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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO UNISAL CAMPUS MARIA AUXILIADORA Douglas Martins de Oliveira ALIMENTANDO PERSPECTIVAS DE VIDA: contribuições de um curso de panificação industrial na promoção da revinculação familiar de crianças e jovens em situação de acolhimento institucional Americana 2016

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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO

UNISAL – CAMPUS MARIA AUXILIADORA

Douglas Martins de Oliveira

ALIMENTANDO PERSPECTIVAS DE VIDA: contribuições de um curso de

panificação industrial na promoção da revinculação familiar de crianças e jovens

em situação de acolhimento institucional

Americana

2016

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Douglas Martins de Oliveira

ALIMENTANDO PERSPECTIVAS DE VIDA: contribuições de um curso de

panificação industrial na promoção da revinculação familiar de crianças e jovens

em situação de acolhimento institucional

Dissertação apresentada à Comissão Julgadora do

Centro Universitário Salesiano de São Paulo, como

exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em

Educação sob a orientação da Professora Dra. Fabiana

Rodrigues de Sousa.

Americana

2016

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Oliveira, Douglas Martins de.

O46a Alimentando perspectivas de vida: contribuições de um curso de

panificação industrial na promoção da revinculação familiar de

crianças e jovens em situação de acolhimento institucional / Douglas

Martins de Oliveira. – Americana: Centro Universitário Salesiano de

São Paulo, 2016.

120 f.

Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL – SP.

Orientadora: Fabiana Rodrigues de Sousa.

Inclui bibliografia.

1. Acolhimento institucional. 2. Educação popular.

3. Educação sociocomunitária. 4. Revinculação familiar.

I. Título.

CDD 362.732

Catalogação elaborada por Lissandra Pinhatelli de Britto – CRB-8/7539

Bibliotecária UNISAL – Americana

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pelo livre arbítrio, num desejo de levar a vida com mais fluidez e

amorevolezza. Obrigado meu eterno Herói por se fazer tão presente a cada alvorada!

À minha esposa Cláudia, pelo seu companheirismo que transcende uma relação

matrimonial, me encorajando a enfrentar os desafios e me apoiando com sua personalidade

marcante ou até mesmo num belo sorriso, numa jornada histórica que nos acomete desde o dia

que eu a conheci aos dias que passamos e passaremos juntos!

À professora Fabiana, minha orientadora, pela confiança na realização deste trabalho,

partilhando comigo sua atenção, seus conhecimentos além das prozas boas da vida,

proporcionando enriquecer os desafios num caminho que viria a ser descoberto e

experienciado, galgando assim meu crescimento.

Ao professor Severino a quem tive como exemplo pelos encantos de suas aulas que

contribuíram e me incentivaram nesta caminhada e que sempre levarei comigo sua simpatia e

sua visão poética da vida!

À professora Regiane, quando na qualificação tive o privilégio de poder contar com

suas contribuições que foram tão relevantes para a conclusão deste trabalho, apontando

caminhos que favoreceram elucidar a clareza das palavras numa interpretação simbólica do

contexto.

A todos os colaboradores do Lar Feliz, que sempre me acolheram e cada um de alguma

forma colaborou para que pudesse realizar meu trabalho!

A todas as crianças, jovens e familiares do Lar Feliz, pelos momentos vividos, por me

permitirem ensinar e aprendermos juntos.

Aos participantes deste trabalho, pela confiança e boa vontade, por abrirem o livro de

suas vidas me fazendo compreender suas histórias para que pudéssemos atingir nosso objetivo

de dialogar.

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RESUMO

O presente estudo buscou analisar as contribuições de um curso de panificação industrial

realizado dentro de uma instituição de acolhimento (casa abrigo) para a promoção da

revinculação familiar. Consideramos pertinente ouvir os familiares que participaram deste

curso, buscando conhecê-los com mais afinco na expectativa de identificar suas considerações

valorativas, os significados e sentimentos que são atribuídos ao curso e ao contexto familiar,

tendo o alimento e a atividade alimentar como um fomento à revinculação e consolidação de

processos de ensino e aprendizagem. Para compreender a realidade do cenário no qual

estávamos envolvidos, destacamos recortes históricos da situação de acolhimento institucional

no país paralelamente ao desenvolvimento do terceiro setor. A pesquisa configurou-se como

estudo qualitativo tendo como sujeitos da pesquisa quatro famílias, constituídas por dois

casais e duas mães que aceitaram participar da pesquisa e que foram as vozes da entrevista.

As informações foram obtidas por meio de entrevista narrativa aplicada aos participantes, em

momentos particulares a cada envolvido, contendo perguntas abertas que foram transcritas e

analisadas posteriormente. Os resultados da pesquisa demonstram que a revinculação familiar

é alimentada no curso de panificação por meio de aprendizagens que envolveram uma nova

postura de consciência crítica diante de suas próprias vidas, ao relatarem a importância de

prezar pela boa convivência familiar e no relacionamento com outras famílias em situações

semelhantes, resgatando valores humanos como carinho, compaixão, alteridade, repensar

sobre suas atitudes e comportamentos, o prazer de estar e conviver em família, num sonho que

foi governado pelo desejo de tornarem-se pessoas melhores para si próprias e para seus

descendentes. Apontamos, ainda, que os princípios da Educação Sociocomunitária e da

Educação Popular fomentam novas possibilidades de uma educação humanizadora nos

abrigos para que seja possível realizar uma aproximação mais efetiva dos familiares,

favorecendo assim a revinculação familiar.

Palavras-chave: Acolhimento Institucional. Educação Popular. Educação Sociocomunitária.

Revinculação Familiar.

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ABSTRACT

This present study aimed to analyze the manufacturing bakery course’s contributions,

performed inside a host organization (shelter) that promote family reintegration. It was

relevant to consider hear the relatives who participated in this course, trying harder to know

them, holping identify their valuative, meanings and feelings considerations attributed to the

course and the family context, presenting food and cooking practice as a reposition and

consolidation of teaching and learning processes. To understand the setting reality, we are

involved, it was needed to highlight historical moments about the situation of care institutions

in the country alongside the development of the third sector. The research configured as a

qualitative study, it take for subjects four families, they were formed by two couples and two

mothers who agreed to participate and they were the interview voices. Information was

gathered through interview applied to participants at particular points one at a time, with open

questions later transcribed and analyzed. The research’s results show that family reconnection

is fed in the baking course through learning, involving a new posture of critical conscience

toward their own lives, reporting the good cherish family life and relationships importance

with other families in similar situations, rescuing human values like affection, compassion,

otherness, rethink their attitudes and behaviors, the pleasure of being and living in the family,

a dream that was governed by the desire to become better with themselves and their

descendants. We point out also that the principles of socio-communitarian Education and

Popular Education foster new opportunities for a humanizing education in shelters so that it

would be possible achieve a more effective approach of the family, promoting this way,

family relinking.

Key-words: Institutional Shelter. Popular Education. Community Education. Family

Reintegration.

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SUMÁRIO

MEMORIAL .............................................................................................................................. 8

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12

1 - A EDUCAÇÃO COMO UMA POSSIBILIDADE HUMANIZANTE .............................. 16

1.2 - UMA BREVE ABORDAGEM SOBRE O TERCEIRO SETOR .................................... 26

2 - A SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL ................................................ 29

2.1 - O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E A REVINCULAÇÃO FAMILIAR ............. 36

2.2 - O ABRIGO PROJETO LAR FELIZ E O CURSO MÃO NA MASSA .......................... 47

2.2.1 - CONHECENDO O LOCAL E A EQUIPE DE TRABALHO ..................................... 55

2.2.2 - O AMBIENTE E O DESENVOLVIMENTO DO CURSO MÃO NA MASSA ......... 59

3 - PERCURSO METODOLÓGICO ....................................................................................... 62

3.1 - OBJETIVOS E NATUREZA DA PESQUISA ................................................................ 62

3.2 - CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA .................................. 65

3.3 - PROCEDIMENTOS PARA COLETA DE DADOS: ...................................................... 67

4 - O SABOR DA VIDA... AO DEGUSTÁ-LA ...................................................................... 69

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 95

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 100

APÊNDICE A - CARTA DE APRESENTAÇÃO DA PESQUISA ..................................... 104

APÊNDICE B - TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS .................................................... 105

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MEMORIAL

Escrever este Memorial me faz ir ao encontro comigo mesmo através de trajetórias

significativas que me fizeram decidir, escolher e enfrentar os caminhos. Nessa jornada tão

enriquecedora, trazemos na bagagem os nossos valores, grandes aprendizados realizados na

experimentação e na vivência, juntamente com um compartimento todo especial: a família.

Nasci em 18 de julho de 1984, segundo filho de Helena Martins de Oliveira e Sinésio

Sílvio Oliveira Rodrigues e irmão de Diego Martins de Oliveira. Mineiro da cidade de Poços

de Caldas - MG, local onde passei toda minha infância e adolescência, sempre rodeado de

amigos e pelos meus familiares onde sempre nos encontrávamos aos domingos para o

tradicional almoço na casa de meus avós.

Desde muito cedo tive contato com a sala de aula, minha mãe era professora de

Biologia e muitas vezes eu e meu irmão acompanhávamos o ambiente acadêmico. Como eu

gostava de ir para escola com ela, me orgulhava de ver minha mãe ali com os alunos. E em

casa ela sempre me ensinava, mas não era somente a ler e escrever, ela passava para mim a

tradição da família: a culinária! Sempre muito curioso ficava a seu redor quando ia cozinhar e

ela com toda sua paciência sempre me dava oportunidade de colocar a mão na massa, lembro

como se fosse hoje dos primeiros pratos que preparei.

Meu pai desenhista mecânico, foi e sempre será meu grande exemplo de hombridade, a

maneira como ele foi educado pelos meus avós, conferiu a ele a sua nitidez. Algo tão

encantador que me chamou a atenção desde pequeno, quis ser meu pai diversas vezes e

atualmente por não o ter tão perto de mim como gostaria, vejo que sou tão semelhante a ele no

lado pessoal e profissional.

Sei que meus pais nos criaram, refletindo em nós aquilo que eles eram e desejavam.

Frases de efeito sempre foram alimentadas e muitas vezes foram um de nossos alicerces

“meus filhos serão fortes, sadios inteligentes responsáveis e bonitos”, “tu te tornas

eternamente responsável por aquilo que cativas” 1, além de tantas outras que não me recordo

mais, que eram faladas para corrigir, educar e sonhar. Em muitas situações o silêncio e a

maneira de se expressarem facialmente já diziam tudo quando algo não estava saindo como

aquilo que eles consideravam correto.

1 SAINT-EXUPÉRY, Antoine. de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Agir. 1986. p. 68

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Fomos o sonho e frutos de um amor advindo desse casal, em nosso lar, nunca

deixaram faltar amor, tínhamos a convivência, fazíamos nossas refeições procurando respeitar

os horários e com todos sentados à mesa. A escola era muito próxima da casa que morávamos

e a rua se tornou um ambiente de diversão e liberdade, aos finais de semana íamos visitar

nossos avós, percebíamos que havia até uma espécie de ritual, nossos pais caprichavam na

nossa aparência, meu pai como de costume sempre estava vestido socialmente e minha mãe,

com sua notável beleza, parecia estar mais radiante.

Meu irmão, outra figura marcante na minha vida, o qual eu tive e tenho o privilégio de

tê-lo como irmão. A diferença de idade é de aproximadamente um ano e meio, então podemos

viver grandes momentos juntos, pois a idade e a maturidade estavam bem próximas.

Convivíamos nos mesmos espaços, tínhamos os mesmos amigos, as mesmas brincadeiras,

enfim, ele sempre estava ao meu lado. Meus pais me criaram tendo ele como um espelho, pois

ele era o mais velho e a ele era dado um dever de cuidar e me proteger. Acredito que tínhamos

tantas liberdades e afetividade que não sentíamos isso como uma obrigação ou um dever, não

era um fardo era um grande prazer.

Esse prazer de tê-lo e admirá-lo, confesso que foi algo tão orgânico, simbólico ou

natural que seja involuntariamente tenho ele como um segundo pai. Se algum dia alguém me

perguntasse “se lhe fosse dado o poder de ser alguém quem você gostaria de ser?”

Responderia no ato: “O meu irmão Diego”. A irmandade que nos identificam ficará por toda

vida e quem sabe possamos multiplicar esse espírito de amor aos nossos futuros filhos e nas

pessoas que convivemos, deixando algo de bom para o mundo.

Toda minha vivência foi marcada por um tripé, no qual eu me sustentava, meu pai,

minha mãe e meu irmão. Os desejos dessas três figuras lapidavam a minha maturidade

fazendo acreditar num sonho de liberdade, confiança e coragem.

E então chegou a hora de escolher o caminho a seguir, terminei o segundo grau e optei

por fazer cursos técnicos ligados a Gastronomia, minha primeira professora chef de cozinha

foi Ana Cristina Maio, figura exponente de uma culinarista, a qual eu devo todo meu respeito

e carinho. As contribuições que ela construiu no meu desenvolvimento formaram em mim o

conhecimento necessário para que eu me tornasse aquilo que eu viria a ser um dia, um chef de

cozinha. Muitas vezes não damos a atenção necessária àqueles que passam por nós, mas

devíamos parar um pouco que seja e darmos credibilidade às simbologias do outro ser. Digo

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isso porque minha formação foi incentivada por uma bela professora que acreditou no meu

potencial e alimentou meus sonhos.

Esta fase foi de grande importância para decidir a graduação juntamente com calorosa

contribuição do meu irmão que acreditava no meu potencial. Na visão dele teria que fazer

escolhas na vida e buscar fazer sempre o melhor, o melhor enquanto futuro trabalhador, o

melhor para as pessoas, o melhor para mim, enfim, deixava bem claro que essas escolhas

demonstrariam quem eu era, quais eram meus valores, quem sou eu afinal e o que quero.

Sempre procurando ouvi-lo e interpretando-o, deixei Poços de Caldas e fui morar em São

Paulo, em 2006, onde me graduei em Gastronomia pela faculdade Anhembi Morumbi.

O caminho para docência ainda estava um pouco distante, pois para ensinar era

necessário incorporar novos aprendizados e praticá-los. Então procurei galgar minha carreira

enquanto culinarista, em diversos setores da área de alimentos e bebidas, como restaurantes,

bistrôs, buffets, assumindo o posto de chef de cozinha de uma rede hoteleira. Nesses quatro

anos, pude adquirir grandes aprendizados que envolvem a carreira profissional, onde adquiri

experiência, conhecimento e habilidade. Comecei a obter maior clareza e certeza daquilo que

eu queria ser e daquilo que eu não desejo mais.

Como era meu desejo partir para docência, em 2010 iniciei minha especialização em

docência no Ensino Superior e então surgiu a oportunidade de ministrar aula na Universidade

Pinhalense de Ensino no curso Superior de Gastronomia e as oportunidades foram surgindo

em outras faculdades, em cursos técnicos, cursos livres.

A vontade de aprender, conhecer, superar obstáculos sempre esteve presente; então me

inscrevi no Mestrado em Educação na UNISAL em 2012, na expectativa de me tornar um

mestre. Nesta fase tive um grande exemplo e apoio do meu tio Dr. Antônio Carlos de Oliveira

Ruellas.

A princípio ingressar no Mestrado em Educação era algo além de minhas expectativas,

uma mistura de desejos que aos poucos foram emergindo a necessidade de mudanças

atitudinais, enfrentando as inseguranças comuns em situações diante do desconhecido.

Recordo-me em uma das minhas primeiras aulas a importância de ter atitudes de um

mestre e não apenas fazer parte de um mestrado almejando um diploma. Conviver com

professores e colegas de diversas áreas do conhecimento, foram galgando a multiplicidade dos

saberes e o prazer de estar junto com eles ao longo desses anos. As problemáticas dos temas

ou dos debates iam circunscrevendo minha postura e o anseio de novas descobertas. As aulas

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foram fazendo parte da minha rotina e por diversas vezes me deparava nas madrugadas

afinco, ou em algum momento de descanso, procurando aprender um conhecimento novo, que

seria utilizado nos debates, na realização dos exercícios e para a construção desta pesquisa.

Descobri que incorporar novos aprendizados se torna algo maravilhoso, mas o desafio é algo

encantador.

Mais uma vez retomo a importância de prezar por um bom relacionamento, minha

esposa nesta fase foi crucial para a minha organização e na manutenção do equilíbrio. Por ela,

consegui concretizar esse trabalho e descobri em mim outros potenciais, no qual agradeço a

todos os instantes que estivemos juntos neste desafio. “Ser mais” como diria Paulo Freire,

acredito que possa ser encarado como um estilo de vida dando sentido a nossa existência que

perfaz numa relação humana e com o mundo.

Já morando em Jaguariúna, trabalhando também na Faculdade de Jaguariúna e com a

vida profissional bastante ativa, em 2013, fui escolhido para ser o professor responsável de

um projeto em uma instituição de acolhimento de menores que acabava de ser aprovado. O

projeto é um curso de Confeitaria e Panificação - Mão na Massa realizado na Instituição Lar

Feliz em Jaguariúna com atividades para os acolhidos e seus familiares. E deste curso nasceu

o meu projeto de mestrado que tem contribuído ricamente com o meu desenvolvimento como

docente e na esfera pessoal.

Os acontecimentos benéficos para meu crescimento não pararam, sendo professor da

Unipinhal e colaborando para o crescimento e qualificação do curso, fui convidado para ser o

coordenador do curso de Gastronomia assumindo o posto no início de 2015, não poderia

deixar de mencionar que nesta trajetória tive a oportunidade e o privilégio de convidar a fazer

parte da equipe a minha primeira professora a Chef Cristina para fazer parte da minha equipe

uma amizade que perdurou e trouxe bons frutos.

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INTRODUÇÃO

A pesquisa “Alimentando perspectivas de vida: contribuições de um curso de

panificação industrial na promoção da revinculação familiar de crianças e jovens em situação

de acolhimento institucional” está pautada no referencial da Educação Popular promovida por

Paulo Freire e outros educadores que consideram que a educação se efetiva por meio de

processos contínuos e permanentes de formação e pela intencionalidade de transformar a

realidade a partir do protagonismo dos sujeitos.

A ONG “Projeto Lar Feliz” foi constituída em 02 de maio de 2001 e no decorrer

desses anos passou por várias mudanças. Hoje oferece acolhimento institucional para crianças

e jovens por meio de medida protetiva de abrigo2. Eles são encaminhados pelo Juizado da

Infância e Juventude, em decorrência de abandono, negligência, maus tratos ou porque suas

famílias ou responsáveis encontram-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua

função de cuidado e proteção. Permanecem no local até que seja viabilizado o retorno ao

convívio com a família de origem ou, na sua impossibilidade, seguem para família substituta

(adoção). Essas crianças e jovens são encaminhados por diversos municípios de toda a região,

majoritariamente da cidade de Jaguariúna e de Santo Antônio de Posse.

Torna-se relevante destacar que sob a medida de proteção preconizada pelo Estatuto da

Criança e do adolescente (ECA) é fundamental a preservação dos vínculos familiares e da

provisoriedade da situação de abrigo, resguardando a história de vida das crianças e jovens

acolhidos, na valorização do afeto e no tratamento oferecido pelas instituições de acolhimento

na tentativa de reorganizar a estrutura familiar quando possível, além da participação da vida

na comunidade local, dentre outras definições constituídas na lei a fim de concretizá-las.

Diante do exposto, a meta do “Lar Feliz” é proporcionar um ambiente de família,

pautado pela convivência e fomentação do desenvolvimento humano, ofertando segurança,

confiança, aprendizados coletivos das relações sociais que são constituídas e nesse sentido,

busca ser mais do que um lugar institucional. Lá os acolhidos aprendem a viver em

comunidade, com ensinamentos cristãos, considerando que a vida deles é especial e

exercitando o respeito por eles mesmos e pelos outros. Para isso, desempenham atividades

com uma equipe de trabalho técnica qualificada para aconselhar, ensinar, educar, ajudar na

2 Medida protetiva é, portanto, diferente da medida socioeducativa, já que esta se destina a jovens que

cometeram atos infracionais perante as leis do Estado.

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sua higiene diária e na alimentação adequada. Fato que a qualidade do atendimento prestado

aos acolhidos e de toda a manutenção, para que haja a existência da ONG prestando serviço

de acolhimento institucional, está diretamente correlacionada com a situação econômica e

social do país, além da credibilidade junto aos seus mantenedores.

A equipe de trabalho é composta por dez funcionários da área administrativa que

envolve diretores, coordenadores, psicólogos, assistentes sociais, assistentes administrativos,

que são responsáveis pelos departamentos de recursos humanos, compras e marketing. A área

operacional possui sete funcionários que atuam nos serviços gerais e manutenção do espaço

físico, além de trinta colaboradores que atuam como educadores sociais, apenas um professor

de musicalização e dois professores autônomos que desenvolvem as atividades de teatro e

culinária no curso de panificação e confeitaria.

As crianças e jovens, no abrigo, são preparados para a área espiritual, física e mental a

fim de se tornarem adultos independentes, com vidas frutíferas, o que possibilita

aprendizados, os quais implicarão em reintegração com as famílias envolvidas, no

desenvolvimento da educação, domínios técnicos, responsabilidades, desejos e sonhos que

perpassam o ser humano.

Dentre essas atividades há o curso de confeitaria e padaria. No dia 04 de maio de 2013,

foi realizado o lançamento oficial do curso de padaria e confeitaria intitulado “Mão na Massa”

elaborado e redigido, no ano de 2012, pela psicóloga da instituição Solange Wagner, com o

auxílio de patrocinadores. Para a execução desse projeto foi criada uma parceria com o curso

de Gastronomia da Faculdade de Jaguariúna que ficou responsável pela metodologia,

execução e certificação, tendo a mim como representante e professor das atividades.

O projeto inicial visava à produção de pão francês consumido diariamente pelos

acolhidos, à qualificação profissional dos jovens e seus familiares, bem como ao

fortalecimento dos vínculos familiares com a participação ativa dos mesmos na vida dos

acolhidos e na dinâmica da instituição de acolhimento. Como um dos responsáveis pela

execução e vinculação desse projeto, na qualidade de professor de padaria e confeitaria,

relacionando-me com as crianças e jovens da ONG e seus familiares, observei a necessidade

de exercitar outro olhar, mais humanizado, aos marginalizados pela sociedade.

Nesse contexto, a educação é percebida como elemento que permite ao ser humano

envolvido desenvolver protagonismo para construir e reconstruir seus caminhos. O alimento,

neste caso, é considerado como um grande facilitador de inserção de signos e símbolos, que

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permitem a descoberta de si como sujeito, motivando ações humanas, aprendizagens e

geração de renda.

Alimentar perspectiva de vida implica atribuição dos sentidos, além de entendê-los nas

práticas pedagógicas, sociais e humanas como reflexos da sociedade que nela se formam,

espelhando a complexidade da dinâmica social e da interação humana. Conhecer tais práticas

e desvendá-las é fundamental para a tomada de consciência dos contextos sociais e decisivo

para que sejam efetuadas ações no sentido de superação motivacional e de conscientização.

A implementação da Gastronomia, no espaço da ONG Projeto Lar Feliz por meio do

curso de panificação e confeitaria, visa desmistificar representações que retratam a criança ou

jovem em acolhimento como alguém apenas digno de pena, sem futuro, como se a condição

de ser acolhido determinasse características sem possibilidade de transformação.

A formação do gosto alimentar, não se dá exclusivamente pelo seu aspecto nutricional.

A comida não é apenas uma substância alimentar, mas também um modo, um estilo e um jeito

de alimentar-se. Portanto, alimentar-se é um ato nutricional e comer é um ato social ligado a

usos, costumes, condutas, protocolos e situações. Logo os sentidos conotativos dados ao

alimento no prazer de comer, os desejos, a atividade de produzir o alimento, a partilha, entre

outros, elucidam um ato de comensalidade que se caracteriza como um dos elementos de

relação e interação humana, contribuindo com a identidade cultural de um grupo e uma

sociedade (SANTOS, 2005).

Neste caso, além de atender as necessidades fisiológicas vitais, o ato de comensalidade

incorpora uma ação de compartilhamento, solidariedade, união, diálogo e cooperação.

Fomenta uma atividade que passa a ser coletivizada, os prazeres e desprazeres geram emoções

que acabam fundando as simbologias para com o alimento e a necessidade de se relacionar.

Assim podemos argumentar que ensinar e aprender culinária, junto ao curso Mão na

Massa, é tão importante quanto qualquer outra atividade que favoreça a revinculação familiar,

a sua relevância reside nas simbologias criadas, bem como nos processos educativos que

favorecem a comunhão e a autoestima que estão diretamente correlacionadas com a

autoconfiança no desenvolvimento de atividades práticas e relacionais, além da partilha, não

apenas de um alimento ou de um momento onde todos executam uma refeição coletiva, mas

no desejo de galgar prazeres não mensuráveis de pertencimento, de vínculos e de novas

perspectivas de vida.

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Com base no referencial teórico metodológico da Educação Popular e da Educação

Sociocomunitária, a observação participante e a entrevista constituíram-se como instrumentos

metodológicos apropriados para a investigação de processos educativos consolidados nas

relações estabelecidas por crianças e jovens participantes do Curso Mão na Massa, juntamente

com as simbologias e sentimentos que podem fomentar a revinculação familiar.

Assim, o primeiro capítulo aborda a concepção de uma educação como processo

humanizante, advindo de um estudo que busca elucidar a valorização do sujeito como ser de

dignidade e liberdade, agindo e aprendendo com seu contexto histórico social, visando uma

sociedade com um olhar mais humano. Além disso, aborda-se também nesse capítulo o

terceiro setor como uma oportunidade de ação no processo de acolhimento.

O segundo capítulo busca elucidar o contexto histórico da situação de acolhimento

institucional no Brasil, tratando de sua historicidade e momentos importantes que

colaboraram para a configuração da situação de acolhimento atual. Destacamos a importância

da família na questão da formação identitária de seus filhos a partir dos vínculos afetivos e as

questões dos processos que envolvem revinculação familiar. Por fim apresentamos a Ong

Projeto Lar Feliz no seu contexto histórico, suas atividades desenvolvidas e em especial ao

Curso Mão na Massa.

No terceiro capítulo, descreve-se o percurso metodológico escolhido para a realização

da pesquisa, ilustrando o processo para o desenvolvimento da pesquisa, sua tipologia,

temática, participantes, local e instrumentos de análise.

O quarto capítulo é destinado à interpretação e análise das entrevistas, destacamos a

voz dos participantes, suas convergências e divergências, seus sonhos, seus valores e suas

simbologias, permitindo assim conhecer uns aos outros, sendo o alicerce para nossa análise.

Nas considerações finais sintetizamos alguns recortes das falas dos participantes que

foram preponderantes para ilustrar o desejo dos familiares de recuperar a guarda dos seus

filhos, demonstrando a importância significativa de prezar pelos valores humanos com ética e

dignidade, alimentando novas perspectivas de vida.

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1 - A EDUCAÇÃO COMO UMA POSSIBILIDADE HUMANIZANTE

“Eu sempre fui afastado do mundo [...] sempre fui sozinho, tudo que

eu faço é sozinho, nunca fui de fazer nada em grupo e o primeiro

lugar é aqui que estou tentado entrosar mais com o grupo”.

(Aílton)

Na ótica do cenário capitalista e de uma globalização que unifica apenas os interesses

de mercado, as condições de exclusão devem ser encaradas como uma situação-problema,

pois são tratadas como um determinante histórico, ou seja, uma situação comum de um

mundo de competições, onde não existem alternativas para problema dessa natureza a não ser

a aceitação. Contrapondo-se a essa percepção, Freire (2001), ao discorrer sobre a exclusão e

marginalização das classes populares e oprimidas, apresenta o conceito de situações-limites,

ou seja, situações que perpassam extremos e barreiras que precisam ser vencidas, pois estão

diretamente vinculadas à vida social e pessoal de grupos sociais como o composto por jovens

e crianças em situação de abrigo. Muitas vezes, a ingenuidade marca o enfrentamento dessa

situação, de forma que os envolvidos no processo a encaram como obstáculo que não

conseguem transpor, assumido assim sua fragilidade, medo e aceitação diante das condições

que lhes impuseram, por outro lado, existe a possibilidade de um posicionamento crítico que

poderá levá-los a assumir sua condição de sujeito, empenhando-se na superação deste cenário.

O enfrentamento das “situações-limites” parte de uma prática problematizadora e

libertária que se faz na interação entre sujeitos que vivenciam o contexto histórico, político e

social, buscando condições para superá-las, contribuindo diretamente com o desejo de uma

emancipação, pois essa prática se funda na crença do potencial criador do ser humano, na

medida em que este desenvolve diálogo consigo e com o meio, tornando-se assim um sujeito

do processo de construção social. Tal conceito perfaz uma visão holística do compromisso da

educação, configurando um imprescindível processo da unidade dialética de reflexão e ação,

mediada pela práxis em um diálogo problematizador que possibilita uma gradativa alteração

de contexto, no qual o indivíduo, na sua percepção ingênua ou inocente da realidade, passaria

para um estado de percepção crítica, podendo adquirir condições subjetivas de inserir-se no

mundo, engajando-se em compromissos de atuação na realidade (FREIRE, 1987).

Assim, a educação libertadora e problematizadora proposta por Freire (1987)

constituem na tomada de consciência para a construção de um novo ser humano,

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possibilitando a luta política contra a opressão, concebendo a educação como um dos

instrumentos de uma ação cultural libertadora. Portanto, existe um grande desejo de que

homens e mulheres possam sempre tornar-se sujeitos indagadores capazes de assumirem o seu

poder de atuação crítica. Essa seria uma das práticas voltadas para a inserção do ser humano

na história como sujeito e não objeto, conforme podemos identificar no próprio contexto

histórico-colonial de formação do nosso país e, posteriormente, marcado pela “cultura do

silêncio”.

Nos ideais da educação libertadora, o educador não se entrega ao modelo opressor e

fatalista, encara o educando, seja ele homem ou mulher, como agente de sua transformação.

Diz Freire (2000, p. 32) que: “Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a

vida, explorando os outros, discriminando os índios, o negro, a mulher, não estarei ajudando

meus filhos a serem sérios, justos, e amorosos da vida e dos outros (...)”.

As segregações históricas não cabem mais ao educador compartilhar, atuando como

sendo reprodutor desse modelo que legitima o discurso opressor ele estaria negando ao

oprimido sua condição histórica de ser agente de transformação e liberdade. Assim, a

“educação problematizadora” ou “educação para a liberdade” ocorre em uma relação

horizontal, onde educador e educando estabelecem diálogos, fomentando a consciência de que

não apenas estão no mundo, e sim com o mundo, buscando transformar a realidade.

Para Freire (1987, p. 40) “A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela

que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado

do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens”. A

diversidade, que engloba todo e qualquer indivíduo, independente de sua condição existencial

(estrutura física, psíquica e/ou emocional, cor, etnia, religião etc.), começa a mobilizar

diversos setores da sociedade, já que a luta pela aceitação do outro é travada por grupos

diferenciados, objetivando a incorporação de um pensamento libertador. Uma das

preocupações do autor estava voltada para a construção de ações práticas que inserissem o ser

humano como sujeito de sua realidade e de sua história, contrapondo-se ao modelo de

alienação.

A reflexão acerca da concepção de problematizar e libertar-se expressa a importância

da subjetividade, ou seja, a maneira como cada indivíduo atribui seu julgamento de valores e

símbolos perante sua leitura de mundo, julgando assim suas crenças, identidades,

simbologias, num momento que envolve a sua criticidade que perfaz num momento de

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enfrentamento de novas descobertas, alimentando a capacidade de criar, sonhar e agir sobre

sua existência. Como seres conscientes de si, os humanos conseguem basicamente através da

linguagem, criar e recriar sua natureza, conferindo traços humanos no seu habitat e

transformando esse meio num espaço que constitui a história e a sua identidade. Assim o

homem e a mulher como agentes transformadores não são seres acabados e definidos, em sua

consciência crítica desejam transcender seus limites e superar seus desafios, fazendo escolhas

e enriquecendo seus desejos, conferindo o que o autor denominou como vocação ontológica

de transformar o mundo e não apenas adaptá-lo, constituindo um meio com características

mais humanas, aprendendo, assim, a se humanizarem (FREIRE, 1987).

A educação humanizadora visa a formar seres conscientes de si, na perseverança de

valer um mundo mais justo, quando se incorpora suas características humanas, formando uma

sociedade regada de atitudes solidárias, democráticas, com princípios de igualdade e

dignidade.

Para entendermos a questão da humanização, devemos trazer à tona a questão da

conscientização, isto é, a maneira como o sujeito se vê no mundo e como ele enxerga a sua

relação com diversos contextos sociais tão marcantes na sua contemporaneidade. A proposta

de Freire advém de buscar caminhos distintos frente às condições desumanizadoras, ou seja, a

humanização prevalece quando o meio se enquadra nas condições das ideias, sonhos, desejos

e autonomia dos sujeitos, configurando um cenário construído e transformado pelo próprio ser

humano. A desumanização propõe o oposto, nela o meio condiciona o ser humano, suas

vontades são aquietadas, não há um diálogo democrático, o indivíduo silencia-se em meio às

ordens, distanciando-se cada vez mais de si e dos outros.

Freitas (2004) afirma que somente o ser humano é capaz de se distanciar do mundo

para aprender a admirá-lo. Conscientemente propõe reflexões críticas sobre a realidade

objetivadas, numa práxis, ou seja, envolvendo atitude, prática, desafios do enfrentamento da

natureza humana. Assim o homem e a mulher alimentam sua conscientização que decorre de

uma criticidade e não apenas de uma espontaneidade. Configuram sua maneira de ser, além de

assumirem seu compromisso histórico com a atualidade e sua perspectiva de futuro que

deixará para futuras gerações. Dessa forma o ser humano passa a ser sujeito da criação de sua

história na relação com e no mundo.

Nesta concepção de educação humanizadora, além de tratarmos da conscientização

como uma forma de reflexão e conduta do ser, circunscrevem-se nessa concepção o

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estabelecimento de valores simbólicos, a compaixão com o próximo, a busca por felicidade e

valores éticos, a importância do saber ouvir e do falar, estabelecendo dessa forma o diálogo.

Podemos observar que o trabalho de um educador está diretamente ligado à formação

humana e aos elementos que constituem a compreensão e dimensão da sua profissão,

superando o aspecto estritamente pedagógico. Freire (2002) destaca a preocupação de

assumirmos uma postura vigilante contra todas as práticas que sejam desumanizantes, fazendo

leituras críticas e analíticas das causas e consequências da degradação humana que se ocultam

por trás da pretensa fatalidade dos discursos da globalização hegemônica.

As fatalidades que assolam o processo de humanização estão sedimentadas na violação

dos direitos de grande parte da população infanto-juvenil, refletindo a marca e a distância

entre o mundo dos incluídos e dos excluídos. Falar em direitos humanos, direitos da criança e

do jovem torna-se essencial para tratá-los em sua condição de sujeito, acentuando-lhes sua

essência humana, ancorada nos princípios de liberdade e dignidade.

As condições sociais refletem julgamentos da ideologia neoliberal que modela valores,

atitudes e até mesmo políticas públicas. Logo, a sede por riqueza de bens materiais sustenta a

ideia de que não existem outras maneiras de agir no mundo longe da ótica do mundo

globalizado (ANTUNES, 2002). Esse modelo neoliberal deu luz ao manifesto de diversas

formas de controle, discriminação e opressão. Ou seja, é no contexto histórico-social que cada

vez mais novas formas de preconceito ou aceitação são somatizadas e encaradas como algo

possível.

Freire (2001, p. 86) destaca o papel do sonho e da utopia como forma de se contrapor

ao fatalismo neoliberal. “O meu discurso em favor do sonho, da utopia, da liberdade, da

democracia é o discurso de quem recusa a acomodação e não deixa morrer em si o gosto de

ser gente, que o fatalismo deteriora.”

Ao tratarmos da educação libertadora é fundamental trazer à tona os estudos com

ênfase nas práticas sociais, como princípio educativo que se perfaz no relacionamento social

com desenvolvimento e identificações de valores. Para Oliveira e colaboradores (2014, p. 33),

as “práticas sociais decorrem de e geram interações entre indivíduos e entre eles e os

ambientes natural, social, cultural em que vivem”. Nesse processo relacional, criam-se raízes

que permitirão atuar na formação de identidades, conhecimentos e tradições que passam ao

longo dos tempos. Segundo a autora e seus colaboradores, o rompimento dessas raízes

permite criar novas ramificações que se conectam a outras problematizações de experiência,

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de descobertas, possibilidades, enfim, permitir-se ao novo. Podemos dizer então que práticas

sociais são frutos de um processo que fomenta a conscientização, ao mesmo tempo, que

produz condições de desenvolvimento.

O estudo da educação em práticas sociais surge na busca de desvelar a complexidade

de processos educativos que se desenvolvem nessas práticas. As práticas sociais são

constituídas por atores que participam de grupos sociais, ou seja, no encontro direto de

princípios de relações sociais que configuram uma determinada sociedade em suas maneiras

de agir, comportar, comunicar e significar o contexto histórico na construção ativa desse

momento, formando-se ordem de valores que contribuíram para a sua existência. Demandam

uma ação ativa que relata a sua existência. Muitas dessas práticas são construídas nos desejos

de mudanças para que fomentem novas atribuições de valores humanos, como respeito,

direito e ética nas relações. Outras pressupõem a configuração da sua natureza, assim são

formadas as crenças, ações culturais, ações políticas, a espontaneidade ou restrições, expondo

os desejos e interesses sociais (OLIVEIRA et al, 2014).

Desta forma, a educação assume uma conotação significativa junto aos familiares de

cooperação na formação de um indivíduo, de integração nos grupos, de aceitação das

diferenças individuais e na valorização de cada pessoa, de convivência e incentivo na

aprendizagem por meio das relações. Uma delas seria a capacidade do indivíduo fazer

escolhas possibilitando a quebra dos mecanismos de alienação social, ajudando-o a

compreender a sua realidade e a refletir sobre ela.

O educador assume, assim, um papel importantíssimo de estimular essa formação ativa

no educando. As inquietações que perfazem o aprendizado na busca de soluções para

determinados problemas e enfrentamento das atividades desenvolvidas coletivamente geram

no educador o estímulo de buscar novos aprendizados, mantendo-se atualizado para atender às

necessidades desse educando, propondo assim uma mediação do conhecimento e firmando

nessa interação que ensinar é ao mesmo tempo aprender. Dessa maneira, os aprendizados que

vão ocorrendo ao longo do tempo possibilitam a percepção de que é possível e preciso

trabalhar novas maneiras, caminhos e métodos de ensinar.

Nas afirmações de Freire (2002, p. 22), “não há o papel do professor sem a existência

do aluno”, as relações constituídas partem de um processo de socialização. Ao ensinar

aprende-se e quem aprende ensina ao aprender.

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Essa mediação do conhecimento passa a ser encarada como um processo

comprometido na descoberta de si, envolvendo seleções do que será aprendido, por meio da

apropriação e assimilação do conhecimento, não apenas a formação intelectual. Aguça as

emoções, colaborando para uma educação mais significativa, com grande impacto sobre o

comportamento. A eficácia ou durabilidade dos conhecimentos aprendidos passam a ser

consequências da autodescoberta.

A aprendizagem de novos saberes se constitui em cenário de descobertas e de

vivências participativas, de constante diálogo e interesse por desfrutar novas experiências.

Freire (2002) retrata que aprendizagem é posse de novas capacidades, muitas vezes

inexistentes anteriormente, assumindo, portanto, uma posição de pertencimento, já que a

dimensão do educar se resguarda de três aspectos que ele considera como relevante. O cunho

político, delineando decisões a serem tomadas; a epistemologia rompendo com a educação

bancária, no sentido de depósito do conhecimento, ou seja, respaldada pela ação do pensar e

criar; e por último, a estética, envolvendo as emoções e belezas que se formam no ato de

aprender. As preocupações e indagações de Freire com a educação acompanham suas obras

dando clareza nas suas perspectivas de mudança na maneira de aprender e educar, o manejo

de todo entorno político e social para que se estabeleça uma educação de qualidade.

A proposta do diálogo incentiva a valorização do universo temático3 dos educandos e a

reflexão crítica dos indivíduos sobre sua realidade, contestando a passividade e assumindo o

papel de construtor cultural e do mundo. O desejo por uma emancipação educativa está ligado

diretamente com as premissas da Educação Sociocomunitária, a partir do momento em que

valorizamos as potencialidades humanas, com liberdade de atuação no mundo, na esfera civil,

cultural, artística e política. Neste caso é no fazer democrático que criamos os princípios de

participação ativa na expectativa de garantir a liberdade individual.

Assim podemos observar que a prática além de ser um elo de relações humanas,

fomenta a capacitação das pessoas para a atuação no meio social, numa expectativa que pode

promover a autoestima e a resiliência frente às situações desumanas ou adversas. Assim,

podemos estabelecer relações entre a Educação Popular e a Educação Sociocomunitária

praticada e vivida pelos salesianos em suas instituições educativas, tendo como um grande

3 Segundo Freire o “universo temático”, perfaz uma educação libertadora e problematizadora, tendo como

alicerce o diálogo e a conscientização, a partir do que ele chamaria de “temas geradores”, ou seja, a percepção

que o homem cria ou recria da realidade, envolvendo a sua relação social e com o mundo. (FREIRE, 1987, p.

50).

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expoente São João Bosco (Dom Bosco) na dedicação aos excluídos e marginalizados

socialmente. A Educação Sociocomunitária constitui-se como ação que fomenta a

emancipação social, numa perspectiva de preparar cidadãos para uma vida com dignidade e

perspectiva de vida, isto é, aptas ao enfrentamento das adversidades imbricadas pelo domínio

de poder. A educação praticada por Dom Bosco possuía uma dimensão humanística e

centrava-se na importância das relações afetivas, procurando interações com jovens,

entendendo sua maneira de agir e pensar, assim, incorporava uma formação que transcendia o

crescimento pessoal e religioso, tendo em vista a necessidade do contexto da época, ou seja,

uma formação voltada para a profissionalização. Dom Bosco preconizava uma relação de

proximidade com os jovens e seus familiares, ressaltando uma autonomia cidadã que pairava

na racionalidade, amorevolezza e religiosidade (ISAÚ, 2007).

Tanto a Educação Popular como a Educação Sociocomunitária visam à autonomia do

educando possibilitando que este possa questionar os processos de exclusão, bem como os

discursos fatalistas neoliberais. O alimento de uma postura acomodada e ingênua constitui o

pensamento fatalista do opressor que pretende manter o status quo face àqueles que não

podem prestigiar dos mesmos direitos. Assim podemos relatar que o desenvolvimento

econômico, entre outros tipos de abrangências advindas da globalização no cenário capitalista,

distancia-se cada vez mais das acessibilidades.

De acordo com Freire, quando os sujeitos rompem com a visão fatalista da realidade,

“se fazem cada vez mais críticos na sua ação, ligada àquela percepção. Percepção em que está

implícito o inédito viável4 como algo definido, a cuja concretização se dirigirá, sua ação.”

(FREIRE, 1987, p. 53). Assim, a história de um mundo contemporâneo pode sim ser uma

possibilidade de mudanças vividas e não uma determinação imposta, na presença e atuação de

sujeitos capazes de mudar e configurar o amanhã. A mudança parte de uma decisão atitudinal

do indivíduo que não cruza os braços frente aos desafios ou acomoda-se diante das

fatalidades.

A princípio, a globalização estava fortemente aplicada aos interesses do comércio com

a superação e rupturas de fronteiras. Uma fatalidade eficaz, com um discurso que nos torna

4 Para Freire o “inédito viável”, assume uma posição do próprio ser em transcender sua existência, a partir de

uma situação limite que contrapõe ao modelo opressor. Assim a percepção critica e consciente do homem

governa suas ações, num cenário em que se pretende fomentar novas possibilidades. (FREIRE, 1987, p. 50).

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cada vez mais cegos, sem poderio de voz ativa ou débeis do contexto histórico, já que não

podemos participar dos acontecimentos, pois esse prestígio não é ofertado aos oprimidos.

Assim as ideologias neoliberais vão ganhando poder, à medida que conseguem convencer

cada vez mais as pessoas, como se as condições do contexto histórico atual fossem naturais ou

boas para toda a humanidade. Percebe-se claramente que essa é uma medida de controle

político, de controle do poder causado nas pessoas e, sem perceber, aos poucos vamos nos

tornando reféns e oprimidos pelo poder.

Na insatisfação desse movimento de dominação, voltado para o prisma do interesse de

mercado e não dos interesses humanos - que aumenta cada vez mais os índices de desemprego

e de exclusão social - há competição para a manutenção da sobrevivência. Uma sociedade

silenciada pelo medo na ausência de sentimentos de compaixão fez surgir diversos

movimentos contra-hegemônicos voltados para o restabelecimento de uma sociedade mais

justa com princípios de fraternidade. Assim surgem os cosmopolitismos subalternos e a

globalização contra-hegemônica. Percebem-se claramente as diferenças dos fundamentos de

ambas as partes. Uma – globalização hegemônica – está voltada para as leis de mercado,

acumulação de capital e, dessa forma, quem detém o capital é quem prevalece no poder, pela

ótica do capitalismo. A outra – globalização contra-hegemônica – está voltada para a

democratização social, na esperança de solidariedade, com valores de dignidade e justiça para

todos os seres humanos (SANTOS, 2007).

Dessa maneira, os movimentos contra-hegemônicos, como exemplo algumas

instituições ligadas ao terceiro setor, referem-se a uma prática advinda da própria sociedade,

em contraposição aos modelos de dominação e opressão gerados pelo capitalismo. Essa

prática é formada e organizada por grupos das classes oprimidas, enaltecendo a pertinência de

acreditar na solidariedade, cooperativismo, compaixão, diálogo, acessibilidade, no exercício

de buscar viabilidades para os caminhos da democracia, da justiça e novas formas de atuação

e trabalho.

As colaborações desse movimento incluem: o tratamento qualitativo voltado para

novas formas de relacionamento com países estrangeiros, consolidando fortalecimento da

relação de países do Sul; as relações de trabalho e filantropia transnacional com países do

Norte; desenvolvimentos de atividades voltadas para a preservação da vida no planeta. Daí

surgem medidas cautelosas para o uso dos recursos naturais como a ecologia, à participação e

acesso da mulher no meio artístico, cultural, político, cargos que envolvem gestão e liderança,

entre outros (SANTOS, 2007).

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Nessa perspectiva, observamos que o eixo central da globalização contra-hegemônica

está firmada no ser humano; cria-se um sistema aberto onde poderão surgir novas

possibilidades de manifestação cultural, artística, de expressão do movimento

sociocomunitário, enraizando uma sensibilidade para a construção da contemporaneidade

composta por traços humanizantes.

Devido às repercussões do modelo capitalista na década de 90, com grande impacto no

modelo econômico e social, repercutem também mudanças nas estruturas sociais que

permitiram o engajamento e maior atuação do terceiro setor, embasados em um modelo

educativo que pudesse solucionar os desengajamentos ocasionados por esse sistema que visa à

produção e acúmulo de capitais. Para Martins (2007), a Educação Sociocomunitária se faz no

desenvolvimento de uma práxis social que se ocupa de uma práxis comunitária. Ações no

foco social têm sido alimentadas por instituições não governamentais com iniciativas de

atender a uma demanda educativa. Assim, surgem práxis comunitárias, atuando na esfera

social para que a própria sociedade pudesse aplicar seus conhecimentos e aprender novos

conhecimentos, não para fomentar a ordem produtiva advinda do capital, mas sim para uma

sociedade usufruir de valores, de atitudes e sonhos.

Esse modelo de atuação, na esfera social, propõe alternativas como projetos

educativos, os quais estimulam que os indivíduos estejam em atividade seja para almejar

sonhos ou ter uma renda, assim surgem cursos, treinamentos e auxílios para a abertura de

microempresas, reciclagem, produções alimentares como confeitaria, padarias, artesanatos,

entre outros, fomentando a cooperatividade e a garantia de subsistência econômica. Um dos

problemas citados por Martins (2007), e até mesmo pela interpretação do contexto é que esse

modelo de atuação não caia em contradição e passe a reproduzir a ótica do modelo capitalista.

Acreditamos que esse modelo de educação para o trabalho, para o empreendedorismo

solidário deva continuar existindo para alimentar a esfera da ação social, apesar de lidar

empiricamente com os problemas coletivos.

Groppo (2013) demonstra que se formam empresas e organizações não

governamentais para a “captação de recursos”, planejamento e execução de ações no foco

social que, porventura, possam criar instituições especializadas formando o mercado social,

como uma ação financeira. O campo social é formado por agentes que atuam na esfera social

por meio da inculcação de valores, modos de ser e pensar, hábitos que serão transmitidos e

incorporados em uma sociedade. Assim, representam-se os valores simbólicos e suas

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particularidades que são orientados por princípios regulatórios, formando capitais intelectuais,

simbólicos culturais e não apenas aqueles que visam lucros.

Talvez tenhamos que reaprender a viver, pensar no modo como conduzimos a vida no

presente e as contribuições que fazemos e deixamos para as gerações conseguintes. A

pertinência do aprendizado se faz conforme ensinamos ao aprender. A constância de novos

aprendizados não se desenvolve apenas em uma sala de aula. Estão presentes na natureza

humana a constância, o desejo e a curiosidade de tecer novos aprendizados. Á medida que

constroem seus caminhos pautados por elementos centrais de aprender sempre e aprender a

viverem juntos, os seres humanos configuram o seu existir.

A convivência com o meio e com os outros permite criar aprendizados conscientes.

Esse meio envolve o familiar, matrimonial, amizades, institucional, comunidade (rua, bairro,

igrejas, crenças, etc.), o conjunto de pessoas que vivenciam interesses comuns. Percebe-se

então que todos os meios de contato ou que culminem no ser humano geram influências

impactantes sobre a regência de sua maneira de viver.

O que está em jogo é a valorização das pessoas no seu contexto de relacionamento e na

construção de sua história, fomentando novas formas de aquisição de saberes, conhecimentos,

capacidades, curiosidades, coragem, desejo que partam não apenas do ensinar, mas do

aprender, da conquista de novos aprendizados significativos e vinculados à sua práxis, nos

modos de vida em comum. Dessa forma, o objetivo do ensino-aprendizagem não será apenas

a transmissão de conhecimentos, mas a construção cotidiana de responsabilidade de todos.

Uma das missões da Educação Sociocomunitária é contribuir para que cada ser

humano aprenda a viver com os outros, a tornar-se cidadão, pleno de direitos e de deveres,

membro de uma comunidade. Assim poderia surgir um entusiasmo ao ser solidário e

responsável. A comunidade humana em construção pode conferir outra pertinência e

relevância educativa ao ensino e pode conferir novos significados ao ato de conhecer,

contextualizando-o, dando-lhe outros sentidos e atribuindo-lhe um leque diverso de utilidades

sociais e humanas. A educação social constitui um instrumento privilegiado do acesso de

todos a tais oportunidades de humanização da vida social, sobretudo aos que se encontram em

situação de maior risco ou vulnerabilidade social, como as crianças e jovens em situação de

acolhimento institucional.

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1.2 - UMA BREVE ABORDAGEM SOBRE O TERCEIRO SETOR

O terceiro setor tem por objetivo a melhoria da qualidade de vida e o fortalecimento da

sociedade civil através de parcerias com o primeiro setor (representado pelo Governo) e o

segundo setor (empresas privadas com fins lucrativos). Essa parceria gera bens e serviços

públicos (KANITZ, 2004).

Segundo Martins (2007), o terceiro setor é organizado por grupos sociais que visam

articular coletivamente ações no meio social, atendendo preponderantemente as necessidades

de classes subalternas. Esse desafio diário alimenta o desejo de propagar atitudes e ideias que

supram essa demanda carente, no atendimento daqueles que são excluídos pela sociedade.

Essas organizações são formadas na sociedade civil, não sendo estatais ou públicas.

Para Rothgiesser (2004, p. 2), “o terceiro setor consiste em cidadãos que participam de

modo espontâneo e voluntário de ações que visam o interesse social. Isto vem mostrar algo

em comum com o Estado, que é o fato de ambos cumprirem com uma função eminentemente

coletiva.”

O terceiro setor é composto por organizações sem fins lucrativos em âmbito não

governamental, onde se pratica a caridade e o altruísmo, que se dá graças às manifestações na

sociedade civil, marcadas pela integração cidadã, promoção dos direitos coletivos,

diferenciando-se desse modo da lógica do mercado que visa o lucro (CARDOSO, 2000).

A questão filantrópica é uma finalidade desse setor que consiste na ajuda aos outros

com altruísmo, piedade e caridade que promovam a felicidade. A palavra filantropia é de

origem grega “philanthropia” e significa amor da humanidade (MOUSSALLEM, 2008).

Em meio a uma sociedade composta por hierarquia e desigualdade, surgem os

movimentos sociais que se opuseram às práticas militares do período para reivindicar direitos

sociais. O processo de mobilização da Constituição de 1988 para o aumento dos direitos de

cidadania política e novas posturas desencadeou um avanço na política social do país, o que

colaborou para o fortalecimento do terceiro setor, que segue rumo a novos movimentos

sociais, criando novas vias para ascensão social, tendendo sobrepor-se ao modelo de

dominação advindo do capitalismo.

A atuação ineficaz do Estado na área social promoveu o crescimento de tal setor e a

consolidação democrática abriu as portas para a atuação das Organizações Não

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Governamentais (ONGs), que são formadas para atender o interesse público, sem visar o

lucro, mas sim o desenvolvimento humano a priori. O crescimento desse setor e a

participação da sociedade nas obrigações públicas fez com que o Estado reduzisse seu papel

com a sociedade repassando para ONGs suas competências e responsabilidades.

Para Scherer-Warren (1995), ONGs são organizações formais e privadas que utilizam

fins públicos para executar suas atividades, não visam lucro, possuem o objetivo de realizar

intervenções educacional, político, focando em um determinado segmento a fim de gerar de

forma coletiva processos de transformações sociais.

Para o desenvolvimento de seus objetivos, algumas ONGs contam com a ajuda de

trabalho voluntário de pessoas que abraçam uma causa sem troca de benefício financeiro. O

Estado nem sempre está envolvido nas atividades executadas pelas ONGs, as quais também

são subvencionadas por empresas privadas que aplicam recursos para projetos específicos.

Embora o terceiro setor seja organizado com objetivos que visam promover o bem-

estar e garantir direitos para a sociedade, existe uma grande dificuldade de se transpor o

discurso para uma prática bem-sucedida. Mesmo sendo uma organização sem fins lucrativos,

está vulnerável às mesmas condições de uma empresa privada, pois possui atividade

econômica, receitas e despesas, porém não deixam explícita a forma de obtenção de retorno

através das atividades que desenvolvem.

Existe uma grande proximidade do terceiro setor com as empresas privadas no que diz

respeito a seu funcionamento. Pode-se dizer que não existe o acúmulo de capital e distribuição

de lucros, mas sua atuação é como a de um profissional liberal que com a prestação de

serviços obtém seus rendimentos e com isso garante sua sobrevivência (MARTINS, 2007).

Em alguns casos, as empresas privadas mantenedoras do terceiro setor realizam o que

é chamado de filantropia empresarial, destacada pelo discurso de responsabilidade social e

solidariedade. Sua característica é o desenvolvimento e apoio em iniciativas de algum tipo de

segmento, seja educacional, ambiental, social, porém com alvo no objetivo de mostrar que se

está gerando o benefício para sociedade. Pode-se dizer que, antes do compromisso com o

bem-estar à sociedade, a empresa visa seus próprios interesses em obter vantagens

econômicas com ganhos na isenção de impostos, premiações e marketing. Isto traz o

entendimento de que a ligação empresarial ao terceiro setor nada mais é que uma estratégia de

lucratividade (CUNHA, 2005).

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Além da filantropia empresarial existem também os convênios entre o Governo e

ONGs que prestam serviços que, na verdade, são de responsabilidade do Governo perante a

cidadania. Nota-se que os convênios firmados possuem falhas e até mesmo ausência na

fiscalização, tornando-se objetos de denúncia por corrupção conforme informação contida na

Revista de Informações e Debates do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA):

Ao longo de 2011 a atuação das chamadas organizações não governamentais

(ONGs) ganhou destaque na mídia. Os motivos centrais foram denúncias de

possíveis irregularidades nos repasses de verbas ministeriais para entidades desse

tipo, que levantaram mais uma vez o debate sobre a porosidade da fronteira entre as

esferas pública, privada e estatal no Brasil. (OJEDA, 2012, p. 1).

Dessa forma, por um lado o terceiro setor pode acabar intermediando a atuação do

governo e das empresas privadas para a promoção da solidariedade, já que é financiado por

esses dois setores. Mas por outro lado, o descontrole governamental com relação à prestação

de contas por parte das ONGs e ausência de fiscalização sobre os convênios pode configurar-

se como mais uma oportunidade para que exista o desvio do dinheiro público, corroborando a

obtenção de lucro e mascarando a corrupção.

Essa contextualização acerca das possibilidades de atuação do terceiro setor é

importante, nesse trabalho, uma vez que boa parte dos serviços de acolhimento institucional

brasileiros é ofertada por Organizações Não Governamentais, a exemplo do abrigo Lar Feliz,

local onde foi desenvolvida esta investigação.

No próximo capítulo, será apresentado um breve histórico da situação de acolhimento

no país, o que engloba seu surgimento, criação e aplicação das leis voltadas ao público infantil

e jovem, tratamento ofertado e ainda, a importância da revinculação familiar e as

reconfigurações dos direitos e deveres que permitiram caracterizar o modelo atual de

acolhimento. Apresentamos a Ong Projeto Lar Feliz, procurando explanar sobre seu contexto

histórico, as características que circunscreve o espaço físico, a equipe técnica, o

desenvolvimento de suas atividades e dentre elas o destaque ao Curso Mão na Massa onde foi

efetivada esta pesquisa.

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2 - A SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

“[...] eu não tinha essa oportunidade do Mão na Massa antes, que

nem tem agora, você pode vir e fazer as coisas com seu filho e estar

junto”.

(Camila)

Historicamente a internação de crianças e jovens em instituições asilares ocorre desde

o período colonial. Atendiam-se todas as classes sociais e incorporavam-se a modalidade

assistencial e as tendências educacionais de cada época. Assim surgem os colégios internos,

seminários com apelo e participação da igreja, asilos educandários entre outros (OLIVEIRA,

2010).

Na Europa, no século XIII, não existia a noção de infância. Nesse período, o “filhote

do homem” ficava aos cuidados da mãe e quando iniciava seu processo de desenvolvimento,

ainda muito rudimentar de cognição, era incorporado em jogos e trabalhos partilhados na

convivência com adultos. As etapas de desenvolvimento eram aceleradas, de mera criança

passava a um homem jovem com responsabilidades que eram incorporadas autoritariamente.

Este pequeno adulto, apesar de não possuir status social, desenvolvia um preparo para sua

autonomia. Esta relação contribuiu para uma sociedade singular em muitos aspectos, pois não

havia discriminação entre adultos e crianças. A consciência estava focada em artifícios de

proteção, seja familiar ou guerras civis e no trabalho camponês, sem acreditar na existência da

inocência (ÀRIES, 1981).

A conscientização do tratamento que caracteriza a infância e sua devida atenção surgiu

entre os séculos XVI e XVIII. A princípio, partindo de sentimentos diferenciados, separaram-

se as realidades vivenciadas no mundo das crianças e no mundo dos adultos. A ternura da

criança, sua maneira de se expressar, sua graça permitiram uma nova reflexão e o adulto passa

a cortejá-la, o que a torna uma fonte de distração e relaxamento (ÀRIES, 1981).

Apesar dessas mudanças ocorridas, ainda permaneceu uma educação fortemente

embasada por princípios de disciplina e razão no século XVII. A inocência infantil e esse

sentimento da infância surgiram no meio familiar, porém, impôs-se uma nova noção de

inocência, fomentando atitudes morais que estavam baseadas na preservação e reflexão sobre

as mazelas da vida, no desenvolvimento do caráter e da razão. Na manutenção e controle das

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atitudes da criança, encontra-se a agressão física, com o uso de chicote, como uma medida

punitiva e humilhante (ÀRIES, 1981).

A partir do século XVIII, o desenvolvimento infantil tornou-se gradativo, preparando-

se as crianças para a vida adulta através do cuidado. Nesse quesito, a participação e a

contribuição da escola colaboram para este cunho formativo em paralelo ao apoio familiar. De

acordo com Ariès (1981) essa concepção de educação vigora no século XIX, surgindo com a

Modernidade, sendo a escola e a família fundamentais para desmembrar a criança da

sociedade dos adultos.

Além da concepção de infância, as formas de conceber a adolescência e a juventude

também sofreram alterações no decorrer do tempo, possibilitando a visualização de algumas

distinções, nem sempre, tão perceptíveis entre esses conceitos. A terminologia adolescência

denota sua ligação com as teorias psicológicas do indivíduo num período de transição em que

ocorre o desenvolvimento da subjetividade comportamental do indivíduo, a partir do contato

com suas experiências na realidade, além das questões de sua natureza física e biológica,

como no caso da puberdade. Já a terminologia juventude está ligada com a representação do

indivíduo enquanto ser social e constituinte de uma sociedade, ou seja, momento pelo qual

assume uma postura de preparo para a vida adulta, formação e sua obrigatoriedade dos

deveres militares, como sendo uma responsabilidade civil perante a pátria, preparação para a

continuidade de sua formação acadêmica culminando na expectativa do planejamento

profissional e familiar, diretamente relacionado aos estudos sociológicos (GROPPO, 2004).

Para a compreensão dos significados sociais das juventudes modernas e

contemporâneas, o essencial não é delimitar de antemão a faixa etária da sua

vigência. Esta faixa etária não tem caráter absoluto e universal. É um produto da

interpretação das instituições das sociedades sobre a sua própria dinâmica. [...] É

claro que a puberdade, realmente, é algo mais ou menos universal na espécie

humana. Mas a juventude é, sobretudo, uma categoria social e não uma característica

natural do indivíduo. Na modernidade, a juventude tende a ser uma categoria social

derivada da interpretação sociocultural dos significados da puberdade, este sim, um

fenômeno natural e universal que, no entanto, pode adquirir pouca importância

conforme a sociedade em que ocorre. (GROPPO, 2004, p. 9-11).

No Brasil, após a Declaração dos Direitos da Criança, criou-se o primeiro Juízo

voltado para o atendimento exclusivo de crianças e jovens. Trata-se do “Juízo Privativo dos

Menores Abandonados e Delinquentes” ou “Juizado de Menores”, criado em 1923, com a

concepção de que eram necessárias medidas especializadas para reformar e educar aqueles

que viviam em situação de pobreza, abandono ou infração (PILOTTI; RIZZINI, 1995).

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Em 1927, foi promulgada a primeira legislação, o Código de Menores do Brasil,

conhecido como Código de Mello Mattos, voltado para a assistência e proteção dos brasileiros

menores de 18 anos de idade.

O que o impulsionava era “resolver” o problema dos menores, prevendo todos os

possíveis detalhes e exercendo firme controle sobre os menores, por meio de

mecanismos de “tutela”, “guarda”, “vigilância”, “reeducação”, “reabilitação”,

“preservação”, “reforma” e “educação”. (RIZZINI, 2000, p. 28).

Desse modo, a autoridade competente obtinha informações da realidade do menor

avaliando o estado mental, físico e moral daqueles que se encontravam em situação de perigo,

abandono e vadiagem. Nesse ano, as crianças e jovens eram categorizadas como “menores

expostos, abandonados, vadios, mendigos, libertinos ou delinquentes”, com base nos artigos

26 ao 30 (BRASIL, 1927).

O Código de 1927 foi válido por 52 anos, sendo substituído em 1979. Nesse processo,

foram incorporadas algumas mudanças na esfera tutelar, advinda da presença de assistentes

sociais que avaliam outros aspectos da criança, jovem e familiares, permitindo ao juiz ter

conhecimento da história de vida do ser em questão. Esses aspectos levam em consideração a

condição essencial de subsistência como saúde, alimentação, moradia, educação entre outros,

além de fatores de negligência dos pais ou responsáveis e casos de infração penal por desvio

de conduta familiar ou comunitária. A mentalidade, porém, continuava a mesma, “ter o

controle da situação”, eram considerados como “menores em situação irregular”.

Não houve mudanças favoráveis ao entendimento da realidade em questão, ao juiz era

dado um grande poder para as decisões mais cabíveis a serem tomadas, ou seja, retirar o

menor dos pais, institucionalizá-lo e posteriormente devolvê-lo, o que denota uma forma

punitiva e educadora nas concepções da época. Era possível retirar a guarda dos pais

biológicos considerando-os como incapazes de cuidar e colocar o menor para adoção. Assim

negligência familiar e infração do menor eram tratadas da mesma forma, a preocupação não

era ensinar caminhos ou reestruturar o seio familiar e sim uma repressão, onde se instalava o

medo e predominava a punição (CRUZ, 2015).

A compreensão das causas de fenômenos sociais advinha de ótica reducionista e a

decisão arbitrária a ser tomada era a institucionalização, ou seja, uma condição singular que

rompia com a convivência familiar e comunitária, por ordem do Estado. No ano de 1964, foi

criada na esfera nacional a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e a

partir dela, a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) nas esferas estaduais,

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sendo um dos marcos da institucionalização de crianças e jovens. Manteve-se por décadas

com um regimento baseado nas severas disciplinas militares, na vigência da ditadura militar,

especialmente para os meninos (RIZZINI; RIZZINI, 2004; CRUZ, 2015).

A década de 80 representou um período de grandes mudanças sociais. O modelo antigo

cai em desuso, não atendendo mais a realidade da época. Os novos valores contrastam com a

elaboração de normas referente aos direitos civis e humanos, dentre os quais estão direito à

vida, saúde, cultura, esporte, lazer, dignidade, profissionalização, liberdade, expressão legal

definida com a Constituição da República de 1988.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, demonstra ser de suma

importância à responsabilidade da família sobre seus membros:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,

com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao

lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à

convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda a forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL,

1988, s/p).

Essa normativa legal considera a família como sendo base da sociedade e como

referencial de ação das políticas sociais, compreendendo-a como um agente potencializador

de mudanças frente às situações de vulnerabilidade social presentes nos processos de

exclusão.

A Constituição Federal de 1988, bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA), marcam a grande conquista de direito à educação, reconhecendo e trazendo uma

atenção especial à criança e ao jovem como prioridade absoluta de proteção integral. Estes se

tornam sujeitos de direitos, cabendo ao Estado e a sociedade destinar recursos e ações que

permitam a garantia e permanência dos direitos aos que se encontram em situações de

vulnerabilidade e risco social (SOUSA, 1998).

A palavra “sujeito” traduz a concepção da criança e do adolescente como indivíduos

autônomos e íntegros, dotados de personalidade e vontade próprias que, na sua

relação com o adulto, não podem ser tratados como seres passivos, subalternos ou

meros “objetos”, devendo participar das decisões que lhes dizem respeito, sendo

ouvidos e considerados em conformidade com suas capacidades e grau de

desenvolvimento. (BRASIL, 2006, p. 25).

Em vigor desde 13 de julho de 1990, a Lei 8.069/90 que cria o ECA estabelece para o

Direito brasileiro um novo paradigma em relação à infância e juventude. Crianças e jovens

foram elevados à condição de titulares de direitos fundamentais, contando com medidas que

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garantem a proteção dos direitos de crianças até doze anos de idade incompletos e jovens dos

doze anos aos dezoito anos de idade. O ECA prevê o reconhecimento das crianças e jovens

como sujeitos de direitos e deveres independentes de sua raça, cor e classe social, tendo

direito ao desenvolvimento físico, mental e social. Esse Estatuto conta com medidas para

resguardo da família, seja natural ou substituta. Em poder de guarda, há a obrigatoriedade do

sustento, assistência e educação, já que a família é vista como alicerce para a formação das

crianças (BRASIL, 1990).

Com a implementação do ECA surge o termo “abrigo” com a finalidade de representar

o atendimento e a reestruturação familiar para as crianças e jovens que cumprem medidas

protetivas. Os motivos de inserção nas instituições de acolhimento (abrigos) são diversos,

podendo ocorrer por determinação do Conselho Tutelar ou da autoridade judiciária. A

violência familiar e os maus tratos vivenciados são motivos que levam ao encaminhamento de

crianças e jovens, ainda que de forma provisória, a uma instituição. Além disso, estão

relacionados às circunstâncias de vida das famílias, nas quais, na maioria das vezes, há falta

de recursos financeiros, moradia, desemprego e/ou problemas de saúde. Dentre os casos que

levam a situação de abrigamento de crianças e jovens, na modalidade de medida protetiva,

são: abandono, pobreza, violência doméstica e de rua, dependência química e alcoolismo,

ausência de trabalho e moradia representando a falta de condições por parte dos pais ou

responsáveis para criar e cuidar de seus filhos, além de questões que envolvem a orfandade.

Em função desses fatores de difícil enfrentamento, destacamos que o trabalho com as

famílias de crianças e jovens acolhidos depende do funcionamento efetivo de políticas

públicas e exige a articulação da rede de serviços. Tais fatores influenciaram as políticas

públicas para criação de medidas de proteção aos menores abandonados, conservando o

acolhimento institucional como uma medida social nesses casos especiais de risco. Os abrigos

mantêm um trabalhado ligado com órgãos públicos, Conselho Tutelar, Justiça da Infância e da

Juventude e as Secretarias Sociais dos municípios.

Diante tais fatores, a convivência dentro do abrigo, comumente, é marcada por

histórias de vida dolorosas e por rupturas bruscas e precoces nos laços primordiais

estabelecidos entre crianças e jovens e seus familiares. Por mais sofridas que tenham sido

essas experiências, pensamos que essas marcas devem ser trabalhadas por meio da escuta, do

contato, do afago, do diálogo e de atividades que se preocupem com a qualidade de vida das

crianças e jovens, os quais já carregam uma carga enorme de responsabilidades e problemas

que, por vezes, são incompatíveis com o nível de sua maturidade.

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Em caso de ausência de cumprimento das obrigações para com a criança ou jovem, a

família fica suscetível à perda da guarda, podendo a criança ser enviada a um abrigo para

adoção. No caso, esse descumprimento acaba sendo o resultado de uma vulnerabilidade social

que atinge em massa as camadas mais pobres, refletindo diretamente na formação e

estruturação familiar. Nessa situação estão, desemprego, dificuldades de inclusão social e

mudanças socioeconômicas. Os pais, sufocados com a necessidade de trazer renda para o lar,

acabam se distanciando de seus filhos ou colocando-os em atividades de trabalho antes de

completarem maioridade.

Em suas características gerais, o abrigo se define como uma unidade que possui clima

residencial e cujo objetivo é acolher provisoriamente crianças e jovens que por diversos

motivos são impedidos judicialmente de permanecer junto à família de origem. Ele oferece

atendimento personalizado preservando os vínculos familiares e a não privação da liberdade,

atuando para o cumprimento das necessidades básicas e sociais e oferecendo aos acolhidos a

participação em atividades da comunidade, por meio da permanência na escola e áreas de

lazer. O dirigente do abrigo é responsável por elas no período em que se encontram

institucionalizadas.

A permanência da criança ou jovem no abrigo pode ser transitória como também pode

ser permanente e isto está diretamente ligado à sua história. Podem permanecer por alguns

dias ou ter uma permanência continuada de meses e anos até serem integradas em família

substituta. Caso isto não ocorra, a criança permanece no abrigo o tempo que for necessário. A

investigação desenvolvida por Vanessa Cruz (2015) revela que, embora o acolhimento seja

caracterizado pela provisoriedade, existem jovens que passam boa parte de sua infância e

juventude em instituições de acolhimento.

No ano de 2004, foi aprovada uma nova Política Nacional de Assistência Social

(PNAS) e a Norma Operacional Básica (NOB/2005), na perspectiva de fundamentar a atuação

da Assistência Social, com suas definições e normatizações federais, para a gestão do

financiamento de assistência social com a criação do Sistema Único de Assistência Social

(SUAS). Foi consolidada como uma política pública de direitos, tendo seu marco legal como

Projeto de lei apenas no ano de 2008 com a Lei nº 3.077/2008 e sua promulgação na Lei

12.435 de 2011. Desta forma houve uma contribuição no quesito de padronização e qualidade

dos serviços socioassistenciais em prol aos direitos de cidadania, inclusão social, vigilância,

proteção e defesa social (BRASIL, 2008).

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Em meio às mudanças ocorridas na política de assistência social, pode observar suas

concepções voltadas à inserção da questão de Seguridade Social, demonstrando suas

características de proteção social no âmbito da garantia de direitos e a questão das condições

de uma vida com dignidade, delineando seus objetivos conforme Plano Nacional de

Assistência Social:

Prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e, ou,

especial para famílias, indivíduos e grupo que deles necessitarem; contribuir com a

inclusão e a equidade dos usuários e grupos específicos, ampliando o acesso aos

bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbana e rural;

assegurar que as ações no âmbito da assistência social tenham centralidade na

família, e que garantam a convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 2005,

p.33).

Na questão de Proteção Social Básica estão inseridos os objetivos de prevenir as

situações de vulnerabilidade social, além de priorizar também o fortalecimento dos vínculos

familiares e comunitários aos que se encontram em desigualdade social. Este serviço é

realizado pelo Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), com o Programa de

Atenção Integrado às Famílias (PAIF), o Programa de Atenção Integrado às Famílias, o Bolsa

Família, Proteção Social Básica a Infância e Juventude, Agente Jovem, Proteção Social

Básica a Pessoa Idosa e Proteção Social Básica a Pessoa com Deficiência.

Apesar das proximidades a questão da Proteção Social Especial de Média ou Alta

Complexidade é desenvolvida com o aporte do Centro de Referência Especializado em

Assistência Social (CREAS), tendo como seus objetivos o atendimento aos familiares e às

pessoas que se encontram em questão de risco social e pessoal no caso advindo por motivos

decorrentes de maus tratos físicos, psíquicos, violência sexual entre outros, agindo para a

questão de proteção e garantia de direitos, já a Proteção Social Básica tem o carácter

preventivo. Devido sua complexidade, suas ações são compartilhadas com o poder Judiciário,

Ministério Público e Executivo. Seus programas envolvem: Programa de Erradicação do

Trabalho Infantil (PETI); Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças

e Adolescentes; Proteção Social à Pessoa com Deficiência; Rede Abrigo - Proteção Social

Especial à Criança, ao Adolescente e à Juventude.

Neste caso entram as prioridades para a reestruturação dos serviços de acolhimento

institucional, destinando aos indivíduos que não contam mais com o cuidado e proteção de

suas famílias, garantindo moradia, alimentação, zelo, proteção, cuidados com as necessidades

básicas de higiene e saúde, acompanhamento escolar e programas de atividades cultural. Aos

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familiares que perderam a guarda de seus filhos é ofertado o acompanhamento realizado por

assistentes sociais e psicólogos na tentativa de fomentar a revinculação social, que antecede

ao agendamento de mais uma nova audiência. Comumente, esse momento de audiência

realizada na esfera jurídica causa uma tensão entre os envolvidos, podendo ser um momento

de expectativas prazerosas ou de descontentamento.

Além das instituições de abrigo para cumprimento de medida protetiva a crianças e

jovens em situação de vulnerabilidade social, também existem as instituições onde crianças e

jovens cumprem medidas socioeducativas em decorrência da prática de atos infracionais. No

ano de 2006, o governador do estado de São Paulo Cláudio Lembo, que substituiu Geraldo

Alckmin que se ausentou neste ano para concorrer à Presidência da República, aprovou a

lei 12.469/06, alterando a política do atendimento destinado a crianças e jovens que cometiam

atos infracionais. O nome FEBEM foi alterado para Fundação CASA (Centro de Atendimento

Socioeducativo ao Adolescente) com a proposição de questionar a imagem de violência ou

punição advinda das sanções disciplinares praticadas numa institucionalização construída nos

moldes da ditadura militar. A Fundação CASA preconiza o atendimento socioeducativo aos

jovens, vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania, propondo elaborar

e desenvolver programas que se atende à reintegração social, envolvendo a inclusão da

educação, a profissionalização, inserção em atividades socioculturais, participação de

atividades no meio comunitário entre outros. Tal atendimento obedece às regras propostas

pelo Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE), que normatiza a configuração desta

tipologia de atendimento em unidades de Internação, Internação Provisória, Semiliberdade e

Liberdade Assistida, determinando assim a padronização dos serviços qualitativos e

quantitativos, envolvendo o número de jovens atendidos, a localização, o tamanho das

unidades, o limite de atendimento, as questões administrativas e de parcerias com os

municípios ou com as organizações não governamentais (SÃO PAULO, 2006, 2014).

2.1 - O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E A REVINCULAÇÃO FAMILIAR

“...Agora consigo ter união com eles...”

(Camila)

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A nomenclatura acolhimento foi instituída pelo Plano Nacional de Promoção, Proteção

e Defesa do Direito da Criança e do Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária,

destinando-se temporariamente ao atendimento e cuidado de crianças e adolescentes que

foram separados de suas famílias por questões que envolvam risco e vulnerabilidade, se

enquadrando em duas modalidades, o acolhimento institucional e o acolhimento familiar.

O acolhimento familiar é destinado às crianças e jovens que foram separados de seus

familiares de origem, sendo incorporados na guarda de outras famílias, previamente

vinculadas a um programa de acolhimento. Neste caso não ocorre à institucionalização, seus

objetivos e estratégias denotam minimizar o impacto que esta questão de separação dos

familiares de origem acaba gerando, como: desconforto, tristeza, solidão entre outros,

buscando qualificar o intuito de família e a revinculação com a família de origem (BRASIL,

2009a).

O acolhimento institucional como o próprio nome diz, ocorre em uma instituição

projetada estruturalmente e planejada com uma equipe de trabalho atuante na prestação dos

serviços de atendimento especiais, podendo ser classificados de acordo com as orientações

técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2009),

como: abrigo institucional, casa lar, república e famílias acolhedoras.

Ambos tratam de situações bastante delicadas e, no caso, faz-se necessário o

cumprimento de projetos, objetivos, acompanhamento de resultados entre outros,

demonstrando a veracidade profissional da equipe que compõe o atendimento às crianças,

jovens e familiares, na expectativa de realmente cuidar das vidas que ali se encontram,

garantindo seus direitos de cidadania, pois não basta apenas boa vontade, empatia ou

intuições, deve-se realmente fundamentar as ações rumo a um projeto de atendimento.

Com ênfase no atendimento de Proteção Social de Alta Complexidade, os serviços de

acolhimento, seguem regulamentos estabelecidos pela Norma Operacional Básica de

Assistência Social – NOB-SUAS, lançada em 2009 juntamente com o Ministério de

Desenvolvimento Social e Combate a Fome, um detalhamento mais objetivo perante as

tipologias de acolhimento, normalizando assim suas orientações técnicas, além de tratá-las

como responsabilidade dos municípios. Seguindo essas orientações que definem as

normatizações atuais, destacamos a Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para

Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2009a), definindo as tipologias de atendimento aos

acolhidos sendo:

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Abrigo Institucional

Serviço que oferece acolhimento provisório para crianças e adolescentes afastados

do convívio familiar por meio de medida protetiva de abrigo (ECA, Art. 101), em

função de abandono ou cujas famílias ou responsáveis encontrem-se

temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção, até

que seja viabilizado o retorno ao convívio com a família de origem ou, na sua

impossibilidade, encaminhamento para família substituta. (BRASIL, 2009a, p. 63).

O serviço de abrigamento institucional deve priorizar o atendimento qualitativo

destinado a crianças e jovens de 0 a 18 anos sob medida protetiva e aos familiares,

favorecendo a questão de acessibilidade do seu espaço territorial próximo as suas residências

de origem, além de envolver as questões de acessibilidade com a comunidade e promoção da

revinculação familiar. O atendimento é destinado a vinte crianças e jovens por unidade,

contando com um educador para cada dez atendidos segundo dispõe o ECA. Mantiveram-se

os mesmos objetivos nas Orientações Técnicas - Serviços de Acolhimento para Crianças e

Adolescentes (BRASIL, 2009a).

Além dos abrigos, existem outras modalidades de instituições de acolhimento como a

Casa Lar e a República. A Casa Lar constitui-se como:

O Serviço de Acolhimento provisório oferecido em unidades residenciais, nas quais

pelo menos uma pessoa ou casal trabalha como educador/cuidador residente – em

uma casa que não é a sua – prestando cuidados a um grupo de crianças e

adolescentes afastados do convívio familiar por meio de medida protetiva de abrigo

(ECA, Art. 101), em função de abandono ou cujas famílias ou responsáveis

encontrem-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e

proteção, até que seja viabilizado o retorno ao convívio com a família de origem ou,

na sua impossibilidade, encaminhamento para família substituta. (BRASIL, 2009a,

p. 69).

Esta modalidade de acolhimento é semelhante ao abrigo institucional, atendendo o

mesmo público alvo, crianças e jovens de 0 a 18 anos, mas se difere por preconizar uma maior

relação social com o educador/cuidador que reside junto aos acolhidos em suas residências,

atendendo grupos de no máximo dez por educador em cada unidade. Tão quanto o abrigo

institucional, na Casa Lar promovem-se ações para o desenvolvimento de autonomia de

acordo com a realidade envolvida, trazendo para o ambiente residencial uma proximidade

com a realidade familiar, a interação com a comunidade, entre outros.

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Seguindo um modelo de trabalho baseado no sistema de casas-lares, a ação do cuidado

é exercida por um responsável técnico, dentro de uma estrutura baseada nos moldes de uma

residência privada em que habitam até dez crianças e/ou jovens. Nelas estão incluídos espaços

coletivos como dormitórios, banheiros, sala de lazer, sala de jantar, sala de estudos ou espaços

individualizados como guarda objetos e pertences pessoais, área de exposição de imagens,

fotografias e afins, atendimento e espaços destinados em casos de situações especiais como

deficiência, separação das casas nas relações de gêneros. Essas residências devem estar

situadas próximas dos espaços residenciais, em condições favoráveis de acesso, sem se

distanciar excessivamente da família de origem. Na esfera e no trabalho como aspecto de seu

desenvolvimento, há uma equipe de profissionais que se dedica à manutenção de uma

qualidade de vida básica com alimentação, atividades de esporte e lazer, acompanhamento

médico e manutenção da saúde, ensino de práticas culturais, leitura, teatro, dança,

musicalização, ensino religioso e atividades técnicas no preparo de um ensino

profissionalizante para a qualificação de um profissional apto para inserção no mercado de

trabalho com segurança e autonomia independente (BRASIL, 2006).

A República é definida como:

Serviço de acolhimento que oferece apoio e moradia subsidiada a grupos de jovens

em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social; com vínculos familiares

rompidos ou extremamente fragilizados; em processo de desligamento de

instituições de acolhimento, que não tenham possibilidade de retorno à família de

origem ou de colocação em família substituta e que não possuam meios para auto

sustentação. (BRASIL, 2009a, p. 85).

Ao completar 18 anos, os jovens que vivenciaram a questão de acolhimento

institucional e não conseguiram incorporar-se a uma família poderão participar de uma

República, já que neste caso são considerados como emancipados, ou seja, atingiram a

maioridade penal tornando-se independentes perante a lei. Eles são desligados da instituição,

mas neste caso a própria instituição que o abrigou deverá proporcionar orientações aos jovens

para que consigam alcançar sua independência e autonomia. Assim, antes de atingirem a

maioridade são estimulados a dar seguimento em suas vidas, condicionando-os aos estudos,

ao trabalho, participação em alguma atividade social, religiosa, cultural e profissional. As

Repúblicas atendem jovens de ambos os gêneros, com idade de 18 a 21 anos e espera-se que a

partir desse período sejam capazes de assumir suas próprias vidas.

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No ano de 2009, foi incorporado uma nova Tipificação Nacional dos Serviços

Socioassistenciais alterando a Política Nacional de Assistência Social, na Resolução nº 109 de

11 de novembro de 2009, a partir da aprovação do Conselho Nacional de Assistência Social

(CNAS), com a inclusão da modalidade de acolhimento institucional para jovens e adultos

com deficiência que será ofertado em Residências Inclusivas.

As Residências inclusivas são destinadas a jovens e adultos com algum tipo de

deficiência, tendo em sua estrutura física um rol de equipamentos e projetos arquitetônicos,

que permitam e favoreçam a qualidade do atendimento prestado a esses usuários. O

atendimento é ofertado por vinte quatro horas, devendo cada residência contemplar dez

pessoas no máximo. Segundo a Norma operacional básica de recursos humanos do SUAS

(NOB/ RH), a equipe que compõe os cuidadores e auxiliares deverá ser de um cuidador e um

auxiliar para cada seis usuários, levando em consideração as necessidades específicas

particulares.

Entre outras classificações que constam na Tipificação Nacional dos Serviços

Socioassistenciais temos o acolhimento para adultos e famílias, adultos em saída de rua,

idosos, casas de passagem, mulheres em situação de violência, sendo destinado ao público

adulto de ambos os gêneros que difere do acolhimento destinado às crianças e jovens.

Devemos levar em consideração os motivos que corroboram ao acolhimento de um

público adulto composto por pessoas consideradas como emancipadas e capazes de

assumirem a sua própria independência, as condições sócio econômicas do país, município e a

gestão num todo na área da saúde, transporte, lazer, trabalho, habitação entre outros,

impactam diretamente sobre a vida dos adultos na questão das necessidades básicas, além do

desemprego, má distribuição salarial e/ou problemas de drogadição, de modo que nem todos

conseguem arcar com a manutenção de sua subsistência ou ter acesso a oportunidades que

favoreçam a projeção de novas perspectivas de vida.

Nesta ótica, é perceptível a importância dos Serviços Socioassistenciais para este

público que preconizam em seus objetivos gerais, atender provisoriamente, adultos, grupos

familiares e idosos em instituições com características semelhantes a uma residência

domiciliar, oferecendo proteção, atendimento emergenciais, proximidade com o meio urbano,

atendimento as necessidades básicas e lazer. Outros motivos que levam ao acolhimento de

adultos, famílias e idosos envolvem, falta de condições para o autossustento, questões

emergenciais de violência e agressão física, comumente praticada num público feminino,

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desabrigamento de suas próprias residências, moradores de rua, limitações físicas e mentais,

entre outros.

Assim, observar o percurso histórico permite perceber o grande avanço quanto ao

significado da criança e do jovem no meio social, além do fato de elucidar a importância do

cuidado necessário ao público adulto, com um olhar de compaixão rumo aos desafios. Ao

mesmo tempo, nota-se a incorporação legal de direitos e proteção, como medidas de leis que

regem o embasamento moral e ético do país. Tendo em vista tais aspectos, é crucial refletir

sobre nossos comportamentos enquanto seres humanos e cidadãos. Não é possível ignorar que

os desarranjos sociais não existam e ou deixar para as instituições a total responsabilidade de

criar um espaço acolhedor, como o único lugar de cuidado, proteção e agente formador de

sujeitos afastados do convívio familiar.

Mesmo com as mudanças de paradigmas advindas com o surgimento do ECA, não foi

suficiente o reordenamento do serviço prestado pelas instituições de acolhimento. Além do

cunho qualitativo do serviço prestado, deve-se compreender que o afastamento familiar ou o

seu rompimento tendem a aumentar cada vez mais o abandono, prolongando o tempo de

acolhimento e privando-as do direto ao convívio familiar e social. E é nesse contexto que,

segundo Behring e Bosquetti (2006), o atendimento social do chamado terceiro setor advém

como uma alternativa para viabilizar um olhar mais atencioso aos que se encontram em

situações de vulnerabilidade.

O acolhimento institucional como espaço provisório vai além das questões da garantia

de direitos, proteção, desenvolvimento, entre outros. É crucial que tenha como meta o

acolhimento significativo desde a chegada da criança ou jovem à instituição. O zelo manifesto

na maneira de ouvi-los, permitindo entender sua história de vida, é postura que deveria ser

tratada com mais afinco, pois mostra aos acolhidos que eles têm um significado especial neste

lugar. Após a acolhida, vínculos sociais e da autonomia tornam-se um desafio tanto para o

indivíduo quanto para a instituição acolhedora nas suas rotinas de trabalho.

Falar de autonomia em abrigos como desafio para a instituição implica pensar em uma

forma de obtenção da autossuficiência, não apenas financeira, apesar de este ser um dos

grandes agravantes para a sustentação qualitativa do trabalho realizado. Deve ser uma

autonomia capaz de gerar novas oportunidades de inserção social. Assim, o desafio também

está na estruturação e manutenção das premissas que permitem identificar a instituição.

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A segurança e o afeto sentidos nos cuidados dispensados, inclusive pelo acesso

social aos serviços, contribuirão para: a capacidade da criança de construir novos

vínculos; o sentimento de segurança e confiança em si mesma, em relação ao outro e

ao meio; o desenvolvimento da autonomia e autoestima; a aquisição de controle de

impulsos; a capacidade de tolerar frustrações e angústias, dentre outros aspectos.

(BRASIL, 2006, p. 26).

Quanto ao indivíduo, deve-se tomar cuidado no uso da palavra autonomia, pois, neste

caso, denota-se uma preparação para o livre-arbítrio, para a liberdade de escolha, a construção

do seu próprio destino e a configuração do seu existir. Chamamos a atenção para que se note

que o desenvolvimento ou preparo da autonomia do indivíduo inserido no contexto de

acolhimento é o oposto da realidade vivida. Por mais que os desejos, valores e a dedicação

das instituições para que os espaços sejam um lugar de autonomia, ainda assim, não é o local

onde a criança ou jovem nasceu, viveu e vivenciou relações de afetividade.

Ao entrar na situação de acolhimento, os sujeitos passam também a incorporar novas

regras. Espaços, instrumentos, jogos, brinquedos são coletivizados. O momento de quietude

pode denotar solidão e, muitas vezes, o que o separa de um horizonte é uma cerca ou um

muro. A escolha por uma atividade ou outra não é resultado de imposição, mas é o que se

oferece, a vida passa a ser metódica e monótona. Torna-se uma sistematização da tristeza e de

um cenário cruel com relação ao projeto de vida que se pretende formar.

A reprodução desse sistema é uma das barreiras que devem ser problematizadas para

que a instituição de acolhimento busque a sua real autonomia, além de se preocupar

preponderantemente com o cunho qualitativo de sua equipe técnica. Para isto, terão que gerar

novos aprendizados, formando novas possibilidades aos desafios que surgem.

Nesse processo de desenvolvimento, as instituições precisam mudar seu contexto,

acreditando e ofertando oportunidades que expressem o potencial de cada indivíduo. Assim

pode-se configurar a autonomia não como uma hipótese e sim como uma ação ativa, para que

as instituições de acolhimento não sejam apenas lugares onde se podem encontrar alimentação

e moradia, mas um ambiente de busca por uma oportunidade de mudança na situação de

precariedade do atendimento oferecido aos seus acolhidos.

Muitos esforços têm se voltado para a capacitação profissional, como uma das

alternativas para o retorno à convivência dos acolhidos com a comunidade, permitindo novas

possibilidades de inserção social e inclusão no mercado de trabalho, além de ser considerado

como uma das atividades que permite a convivência com a família. No entanto, como

construir essa prática?

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Conforme estabelecido no ECA, no que se refere ao direito à profissionalização e à

proteção ao trabalho, o estatuto determina que a criança não pode trabalhar e que o jovem tem

direito à profissionalização e à proteção no trabalho respaldado pelo respeito à sua condição

peculiar de pessoa em desenvolvimento, preparando-o para a capacitação profissional

adequada ao mercado de trabalho.

Essa tipologia de trabalho educativo com jovens, nos termos legislativos, é

considerada como atividade laboral, ou seja, atividades que são praticadas para o meio do

trabalho. Porém, o destaque na lei para a profissionalização de jovens deve corroborar com

ênfase na esfera educativa, assim as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento

pessoal e social do educando prevalecerá sobre o aspecto produtivo, mesmo que haja uma

remuneração envolvida, não descaracteriza o caráter educativo (BRASIL, 1990).

Por mais que as atividades sejam semelhantes para os abrigados o propósito é

completamente diferente. O foco não está destinado à profissionalização e sim em uma

atividade que proponha cultura, lazer, diversão, interação com colegas, reintegração familiar e

não o aspecto produtivo. Desse modo, o acolhimento institucional deverá possibilitar

oportunidades que visem à efetivação dos direitos de seus abrigados. Dessa maneira, buscam-

se atividades práticas que permitam a eles ingressarem em curso de aprendizagem com ênfase

no desenvolvimento do trabalho educativo, normalmente, este tipo de prática é desenvolvido

dentro da própria instituição.

Embora o acolhimento institucional proporcione a inserção do acolhido em seu novo

ambiente na tentativa de suprir suas necessidades básicas, não será possível suprir a carência

ocasionada pela quebra do vínculo familiar e as necessidades afetivas. A criança passa a ser

cuidada por pessoas desconhecidas pelas quais não possui nenhum referencial afetivo, o que

pode ocasionar prejuízos em seu desenvolvimento global, seja comportamental, mental,

linguístico, social, afetivo, etc. Não se nega que isto não ocorra na sociedade como um todo,

mas as crianças acolhidas advindas de classes subalternas ficam mais suscetíveis a alguns

desses acontecimentos na sua fase de desenvolvimento. A falta da família por tempo

prolongado gera condições desfavoráveis para seu bom desenvolvimento, uma vez que

dificilmente recebem atenção semelhante aos laços paternais.

A família é considerada como um loco do desenvolvimento humano, no qual imprime

suas configurações, valores, sentidos de acordo com as vivências históricas e suas

contemporaneidades (BASTOS; ALCÂNTARA; FERREIRA-SANTOS, 2002). A família é

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considerada como o primeiro agente de socialização de uma criança e como a família teve e

tem sofrido transformações ao longo da história, ao citarmos família não necessariamente

estamos tratando das famílias de origem, até mesmo porque consideramos a concepção de

família como aqueles que criam, cuidam e zelam pelo ser humano, num critério de relação

social e neste caso, sim, quão importante é a família de origem (biológica), mas não podemos

esquecer a importância de outras estruturas familiares que estão sendo constituídas rumo a

uma ordem democrática, em que também são constituídos vínculos afetivos como casais de

relacionamentos homoafetivos, casos de fatalidades nos quais a criança é adotada por parentes

ou não, entre outras situações.

A questão dos vínculos afetivos é decorrente de um processo de desenvolvimento que

começa desde a infância e percorre toda a existência do indivíduo. Assim, podemos

preconizar a importância da criança estar inserida em um contexto familiar tanto quanto um

olhar mais cauteloso para o mundo que rodeia a infância, ou seja, o desenvolvimento

emocional e socioemocional na interação com os outros, as capacidades motoras, intelectuais

e cognitivas, estabelecimento de valores, crenças, hábitos, entre tantas outras belezas e

cuidados deste espaço de tempo, culminando numa proximidade, dependência e identidades

significativas da relação entre pais e filhos e o meio de um modo geral, composto pelos seus

irmãos, parentes, amigos e afins. Essas interações ocorrem sendo comum que haja discórdias

de opiniões, agentes limitadores que denotam o que é permitido, além de suas oposições,

conflitos, problemas corriqueiros do dia a dia que são resultados das relações de reciprocidade

e dependência afetiva, condicionando a subjetividade num elo de relações (GIMENO, 2001).

Assim podemos perceber a importância da família na questão de cuidados advindos de

uma relação afetiva, remetendo até mesmo a uma questão de sobrevivência dos seus

descendentes. A criança por si só não seria capaz de se autossustentar se não tivesse a

presença de um adulto, a qualidade do seu desenvolvimento está diretamente ligada a uma

questão de relacionamento do ser humano, objetos e meio ambiente. Remeter a uma

vinculação que se consolida numa relação de afetividade e pertença no contexto familiar,

culmina aos pais responsáveis a qualidade da formação e a criação de seus filhos, além da

formação da identidade que coaduna no estabelecimento de valores.

Para tratarmos da formação identitária é preponderante abordarmos primeiramente o

conceito de identidade. Segundo Daunis (2000), a identidade é encarada como um atributo de

qualidade e condição relacional do próprio ser com o meio que, com sua consciência crítica e

personalidade, configuram as suas características de desenvolvimento. Essas mudanças são

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intrínsecas de cada indivíduo que, com seus próprios julgamentos, constituem um sentimento

de segurança daquilo que pretende representar na sociedade. Segundo o autor a identidade

envolve a formação do eu, a autoestima, personalidade e a individualização.

Segundo Lopes (1995) os instintos governam as atitudes da criança, já que são

desprovidas de juízo moral no seu nascimento, por uma questão de sobrevivência ainda

limitada, choram, engolem, respiram, e aos poucos vão se desenvolvendo e estabelecendo

ordens de valores com suas influências no meio e com os relacionamentos. Posteriormente os

instintos vão sendo ocupados por juízos de valores aprendidos com outras pessoas, que

determinarão a ação do seu comportamento.

A formação identitária é um processo que ocorre da infância à adolescência, sendo a

família grande condutora neste processo de formação e educação do indivíduo. Percebemos

que a desestruturação familiar advinda do desprezo dos pais ou da falta de carinho e cuidados

básicos ou, ainda, a permissividade e falta de limites podem acarretar problemas nesse

processo de formação identitária por parte de crianças e jovens. Esses problemas advindos da

ausência do acompanhamento familiar remetem a uso abusivo de álcool e drogas,

criminalidade, entre outros, presentes em todas as classes sociais. Formam-se pessoas

alienadas de valores e juízo, uma vida sem sentido num mundo onde tudo é permitido,

dificultando a visualização de soluções para saciar os diversos desejos fomentados pelas

propagandas veiculadas na mídia.

Para Daunis (2000) a ineficácia da relação pais e filhos circunscreve-se na palavra

ausência. A qualidade da formação de seus filhos advém de um despreparo emocional e

organizacional no contexto familiar, falta um diálogo aberto com seus filhos, o

acompanhamento nas etapas da vida, a presença marcante de um pai e de uma mãe que está

de braços abertos para receber a criança ou adolescente, antes mesmo do seu nascimento, nas

vivências do dia a dia, além da questão espiritual, no intuito de fomentar suas crenças.

Tratamos da família num contexto importante de vinculação relacional com seus

filhos. Partimos do pressuposto de um olhar familiar considerando as contribuições que a

relação circunscreve na formação identitária e relacional, porém ao tratarmos da revinculação

familiar teremos que considerar a hipótese, será que já existia conceito de família antes?

Revincular quais vínculos, os mesmos do passado ou com uma nova perspectiva de sentido na

vida?

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Para muitas crianças e jovens acolhidos o retorno à família de origem é uma opção

descartada devido à gravidade do problema em questão, tornando-os muitas vezes vítimas do

esquecimento, quando passam anos sem terem uma definição sobre suas próprias vidas.

Passam isolados, num mundo diferente de um contexto familiar, e independente da qualidade

do atendimento prestado por esses abrigos, dificilmente conseguem apagar o contexto

histórico vivido na família, apesar do sofrimento pelo qual passaram se sentem distantes de

suas famílias e familiares, mas seus sentimentos por eles ainda se mantêm vivos.

A terminologia revinculação familiar significa aproximar novamente os vínculos

afetivos que foram rompidos, podendo ser a família de origem, ou caso esta esteja

impossibilitada devido à perda da guarda, se sugere alguém que a criança ou o adolescente

tenha grau de parentesco (irmãos, avós, tios, primos) ou em último caso outras pessoas com as

quais estabelecerão vínculos de afinidade. Em todos os casos deverão oferecer condições e

motivações para assumi-las. Durante este processo de revinculação, o grande destaque está no

saber ouvir as crianças e os jovens (quais seus desejos, com quem querem ficar), além disso, a

família deve ter o acompanhamento e atendimento oferecido por lei, procurando solucionar os

motivos pelos quais levaram ao abrigamento, passando por avaliações, aproximações entre

indivíduos realizadas gradativamente por um período planejado pela própria equipe de

serviços de acolhimento (OLIVEIRA, 2010).

Trazemos essa discussão com intenção de apresentar o contexto de muitos que se

encontram nessas condições. Uma vida de solidão, sem perspectivas imediatas de mudança,

onde muitas vezes a pessoa se sente silenciada, isolada, marcada por tristeza e ausente de um

enredo onde seria o personagem principal. O prolongamento da indecisão sobre sua vida

acaba afetando o desenvolvimento global do ser, pois seu universo dentro de uma instituição é

limitado, impossibilitando construir uma relação favorável de liberdade com o contexto

comunitário e ampliar suas perspectivas de vida.

Para discutimos essa questão delicada, envolvendo as condições éticas e morais, além

do desprendimento de muita emoção, a revinculação tornou-se assunto de grande destaque na

Lei nº 12.010 de 2009, incluiu nos termos do parágrafo único do art. 23, dos incisos I e IV do

caput do art. 101 e dos incisos I a IV do caput do art. 129 do ECA. “A manutenção ou

reintegração de criança ou adolescente a sua família terá preferência em relação a qualquer

outra providência, caso em que será esta incluída em programas de orientação e auxílio”.

(BRASIL, 1990, p.1).

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Ora, pois, as situações que levaram às condições de acolhimento muitas vezes são

situações desumanas, mas será que essa inclusão em programas de orientação e auxílio é

capaz de mudar todo o contexto da reestruturação familiar, permitindo assim, seus filhos

retornarem aos lares e família de origem?

As incertezas pairam, não queremos desacreditar no ser humano, de forma alguma, até

defendemos, nesta pesquisa, a importância da humanização, nossas preocupações de debates,

culminam não nos familiares, mas sim nas promessas de ação do governo como sendo

prioritárias, mas não realizadas. Assim, a revinculação familiar na sua complexidade pode ser

compreendida a partir de aspectos históricos, jurídicos, psicológicos, sociais, culturais e pelos

aspectos individuais daqueles que vivenciam essa situação (SERRANO, 2008).

2.2 - O ABRIGO PROJETO LAR FELIZ E O CURSO MÃO NA MASSA

A ONG “Projeto Lar Feliz” é uma instituição de acolhimento institucional para

crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, situada no interior de São Paulo.

Considerada uma instituição da sociedade civil, sem fins lucrativos, visa oferecer um

ambiente familiar com objetivos que vão além da institucionalização. O local é próximo à

moradia dos familiares e de sua comunidade de origem. Atende a demanda de quatro cidades

circunvizinhas e objetiva preservar vínculos familiares e comunitários, além de facilitar o

desenvolvimento do trabalho de reintegração familiar. O atendimento é destinado a crianças e

jovens de ambos os sexos, com idade entre 0 a 17 anos. Ao completarem 18 anos, caso não

tenham possibilidade de ser inserido em uma família, a sua própria ou substituta, e se ainda

não estiverem prontos para se tornar independentes, os jovens são estimulados a viver em uma

república para conquistar sua autonomia e emancipação, além de construir uma rede de

relações pessoais e sociais mais diversificadas. Vale ressaltar que nesta fase eles são

considerados como maiores de idade, assumindo uma carga maior de responsabilidade sobre

sua própria vida.

A instituição proporciona às crianças e jovens moradia em casas separadas por sexo e

idade, totalizando cinco casas, com oferta de alimentação diária, que envolve café da manhã,

almoço, lanche da tarde e jantar. Comumente, os passeios estão voltados ao prazer alimentar,

em pizzarias, sorveterias, restaurantes, entre outros. Cada um possui seu vestuário, muitas

vezes coletivizados entre eles. Não é difícil encontrar debates sobre “quem pegou meu

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chinelo”, “devolve minha camiseta”. Tais itens são adquiridos por donativos ou compras

mediante a necessidade.

Contam com acompanhamento para a manutenção da saúde física e psicológica,

atividades de esporte como futebol, artes marciais, lazer no contato com a natureza, piscina,

passeios, cursos de dança, expressão corporal, artesanato, curso de confeitaria e panificação

industrial intitulado como “Mão na Massa”, além da orientação religiosa voltada a doutrina

evangélica, ministrada pelo fundador, o próprio Pastor.

Atualmente o limite de atendimento restringe-se a 41 acolhidos e possui um plano de

trabalho suficiente para atender até 45 abrigados. O atendimento abrange as cidades de

Jaguariúna, Santo Antônio de Posse, Congonhal, Serra Negra e Águas de Lindoia.

O apoio na manutenção do abrigo é feito através de convênios com as prefeituras de

cada cidade atendida, através de doações, eventos sociais, Nota Fiscal Paulista e parcerias

com o Banco do Brasil, Conselho Municipal das Crianças e Adolescentes (CMDCA) e

empresas privadas.

O acompanhamento aos familiares é feito através de encaminhamento a órgãos de

auxílio como: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Conselho

Regional de Assistência Social (CRAS), Posto de Atendimento ao Trabalhador (PAT),

Unidade Básica de Saúde (UBS). Cada um ocorre conforme sua necessidade para que tenham

auxílio à saúde e oportunidade de emprego. Além disso, a ONG “Projeto Lar Feliz” participa

de atividades que a comunidade desenvolve como campeonatos, atividades culturais

recreativas, esporte, lazer, cultura, apresentações em eventos, entre outros.

Cada criança ou jovem carrega em si suas particularidades e os motivos para estarem

ali. E por mais curta que tenha sido, todos tiveram uma história familiar que foi interrompida

pela violação de alguns de seus direitos, em que a família perdeu a capacidade de manter a

proteção de seus filhos. Consideramos pertinente retratar alguns dos acontecimentos buscando

contextualizar o curso numa relação que acontece entre pais e filhos e grupos específicos, na

tentativa de ilustrar as vivências e discutirmos sobre o termo vinculação familiar além de sua

revinculação e a importância da família como agente de formação identitária.

As crianças e jovens, com todas as mudanças vividas e suas bagagens históricas,

demostram de alguma forma seus sentimentos. É visível o carinho que as crianças têm para

distribuir com aqueles que as rodeiam, querem colo, abraços, beijos, afagos; até mesmo

ocorre uma competição para receber atenção especial. Assim abordamos algumas das

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experiências vivenciadas no curso Mão na Massa, num período que decorreu do ano de 2013

a 2015, com início de suas atividades entre os meses de março a dezembro, de acordo com

cada ano em questão.

As crianças de até aproximadamente seis anos demonstravam um forte apelo

sinestésico, trocavam facilmente uma chupeta pelo alimento do dia. Podia ser doce ou

salgado, não importava, o que tornava o alimento algo tão gostoso de comer era a vontade de

saborear o novo e experimentar novas possibilidades de diversão e arte. Neste caso citamos a

representação simbólica da arte, que se desfaz num critério de lambança e liberdade, com o

alimento ou com seus insumos. No curso, é comum encontrar as crianças no chão

engatinhando, brincando com seus brinquedos ou no colo de alguém, basta aguardar um

tempo que elas se aproximam abraçando nossa panturrilha ou puxando nossa vestimenta para

baixo. Expressam, no balbuciar, a alegria de estarem juntos e se divertirem, para elas o

ambiente é completamente diferente do mundo do adulto, o curso é visto como um momento

de alegria e compaixão. Quiçá a vida pudesse percorrer com os olhos de uma criança.

Com os meninos e as meninas pequenas (assim como são chamados devido à

organização de suas casas no abrigo) a vivência foi bem maior, mas também houve

convivência com jovens, nos encontrávamos numa rotina semanal, podendo estar mais

presentes um na vida do outro. O vínculo entre pesquisador e participantes do curso foi se

fortalecendo a cada encontro, gostávamos de nos conhecer perguntando sobre diversos

assuntos, entre eles, se tínhamos família e onde eles moravam, a história de vida, nossas

particularidades, os nossos sonhos, entre outros. A qualidade dessas perguntas tornava algo

tão prazeroso, ao passo que estávamos fomentando sonhos ou servindo como referência,

exemplos de vida. Muitas vezes fui surpreendido por algumas dessas crianças, com perguntas

comoventes, no desejo de serem adotadas por mim ou de passarmos os finais de semana

juntos.

Imaginávamos pertencentes a um contexto familiar, o ambiente externo do local de

onde acontecia o curso, não era preponderante, priorizavam fazer o curso e nele foram criadas

suas caracterizações, no estabelecimento de regras, nas divisões de tarefas e na formação das

equipes. Presenciávamos, entre uma situação e outra, os confrontos de ideias, que muitas

vezes se transformavam em discussões ou agressões físicas entre as crianças. Depois de

algum tempo, quando as coisas se acalmavam, pediam desculpas e ficavam o restante do

curso em silêncio, cabisbaixos ou no aconchego de alguém. Traziam recortes de suas histórias

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de vida, muitos eram realmente mais expansivos e outros gentilmente tentavam apaziguar a

situação. Com os jovens não foi tão diferente, porém tinha suas peculiaridades.

No início do curso em 2013, crianças e jovens compartilhavam os mesmos espaços e

devido às diferenças, criavam situações inusitadas. Alguns jovens acabavam conturbando o

ambiente que era coletivizado, ficavam inquietos e dificilmente acatavam ordens. Outros

tinham uma postura mais amadurecida, facilitavam o andamento do curso e a sua organização,

falavam sobre o desejo de constituírem famílias e continuar os estudos. Uma das meninas

jovens, que frequentou o curso e teve grande destaque, conseguiu seu primeiro emprego numa

padaria. Quando os horários de sua folga cruzavam com os dias do curso ela fazia questão de

compartilhar suas experiências e levar seus aprendizados para o ambiente de trabalho ou

demonstrava para nós o que havia aprendido lá.

A separação dos grupos de crianças e o de jovens, em 2014, facilitou a condução do

curso, foi possível dedicar maior atenção às faixas etárias com suas maturações mais

aproximadas. O horário matutino ficou destinado às crianças e o vespertino aos jovens. No

período da manhã, fazíamos questão de tomarmos o primeiro café da manhã juntos, isso se

tornou uma rotina entre os que estavam presentes, muitos se alimentavam em suas casas

quando acordavam e por volta das 7h30 desciam para compartilhar do momento, tomando o

segundo café da manhã, e às 8h o curso começava. Aos poucos o grupo estava completo

totalizando em média de seis a dez participantes, mas com o decorrer do tempo esse número

foi caindo e terminando o ano com seis participantes mais assíduos. As crianças prevaleceram

no interesse do curso, quando era possível frequentavam ambos os horários, por várias vezes

no período da tarde havia apenas crianças.

Os jovens demonstravam um sinal de cansaço, pois quando o curso começava eles

estavam acabando de chegar do colégio. O grupo oscilava com no máximo seis participantes,

demostravam o interesse de ir ao curso para se divertirem ou distraírem, já que não havia

outra atividade no horário da tarde, porém faltavam bastante no desejo de descansarem em

suas casas, auxiliar na limpeza ou estudar. Os assíduos foram assumindo mais

responsabilidades dentro do curso, concomitantemente às exigências, no caso foram

assumindo autonomia para a execução das atividades, as ordens eram estabelecidas pela

formação do grupo perante a receita do dia, assemelhando-se a uma cozinha profissional. Isso

contribuiu para a tramitação do diálogo, passaram a ouvir e saber se posicionar. A postura

conturbada do passado foi atenuada, mas às vezes presenciávamos o conflito de ideias e a

dificuldade nas relações de gênero, marcante também com as crianças.

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Crianças e jovens tinham a mesma conduta ao término do curso, auxiliavam em

alguma pendência de limpeza e organização, retiravam a produção do forno, fogão ou da

geladeira e todos nos alimentávamos juntos numa relação de servidão e partilha. Outros

gostavam de colocar o alimento em saquinhos e levar para suas casas partilhando da produção

com as educadoras sociais ou com os funcionários em geral. Outro hábito marcante, essa

questão de colocar o alimento em saquinhos. Dentre tantas outras ideias que foram surgindo,

uma das crianças pediu se poderia levar a produção do curso como lanche da escola e se podia

compartilhar com seus colegas de classe. Essa solicitação foi acatada e a produção do curso

tornou-se o lanche da escola dos participantes. No decorrer dos acontecimentos, passamos a

produzir juntos também o lanche da tarde para todos que participavam da vivência da

instituição. O saquinho contendo a produção do dia também foi incorporado aos familiares,

que levavam para suas casas aquilo que haviam produzido no dia. Mais uma vez a

responsabilidade e o enfrentamento das dificuldades foram sendo alimentadas, despertando

um interesse maior no curso, já que o mesmo trazia muitas novidades e curiosidades

alimentares.

Imagem 1 - Aula com crianças no curso Mão na massa: preparo de broa mineira

Fonte: Projeto Lar Feliz (2015, p. 1).

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Dentre essas curiosidades, eram relativas à produção em si, cores, formatos e

provocações distintas numa alquimia de sabores que alimentavam novos prazeres ainda

desconhecidos como: petit gateau, pão australiano, pão pitta ou pão sírio, popcake, cupcake,

donuts, bolinho de chuva recheado, pão de legumes tricolor, pastifícios na produção de

massas caseiras, panetone, tuilles, entre tantas outras experiências vividas ao longo desses três

anos juntos.

Em 2013, havia de seis a oito familiares que participavam do curso, aos sábados, no

anseio de rever seus filhos, reaproximar as relações e, ao mesmo tempo, aprender culinária.

Tudo era novidade, as pessoas com as quais conviviam, o espaço, a relação com os

funcionários, estagiários e, além disso, ter que presenciar a produção culinária seguindo

orientações técnicas, encarar os desafios e lidar com as circunstâncias.

Outras situações advindas desse cenário cheio de novidades, tão diferente da realidade

no meio comunitário ou de dentro de suas residências, acarretaram certos constrangimentos

que denotaram alguns questionamentos como: Esse curso é para mim mesmo? Posso usar o

que está ao meu redor? Eu que irei fazer? Vou poder levar o que sobrar para casa? Enfim,

tanto eles criavam seus questionamentos, mas eu também criava os meus, porque tudo era

novo, poucos nos conhecíamos, eu nunca havia trabalhado em uma instituição de

acolhimento, além de não ter experienciado situações com o perfil deste grupo ao longo de

minha carreira, enfim, questionava: Como será o curso? Quem ficará com quem nas divisões

de tarefas? Como organizar os horários e o andamento da atividade, estimulando-os a

incorporarem ao curso? Será que eles voltarão daqui a quinze dias?

O curso seguiu sua jornada, famílias novas entraram, outras saíram, algumas se

enraizaram ao curso e, apesar de terem reconquistado a guarda dos seus filhos, ainda mantém

presença ativa nas aulas. O curso é desenvolvido aos sábados, quinzenalmente, com duração

de três horas, no período das 9h às 12h.

Os familiares chegam coletivizados, por meio de transporte público da cidade onde

moram, as crianças demonstram uma empatia maior que a apresentada pelos jovens e

costumam correr para o portão esperando seus familiares chegarem ou ficam emburradas, às

vezes por motivos particulares, que presumimos hipóteses de algum mal-entendido durante o

decorrer da semana, ou devido à tristeza que começa a latejar desejando que seus familiares

não fossem embora nunca mais ou que pudessem levá-los de volta para suas casas de origem.

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Muitos descem a ladeira que existe para chegar ate o refeitório, correndo, de bicicleta

ou acompanhando seus familiares de mãos dadas, num contexto que agita o ambiente

campestre, ouvem-se os pássaros e o som do vento, por um período, acalentam a todos.

Conforme vão chegando se deslocam para suas mesas, já representando um sinal de

pertencimento ao espaço, colocam seus objetos no chão ou próximo a eles, nas cadeiras que

circundam o refeitório, cumprimentamo-nos com abraços, apertos de mão e beijos,

amarramos uma prosa curta perguntando sobre a semana, sobre os acontecimentos e muitos

fazem questão de envaidecer-se de suas conquistas, ter mudado de casa, conseguido um novo

emprego, ter reconquistado a guarda do seu filho ou ainda que a não tenham obtido já se

alegram na certeza de que tudo está dando certo! Contam que haviam refeito as receitas em

casa, configurando seus aprendizados, além de tantos outros assuntos que permitem ainda

mais a aproximação da relação alunos e professor, ou melhor, uma aproximação de

humanidade sem classificações.

O curso precisa ser iniciado na hora prevista, pois a questão do horário de término não

pode se estender, já que há regras internas e também para o uso do transporte, que muitas

vezes os deixavam ou até não buscavam os familiares para a ida ao curso. Assim a equipe

técnica, estagiários e professor chegam por volta das 7h para a separação dos ingredientes por

bancada, além de organizar o espaço, bem próximo das 9h, quando bato palmas, todos sabem

que é hora de fazer silêncio e prestar atenção.

O pastor do abrigo, quando queria silêncio, usava uma expressão adotada por ele, com

o som de “pam, pararam pam pampam!”, que é cantada no coletivo e ao término dessa

expressão realmente todos silenciavam. Desejamos bom dia a todos novamente, cada um

cumprimenta seus próximos e, enquanto isso, sempre há crianças menores querendo subir no

meu ombro para dar aula comigo, numa situação que é revezada por mim, e que traz bastante

alegria a todos. Parece um teatro, com algumas diferenças, não há ensaio prévio é algo

espontâneo, numa relação em que é difícil saber quem é mais criança ali no meio: as crianças

ou o professor.

Os familiares ao verem a criança imitando e demonstrando como se faz a receita,

prestam muita atenção e se divertem, a satisfação e interesse da criança é motivo de alegria e

orgulho para seus pais. Sendo assim, aos sábados, o curso se transformou num ambiente

prazeroso, tanto que entre os anos de 2013 a 2015, a escala de presença saiu de oito para

quatorzes familiares, totalizando no geral cinquenta pessoas aproximadamente de laços

familiares e mais quinze pessoas como equipe técnica.

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Temos um intervalo aleatório que é realizado mediante a produção do dia, como

exemplo podemos citar dias em que produzimos receitas que têm um período de fermentação,

descanso e cocção ao assar, o que gera um período sem atividade, deixando-nos desocupados,

assim podemos, relaxar um pouco, tomar um café, suco de laranja ou iogurte, além de outras

bebidas que são inventadas de acordo com o clima, sucos diferentes para dias quentes como:

melancia com manjericão, abacaxi com hortelã, maracujá com gengibre, que acabaram

entrando no gosto popular, além do leite com açúcar queimado e canela para os dias mais

frios. No intervalo, acontece bastante de familiares e seus respectivos filhos irem para grama e

ficarem conversando em meio ao cenário verde, outros ficam sentados nas cadeiras dentro do

refeitório dialogando em tom de voz baixo ou vão se divertir, num curto espaço de tempo, nos

brinquedos disponíveis, balanços, corda bamba, escorregador e outros.

Ao retornar para executar o desfecho do curso, a hora de ir embora e se despedirem se

aproxima dando uma sensação de desejo que o ponteiro do relógio parasse ou contasse as

horas ao contrário, apenas para ficarem mais um pouquinho. A todo final do curso, é o mesmo

martírio, sentem no peito a dor de um choro ou de uma lágrima escorrendo em silêncio,

dentro de um abraço. Não temos um adjetivo único para expressar esse momento e por mais

que fossemos tentar, seriam citações simbólicas, como tristeza, dor, saudade, amargura, são

múltiplos, acreditamos que a despedida realmente gera uma situação desconfortante, muito

particular.

Todos, independentemente, do tempo de convivência nos ensinaram a interpretar a

vida de outra forma, na sutileza de uma criança de colo, nas aventuras de uma criança, nas

expectativas de um jovem e nos anseios de uma família. Assim podemos aproveitar cada

tempo de vida, vivido, pois sempre existirá algo de novo para aprender e experienciar.

Acreditamos que também deixamos nossas marcas, o passado fará parte de um

presente e talvez, quando vasculharem suas trajetórias, encontrarão um pouco de farinha,

ovos, manteiga, leite, açúcar, sal e fermento, acrescidos de aprendizados, carinhos, risos e

convivências; a figura de pessoas que se tornaram personagens de um enredo, entre tantas

outras vivências desorganizadas na memória, que facilmente remeterão às experiências boas

ou ruins, mas as provocações dos sabores e os momentos de compaixão sempre prevalecerão.

A partir desse contexto narrativo, relatando situações corriqueiras que aconteceram e

acontecem no curso, podemos identificar situações que simboliza aspectos positivos e

negativos que permeiam a vivência de um contexto familiar, repercutindo numa formação

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identitária, além de galgar novas esperanças de vida que advém dos sonhos, de novas

oportunidades, no fazer diferente ou igual que seja, mas que haja novos encantos.

2.2.1 - Conhecendo o local e a equipe de trabalho

A ONG “Projeto Lar Feliz” está situada na zona rural com uma distância de

aproximadamente três quilômetros do perímetro urbano da cidade de Holambra e cinco

quilômetros do perímetro urbano de Jaguariúna. O acesso se dá através da Rodovia Ademar

de Barros por uma estrada de terra posterior ao distrito industrial de Jaguariúna ou saindo da

avenida principal de Holambra e seguindo a área rural. A instituição fica entre as duas cidades

e ambos os acessos são por estrada de terra.

Ao chegar ao abrigo, vê-se que ele está rodeado por alambrado e não existem muros

que o separam do meio externo, assim percebe-se de dentro ou de fora a movimentação e o

acontecimento de atividades das crianças e jovens, como limpeza dos quartos, brincadeiras,

corre-corre, contato com a terra, ajuda aos funcionários, na quietude sob a sombra de uma

árvore e ou na grama expostos ao sol.

Na frente da entrada principal, existe um espaço para estacionamento e o acesso é feito

mediante identificação, após apertar o interfone. Nesse acesso principal, encontram-se os

funcionários responsáveis pelo canal de comunicação, já que toda visita é realizada mediante

agendamentos, porém, são muito flexíveis e receptivos nesse quesito, não deixando de seguir

ao mesmo tempo as regras estabelecidas. Tais regras envolvem horários de atendimento,

identificação, agendamento de horários, número de visitantes, nome de todos visitantes,

tempo de permanência, limite de visitação aplicada aos familiares, entre outros, para que não

prejudiquem as atividades e a rotina dos acolhidos.

Em meio aos cascalhos e gramas, há o acesso às casas, onde as crianças e jovens

residem; próximo ao limite da parte superior à esquerda, está o berçário; mais abaixo, a casa

dos meninos jovens; de frente à entrada principal, a casa das meninas jovens; descendo à

direita existem duas casas, as das crianças, separadas por gênero. Ambas as casas contemplam

os mesmos espaços com tamanhos e números de quartos distintos, caracterizando-se por

serem construídas no mesmo formato plano. Os banheiros, quartos, salas, cozinha, área

externa com mesa. Lá são realizadas as refeições e atividades escolares; armários construídos

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em alvenaria são coletivizados; o chão é de piso frio e apesar da incidência de raios solares na

região, o clima do ar dentro delas é fresco com cheiro característico.

Todas as casas possuem um espaço aberto onde são colocadas as fotos das atividades

desenvolvidas e a história de vida de cada membro acolhido, assim pode-se perceber o contato

com quem esteve lá e quais estão presentes. Esse contato com imagens deixa o ambiente

alegre juntamente com objetos e desenhos estampados no intuito de trazer alegorias. Nas

paredes, há pinturas divertidas que indicam o desenho de uma família, mãos pintadas com

cores distintas, além de mensagem de amor e fé.

Os escritórios recentemente reformados contemplam dois espaços, um com estilo de

sobrado e outro plano. No piso superior do sobrado, está a sala da diretoria, juntamente com

uma sala de reunião e outra sala com a equipe de marketing, assistência social e psicóloga,

voltada ao cunho administrativo.

No piso inferior do sobrado, encontra-se o escritório de atendimento ao público e setor

administrativo, voltado a finanças e recursos humanos. Ao lado, encontra-se outro escritório

em cuja entrada está uma sala de estar onde são realizadas as recepções, oferecendo-se café,

bolos ou a produção do curso “Mão na Massa” executada no dia, além de ser um espaço de

lazer e encontro de funcionários. Seguindo por esse espaço de lazer, existem três outros

espaços: à direita, uma sala de reunião e acompanhamento com a psicóloga; à esquerda, uma

sala de reunião voltada para assuntos referentes ao Conselho Tutelar; e à frente uma sala dos

assistentes sociais.

Em meios às árvores, está um espaço de lazer com brinquedos que permitem a

atividade física de crianças e jovens, como escorregador, barra de ferro, balanços de madeira,

corda bamba, quadra de futebol no chão batido, entre outros. Bicicletas, velotrois, patins e

skates desgastados pelo tempo não têm locais definidos, acabam sendo deixados próximos à

área interna ou externa da casa. Árvores frutíferas estão próximas e quando é época de

determinado fruto, facilmente podemos ver crianças e jovens em cima da copa das árvores.

Nas redondezas, pode-se ver o plantio de cana de açúcar, criadouro de animais, estufas

de plantas e camponeses com seu fogão à lenha aceso. Na estrada de terra, é comum encontrar

trabalhadores rurais indo ou voltando do serviço, caminhões de terra, aves soltas ciscando e

sobrevoando a região, caracterizando o ambiente com os sons dos pássaros. Quando chove, o

acesso fica limitado, sendo necessária maior cautela na direção, pois o chão de terra se

transforma em barro e, muitas vezes, a água invade os caminhos.

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Os aspectos internos e externos denotam a preocupação com a qualidade do serviço

prestado, os administradores investem em infraestrutura e na manutenção qualitativa dos seus

funcionários. Existem melhorias a serem realizadas quanto ao atendimento aos acolhidos,

mas diante de tantas dificuldades, podemos considerá-los razoáveis em comparação com a

história do acolhimento no Brasil.

O papel de educador não pertence apenas a um grupo específico de profissionais ou

àqueles que desenvolvem atividades consideradas culturais, pelo contrário, todos que

compõem a equipe técnica do abrigo e que se relacionam com as crianças e jovens acolhidos

são considerados educadores, seja com maior ou menor convivência, pois fazem parte da

vivência das crianças e jovens que ali se encontram e os envolvidos nesse processo sempre

deixam sua marca na história de vida, no ambiente e na história da instituição. Assim

podemos considerar que a educação se constrói num elo de relação e dentro das instituições

de acolhimento existe algo a ser vivido, experienciado, ouvido, aprendido e participado.

Segue, abaixo, imagem de professores e estagiários do curso.

Imagem 2 - Equipe do Curso Mão na Massa – professores e estagiários.

Fonte: Projeto Lar Feliz (2015, p. 1).

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Chamamos atenção à importância dos relacionamentos, para além de tornar algo coeso

e profissional, as instituições também deveriam priorizar os significados ali constituídos.

Vimos que as pessoas com as quais nos relacionamos sempre deixam suas marcas, umas

parecem que foram escolhidas a dedo, outras vivenciam o momento e a partir de um tempo

ficam na memória, outras queremos levar para vida toda. Olhando para esse cenário e

observando que crianças e jovens participam da vivência da instituição com suas

responsabilidades envolvidas e relacionando-nos com os membros da equipe, vimos à

importância dos cargos, mas devemos nos atentar aos significados de cada pessoa ali atuante,

que muitas vezes passam despercebidos como os encarregados dos serviços gerais, as

cozinheiras e auxiliares de manutenção. Tanto lidar com a terra ou com alimento trazem

conotações prazerosas, mas nos relacionar com as pessoas pode demonstrar algo mais

precioso.

Assim temos a equipe de trabalho que compôs a Instituição Projeto Lar Feliz no ano de

2015 demonstrado na tabela abaixo.

Tabela 1 - COMPOSIÇÃO DA EQUIPE TÉCNICA E SUAS ATIVIDADES:

Função Quantidade Atribuições

Presidente 1 Atividades administrativas e se responsabiliza judicialmente

por todos os acolhidos.

Vice-presidente 1 Atividades administrativas e se responsabiliza judicialmente

por todos os acolhidos.

Coordenador

Geral

1 Gestor de processos administrativos e acompanhamento das

atividades e liderança do grupo.

Psicólogo 2 Atuação na esfera administrativa, atendimento aos acolhidos e

acompanhamento aos familiares.

Assistente

Social

2 Processos de relacionamento social entre os acolhidos e

atendimento aos familiares.

Assistente

administrativo

1 Responsável pelo departamento financeiro e recursos humanos.

Gestor

Marketing

1 Responsável pela divulgação do abrigo, para captação de

recursos para a manutenção do abrigo

Comprador 1 Efetua as compras e se responsabiliza pela manutenção do

estoque de alimentos, bebidas, material de limpeza, etc.

Serviços Gerais 4 Limpeza e organização geral e cozinheiras que produzem todas

as refeições do abrigo.

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Encarregado

manutenção

1 Manutenção geral do abrigo: obras, elétrica, hidráulica,

marcenaria entre outros.

Auxiliar de

manutenção

2 Auxilia na manutenção geral do abrigo.

Professor fixo 1 Aulas de musicalização para os acolhidos.

Professor

autônomo

2 Prestação de serviço por prazo determinado ao decorrer do ano:

Teatro e Coreografia e o Curso Mão na Massa.

Educador social 30 Atividades de monitoria e zelo pela higiene, educação,

incorporação de regras.

2.2.2 - O ambiente e o desenvolvimento do curso Mão Na Massa

“... e não vejo a hora de chegar o sábado par vir aqui aprender...”

(Camila)

Em 2013, ano de inauguração do Curso “Mão na Massa”, o mesmo era executado no

refeitório - um amplo espaço com mesas e cadeiras, móveis, com teto recoberto por telhas e

forrado com madeira. Nas paredes, estão ventiladores para circulação do ar, uma pia grande,

reformada para a lavagem de materiais e equipamentos de uso do curso, também utilizada

para lavagem de pratos dos funcionários. Ao lado, havia uma pequena padaria industrial, os

materiais de grande porte ficavam nas mesas e, na bancada de pedra, eram executadas tarefas

como a sova da massa, o pré-preparo e a divisão dos grupos. No ano de 2015, o curso era

ofertado às sextas-feiras, com oito crianças e seis jovens realizando as mesmas atividades,

apenas no horário vespertino, das 13h30 às 16h30, com início em março e término em

novembro. Aos sábados quinzenais, o curso era ofertado apenas aos familiares e seus

respectivos filhos. Envolvia, na época, de seis a oito famílias que se interessaram a participar

do curso. A presença e assiduidade era algo fundamental na manutenção do curso e nas

perspectivas primordiais que eram voltadas à revinculação familiar.

Em 2014, o curso manteve os ideais, usufruindo do mesmo espaço, porém com

algumas mudanças metodológicas. O curso passou a ser executado às segundas feiras no

período matutino das 08h às 10h30 com seis crianças que estudavam no período vespertino.

Após as 10h30, as crianças saiam para tomar banho e almoçar para ir à escola e muitas vezes

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voltavam para comer os doces produzidos no curso como sobremesa. O período vespertino

era destinado a cinco jovens e seis crianças que estudavam no período matutino, executando

receitas com maior grau de dificuldade e nível profissional. Porém, o curso representava um

grande atrativo para muitas crianças e o público frequentador, muitas vezes, era composto

apenas por crianças tanto no período matutino e vespertino, até mesmo quando não tinham

aula, o curso envolvia a grande maioria das crianças acolhidas. Tornou-se motivo de alegria e

distração às segundas-feiras.

Aos sábados, o curso destinado aos familiares passou a adotar receitas que eles

pudessem executar em casa. Assim, a panificação e confeitaria deram espaço a produções

culinárias de uso doméstico como lasanha, nhoque, pizza, macarrão, pães, bolachas e bolos

simples. É interessante observar que cinco das famílias do ano de 2013 continuaram

participando do curso.

Em 2015, o curso esteve mais consolidado; a aceitação pelas crianças, jovens e

familiares permitiu à instituição investir em infraestrutura, adquirindo um espaço maior para a

execução do curso, ao lado do refeitório, além de produzirem nesses espaços o lanche da tarde

e, muitas vezes, o café da manhã dos acolhidos.

Às segundas-feiras, manteve-se a mesma organização: no período matutino com seis

crianças participantes e vespertino com cinco jovens no início do ano. Porém, no horário

vespertino, o curso destinado aos jovens executou receitas com cunho culinário e receitas de

uso doméstico. Passou-se a ensinar habilidades básicas de cozinha como lavar folhosos e

produzir saladas, cozinhar arroz, feijão, sopas, assar, grelhar, fritar, entre outros do gênero. Os

jovens foram se desinteressando aos poucos e esse horário de curso passou a incorporar outras

crianças, recém-abrigadas ou que estavam sem atividade.

O motivo do desinteresse advém da falta de acompanhamento por parte dos monitores,

que em muitas situações não deslocavam os participantes ao curso. A disciplina de respeitar

os horários e a postura a ser adotada durante o curso como algo educativo não geravam

interesse a alguns participantes. Tal desinteresse muitas vezes viravam conflitos ou brigas

entre eles, os que queriam aprender e os que não tinham interesse na culinária. Outro fator

preponderante foi à falta de planejamento das atividades, cruzando horários. Ao mesmo

tempo em que estava acontecendo o “Mão na Massa”, havia o curso de musicalização às

segundas-feiras e a fabricação de sabonete como algo esporádico no mesmo dia. Muitos

acabavam não se incluindo em nenhuma atividade, preferindo ficar com o tempo ocioso ou

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dormindo em suas casas. Frases de desinteresse como “Ah, tio, não quero não, estou com

preguiça” eram usadas, além do movimento com a cabeça de um lado para o outro

simbolizando negação demonstravam que algo estava fugindo das perspectivas iniciais do

curso.

Aos sábados, o curso manteve-se no refeitório, pois o número de famílias aumentou,

totalizando treze com uma média de cinquenta participantes. Um dos fatos que chamou a

atenção e que trouxe grande contribuição à pesquisa, sendo um dos pilares que sustentam o

projeto de pesquisa e um dos norteadores na continuidade do curso Mão na Massa, foi a

permanência de três famílias desde o ano de 2013. Elas não têm mais filhos vinculados ao

acolhimento, pois já obtiveram a guarda de seus filhos novamente, mas se percebe claramente

o desejo de participar do curso.

O refeitório torna-se um local de encontro e desenvolvimento de outras atividades,

além do Curso “Mão na Massa”. É um ambiente organizado e sempre ao término de uma

atividade o mesmo deve ser limpo. Pela sua extensão, muitas vezes, reuniões, palestras e

cursos de capacitação com os funcionários são executadas nesse espaço. As mesas são

deixadas de lado e forma-se o ciclo de debates.

Do lado de fora do refeitório, existe uma sala para aula de musicalização, com baterias,

flauta, guitarra, violão, pandeiro entre outros. Esse projeto envolvendo a música é considerado

também um dos grandes atrativos para crianças e jovens. Juntamente com o curso de teatro e

expressão corporal realizado no espaço do refeitório, a instituição é capaz de realizar eventos

fora da instituição com apresentações musicais e teatrais nas cidades circunvizinhas. Esses

projetos desenvolvidos com crianças, jovens e familiares trazem benefícios à forma como é

conduzido o acolhimento qualitativamente e na esfera social, pois favorece a imagem que se

tem da instituição permitindo maior credibilidade aos que a apoiam e aos mantenedores.

No próximo capítulo apresentaremos o percurso metodológico da pesquisa, os

procedimentos adotados para coleta e análise de dados, bem como a caracterização dos

participantes da pesquisa.

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3 - PERCURSO METODOLÓGICO

3.1 - OBJETIVOS E NATUREZA DA PESQUISA

O objetivo geral deste trabalho é compreender como o curso “Mão na Massa” pode

contribuir com a revinculação familiar. Esta atividade prática tem o alimento como um grande

potencial incentivador da participação de familiares, buscando integrar pais e filhos que um

dia foram separados por motivos judiciais. No caso, significa retornar à família de origem ou,

em última instância, a criança ou jovem ser colocado em uma família substituta.

O enfoque de pesquisa utilizado para obtenção dos dados foi a pesquisa qualitativa de

caráter exploratório, a qual permite uma interpretação mais profunda dos aspectos envolvidos

na revinculação familiar, sendo possível a compreensão da subjetividade das pessoas

envolvidas (pesquisador e participantes da pesquisa). A sua relevância reside em conhecer uns

aos outros, envolvendo elementos como maturidade e características comportamentais, a

partir da interação de sujeitos em seus diversos contextos, o que impacta diretamente na sua

maneira de ver e agir no mundo. Pode-se dizer que a construção da realidade e a maneira

como se desenvolvem as relações humanas regem um contexto qualitativo, pois envolvem

atribuições de valores não mensuráveis.

O principal interesse dos pesquisadores qualitativos é na tipificação da variedade de

representações das pessoas no seu mundo vivencial. As maneiras como as pessoas se

relacionam com os objetos no seu mundo vivencional, sua relação sujeito-objeto, é

observada através de conceitos tais como opiniões, atitudes, sentimentos,

explicações, estereótipos, crenças, identidades, ideologias, discurso, cosmovisões,

hábitos e práticas. Esta é a segunda dimensão, ou dimensão vertical de nosso

esquema [...]. As representações são relações sujeito-objeto particulares, ligadas a

um meio social. O pesquisador qualitativo quer entender diferentes ambientes

sociais no espaço social, tipificando estratos sociais e funções, ou combinações

deles, juntamente com representações específicas. (BAUER; GASKELL, 2002, p.

57).

Nesse enfoque, por meio da entrevista aberta com os familiares das crianças e jovens

em acolhimento institucional, que participam efetivamente do curso quinzenalmente,

buscamos desvendar os processos educativos desenvolvidos como possibilidade de fomentar a

revinculação familiar, no desejo de elucidar a importância das relações afetivas, aquilo que se

aprende e ensina, ouvindo a voz dos participantes ao se expressarem sobre aquilo que muitas

vezes fica emudecido.

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A escolha da entrevista aberta é utilizada de forma exploratória, pois permite melhor

interpretação dos detalhes, já que sua estruturação favorece o diálogo e a empatia entre o

entrevistador e o entrevistado. Para isso, são selecionados temas abrangentes e o entrevistado

tem a liberdade para expressar e narrar suas interpretações da questão. A informalidade

favorece a aproximação, considerando-se que é desejável não aumentar as barreiras existentes

e sim rompê-las. Dessa forma, o entrevistador adota uma postura de ouvinte, interferindo

minimamente no processo de coleta de dados, o que permite obter maior número de

informações sobre determinado tema. Deve-se estar atento aos detalhes, pois eles ocorrem a

maior parte do todo. O uso dessa ferramenta metodológica é aplicável em casos individuais,

compreensão de contextos socioculturais e, no caso, quando se deseja fazer a comparabilidade

de casos (MINAYO, 2000).

Os temas ligados ao roteiro de pesquisa foram mediações que permitiram a

flexibilidade do processo dialógico, favorecendo ainda mais a proximidade com os

entrevistados, dando abertura de ouvi-los e interpretá-los. Dessa forma, acreditamos que as

respostas favoreceram a descrição empírica daquilo que tratamos como eixo norteador da

pesquisa, ou seja, analisar as contribuições de um curso de panificação no processo de

revinculação familiar, envolvendo o processo de ensino-aprendizagem, juntamente com as

conotações simbólicas que se constituem, além do favorecimento da aproximação familiar

como um incentivo à revinculação. O momento selecionado para entrevista com os familiares

foi um dos sábados em que ocorrem as aulas, no espaço de intervalo do curso.

Nesse sentido, tornou-se relevante considerar os aspectos do relacionamento humano

na ótica do estabelecimento de valores, desejos e atitudes dos sujeitos envolvidos na

interpretação de como se estabelece a relação afetiva entre o grupo, meio e as circunstâncias

envolvidas (MINAYO, 2001).

Desse modo, pode-se dizer que a entrevista busca investigar os sentidos e significados

que são produzidos pelos sujeitos, quando relataram suas experiências na participação do

curso, possibilitando uma maior compreensão da realidade vivenciada por eles. Para Flick

(2009), o uso da entrevista como método de coleta de dados justifica maior probabilidade de

que os pontos de vistas dos sujeitos sejam expressos em um planejamento aberto, mais do que

de um questionário.

O uso de questionário poderia representar pontos negativos para esta pesquisa, uma

vez que estamos tratando de pessoas com baixo grau de escolaridade e muitas não sabem

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escrever ou até mesmo ler. Assim, as respostas poderiam ser consideradas um dado

inconsistente. No caso de uma entrevista aberta, esse processo é favorecido e até mesmo

permite correções de possíveis enganos.

Tratando-se de pesquisa qualitativa e fazendo o uso da entrevista aberta, é fundamental

esclarecer aos participantes a proteção do anonimato, sendo a priori apresentado a eles o

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, resguardando-os do abuso de poder (SPINK,

2010).

O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é um documento que permite ao

sujeito entrevistado maior informação e clareza da sua participação na pesquisa, evitando

assim possíveis constrangimentos e exposições desnecessárias. Para isso, o termo deve ser

escrito em uma linguagem didática e estabelecida de acordo com o público-alvo atendido,

destacando os aspectos éticos que envolvem o uso da pesquisa, no respeito à compreensão,

individualidade e tempo de cada pessoa. O termo de consentimento utilizado nesta pesquisa

encontra-se no Apêndice A.

Segundo a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, que esclarece definições e

temos:

II. 23 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE - documento no qual é

explicitado o consentimento livre e esclarecido do participante e/ou de seu

responsável legal, de forma escrita, devendo conter todas as informações

necessárias, em linguagem clara e objetiva, de fácil entendimento, para o mais

completo esclarecimento sobre a pesquisa a qual se propõe participar;

II. 24 - Termo de Assentimento - documento elaborado em linguagem acessível para

os menores ou para os legalmente incapazes, por meio do qual, após os participantes

da pesquisa serem devidamente esclarecidos, explicitarão sua anuência em participar

da pesquisa, sem prejuízo do consentimento de seus responsáveis legais; resolução

466/12 BRASIL 2012;

No quesito dos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, temos:

III. 1 - A eticidade da pesquisa implica em: a) respeito ao participante da pesquisa

em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua

vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de

manifestação expressa, livre e esclarecida;

b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais,

individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o

mínimo de danos e riscos;

c) garantia de que danos previsíveis serão evitados; e

d) relevância social da pesquisa, o que garante a igual consideração dos interesses

envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio humanitária.

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Ressalta-se ainda que a qualidade das entrevistas esteja, acima de tudo, enraizada em

um processo de confiança entre entrevistador e entrevistado, assegurando o anonimato. Esses

estabelecimentos de valores permitirão criar um ambiente mais harmônico, favorecendo a

coleta dos dados, a comunicação e a fidelidade. As desvantagens dessa metodologia ocorrem

quando não se fomenta o envolvimento no processo de pesquisa ou quando não há um

planejamento feito pelo entrevistado. Por ser dialógica, faz-se pertinente mostrar uma postura

mais segura do pesquisador em relação à preservação do anonimato, o respeito com o

entrevistado e o cuidado com o não envolvimento de manipulação, que contribuirá com a

credibilidade no processo de pesquisa.

Flick (2009) aponta a relevância metodológica na conduta do entrevistador para o

entrevistado na maneira como se conduz a pesquisa mantendo sua postura de ouvinte e não

obstruindo ou interrompendo a voz do entrevistado, sendo ela executada com assiduidade,

pois, desse modo, melhor será o apontamento das transcrições. Como parte integrante do

processo metodológico, a transcrição deverá se respaldar pela fidelidade das narrativas

apontadas, demonstrando as observações que não foram ditas como os momentos de silêncio,

a postura em torno do ambiente, os sentimentos que vieram à tona, os gestos, risos, entre

outros que fazem parte da vivência empírica. Dessa forma, pode-se dizer que a metodologia

adotada permitirá melhor interpretação ao problema de pesquisa, a partir das transcrições.

3.2 - CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA

A pesquisa contou com a participação de quatro famílias entre pais, mães e padrasto

que têm ou tiveram seus filhos acolhidos e que participam efetivamente do curso “Mão na

Massa”, quinzenalmente, aos sábados no decorrer do ano de 2015.

Todas as famílias já passaram pela situação de acolhimento de um de seus filhos e

algumas ainda permanecem na expectativa e na dedicação para reconquistar a guarda de seus

filhos. Muitos desses familiares que tivemos o privilégio de conhecer fazem questão de

marcar presença nas atividades que são desenvolvidas no curso.

No intuito de preservar o anonimato, optou-se por adotar nomes fictícios para os

participantes. Foram usadas as letras A, B, C, D para cada família envolvida na entrevista. A

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Tabela 2 define cada família por letra, a caracterização dos participantes, idade, estado civil,

número de acolhidos, número de filhos e cidade de residência.

Tabela 2 - INFORMAÇÕES GERAIS SOBRE OS PARTICIPANTES:

Família A B C D

Nomes Camila Selma, Aílton Maria, Márcio Ana

Idade 34 31,28 41, 42 38

Est. civil Solteira Casados Casados Solteira

Filhos/ idade 4 (18,12,6 e 2) 3 (14, 10 e 2) 6 (20, 19, 18, 16,

14, 2)

5 (19, 18, 16, 14

e 9)

Acolhidos Nenhum Nenhum Dois Uma

Cidade S. A. Posse S. A. Posse Jaguariúna S. A. Posse

Camila, a mãe da família “A” participa do curso desde 2013; seu filho foi abrigado por

cinco anos e desabrigado em 2014, porém, devido ao interesse por aprender e gostar de

trabalhar com culinária, a mãe decidiu permanecer no curso, levando consigo todos os seus

filhos para participarem das atividades do curso. A simpatia e seus questionamentos sobre os

aprendizados favoreciam o desenvolvimento do curso e fomentava a aproximação.

O casal que compõe a família “B” teve seu filho de 10 anos acolhido em 17 de

dezembro de 2014, ficando por quatro meses na situação de acolhimento. Ele foi desacolhido

em abril de 2015 e devido ao interesse pelo curso, seus familiares mantiveram a permanência.

A quietude no desenvolvimento do curso chamava a atenção, denotando um ar de tristeza,

talvez estivessem indo forçados ou poderia ser algum sofrimento das circunstâncias vividas.

O casal que compõe a família “C” possui dois filhos acolhidos, desde junho de 2015,

com idade de 16 e de 14 anos. A permanência no curso, aos sábados, é uma das medidas

tomadas para a revinculação familiar e reconquista de guarda dos filhos, esta frequência no

curso acontece também pelo interesse na culinária. A simplicidade dessa família na maneira

de se comportar nas atividades, com um ar de não pertencimento ao curso, denotava um

sentimento de vergonha e ou estranhamento. A quietude mais uma vez chamava a atenção,

pois faziam questão de cumprimentar e se despedir, agradecendo a Deus ou passando

mensagens de positividade, mas, no desenvolvimento do curso o silêncio vinha à tona.

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Ana, a mãe da família “D”, possui uma filha de 9 anos de idade acolhida desde

dezembro 2014, a frequência no curso se dá também como medida de revinculação familiar e

reconquista da guarda. O interesse na participação dela na entrevista demonstra a assiduidade

e o reflexo de sua filha. A filha participa do curso, às segundas-feiras, nas atividades com as

crianças. A educação e a maneira de agir da criança favoreceram o desenvolvimento no curso,

o que, muitas vezes, encantou a mim como professor e aos assistentes sociais que a

acompanham, pois, suas atitudes de ajudar ao próximo, de envolver-se no curso, de interessar-

se pelo diálogo e busca do conhecimento vão além das expectativas. Nesse percurso,

pensamos que a filha poderia ser o reflexo da educação de seus pais, assim despertou-se o

interesse em entrevistar a mãe.

Os critérios utilizados para a inclusão dos participantes foram:

1) Interesse em participar da entrevista;

2) Participação, assiduidade no curso e proximidade com o grupo;

3) Características pertinentes de cada entrevistado que poderiam favorecer ou não a

coleta de dados na entrevista: introversão, extroversão, curiosidade, educação

transmitida aos filhos, dentre outros;

4) Tempo de convivência no Curso Mão na Massa aos sábados.

Os critérios utilizados para a exclusão dos participantes foram:

1) Ausência de proximidade com o grupo e o pesquisador;

2) Desinteresse em participar das entrevistas;

3) A ausência do familiar no dia em que a entrevista foi realizada.

3.3 - PROCEDIMENTOS PARA COLETA DE DADOS:

No dia 29 de agosto de 2015, vinte dias antes da realização da entrevista, foram

convidados quatro participantes. A princípio, houve a aceitação de todos, porém, muitos não

sabiam do que se tratava, assim foi-lhes apresentada a pesquisa, procurando demonstrar que

eles são o motivo principal pelo qual essa pesquisa acontece. Já que eles são os autores das

atividades do Curso “Mão na Massa”, foi-lhes demonstrado o Termo de Consentimento Livre

e Esclarecido (Carta de apresentação da pesquisa – apêndice A), lido em tom de voz para que

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todos pudessem ouvir, já que muitos não são alfabetizados. Depois desse procedimento, não

houve a recusa dos que se voluntariaram a participar, mas ainda havia dúvida. Para a

entrevista dos participantes, foram utilizados dois gravadores de voz após consentimento,

além de caderno e lápis para possíveis anotações. Estabelecemos diálogo aberto e

aconchegante para que todos se sentissem à vontade.

Portanto, o pesquisador fez a entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,

explicou novamente do que se tratava a pesquisa, os motivos da entrevista e realizou os

esclarecimentos necessários para que a entrevista ocorresse: sigilo, interrupção da entrevista a

hora em que o participante solicitasse, prezando o máximo de honestidade.

Todas as quatro entrevistas ocorreram no mesmo dia, 19 de setembro de 2015, no

período da manhã. Neste dia, estávamos executando a receita de enroladinho de salsicha, pela

facilidade da produção e pelo fato de unir alunos voluntários das áreas de Psicologia e

Gastronomia no desenvolvimento das atividades. Isso permitiu ao entrevistador dar uma

atenção especial a cada família entrevistada. As entrevistas duraram em média 30 minutos,

sendo executadas dentro do espaço do curso “Mão na Massa”, em uma sala com porta que

corre sobre o trilho, onde ficam alguns dos maquinários, armários, geladeiras e forno.

A primeira entrevista ocorreu às 8 horas, momento em que a primeira mãe entrevistada

chegou à instituição, antes do início da aula, pois nesse dia o ônibus que transporta parte dos

familiares havia adiantado. A segunda e a terceira entrevistas ocorreram durante o intervalo

da aula, momento em que a produção do dia estava sendo forneada. A quarta e última

entrevista ocorreu no final do curso, no momento em que todos estavam degustando a

produção do dia. Todas as entrevistas transcritas estão no Apêndice B, no intuito de transmitir

a vivência de cada família.

Apresentamos no próximo capítulo os resultados da pesquisa decorrentes da análise

das entrevistas. Perguntas que foram respondidas ou ficaram apenas silenciadas, interpretadas,

aqui, como uma miscelânea de sentimentos, valores, desejos, sonhos e curiosidades

particulares.

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4 - O SABOR DA VIDA... AO DEGUSTÁ-LA

Esta pesquisa caracterizada como qualitativa tem como método utilizado para a coleta

de dados a entrevista que se concentra nos dados da palavra falada e nos comportamentos dos

participantes. Consideramos que a entrevista nos auxiliou a compreender, a partir da conversa

com familiares das crianças e jovens em situação de acolhimento, a maneira como viveram ou

vivenciam suas experiências, procurando analisar os sentidos e significados que são

construídos no contexto de relacionamento familiar que poderão favorecer ou não a sua

revinculação com seus filhos.

Pela abrangência das questões e a multiplicidade das respostas, optamos por analisar

questão por questão, citando as falas dos participantes que permitirão analisar sua vivência

histórica, conotações simbólicas particulares atribuídas à relação entre pais e filhos, além de

suas expectativas de ação familiar. Analisamos aspectos voltados aos significados de

motivação, aprendizagens, ensinamentos e mudanças ocorridas na relação pais e filhos. A

entrevista se torna um instrumento privilegiado, pois a fala permite revelar sistematização de

valores, normas e símbolos (MINAYO, 2000).

Para Minayo (2001) a pesquisa qualitativa está fundamentada num processo de

compreensão das simbologias criadas a partir das relações entre sujeitos. Essas significações

são fomentadas no meio social que envolve crenças, valores e atitudes não mensuráveis.

Assim o universo da pesquisa qualitativa, advém das riquezas vivenciadas das experiências

empíricas.

As análises da transcrição das entrevistas foram embasadas em situações de

convergência e divergência, buscando compreender o que era comum e o que era diferente

nas respostas apresentadas pelos familiares entrevistados.

A princípio em todas as entrevistas com os familiares, a primeira pergunta gerou certa

insegurança e ou expectativa daquilo que poderia vir pela frente, como seriam as perguntas,

ou, como já é de costume que os familiares sejam tão interrogados no acompanhamento

familiar para que haja a revinculação familiar, a situação da entrevista poderia também ser

compreendida como mais uma atividade do abrigo. Diante dessas possibilidades, procuramos

deixá-los bem à vontade, com um diálogo harmônico tendo uma atenção aos aspectos que

envolvem a entrevista como já citado no capítulo anterior. Mas de alguma forma a entrevista

teria que começar e foi de bom senso do pesquisador a decisão quanto a escolha do melhor

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momento para o início da mesma. Começamos a entrevista conhecendo mais uns aos outros,

logo procurei perguntar, a cidade natal, a cidade em que habitavam o trabalho de cada

participante da entrevista, a sua identificação com a culinária além de outras questões voltadas

ao conhecimento familiar, como: número de filhos (se tem ou não e quantos), se são casados

ou separados, idade dos participantes e dos seus filhos, entre outras. Em muitas situações o

entrevistador por ter permitido esse canal de comunicação, ele acabava sendo interrogado por

outros participantes, pois despertou a curiosidade de alguns dos familiares saberem um pouco

mais sobre sua vida.

As perguntas que direcionaram o roteiro de pesquisa dando embasamento para os

resultados obtidos, foram as seguintes:

1) Qual sua motivação para participar do curso Mão na Massa?

2) O que você aprendeu no curso?

3) O que você ensinou?

4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?

5) Qual o momento mais agradável do curso? O que você faz nesse momento?

6) Qual o momento mais difícil do curso? O que você faz nesse momento?

7) Com sua participação no curso, você acha que houve alguma mudança na relação pais,

filhos e familiares? Qual?

8) Por qual motivo você perdeu a guarda de seu filho?

9) Como você acha que será a sua vida quando recuperar a guarda de seu filho?

Segue, abaixo, a interpretação tecida a partir da análise das entrevistas.

As motivações

As respostas conferidas a primeira pergunta, “Qual sua motivação participar do curso

Mão na Massa?” São muito próximas umas das outras e em todas elas podemos perceber a

palavra aprendizagem como o grande potencial motivador.

Para a mãe Camila, nossa primeira entrevistada (família A), podemos perceber que o

sentido dado à palavra motivação é a aprendizagem, remetendo a uma perspectiva de aprender

para ter os conhecimentos que permitirão vendas futuras “...O que me motiva é a

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aprendizagem, não é? Para fazer coisas para eu vender futuramente, já aprendendo fazer

salgados e bolos e eu gosto de participar e aprender cada dia mais...”.

Na análise da resposta dada por Aílton e Selma (família B), percebemos a motivação

voltada para aprendizagem de culinária. A mãe diz “...Eu já sou cozinheira, não é? E para

mim, eu aprendendo cada vez mais e melhor...” já para o padrasto Aílton “...Eu gosto de vir

para aprender, porque já cozinho em casa”.

Com Maria e Márcio (a família C), a palavra motivação remete a uma abrangência

maior, além da aprendizagem de técnicas e receitas culinárias, os familiares citaram a

motivação voltada para o âmbito familiar, no desejo que desperta de poder estar presente com

os filhos. Para a mãe “... Por causa dos meninos que estão aqui e a gente também aprende

muita coisa, aprende como está fazendo, não é? As receitas, às vezes a gente faz, mas não

sabe ela bem certinho então aqui a gente aprende melhor...”. Para o pai “...Vai fazendo junto

também, não é? Uma coisa que engloba as crianças a gente, todo mundo junto, fazendo numa

situação só.”

Na análise da entrevista com Ana (a família D), a mãe demonstra que sua motivação

está voltada pelo interesse na culinária, além de ser uma oportunidade de participar e poder

incentivar a filha Laís, em uma de suas falas ela diz: “...Hum, uma porque gostei e, outra,

mais para incentivar a Laís...”, além de demonstrar que os aprendizados adquiridos trazem

motivação, de aprender cada vez mais. “...Fiz mais coisa quando comecei a vir aqui, já fiz

macarrão, já tentei fazer lasanha, então cada dia, aqui, a gente vai pegando um pouquinho

dali um pouquinho daqui e vai aprendendo...”.

Os aprendizados

A segunda pergunta conferida às quatro famílias está relacionada aos aprendizados

adquiridos, tendo o intuito de poder analisar a partir da entrevista, aquilo que eles consideram

como aprendizados. Acreditamos que a escolha da pergunta: “O que você aprendeu no

curso?” A princípio, estava ligada a curiosidade de compreender o que eles carregam com o

curso e levam para suas realidades. Em análise, houve congruência entre os participantes, pois

ambos citaram ou demonstraram a palavra convivência e relacionamento como resposta ao

aprendizado adquirido. Assim podemos perceber que o significado da palavra aprendizado

estava voltado não apenas em aprender à culinária, mas a se relacionar.

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No diálogo com a mãe Camila (família A), ela iniciou a resposta conferida à segunda

pergunta relatando seu desinteresse de participar do curso em 2013. Não era apenas um

desinteresse de aprender culinária, algo mais além do que isso, havia a dificuldade de se

relacionar com o outro, devido a sua irritabilidade, “É, no primeiro ano, eu passei meio

nervoso, eu não queria ficar muito perto de ninguém...”. Outro aspecto que fazia com que ela

se afastasse era o sentimento depressivo que ela estava vivenciando. “Eu tinha até um tipo de

depressão, eu não queria me relacionar, até reclamava para as psicólogas que eu queria

ficar sozinha, isolada, queria ficar sozinha…”.

Em se tratando de contribuições de um curso de panificação, podemos perceber que

seu enfrentamento de ir ao curso mesmo contra sua vontade pôde favorecer positivamente a

sua visão do curso, sendo ela atualmente considerada como uma das alunas de maior destaque

e aproveitamento. Segundo ela “Agora já não, eu chego feliz! Cumprimentando todo mundo,

não é? Já dividi minha mesa e não vejo a hora de chegar o sábado para vir aqui aprender,

sabe, ver vocês...”.

O relato desta trajetória comportamental citada por Camila, até mesmo ela fazendo

questão de falar sobre, culminou numa mudança de atitudes por parte da entrevistada, o

desinteresse pelo interesse, a irritabilidade que a afastava de tudo e de todos por laços de

amizade e relação com os próximos. As palavras convivência e relacionamento não foram

mencionadas, mas estava implícito no que ela queria dizer. “Eu escrevi até num relatório,

uma vez, que eu não queria dividir minha mesa com ninguém. Agora já dentro da van tenho

amizade com todo mundo, não só das pessoas da Posse como de Jaguariúna também; o que

eles não sabem, eu já gosto de ensinar, amassar, já tenho prática...”.

A mãe Selma (da família B) considerou que aprendeu a interagir mais com as pessoas,

sendo essa relação de interação um grande contribuinte para conhecer a realidade do próximo

e ao mesmo tempo compará-la com a sua própria realidade. Segundo a mãe quando existe a

interação e conhecemos a realidade do próximo, o problema particular se torna pequeno “Às

vezes, a gente acha que o problema da gente é o maior, não, da pessoa do lado é bem maior

que o da gente, então acaba aprendendo com as pessoas...”.

Após Selma terminar sua reposta à segunda pergunta, o padrasto Aílton inicia uma

abertura das suas vivências e do seu comportamento no dia a dia. Ele relata que sempre foi

uma pessoa afastada e sozinha, não gostava de interagir com as pessoas, cita até mesmo o seu

serviço de pedreiro e que, no ambiente de trabalho, ele não gosta de conversar com as pessoas

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ou trabalhar em equipe. Ele relata que a vinda dele ao curso, quando é possível devido sua

jornada de trabalho, está sendo um momento de aprender a se relacionar com outros

participantes “Costumo geralmente ficar sozinho, nunca fui de trabalhar em grupo e o

primeiro lugar é aqui que estou aprendendo a me entrosar com o pessoal...”. Ao longo da

entrevista, o próprio semblante de Aílton, era de introversão e olhar cabisbaixo, cogitamos

que ele não fosse responder as perguntas ou que, em algum momento, ele desistiria de

participar da entrevista. A algumas perguntas mais adiante, ele se recusou a responder, mas

em nenhum momento pediu para se ausentar. Apesar deste comportamento de introversão, em

alguns momentos conseguimos tirar boas risadas.

Na entrevista com Maria e Márcio (família C), houve apenas a resposta de Márcio e

Maria apenas concordava movimentando a cabeça com um sentido de confirmação às

respostas conferidas pelo seu marido. Márcio foi o primeiro a citar que o aprendizado se dá a

partir do momento em que se produz algo, no caso ele cita o verbo fazer no sentido de

produzir, pois o curso envolve a produção de alimentos e para que essa produção ocorra é

necessário o envolvimento de todos. Além disso, tão importante quanto, está o

relacionamento citado por ele com os demais participantes como uma forma de ajudar a si

próprio e a sua família. “A gente aprende a fazer e aprende o relacionamento e como falei,

todo mundo participa e isso acho que também ajuda a gente”. Em algumas perguntas adiante

o pai Márcio foi o pioneiro no momento de responder e a mãe acabou se recusando, por

motivos que acreditamos ter sido o constrangimento ou por ver o seu marido respondendo

abertamente as perguntas, talvez tenha achado que ele poderia contribuir mais do que ela

nessa entrevista.

Na família D, a mãe Ana trata o curso como um momento que ela tem de poder

conviver melhor com sua filha, além de citar os aprendizados que são aprendidos na prática

“A experiência de mexer no Mão na Massa, a experiência de criança aqui dentro, a

experiência que vocês passam para gente, muita coisa é uma experiência boa de

convivência”.

Os ensinamentos

A terceira pergunta da entrevista com os familiares está relacionada aos ensinamentos,

tendo o intuito de poder analisar a partir da entrevista, aquilo que eles consideram que tenham

ensinado durante o curso. A pergunta: “O que vocês ensinaram no curso?” permite levar em

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consideração as contribuições dos familiares participantes tendo eles como sujeitos que

aprendem, mas também ensinam, com intuito de elucidar o que eles consideram que tenha

sido ensinado por parte deles e averiguar se eles se sentem nessa liberdade de poder ensinar

algo. Em análise, houve unanimidade entre as quatros famílias participantes. Os familiares

relataram que os aprendizados adquiridos no curso eles levam para dentro de suas casas,

vizinhos e amigos. Apesar dessa unanimidade é importante frisar que entre alguns familiares

(Selma e Aílton, Maria e Márcio, Ana) demonstraram que para ensinar é necessário aprender,

o que eles ensinam é praticado na realidade de cada um desses participantes, mas nenhum

considerou o momento de convivência no curso como uma dessas oportunidades de ensinar.

Apenas a mãe Camila relatou que usufrui dos seus aprendizados advindos com o curso para

ajudar na condução dessa atividade, procurando colaborar com outros participantes na tarefa

de limpeza, na uniformização, no modo de preparo da massa e suas técnicas pertinentes, além

de levar esses conhecimentos adquiridos para dentro de sua casa e no ensinamento dos seus

filhos. Podemos compreender que para ensinar algo, antes, tenha que ter sido aprendido e que

o aprendizado e ensinamento são decorrentes da atitude de interesse e desejos.

Camila afirma com segurança a importância de manter a limpeza e demonstra sua

preocupação na maneira de ensinar seus filhos a forma correta para que haja higiene. O fato

dela ter passado por uma experiência negativa, na maneira como foi criada com uma família

que exigia muito dela, até mesmo cita na quarta pergunta da entrevista, em um pequeno

trecho, que sofria na infância, isso pode ter sido um reforço negativo que ela tenta transformar

em positivo. Assim podemos analisar que esse sofrimento é algo que ela não quer passar para

seus filhos, assim busca estar sempre presente, acompanhando-os em casa e até mesmo

desenvolvendo atividades culinárias juntos. Acreditamos que o tema higiene foi algo que

trouxe interesse, já que se trata de uma mãe asseada na maneira de se vestir, na atenção dada

aos seus filhos atualmente e na conduta de trabalhar com o alimento “Os meus filhos e até

aqui mesmo já cheguei a falar sobre higiene, não é? Que para cozinhar é fundamental

higiene, até em casa eu não cozinhava de toca, de avental, agora todo dia que vou cozinhar

eu uso a touca e o avental, lavo as mãos que nem você falou: as mãos são do cotovelo para

baixo (risos)...”.

No quesito ensinar aos outros durante o curso, Camila afirma que repara nos colegas

ao seu redor, se eles mantêm a conduta correta de manipular alimentos e ainda procura ajudar

aqueles que têm maior dificuldade “E fico reparando se todo mundo… tanto em casa como

aqui… reparando se eles lavam as mãos...”. Aquilo que ela aprendeu a executar muito bem,

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devido a sua prática culinária, e a preocupação de sempre fazer bem feito faz questão de

repassar aos colegas do curso e auxiliar na condução da atividade “E ensino como amassar o

pão certo, porque tem o modo certo, não é? Você ensinou conforme se amassa de um jeito

descansa mais, de outro jeito descansa menos, não é? Isso daí!”

Com Selma e Aílton (família B), houve apenas a participação da mãe Selma e a

surpresa no final desta enquete com a palavra do seu filho Ricardo contribuindo com o

discurso da sua mãe e mostrando o relato da atividade de fazer pizza em casa. O padrasto

Aílton manteve-se em silêncio, mas participou como ouvinte concordando com o discurso de

sua esposa e expressando sentimentos de alegria enquanto ela relatava.

A mãe Selma relata que o seu interesse é ir ao curso para aprender, pois trabalha como

merendeira e nessa relação de aprendizados busca ensinar suas colegas de trabalho com as

novidades de alguma técnica ou receita nova “Geralmente eu comento com as colegas de

serviço o que eu aprendi aqui e elas acabam até fazendo a receita que eu aprendi, participei

poucas vezes, mas o que eu aprendi acabei levando para elas e para dentro.” Percebemos no

semblante que ela se sente feliz por trabalhar com alimento, o fato de gostar de cozinhar

anseia o desejo de buscar novidades para que gere outros prazeres aos comensais e, ao mesmo

tempo, a realização pessoal.

“Eu aprendi fazer pizza!” Diz seu filho Ricardo, interrompendo a fala de sua mãe.

Selma afirma que seu filho gosta de vir ao curso e, em sua casa, ele pede para executar as

receitas junto com sua mãe na cozinha. Veio por parte do filho Ricardo a ideia deles

venderem pizza, receita trabalhada no curso que trouxe grande aceitação por todos

participantes, tanto que ela foi trabalhada nesses três anos de curso Mão na Massa. O intuito

de vender pizza é trazer mais uma renda para a família e, segundo a mãe, eles estão

executando tão bem que esta ideia pioneira advinda do interesse de seu filho pode se tornar

realidade.

Na entrevista da família C, com Maria e Márcio, tivemos apenas a participação do pai

relatando o que eles ensinam, a mãe ficou em silêncio observando e concordando com as

respostas do marido. Apesar de não ter respondido verbalmente ela expressava sinais de

alegria com os acontecimentos citados pelo marido. Márcio afirma que procura ensinar em

casa aquilo que ele aprende no curso, se referindo ao relacionamento em grupo com seus

familiares na prática de receitas. “Lá em casa, nós ensinamos o que você ensinou para nós

aqui”. Ele cita uma dessas atividades executadas pelos seus filhos, ilustrando a tentativa de

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cozinhar em casa, na relação com dois de seus filhos. A receita era de biscoito de polvilho

azedo e acabou sendo mal sucedida, mas trouxe, segundo ele, muitas alegrias de união e

relação com seus filhos.

Uma das falas citadas por ele, que nos chamou atenção, foi a consideração dele pelo

curso como uma forma educativa que permite a revinculação familiar. “Acho que até assim, o

que a gente vem aprendendo, a educação, o jeito de falar porque é uma situação que envolve

ali a família então a gente vai dar o melhor da gente naquele momento ali, então ajuda

bastante...”

A mãe Ana (família D) demonstra certo desinteresse por não querer responder a essa

pergunta, parecia demonstrar certa expressão de vergonha ou medo de não responder

corretamente à pergunta. Ela relata que procura ensinar aquilo que aprende no curso Mão na

Massa para suas colegas, sua vizinha e nora “...Posso pular? Muita coisa, como se diz, como

posso falar, como posso falar para você? Aí eu ensino com ela, muita coisa, como se diz?

Assim como eu aprendi, aqui, eu passei para várias colegas também lá fora, entendeu?”

Percebemos o interesse pela culinária.

As contribuições

A quarta pergunta está relacionada ao que o curso pode contribuir, mediante análise

daquilo que eles consideram ou acreditam como sendo algo que traz importância e

significados para a vida no dia a dia. Na quarta pergunta: “A participação no curso traz que

contribuição para sua vida?” Eles citam o desejo de aprender como resposta à pergunta,

assumindo ela um carácter conotativo peculiar a cada participante. Nas proximidades entre as

respostas, vimos que a convergência entre os participantes paira no sentido da formação

educativa, ou seja, o desejo está em aprender a culinária como algo que eles poderão praticar

em casa e com seus próximos, além de poder se tornar uma fonte de renda. Vimos que essa

pergunta se torna bem abrangente e a sua transcrição é apenas um recorte dos sentimentos

particulares de cada participante.

A Camila faz uma abordagem trazendo à tona o seu passado. Ela relata que era uma

pessoa muito nervosa e antissocial, pois não gostava de se relacionar com as pessoas. Diz que

esse comportamento foi fruto de uma criação sofrida no passado, ela conseguia sentir o

carinho mais não conseguia demonstrar. Nos acompanhamentos com a psicóloga ela sempre

trazia à tona essa situação de sofrimento, até que chegou um ponto que ela percebeu que

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estava agindo igual com seus filhos então decidiu mudar. Foi buscar ajuda e começou a adotar

uma nova postura de vida.

Em um trecho da entrevista ela cita “Vamos fazer um bolo gostoso? Daí fazemos nós

três juntos, daí temos união, não é? Coisa que não fazia, queria fazer sozinha! Agora consigo

ter união com eles. E tento fazer isto com as pessoas do curso também”. Entre as palavras

percebemos que o desejo de mudança e de aprender foram necessidade de bem-estar pessoal e

familiar, o seu envolvimento com o curso acabou contribuindo com a união familiar e no

relacionamento com os demais grupos, já que ela se recusava a se relacionar.

Na família B, tivemos apenas a participação da Selma, enquanto Aílton ficava em

silêncio prestando atenção na troca de olhares. Ricardo neste momento estava ausente, pois

decidiu se divertir com as crianças que presenciavam o curso. A resposta foi bem objetiva

dando clareza que os aprendizados advindos com o curso poderão contribuir para ensinar

outras pessoas. Diz: “O que a gente acaba aprendendo procuramos ensinar outras

pessoas...”. Pelo fato dela ser merendeira escolar, aquilo que ela aprende com o curso ela

procura ensinar outras merendeiras, já citado na terceira pergunta da entrevista. Podemos

compreender que a contribuição do curso, neste caso, representa um desejo de aprender,

ensinar e se destacar no ambiente profissional.

Na família C, a resposta discursiva foi formada apenas pela participação do Márcio,

enquanto Maria prestava atenção com a troca de olhares e confirmava movimentado a cabeça

com um sinal para cima e para baixo. Neste silêncio, até mesmo pela sua expressão facial,

percebemos que ela estava conectada com o assunto e parecia querer expressar algo, mas não

falava. De vez em quando, ela direcionava o olhar para baixo em sentido a sua diagonal

direita. Não apenas para responder a essa pergunta, mas até como uma atitude

comportamental, quando estávamos tramitando o diálogo. Acreditamos que ela se sentia

envergonhada.

Márcio afirma que a colaboração do curso está direcionada a sua vivência familiar. Ele

considerou que as contribuições estão ligadas ao aprendizado da culinária, pois ele acabou

adquirindo gosto de cozinhar em casa para seus familiares e citou com um semblante de

felicidade uma atividade de produzir bolo em casa “Eu gosto mesmo de mexer, assim, com

cozinha, eu não era muito fã de fazer esses negócios assim de massa é que eu não sabia fazer,

a única coisa que faço de vez em quando é raramente um bolo, mas às vezes cresce, às vezes

não cresce, eu gosto mesmo, rapaz, é de cozinhar, falar pra você...”

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Além disso, Márcio relata outra situação engraçada, quando seu filho Murilo resolveu

ir até a cozinha fazer um pão para comer e até mesmo como um momento de lazer no

relacionamento com Maria. Segundo o pai, o pão ficou gostoso e o filho ficou com ciúmes,

pois a receita havia dado certo “Estes dias, o Murilo, meu filho, fez um pão lá em casa e ficou

até mais o menos. Ficou até com ciúme do pão dele e escondeu (risos)…, mas é legal, cara,

para aprender mesmo...”.

Compreendemos que as contribuições do curso com esta família estão envolvidas com

oportunidades de ter o contato com situações que fomentem o aprender. Além disso, o

aprender está ligado aos desejos e interesses pessoais permitindo desenvolver significações

particulares.

Na entrevista com a família D, tivemos a colaboração da Laís contribuindo com o

discurso de sua mãe. Ela relata que, quando chega o dia de visitar a mãe, vai até a cozinha e

prepara bolos e milk shake para seus familiares. A sua mãe menciona que é uma alegria

contagiante quando chega o dia da Laís ir visitá-la. Além disso, Ana cita que quando não é dia

de receber sua renda, ela vai até o supermercado e compra apenas as matérias primas

necessárias para ela e Laís cozinhar ou acabam cozinhando com aquilo que tem disponível.

Ana, no início da sua resposta, ficou um pouco pensativa e se esforçando para responder à

pergunta. Presumimos que ela não estava conseguindo se expressar, pois, acabou gerando um

conflito de pensamentos em meio aos seus sentimentos.

No seu discurso ela relata que a contribuição do curso na sua vida acaba sendo uma

oportunidade de aprender para ensinar seus filhos, parentes e amigos próximos. Segundo Ana

“É uma ajuda, a gente pode aprender, a gente pode explicar para maioria lá fora, pode

ensinar mais coisas lá fora, que a gente aprendeu e que, lá fora, eles podem ter outro futuro e

passar para outras pessoas também...”. A culinária tornou-se um atrativo de destaque

gerando oportunidades de realização pessoal, uma conquista de respeito que ela está

fomentando com atitudes benéficas para si própria. Neste caso abordaremos melhor essa

análise a partir do seu relato, na resposta à oitava pergunta.

Momentos agradáveis

Na quinta pergunta conferida aos participantes, tivemos unanimidade entre as respostas

dos familiares, tendo como palavras de destaque a hora de preparar e hora de comer como o

momento mais agradável do curso. A pergunta: “Qual o momento mais agradável do curso?

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O que você faz nesse momento?” Teve o intuito de analisar as situações que eles consideram

como atrativas e prazerosas que favorecem a relação de ensino aprendizagem e a revinculação

familiar. Algumas respostas foram mais particulares e demonstraram o prazer de estar com

seus filhos, à oportunidade de comunicar-se com outras pessoas, a alegria de poder ter um

professor, além de ser considerado por um dos familiares como um momento de liberdade e

autonomia.

Para Camila (família A) o momento mais agradável do curso está atrelado à hora da

atividade de preparar o alimento e a hora comer. Ela procura exemplificar sua resposta com

uma atividade de preparar bolachinhas, considerando uma atividade que cada um pode cortar

a massa do seu jeito e, quando faz formato de coração, os participantes brincam com ela

dizendo “Eu já quero fazer meu formato de coraçãozinho, aí todo mundo fica falando: Está

apaixonada! (risos)”. Outro momento de relevância que ela destaca é o fato dela e seus filhos

se sentirem à vontade sendo um momento que traz prazeres para a mãe na relação com seus

filhos. Na análise dessas situações agradáveis, podemos dizer que esses prazeres foram

trabalhados por ela no envolvimento com o curso, pois no início de 2013, como relatado por

ela, a participação no curso Mão na Massa era algo que ela recusava, uma vez que não queria

se relacionar com outras pessoas.

Com a família B, tivemos apenas a participação discursiva da Selma enquanto Aílton

manteve-se em silêncio, mas demonstrou expressivamente um sinal de sorriso com a resposta

de sua esposa. Selma aponta, comparando-se com outros colegas participantes, que o

momento mais agradável está na hora de comer, pois se torna um momento que todos os

participantes estão juntos e assim acabam trocando informações e comunicando-se com os

colegas. Diz ela “O legal é na hora de comer, não é? (risos), acho que todo mundo gosta

desta parte, aí todo mundo está junto e é um momento que a gente pode estar

conversando...”. Podemos perceber que o alimento ganha um viés de união entre as pessoas e

que desse momento de união decorrem diálogos e interação entre participantes.

Na família C, tivemos a participação apenas do Márcio enquanto a Maria, sua esposa,

ficou em silêncio, mas demonstrou um sinal de sorriso com a resposta do seu marido. Foi um

sorriso que demonstrou uma grande expressão de prazer, talvez pelo fato de poder comer

alimentos diferentes e estar aprendendo a produzi-los. No discurso de Márcio ele cita a hora

de fazer como algo encantador, pois ele acaba se empenhando em dar o seu melhor na

atividade e quando as situações relativas à produção vão dando certo, ele menciona que fica

contente. Diz ele: “A hora que você está fazendo, está dando seu melhor ali e você vê seu

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serviço ficando bonito, dai fico contente. É verdade. E comer também é bom”. Podemos

analisar que a atividade com alimento fomenta o interesse de participação, pois ela se torna

um grande atrativo proporcionando alegrias por estar com o outro e por fazer algo junto com

os outros.

Ana (família D) teve também a participação de sua filha Laís, que sorriu diversas vezes

confirmando a resposta conferida pela sua mãe. Ana relata que o momento agradável para ela

é a hora de executar o preparo do alimento juntamente com o fato de comê-lo, ao final da

aula. Outro detalhe que ela destacou foi o fato de poder participar de um curso tendo um

professor colaborando. Diz ela no seu discurso “Na hora da Mão na Massa que é mais

divertido, e na hora de comer também (risos). Sinto alegria de trabalhar ali, ficar ali

mexendo, fazendo de um jeito, você explicando, é assim!” Podemos perceber que além desses

momentos agradáveis citados, de preparo e a hora de comer, ela se sente útil e envolvida com

o curso, pois ali acaba se tornando um momento de relacionamento e aprendizado.

Imagem 3 - Curso Mão na Massa – Pão Sírio (Pita) e Beirute.

Fonte: Projeto Lar feliz (2015, p. 1).

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As dificuldades

Na sexta pergunta conferida aos participantes, procuramos identificar outro recorte do

curso, os aspectos negativos das circunstâncias com que nos deparamos, ou seja, poderia

haver o desprazer de estarem no curso aos sábados, as dificuldades envolvidas como

locomoção, o agendamento do curso, o trabalho, sentimentos ou questões de obrigatoriedade.

A pergunta: “Qual o momento mais difícil do curso? O que você faz nesse momento?” pôde

identificar que houve convergência entre os participantes, pois três famílias relataram a

despedida como um dos momentos mais difíceis. Ainda assim, trazemos à tona alguns dos

destaques que permitiram melhor ilustrar essa temática.

Camila (família A) procura demonstrar a tristeza do passado, pois seus filhos

atualmente foram desabrigados. Cita os momentos negativos marcantes que de certa forma

contribuíram para sua nova postura diante da vida, quando relata que não pretende voltar ao

passado “Eu não quero passar por essa dor nunca mais na minha vida.”

Não apenas com ela, mas com os outros entrevistados ao conferir a sexta pergunta,

acabou simbolizando um choque de emoção já que, na pergunta anterior, estavam alegres e

relembrando dos momentos felizes que foram tão prazerosos. Essa quebra de cenário de

momentos agradáveis para os momentos desagradáveis gerou consigo o desânimo, acabaram

relembrando de situações desprazerosas e se empenharam em trazer ao máximo a sua

realidade como se fosse um desabafo.

Camila relata que um dos momentos mais difíceis, quando seus filhos estavam

abrigados, era a hora da despedida, era um momento de grande tristeza “Momento de

felicidade, de cozinhar, de estar perto do seu filho, mas na hora de ir embora é triste”. O

semblante dela todo sorridente dá lugar para a tristeza e momentos de quietude quando

retomava o passado. Ela fez questão de continuar a entrevista e demonstrou algumas situações

que vivenciou. Camila relata que tinha muita preocupação por seu filho estar distante,

querendo ou não ele era seu descendente, ela pôde presenciar nas suas visitas situações com

que se deparou com seu filho doente e não poderia fazer mais nada por ele. Relata que a

tristeza aumentava ainda mais quando gerou dentro de si o medo de perdê-lo e nunca mais

poder vê-lo. Ela menciona sua insatisfação com alguns familiares que tem a oportunidade de

visitar seus filhos e acompanhar o curso Mão na Massa, mas não vão. No desfecho dessa

entrevista, Camila aborda que as pessoas deveriam ter cuidado para com seus filhos, que eles

não sejam acolhidos, pois se algum dia ficarem nessa situação de acolhimento, torna-se difícil

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recuperá-los “É bom tomar cuidado para os filhos não caírem aqui, porque se cair é difícil

tirar viu...”. No encerramento dessa entrevista foi necessário darmos uma atenção solidária,

pois a Camila começou a chorar.

Conforme o depoimento de Camila, podemos perceber que as instituições de

acolhimento e ou os conselhos tutelares muitas vezes corroboram com o desrespeito às leis,

quando o tempo de permanência na instituição acaba se tornando prolongado. Crianças e

jovens ficam aguardando uma tomada de decisão perante suas vidas, se serão encaminhadas

para adoção, incorporadas em uma família substituta ou reintegradas à família de origem, esse

processo torna-se lento, apesar de considerarmos que estamos tratando de um assunto

delicado que envolve sentimentos, valores, representações simbólicas, tão quanto às vidas das

pessoas envolvidas, porém, a falta de uma atenção delicada, preconizando reestabelecer os

vínculos afetivos que acaba estendendo esse processo, tornando casos sem soluções, ou

possíveis filhos do esquecimento. Situações como estas acabam se tornando comuns e o

prejuízo afeta diretamente o seio familiar, além da formação do indivíduo, quando este se

percebe desassociado da sua família, da sua realidade, daquelas pessoas com quem mantinha

laços de amizade e afetividade, dos espaços e locais que faziam parte de sua convivência,

entre outros, prevalecendo à angústia da solidão e do seu próprio isolamento. Ratificando

assim a afirmativa de Cruz (2015):

Ocorre que a provisoriedade se transforma em “perenidade”, o tempo torna-se

passivo, e o silêncio sobre sua origem se estabelece. O que se vê entre esses sujeitos

é sua infância e juventude num processo de desvinculação com a família,

submetidos a uma política lenta, estagnada. Esses jovens, próximos de completar

seus dezoito anos, muitas vezes escondendo de si mesmos a situação de abandono;

fragilizados continuam dependendo do serviço para moradia e quase todas as suas

referências [...]. (CRUZ, 2015, p. 83).

Em análise podemos compreender que o momento desagradável não é formado por

uma situação apenas e sim na maneira de encarar a realidade e suas circunstâncias de vida.

Outro aspecto preponderante é que a experiência negativa pode contribuir diante de uma nova

postura de encarar a vida.

Selma e Aílton (família B) relatam sobre os momentos que trazem desagrado diante da

participação no curso. Selma e Aílton foram mais objetivos em suas respostas, concentrando-

as em situações momentâneas. Selma inicia o diálogo relatando que o que mais lhe desagrada

é ter que cuidar de um bebê durante os acontecimentos do curso, assim ela não consegue dar

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atenção necessária ao aprendizado tendo que, muitas vezes, observar e não praticar

“Amamento ainda e ela toma mais o meu tempo, daí eu aprendo mais vendo do que fazendo.”

Para Aílton o fato que lhe desagrada é ter que acordar cedo aos sábados devido ao seu

trabalho desgastante de pedreiro “Para mim é acordar cedo para vir, porque trabalho por

conta, então eu que faço meus horários”. Ainda assim, ele procura aproveitar os sábados para

fazer outras atividades extras de modo que, nem sempre, consegue participar do curso.

Situações de trabalho e o fato de cuidar de um bebê ainda na fase de amamentação

acabam dificultando ou tomando tempo durante a atividade do curso, fazendo com que a

família B não tenha o mesmo desempenho dos demais participantes do curso. O que está por

detrás do relato do casal não é apenas a situação de desagrado em meio às dificuldades que

envolvem cuidar de uma criança ou o emprego, o fato é que essas circunstâncias acabam

batendo de frente com o desejo e o interesse deles com o curso.

Com a família C, tivemos a participação do casal Maria e Márcio no discurso. Devido

à qualidade da pergunta com eles também não foi diferente, se sentiram entristecidos, pois

neste caso não havia um passado e sim uma realidade já que seu filho estava em situação de

acolhimento. A mão coçou a cabeça e com um dos braços apoiou o queixo e volta e meia

dispersava o olhar olhando para os lados e em sentido para baixo. Márcio inicia o diálogo

relatando do momento que mais lhe desagrada, sendo a hora da despedida e também em casa

ao lembrar-se de seu filho. Ele nos conta que colocou uma foto do seu filho Leandro do lado

de fora da porta do guarda roupa e que sempre, quando passa por essa imagem, bate uma

saudade enorme e a vontade de vê-lo novamente. Quando chega o dia de visita a felicidade

toma conta, mas ao mesmo tempo a tristeza acaba fazendo parte do contexto, pois relembra

que essa felicidade é momentânea. “A hora que está ali, está mil maravilhas, é gostoso ver a

criança brincando, catando a massinha ali, aí na hora de ir embora é difícil...”. Na hora da

despedida o som do choro do filho o acompanha no retorno para casa, a cena nada agradável

acaba martirizando o seu dia a dia.

Maria em comum acordo com o marido movimentava a cabeça para cima e para baixo,

como um sinal de confirmação. Enquanto Márcio falava, ela passou maior parte do tempo

olhando para baixo cutucando sua própria mão inquieta e dispersando o olhar para os lados.

Ela não entra em detalhes, porém seu semblante triste já dizia tudo o que estava sentindo.

Apenas no final dessa, quando já estávamos quase indo para a sétima pergunta, ela emite em

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tom de voz baixo que o momento mais desagradável e de grande tristeza é a hora da

despedida “Aí vamos embora e o Leandro (filho) chora!”

Podemos analisar que o momento de desagrado se refere à vivência deste casal de não

ter o filho presente. O envolvimento no curso traz grandes alegrias para o casal, pois é um

momento de encontro e de relação entre pais e filhos. Novamente essas situações

desagradáveis acabam sendo um reforço para que haja melhorias em sua maneira de agir e

viver a vida.

Na entrevista com Ana (família D), percebemos que de alguma forma a pergunta

acabou interferindo no seu ânimo, porém ela manteve uma postura discreta. Dessa vez não

demorou certo tempo para responder, já tinha as respostas de imediato. Abordou que o

momento mais desagradável é a hora da despedida, como ela cita: “Do portão para fora” é

outra realidade. “Na hora de ir embora, porque quando você está aqui dentro você se sente

feliz, sente alegre, mas quando sai do portão para fora é uma tristeza...”. Ela relata que perto

da filha ela se sente “mais”, com vontade de viver, com ânimo, porém sem a Laís a vida acaba

perdendo o sentido. Em análise podemos observar que os momentos desagradáveis apontados

por Ana se assemelham aos dos demais participantes, assim a vontade de recuperar a guarda

da filha é uma maneira de recuperar a si própria do alcoolismo conforme citada na oitava

questão mais a frente.

O relacionamento familiar

Na sétima pergunta com os participantes, a questão de análise estava atrelada em

identificar, a partir dos relatos dos entrevistados, as mudanças ocorridas na relação pais e

filhos advindos com a participação do curso. A análise das respostas dada à pergunta: “Com

sua participação no curso, você acha que houve alguma mudança na relação pais, filhos e

familiares? Qual?” Pode identificar que houve convergências entre as quatro famílias

participantes, afirmando que houve mudança da relação pai e filho, citando que atualmente

são mais unidos e procuram estar sempre próximos nas atividades e que há mais diálogo na

relação entre pais e filhos.

Na entrevista com a Camila, ela afirma que houve mudanças na maneira de se

relacionar com seus filhos, existindo maior união entre eles na hora da refeição, almoço e

jantar, principalmente, comem todos juntos. Outro dado importante é que seus filhos a

acompanham nas atividades de casa e sempre estão pedindo para ela ensinar algo e a postura

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da Camila diante da situação: “...Oh, mãe me ensina qualquer coisa? ...Daí eu fico no sofá só

ensinando eles...”. A partir do relato, podemos dizer que as mudanças que ocorreram estão

atreladas na maneira de se relacionar com seus filhos, procurando desenvolver atividades

juntos. O que chama a atenção é a vontade de estar com seus filhos por perto e fazer o

possível para que esta união aconteça. Outro detalhe em questão é a postura dos seus filhos

pedindo para que sua mãe ensine algo. Esse sentido dado à palavra algo representa qualquer

coisa, não estão atribuindo juízo de valores, o que importa é o que realmente eles estão

querendo dizer por detrás dessa palavra. Denota que eles estão querendo ter o envolvimento

com sua mãe, aproveitar seus conhecimentos ou talvez os desafios que ela teve que superar

tenha feito com que os filhos tivessem admiração por ela, não sabemos ao certo, mas podemos

cogitar como hipótese. Na análise do curso ela é uma das participantes que mais obtém

resultados positivos na produção.

Na entrevista com Selma e Aílton (família B), tivemos a participação do casal como

depoente. Selma inicia o diálogo e demonstra-se sorridente com as mudanças ocorridas na

relação com Ricardo. Ela relata que Ricardo não gosta mais de ficar sozinho, está sempre por

perto e isso, segundo ela, facilita a amizade entre eles tornando possível uma atenção de

qualidade no que representa o papel de uma mãe para um filho. “Sim a gente dá mais atenção

quando está todo mundo junto, igual eu estava falando, meu filho não gosta de fazer nada

sozinho, se você der alguma coisa para ele fazer você tem que estar junto, ele gosta de estar

conversando, ele não gosta de fazer nada sozinho...”. Aílton comenta que facilitou a

comunicação entre os dois, conquistando o respeito e a consideração de Ricardo. Ele ainda é

uma criança, mas faz questão de agradá-los e Selma e Aílton fazem questão de retribuir esse

agrado “Com certeza, a amizade com ele antes era um pouquinho difícil...”.

Podemos perceber que houve melhorias na relação mãe, filho e padrasto. O que chama

a atenção é a importância que Ricardo dá aos momentos de união e suas atitudes de respeito e

aproximação que representam a aceitação da convivência com o padrasto.

Na entrevista com Maria e Márcio (família D), ambos relatam sobre a pergunta em

questão. Maria inicia o diálogo mais animada e convicta daquilo que estava falando. Diz que

o relacionamento em família melhorou muito, pois estão tendo mais oportunidades de

aceitação e contato com seus filhos. Ela relata que, quando vai desenvolver uma atividade em

casa, seus filhos estão sempre por perto “Melhorou bastante. Tanto os que estão lá com a

gente, às vezes, vamos fazer alguma coisa juntos, estão participando em casa, ajudam, ficam

interessados em prestar atenção.”

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Márcio concorda com sua esposa ao relatar sobre as melhorias dos vínculos afetivos.

Ele comenta que aquilo que aprende no curso, na maneira como se relaciona com as pessoas e

como as pessoas se relacionam com ele, procura levar para dentro de sua casa. Menciona que

antes tinham uma vida conturbada e que atualmente existem mais diálogos e conversas entre

pais e filhos. Diz que aprendeu a ser mais humilde, tendo mais paciência e saber a hora certa

de conversar. “Porque antes das crianças virem para cá, a vida nossa era torcida, não é?

Conturbada, hoje já tem mais diálogo, mais conversa, onde a gente vê que talvez não tenha

conversa, a gente deixa um pouco para lá porque tem coisa que não tem como você resolver

ali na hora...”.

Em análise podemos observar, a partir dos relatos, que houve mudanças atitudinais na

maneira de encarar os problemas. Além do mais, ambos afirmam que estão mais unidos com

seus filhos nas atividades, porém vale ressaltar que essa união está se referindo a maneira

como agem com seus filhos que moram com eles em casa. No total eles têm seis filhos e dois

estão em situação de acolhimento, porém demonstra-se que mudanças de postura estão sendo

favorecidas e espera-se que, ao receber os dois filhos novamente, tais mudanças sejam

incorporadas nessa nova estrutura de comportamento familiar.

Ana, família D, comenta que a relação com sua filha melhorou muito, pois a união

entre as duas está mais consolidada. Ambas procuram ensinar umas as outras e o que elas

aprendem, no curso, procuram executar em casa novamente. Ana comenta “...Muita coisa que

não tinha agora estou tendo...”, no caso se refere ao respeito, ao carinho e união com sua

filha. Observamos que as mudanças que ocorreram na relação mãe e filha foram: aproveitar as

oportunidades de estarem juntas, ensinar algo de bom, tendo como incentivo a culinária,

colaborando assim com a união, carinho e respeito entre ambas.

A perda do filho

A oitava entrevista com os participantes representou uma conotação delicada bem

particular de cada família, pois estávamos entrando numa situação que poderia causar

desconforto ou a recusa em responder. A pergunta: “Por qual motivo você perdeu a guarda

do seu filho?” Buscava compreender a causa da perda da guarda do filho, conhecendo com

mais afinco a realidade de cada família. Identificar que o alcoolismo representou o motivo da

perda da guarda com três familiares participantes e apenas uma família por motivos de

agressão física realizada pelo pai da criança e sua parceira.

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Na família A, com Camila, ela afirma que foi por motivos do alcoolismo que perdeu a

guarda do seu filho. Ela sentiu necessidade de contar sua história e relatou fatos que a levaram

ao vício, além de um acidente terrível que ocorreu em sua residência tendo ela como a

principal culpada por essa fatalidade. O assunto se tornou delicado e, enquanto entrevistador,

senti necessidade de estabelecer uma postura de seriedade, olhando olhos nos olhos e ao

mesmo tempo procurando deixá-la à vontade. Afirmei novamente que ela poderia interromper

a entrevista a qualquer instante e que falasse apenas aquilo que ela sentisse vontade.

Camila começou a se abrir e comentou que aprendeu a beber por parte da sua mãe que

era alcoólatra. Imitando a sua mãe ela aprendeu com as bitucas de cigarro a fumar e, na

presença de bebidas em casa, despertou-se a curiosidade de beber “Eu bebia, mas nunca fui

uma mãe que judiava dos meus filhos...”. O relato do acidente se inicia e ela tenta ilustrar em

palavras o fato ocorrido. Ela morava na casa de uma de suas irmãs, juntamente com todos

seus filhos, no caso ela é separada do marido e cria sozinha todos eles. Um dia ela saiu de

casa para ir até a vizinha conversar e deixou as crianças dentro de casa. Sua irmã de 12 anos,

ainda pequena achou uma arma de fogo e começou a brincar de “roleta russa” (nome dado a

uma brincadeira infantil, porém no caso não se utiliza armas) com a arma juntamente com

uma de suas amigas também de 12 anos. A arma disparou e acertou a amiga da irmã que

acabou morrendo no local “...Minha irmã na época tinha doze anos e a menina que morreu

também tinha doze, só que ainda acharam que era eu quem tinha feito isso porque eu era

briguenta! Depois juntaram os fatos e descobriram que era ela...”. Todos ficaram

desesperados e ela relata que não sabia o que estava acontecendo, tinha ficado muito nervosa

com o desespero. Ela relata que a polícia chegou até o local e a acusou por ter sido cúmplice

do acidente. Segundo Camila, ela já tinha fama ruim no bairro, ninguém acreditou no seu

discurso que ela não tinha culpa do ocorrido ou muito menos que aquela arma não era dela. A

polícia ao ligar os fatos descobriu que a arma pertencia ao seu irmão que tinha escondido a

arma dentro de sua casa. Segundo Camila a polícia matou seu irmão ao descobrir que ele tinha

sido o culpado.

Por esses motivos que Camila passou, o Conselho Tutelar decidiu que seu filho fosse

encaminhado ao acolhimento. Ela relata que devido à gravidade do problema a chance dela

recuperar a guarda era muito pequena “...Por isso tudo que eu passei em casa era quase

impossível eu pegar meu filho de volta...”. Daí ela começou a ter uma nova postura diante da

vida e lutou para reconquistar a guarda de seus filhos. No final da história ela recuperou a

guarda do seu filho e tem a instituição que acolheu seu filho, no caso o Lar Feliz, como um

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local frequentado para obter seus aprendizados de culinária. São situações delicadas como

essa que acabam mudando a trajetória de vida de muitos familiares que tem seus filhos na

situação de acolhimento.

Na família B, tanto quanto a primeira e nas demais citadas, afirmamos que eles

poderiam interromper a entrevista a hora que quisessem e falar apenas aquilo que desejassem

expressar. Selma mãe de Ricardo inicia o discurso relatando o motivo pelo qual ela perdeu a

guarda do seu filho. No início da entrevista ela cita que este é um assunto chato de falar e

expressa sua vergonha ao falar os motivos reais que culminaram nesse fato de perda da

guarda. Ela comenta que se separou do seu primeiro marido o pai de Ricardo, ele não estava

pagando a pensão do seu filho, desmerecendo-a que o valor da pensão era algo muito caro e

ele a acusava que estivesse gastando o dinheiro da pensão com ela e não com o Ricardo. No

discurso ela relata que o pai começou a comprar o filho com presentes, com bicicleta, vídeo

game, celular e afins “...Começou a comprar o meu filho para poder fica com ele, deu

bicicleta que é muito cara e eu não tinha condição de dar um presente desse para ele, deu

vídeo game, deu celular, então ele comprou o filho dele.”

Com seu atual marido mudou-se para Bahia, o ex-marido ficou com Ricardo. O filho

mais velho sempre próximo a Selma, acreditava na mãe, já Ricardo optou por ficar com seu

pai. Daí situações de agressão contra o menino Ricardo começaram a acontecer. A mãe

comenta que o pai nunca aceitou seu filho ser fraco, dizia que isso era frescura. “...Não tinha

paciência, sei lá o que passou na cabeça dele, mas por várias vezes ele foi espancado pelo

pai que falava que problema dele era frescura e que o problema dele se resolvia na

porrada...”. Selma comenta que teve depressão no parto e Ricardo nasceu com resquício

desse momento de fragilidade, tornando-se uma criança deprimida que acabou demandando

uma atenção maior com apoio de psicólogos e psiquiatras.

O pai, segundo ela, começou a espancá-lo com socos na barriga, dizia que a solução

dele era “porrada” (agressão física) e diversas vezes Ricardo foi para a escola com sinais de

violência. A mãe relata que tanto seu ex-marido torturava o Ricardo com agressão física

quanto a sua parceira também. Ricardo um dia, após tanto sofrimento, denunciou seu pai na

escola e ao Conselho Tutelar. A mãe de Selma ficou com Ricardo, pois Selma ainda estava

morando na Bahia. Eles estavam sem condições financeiras na época de voltar. Ricardo foi

encaminhado ao acolhimento, pois sua avó acabou sendo negligente com os medicamentos

que ele usa e não o levava nas suas consultas médicas de rotina.

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Em meio às cenas trágicas, Selma relata que Ricardo contou os momentos de tortura

que ele sofreu por ambas as partes, do pai com várias situações de agressão física e

humilhação e da parceira de seu pai que colaborava com a agressão física e o impedia de ficar

perto do seu próprio pai “...Passou por exame de corpo e delito, daí foram constatadas as

agressões...”. Ricardo permaneceu por alguns meses em acolhimento institucional sendo

desabrigado, em abril do ano de 2015. Em análise vemos que essa foi à única família que

citou a agressão física como um dos motivos para a perda da guarda do seu filho.

Com a família C, tivemos apenas a participação de Márcio como depoente da questão.

Ele demonstrou-se um pouco acanhado em responder a essa pergunta, parecia estar com

vergonha. Maria permaneceu em silêncio, mas concordava movimentando a cabeça com os

relatos do seu marido. Márcio afirma que foi o alcoolismo do casal que fez com que eles

perdessem a guarda dos seus filhos. Segundo ele, estavam bebendo descontroladamente,

afirmando que já estiveram internados e foi num momento de recaída que perderam a guarda.

Márcio faz questão de contar que estão participando das reuniões de Associação dos

Alcoólatras Anônimos (AAA) e que elas estão colaborando com eles, pois segundo ele, é um

momento de desabafo e ao mesmo tempo um momento de ouvir o outro “...É legal a gente

vai de quinze em quinze dias às terças-feiras, aí você vai lá, se quiser partilha ou se não

quiser não partilha... às vezes você ouve o problema do outro e acha o seu tão pequeno…”.

Um aspecto que Márcio sinaliza de grande importância é que nos encontros de

partilha que acontecem no AAA, às terças-feiras, a participação como depoente expondo seu

problema é facultativa, mas apenas de estar lá dentro faz bem, pois lá se torna um ambiente

onde todos são iguais. Segundo ele, ao olhar o problema do outro, passa a considerar seu

problema pequeno em relação ao do colega ao lado, acaba dando vontade de falar, de expor e

mesmo tempo ouvir “...No meio onde todos são iguais a você, você saber que eles estão te

entendendo porque todos passam os mesmos problemas e isso te anima...”. Em análise,

podemos observar a maneira de encarar o problema envolvendo atitudes positivas, a

importância de haver o diálogo, se sentir igual ou pertencente a um grupo e a partilha de

experiências.

Com Ana, família D, ela relata que o motivo que levou a perda da guarda da Laís foi o

alcoolismo. Comenta que outros dois haviam sido acolhidos também, porém já foram

desabrigados. Devido ao vício, segundo ela, parou de cuidar e dar atenção necessária a ela.

“...Mas eu perdi mais a guarda dela porque eu estava bebendo demais e não estava cuidando

dela, então foi uma missão para mim, de eu perder ela para poder parar com o que eu estava

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fazendo...”. Ficou internada por um tempo e afirma estar recuperada, desejando obter a guarda

da Laís novamente e tirá-la da situação de acolhimento. Ela se diz empenhada para que seus

sonhos se realizem que é recuperar sua filha e manter-se curada “...Ah! Eu estou tentando,

não é? Como se diz, nada neste mundo é impossível. Olha, tudo que eles estão pedindo para

mim eu estou fazendo, tudo...”. Podemos dizer que o alcoolismo, que levou a perda da guarda

de sua filha Laís, dentre os outros já desabrigados, tornou-se uma motivação para que ela

tivesse uma nova postura diante da vida. A vontade de recuperar a guarda e ter sua filha de

volta a faz enfrentar com ânimo os desafios da vida.

Perspectivas para o futuro

A nona e última pergunta conferida aos participantes teve o intuito de analisar as

expectativas e perspectivas de futuro, quando os familiares recuperarem novamente a guarda

dos seus filhos. A pergunta: “Como você acha que será sua vida quando recuperar a guarda

de seu filho?”, além de propor algo que almejam no futuro, ela se torna também reflexo do

presente, quando buscam adotar novos hábitos que favoreçam essa reconquista de guarda.

Na entrevista com Camila (família A), ela demonstra estar muito feliz e sorridente,

pelo fato de que seus filhos já tinham sido desabrigados. Tê-los novamente já fazia parte do

presente e trazia uma grande motivação para sua vida. Ela relata que se tornou uma grande

mãe “...Maravilhoso, quando vou deitar vejo meu filho lá, aí eu olho e falo, agora me tornei

uma grande mãe...” considerando que aprendeu a cuidar melhor de seus filhos, dando uma

atenção especial a eles, estando sempre por perto, buscou o caminho que se diferenciava da

maneira que ela foi criada. Segundo Camila ela tornou-se evangélica e mantendo sua crença

em Deus, considerando-se uma pessoa vitoriosa na vida e feliz de ter seu filho de volta “...E

sou uma pessoa vitoriosa na vida e estou muito feliz com meus filhos...”. Podemos dizer que

Camila buscou reconfigurar sua maneira de ver a vida, tomando atitudes que foram contrárias

ao que havia vivenciado no passado. A perda de seu filho e as situações que ela vivenciou a

fizeram adotar novas posturas, dando um valor especial a si própria e aos seus descendentes.

Com a família B, Selma e Aílton demonstram um semblante de felicidade, Ricardo

estava todo sorridente e Aílton confere um abraço coçando sua cabeça com uma das mãos.

Selma foi breve e diz ter ficado feliz de ter reconquistado a guarda de seu filho Ricardo. Diz

que não quer ter seu filho distante, ainda mais em uma situação de acolhimento institucional

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“...Estou mais feliz, não é? Porque a mãe não quer o filho distante ainda mais num abrigo!”

No caso ela deixa claro sua opinião de insatisfação pela situação de acolhimento institucional.

Na entrevista com a família C, tivemos a participação de Maria e Márcio como

depoentes, ambos encerram essa última questão com sentimentos de mudanças e positividade.

Márcio inicia o diálogo relatando que estão adotando novas posturas de vida, pedindo a Deus

que os abençoe no dia a dia e às crianças e que eles possam viver uma vida sem a dependência

do álcool, buscando sempre melhorar “...Deus abençoe que quando essas crianças estiverem

em casa, educar mesmo de verdade, mantendo sem álcool, rapaz, sempre dá para melhorar”.

Maria concorda com a cabeça com um semblante de felicidade e diz “...Continuar para

melhorar cada vez mais!” Podemos observar que eles estão adotando novas posturas de

encarar a vida, buscando livrar-se do alcoolismo, além disso, relatam que ao recuperar a

guarda desejam educá-los com afinco.

Ana, família D, demonstra-se animada, pois está fazendo o possível para recuperar a

guarda de sua filha Laís. Sua filha, ao final da entrevista, deixa uma mensagem que simboliza

a vivência de um relacionamento conturbado. Ana relata que não pretende voltar ao passado e

fazer aquilo que ela fazia, a partir de agora, quer projetar sua vida para o futuro. O fato de

recuperar sua filha ela considera como um momento de grande felicidade e tudo o que ela

mais quer no momento “...Eu acho que vai ser uma felicidade enorme e a coisa que eu mais

quero no mundo é tirar ela daqui e ter perto de mim de novo, não pretendo voltar ao passado,

a fazer o que eu fazia, quero dar o que ela precisa e o melhor que ela precisa...” Além disso,

Ana encerra seu argumento propondo uma esperança oferecer um futuro melhor para sua

filha. Diz que o tratamento dado aos seus filhos é igual para todos e que ela está

reconquistando a confiança deles, pois quando ela bebia as situações eram bem diferentes “Se

eu posso dar para ela, eu dou para os outros, se eu não posso, eu não dou para nenhum.

Agora eles se dão bem, porque antigamente quando eu bebia não...” Laís interrompe a fala

de sua mãe e afirma com toda franqueza que antes quando a mãe bebia seus irmãos não

confiavam nela “Antes eles nem confiavam na mãe!” Podemos considerar que os sonhos

acabam sendo alimentados pelos desejos de uma felicidade, adotar novas atitudes permitirá

ver a vida de outra forma. A conquista de uma nova confiança se deu a partir do momento que

viram uma nova mãe.

A partir das falas dos participantes buscamos fazer uma síntese de suas considerações,

daquilo que foi mais convergente ao contexto da revinculação familiar e da educação. Assim,

podemos considerar a partir das respostas, que os pais realmente almejam reconquistar a

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guarda de seus filhos. Para que haja a revinculação familiar os pais recebem acompanhamento

no decorrer do mês pelos assistentes sociais e, ao mesmo tempo, deverão visitar e participar

de atividades que a instituição oferece. Não é uma questão obrigatória participar do curso,

mas percebe-se que estar envolvido em alguma atividade favorece a aproximação e ao mesmo

tempo o trabalho desempenhado pela instituição, no que envolve o acompanhamento e

relacionamento.

Os familiares entrevistados manifestaram o desejo e interesse de participar do curso,

quando mencionam a questão da aprendizagem, numa ideia de aprender algo que agregue

valores em suas vidas, assim demostram vontade de aprender o domínio de técnicas culinárias

como uma fonte de renda futura. Denota-se o anseio pelo trabalho e enfretamento dos

desafios, não como seres passivos.

Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos

tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em que aprender é uma

aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a

lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que

não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. (FREIRE, 2002, p. 28).

Outro aprendizado em destaque é o aprender a relacionar-se com os outros e a

conviver. Os relacionamentos citados partiram de uma relação que se desenvolve com os

outros membros do curso, podemos citar a importância das relações de gênero e entre pessoas

que até então eram desconhecidas, o que pode repercutir num distanciamento ou até mesmo

fomentar uma curiosidade, lidar com situações onde o outro é uma peça fundamental para

execução do seu trabalho em se tratando de um trabalho em equipe, “eu dependo dele e ele

depende de mim”, entre tantas outras diferenças que por fim foram se tornando união e pontos

de convergências. Entre elas podemos citar que percebem que o outro está numa situação tão

delicada quanto a sua, que ser diferente gera assunto e as prosas boas da vida. Ser diferente

em alguns aspectos instigou a vontade de se conhecerem. Neste caso é relevante frisarmos que

estar num ambiente onde todos se sintam acolhidos, confortados, num bem-estar, alimenta o

desejo de manter-se no curso, pois agrega a questão do pertencimento.

Ora, essas trocas de olhares e gestos de afeição não estão longe de ser o repertório

dos momentos que garantem o surgimento de sentimentos de “eu” e de “nós”, o que

possibilita um relacionamento entre iguais, tão estável e profundo que possa ser, por

isso mesmo, a condição de um modo diferente de ensinar-e-aprender. (BRANDÃO,

1983, p. 8).

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Além disso, com o relacionamento podemos identificar grandes contribuições que

favoreceram a aproximação entre os participantes e comumente com seus filhos. Uma questão

que foi sensibilizada por um desejo de aprender a ter paciência, favorecer o diálogo e a união,

o querer estar junto, uma questão que envolveu a oportunidade dos momentos, tão quanto à

aceitação dos seus filhos.

As contribuições para a vida tema de uma das perguntas, apesar de terem sido muito

próximas as repostas, devemos relembrar a importância do aprender, remetendo a uma

questão histórica, quando deixamos as marcas nas trajetórias pela qual passamos e

diretamente elas nos marcam. Construímos uma bagagem que vai sendo alimentada pelos

nossos desafios, hora e outra remetemos a ela para encontrarmos um pedaço do nosso eu que

ficou guardado, admirarmos as experiências boas ou ruins, não importa se foram ruins, mas

foram parte de nós e com ela aprendemos. Pois é, aprendemos a construir o nosso

discernimento e a tomarmos as decisões daquilo que consideramos sendo favorável. Ora

porque abordamos isso?

Pois bem, para explanar que a relevância e a pertinência de uma contribuição são feitas

de momentos bons e ruins, no prazer e no desprazer, na companhia e na solidão, ou seja, para

cada opinião sempre haverá uma opinião contrária. Suas concepções vão se fazendo no todo,

assim como podemos observar nas análises, adotar uma nova postura diante da vida, o desejo

de aprender e ensinar, cozinhar em casa para os filhos, enfim, observamos que as

contribuições segundo os participantes partiram do querer. Consideramos que já partimos de

um pressuposto positivo ao consideramos que o curso fomenta a revinculação na questão de

enfretamento dos desafios e da possibilidade de (re)significar a própria vida.

Este processo de (re)significar a própria vida é alimentado por uma perspectiva de

futuro, instigando repensar sobre a vivência no presente e lançando uma trajetória de um

mundo com novos desafios. Cada família expressou seu desejo de reconquistar a guarda de

seus filhos e para isso foram necessárias ações como o fazer diferente adotando uma nova

postura diante da vida, “tornar-se uma grande mãe, mudar suas maneiras de viver e enxergar a

vida, realizar transformações na estrutura familiar, quando citam o querer estar sempre

próximos e unidos aos seus filhos, aprender a interagir e se relacionar, manter o vínculo com a

culinária em suas casas, cozinhando em família as receitas do dia a dia, além daquelas que

tragam novas curiosidades e prazeres distintos; outro ponto marcante demostrado por uma

mãe foi que além de reconquistar a guarda haveria a necessidade de reconquistar primeiro a

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confiança, ou ainda a necessidade de vincular-se a uma religião e/ou instituição que

fornecesse apoio para superar o vício.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Eu acho que vai ser uma felicidade enorme é a coisa que eu mais quero no

mundo tirar ela daqui e ter perto de mim de novo, só que não pretendo

voltar no passado a fazer o que eu fazia, pretendo sempre pegar agora no

futuro, dar o que ela precisa e o melhor que ela precisa.” (Ana)

Este estudo permitiu ilustrar uma das atividades que são desenvolvidas dentro de uma

instituição de acolhimento na perspectiva de promover a revinculação familiar. Dedicamo-

nos ao desafio de tentar compreender como um curso de panificação, realizado num contexto

de abrigo, pode favorecer o processo de revinculação familiar. Assim procuramos levantar um

estudo significativo sobre a questão da educação, numa proposta de compreendê-la e torná-la

relevante para os desafios que abrangem uma proposta humanizadora, além de discutirmos

sobre a situação de acolhimento no país, um cenário que foi sendo moldado ao longo da

história e que atualmente podemos ver quantos desafios ainda restam pela frente, na tentativa

de oferecer uma garantia de direitos e de promover qualidade de tratamento oferecido pelas

instituições acolhedoras.

Outro aspecto preponderante desta pesquisa foi conhecer com mais afinco a realidade

dos familiares envolvidos a partir de outro horizonte, ou seja, da alteridade. Acreditamos que

ao tentarmos nos colocar no lugar dos outros enriquecemos nossa capacidade de interpretá-

los, ao invés de julgá-los. Por isso, optamos por realizar entrevistas a fim de conhecer a

história de vida dos participantes. É necessário ouvir o que os pais e estes jovens têm para

falar, conhecer os motivos que levaram essas famílias a perder a guarda de seus filhos e as

dificuldades que enfrentam para recuperá-la.

Uma das belezas advindas com nossos estudos foi perceber que os pais desejam ter

seus filhos de volta fazendo parte do contexto familiar, porém vale ressaltar que esse caminho

é percorrido por grandes desafios, no contexto do rearranjo familiar, por parte dos pais, na

busca por efetivarem mudanças atitudinais perante a vida, por parte dos seus filhos, que

muitas vezes pela imaturidade são os mais afetados emocionalmente e psicologicamente,

quando se trata de questões de acolhimento.

Outro destaque da investigação, decorrente do levantamento realizado sobre as

questões da situação de acolhimento, nos deparamos com iniciativas do terceiro setor na

tentativa de colaborar com o cunho social e prover parte dos serviços de acolhimento

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institucional. Diante do nosso estudo, podemos observar que existe um contrassenso entre a

existência de ações sociais “suprindo” as carências do estado ou município ao oferecer

serviços que, em alguns casos, apresenta notável preparo qualitativo, mas por outro lado há

também instituições que se vinculam ao primeiro setor ou a empresas para a realização do que

eles julgam como filantropia. No entanto, podemos observar que existe uma linha tênue entre

ação social e ações capitalistas que visam nas entrelinhas da chamada filantropia, obtenção de

lucro.

Deparamo-nos com inúmeros obstáculos que precisam ser repensados sobre a cultura

da institucionalização, ainda enraizada e tão presente no nosso contexto, porém é possível

observar o surgimento de novas medidas que orientam os serviços de acolhimento

institucional além das obrigatoriedades dos serviços especializados como CRAS e CREAS,

propondo um atendimento especializado de assistência social, os projetos de leis que

tornaram-se leis como o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência Física, o

Estatuto da Juventude entre outros. Claro que a aplicação desses documentos legais exige

estudos e pesquisas futuras que suscitarão novos questionamentos, não tivemos intenção,

nesta pesquisa, de desvelar esses aspectos, mas ressaltamos a necessidade de um olhar mais

atencioso e prioritário aos desarranjos que foram sendo construídos junto com a “política do

esquecimento”.

“Desabrigar” não é deixar de “abrigar” no sentido de acolhida, mas, providenciar a

reinserção familiar e a reintegração comunitária. Significa empreender todos os

esforços para garantir à criança e ao adolescente abrigados, oportunidade de retornar

a vida familiar e comunitária, promovendo a convivência naquele grupo familiar

capaz de acolhê-lo e de se responsabilizar integralmente por seu processo de

desenvolvimento. (OLIVEIRA, 2010, p. 112).

Para isso se faz necessário criação de redes institucionais pautadas num olhar

humanizador para esses jovens e criança. Para consolidação de tais redes institucionais se faz

pertinente à credibilidade dos seus propósitos numa questão valorativa que rege a justificativa

dos seus significados. A organização administrativa circunscreve a maturação institucional e

toda a sua representação simbólica para a sociedade. Quão ela for capaz de sonhar,

transparecer a confiabilidade, aprender com seus erros e aproveitar melhor dos seus recursos

humanos, mais significativo e factível serão seus propósitos.

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Ao longo desses três anos, podemos observar algumas situações contraditórias na

manutenção dos ideais institucionais e na efetividade de seus projetos. Percebemos a

dificuldade de se tornarem autossustentáveis, uma vez que, em quase toda sua totalidade, são

dependentes de seus órgãos mantenedores: municipais, ações voluntárias e de empresas que

realizam a filantropia empresarial. Outro aspecto preponderante envolve a gestão

administrativa de usufruir dos seus recursos, na questão de ter um melhor aproveitamento da

equipe de funcionários mais ativos e dedicados no comprometimento de suas atividades, que

envolve a organização dos horários, a postura e linguagem adotadas para dialogar com as

pessoas evitando amedrontá-las ou puni-las, acompanhá-las nas atividades e ou até mesmo

realizá-las juntas, fomentando assim a aproximação, o aconchego de uma afetividade mais

humana. Nesta questão levantamos a dificuldade da instituição de ter funcionários realmente

capacitados para os exercícios de suas profissões. Não basta ser um assistente social

diplomado ou que tenha feito cursos para atuar nestas questões sociais, mas sim pessoas que

realmente estejam engajadas com os significados do relacionamento humano.

Crianças e jovens no gozo do seu intenso desenvolvimento, tão característico e vital da

natureza humana, não ficariam segregados nos espaços, distantes do seu tempo. Estariam

ativos aproveitando cada minuto presente ou ausente de seus familiares. Os projetos

passariam a serem encarados como programas, fazendo parte da rotina da instituição em

atividades de leitura e debates, prática de esporte na conscientização crítica da qualidade de

vida e bem estar com propósitos realmente educativos e não tratados apenas como ocupação.

No contexto da instituição, onde foi desenvolvida a presente pesquisa, por estarmos num

ambiente camponês, poderiam fomentar novas atividades, como aprender a plantar aquilo que

comemos, produzir alimentos tradicionais de uma cultura brasileira, como doces de compota,

doces de corte, doces cristalizados, aproveitamento e reaproveitamento alimentar, conhecer os

animais e plantas ali presentes, aprender a cuidar e fazer seus subprodutos, numa questão de

subsistência e de valores simbólicos construídos na relação homem e natureza. Os dias

passariam a ser contemplados, e, ao chegar o anoitecer, haveria o desejo de que os momentos

vividos não acabassem; alimentando a vontade de um novo amanhecer.

A vida ativa construída de exemplos exprime a importância de produzir e reproduzir os

talentos de cada ser humano. Retomamos essa abordagem na tentativa de explanar que o

crédito ou descrédito do efetivo desenvolvimento no curso Mão na Massa é o reflexo da

importância dada pelos seus mantenedores e pelas pessoas que dele participam. Faz pertinente

que os participantes do curso mantenham a assiduidade, mas de nada adianta se não tiver um

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acompanhamento qualitativo para fomentar os aprendizados voltados à revinculação familiar.

Dentre eles podemos citar o comprometimento de ir ao curso, manter a presença de assistentes

colaborando para a manutenção da boa conduta, evitando assim desequilíbrio no uso da voz,

competitividades desnecessárias, discussão entre pares, desinteresses e afins. As premissas

iniciais do curso, onde fundam seus reais objetivos, poderiam ser mais bem trabalhadas,

procurando estruturar-se de uma forma que vincule cada vez mais pais e filhos na atividade,

prezando sempre pelo melhor atendimento ofertado. Trabalhamos com alimentos que

despertam uma grande fonte de prazer e aceitação pelo público, mas o curso não pode perder

suas vertentes de relacionamento social e diálogo premissas de uma educação humanizadora.

O curso Mão na Massa pode ser compreendido como um espaço para reintegração

comunitária, na medida em que se tornou um ambiente de aprendizado e convivência para os

familiares e seus filhos. Os depoimentos dos participantes demonstram que no curso

vivenciaram aprendizados que permitiram fomentar e resgatar valores humanos, adotar uma

nova postura diante da vida e preocupar-se consigo mesmo, com novas perspectivas que

foram construídas junto aos relacionamentos com seus filhos, com o conhecimento e com

outras famílias, vivenciando alegrias que provocaram galgar novos sonhos futuros.

Reconquistar a guarda de uma criança ou jovem acolhido é digno de louvor perante a

tantas situações que dificultam esse processo de revinculação, já que muitos se tornam filhos

do esquecimento e ficam por longos períodos acolhidos sem terem uma solução ideal para

seus destinos. Nas falas de alguns familiares, percebemos que a experiência de perder a

guarda dos seus filhos, em vez de ser um fator que os imobiliza, acaba sendo um disparador

para que percebam a importância de seu papel na educação de seus filhos, favorecendo assim

uma aproximação entre eles e o estabelecimento de vínculos afetivos. Logo, procuram

aproveitar ao máximo todas as oportunidades que a instituição oferece para que haja a

aproximação entre pais e filhos.

Dos aprendizados no curso, podemos observar perante as respostas que além do desejo

de aprenderem a arte culinária, aprenderam a conviver em família e com os outros. Todas as

famílias entrevistadas expressaram interesse pela culinária, poderia ter sido qualquer outra

atividade que fomentasse as oportunidades para que houvesse a revinculação, mas não

podemos deixar de citar as belezas particulares do trabalho desenvolvido com o alimento. O

que torna a atividade alimentar diferente e tão particular é o prazer. Logo ir ao Mão na Massa

e se deliciar com os cheiros, sabores, texturas, formas, conhecimentos, novidades e

curiosidade se torna algo que já é gratificante.

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Entre histórias e outras, podemos conhecer um pouco sobre a realidade do contexto de

acolhimento institucional, além de buscar compreender os encantos que os familiares

detectam em seus filhos. Um grande encanto ao trabalho foi a possibilidade de praticar uma

educação humanizadora que prioriza a confiança, a colaboração, a interdependência e a

responsabilidade, o trabalho supera, portanto, a trivial transmissão de conteúdo: trata-se de

uma nova formação de vida, o que implica a maneira de observar o mundo e de interagir com

ele.

Surge como uma esperança de ação humanística no meio comunitário, valorizando o

fazer humano, uma vez que fomenta a conscientização crítica do ser para a sua atuação

cidadã, tornando vital o relacionamento nas suas múltiplas formas de ver e agir no mundo.

Outrora é imprescindível que resgate-se o fazer humano numa questão de democracia, justiça

e dignidade, no intuito de amenizar ou abster-se da discriminação social, propondo harmonia

às futuras gerações. E que a revinculação familiar se efetive como uma vinculação mesmo,

dos filhos com seus familiares e da sua relação com o contexto social, ou melhor, com a vida.

Por fim, esperamos que este trabalho possibilite e enriqueça novos estudos e projetos

que retratem a importância das atividades culinárias nas diversas áreas do conhecimento,

especialmente, no tocante a promoção da revinculação familiar. Esperamos que as reflexões

oriundas desta pesquisa suscitem contribuições para construir novos caminhos em que

prevaleçam o diálogo e a dignidade humana, seja em contextos de abrigo ou em outros

espaços educativos, despertando o interesse de outros educadores e pesquisadores no sentido

de dar continuidade à prática de uma educação humanizadora.

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APÊNDICE A - Carta de apresentação da pesquisa

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APÊNDICE B - Transcrição das Entrevistas

Transcrições realizadas a partir de uma gravação de áudio, procurando relatar a maior

proximidade com o discurso dos entrevistados.

Entrevista – Família A

Nome: Camila (mãe)

1) Qual seu motivo de vir no Mão na Massa?

Camila: O que me motiva é a aprendizagem, não é? Para fazer coisas para eu vender

futuramente, já estou aprendendo fazer salgados e bolos e eu gosto de participar e aprender

cada dia mais.

A senhora já cozinha em casa?

Cozinho em casa e tudo que faço aqui as crianças pedem para fazer e fora os vizinhos também

que pedem bolo de fubá com goiabada e petit gateau; tem que fazer! Faço direto! (Ela dá uma

tímida risada).

Quando era criança, adolescente gostava de cozinha?

Sempre gostei de cozinhar mais minha mãe nunca me ensinou, então, o que eu aprendi antes

daqui eu aprendi sozinha, mas eu sempre gostei de ver receitas na televisão, essas coisas.

Aqui e agora eu estou tendo a oportunidade de, não é? Ver e fazer com meus filhos que é mais

gostoso ainda (fala com prazer e um sorriso no rosto). Chego lá na minha cidade eu falo: Vou

fazer curso. (As pessoas perguntam). Mas e as crianças? Ah eu posso levar as crianças elas

participam também; aí fico mais tranquila ainda trazendo elas junto também para fazer, eu

quero aprender mesmo e ter orgulho, depois lá em casa já tenho dois diplomas, com esse aqui

já vai ser o terceiro, depois aparece negócio de emprego e pode levar o diploma e falar eu

tenho e sei fazer. E pode ser uma renda com certeza.

2) O que você aprendeu no curso?

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Camila: É no primeiro ano eu passei meio nervoso eu não queria fica muito perto de ninguém,

assim eu tinha até um tipo de depressão eu não queria me relaciona, até reclamava para as

psicólogas que eu queria fica sozinha, isolada, queria fica sozinha, se vinha alguém perto da

minha mesa eu já me irritava. É verdade! Agora já não, eu chego feliz! Cumprimentando todo

mundo, não é? Já consigo dividi minha mesa e não vejo a hora de chegar o sábado para vir

aqui aprender, sabe ver vocês. Eu gosto muito! ... Eu escrevi até num relatório uma vez que eu

não queria dividir minha mesa com ninguém. Agora já dentro da van tenho amizade com todo

mundo não só das pessoas da Posse como de Jaguariúna também; o que eles não sabem eu já

gosto de ensinar, já tenho prática, gosto de fazer tudo isso!

3) O que a senhora ensinou no curso?

Camila: Os meus filhos e até aqui mesmo já cheguei a falar sobre higiene, não é? Que para

cozinha é fundamental higiene, até em casa eu não cozinhava de toca não cozinhava de

avental, agora todo dia que vou cozinhar eu uso a toca e o avental e lavo as mãos que nem

você falou: as mãos são do cotovelo para baixo, eu fico reparando se todo mundo tanto em

casa como aqui; reparando se eles lavam as mãos, eu cobro, como aqui eu falo para alguém

falar, não é? E ensino como amassar o pão certo, porque tem o modo certo, não é? Você

ensinou conforme se amassa de um jeito descansa mais, de outro jeito descansa menos, não é?

Isso daí!

4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?

Camila: Ah traz bastante... eu fico mais calma, eu era uma pessoa bastante nervosa mesmo, eu

ia fazer um bolo lá em casa não queria ninguém perto eu já brigava, se sujasse alguma coisa já

falava agora não! Agora eu chamo eles para fazerem juntos, se sujar depois eu limpo!

E porque era nervosa?

Ah não sei! Eu acho que nem a minha psicóloga falou, já vem do passado, família, eu sofri

bem, não é? E a minha família ter passado isso para mim eu estava passando para meus filhos,

não é? Eu não conseguia dar muito carinho, eu sentia carinho, mas não conseguia demonstrar,

então agora o que eu faço? Para passar carinho para eles, vamos fazer um negócio gostoso?

Vamos fazer um bolo gostoso? Daí fazemos nós três juntos, daí temos união, não é? Coisa

que não fazia, queria fazer sozinha! Agora consigo ter união com eles. E tento fazer isto com

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as pessoas de lá também. Ah fiz tal coisa, quero que você faça, então eu faço, eu tinha

preguiça! Não queria fazer! Queria aprender, mas não exercitava. Eu via na televisão marcava

no papel, mas não exercitava, agora não, agora eu colocando a mão na massa aqui eu quero

passar para os outros e quero fazer também.

5) Qual o momento mais agradável no curso? O que você faz neste momento?

Camila: O momento de fazer de prepara as coisas (ela dá uma tímida risada), você ver cada

um preparando de um jeito, tipo a bolachinha cada um quer fazer seu formato de um jeito, eu

já quero fazer o meu de coraçãozinho, aí todo mundo fica falando: Ai, está apaixonada!

Não!!! É que eu quero caprichar, fazer bem bonito, não é? (Ela faz o comentário

descontraída). Meus filhos também ficam à vontade com as pessoas aqui com as psicólogas,

eu gosto muito! Esse é o horário que mais gosto e depois comer, não é? (Ela sorri).

6) Qual o momento mais desagradável?

Camila: Para mim como eu não tenho mais meus filhos aqui é ver as crianças, as mães se

despedindo dos filhos aqui, então como eu já passei por isso me dói o coração, o tanto de anos

que meu filho ficou aqui sofreu querendo eu e não tinha essa oportunidade do Mão na Massa

antes que nem tem agora, você pode vir e fazer as coisas com seu filho e estar junto. E tem

mães agora que tem essa oportunidade e nem vem, e as mães que vem tem o momento de

felicidade de cozinhar de estar perto do seu filho, mas na hora de ir embora é triste (ela fica

em silêncio por poucos segundos e demostra estar sentindo a dor do passado). E eu não quero

passar por essa dor nunca mais na minha vida, tinha medo de nunca mais poder ver o rosto do

meu filho (se emociona e em meio ao choro, respira fundo e prossegue), você estar na sua

casa e querer ser chamada de mãe e seu filho está aqui, talvez seu filho doente e você não

poder estar aqui para ver a febre dele para poder cuidar dele, e agora ele ficou doente

domingo, ele tem doze anos e eu cuidei dele igual um neném, coisa que eu não fiz aqui então

eu estou querendo recompensar tudo agora, porque não tinha este apoio antes como tem

agora. E nunca mais eu quero passar por esta dor que é muito ruim. É bom as mães tomarem

cuidado para os filhos não caírem aqui porque se cair é difícil tirar, viu? Muito difícil!

Quando as crianças são pequenas eles gostam que elas fiquem aqui! Tem como controlar,

quando fica maior eles vão atrás de você para devolver! Quando meu filho era pequeno eu

fazia de tudo, eles sempre achavam algum obstáculo para eu não pegar, sempre tinha algum

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problema. Depois ele começou a dar trabalho aí parecia que eu não tinha mais problema

nenhum, daí resolveram me ajudar para tirar ele daqui. Só que hoje tem tudo, tem psicólogo,

antigamente não tinha nada para te ajudar. Não tinha volta!

7) Com a participação no curso você acha que houve alguma mudança na relação

mãe e filho?

Camila: Com certeza, nós somos mais unidos para tudo. Hoje a gente; até o almoço e jantar a

gente faz juntos, nós quatro, ninguém come se um não estiver, a gente não come separados. O

Vitor ele quer aprende! Ele fala assim para mim: Oh mãe me ensina qualquer coisa? Daí eu

fico no sofá só ensinando ele.

Qual seu trabalho? A senhora trabalha?

Camila: Eu sou costureira no momento, mas só que estou sem serviço, e eu falei que pretendo

fazer meus salgados. Eu faço alguns bolos de aniversário, bolo salgado, bolo de goiabada para

vende, festa da igreja, fez maior sucesso (em meio a uma risada ela demonstra a alegria com o

sucesso de suas produções). E a aproximação foi muito boa, eu fiquei muito mais calma pois

antigamente em meio a um barulho desse eu ficava de mal com a vida. (Era possível ouvir as

crianças brincando e a interação dos demais participantes do curso).

8) Por qual motivo a senhora perdeu a guarda de sua filha? Foi só ela?

Camila: Assim, eu bebia, mas nunca fui uma mãe que judiava dos meus filhos. Minha mãe

bebia e nós morávamos tudo numa casa e minha irmã achou uma arma dentro de casa eu não

sabia que tinha essa arma, era do meu irmão. Eu sai e fui na vizinha lá na frente e nisso

estavam todas as criança lá, ela (a irmã) achou a arma e começou a brincar de roleta russa, ela

com a menina, ai nisso a arma disparou na cabeça da menina e matou a menina na hora, nisso

na hora que eu estava vindo a polícia já estava lá, minha irmã na época tinha doze anos e a

menina que morreu também tinha doze, só que ainda acharam que era eu que tinha feito isso,

porque eu era briguenta! Depois juntaram os fatos e descobriram que era ela, se fosse uma

pessoa estranha não ia matar e jogar a arma no mesmo lugar, depois disso descobriram que a

arma era do meu irmão dai mataram meu irmão também e por isso tudo que eu passei em casa

era quase impossível eu pegar meu filho de volta. Tive que alugar casa e morar sozinha para

pegar ele de volta.

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9) Como é sua vida depois que você recuperou a guarda do seu filho?

Camila: Então é maravilhoso quando vou deitar vejo meu filho lá comigo, e tenho outra

menina que eu olho. Eu falo assim: Agora me tornei uma grande mãe mesmo porque eu tenho

capacidade de criar meus filhos e cuidar dos filhos dos outros ainda, e a melhor coisa é ser

chamada de mãe, e saber que você está cuidando bem e protegendo eles bem! Hoje eu virei

até crente, vou à igreja porque eu quero mostrar o caminho que não mostraram para mim eu

estou mostrando para meus filhos, diferente! Eu quero que eles sejam pessoas vitoriosas na

vida o que eu sou hoje! Uma pessoa vitoriosa na vida e estou muito feliz com meus filhos.

Entrevista – Família B

Nome: Selma (mãe) e Aílton (padrasto)

1) Qual seu motivo de vir no Mão na Massa?

Selma: Eu gosto de vir porque tem bastante pessoas juntas eu sempre fico bastante em casa,

do trabalho para casa, então final de semana eu gosto porque tem pessoas para eu conversar e

eu estou aprendendo também, eu já sou cozinheira, não é? E para mim eu aprendendo cada

vez mais é melhor. Tem três anos que eu sou servidora pública e trabalho na área da merenda.

E ajuda a gente também, que nem meu filho acabou aprendendo fazer pizza e ele está

querendo vender para ganhar o dinheirinho dele, quer fazer minipizza para vender. La em

casa na realidade todo mundo gosta de cozinhar e ele também gosta bastante de cozinhar.

Aílton: Quando eu tenho que fazer em casa eu invento qualquer comida. Eu gosto de vir para

aprende, porque cozinho em casa.

Você é do Nordeste?

Sim sou.

E qual sua profissão?

Pedreiro.

E gosta de cozinhar?

Ah eu gosto! (As poucas palavras com baixo tom de voz deixavam transparecer sua timidez).

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Selma: Em casa na realidade quem mais cozinha é ele, papéis invertidos (risos). Geralmente

comida de baiano é bem temperada, não é? Daí as vizinhas vão lá, para poder comer da

comida dele, o tempero deles é mais forte, não é?

2) O que vocês aprenderam no curso?

Selma: Ah! Aprendi a interagir mais com as pessoas, não é? Geralmente a gente dá mais

atenção para as pessoas, não ficamos só com a família da gente, você tem que ter outras

pessoas também. A gente acaba conhecendo mais a vida das pessoas também; e às vezes a

gente acha que o problema da gente é o maior, não! Da pessoa do lado é bem maior que o da

gente, então acaba aprendendo com as pessoas.

Aílton: Eu sempre fui afastado do mundo, sempre sozinho, aqui pelo menos estou me

envolvendo com o pessoal, tentando entrosar com o grupo, não é? Costumo geralmente ficar

sozinho, (fica pensativo por alguns segundos e recomeça) sempre fui sozinho, tudo que eu

faço é sozinho, nunca fui de fazer nada em grupo e o primeiro lugar é aqui que estou tentado

entrosar mais com o grupo.

3) O que vocês ensinaram no curso?

Selma: Geralmente eu comento com as colegas de serviço o que eu aprendi aqui, aí elas

acabam até fazendo as receitas que eu aprendi, participei poucas vezes mais o que eu aprendi

acabei levando para elas.

(O filho interrompe e diz com sorriso no rosto): Eu aprendi fazer pizza!

4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?

Selma: Que a gente acaba aprendendo mais e ensinando outras pessoas. Geralmente a gente

que gosta mais de culinária, não é?

5) Qual o momento mais agradável no curso? O que você faz neste momento?

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Selma: O legal é na hora de comer, não é? (Solta uma risada descontraída), acho que todo

mundo gosto desta parte, não é? Ai todo mundo estar juntos é um momento que a gente pode

estar conversando e trocando informação.

Aílton: Ah eu gosto de fazer, quando o assunto é comida é comigo mesmo.

6) Qual o momento mais desagradável?

Selma: A minha dificuldade é por causa do meu neném, porque eu não posso quase pôr em

prática aqui, eu mais olho e aprendo com os olhos, porque ela toma um pouco da minha

atenção, fazer mesmo é a segunda vez que estou ajudando mesmo a fazer manualmente,

porque ela não deixa toma muita atenção, eu amamento ainda e ela toma mais o meu tempo,

daí eu aprendo mais vendo do que fazendo.

Aílton: Para mim é acordar cedo para vir eu penso duas vezes, porque trabalho por conta

então eu que faço meus horários.

7) Com a participação no curso você acha que houve alguma mudança na relação

pais e filhos?

Selma: Sim a gente da mais atenção quando está todo mundo junto, igual eu estava falando

para Débora (colega do curso), meu filho não gosta de fazer nada sozinho, se você der alguma

coisa para ele fazer você tem que estar junto, ele gosta de estar conversando, ele não gosta de

fazer nada sozinho, ele gosta muito de conversar, ele sempre foi mais falante que outro filho

meu mais velho, ele sempre foi de fazer amizade mais rápido e de conversar bastante. Assim

eu consigo estar conversando mais com ele dar mais atenção a ele quando estou aqui.

Aílton: Com certeza, a amizade com ele era um pouquinho difícil, e quando a gente fala que

vem para o Mão na Massa ele já começa a ficar muito mais próximo da gente, sabe? Mais

bonzinho tipo agrada e acaba agradando a gente, e ele já começa a ficar mais animado, e aí ele

começa a respeitar mais a gente.

Selma: Ele (o filho) sempre fica de olho no imã (imã de geladeira com os dias e receitas do

Mão na Massa, agenda de geladeira) lá na geladeira, aí a gente já vai se programando, daí

meu marido fala que vai adiantar o serviço para não trabalha no sábado.

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8) Por qual motivo a senhora perdeu a guarda de seu filho?

Selma: Na realidade é assim, eu e o pai dele separamos é um assunto até meio chato de falar,

mas ele para não paga a pensão para os filhos que ele acha que o valor que ele me dava era

um valor muito alto, então ele falava que eu pegava o dinheiro e gastava comigo. Daí quando

a gente decidiu ir para Bahia, meu marido tinha um trabalho lá e ele tinha uma casa de

herança que a avó deixo, então tinha que ir arrumar os papéis da casa, não é? Quando a gente

decidiu ir para Bahia o meu ex-marido começou a comprar o meu filho para pode fica com

ele, deu bicicleta que é muito cara e eu não tinha condição de da um presente desse para ele,

deu vídeo game, deu celular, então ele comprou o filho dele, o outro filho meu já é mais assim

do meu lado, sempre ficou mais comigo do que com o pai mesmo, então ele decidiu ir com a

gente e o Ricardo ficou com pai. Ai nesse meio tempo o pai acabou espancando ele, por que

na realidade o Ricardo tem um problema desde que nasceu porque eu tive depressão na

gravidez dele e ele já nasceu uma criança deprimida, sempre foi uma criança que dava mais

trabalho para mim, ele sempre fez acompanhamento psicológico, com psiquiatra e o pai acho

que não sabia lida com ele ou não tinha paciência ou sei-lá o que passou na cabeça dele, mas

por varias vezes ele foi espancado pelo pai. (O padrasto interrompe e diz): Ele falava que o

remédio dele era porrada. (A mãe continua). É! Falava que problema dele era frescura e que o

problema dele se resolvia na porrada, que não era nada psicológico ou psiquiátrico, então

várias vezes ele foi marcado para escola, não é? Chamaram o conselho tutelar e nesse meio

tempo ele foi mora com minha mãe, que também não soube lidar com ele, não fazia o

acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Eles até pediram que era para eu voltar, mas na

época meu marido tinha sofrido acidente e lá na Bahia não se ganha tão bem como aqui em

São Paulo, então a realidade é mais negativa, recebia a quantia para gente sobreviver lá e na

época eu não estava com condições de voltar, na realidade um mês depois que ele veio para o

abrigo que eu consegui vir embora da Bahia para cá; deixei minha casa, deixei meu carro,

deixei tudo lá para poder vir. De lá mesmo já foram movimentando o processo meu para

poder estar pegando a guarda dele.

O pai além de espanca, a madrasta também espancava ele, (chorou) batia de soco, o Ricardo

uma vez contou que uma vez o pai deu cinco socos na barriga dele e daí ficou deitado no chão

e a madrasta tinha ciúme do pai dele e não deixava eles se aproximarem. Quando o pai saia

para trabalhar a madrasta batia nele de novo e o pai na realidade não acreditava que ele era

agredido pela madrasta. Quando chegava em casa o pai trancava ele no quarto e espancava ele

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de novo. Ele mesmo ia ao conselho tutelar e denunciava o pai e na escola quando ele ia

marcado passava por exame de corpo e delito, dai foi constatado as agressões.

Por quanto tempo seu filho ficou no abrigo?

Selma: Ele veio para cá no dia dezessete de dezembro de dois mil e quatorze, no dia quatorze

de abril de dois mil e quinze ele foi embora para casa, que foi a audiência dele e ele foi

embora.

9) Como é sua vida depois que você recuperou a guarda do seu filho?

Selma: Estou mais feliz, não é? Porque a mãe não quer o filho distante ainda mais num

abrigo!

Entrevista – Família C

Nome: Maria (mãe) e Márcio (pai)

1) Qual seu motivo de vir no Mão na Massa?

Maria: Por causa dos meninos que estão aqui e a gente também aprende muita coisa, aprende

como está fazendo, não é? As receitas, às vezes fazemos, mas não sabemos ela bem, não é?

Certinho! Então aqui a gente aprende melhor.

Márcio: E o bom que a gente vai fazendo junto também, não é? Uma coisa que já engloba,

não é? A criança, a gente, tudo junto, fazendo numa situação só.

Gostar de cozinhar? Cozinha em casa?

Eu gosto de cozinhar, cozinho bastante, acho que em casa quem mais faz comida sou eu.

Qual seu trabalho? A senhora trabalha?

Maria: Sou cuidadora e também faço o serviço da casa da senhora.

Márcio: Trabalho com meio ambiente, não é? Plantar grama, tipo... como que eu posso falar

para você ... (fica em silêncio por um tempo) tem rodovia? Eu trabalho na beira de rodovia.

Então eu trabalho na beira de rodovia, na rodovia Dom Pedro ali onde tem o retorno.

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2) O que vocês aprenderam no curso?

Márcio: A gente aprende a fazer e já aprende o relacionamento e como falei todo mundo

participa então isso acho que também ajuda a gente. (A mãe em silêncio, concordava

movimentando a cabeça).

3) O que vocês ensinaram no curso?

Márcio: Lá em casa nós ensinamos o que você ensinou para nós aqui (a mãe solta uma risada

tímida no fundo), até esses dias o Murilo (filho) não tinha vindo ainda, aí estava ele e a

Marina (filha), não sei se a Marina não ensinou ele direito! Tentou fazer o biscoito (a mãe

repete – tentou fazer o biscoito, em meio a risadas), não ficou legal, mas mesmo assim tentou.

Daí ela falou que a massa ficou mole e eu falei (para Mariana), mas você não falou para ele

que a massa tinha que colocar na geladeira? Mas deitaram (morder) o dente, comeram tudo

(fala e ri ao mesmo tempo). Acho que até assim o que a gente vem aprendendo, acho que até a

educação, é verdade cara! O jeito de falar, porque é uma situação que envolve a família, então

a gente vai dar o melhor da gente naquele momento ali, então eu acho que é uma situação que

ajuda bastante. Até nós fomos aquele dia lá, você falou o nome do polvilho, mas eu nem

achei, aí fui lá e comprei um, mas tinha um que era bem fininho e outro que era grosso, eu não

lembro nem o nome dele, mas eu peguei e comprei, e nós fizemos o pão de queijo, não ficou

como o seu, mas... (o pai e a mãe dão risadas descontraídas).

4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?

Márcio: Eu acho que, uma por causa do aprendizado, eu gosto mesmo de mexer assim com

cozinha, eu não era muito fã de fazer esse negócio assim de massa, não que eu não era fã, é

que eu não sabia fazer, única coisa que faço de vez em quando, bem raramente é um bolo,

mas as vezes cresce as vezes não cresce (a mãe solta uma risadinha tímida). Eu gosto mesmo

rapaz de cozinhar! Vou falar para você, passar perto do fogão, já gosto! É legal para aprender

mesmo! Como pão, pão mesmo eu nunca fiz. Estes dias o Murilo meu filho fez um pão lá e

ficou até mais ou menos, ficou um pão grandão lá. Ficou até com ciúme do pão dele,

escondeu lá o pão e disse: Que esse aqui é para o café amanhã cedo (solta uma risada), mas é

legal cara! Para aprender mesmo, eu quero aprender mesmo!

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5) Qual o momento mais agradável no curso? O que você faz neste momento?

Márcio: A hora que você está fazendo, está dando seu melhor ali e você ver seu serviço

ficando bonito, não é cara? Daí você vê seu serviço ficar bonito você fica contente. É

verdade! E come também é bom (a mãe ao fundo solta uma tímida risada e concorda), mesma

coisa tem uma visita na sua casa e você vai fazer uma comida lá, começa a fazer a comida e

olha aquele monte de gente, aí você fala: Nossa! Vou ter que ralar, já pensou, você fazer um

arroz com papa lá, que você vai fala depois? (A mãe suspira e solta uma risada prazerosa).

(Neste momento somos interrompidos por um participante do curso que nos traz a informação

de que os pães da produção que estávamos fazendo já estavam dourados, quase no ponto!)

6) Qual o momento mais desagradável?

Maria: A hora de despedir... (a mãe fica em silêncio, pensativa e o pai começa a falar).

Márcio: Mas o difícil vou fala para você, o dia a dia já é difícil, não é cara? Tenho uma foto lá

que eu coloquei no guarda roupa, as vezes a gente dá uma passada perto assim vê a criança ali

não é cara, não vê a hora de vir, não é? Aí você vem; mas aí você chega pensando já que vai

retorna, não é? A hora que está aqui, está mil maravilhas é gostoso ver a criança brincando

catando a massinha ali, mas é difícil, aí na hora de ir embora é difícil. E o Leandro (filho) ele

gosta de ficar ali no portão, ele chora, daí a condução as vezes demora um pouquinho para

chega é ruim, não é?

Maria: Aí vamos embora e o Leandro (filho) chora! (Ela fala com tristeza e se emociona).

7) Com a participação no curso você acha que houve alguma mudança na relação

pai/ mãe e filho?

Maria: Melhorou bastante sim. Tanto os que estão lá com a gente às vezes vamos fazer

alguma coisa juntos, estar participando em casa, ajuda, ficam interessados e antes não

interessavam em prestar atenção, quando não é um é outro que está junto. Então eu achei que

melhorou nesta parte.

Márcio: A mesma coisa cara, que ela falou aí! Então melhora mesmo cara! (Fica em silêncio

por alguns segundos). Tem mais união, porque isto daqui a gente leva para dentro da casa da

gente. Desde quando nós começamos aqui, mudou bastante. Muda sim cara, muda porque

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antes das crianças virem para cá a vida nossa era torcida, não é? Conturbada, hoje já tem mais

diálogo, mais conversa, aonde a gente vê que talvez não tenha conversa a gente dá uma

esticadinha, deixa um pouco para lá porque tem coisa que não tem como você resolver ali na

hora. Então a gente aprende a ter mais paciência. Eu mesmo falo para você eu não era assim,

mas hoje eu estou aprendendo bastante, a ser mais humilde. Eu gostava que desse ouvido, não

é? Cara! E muitas vezes a pessoa não dava ouvido, aí a gente já falava alguma coisa, está

entendendo? Então hoje em dia eu prefiro fica mais quieto por que se você for querer falar

naquele momento que a panela está fervendo, não dá certo, então deixa para lá, recua, não é?

Porque a mente do ser humano é terrível, ela fica dando umas marteladas.

8) Por qual motivo vocês perderam a guarda de seus filhos?

Maria: Bebida, os dois.

Márcio: Nós estávamos bem descontrolados, não tem meio descontrolado, bebeu, está

descontrolado. Eu tinha saído de uma internação e eu tive uma recaída... tive uma recaída!

Voltei tomando mesmo e foi este o caso das crianças ter vindo para aqui.

Hoje você toma algum medicamento?

Márcio: A gente não toma medicamento nenhum, mas temos acompanhamento e nós vamos

numa reunião de partilha no (Associação dos Alcoólatras Anônimos) A.A.A. e força de

vontade... força de vontade (repete em baixo som), porque se não tive força de vontade... nós

vamos na reunião lá de simulado, você vai lá e assiste a reunião se quiser partilha você

partilha se não quiser não partilha. E você ouve também as partilhas das outras pessoas e as

vezes é parecida com a sua ou pior! E está funcionando para os caras e vai funcionar para

gente também. E legal a reunião de partilha, o dia a dia da gente é estressante, não é? A gente

passa por vários… E ali você passou por uma dificuldade ou está passando por uma

dificuldade e se vai conversar com uma pessoa assim normal que não tenha vício nenhum a

pessoa não vai entende então você no meio daquelas pessoas igual, você joga fora, você fala

para um monte de gente e você sabe que as pessoas que tão te ouvindo tão entendendo porque

elas têm o mesmo problema que você. (Ao fundo é possível ouvir a movimentação do curso,

as vozes, as crianças brincando, o barulho dos utensílios).

Essas reuniões colaboram muito, é legal a gente vai de quinze em quinze dias as terças feiras

aí você vai lá se quiser partilha você partilha ou se não quiser não partilha às vezes você ouve

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o problema do outro e acha o seu tão pequeno, é complicado. Quando você está no meio onde

todos são iguais a você, você saber que eles tão te entendendo porque todos passam os

mesmos problemas e isso te anima quando põe seu problema para fora e ter alguém para te

ouvir.

9) Como você acha que será sua vida quando você recuperar a guarda de seus

filhos?

Márcio: Olha rapaz no dia de hoje já estamos por onde fazer para da o melhor e a partir do

momento que Deus abençoa que essas crianças estiverem em casa educar mesmo de verdade

manter sem álcool rapaz, sempre dá para melhora.

Maria: continua para melhora cada vez mais.

Entrevista Família D

Nome: Ana (mãe)

1) Qual seu motivo de vir no Mão na Massa?

Ana: Hum, uma porque gostei e outra mais para incentivar a Laís (filha) sempre dou meus

pulinhos não é? Sempre faço alguma coisinha diferente, mas agora no Mão na Massa estou

pegando mais coisa para fazer, fiz mais coisa quando comecei a entrar aqui, já fiz macarrão, já

tentei fazer lasanha, então com a ajuda daqui a gente vai pegando um pouquinho dali um

pouquinho daqui e vai aprendendo... eu gosto de cozinhar, sempre uma novidade boa, não é?

(Risos).

2) O que você aprendeu no curso?

Ana: Há muito coisa, por exemplo, a experiência de mexe no Mão na Massa, a experiência de

criança aqui dentro a experiência que vocês passam para gente, muita coisa... é uma

experiência boa de convivência.

3) O que a senhora ensinou no curso?

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Ana: Posso pular? ... Muita coisa, como se diz, como posso falar, como posso falar para você?

Aí eu ensino com ela, muita coisa, como se diz? Assim como eu aprendi aqui eu passei para

várias colegas também lá fora, entendeu? A minha vizinha que é dona da casa onde que eu

moro, então o que eu venho buscar aqui eu passo para colegas para minha nora mesmo...

vários.

Qual seu trabalho? A senhora trabalha?

Oh, eu trabalho assim por diária sabe, apanha laranja, apanha limão essas coisas, mexe com

flor. O meu serviço e esse daí. É que eu comecei a trabalhar muito nova, comecei eu estava

com nove anos eu arrancava colonião, o senhor conhece colonião? É negócio de pasto, é uma

praga que da no pasto, eu tinha que pega o enxadão para poder arrancar, é um negócio

grandão que dá no meio do pasto que o cavalo no come, então eu comecei desde os nove

aprendendo as coisas.

4) A participação no curso traz que contribuições para sua vida?

Ana: ... O que eu posso dizer ...; ah muita coisa, não é? Sei-lá o que eu posso responder. Ah!

Vamos supor é uma ajuda, a gente pode aprende, a gente pode explica para maioria lá fora,

pode ensina mais coisa lá fora que a gente aprendeu e que lá fora eles podem ter outro futuro e

passa para pessoas também e meus filhos, minha nora, os vizinhos pode se, que depois pode

ajuda eles. A Laís, por exemplo, (a filha interrompe a mãe do nada e começa a falar).

Laís: Quando eu vou para casa da minha mãe eu faço coisa boa, daí eu pego e faço bolo, pego

Toddy e faço milk-shake, não é mãe?

Ana: Quando tenho coisas assim ela vai mexendo, mas quando eu falo assim que hoje não é

dia de receber, então eu só vou compra o que é necessário para fazer aquele negócio, aí nós

duas põe a mão na massa, do mesmo jeito que a gente aprende aqui, lá é mesma coisa, só que

nós não temos os preparos que tem aqui, não é? Muita coisa, mas quando viemos aqui nós

vamos tentando fazer lá, aí de dentro de casa já sai para os vizinhos e já sai para os filhos, dos

filhos já sai para os amigos e vai passando.

5) Qual o momento mais agradável no curso? O que você faz neste momento?

Ana: Na hora da Mão na Massa, que é mais divertido e na hora de comer também (risos) sinto

alegria de trabalhar ali ficar ali mexendo, fazendo de um jeito você explicando, é assim!

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6) Qual o momento mais desagradável?

Ana: Na hora de sair, na hora de ir embora, porque quando você está aqui dentro você se sente

feliz, sente alegre, mas quando sai do portão para fora é uma tristeza, como se diz quando eu

estou perto dela me sinto mais sabe, mais a vontade, com animo, mas quando eu não estou

perto dela não tenho animo para nada, quando estou aqui estou feliz porque estou no meio das

criançadas e estou com ela, entendeu? E quando eu não estou é isso.

7) Com a participação no curso você acha que houve alguma mudança na relação

mãe e filha?

Ana: Melhorou, melhorou muito, porque eu aprendi muita coisa através dela e através de

vocês aqui, não é? Então o que aprendo aqui vou passando para ela e ela quando eu não estou

perto dela o que ela aprende aqui ela vai passando para mim em casa, porque ela sempre

chega em casa e fala: Mãe hoje eu aprendi isso, mãe vamos fazer? Se eu tenho os preparos a

gente pega e faz do mesmo jeito que fizeram aqui, então nunca fica de um lado para o outro...

muita coisa que não tinha agora estou tendo.

8) Por qual motivo a senhora perdeu a guarda de sua filha? Foi só ela?

Ana: Não, foram abrigados três (filhos), Laís, Júnior e a Bianca, só que a Bianca não parava

aqui ela sempre fugia ai na minha audiência a Bianca foi desabrigada, mas eu perdi mais a

guarda dela porque eu estava bebendo demais e não estava cuidando dela, então foi uma

missão para mim, eu perder ela para poder parar com que eu estava fazendo que ai no caso eu

fui internada... e hoje eu recuperei e quero tentar pegar ela de volta para mim, faço tudo que

eu estou fazendo mesmo para pode tirar ela daqui.

Há quanto tempo sua filha está no abrigo?

Ana: Um ano e dois meses.

Está sendo difícil conseguir a guarda?

Ana: Ah! Eu estou tentando, não é? Como se diz nada neste mundo é impossível. Olha tudo

que eles estão pedindo para mim eu estou fazendo, tudo. Se falou um negócio da Laís é

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comigo mesmo, não perco uma, pode fala que a Laís precisa passa por psicólogo lá na China,

fala comigo eu estou indo, dela não perco uma, questão dela eu estou sempre na frente.

9) Como você acha que será sua vida quando você recuperar a guarda da sua filha?

Ana: Eu acho que vai ser uma felicidade enorme é a coisa que eu mais quero no mundo tirar

ela daqui e ter perto de mim de novo, só que não pretendo voltar no passado a fazer o que eu

fazia, pretendo sempre pegar agora no futuro, dar o que ela precisa e o melhor que ela precisa.

E a relação da senhora como mãe com os outros filhos é a mesma coisa?

Ana: Mesma coisa, mesmo jeito, do jeito que eu trato ela eu trato os outros, se eu posso dar

para ela eu dou para os outros se eu não posso, eu não dou para nenhum. Agora eles se dão

bem, porque antigamente quando eu bebia não.

(A filha interrompe e diz): Antes eles nem confiavam na mãe!