirarsempre a isca, e se o peixe não pega é preferível investir noutrosítio, sem jamais desistir. Foi o que fiz, em sucessivas

tentativas, seguindo uma sabedoria piscatória que não se mostroudas piores. Começou a resultar quando a nortada aumentou deintensidade, desatando a farfalhar na areia, na árvore, abafandoos suspiros de Justina e os ruídos do meu acelerado respirar. Sóum Criador muito coca-bichinhos podia inventar a engenhosamanigância de nos fazer mergulhar noutro corpo e tirar dissodeleites divinos. Já o Farol varria de luz fria os amarelos-quentes e osocres-vermelhos do céu e do mar quando subimos embaraçados aspenedias. Ao entrar em casa, dei-me conta do sarilho em queestava metido. Arranjei a desculpa de uma caçada aos pássaros.Meus pais estranharam, uma vez que eu nem fisga tinha. Gaguejeique fui com um rapaz, que ele tinha uma espingarda de pressão de ar.Nessa noite quase não preguei olho. E durante todo o domingome debati entre a vontade de visitar Justina e o dever de cumpriro combinado: nunca a ninguém contar nada, nunca ir procurá-la.Segunda-feira cheguei mais cedo à escola, ofegante e abandonandoAmélia pelo caminho. Esperei Justina no pátio, ela esquivou-seafirmando que nada se passara. Não querendo dar-me por vencido,demorei-me por ali depois das aulas, pedi a Amélia que fossesozinha, que eu ficava na Azóia a estudar. Depois de todospartirem dirigi-me a casa de Justina. Zangada, e olhando para oslados, disse-me que entrasse, e que não me atrevesse a voltar àluz do dia. Felizmente anoitecia já tão cedo, que as secretassurtidas ficavam facilitadas. Justina partia antes de mim, eufingia-me atarefado em exercícios escolares, ou ficava fechadonos lavabos, e esgueirava-me atrás dela pelas ruas da aldeia semvivalma. Por sorte, nunca mais vi o feioso focinho do seu defuntomarido.Sempre que minha mãe me arrastava, em quinzenais domingos, àmissa na igreja da Ulgueira, eu lembrava Justina quando o padreentoava "tomai e comei, este é o meu corpo, tomai e bebei, esteé o meu sangue". A minha religião era feita dos fluidos eeflúvios, calores e tremores do corpo da professora, cujasqualidades não me cansava de admirar. Devo-lhe muito. Devo-lhea noção de que, mesmo que algo se aprenda pela prática, paraesta, como para qualquer arte, já se nasce fadado. Mas nem osfados nem as fadas bastam. É preciso que alguém nos desperte dosono dos sentidos. Justina me ensinou a amar as mulheres,afastando me para sempre dos monótonos convívios meramentemasculinos. Repugnava-me o modo abrutalhado com que a rapaziadase referia às "vergonhas" das raparigas, reservando todos ostermos lisonjeiros para os órgãos viris. As metáforasdepreciativas, a racha, a fenda, a pássara, destinam-se talveza minimizar o medo ao desconhecido. O meu léxico sexualadequava-se mais a coisas sagradas. E, à medida que aumentava aminha adoração por Justina, aumentava a minha vergonha pelasgabarolices, que incluíram a participação no despique domija-longe.Em vésperas das férias da Páscoa os mais velhos da escolaorganizaram um concurso de campeão na mijação. Segundo a nossaciência hidráulica, os melhores mijadores teriam a canalizaçãomais comprida: logo, quem aspergisse a maior distância,ultrapassando metas de um, dois e três metros, seria oproprietário da suprema aparelhagem. A ideia veio do Reguila, umtipo expulso do seminário, que para esta solenidade se

paramentara com uma velha gabardina a que chamou Capa deAsperges, desafinando, enquanto urinávamos, a antífona dos padresao lançarem água benta sobre os fiéis: asperges me, Domine...Ganhei eu, que desde a madrugada não mudava de águas. Paraminha perplexidade, a malandragem soltou protestos por causa domeu calibre: que assim não valia, que eu sairia vencedor mesmoa dormir, que as minhas dimensÕes iam além das normasregulamentares e por isso me desclassificavam. Deixei a provazangado por me terem excluído, intrigado por tanta injustiça,contente contudo porque ao menos um facto preciso, medível,indesmentível, fundamentava as fantasias e boatos que sobre mimcirculavam. O resultado não se fez esperar. Os meus colegas queixaram-seaos pais deles, que falaram ao meu, que deve ter ralhado comminha mãe por não o ter avisado do tamanho do membro filial,apesar de tantos banhos me ter dado. Duplo dano deste percalço:na escola, inesperadas inimizades; em casa, a sonolentatranquilidade, de um dia para o outro, ameaçada. No fim do anolectivo, por eu andar nas nuvens, meio alheado e meio obtuso, ouporque Justina me queria prender o mais possível, ou só paramostrar que não me preferia, reprovei redondamente. Fazer figurade parvo deixou-me acabrunhado. E mais ainda quando as fériaslevaram Justina, vaporosa, vestida de organdi, para Lisboa,durante três meses. Sofri, meti-me em casa, pela primeira vezvivi como eremita. A cama era, ainda é, o meu refúgio, a minhagruta de Ali-Babá. E nesse mês de julho raramente me levantei,deprimido pelo chumbo e pela partida de Justina. O tempo nãoajudou, embrulhando o Cabo em algodão molhado. O sol malaparecia, por volta do meio-dia, para logo se ocultar. O nevoeirovinha do mar, espalhava-se lentamente, recuava um pouco, e denovo parecia devorar o que encontrava no caminho, crescia paratodos os lados até tapar tudo debaixo da sua campânula opaca. Como compensaçãoeu ficava na cama, agarrado aos volumes cartonados, de capa vermelha e emtela agradável ao tacto, da Grande Edição Popular das ViagensMaravilhosas aos Mundos Conhecidos e Desconhecidos. Na portada,além do nome imortal do autor, um balão com gente a bordo, embaixo um leão e uma jibóia gigantesca enrolada a uma palmeira,e uma nau encalhada, de mastros estilhaçados. Quinzenalmente euaguardava que a Biblioteca Itinerante me trouxesse as travessiasdo Transval, os cheiros, os ruídos de savanas e selvas e rios,de cidades exóticas como a temível Lisboa, cujos perigosameaçavam Justina. A pouca importância das mulheres nas ficçÕesde Júlio Verne defendia-me de pensar tanto nela. E o optimismodesses livros servia de contrapeso à minha melancolia. Nãoprecisava de muito imaginar para me ver embarcado na Jangada,carregada de garrafas de vinho do Porto e moscatel, descendo oAmazonas onde, se não morrer tão cedo, um dia irei.Identifiquei-me com Gédéon Spillet, náufrago do ar, que dava tudoem troca do jornal matinal.Ao contrário de Spillet, não dou, quinze anos mais tarde, umpasso para procurar jornais, e na hora dos noticiários desligoo mini-rádio de pilhas. Só oiço música, que me ajuda pela paz queme traz. Sonâmbulo sigo os temas, os timbres, como se delesdependesse o meu destino. Quase não vejo ninguém. Uma ou duasvezes por semana desço a pé até à Azóia, para comprar comida. Noprincípio do ano fui à Várzea, na carreira, buscar materiais para

avançar nos arranjos da casa abandonada que me emprestaram. Otelhado já remedeia, e era o mais urgente, agora que vêm aí aschuvadas. Não há electricidade. à noite leio à luz de umalamparina em forma de peixe de cobre, de cuja mandíbula saem doispavios embebidos em azeite. Escurece cedo, e esta candeiaacompanha-me durante longas horas. Apago as chamas azuladasquando os olhos me ardem. E às vezes fico no escuro, falandomentalmente de mim para mim.No verão em que fui abandonado por Justina passei tambémmuitas noites conversando comigo. Supliquei, sussurrando einvocando todos os encantos do seu corpo, que ela voltasse maiscedo. Em vão. Até que me cansei de tanto sofrer e decidi tentara sorte por outro lado. Peguei no fato de banho e, de toalha aopescoço, marchei até à Adraga. Aí passei o resto das férias,engatando, brincando, propondo os meus serviços, arranjandopretextos para mexer nos esquivos pudores das meninas, colegasde escola e respectivas amigas, um harém em potência se nãofossem as instituiçÕes colectivistas do "grupo" e da família, asomnívoras víboras dos parentes, directos, colaterais e porafinidade em vários graus. Dificílimo iludir esses atentos irmãose pais e primos, tios, avós e outros mais, sem esquecer eventuaismadrinhas e padrinhos, sequiosos de indícios de imoralidade. Emmares de acaso também apareciam raparigas à caça de marido, masnem me olhavam: do casamento eu estava defendido pela idade.Se as actividades balneares preenchiam parte dos meus dias,os serÕes eram reservados à cinefilia no Cine-Theatro de Almoçagéme, caso nãohouvesse bailes ao ar livre, "abrilhantados" por "sensacionais" conjuntostocando entre a fumarada da sardinha assada e os cães uivando em transecontra o foguetório incessante. Meu pai andava contente por vero fim à minha misantropia. E até ironizava que, dado o meudesinteresse por estudar, talvez fosse para professor de natação,já que me vangloriava de furar as altas vagas.A chegada do outono amareleceu os meus amores por Justina, semarrefecer os arrebatamentos pelo sexo feminino. Com o recomeçardas aulas retomei o divertimento de levantar saias e fazercócegas às colegas. Se a brincadeira pegava, procedia à selecçãonatural das mais dadas e dotadas para os apelos da carne. Adesenvoltura de algumas escandalizava as outras ao ponto de asafastar e nos deixar à vontade. Este método infalível permitiu-medesvendar devastadoras vocaçÕes em embrião: tal como há almas quenem sonham quanto necessitam de ser salvas, assim não faltamcorpos que anseiam por ser seduzidos, embora nem se dêem conta disso.Uma tarde Justina apanhou-me em pleno pátio experimentando o meu expediente numa das suas melhoresalunas, que fugiu espavorida. Sem perder a calma, Justinamandou-me secamente entrar na aula. Lá dentro armou um escarcéude mil milhÕes de demos, pegou no ponteiro e bateu-me às cegasna cabeça, nas costas, na cara, nos braços que estendi porinstinto, até perceber que ela não pararia senão quando caísseexausta. Segurei-lhe então o pulso da vingança, fi-la largar oponteiro, prendi-lhe a mão esquerda que ainda me agredia,torci-lhe o braço de modo a obrigá-la à imobilidade, tenteibeijá-la apesar de ela ser mais alta.Foi o fim. Nunca mais me recebeu em casa nem me falou nasaulas. Fiquei bem nos exames finais, deixei a escola da Azóia

para frequentar o secundário em Sintra. Quanto a Justina, nuncamais a vi.

Capítulo 4

Sem Clara fiquei órfão de mim. Enredado numa teia delembranças, achei que era altura de sair de Sintra. Já há muitoa avó Catarina conspirava comigo, querendo à força que eu fosseviver para casa dela em Lisboa, a fim de lhe fazer companhia.Renitentes, meus pais recearam contrariar-me, e acabaram porcapitular.Quem mais se regozijou foi o cavaleiro Alcides de Carvalho,que sempre tocava a tecla da necessidade da "descida" à capitalem nome dos "ligítimos interesses da Pátria". Aconselhava ele comomais indicado para a minha preparação o Liceu Central dePedro-Nunes, pois o sábio judeu Pedro Nunes fora, no séculodezasseis, um dos mestres e tutores de D. Sebastião. Exagerandona exuberância, Alcides profetizava que o dito liceu ficaria nosAnais como centro das nossas manobras monárquicas. Por felizconjuntura, um primo dele era lá professor e sentir-se-ia muitohonrado em tratar-me da transferência escolar. O primo do insigne Alcides chamava-se Gabriel Gago de Carvalhoe, antes de conhecê-lo, nunca eu imaginara que existisse alguémassim. Professor de História, os seus heróis eram D. Sebastiãoe Pomponazzi. Por causa do tom fanático, paquidérmico eautoritário com que falava fosse do que fosse, lembrei-me detratá-lo, nos intervalos, por Nazi Pompom. às vezes os floreadosdas suas frases transformavam-no em Floreano Pomponazzi. Termospomposos, dos quais o preferido e mais proferido era polis,deram-lhe direito ao semi-heterónimo Florianópolis. Gabriel Gagode Carvalho procurava efeitos oratórios nunca tratando os boispelos seus nomes. Em vez de "mar", dizia "espelho aquático" ou"espumoso vidro". Estonteado pela própria tara verbal, entravaem transe lírico e, de olhos em alvo, chegava ao paroxismo defalar em "undosa planície" e "instável cristal"? tudo para fugirà vulgar palavra "mar".Se pouco aprendemos de História, ao menos fomos vacinadoscontra a enxúndia literata. Nem me lembraria do indigesto mestrese não aparecesse pelo liceu, nas festas de Natal, a senhora deCarvalho, que tinha muita "pinta". Ao vê-la, a malta perdoou deimediato os tratos de polé que o piroso esposo infligia aovocabulário. As monstruosas metamorfoses do seu palavreado eramdefeitos sem importância em quem guardava lá em casa tão preciosa"propriedade". Ainda que a não merecesse e que a tivesseadquirido certamente graças às palavras caras, a verdade é queele a tinha, e nós a seu lado ficávamos a ver navios. Mais novavinte anos que ele, e com ele casada "por interesse", aqueleespanto ambulante chamava-se Julieta. Grande, larga, languida,de nariz arrebitado e ar gingão, a espampanante Madamedeixava-nos sem respiração. Mesmo a feia pintura dos cabelos nãoanulava o charmoso impacto desse corpo, na nossa visão deaspirantes a sedutores. Se a natureza teve a liberalidade decriar um ser assim, decerto tolerava a oxigenada alteração da suacor capilar.Aos festejos natalícios assistia, na primeira fila, à direitade Julieta que dava a esquerda ao marido, o primo Alcides cadavez mais compenetrado do seu papel de São João Baptista da CausaSebástica. No final do Auto de Natal fui apresentado à estupenda,estonteante Julieta, cheia de sorrisos para mim e para o primo.

E qual não foi o meu pasmo quando Alcides me convocou para uma"reunião de trabalho" em casa da "prima Julieta", no aniversáriodo Rei e meu. Fiz-lhe notar que o jantar desse dia estava jáprometido à avó Catarina. "Então a seguir ao almoço", sugeriu asenhora de Carvalho. "à hora da sesta", disse cumplicemente ocavalar Carvalho, e soltou uma série de relinchos. Não alcanceio sentido de tão alvar alegria, que atribuí à quadra festiva. Julieta balbuciou que a campainha de casa estava avariada e,como nada garantia que até ao dia vinte de janeiro viesse oelectricista, a porta ficava encostada. "Ainda não há ladrÕesnaquela zona", e eu entraria sem cerimónias quando chegasse.Novamente o cavaleiro Alcides olhou em diagonal para Julieta, quesorriu inequívoca.No dia dos meus anos estava um sol de primavera antecipada,e resolvi ir a pé desde a casa da avó em São Sebastião daPedreira até São Pedro de Alcântara, onde o professor morava. Noinverno, quando não chove, Lisboa tem destes dias gloriosos, emque fica coberta de uma luz irreal, vinda da foz do rio e subindopelas colinas. O Parque Eduardo VII, o Jardim do Príncipe Real,o belveder de São Pedro de Alcântara de onde se avista o Castelo,a Graça, a Sé, a Baixa, o Tejo, a outra margem, tudo brilhava tãopróximo, que bastava estender os braços para alcançar oscontrafortes da serra da Arrábida. Uma euforia sem fim tomouconta de mim, que nem a idade nem a curiosidade de rever Julietae com ela conversar justificavam.Foi fácil encontrar o prédio setecentista, bem conservado erestaurado, que Alcides me indicara. Subi dois lanços de escadae dei com a porta entreaberta, conforme combinado. Entrei, nãosem antes verificar que efectivamente a campainha não funcionava.Bati com os nós dos dedos na porta, fechei-a com ruído, depropósito, murmurei "sou eu", já intimidado. Nada. A sala deentrada, bastante luxuosa embora sobredecorada, tinha um tapetepor cima da alcatifa, de modo a abafar os passos. Tambémalcatifado era o corredor, comprido e pontuado de portas como asantigas carruagens de comboio. Fui avançando, avisando mais altoque chegara, até que uma luz ao fundo me deu ânimo para perguntarestupidamente se estava gente. Ia jurar que ouvi uns urros, unsuivos, uns rugidos ou grunhidos impróprios, que de repente seacalmaram e calaram."Estamos aqui", gritou enfim uma voz feminina que não reconhecide seguida. A luz provinha de um salão cheio até ao tecto do maisrepugnante bricabraque. Num sofá enorme, de compactas rodas, queme fez pensar num velho Cheurolet, estava sentado o primoAlcides, cujos poucos cabelos, despenteados dos lados, pareciam,contra a luz do candeeiro, um par de cornos ou umas orelhas debode. A seu lado Julieta, de faces afogueadas, endireitavaapressada o vestido amarrotado, enquanto o marido, limpando ababa da boca, procurava uma posição mais respeitável. Entre ostrês reinava a cumplicidade de quem é interrompido em plenabacanal de bordel. Toda a divisão, aliás, tinha um ar de casa deputas em dia de Entrudo, numa amálgama de tralha colonial ondenem faltava um jacaré-bebé embalsamado no topo de uma coluna,entre plantas de plástico e penas de avestruz. Enquanto ambos os homens se levantavam e saíam da sala,Julieta, lambendo os lábios, fazia-me sinais para me aproximar.Beijei-lhe a mão, como aprendi nos meus contactos com a

aristocracia. A dama ia tendo um delíquio, deslizou as costas damão esquerda pela testa e agradeceu a minha vinda numa tortuosafrase que terminou num lapso verbal. Em vez de "à prova de bala",ela disse "à bala de prova", o que me atrapalhou por não perceberonde queria chegar. Sobressaltos disléxicos deste género haviamde surgir, noutros encontros, sempre que não estava à vontade.A sua curta testa e o forte maxilar condiziam com o pescoçoinvulgarmente grosso, que um colar de grandes pérolas falsas nãoconseguia disfarçar. Nada havia também a fazer para encobrir obumbum, roliço, reboludo e rechonchudo, demasiado volumoso de umponto de vista artístico; mas ela lá soubera dar a volta adefeito tão óbvio. Rolando sobre as ancas do modo mais visívelpossível, foi buscar uma bonbounière à mesa ao pé da janela. Odecotado vestido verde-cheguei colava-se-lhe ao corpo dengoso eeu seguia-lhe hipnoticamente os movimentos.Em tremelicantes pezinhos de lã, corado como quem sai de umbanho, Gabriel Gago de Carvalho foi o primeiro a regressar àsala. Fez-me várias vénias muito pestanejadas, com poses deprima-dona em noite de gala, e refinou nas boquinhas habituais,na duvidosa virilidade de uma retórica engasgada. Custava-meficar sério diante daquela cara de cágado fora de água, comóculos de aros de tartaruga que lhe aumentavam a exoftalmia dosespantados olhos de pékinois, ou melhor: de pescada no prato. Empirotécnicas piruetas verbais propôs abrir uma garrafa de Portovelho, para bebermos à "nossa Causa" e à minha "quase-maioridade". Porpatriotismo fiz mais esse sacrifício e aceitei. Ocavaleiro Alcides era um mestre-de-cerimónias caricato, com gestos de quem aliestivesse para dirigir uma orquestra de metais. As trompas e trompetes etimbales das suas cordas vocais entoavam os mais entornadoslouvores à Monarquia do Espírito.Enquanto bebíamos, ele cortejava descaradamente a prima. E omarido, sofrendo de rinocerôntica miopia, nada topava. Já mecheirava a esturro festejar o meu aniversário em tão suspeitoboudoir, e os brindes que o professor proferia em série, numgongorismo patético, levaram-me à beira do desespero. Farta dosdiscursos conjugais, Julieta mandou-lhe uma boca, comparando aincontinência verbal à indesejável precocidade da outraincontinência. Apesar de indirecta, a alusão atingiu em cheio oalvo. O professor levantou-se com a desculpa de ter que estarpresente numa reunião de docentes. Antes que me desafiassem para ficar, atrelei-me a ele. Ao despedir-me repareinuma fotografia emoldurada, em cima da desordem de um móvel: aolado da dona da casa descobri a cara triste da minha mestraJustina. Perturbado perguntei de onde é que a conheciam. Houvesurpresa e rebuliço. Entre lágrimas, Julieta informou-me que "acoitada da Justininha" era a irmã dela que, após vários anos naescola de Azóia, ensinava agora no Norte. Há três anos que nãotinham notícias.Cabisbaixo, desci as escadas com o Dr. Gago. Na rua renovouvotos pelo meu futuro e pela "Pátria", e deu-me um abraçoamaneirado. Devagar voltei a casa, pensando durante todo ocaminho em Justina. O meu único conforto consistia em jantar coma avó naquela noite. Sentia-me bem ao lado dessa mulher maisvelha meio século, e com quem me divertia mais que com a maioriadas minhas amigas. Para não a preocupar, eu procurava dormir emcasa. Sozinho. E tão atarefadas eram as minhas tardes, que

adormecia assim que me deitava. Mas as noites prolongavam osdesejos do dia, fazendo-me acordar no instante em que os sonhosse liquefaziam. Detestava que Catarina, ao arranjar-me o quartode manhã, descobrisse indícios dos meus desaforos oníricos.Desenvolvi uma técnica para quando não despertava senão em cimado fait accompli: apertava o prepúcio entre o polegar e o indicador paranão deixar derramar o produto dos actos sonhados, e assim comicamente caminhava no escuro até à casa de banho.No escuro também caminhei para a casa de banho de Julieta, quedias depois da minha primeira visita me esperou à saída do liceue quase me raptou de carro para lancharmos em sua casa. Pordelicadeza não perguntei se lá estariam o marido e o primo.Presumi que não e, assim que ela abriu a porta, na tarde jáanoitecida e invernosa, pressenti cilada à vista. A fragrânciamuito forte de um perfume caça-homens estonteou-me logo nocorredor, cujas lâmpadas por acaso se fundiram todas. Julietasofria de vertigens, disse, e propôs que, depois do chá, eutrepasse pelo escadote até ao candeeiro do tecto. O modo depronunciar a palavra "trepar" pareceu-me que trazia água no bico.Sentados no estrambótico sofá onde ela se exibira com o primoe o marido, requebradamente me serviu chá e bolos de chocolate,pedindo-me que falasse de Justina. Ao perceber a profundidade deuma relação que durara três anos, começou a fazer beicinho e ainquirir se a achava mais feia que a irmã. Claro que não,tranquilizei-a. Com adjectivos seleccionados marquei asdistâncias de uma à outra. Em apurada semântica cognomineiJustina de boazinha, Julieta de boazona. Não foram bem estestermos, mas andei por essas zonas.Julieta não se contentava com palavras, preferia artigospalpáveis. E nem os dedos engordurados de chocolate a impediramde me saltar em cima e de me assaltar às apalpadelas na escuridãodo salão, de me atirar ao chão entre montes de almofadas, de meabalroar contra a salsada dos móveis, de só se dar por satisfeitaquando aportámos ao quarto e fundeámos enfim na maciez da cama.Generosa em gritos e gemidos, apostada em demonstrar que na camanão há programa, apenas me impôs a condição da média luz, paranão mostrar algum refego ou flacidez das abundantes carnes.Receando que o professor nos apanhasse, escapei do leito pertoda hora do jantar. Esqueci-me de substituir as lâmpadas fundidas,e de voltar na semana seguinte. Se é fácil iniciar ligaçÕesapenas sensuais, difícil é pôr-lhes fim. Tendo obtido do maridoo meu endereço, o intemperante temperamento dela passou à fasedas assíduas cartas, que exasperavam Catarina e me obrigaram arefugiar-me na Roca durante as férias da Páscoa.De Catarina eu ocultava as incursÕes e excursÕes amorosas pelacidade, e os encontros programados nos diversos bairros. OsserÕes, quando não estudava nem escrevia cartas, eram reservadosàs conversas domésticas. Evitava telefonar de casa às namoradas, e só em caso de necessidade absoluta dava o nosso número. Mesmoas raras mensagens telefónicas irritavam a avó, que desprezavatodas as meninas que correm atrás dos homens, "os quais não seinteressam senão pelas que lhes fogem". Não menos vociferavacontra as inúmeras cartas, variamente perfumadas, que ia buscarà caixa do correio quando eu estava nas aulas. Confessou-me quedeitou fora as mais cheirosas, sempre que os perfumes ordináriosindiciavam remetentes idiotas ou pouco recomendáveis. Outros

billets doux guardou-os numa caixa de sapatos, onde os fuiencontrar um dia entre daguerreótipos e fotografias de família,dela e do marido.Aos dezoito anos o seu Príncipe Voador tirara o brevet ecomprara uma avioneta, na qual se tornou famoso pelos seus duploslooping the loop e por passar por baixo das pontes, de pernaspara o ar. Pioneiro dessas proezas, sobrevoou dezenasde vezes todo o país, parando onde lhe apetecia, em qualquerestrada, em qualquer eira ou praia, mesmo em sítios proibidos.Quando, no pino do verão, a caminho de Lisboa, aterrava naCaparica, na maré baixa, para dar um mergulho, e os cabos de maro chateavam papagueando preceitos legais, ele desculpava-se como motor quente de mais, a precisar de uma pequena pausa. Se osfulanos duvidavam, desafiava-os com ar sonso a pôr a mão noirradiador, onde os representantes da autoridade invariavelmentese queimavam. O que lhe permitia o ambicionado banho, porque atétrazia o maillot.Uma vez aterrou na vila do Crato, não sei porquê nem paraquê. Sei que o inédito facto o fez ser convidado pela elitecratense para uma festa qualquer. Aí conheceu Catarina, quedentro de dois meses era sua mulher. Educada entre a igreja e acozinha, desde cedo encontrara prazer em padecer sob ossacrifícios da penitência, procurando imitar a Santa de Sienacujo nome lhe deram e que lhe foi madrinha. Não estudou mais quea instrução primária, e o resto dos seus saberes era uma misturade bordados e crendices. Donzela devota, de uma religiosidadesóbria, não desgostava de fantasiar sobre as vidas dos maisextravagantes santos. Sendo santos do sexo masculino, nelesbuscava os solitários exaltadores das almas, os homens fortes elongínquos. Sendo santas femininas, nelas via a submissão subtil,afinal outro modo de domínio. O casamento deve ter-lhe reveladoperturbantes poderes que em si ignorava. Da sua parte houve decerto umaidentificação entre o heróico voador e os anjos e arcanjos comque tanto sonhava. E o meu avô terá sido cativado peloreconhecimento de quem encontra alguém rendido sem reservas àbíblica capacidade de voar.Da boda, em fevereiro de mil novecentos e vinte e cinco,existiam envelopes cheios de cartonadas fotos às quais estavamatados ramos de alfazema e rosmaninho, que se esfarelavam malneles se tocava. A vertigem do esquecimento passou velozmente poressa gente. O que restava eram fantasmas acastanhados nas suasfatiotas de cerimónia, estolas que imagino cheirando a naftalina,chapéus altos, fraques e casacas com abas de grilo.O casamento, algo apressado, levantou logo a suspeita de ser"adiantado". Mas a data em que minha mãe "fora parida" veiodesmentir a mesquinhez do boato. Catarina usava com dignidadeesta rude linguagem, sobretudo em relação às coisas do corpo.Dizia, por exemplo: "no dia do nascimento da tua mãe, a minhaemprenhidão era tamanha, que o médico previa um par de gémeos,ou um rapaz como um bezerro - e afinal saiu-me isto na rifa! Nahora do parto houve uma bátega de granizo, o que tanto podiaprognosticar clareza de pensamento como pureza no procedimentoda minha filha". Várias vezes Catarina "emprenharia", e váriasvezes a gravidez seria involuntariamente interrompida. Talvez atendência para o êxtase lhe tornasse repugnante o seu ladoanimal; ou era o medo de morrer de parto o que a levava a

abortar. Pouco lhe importavam as causas, sabendo que razão e vidararamente rimam.à medida que a idade a libertava da dureza dos traços, minhaavó ia perdendo as feiçÕes pesadonas, o olhar autoritário, acarapaça. Cada dia se tornava mais humana, sem receio de memostrar as suas fragilidades. Ao contrário dos velhos queengordam por dentro e por fora, Catarina emagrecia, como selentamente o corpanzil lhe desistisse da voracidade pela vida eprocurasse coincidir com a sua flutuante costela contemplativa.A cumplicidade evoluía entre nós para uma intimidaderespeitosa. Não do género que ligaavós e netos, mas do género que pode existir entre certos homense certas mulheres. Sob as convençÕes do trato escondíamos oreceio de revelarmos um ao outro o nosso secreto afecto. Por issonão lhe levava a mal as críticas às "lambisgóias" que meescreviam em arrebicados envelopes, algumas com duplos nomespossidónios que lhe causavam arrepios: Atenuado embora pelaidade, o respeito por si não lhe consentia aceitar nem uma só dasrivais, quanto mais várias. Sem se dar conta disso, revivia assuas ânsias de mulher enganada, e em cima de mim descarregava ociúme acumulado durante a vida de casada.Nos quatro anos em que fui seu hóspede desempenhei com todo o afinco os papéisde homem da casa, de neto e de atento discípulo. Em contrapartidaela abriu-me alguns meandros da psique feminina. Conselheira econfidente, fez as vezes da mãe e do pai, com quem eu conviviasó nas férias de verão, ou na Páscoa e no Natal. A casa deCatarina passou a ser a minha, e sempre que dela me afastavasentia-lhe a falta. Hoje ainda, isolado nestas serranias, tenhosaudades das suas onirocríticas ao pequeno-almoço, quando lhecontava sonhos da noite anterior e ela os interpretava semhesitaçÕes e sem nenhum tabu, libertando-me dos nocturnosmorticínios e assim me permitindo partir para o liceu, decididoa sobreviver aos rebarbativos doutores Gagás e a outros bichosque tais, menos empolados mas não menos letais.Agora que o fim de maio se aproxima, e que os jacarandás secobrem de flores azul-leitosas, caminho por veredas e atalhoshoras a fio. Deste modo me fatigo e caio cedo num sono espessoe sem acidentes. Felizmente as noites são já menores que os dias,e não preciso de dormir tanto quanto nos meses de invernia em queme julguei de novo atingido pela enigmática doença dos meuscatorze anos, quando uma mulher de virtude que vivia na Ulgueirafoi de propósito ao Farol para me fazer inalar fumigaçÕes dosmeus cabelos atirados às brasas, tidas por remédio santo contrasezÕes e febres terçãs.Um sábado destes, como se tivesse que pagar qualquer promessa,fui à tarde até à Ulgueira, por saber que costumam limpar aigreja na véspera da habitual missa quinzenal, no segundo equarto domingo de cada mês. E dei de facto com a igreja aberta,depois de muitos anos sem a ver. Uma velha vestida de pretovarria a entrada, enquadrada pela elegante moldura de pedra doportal Renascença. Não sou sequer cristão, mas sou religioso, e comoveu-me olhar o mar desde o altar-mor, e levantardepois os olhos para o tecto abaulado de madeira com a Virgempintada no meio e, nos quatro pontos cardeais, estes dísticos emdefeituoso latim:

stela maris turis eburnia electa ut sol pulcra ut luna.

Capítulo 5

A roda ocre da gémea de Apolo, Artemis, deusa lunar e dosinfernos, acaba de surgir a oriente, quente e gigantesca,enquanto o sol tinge de lume o mar e nele se dissolve lentamente.Lua, alma do mundo, que sobre esta Serra foste crescendo edevagar hás-de minguar, leva contigo todos os males que agostome pode dar.

Se o mal estiver na cabeça, que mo tire Santa Teresa se estiver na cara, que mo tire Santa Clarase estiver na vista, que mo tire Santa Luzia se estiver no peito, que mo tire São Pedrose estiver nos braços, que mo tire Santo Atanásiose estiver nas mãos, que mo tire São Joãose estiver na barriga, que mo tire Santa Margarida se estiver no ventre, que mo tire São Clementese estiver nas pernas, que mo tire Santa Eufémia se estiver nos pés, que mo tire São Josése estiver nos dedos, que mo tire o Senhor Santíssimo Sacramento.

Ouvi a Catarina este exorcismo na manhã do seu septuagésimoaniversário, idade a que nunca julgou chegar. Para festejarmoscondignamente a data, convidei-a a jantar no Tavares. As moldurasdouradas dos espelhos comidos pelo tempo, os veludos vermelhosdos estofos condizendo com o rótulo, entre castanho-mineral eencarnado-Médoc, da garrafa de tinto de Reguengos; asconfortáveis cadeiras de braços almofadados e de costas ovais recordavam-lhe dias de fausto e felicidade. Tratou-me como a um Grande Senhor,encarregado de escolher o menu, o vinho e tudo. Era sexta-feira:ela só comia peixe, explicando-me com malícia que, recém-nascidajá se recusava a mamar no dia da morte do Redentor.Desde que nos sentámos à mesa, troquei olhares com uma beleza desotaque brasileiro, na mesa ao lado, acompanhada por um tiposolene, de costas para mim, o que bastante me convinha. Apesarde eu dissimular, a avó reparara nos meus desavergonhadossorrisos. Quando o casal se levantou para sair, Catarina tinhaterminado o vacherin glacé e perguntei-lhe se não levava a malque eu fosse lavar a boca. Este meu hábito pós-prandial era tãocerto em casa que ela o achou normal, embora exagerado.Precipitei-me para os lavabos, por feliz coincidência ao pé dobengaleiro. E mais feliz coincidência foi ainda o dar de carascom a beldade, sozinha e de gabardina, aguardando o marido. No tom mais casual possível, como se já nosconhecêssemos, detectivei que ela estava de passagem por Lisboa.Apressado, fui direito ao essencial. E ela apenas teve tempo dedizer "no Ritz, meu nome é Helena". O apelido não interessa paraaqui. Enquanto eu puxava da carteira para dar uma gorjeta àempregada, indaguei da Bela Helena a que horas poderiaencontrá-la. "Amanhã ao meio-dia", murmurou fixando a porta dosbanheiros e fingindo que nada se passava. Com um "até amanhã"entrei no toilette onde o cônjuge se ocupava em esticar sobre acareca destapada umas madeixas ralas. Quando regressei à mesa,

Catarina punha rouge com todasas demoras, procurando controlar-se. Para mostrar que não gostouda brincadeira mandara vir a conta. Paguei, afastei-lhe acadeira, segui-a até ao vestíbulo onde a empregada sobraçava ocasacão de astracã que a ajudei a vestir. Só ao chegarmos a casadesatou aos gritos como nunca até então eu a ouvira,insultando-me com a fúria de Justina ao apanhar-me em flagrantedelito. Sufocada de raiva, acusava-me de ter dado cabo do seuaniversário, de não ter vergonha na cara, de andar a meter-me commulheres casadas estando o mundo abarrotado de meninas idiotas,capazes de todos os disparates para caçarem um homem. Procureiacalmá-la, garantir-lhe que se enganava, propor-lhe quebebêssemos um Cointreau, mistela que eu detestava mas de que elagostava, e acabámos em tréguas provisórias com um beijo decompromisso.Tão sólida era a minha boa consciência, que apesar da discussão passei parte da noite planeando o próximomeio-dia. Acordei bem-disposto e, por estar bom tempo, resolviir andando pelo Parque até serem onze e meia e devagar descer emdirecção ao Ritz, na esperança de que a dama desconhecida jáesperasse por mim.E esperava, ao fundo do foyer da entrada, folheando umarevista num dos sofás de onde podia fazer-me um aceno quando euchegasse. Beijei-lhe a mão, sem que isso provocasse o mesmoefeito que em Julieta. Não a impressionei, ou ela preferiamostrar que nada seria fácil. Convidou-me a tomar um copo no bar,para onde nos dirigimos pelo salão, através de cujos vidros altosa luz levemente coada se espelhava nas mesas e nos mármores.Apetecia ali ficar, se não fosse tão devassado. Escolhemos no baro canto mais escuro e distante do balcão para as primeirasavaliaçÕes, tacteando ambos o campo adversário num jogo desubentendidos e de olhares. Travei a minha vontade de lhe tocare tive de contentar-me com o que, cheia de vivacidade, elacontava. O marido, diplomata francês num país africano, nãoconsiderava conveniente que a mulher o acompanhasse, e por issoela vivia sozinha em Paris. Moravam "no mesmo prédio mas não nomesmo piso", cada um cultivando à sua maneira uma privacidade"inexpugnável". Os termos foram estes, dando-me a perceber queo casamento não se desfazia apenas por nenhum deles ver vantagens nisso. A Lisboa vieram por causa de um congressointernacional qualquer. No hotel ocupavam quartos contíguos etudo o que faziam juntos era almoçar e jantar. Não precisei deouvir mais. Um pouco antes da uma, ao reparar no relógio, Helenapulou e disse ter que dar o fora. De nada adiantaram as minhassúplicas sinceramente teatrais. Consegui contudo a promessa deum tête-á-tête à tarde no Museu de Arte Antiga, para lhe mostraro retrato de D. Sebastião por Cristóvão de Moraes.às três em ponto já eu me impacientava nas Janelas Verdes,temendo que se tivesse arrependido. Distraí-me um bocado a lero caderno de capa rija onde, quando me faltam pensamentospróprios, aponto alheias lucubraçÕes que um dia me possam servirde tábua de salvação, e dei com um aforismo de Santo Agostinhode bom augúrio para aquela hora: "O número três é como setrouxesse consigo a perfeição, porque é tudo. Tem, na verdade,princípio, meio e fim." Esta frase deve ter tido algum poder,pois logo ouvi parar um carro e era ela chegando de táxi.

Precipitei-me ao seu encontro, numa nada velada concupiscência,contrária à minha táctica usual. No museu encaminhámo-nos semdesvios para o dito retrato. Deliciado, observei como Helenanotou incrédula a semelhança entre mim e o Rei, fitandoalternadamente o quadro e a minha cara, a ponto de me deixarembaraçado. As alegadas afinidades físicas até me pareceramdessa vez menos patentes. E quase me era antipática a posemajestática, o frio olhar arrogante e crispado de quem semprerepresentando se apresenta. A armadura verde-escura comdecorativos frisos de ouro-velho; a gola alta de onde saem asrendas da golilha subindo pelo pescoço até ao queixo; a mãoesquerda pegando no cabo, decorado de pedras preciosas, da espadaque se esconde atrás das pernas; o punhal à cintura; a mãodireita exibindo os anéis no indicador e no dedo mínimo, delgadocomo o de um menino; o focinho do canzarrão farejando submissamente o dono e simbolizando a mansidão dos súbditos; tudono quadro está pensado para investir de sinais de poder oadolescente pouco seguro de si, órfão de pai antes de ternascido, abandonado pela mãe, obviamente mal-amado, desejoso deprovar o seu valor e de se vingar do mundo a todo o custo. A faceimberbe; a testa alta, o cabelo alourado e curto como o meu; osolhos verde-tília; as arredondadas sobrancelhas; a boca tãoimpecavelmente desenhada e de tal perfeição o lábio inferior, quese suspeita o favor do pintor; o queixo pouco afirmativo e asrosadas orelhas: tanta fragilidade não se disfarça sob o olharduro, de quem cedo foi ferido e à força quis ser adulto.Conhecendo algo da lenda desse Rei cuja aurachegara aos sertÕes brasileiros, Helena insistiu no tema dassurpreendentes parecenças. Envergonhei-me como se nisso houvessealgo de indecente, quase um truque circense, e inventei umateoria completamente burlesca. Expliquei que minha mãe, durantea gravidez, pendurara uma reprodução daquele quadro no seu quartoe, de tanto o ter olhado, nasci já parecido com o Rei que elaidolatrava. Doutorei que certas mulheres preferem um tipo dehomem inatingível, que lhes dê maior margem à fantasia. Porironia da história, o Rei Virgem passou a ser alvo dos fascíniosfemininos e, após a sua morte numa derrota ominosa, muito boagente caíra num masoquismo colectivo que define bem o fraquinhodeste país por tudo que seja fracasso, amadorismo e misticismode pacotilha.As minhas diatribes fizeram-na rir e, como já bastava de realretrato, arrastei-a para o anónimo Inferno, de um realismo decozinha, com tachÕes ao lume onde os demónios fritam mulheres ehomens nus. Quem não é frito é assado de cabeça para baixo numfogareiro atiçado pelo fole de um dos diabos cobertos decoloridas penas, como as dos índios brasileiros. Para demonstrarvasta cultura e maturidade fiz-lhe notar que não menos exóticosterão sido para a época os óculos, acabados de inventar e logoencavalitados sobre o nariz do homem dentro do pato sem cabeça,e sobre o focinho do diabólico padre rezando a missa negra, nastrípticas TentaçÕes de Bosch. Receando que estes quadros não fossem os mais apropriados parauma candidata a adúltera, propus-lhe fugir de tanta pestilênciae devagar saímos do museu. Fomos até ao raquítico jardim sobreo Tejo vigiar transatlânticos atracados, armazéns e guindastes.Entre reformados lendo A Bola e velhas distribuindo migalhas aos

pombos, sentámo-nos num banco enquanto eu ia alternando arrojadosavanços com elogios lisonjeantes. Nada do que eu dizia era fita,porque mais uma vez me deixara inflamar. Cada paixão tem um ritmodiverso, e nessa idade julgava-me capaz de ser fiel ao mesmotempo a várias mulheres.A aragem do rio provocou-nos arrepios que aproveitei para pôro braço sobre os ombros de Helena, roçando-lhe distraidamente osseios. Repetidas vezes repelido, recusava-me a renunciar, sóinterrompendo as minhas tentativas quando anoiteceu e Helena teveque voltar aos reduzidos mas pontuais compromissos conjugais.Pedi-lhe que ficasse livre todo o dia seguinte. Não prometeu. Iaver. Marcou novo rendez-vous para as dez da manhã. E à entradado hotel nos separámos formalmente, com um longo aperto de mãoem que pretendi transmitir intençÕes mais que evidentes.A minha persistência já tresandava a patetice e estive paradesistir. Mal-humorado e mal dormido apareci no dia seguinte cedode mais no bar, onde era o único freguês, o que não me ajudoua levantar o moral. Helena fez-se esperar. Pensei telefonar ouir bater-lhe à porta do quarto. Preferi porém ir conversando como empregado do bar até às onze, jurando não ficar nem um minutomais. às onze em ponto apareceu ela, nessa sua lentidão tropicalque nem Paris afectara. Umas desculpas vagas, umas frases feitas,uns meteorológicos comentários, neste pingue-pongue nos alongámosnos minutos iniciais, até eu perder a paciência, o que pode serfatal. Como todavia o efeito surpresa resulta em certos casos,sugeri sem pré-aviso que subíssemos. Perturbou-se, pretextou queo quarto não estava arranjado. Louvei sem resultado o encanto dascamas por fazer e, perante o punitivo silêncio de Helena, nãoencontrei melhor saída do que perguntar-lhe, fora de propósito,em que dia fazia anos. "No dia do Beato Pedro Chanel, primeiromártir da Oceania. " Seguiu-se um jogo de adivinhas em que, pormero acaso e não pela intuição de que fiz alarde, acabei poracertar. Sem quaisquer conhecimentos astrológicos tracei-lhe oretrato que me convinha, falei em solidão, em sensualidade malaproveitada, em abnegaçÕes inatas, e mais me espalharia se elanão tivesse tido a caridade de me informar que, sem hora, ano elugar, tudo isso eram disparates. Defendi-me: onde falta bagagem,o sexto sentido tapa buracos. Percebendo, pela sua resposta, queestava perante uma iniciada, desafiei-a a fazer o meu horóscopo,até para mo deixar como recordação. O fadinho do adeus deuresultado. Comoveu-se, e logo me presumi a caminho do ambicionadoquarto. Em vez disso fez questão de me arrastar, por causa de unspresentes, até ao Chiado. Resignado aceitei acompanhá-la notormento do shopping feminino, dei-lhe conselhos quanto a sapatosque lhe condissessem com o peito do pé, com os tornozelos e operfil das pernas. Aventurei-me a meia dúzia de juízos estéticospara ouvir as reacçÕes dela. Pensava eu que os pontos de mira dasmulheres num homem eram os sapatos, as mãos, os olhos e a curvada nuca. Por isso gostam de nos passar a mão pela nuca, como sefôssemos ursos de peluche. Mas Helena discordava: o que elaolhava primeiro eram as meias e as orelhas. E nem os meusprotestos a impediram de passar da teoria à prática,oferecendo-me um par de peúgas verde-amarelas, como a bandeirabrasileira.Solucionados os problemas dos sapatos e das meias, descemosa Rua do Carmo para irmos à Perfumaria da Moda, minusculamente

rococó, diante de cuja porta estacionavam automóveis com choferesaguardando as obesas patroas que se consolavam comprando asúltimas inutilidades, ou procurando alívio no calista Hilário.Assim que Helena se despachou, lancei de novo a ideia de voltarao hotel. Em vão. Ainda não. Ela tinha fome, e diante da tabuletaem vidro pintado da Ferrari não resistiu mais. Ficámos numa mesajunto à parede forrada de madeira e de espelhos biselados que,com as vidraçarias dos armários e os circunspectos empregados,davam ao restaurante um ar de antiquada dignidade. Helena comiacom uma volúpia que já no Tavares me impressionara. Pensei paracomigo: se assim é à mesa, deitada deve ser tesa. Quando mearrisquei a repetir em voz alta esta frase, ela achou graça, oque me animou a desfiar as contas menos indecentes do meu rosáriode máximas devassas: A meloa e a mulher, pelo perfume seconhecem. à boa e à má, fofa almofada. Mulher de raça não seexibe em praça. Mulher que entristece, de homem padece. A mulhermuito doce, não a comer logo toda.Não tardou a surgir a acusação de machismo para mim injúriasupina. Defendi a prudência do último provérbio, inteiramente afavor das mulheres, que em coisas dessas detestam pressas.Observação que não caiu em saco roto: ao regressarmos ao hotel,Helena consentiu que eu carregasse os embrulhos até ao quarto,onde nos escondemos o resto do dia, a noite e a manhã seguinte.Ambos tomamos as devidas providências: ela procurou o marido edesculpou-se não sei como; eu telefonei à avó explicando quedormia em casa de um condiscípulo, previamente avisado eencarregado de informar no liceu que eu me encontrava de cama,o que aliás era verdade.Da cama não saímos senão para ir à varanda, tiritando, ver o pálido nascer do Sol. Um cheiro a mar chegavado Tejo e de muito mais longe, das bandas enevoadas da minhainfância. Helena partia nessa mesma tarde e, à despedida, deu-meendereço e número de telefone, prometendo escrever, coisa em quenão acreditei.Durante a madrugada, a meio de um breve sono de não mais queuma hora, acordei e vi-a escrevinhando diante do toucador de trêsespelhos. Ocultara o candeeiro sob um lenço e tão atenta estava,que nem deu pelo meu olhar. Voltei a adormecer. Horas mais tarde,à porta de casa da avó, ao meter a mão ao bolso para procurar achave, dei com um envelope do hotel tendo dentro umas folhaspequenas com a larga letra de Helena. Era o meu horóscopo. Aocontrário das cartas amorosas, as especulaçÕes astrológicas têmqualquer coisa de anónimo, como um sapato adaptável aos pés maisdiversos. Sempre senti certa piedade pelos adeptos de crençasdestas. O cavaleiro Alcides, todavia, alertara-me para asmensagens cifradas nos sinais mais banais, que às vezesinterpretam acenos dos Céus. Sem totalmente acreditar emmessianismos, não excluí, nem excluo ainda, que algo deextraordinário me esteja destinado. Por isso li as ilaçÕes deHelena, que guardei para as conferir mais tarde, meio incrédulomeio assustado:

Chegado a esta vida sob o signo solardo Aquário com Capricórnio em fase final, São tem também Aquário no ascendente. Do aquático elemento e dacombinação complexa de água e terra deverá derivar sua

preferência pela mais despojada natureza, pela severa grandeza,pela concentraçÕes e a diferença. O estado de concepção, deenraizamento, de semente aguardando seu momento, poderá lhe darcerta tendência para o impessoal e saturnino disfarce, complicadopela exaltação de Marte. Daí um gosto acentuado por ser todomundo e ninguém, como se encarnasse o eterno masculino e não osimples indivíduo.A força e a fraqueza em reacçÕes inesperadas, e opostas emparte, tanto revelarão vontade de posse como totaldesprendimento. Retraído, metido consigo mesmo, em qualquer doscasos será atraído por utópicas causas. Nele se confundirá aética austera com a obsessiva atenção à exterioridade. Suasconstantes contradiçÕes talvez se manifestem de modos diversos:ora abdicando de si e aceitando servir o que o supera; oraseguindo Urano no sonho sobre-humano, ambicionando ultrapassartudo que antes foi feito pelos mortais.Qualquer destas manifestaçÕes é por princípio exclusivista;devidamente controladas, se alternarão em ciclos. Virado para oque de visceral houver na vida, quem nasceu nessa hora, nessedia e nesse sítio terá a tentação do desmedido, que perseguirá,se necessário, até ao heroísmo, não pela fama emsi mas pela própria empresa, ainda que perdida à partida. Mesmoque Aquário sobre ele adquira um duplo domínio, Capricórniogovernará a área do sentir e, em geral, do existir. Dedicado àpesquisa seria cientista; devotado às actividades em que asubjectividade predomine, tem os requisitos para se tornar umaespécie de artista. Qual destas vocaçÕes irá prevalecer, eis oque falta ver.No convívio feminino encontrará uma astúcia sem malícia, setiver a coragem de assumir o que os astros lhe deram. Para talprecisará de certa indiferença em relação à opinião que deletenham. A atracção pelo Leão, fogoso e afirmativo, o levará apreferir mulheres deste signo. Se casar, deve escolher mulherleonina. A não ser que alguma coisa excepcional lhe suceda oualguém excepcional lhe apareça, a sua índole não vai nestesentido. Após fases mais extrovertidas, voltará à superfície oseu lado discreto e dubitativo, e viverá períodos de prolongadoretiro.Outras posiçÕes planetárias presentes no instante do seunascimento: Vénus em Capricórnio, Marte em Escorpião. Da venéreainfluência provém uma sensibilidade excessiva e inclinada àmelancolia, contra a qual os homens deste signo se defendemprocurando ligaçÕes sem consequências, passageiros passatempos.Nesta conjugação, porém, tudo terá um especial talento paradurar, mesmo a agressividade provocada pelo poder de Marte. Masa pulsão mais constante será a venusiana...

Não li até ao fim nem me reconheci nesta caracterização, masno mesmo dia escrevi a Helena, ainda sob as impressÕes da véspera, como quedrogado pela veemência dos fulminantes afectos. Respondeu na volta do correio,convidando-me para uma temporada em Paris, o que nos não fariasenão bem, a ela e a mim. Seguiu-se o frenesim de umacorrespondência que coincidiu com a época em que as minhasderradeiras cartas a Clara vieram devolvidas com o carimbo dedomicílio desconhecido. Que Clara fosse telepaticamente avisadada minha deslealdade, isso não me espantaria. Quanto a mim,

achava-me no direito de distribuir carinhos a quem precisasse demim. Queria aliás salvar a péssima reputação do sexo masculino,que não pode gabar-se de um único santo que se desse a todas asmulheres, como a todos os homens se deram Santa Maria Madalenaou Santa Maria Egipcíaca.Calhavam optimamente as férias parisienses, visto que em breve completaria vinteanos, o que significava ir às sortes, ser apurado para todo o serviço eenlatado num avião ou num paquete para "defender as ProvínciasUltramarinas" contra a insurreição dos povos colonizados,"instigados por uma campanha de intoxicação internacional".Alcides e o primo porfiavam em mentalizar-me a "aceitar a minhaobrigação", ainda que o Império que pretendiam fosse o do SantoEspírito. Eu porém, por natural pacifismo, não estava dispostoa matar inocentes, a perder mil e muitos dias e quem sabe sea vida numa luta contra gente que queria ser livre. A minhamissão específica, se a tinha, não se compadecia com guerras semsentido.Assim que terminei enfim o liceu, lutei durante meses por umalicença para sair do país. Bati a várias portas, procurei omédico sintrense que me tratara na minha longínqua doença,esperei que ele me ajudasse a ser considerado inapto. O meu dedoa mais não estaria previsto nos regulamentos, embora as forçasarmadas gostem de mancebos sem defeito. Mas o médico morrera, evi-me forçado a recorrer à passagem "a salto", utilizada pordesertores, refractários e emigrantes sem documentos. Depois dealusÕes várias, à avó e aos pais, sobre a minha determinação denão me sujeitar ao serviço militar, entreguei-me, e às minhaspoupanças, nas mãos de um cigano contrabandista contactado porum colega meu que também queria escapar à criminosa estupidez deforçar povos africanos a serem europeus. Não isento de perigos, o percurso foi fértil em peripécias.Passámos de noite a primeira fronteira, a pé por matagais epedregosos cabeços da Beira, juntos com uma pequena manada degado que provocou picarescos percalços. Em Espanha andámos umasemana às voltas para escapar à Guardia Civil e aos controlos quese agravaram perto da fronteira francesa. Dormimos em plenocampo, enrolados em mantas, acordámos enregelados, comemos pãoe laranjas, fiquei com os pés ensanguentados de tanto caminhar.Receei não chegar inteiro a Bordéus, onde Helena me aguardavacomo combinado. Mas cheguei, e inteiro. Os sobressaltos valerambem a pena.Com paragens e desvios e noites em branco, levámos três diasde Bordeaux à Cidade-Luz, que eu só cheirara nos filmes eperfumes. Estava ansioso por ver logo tudo, e Helenaciceroneou-me pacientemente pelos locais inevitáveis. Nãomanifestou interesse em voltar a casa, talvez para não enfrentaro marido que ela alcunhara de Frère Jacques e que fora chamado ao Quai d'Orsay por questÕes profissionais. A minha futura anfitriãtranquilizou-me, garantindo que ele pouco tempo se demoraria emParis, e que nas horas livres se votaria à sua única paixão, oorientalismo. Pertencente a uma seita voltada para o sincretismoentre cristianismo e hinduísmo, reunia-se com outros fiéis numaigreja abandonada, perto da Rue des Mathurins, onde outroraexistira a Ordem da Trindade para a Redenção dos Cativos. Helenasó lá fora uma vez, ouvir um douto orador falando das afinidadesexistentes, no vasto universo e através dos tempos, entre as

trindades caldaicas e os trios formados por Osíris, Hórus e ísis,ou por Orfeu, Artemisa e Hermes Trimegisto, pelas três Parcas,pelo tripé das pitonisas, pelo triângulo maçónico, por tantosvestigia trinitatis com os seus omnipresentes símbolos.Intrigou-me a coincidência entre o culto de minha mãe pelaTerceira Pessoa da Santíssima Trindade e agora aquela espécie desociedade secreta dedicada ao Spiritus Inteligentine Sanctus.Nestes termos se lhe referiu o marido de Helena, amável e cortês,ao cumprimentar-me assim que subimos ao último andar do prédioonde eu exerceria os meus melhores ofícios.Após as perguntas da praxe acerca da viagem, dos meus segurosdissabores com as pátrias autoridades se um dia decidisse voltar,e dos meus planos de trabalho em Paris, desconfiei que a ajudade Helena, para lá da paixão, teria outros motivos. O diplomáticoFrère Jacques convidou-me a participar numa sessão "de grandeelevação" dessa associação sobre cuja existência me falaraHelena. Recusei ironizando que os meus princípios não mepermitiam aderir a nenhum grupo não fundado por mim. E que, maisque os cultos do oculto, preferia contactos concretos e reais.A boa educação de Jacques aconselhou-o a despedir-se quandoHelena começou a abanar a cabeça, impaciente. Assim que eledesceu ao seu piso, a minha anfitriã propôs-se mostrar-me todoo andar e a minha menos confortável chambre de bonne sob o sótão,em que porém não pernoitei..A companhia de Helena e a anterior conversa de Jacques não medeixaram dormir descansado. Sonhei com um ritual triádico em queJacques, paramentado em trajes prelatícios que lhe não ocultavamas pernas demoníacas, segurava entre dentes um dos braços docrucifixo igualmente metido na boca de uma feia figura femininacom um godemichet ridículo, a qual com a mão esquerda ajudava alevitar um hominídeo que por sua vez abocanhava com apetite ocimo do crucifixo. De pé num trapézio, empunhando uma corneta emascarado numa fatiota iniciática, testemunhei contra vontade arepugnante dança em volta do Crucificado.De manhã contei estas cenas a Helena, que me disse que nãodesse ouvidos ao marido. Mais me valia alinhar na SUCH, sociedadede que ela era a principal animadora em França.Cavalheirescamente aceitei, bastando-me para isso o seu pedido,sem saber ainda em que me metia. Só depois lhe perguntei de quesociedade se tratava, e qual a minha tarefa. Que não mepreocupasse, que eu era a pessoa mais preparada para o que demim se requeria. Fiquei boquiaberto perante a decifração dasiniciais: Société pour l.usage Convenable des Hommes! Pensei emtudo menos na explicação que, muito instada, acabou por me dar.Julguei aquilo um negócio de hôtesses no masculino, paraacompanhar mulheres que detestassem sair ou comer sozinhas. Todasas semanas desembarcavam em Paris senhoras e senhoritaspertencentes à Société, com quem eu era encarregado de visitarmuseus e galerias, almoçar, tomar chá ou jantar fora, apanhar are caminhar pelos jardins, até mesmo ir ao dentista. Só pouco apouco me apercebi da amplidão das minhas atribuiçÕes.Surpreendeu-me a princípio que todas as sócias instaladas emhotéis me convidassem a tomar um digestivo no quarto. Compreendienfim que tais feitos vinham ao encontro da minha vocaçãooriginal, e que não estavam acima das minhas possibilidades.De tal forma me capacitei da sublimidade deste talento que,

quando por qualquer razão uma reserva falhava e eu ficavasubitamente desocupado, ia matar saudades dos tempos de juventudeirresponsável, andava pelas ruas, pelo metro, pelos cais, faziaolhinhos a mulheres e meninas que cruzassem comigo, que sesentassem à minha frente ou que, nas esplanadas, apanhassem sole vissem quem passava. Flanando ao acaso, parando nas montras,entrando em cafés ou livrarias, indo ao cinema ou ao teatro,sempre farejava alguém disponível, ou alguém esbarrava em mim.Como aquele escrivão de Melville que, cada vez mais concentradona escrita, passa a dormir no escritório, incapaz de respirarlonge do pó dos livros e manuscritos, assim me fui tornandodependente do meu diurno e nocturno contributo para a felicidadefeminina. Como um vedor de águas subterrâneas me treinei, numrelance rápido, a detectar as mais abordáveis. Não as que sefaziam logo ao piso, demasiado descaradas. As tímidas davam maiorsatisfação espiritual, por corarem e desatarem a entortar os pése a mexer nos cabelos, mal metia conversa com elas. Qualquerpretexto servia, até o corriqueiro perguntar pelas horas, algumasvezes suficiente para gaguejarem a resposta ou entornarem o caféno colo.No primeiro verão parisiense desforrei-me em todos os tiposde conquistas. Mas no outono matriculei-me em História naSorbonne, cada vez mais interessado num passado que desejavadesvendar. Senti a certa altura que o estudo da História era amelhor maneira de estar mentalmente com Clara. Só que a novacondição de estudante-trabalhador não facilitava as coisas. Saira correr das aulas para ir ter com alguma das senhoras da SUCH,passar o dia ocupadíssimo, rever Helena à noite e a custo meseparar das exigências dos seus braços, subir enfim à solidão domeu quarto onde os livros me esperavam, eis o que tornavaextenuantes as minhas semanas. Temi pelo meu equilíbrio, apóstantas horas de contactos seguidos. Para quem cresceu longe das multidÕes, a variada e continua convivência chegava a serviolenta. Mesmo que os gozos me defendessem dos humoresmelancólicos, necessitava de umas horas comigo para não me perderde vista. Se caía de cansaço na cama, muitas vezes sem me despir,punha o despertador para quatro horas mais tarde e estudava demadrugada até Helena me levar o pequeno-almoço e me chamar aosfervores matinais.Com uma resistência que hoje me surpreende, obtive resultadosrazoáveis no primeiro ano, o que me animou a prosseguir um cursoafinal apaixonante. Entretanto, là-bas, a Revolução dos Cravosresolvera as insolúveis guerras coloniais, e o meu exílio perderaa sua razão imediata. Mas nada me garantia que, ao regressar, asteias da tropa me não caçassem, agora que eu tomava gosto aosaber e cumpria cabalmente o meu dever. Além da História, comaulas opcionais de Grego e Latim, interessava-me progredir naprática das línguas várias que dentro e fora dos lençóis iaaprendendo, como fui melhorando as minhas maneiras à mesa. A somade conhecimentos adquiridos nos anos de Paris fez-me avançar aum ritmo jamais imaginado, com visíveis vantagens para visitantese visitadas. Percebi então toda a profundidade de um paternoapotegma que antes me parecia mera rima: Paris não é um grão de anis.O elevado valor de uso e de troca que a Sociéte me atribuíadava-me um sentimento de responsabilidade social, obrigando-me

a manter a melhor forma física, a ginasticar os músculos dorsaiscom cinquenta flexÕes todas as noites sobre o chão do quarto, anão me permitir nem um grama de gordura na barriga, a andar a péo mais possível, cruzando Paris em todos os sentidos. Semdisciplina ninguém constrói nada de durável, e o meu desejo nãoera para menos.As coisas só se complicaram quando, pouco a pouco, a minha modesta pessoa foisendo cada vez mais requisitada, ou porque aumentou assustadoramente onúmero de associadas ou porque os Movimentos das Mulheres, nãose contentando com a Queima dos Soutiens, exigiam com sucesso alibertação total do belo sexo. Embora eu estivesse sempre,sempre, ao lado delas, e por muito que desse o corpo aomanifesto, o homem tem limites. E eu aproximava-me do colapso.Várias das sócias mais contestatárias pretendiam à viva forçao direito ao meu exclusivo e, na exaltada Assembleia GeralExtraordinária do meu terceiro ano parisiense, Helena saiuvencida pela Frente Unitária das suas inimigas, perdendo osprivilégios adquiridos. A maioria decidiu que eu deveriaabandonar o apartamento dela, sobre a Rue des Saints-Pères e oQuai Voltaire, e ser transferido para a sede da multinacional,em Nova Iorque, de que a SUCH era sucursal. Escusado será dizerque não aceitei. Por carta registada com aviso de recepçãocomuniquei a Helena, não enquanto minha amiga mas enquantoPresidente Directora-Geral, que agradecia toda a hospitalidadedispensada, mas que me desligaria das minhas venéreas veneraçÕesa partir do verão seguinte, logo que terminasse os exames naSorbonne, regressando então ao meu país.Claro que Helena reagiu abespinhada. Acalmei-a com certascarícias e com a promessa de visitá-la um dia mais tarde, atítulo privado. Como eu entraria clandestinamente em Portugalpara não ser apanhado pela trampa da tropa, ela comprometia-seem contrapartida a expedir, em ritmo regular, as cartas epostais, sobretudo os de aniversário e de Natal, que eu deixavaescritos e pós-datados para a avó e os pais. Quanto às respostasdeles, Helena faria o favor de mas remeter à Posta Restante emColares, onde vou agora todas as semanas.Assim que voltei a respirar os ares nativos, tratei depreparar a vinda para a Peninha, cujos caseiros conheço desdepequeno e me facilitaram por isso, sem contar a ninguém, estaestada aqui. Trouxe economias suficientes para sete meses.Inquieta-me o que me espera. Mas dúvida e desassossego são fiéiscompanheiros.

Capítulo 6

A nevoaça veio de manhã esvoaçando rente ao mar e agarra-seagora às rochas da costa, à orla das praias e ao cimo da Serradonde não se dispÕe a largar. O céu limpo e as temperaturasaltas, anunciadas pela rádio, devem referir-se a outro país.Aqui, neste isolamento, envolto nesta espécie de manto de brumaencharcado em água, é inverno cerrado, embora haja sol a meiadúzia de quilómetros. Sintra é assim: um microcosmo e ummicroclima. Mas a bruma não me incomoda nada, condiz com a minhaclausura e o meu cansaço. Cansaço não bem físico, embora no corpose reflicta, e que me acomete com o ímpeto de um espíritomaligno. Fecho-me sobre mim, volto costas ao mundo demasiadovasto para a minha fadiga. Não me sinto triste nemcomplacentemente deprimido. Apenas me apetece ficar fora de tudo,entorpecido e mudo, com vontade de dormir, de me ausentar doesforço de existir. Perco qualquer curiosidade, desinteresso-mede todo o género de projectos e, enrolado no casulo de mim,nenhum terror me atinge. Caio numa opacidade sem desejos, numaapatia conformada consigo. Não se trata daquela estafadela fluidae feliz que sucede aos actos do amor, aos trabalhos terminadose bem conseguidos. É antes um estado plúmbeo, impávido, numaesfera impenetrável ao sofrimento e ao prazer, indiferente àespera e ao desespero.Até que, sem razão aparente, saio dessa tépida inércia e voltoeufórico à vida que de novo me fascina. Este sol de julho, apesarde caprichar em se ocultar, madruga muito, e vagueio horasseguidas pelos matagais, verificando com espanto as alteraçÕesda vegetação, as cores, os sons, os cheiros diferentes dia após dia. Armado em entomologista, contemplo comovido afrenética azáfama das formigas, liliputiana lição que me vacinacontra quaisquer veleidades. Nos períodos de eclipse não reparoem nada, nem os bichos reparam em mim. Mal regresso à superfície,logo os cães se aproximam joviais de rabo a abanar, e um ou outrome acompanha nas minhas andanças.O reencontro com estes lugares faz-me pensar constantementeem Clara, e hoje desatei a sorrir ao passar por uma cerejeiracarregada de frutos já maduros. Ia a pé pelos íngremes atalhosaté à Adraga, entre minúsculas hortas separadas por muros decaniço e pedregulhos, quando aquela árvore solitária no meio de limoeiros merecordou um dos muitos episódios que Clara me contou durante as nossasexpediçÕes pelo passado um do outro.Numa tarde de verão que ela classificou como o verão de todasas vergonhas, e em que os pais a deixaram com a governanta nacasa de férias junto do mar, Clara voltava sonolenta da praiaquando deu de caras com a cerejeira do jardim toda enfeitada depensos usados. Corada até à raiz dos cabelos e a custo contendoo riso, pensou que a Providência, mesmo com atraso, sempre nosapanha para nos apontar a dedo. A governanta, em pânico e impantede indignação, acusou de ultraje ao pudor os operários queandavam a reparar o telhado. Tinha-se-lhes deparado, no forro dotecto, atrás das traves, uma dúzia de pensos endurecidos pelosangue seco, e não se lembraram de mais nada senão de pendurá-losna mais bela árvore do quintal. Perturbada mas sem perder acalma, Clara atirou as culpas para cima de uma empregada muitonova e que recentemente se fora embora. Jamais admitiu ter sido

ela própria a esconder esses corpos do delito entre as tábuas dosótão, onde ficava tardes inteiras a ler, num desleixo causadopelo nojo e pela preguiça de descer e deitar aquilo no caixotedo lixo. Pensava fazê-lo mais tarde, depois de secarem, masfreudianamente acabara por esquecer-se. Admitia que as súbitasalteraçÕes no seu corpo adolescente a tinham assustado, eobservara com desagrado o crescimento dos seios, que aembaraçavam ao jogar ténis. O primeiro soutien foi para ela umaarmadura, piores porém eram os sofrimentos mensais, sobretudo porcausa dos inestéticos acessórios que camuflava ao máximo. Só aospoucos se conciliou com esse tributo à natureza feminina, o queme maravilhou por ser tão diferente do orgulho com que assistiàs espantosas metamorfoses da minha entrada na idade viril.Não me considero um debochado condenado aos fogos infernais,embora durante os anos de aprendizagem me tenha divertido einstruído o sacro ^fallÕs, o ªprñapos pessoal, o meu instrumentomusical, a tuba, a gaita, a flauta, a trombeta, o trombone, obacamarte, o taco, a verga, o cacete, o aparelho, o viço, a piça,a peça, a alfaia, o bastão, o pau barbado, o príncipe valente,o bem-humorado, o malandreco, o amigo certo, para o qual não háhipérbole à altura dos seus méritos. Gostaria sobretudo de sero derradeiro cavaleiro do amor, aquele cujo principal órgãoerótico eram os olhos, segundo Clara. Graças aos olhos? creio,ela passou a dizer: "Sebastião, não tires a mão!"A ferida da nossa separação não está sarada, sangra até semser tocada. Clara sobrepÕe-se a todas as outras mulheres, e aemoção que esta descoberta me provoca traz-me à memória o remédioque inventámos para combater obscuros medos: adormecíamosenlaçados, o meu membro erecto entre as suas pernas. Baptizámosessa secreta medida preventiva de o nosso seguro de vida, prontopara o que der e vier.Por muito que me agrade a travessia dos anos idos, souobrigado a reconhecer que não me trouxeram senão ao ponto de ondeparti. E não me refiro só à geografia; o percurso por dentroainda avançou menos. Continuo ignorando quem sou eu. Se fui quemhoje julgo ser, se sou quem dizem que fui, se nunca serei maisque não saber quem sou ou quem serei, mesmo assim valeu a pena.Alguma coisa aprendi: quem não quero ser. Não quero ser, porexemplo, o simples gozador, o engatatão preocupado com asatisfação da sua vaidade, o sedutor de lábia fácil, disposto emqualquer momento a entoar a "canção do bandido". Por mim, tenhodificuldade em perceber o meu razoavelmente bem sucedido acessoàs mulheres. Nem lhe chamo sucesso; quando muito trata-se de umapostolado laico, de uma campanha contra a frustração, a tristezae o desespero nas femininas fileiras. Não me incluo na classe dosdevassos nem dos que gostam de armar para impressionar, dos queconhecem todas as jogadas e lhes basta orientar convenientementeos passes e assaltos, ora pedindo ora impondo, ora exibindoardores devoradores ora simulando displicência, ora ao ataque oraà defesa.Sempre me dei bem com mulheres, mas a minha preferência vai para as tímidas ediscretas, em geral mais sensíveis. Sou alérgico às que, como Julieta, falamde mais sobre isto e aquilo, desde o almoço da véspera até aosachaques da vizinha. Não foram os esforços eróticos que iam dandocabo de mim em Paris, foi a odisseia de escutar horas a fiomulheres confiando-me as suas vidas. E quando as vidas eram

vidinhas, não havia consolação que resistisse. Fui confessor àforça e nesse ingrato papel aprendi que o excesso de conversa éa pior perversão de certas donas e donzelas. Se não aguentavamais a logorreia das convencidas de si e das Julietassoporíficas, levava-as a um concerto que as obrigasse a estaremcaladas ou ao Louvre onde se esfalfavam a palmilhar sala apóssala. Mesmo assim achava preferível a companhia delas a ter que aturar asbazófias, balelas e verdades eternas dos representantes do meu sexo.Uma das minhas raras amizades masculinascomeçou pouco antes de eu deixar Lisboa, e mantive-a durante oexílio. Quando ia a um museu ou via nas livrarias postais dequadros de que esse amigo devia gostar, comprava alguns para lheescrever telegráficas notícias em estilo de folhetim. Pouco maisvelho que eu, conheci-o na estroinice lisboeta e, enquanto euviajei e vadiei, ele terminou Medicina, embora a sua paixão fosseo desenho. Desenhava imenso, desde pequeno, o que o ocupava mesmonas aulas. Filho único como eu, o curso era o seu modo de satisfazeras esperanças desmesuradas que os pais nele depositavam.Antes do meu regresso telefonei-lhe sem mencionar o meu nome,exagerando os cuidados em relação a possíveis escutas policiais,e perguntei-lhe se me albergaria por uns dias. Disse logo quesim. Entre gargalhadas combinámos que ele reservaria uma mesapara dia tal almoçarmos em Évora, no Fialho. Enquanto refractárioao serviço militar, só clandestinamente eu podia voltar. Foi oque fiz, escondido num camião TIR até Évora, onde reencontrei omeu amigo tão magro e abatido que mal o reconheci. Entre Évorae Lisboa falei-lhe do meu planeado retiro espiritual na Peninha.Ao entrarmos no apartamento que ele partilhava com um galgoafegão etéreo como um fogo-fátuo, as suas aguarelas às centenas,encostadas a todas as paredes e cantos da casa, deixaram-me semrespiração por uns momentos. Por ali deambulava uma fauna irónicae feroz, parente ou aderente da que sai dos meus sonhos. Fiqueisiderado diante daquele bestiário de seres mais ou menos humanos,daquela irrisão e zombaria de todas as formas de vida, terrestreou celeste, animal ou anímica.Numa das manhãs seguintes partimos de carro, sob um sol forteapesar do frio, e com as parcas coisas indispensáveis, emdirecção a este recolhimento desabrigado e contudo protegido dabarafunda, da multidão e do barulho. Da mesma maneira que certaporção de água tanto cabe num copo estreito e alto como numbojudo e baixo vaso, assim também a tudo me adapto, desde osluxos e luxúrias à presente austeridade. Como se o eu não fossemeu, como se não me reconhecesse em todas as acçÕes e amores ediálogos de que se diria que fui protagonista ou em quesimplesmente tomei parte sabendo-me exterior ou excluído.Não corre mais quem caminha, mas quem mais imagina. Estasensata sentença de meu pai várias vezes me ocorreu nos temposem que corri atrás de mundos e mulheres. Fiz o que o Outro nãofez. E contudo, que teria eu feito de mim se nunca tivessedeixado este Promontório Lunar, esta serra de Sintra, que dizemter sido dedicada a Cynthia, onde o vento não descansa jamais e,quando se enche de furor, brama e berra e tão potente é, quesegundo os antigos peja as éguas bravas só com o seu hálito?Não admira que, em tão ásperos sítios, as pessoas procuremamenizar o invisível, preenchendo-o de histórias para afugentar assombraçÕes edomesticar as noites temíveis. Hoje mesmo os caseiros me

segredaram que na próxima noite de sexta-feira, desde que a luanão se veja, surgirá por aí um touro enorme, com uma estrelabranca entre os cornos. Se alguém o ferir nessa estrela, o reiSebastião há-de aparecer, vindo do fundo do mar ou da IlhaEncoberta onde se esconde há quatro séculos.Esta história faria as delícias da avó Catarina. Tenho sabidodela e dos meus pais pelas cartas que vou recebendo via Paris.No Natal, na Páscoa e nos aniversários respectivos telefono-lhesda Azóia, como se fosse de Paris. Desde que meu pai passou àreforma, os três moram na casa de Lisboa. Meu pai tornou-semarinheiro em terra, reúne-se com amigos em duvidosas tascasperto do porto, empolando aventuras por mares nunca maisnavegados.Ao sair de sonhos agitados, apetecia-me a companhia deCatarina, sempre pronta a desensarilhar as malhas pela noitetecidas. Ninguém sabe como os sonhos tomam conta de nós, se nosabandonam ou se os abandonamos ao acordar, se fazemos nocturnasvisitas ou se somos nós os visitados, se são nossas as imagensou se nos são emprestadas.Seja sonho meu ou desenho do meu amigo que todos os meses metraz novos esboços, ultimamente aparece-me de noite uma figuranua que podia ser meu duplo e que vem em silêncio, calçando luvascompridas, usando na cabeça a mitra dos dignitários e príncipes.Pára diante de mim e apoia numa rocha a grossa espada, de punhoescamoso terminado em boca de drago. Está rodeado por quatromonstruosos animais, como os símbolos dos Evangelistas cercamo Filho do Homem nalguns ícones, e representam o sal do desejo,o pez da nostalgia, o mercúrio do movimento, o enxofre damelancolia. Como-se eu fosse um sol, sete estrelas giram à minhavolta. São as Plêiades, da constelação do Touro, simbolizando assete solidÕes, e as sete servidÕes, e as sete libertaçÕes que selhe seguem, e de cada uma delas chega o som da palavra "eterno"que sete vezes se repete no final da Canção da Terra.Tranquiliza-me de repente a evidência de que aquele Sete-Estrelome há-de guiar pela vida fora e me há-de defender de morrer cedo.

O Autor e a Obra

Almeida Faria nasceu em Montemor-o-Novo (Alentejo), a 6 deMaio de 1943. Em Lisboa frequentou as Faculdades de Direito e deLetras, sendo licenciado em Filosofia, e é actualmente professorde Estética na Universidade Nova de Lisboa. Viveu como escritorresidente (1968-69) nos Estados Unidos (International WritingProgram, Iowa City) e em Berlim, onde fez parte do BerlinerKünstlerprogram no qual participaram, entre outros, Gombrowicz,Michel Butor, Peter Handke e Mario Vargas Llosa. Tem colaboradoem diversas publicaçÕes colectivas, nomeadamente em revistasalemãs, brasileiras, francesas, holandesas, italianas, suecas enorte-americanas. Os seus romances foram objecto de várias tesesuniversitárias em Itália, Holanda, Brasil e França. Em 1979seleccionou e traduziu Poemas Políticos de Hans MagnusEnzensberger.Ficcionista e ensaísta, Almeida Faria obteve o PrémioRevelação de Romance da SociedadePortuguesa de Escritores com o livro Rumor Branco (1962),confirmando depois a sua maturidade literária com A Paixão(1965), primeiro romance de uma "Tetralogia Lusitana" de quefazem parte Cortes (1978) Prémio Aquilino Ribeiro da Academia dasCiências de Lisboa, Lusitânia (1980) - Prémio Dom Dinis daFundação da Casa de Mateus, e Cavaleiro Andante (1983) - PrémioOriginais de Ficção da Associação Portuguesa de Escritores. Osseus livros estão traduzidos em várias línguas.Almeida Faria publicou ainda o conto Os Passeios do SonhadorSolitário (1982) e o ensaio Do Poeta-Pintor ao Pintor-Poeta(1988). O seu último romance, O Conquistador, foi dado à estampaem 1990.