alienaÇÃo fiduciÁria em garantia aplicada Às...
TRANSCRIPT
FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA APLICADA ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO
DECRETO-LEI N° 911/69 NA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988
Ana Cristina Soares de Alencar
Fortaleza – CE Agosto – 2009
ANA CRISTINA SOARES DE ALENCAR
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA APLICADA ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO
DECRETO-LEI N° 911/69 NA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação do Professor Doutor Paulo Antônio Menezes de Albuquerque.
Fortaleza – Ceará 2009
______________________________________________________________________ A368a Alencar, Ana Cristina Soares de. Alienação fiduciária em garantia aplicada às relações de consumo : análise da recepção do decreto-lei nº 911/69 na ordem constitucional de 1988 / Ana Cristina Soares de Alencar. - 2009. 143 f. Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2009. “Orientação: Prof. Dr. Paulo Antônio Menezes de Albuquerque.” 1.Alienação fiduciária. 2. Código de defesa do consumidor. 3. Veículos automotores. I. Título. CDU 347.468 ______________________________________________________________________
ANA CRISTINA SOARES DE ALENCAR
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA APLICADA ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO
DECRETO-LEI N° 911/69 NA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Paulo Antônio Albuquerque de Menezes UNIFOR
_____________________________________________
Prof. Dr. Luciano Lima Rodrigues
UNIFOR
_____________________________________________
Prof. Dr. Juvêncio Vasconcelos
UFC
Dissertação aprovada em:
AGRADECIMENTOS
A Deus, por permitir a realização de mais um sonho.
À minha verdadeira família, pela dedicação, amor, incentivo e por acreditar em mim.
À Defensoria Pública, instituição a que pertenço, pela rica experiência de vida que
me oferece diariamente e por ter proporcionado a ampliação de meus conhecimentos
através do curso de mestrado.
Ao meu orientador, professor Paulo Antônio Menezes de Albuquerque, pela
orientação científica dada com maestria, dedicação, paciência e partilha de sua imensa
sabedoria.
Ao corpo docente do curso de mestrado da UNIFOR, pelos ensinamentos
proporcionados.
À professora Núbia Garcia pelo esmero e presteza na correção metodológica.
Aos que integram a secretaria do curso de mestrado, pela valiosa colaboração.
À banca examinadora, por aceitar o convite de pronto.
RESUMO
No vasto campo do direito privado, inúmeros contratos são diariamente celebrados no campo das relações de consumo, particularmente envolvendo a alienação fiduciária em garantia, que ocupa posição de relevo, vez que, criada para impulsionar o consumo, propicia a aquisição de bens mediante pagamento a prestação. No Brasil é usual a aquisição de veículos automotores por essa modalidade, que traz uma série de problemas de compatibilização com os princípios da ordem constitucional democrática, particularmente no que se refere à possibilidade do devedor ter o bem financiado rapidamente apreendido em razão da concessão de medida liminar em ação de busca e apreensão, independente e autônoma. Quanto mais há o fato de que o quadro jurídico inicial traçado pelo Decreto-lei n° 911/69, que regulamenta a alienação fiduciária em garantia, deixar claro que somente pode ser manejada por credor que integrante o Sistema Financeiro Nacional, permitida ao devedor a purgação da mora em caráter excepcional, com reserva de possibilidade de contestação judicial limitada à demonstração do cumprimento das obrigações constantes do contrato. Cabe, portanto, refletir acerca da constitucionalidade do Decreto-lei 911/69 não somente frente à Constituição de 1969, mas também em relação a sua recepção pela Carta Republicana de 1988, mesmo com as alterações legislativas posteriores. Neste particular a Lei n° 10.931/2004 traça novos desafios ao operador do direito, na medida em que permite a consolidação da propriedade e posse plena do bem fiduciariamente alienado nas mãos do credor. A análise da lei e do decreto mencionados envolve aspectos estruturais do Estado Democrático de Direito, envolvendo a relação deste com o que se convencionou chamar de “constitucionalização do direito privado” no que se refere ao direito à propriedade, ao princípio da igualdade e ao exame das garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
Palavras-chave: Alienação fiduciária em garantia. Decreto-lei n° 911/69. Lei n° 10.931/2004. Código de Defesa do Consumidor. Ampla defesa.
ABSTRACT
In the vast field of private law, countless consumer contracts involving chattel mortgage are celebrated everyday. This modality is gaining a more and more important position, as it was created to stimulate consumption and it fosters the purchase of goods through the payment in installments. In Brazil, it is common to purchase cars through this system, which causes a number of compatibility problems with regards to democratic and constitutional principles, in particular those related to the risks debtors run, as they can have their purchased goods quickly seized by an independent and autonomous restraining order for search and confiscation. It is also relevant to mention that the Decree-law n°911/69, which regulates chattel mortgage, in the beginning makes it clear that it can only be used by a debtor who is part of the National Financial System, thus being the debtor granted exceptional tardiness redemption, making the reservation of legal defense rights subject to proof of compliance with contractual obligations. It is therefore suitable to reflect on the constitutionality of the Decree-law 911/69 not just with regards to the 1969 Constitution, but also in relation to its inclusion in the 1988 Republican Letter, even with its posterior legislative amendments. In this respect, Law n°10,931/2004 establishes new challenges for legal operators, as it allows the consolidation of property and ownership and also grants debtors possession in good faith of goods purchased through the chattel mortgage system. The analysis of the aforementioned law and decree involves structural aspects of the Democratic Legal State with regards to its relation with what was called “constitutionalization of private law”. This involves property right issues, equality principles and the evaluation of constitutional guarantees of legal processes, their contradictions and the right to legal defense.
Keywords: Chattel mortgage. Decree-law n° 911/69. Law n° 10,931/200. Consumer Defense Code. Equality. Ample Defense.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................10
1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO .....................................................................14
1.1 Formas de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas .............................18
1.1.1 Teoria da aplicabilidade indireta ............................................................................19
1.1.2 Teoria da aplicabilidade direta ...............................................................................22
1.1.3 (In) compatibilidade das normas anteriores com a nova ordem constitucional ....25
2 A PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988............32
2.1 O consumidor na Constituição Federal de 1988..............................................................32
2.2 O Código de Defesa do Consumidor (CDC) ...................................................................35
2.2.1 Conceitos aplicáveis ao Código do Consumidor (CDC) ........................................37
2.2.2 Princípios e direitos básicos no Código de Defesa do Consumidor (CDC) ...........40
3 LIMITES CONSTITUICIONAIS INCIDENTES NA CONTRATAÇÃO...........................44
3.1 Propriedade......................................................................................................................44
3.1.1 Conceito de propriedade.........................................................................................45
3.1.2 Função social da propriedade na Constituição de 1988 .........................................46
3.2 Contrato ...........................................................................................................................48
3.2.1 Conceito de contrato...............................................................................................48
3.2.2 Princípios contratuais antes e depois da Constituição de 1988 ..............................50
3.2.3 Práticas e cláusulas abusivas na Lei do Consumidor .............................................56
3.2.4Limites aos contratos de adesão ..............................................................................61
4 APLICABILIDADE DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO ..................65
4.1 Negócio fiduciário: conceito e validade ..........................................................................65
4.2 Conceito de alienação fiduciária em garantia..................................................................68
9
4.3 Propriedade fiduciária......................................................................................................71
4.4 Legislação aplicável à alienação fiduciária .....................................................................76
5 ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE VEÍCULOS AUTOMOTORES COMO RELAÇÃO DE CONSUMO.................................................................................................83
5.1 O Decreto-lei n° 911/69 e a Constituição da República de 1969 ....................................85
5.2 O Decreto-lei n° 911/69 e a Constituição da República de 1988 ....................................86
5.2.1 O Decreto-lei n° 911/69 no Estado Democrático de Direito ..................................87
5.2.2 O Decreto-lei n° 911/69 e o princípio da igualdade ...............................................88
5.2.3 O Decreto-lei n° 911/69 sob a ótica das garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. ..................94
5.2.3.1 Análise do Decreto-lei n° 911/69 após o advento da Lei n° 10.931/2004....96
5.2.4 Consolidação da propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor ............111
5.2.5 Constitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciário ...................................116
CONCLUSÃO........................................................................................................................125
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................129
INTRODUÇÃO
A conquista de uma ordem jurídica democrática passa não só pelo estabelecimento de
princípios e diretrizes gerais, mas pela crítica específica de institutos e práticas jurídicas
específicas. No caso do direito privado, inúmeros contratos são celebrados diariamente,
muitos destes classificados como contratos de consumo, já que travados entre fornecedores
e consumidores, ocupando os contratos de alienação fiduciária em garantia posição de
destaque, eis que permitem ao consumidor a aquisição de bens móveis e imóveis mediante
o pagamento a prestação.
No Brasil, a modalidade é comum em aquisição de automóveis pelo consumidor.
Nem sempre, contudo, consegue o fiduciante cumprir integralmente o contrato firmado e
atrasa o pagamento de uma ou mais prestações do financiamento. Não entregando
espontaneamente o bem ao credor fiduciário, pode ter o devedor, e via de regra tem, o
veículo rapidamente apreendido por determinação judicial. Isto porque o Decreto-lei n°
911/69 engenhou meio processual de busca e apreensão independente e autônoma de
qualquer outro procedimento ulterior, agilíssima ação que apenas pode ser manejada por
instituições financeiras – e agora pelo Fisco e Previdência, inicialmente permitindo ao
fiduciante a purgação da mora em caráter excepcional, e quando já pago mais de 40%
(quarenta por cento) do financiamento. Além disto, a defesa ocorreria unicamente em ação
própria, já que a contestação – e não resposta – versaria exclusivamente ou sobre o
pagamento do débito vencido ou sobre o cumprimento das obrigações constantes do
contrato.
A permanência de tal remanescente normativo de uma ordem jurídica não
democrática convida o operador do direito a refletir acerca da constitucionalidade do
mencionado Decreto-lei até mesmo frente a Constituição de 1969 e/ou sua recepção pela
Carta Republicana de 1988. Tal reflexão deve alcançar ainda a análise da possibilidade
jurídica de alteração do mencionado decreto-lei pela Lei n° 10.931/2004, que tencionou
alargar a defesa do devedor fiduciante nessa ação de busca e apreensão independente e
11
autônoma. Mesmo neste caso, porém, continua a lei a impor o pagamento da integralidade
da dívida pendente – e não das parcelas vencidas – segundo os valores apresentados pelo
credor. Tanto que a purgação da mora importa na devolução do bem livre de ônus ao
devedor, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado
de registro de propriedade ou em nome do credor ou em nome de um terceiro por ele
indicado, livre desse ônus.
Optando, entretanto, o devedor fiduciante pela apresentação de defesa sem purgar a
mora, consolidar-se-á a propriedade e posse plena do bem fiduciariamente alienado nas
mãos do credor no sexto dia após a execução da medida que determinou sua apreensão.
Nesses termos, decidimos pelo estudo da alienação fiduciária em garantia de veículo
automotor no âmbito das relações de consumo, voltado especificamente ao devedor
inadimplente ou moroso, tema de indiscutível relevância devido ao considerável volume de
ações de busca e apreensão de veículos intentadas pelas instituições financeiras em face do
devedor fiduciante moroso, que, não raro, desconhece as implicações dessa mora. Trata-se,
portanto, de investigar a recepção pela Constituição Republicana de 1988 do Decreto-lei n°
911/69, bem como a possibilidade de sua alteração pela Lei n° 10.931/2004, cuja
constitucionalidade será aqui apreciada sob aspectos que vão desde a possibilidade de
existência deste decreto-lei em um Estado Democrático de Direito até sua obediência ao
princípio da igualdade, direito à propriedade e observância das garantias constitucionais do
devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Com base em tais premissas é que se examina também a compatibilidade da
conversão da ação de busca e apreensão independente e autônoma em ação de depósito,
com a consequente possibilidade de prisão civil do devedor fiduciante inadimplente ou
moroso, mesmo após a proibição, em 2008, desse tipo de prisão pelo Supremo Tribunal
Federal, invocando o disposto no Artigo 5º- LXVII, da Carta Federal de 1988 e nos Pactos
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e de San José da Costa Rica, tratados
internacionais que foram firmados pela República Federativa do Brasil e que proíbem a
prisão civil do devedor quando o débito não versa sobre a falta de pagamento de pensão
alimentícia. Para tanto, convém questionar também em que medida os protagonistas das
relações de consumo - especialmente o fornecedor - vinculam-se, nas suas relações, aos
direitos fundamentais ou se estes, em razão do princípio da autonomia da vontade, cânon
12
do direito privado, aplicam-se basicamente às relações indivíduo-Estado, ou apenas de
forma mediata ou indireta.
Daí que a pertinência da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações
de consumo que envolvam contratos de alienação fiduciária em garantia para aplicar as
disposições normativas ali constantes, incluindo os princípios norteadores das relações de
consumo, tendo em vista que a Constituição de 1988 fez do consumidor titular de direitos
fundamentais, erguendo sua defesa à categoria de princípio da ordem econômica. Para
tanto, lançou-se mão de metodologia de natureza qualitativa com pesquisa bibliográfica de
fins descritivos, método interpretativo e analítico, através de técnica de leitura específica e
sistemática e consulta aos endereços da rede mundial de computadores.
O texto é composto de cinco capítulos. No primeiro analisa-se a possibilidade e
forma de aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, bem como a
questão da (in)compatibilidade de normas anteriores com a nova ordem constitucional. No
segundo capítulo aborda-se a proteção dispensada ao consumidor pela Constituição Federal
de 1988 e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações de consumo,
observando os conceitos básicos e princípios por ele adotados, além da proteção conferida
ao consumidor na contratação. No terceiro capítulo trata-se dos limites constitucionais na
contratação, enfocando a propriedade e o contrato juntamente com a função social que
devem desempenhar, além dos princípios contratuais aplicáveis, que precisam permear a
relação de consumo, e as práticas e cláusulas abusivas constantes do CDC. O quarto
capítulo estuda a aplicabilidade da alienação fiduciária em garantia e a propriedade
fiduciária nas relações de consumo, conceituando e delimitando o negócio fiduciário para
poder chegar à alienação fiduciária propriamente dita, propriedade fiduciária e legislação
aplicável a tais institutos. Finalmente, o quinto capítulo versa sobre a alienação fiduciária
em garantia de veículos automotores enquanto relação de consumo e contém a análise de
constitucionalidade do Decreto-lei n° 911/69 relativamente à Constituição de 1969 e sua
recepção pela Constituição Federal de 1998, sob os aspectos do Estado Democrático de
Direito, do direito à propriedade, do princípio da igualdade e das garantias do devido
processo legal, ampla defesa e contraditório, averiguando ainda a possibilidade de alteração
do Decreto-lei n° 911/69 pela Lei n° 10.931/2004, além da constitucionalidade desta última
norma.
13
Este trabalho, como não poderia deixar de ser, parte de uma escolha valorativa
fundamental, em torno do qual foi elaborado: espera-se contribuir, através do o exame das
principais idéias, conceitos e teorias desenvolvidas e fundamentadas no decorrer da
presente dissertação em torno do contrato de alienação fiduciária em garantia, para que se
reafirme a importância da conformação das normas que compõem o ordenamento jurídico à
ordem constitucional democrática, com a efetivação dos direitos fundamentais por ela
consagrados.
1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
Antes de se mergulhar no estudo da alienação fiduciária em garantia de bens móveis
no âmbito das relações de consumo, tema específico deste trabalho, voltado ao devedor
fiduciante inadimplente ou moroso (Decreto-lei n° 911/69), convém falar sobre a
constitucionalização do direito.
A ideia de constitucionalização do direito diz respeito não exatamente ao estado de
dependência (subordinação) que deve ter o ordenamento jurídico para com a Constituição
Federal, mas, sobretudo, aos reflexos produzidos pelas normas constitucionais, por seus
efeitos, nos outros ramos do direito, especialmente do direito privado. Este é o caso da
análise deste estudo, do Direito Civil e do Direito do Consumidor, nas relações entre os
particulares, traduzindo-se na vinculação destes, nas suas relações, aos direitos
fundamentais.1
O fenômeno da constitucionalização do direito também não se resume, na ótica de
Daniel Sarmento, ao acolhimento, pela Constituição, “[...] das matérias que no passado
eram versadas pelo Código Civil [...]”, mas vai além, eis que exige nova interpretação,
tanto do Código Civil como das leis especiais editadas neste campo, à luz da Constituição
Federal, envolvendo matérias como “[...] Propriedade, posse, contrato, empresa e família,
[...], exemplos de institutos centrais do Direito Privado, que terão de ser redefinidos para
harmonizarem-se com os princípios solidarísticos inscritos na Constituição [...].” 2
Superada se encontra a tese, essencialmente liberal, de que os direitos fundamentais,
surgidos inicialmente para proteger os indivíduos do poder, ou melhor, do arbítrio do
Estado (direitos de defesa), aplicam-se unicamente às relações indivíduo-Estado. Isto 1 Eficácia externa, efeitos em relação a terceiros, eficácia horizontal, aplicação dos direitos fundamentais às
relações privadas, aplicação dos direitos fundamentais às relações entre particulares são termos que se referem à constitucionalização do direito. Preferimos, contudo, o termo aplicação ou vinculação dos direitos fundamentais às relações entre particulares porque se afigura mais adequado, haja vista existirem relações de poder (verticais) nas relações entre particulares. Ademais, o Poder Público também pode atuar na esfera privada como particular quando, por exemplo, realiza determinados contratos administrativos.
2 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p.99.
15
porque a realidade demonstrou que não é apenas entre Estado e indivíduo que pode haver
relação de subordinação. Também entre os particulares isso pode ocorrer. Não se pode
fechar os olhos ao fato de que as relações entre particulares podem encerrar enormes
desigualdades, principalmente no campo das relações de consumo, dada a existência de um
poder social, vale dizer, da existência de “[...] relações entre particulares que não são
detentores de um efetivo poder social e outros que detêm parcelas expressivas de poder
social [...].”3
Nesses tipos de relação, que predominam no mercado de consumo pós-Revolução
Industrial, que é marcado, senão dominado, pelos contratos de adesão, instrumentos que
têm cláusulas contratuais preestabelecidas pela parte mais forte da relação: o fornecedor,
os ideais de igualdade entre as partes não passam assim de mera utopia, não havendo
relação de coordenação entre os particulares, mas de verdadeira subordinação, em que uma
das partes envolvidas determina as regras do jogo e a outra se limita a aceitá-las ou não. É
o jogo do “tudo ou nada”: ou o consumidor aceita tudo que lhe é imposto pelo fornecedor,
ou nada, nada de contrato, nenhum contrato haverá entre aquelas partes.
Atualmente, o entendimento doutrinário é majoritário no sentido de que os
particulares, nas suas relações, também se submetem aos direitos fundamentais. A
problemática da questão reside, portanto, no fato de como se dá a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, em razão do princípio da autonomia da
vontade, grande cânon do direito privado.4
3 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 16, n. 61, p.91-125, jan./mar. 2007c, p.108. 4 Faz-se necessário tecer breve comentário acerca da doutrina da norte-americana da “State Action”, que,
segundo Virgílio Silva, busca um certo controle judicial das relações entre particulares quando estas ofendem direitos fundamentais, em especial se envolvido está o direito de igualdade, o que importa em verdadeira estratégia de aplicação dos direitos fundamentais às relações entre particulares, muito embora não de forma direta. SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p.98-102. É que é pacífico na doutrina norte-americana que os direitos fundamentais previstos na Carta Política dos Estados Unidos obrigam apenas o Estado, não incidindo nas relações entre particulares, à exceção apenas, como anota Sarmento, da 13ª Emenda, que proibiu a escravidão. A justificativa da doutrina americana para rechaçar a aplicação dos direitos fundamentais às relações inter particulares, além de ter cunho essencialmente liberal, está baseada no pacto federativo dos Estados Unidos, eis que compete aos Estados legislar sobre direito privado, como leciona Sarmento: “Além do argumento liberal, outra justificativa invocada para a doutrina da state action liga-se ao pacto federativo. Nos Estados Unidos, cumpre não esquecer, compete aos Estados, e não à União, legislar sobre Direito Privado, a não ser quando a matéria normatizada envolva o comércio interestadual ou internacional. Assim, afirma-se que a state action preserva o espaço de autonomia dos Estados, impedindo que as cortes federais, a pretexto de aplicarem a Constituição, intervenham na disciplina das relações privadas.” Para driblar os argumentos apontados pela doutrina norte-americana, a Suprema Corte acabou intervindo no conteúdo negocial entre particulares, fazendo incidir os direitos fundamentais no caso
16
O princípio da autonomia da vontade, num passado próximo, era tido por quase
absoluto, legado do liberalismo econômico, que, para garantir a ampla liberdade individual,
apregoava a dicotomia entre o direito público e o direito privado, separação que traz dois
universos essencialmente distintos, em que o público e o privado não se misturam, de
forma que o espaço do público pode ir apenas até onde principia o espaço do privado e, de
forma igual, o direito privado apenas pode chegar até onde começa o direito público. Isto
porque, nas palavras de Vieira de Andrade:
[...] A sociedade burguesa vivia da liberdade econômica, na crença da «mão invisível do mercado», que automaticamente conduziria ao melhor dos mundos possíveis. Para isso, tinha de evitar a interferência do Estado (do Executivo) na vida econômica e social, reduzir à abstenção essa mão invisível, que devia apenas velar pela segurança pública, garantindo a autonomia da esfera privada e a liberdade e a propriedade dos indivíduos (os seus direitos fundamentais).5
Assim, a subordinação dos particulares, nas suas relações, aos direitos fundamentais
consagrados na Magna Carta de 1988 não deixa também de significar a superação da
dicotomia do direito público e privado, pelo menos, como dantes entendida. Nesse sentido
é o escólio de Facchini Neto:
O fenômeno da constitucionalização do direito privado representa, de certa forma, a superação da perspectiva que via o universo jurídico dividido em dois mundos radicalmente diversos: o direito público de um lado, e o direito privado de outro. [...] a esfera do público chega até onde começa a esfera do privado e vice-versa. 6
A justificativa para essa separação absoluta entre o direito público e o direito privado
reside, respectivamente, na desigualdade e na igualdade dos sujeitos envolvidos na relação.
Ou seja, a relação entre indivíduo e Estado se caracteriza como uma relação de
subordinação, dada a patente desigualdade entre as partes, sendo o Estado superior ao
indivíduo. Já a relação indivíduo-indivíduo, estendida para alcançar também a relação entre
particulares, classifica-se como relação de coordenação, em razão da existência de
Shelley v. Kramer, onde os proprietários de imóveis de um determinado loteamento acordaram em não vender seus imóveis a pessoas que não tivessem cor branca, acordo que fora reduzido a escrito. No momento em que um dos proprietários resolveu alienar seu imóvel a um negro, os demais proprietários buscaram o Judiciário para fazer prevalecer o acordo dos condôminos, obtendo, na primeira instância, êxito na quizila. A Suprema Corte, contudo, fazendo valer os direitos fundamentais do comprador negro naquele caso, penetrou no conteúdo do contrato firmado entre os proprietários dos imóveis daquele loteamento, através do ato do juiz estadual, que chancelou a discriminação ali perpetrada contra o comprador negro, ratificando a alienação imobiliária ocorrida. SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004, p.228.
5 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.271-297, p.273.
6 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: Ibid., 2003, p.11-60.
17
igualdade entre os protagonistas da relação, mesmo que essa igualdade seja meramente
formal.7
Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, ocorrida durante o século
XX, passa-se a exigir do Estado que abandone o estado letárgico em que até então se
encontrava e comece a implementar ações que visem a diminuir a desigualdade entre os
seres, buscando assim uma maior igualdade material entre os membros da sociedade. Para
tanto, é necessário que o Estado se faça presente nas relações entre particulares, regulando-
as, o que representa uma relativização do princípio da autonomia da vontade. “[...] É a fase
do dirigismo contratual, que consolida a publicização do direito privado”, como salienta
Luís Roberto Barroso.8
Mas não é só a igualdade, como núcleo essencial da democracia que é, reclama a
promoção de justiça social, incumbindo essa tarefa não apenas ao Estado, mas também
àqueles que, na linguagem de Sarlet, “[...] detêm parcelas expressivas de poder social.
[...]”. Afinal de contas, todos estão submetidos ao ordenamento jurídico, cujo vértice é
ocupado pela Constituição da República Federativa do Brasil, que abriga farto rol de
direitos fundamentais.9
7 Ficou para trás, contudo, o tempo em que o Direito Civil e o Direito Constitucional não se comunicavam ou
viviam em “mundos apartados”, como muito bem descreve Luís Roberto Barroso, senão vejamos: “1. Fases da relação entre o direito constitucional e o direito civil. As relações entre o direito constitucional e o direito civil atravessaram três fases bem distintas: a) 1a fase: Mundos apartados. Revolução Francesa é um marco tanto para o direito constitucional quanto para o direito civil. Deu a cada um o seu objeto: a Constituição escrita, ao direito constitucional, e o Código Napoleônico ao direito civil. Mas ambos integravam mundos apartados, que não se comunicavam: (i) a Constituição era a Carta política, que servia de referência para as relações entre o Estado e o cidadão; e (ii) o Código Civil era o documento jurídico que regia as relações entre particulares, ou como se costumava dizer, era a Constituição do direito privado. [...].” (Destaques no original). BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional e a constitucionalização do direito. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (Org.). Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006b, p.325.
8 BARROSO, Luís Roberto, op. cit., 2006b, p.326. Sobre a passagem do Estado Liberal ao Social, Paulo Valério Moraes ensina que “Os jurisdicionados, não mais satisfeitos, com a exclusiva garantia de ordem e segurança, esta última principalmente contra os inimigos externos, começam a exigir dos entes públicos um leque de proteção que abrangesse suas necessidades de emprego, de saúde, de consumo etc.”, principiando, “assim o chamado Welfare State, caracterizado por uma atitude do ente público, visando à realização de políticas públicas orientadas no sentido de efetivar o desenvolvimento humanizado da sociedade. Assume o Estado uma conformação diversa da posição de mero expectador, passando a organizar estruturas capazes de atender aos anseios sociais de obtenção de uma vida digna.” Isto porque “[...] a liberdade em excesso gera a potência em excesso, e a potência exagerada causa a iliberdade dos mais fracos.” MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade, nas demais práticas comerciais. Porto Alegre: Síntese, 1999, p.192.
9 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., 2007c, p.108.
18
Demais, não se pode olvidar constituir um dos fundamentos da República Federativa
do Brasil o princípio da dignidade humana, que deve ser respeitado não apenas pelo
Estado, mas igualmente pela comunidade e pelos particulares em suas relações, tendo a
ordem econômica por fim assegurar a todos existência digna, nos moldes do artigo 170 da
CF/88.10
Importa saber como devem ser aplicados os direitos fundamentais às relações entre
particulares ou, dito de outra forma, como se dá a vinculação dos particulares nas suas
relações com os direitos fundamentais constantes na Lei Maior: de maneira direta ou
imediata ou de maneira indireta ou mediata. Isto porque tem-se, de um lado, a defesa dos
direitos fundamentais capitulados na Carta Magna de 1988, que podem sofrer ataques tanto
do Estado como de particulares, e, de outro, o amparo à autonomia privada de cada ser,
traduzida na liberdade de cada indivíduo de se relacionar e de estabelecer negócios, bem
como o conteúdo desses negócios, com seus pares ou outros particulares, autonomia
igualmente garantida por um Estado democrático, como o brasileiro, o que sugere a
aplicação do princípio da proporcionalidade ou mandamento de proibição do excesso, cuja
função é buscar o equilíbrio dos princípios em choque, preservando os direitos
fundamentais.11
1.1 Formas de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas
Antes de se chegar ao cerne da questão, importa esclarecer que o debate doutrinário,
acerca da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais em suas relações, surgiu
nos anos 50 na Alemanha.
10 A dignidade da pessoa humana foi definida por Sarlet como: “[...] a qualidade intrínseca e distintiva
reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhes garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (Itálico no original). SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007b, p. 62.
11 Embora não haja na nossa Magna Carta previsão expressa do princípio da proporcionalidade, decorre o mesmo, segundo Guerra Filho, do princípio da isonomia, que traduz a idéia de justiça distributiva. Ademais, o parágrafo segundo do artigo 5º da Carta Maior, declara que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados [...].”BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2003, p.65.
19
Dada sua importância e polêmica, a questão ultrapassou a fronteira germânica e
atingiu países como França, Itália, Portugal, Espanha, Brasil, dentre outros.
Tem-se então a teoria da aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais às
relações particulares e a teoria da aplicabilidade indireta ou mediata dos direitos
fundamentais às relações entre particulares.12
1.1.1 Teoria da aplicabilidade indireta
A teoria da aplicabilidade indireta ou mediata dos direitos fundamentais às relações
entre particulares foi desenvolvida na Alemanha por Günter Dürig e predica a necessidade
de ação do legislador infraconstitucional na edição de normas próprias do direito privado.
Isto porque os direitos fundamentais não constituem direitos subjetivos quando a relação se
desenvolve entre particulares, mas apenas ordem de valores. “[...] Quando muito [...]”,
lembra Vieira de Andrade, “[...] os preceitos constitucionais serviriam como princípios de
interpretação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados susceptíveis de
concretização [...] ou, em casos extremos, colmatando as lacunas [...], mas sempre dentro
do ‘espírito’ do direito privado”. (Destaques no original)13
Nesse sentido, ao contrário do que ocorre nas relações indivíduo-Estado, nas quais os
direitos fundamentais são, indiscutível e diretamente, aplicados, é lícito aos particulares nas
suas relações, pondo de lado os direitos fundamentais, priorizarem sua autonomia e
decidirem o conteúdo de seus negócios/relações da forma como melhor lhes aprouver.
Trata-se de uma concepção incontestavelmente liberal, umbilicalmente ligada às razões
históricas do surgimento dos direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos e do papel a
ser por eles cumprido: o de proteger os indivíduos dos arbítrios do Estado.
Para os adeptos dessa teoria, a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações
interparticulares culminaria no esmagamento do princípio da autonomia da vontade dos
indivíduos e, por conseguinte, do próprio direito privado, acabando não apenas com a
12 Existe ainda uma terceira teoria, que predica a aplicação de soluções diferenciadas em cada caso concreto, e
que representa, segundo Canotilho, “[...] uma superação da dicotomia eficácia mediata/eficácia imediata a favor de soluções diferenciadas [...]” – itálico no original. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p.95.
13 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., 2003, p.276. Diga-se nesse tópico, por oportuno que a história sobre as teorias da aplicabilidade direta e indireta dos direitos fundamentais às relações entre particulares consta das obras de Virgílio Silva e de Daniel Sarmento. SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005. SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004.
20
liberdade de cada indivíduo, mas igualmente com a segurança jurídica, dado o poder de que
o Judiciário seria investido para interferir no conteúdo das relações entre particulares,
poder este emanado dos direitos fundamentais. Para eles, os direitos fundamentais
consagrados na Constituição da República devem permear as relações entre particulares
através das próprias disposições do direito privado, por meio da ação do legislador. Na
visão de Virgílio Silva, as cláusulas gerais, que reclamam um preenchimento valorativo,
seriam responsáveis pela ligação entre os direitos fundamentais, enquanto sistema de
valores, e o direito privado. Acompanhe-se o raciocínio do mencionado autor:
O principal elo de ligação entre os direitos fundamentais como sistema de valores e o direito privado, segundo o modelo de efeitos indiretos, são as chamadas cláusulas gerais. Essas são cláusulas que requerem um preenchimento valorativo na atribuição de sentido, pois são, para usar uma expressão difundida na doutrina jurídica brasileira, conceitos abertos, cujo conteúdo será definido por uma valoração do aplicador do direito. Essa valoração não pode ser, contudo, ao contrário do que muitos ainda pensam, uma valoração baseada em valores morais extra ou supralegais. (Itálicos no original).14
Exemplo de cláusula geral pode ser encontrado no artigo 422 do Código Civil de
2002, que determina aos contratantes “[...] guardar, assim na conclusão do contrato, como
em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.”, conceitos estes que serão
preenchidos pelo juiz no caso concreto.15
A teoria ou modelo dos efeitos indiretos ou mediatos, embora seja a mais aceita na
Alemanha, não está imune a críticas. É que as chamadas cláusulas gerais se mostram
insuficientes para fazer incidir os direitos fundamentais nas relações entre particulares,
como observa Virgílio Silva, senão veja-se:
Outra forte crítica ao modelo de eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares baseia-se na possibilidade de proteção ineficaz dos direitos fundamentais nessas relações se seus efeitos puderem a elas chegar apenas por meio das chamadas cláusulas gerais. Isso porque é difícil imaginar que tais cláusulas sejam sempre suficientes para servir de ‘porta de entrada’ para os direitos fundamentais nas relações interprivadas. O mais provável é que, para um grande número de situações em que seria desejável que os efeitos dos direitos fundamentais se fizessem presentes, não haverá uma dessas cláusulas para dar vazão a esses efeitos.16
Além disso, esse sistema acaba por priorizar o direito privado, fazendo-o superior ao
direito público, o que é desprovido de sentido no mundo contemporâneo, valorizador que é
do Estado social.
14 SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005, p.78. 15 BRASIL. Código Civil Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 16 SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005, p.85.
21
Não há dúvida de que os direitos fundamentais nasceram com esta missão, de defesa
do indivíduo nas suas relações com o Estado, relações estas marcadas pela verticalidade,
pela superioridade daquele. Contudo, não se pode olvidar, como alerta Vieira de Andrade,
o fato de que as teorias liberal-burguesas veem os indivíduos como sujeitos isoladamente
contrapostos ao Estado, como se na sociedade apenas houvesse choques de interesses entre
indivíduo e Estado e não também entre os próprios particulares. Nas suas palavras:
Por outro lado, torna-se patente que os indivíduos não estão isoladamente contrapostos ao Estado como pressupunham as teorias liberais-burguesas. A área da sociedade deixa de ser (ou de poder ser vista como) o palco de actuações individuais, à medida que se verifica a profunda diversificação e imbricação entre os interesses das pessoas e se multiplica a actividade dos partidos e dos grupos de interesse - sindicatos, associações patronais, igrejas, grupos económicos, associações cívicas, profissionais, desportivas, etc. - que dispõem, cada vez mais, de elevado poder social e político. Além de o Estado-Administração aparecer na vida social metamorfoseado em diversas figuras jurídicas e, cada vez mais, na veste de sujeito privado, as entidades privadas passam a exercer tarefas de interesse colectivo ou determinam em termos fundamentais os comportamentos de indivíduos em diversas áreas sociais - esbate-se a distinção entre entidades públicas e privadas e, em consequência, a diferença entre o direito público e o direito privado como critério de relevância dos direitos fundamentais.17
Ademais, a sociedade evoluiu e, com ela, também evoluíram os direitos
fundamentais. Com a chegada do Estado social, os direitos fundamentais ganharam uma
dimensão objetiva, deixando de ser qualificados como direitos subjetivos exigidos
exclusivamente pelo indivíduo em face do Estado, expandindo-se também para o âmbito
das relações privadas, protegendo as pessoas dos poderes sociais não estatais presentes na
sociedade, como observou Daniel Sarmento, cujas palavras merecem ser transcritas:
No mesmo diapasão, afirma-se que a dimensão objetiva expande os direitos fundamentais para o âmbito das relações privadas, permitindo que estes transcendam o domínio das relações entre cidadão e Estado, às quais estavam confinados pela teoria liberal clássica. Reconhece-se então que tais direitos limitam a autonomia dos atores privados e protegem a pessoa humana da opressão exercida pelos poderes sociais não estatais, difusamente presentes na sociedade contemporânea. [...].18
Aqui, a crítica que se desfere à teoria dos efeitos indiretos é mordaz, pois ataca os
princípios que fundamentam a autonomia da vontade dos indivíduos: igualdade e liberdade,
princípios estes umbilicalmente ligados, já que um não sobrevive sem o outro. Não se pode
falar em liberdade de indivíduos se estes não são iguais, nem falar de igualdade se
liberdade não existe. A autonomia da vontade sem igualdade material não passa de quimera
e, sem igualdade material, também não existe liberdade. A igualdade e a liberdade
apregoadas pelos adeptos do modelo dos efeitos indiretos não passam da igualdade e da
17 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., 2003, p.274. 18 SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004, p.135-136.
22
liberdade na sua concepção formal, de igualdade perante a lei, como se a sociedade não
abrigasse em seu seio tantas injustiças que não foram corrigidas pela lei.
1.1.2 Teoria da aplicabilidade direta
A teoria da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações particulares,
por sua vez, dispensa a ação intermediária do legislador na aplicação daqueles direitos
interparticulares como sói acontecer nas relações entre Estado e indivíduos. Surgida na
Alemanha no início dos anos 50, teve como defensor pioneiro Nipperdey, que constatou
que a violação aos direitos fundamentais não parte exclusivamente do Estado. Os poderes
sociais e os terceiros em geral também constituem ameaças aos direitos fundamentais, que
precisam ser respeitados pelos particulares nas suas relações.19
Na Espanha e em Portugal, a maioria dos doutrinadores são adeptos desta teoria.
Aliás, o artigo 18º/1 da Constituição da República Portuguesa, de abril de 1976, dispõe que
“Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são
directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.”20 A Constituição
brasileira, ao contrário da portuguesa, não determina a aplicabilidade direta dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, o que não constitui nenhum óbice à aceitação
da doutrina da aplicabilidade direta, que é aqui bem aceita e conta, dentre outros, com
adeptos de renome, como Daniel Sarmento, Ingo Sarlet, Luiz Edson Fachin.21
É hoje indiscutível a força normativa da Constituição que, no caso brasileiro, também
cumpre a missão de unificar todo o sistema de normas, não sendo demais lembrar que os
direitos fundamentais possuem status jurídico diferenciado, posto que alçados à categoria
19 Sobre a parte histórica das teorias da aplicabilidade direta e indireta dos direitos fundamentais às relações entre
particulares consultar as obras de Virgílio Silva e de Daniel Sarmento. SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005. SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004.
20 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008.
21 Para Fachin, “[...] também não se pode negar a eficácia direta e imediata da norma constitucional nas relações pertinentes ao Direito Civil. Sustentar o inverso é fazer da Constituição letra morta.” FACHIN, Luiz Edson. Ensaio sobre a incidência dos direitos fundamentais na construção do direito privado brasileiro contemporâneo a partir do direito civil-constitucional no Brasil. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (Coord.). Direitos fundamentais e novos direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.67-76, p.71.
23
de cláusulas pétreas, conforme artigo 60, §4º, IV, da Magna Carta, a inviabilizar sua
extinção e/ou enfraquecimento pela ação inclusive do poder Constituinte derivado.22
Diga-se, outrossim, que os direitos e garantias fundamentais estão positivados no
início da Constituição, logo após o preâmbulo e os princípios fundamentais, possuindo
aplicabilidade imediata, como determina o §1º do artigo 5º desse Diploma Legal. Mas não
é só: reduzir as desigualdades sociais e regionais constitui objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil, missão que não pode ser desempenhada se se olvidar a
aplicação dos direitos fundamentais às relações entre particulares.23
Muitos dos dispositivos da própria Constituição Federal da República brasileira,
ensina Virgílio Silva, “[...] já dão a entender que eles não têm efeitos apenas na relação
indivíduo-Estado, mas também nas relações dos indivíduos entre si.” Alude o autor
especificamente à liberdade de expressão, constante no artigo 5º, IV, da CF/88, que
também garante, logo no inciso seguinte, o direito de resposta, tendo este “[...] sua
aplicação quase exclusivamente no âmbito da relação entre particulares.[...]”.24
Tal constatação, contudo, não conduz à supressão, nas relações entre particulares, do
princípio da autonomia contratual, tampouco afasta a dificuldade de como se devem aplicar
os direitos fundamentais nessas relações, em razão do inquestionável fato de que ambas as
partes envolvidas nessa relação são titulares dos direitos fundamentais, ao contrário do que
ocorre na relação indivíduo-Estado, em que apenas aquele é titular de direitos
fundamentais.
Além disso, a teoria da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais às relações
entre particulares, conforme esclarece Virgílio Silva, não prega que todo direito
fundamental seja aplicável às relações particulares, eis que impõe uma análise do caso
concreto e depende das características de cada norma de direito fundamental até porque,
acresça-se, direitos fundamentais há que, por sua própria natureza, não se coadunam e, por
conseguinte, não se aplicam às relações entre particulares. São suas palavras:
22 Reza o artigo 60, § 4º, IV, da CF/88: “A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...] § 4º: - Não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV – os direitos e garantias individuais.” BRASIL. Constituição (1988), op. cit., 2008.
23 Dispõe o § 1º do artigo 5º da Carta Política que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata.” BRASIL. Constituição (1988), op. cit., 2008.
24 SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005, p.22.
24
É preciso que se esclareça, contudo, que o modelo de aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações entre particulares não implica que todo direito fundamental necessariamente seja aplicável a tais relações. A verificação dessa aplicabilidade deve ser individualizada e dependerá das características de cada norma de direito fundamental. Nesse sentido, o que o modelo propõe é mais restrito do que se costuma imaginar. Ele apenas sustenta que se o direito fundamental for aplicável às relações entre particulares, então essa aplicação será direta. Mas o modelo não exclui a possibilidade de que alguns direitos sejam aplicáveis somente nas relações cidadãos-Estado.25
Referido posicionamento é compartilhado por Daniel Sarmento, para quem existe
a “[...] a possibilidade de aplicação direta da Constituição nas relações privadas, sempre
que possível [...].”, muito embora seu pensamento seja completado da seguinte forma:
[...] Como norma jurídica que é, dotada de imperatividade, a Constituição não necessita da mediação do legislador civil para incidir sobre tais relações, podendo, por si só, alcançá-las com seus comandos. O fato de o legislador privado quedar-se inerte não frustra a possibilidade de incidência das normas constitucionais no âmbito privado, desde que tais normas, pela sua natureza, comportem aplicação imediata [...].26
Diga-se ainda que quando o caso concreto envolve princípios, como o da dignidade
da pessoa humana, vetor de interpretação não apenas das normas constitucionais, mas
igualmente das normas infraconstitucionais, a observância deste princípio deve se dar tanto
por parte do Estado como da comunidade e dos particulares em suas relações de forma
direta.27
Atualmente, não se afigura mais possível negar a aplicação direta dos direitos
fundamentais às relações entre particulares quando o legislador infraconstitucional se
quedar silente ou até mesmo quando a legislação existente regula mal a matéria por não ter
se curvado aos direitos fundamentais consagrados na Carta Política de 1988, que, sem
sombra de dúvidas, obrigam o legislador ordinário. Nestes termos, a insubordinação do
legislador ordinário aos princípios e direitos fundamentais que habitam a Carta
Republicana de 1988 culmina na inconstitucionalidade dessa mesma norma ou responde
pela sua não recepção, caso se trate de norma anterior à promulgação da Carta Maior que,
25 SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005, p.91. 26 SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004, p.101. 27 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., 2007b, p.114. Os Tribunais pátrios, conferindo força à idéia de que a
Constituição Federal não pode ficar à mercê da inércia do legislador infraconstitucional, vêm se pronunciando no sentido aplicar diretamente os direitos fundamentais às relações privadas em alguns casos. Vejam-se o Recurso Extraordinário Nº 202829 e a Apelação Cível Nº 70020817516: BRASIL. Recurso Extraordinário Nº 202829/RJ – Rio de Janeiro. Segunda Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Ellen Gracie. Julgado em 11 out. 2005. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008. RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70020817516. Nona Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Odone Sanguiné. Julgado em 26 set. 2007. Disponível em: <www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008. – CONFERIR COM A NÚBIA.
25
sem sombra de dúvidas, implantou uma nova ordem de valores, mais comprometida com o
social e, portanto, mais voltada à dignidade da pessoa humana e à solidariedade, veiculando
seu expresso propósito de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, de redução
das desigualdades sociais e de erradicação da pobreza e da marginalização.
Neste momento, convém tecer considerações acerca da (in)constitucionalidade ou da
(não) recepção das normas infraconstitucionais, que antecedem análise específica da
integração do Decreto-lei n° 911/69 na ordem instituída pela Carta Política de 1988.
1.1.3 (In) compatibilidade das normas anteriores com a nova ordem constitucional
A questão da incompatibilidade de determinada norma com a Constituição Federal,
desde que aquela seja editada após a vigência desta, não suscita maiores discussões
doutrinárias porque pode ser a mesma objeto, inclusive, de controle prévio ou preventivo
por parte de qualquer poder. Isso sem se falar que as leis ou atos normativos editados
posteriormente à Constituição da República podem ser objeto de Ação Direta de
Inconstitucionalidade ou de Ação Declaratória de Constitucionalidade, ações de
competência originária do Supremo Tribunal Federal, nos moldes do artigo 102, I, a, da
Carta Constitucional de 1988.28
Já a questão da recepção ou não da norma por uma nova Constituição é objeto de
mais profundas discussões doutrinárias porque parece improvável que “[...] sobrevinda
uma nova Constituição, seja possível aferir, de imediato, esse tipo de incompatibilidade.”,
como ressalta Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz. Para ele, aliás:
Admitir-se que uma Constituição nova, pelo só início de sua vigência, revoga automaticamente todas as disposições normativas anteriores, cujo conteúdo seja com ela incompatível implica, em verdade, o reconhecimento de que haverá um vácuo normativo, pois a tarefa integradora do legislador infraconstitucional ainda não terá ocorrido em sua plenitude.29
O que, entretanto, ocorre com uma norma que não foi recepcionada pela nova
constituição? É revogada ou deixa de existir no mundo jurídico? Pode-se lançar mão de
28 Reza o artigo 102, inciso I, letra A, da CF/88, que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a
guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.
29 DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos. Controle de constitucionalidade e teoria da recepção. São Paulo: Malheiros, 1995, p.13.
26
Ação Direta de Inconstitucionalidade ou de Ação Declaratória de Constitucionalidade para
se saber se determinada norma editada antes do advento da nova Carta Constitucional foi
ou não por esta recepcionada? É o que se tentará responder nas linhas que se seguem.
Todavia, é necessário fazer-se breve digressão acerca do sistema jurídico brasileiro,
mais precisamente de como se dá a validade da ordem normativa infraconstitucional. Para
tanto, recorrer-se-á à teoria pura do direito, formulada por Kelsen, para quem o fundamento
de validade de uma norma dá-se por outra norma, sendo a fundamentadora a norma
superior e a fundamentada a norma inferior, de forma que a estrutura do ordenamento
jurídico “[...] é uma construção escalonada de normas supra e infraordenadas umas às
outras, em que uma norma do escalão superior determina a criação da norma do escalão
inferior [...].” Para ele, portanto, uma norma não “[...] é verdadeira nem falsa, mas válida
ou não válida.”30 Assim, o ordenamento jurídico posto é formado por normas jurídicas
sistemáticas e hierarquicamente ordenadas, cujo vértex é ocupado pela Constituição, sendo
esta o fundamento último de validade das demais normas positivas. Para que esse
ordenamento jurídico seja coerente, um todo harmônico, exige-se que não haja conflitos
entre as normas que o compõem. Nestes termos, afirma Kelsen que:
Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma de escalão inferior tem seu fundamento de validade na norma de escalão superior. Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior.31
30Recorremos à Kelsen pela sua presença no imaginário dos juristas e função demonstrativa que desempenha na práxis
jurídica. Não abordaremos, contudo, a questão da norma fundamental que, segundo Kelsen, é pressuposta, e responde pelo fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, por extrapolar, em muito, os limites do presente trabalho. Sobre a norma fundamental consultar KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Traduzido por João Baptista Machado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 207, 230 e 240. Ibid., 1987, p.220-221. Para esse autor, “como, dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida de uma determinada maneira, isto é, da maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infraordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas [...].” Nestes termos, a Constituição de um Estado, que se funda na norma hipotética fundamental, “[...] representa o escalão do Direito positivo mais elevado [...].” Ibid., 1987, p.240.
31 Ibid., 1987, p.223. Segundo comenta Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, “a estrutura escalonada do sistema jurídico confere à Constituição o status de fonte primária de validade de todas as demais normas positivadas. Qualquer ruptura dessa relação hierárquica implica a invalidade da norma inferior.” DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p.26. É a Constituição, portanto, a Lei Suprema, a quem todas as demais normas devem conformação. A teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico por Kelsen elaborada, diga-se, é aceita por juristas como Bobbio, para quem “essa teoria serve para dar uma explicação da unidade de um ordenamento jurídico complexo [...].” Para Bobbio, “a norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico [...].” E “[...] sem uma norma fundamental, as normas [...] constituiriam um amontoado, não um ordenamento [...].” BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento
27
Mas, o que ocorre com as normas infraconstitucionais quando há mudança no plano
constitucional? Para Wilson Batalha, subsistem as normas subordinadas que podem
encontrar seu fundamento de validade nos novos textos constitucionais. As demais “[...]
deixam de viger, por se tornarem carentes de fundamento.”32
É a norma que valia perante a antiga Constituição, mas agora contrária à nova Lei
Suprema por esta revogada? Deixa a norma de existir no mundo jurídico? Segundo Wilson
Batalha, não é possível haver revogação de tais normas porque a revogação apenas se dá
entre normas de igual hierarquia, deixando a mesma de existir no plano do ordenamento
jurídico estatal por haver perdido seu fundamento de validade:
A rigor, não se poderá dizer que a Constituição revogou as normas anteriores que lhe eram contrárias. A revogação opera-se apenas entre normas de igual hierarquia: a lei revoga-se por outra lei, o decreto revoga-se por outro decreto e assim por diante. [...] A Constituição não revogou as leis anteriores que lhe eram contrárias; apenas estas deixaram de existir no plano do ordenamento jurídico estatal, por haverem perdido seu fundamento de validade.33
Não sendo, contudo, automática a revogação, pela nova Constituição, de norma
válida ante a ordem constitucional anterior, deixa a norma inquinada de
inconstitucionalidade de existir? Ou perguntado de outra forma: Seria correto igualar a
nulidade da lei inconstitucional, reputá-la juridicamente inexistente? Sobre a questão, digna
de transcrição é a lição de Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, para quem:
jurídico. Traduzido por Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p.49.
32 BATALHA, Wilson de Sousa Campo. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.33. Para ele, “quando a uma Constituição outra se lhe substitui, quer pelo processo estabelecido pela primeira Constituição, quer violentamente cortando a juridicidade para implantar novos quadros jurídicos, todas as normas jurídicas elaboradas na vigência da Constituição anterior deixam de encontrar nela seu fundamento de validade. Pode ocorrer, entretanto, e é o que frequentemente ocorre, venham tais normas jurídicas adequar-se aos termos da nova Constituição. Continuam aquelas a vigorar, mudando-se apenas o seu fundamento de validade. Se, ao contrário, essas normas jurídicas elaboradas na vigência da Constituição anterior vierem a atritar-se com os novos textos constitucionais, cessarão de vigorar, a partir da data do início da vigência da Constituição recente, porque não poderão encontrar nesta fundamento para sua validade; serão normas inconstitucionais.” Ibid., 1980, p.434. Para Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, em razão do princípio da continuidade do ordenamento jurídico, “[...] as normas de hierarquia inferior, preexistentes à mudança do sistema constitucional, só subsistirão se puderem encontrar, na nova ordem, seu fundamento de validade.” DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p.57. Também para Kelsen, “[...] as leis ditadas sob a antiga Constituição e que não são recebidas já não são consideradas válidas [...].”KELSEN, Hans, op. cit., 1987, p. 225.
33 Ibid., 1980, p.434. Para Marcelo Neves, a norma infraconstitucional incompatível com uma nova constituição, é igualmente inexistente no mundo jurídico, dado que ocorreu sua revogação, muito embora se trate de normas de diferente hierarquia: “[...] a lei incompatível com norma constitucional superveniente submeteu-se também, apesar de sua inferioridade hierárquica, à aplicação do princípio lex posterior derrogat priori, sendo, portanto, lei revogada e, por esta razão, juridicamente ‘inexistente’, ou menor (sic), não mais pertencente ao ordenamento jurídico [...].” (itálicos no original). NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988,, p.96.
28
O Direito brasileiro, desde a primeira Constituição republicana, adotou a teoria da nulidade da lei inconstitucional, reputando-a juridicamente inexistente [...]. Tal formulação teórica, todavia, confunde os conceitos de nulidade e inexistência jurídica da lei. [...] [...] Não podem, sob pena de incoerência, ser confundidos os planos da existência e eficácia. [...] Para que possa ser passível de um juízo de inconstitucionalidade, a norma deverá previamente existir [...]. [...] Poder-se-ia argumentar, neste passo, que a lei inconstitucional não é nula, mas apenas inválida [...]. [...] O dogma da nulidade ‘ab initio’, equiparada à inexistência do ato normativo inconstitucional, deve, portanto, ao nosso sentir, ser encarado com moderação, já que enfrenta o problema da inconstitucionalidade sob um prisma puramente lógico-formal, sem se preocupar com as situações jurídicas anteriormente estabelecidas. [...] A existência da norma é condição indispensável para que possa revestir-se de validade, vigência e eficácia. Seria incoerência atribuir tais qualidades ao que juridicamente não é, ao que juridicamente inexiste. [...] Em nosso sistema jurídico a validade da lei ordinária decorre do fato de ter sido elaborada de acordo com as regras de competência e forma, previstas na Constituição, bem como, no que se refere ao seu conteúdo, não infringir as normas e princípios plasmados no Texto Constitucional.34 (Itálico no original).
De fato, sob o ponto de vista lógico, uma norma juridicamente válida perante a ordem
constitucional anterior não pode simplesmente ser considerada nula ou juridicamente
inexistente ante a instauração de nova ordem constitucional que com ela seja incompatível,
principalmente se continua a surtir seus efeitos como se válida fosse. Nesse sentido, vem a
calhar a lição de Kelsen, que entende que:
[...] dentro de uma ordem jurídica não pode haver algo como a nulidade, que uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula, mas apenas que pode ser anulável. Mas esta anulabilidade prevista pela ordem jurídica pode ter diferentes graus. Uma norma
34 DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p. 38-41, 46 e 49. Para Bobbio, o problema da
validade de uma norma é o problema da existência da regra enquanto tal e se resolve com um juízo de fato, “[...] isto é, trata-se de constatar se uma regra jurídica existe ou não, ou melhor, se tal regra assim determinada é uma regra jurídica. Validade jurídica de uma norma equivale à existência desta norma como regra jurídica [...].”BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Traduzido por Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2003, p. 46. Para Arnaldo Vasconcelos, “na categoria da validade, examinam-se as condições existenciais da norma jurídica, o que requer apenas o emprego de critérios técnicos, sendo tal abordagem, portanto, eminentemente formal. Pretende-se apurar se a norma, de que se trata, é formalmente boa, a saber, se admite as provas de aferição relativas à juridicidade, à positividade, à vigência e à eficácia. Da norma que resistir a tal análise, só se pode afirmar, ainda, que existe validamente como norma.” VACONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.225. Marcelo Neves, por sua vez, cita o critério da pertinência da norma jurídica, ensinando que “[...] os sistemas jurídicos, construídos e desenvolvidos através dos processos políticos e técnicos de produção-aplicação normativa, caracterizam-se por uma nítida distinção entre pertinência e validade das normas.” Para ele, a pertinência da norma jurídica nada mais é que sua existência jurídica. Tanto que faz aludido autor o seguinte comentário: “[...] preferimos, em substituição ao vocábulo ‘existência’, empregar o termo ‘pertinência’, significando que uma determinada norma integrou-se (regular ou irregularmente) a um determinado ordenamento jurídico e ainda não foi expulsa por invalidade ou revogada [...]”. NEVES, Marcelo, op. cit., 1988, p. 41.
29
jurídica em regra somente é anulada com efeitos para o futuro, de forma que os efeitos já produzidos que deixa para trás permanecem intocados. Mas também pode ser anulada com efeito retroativo, de forma tal que os efeitos jurídicos que ela deixou atrás de si sejam destruídos: como, por exemplo, a anulação de uma lei penal, acompanhada da anulação de todas as decisões judiciais proferidas com base nela; ou de uma lei civil, acompanhada da anulação de todos os negócios jurídicos celebrados e decisões jurisdicionais proferidas com fundamento nessa lei. Porém, a lei foi válida até a sua anulação. Ela não era nula desde o início. Não é, portanto, correto o que se afirma quando a decisão anulatória da lei é designada como ‘declaração de nulidade’, quando o órgão que anula a lei declara na sua decisão essa lei como ‘nula desde o início’ (ex tunc). A sua decisão não tem caráter simplesmente declarativo, mas constitutivo.35 (Itálico no original).
A incompatibilidade existente entre uma nova Constituição e as normas
infraconstitucionais anteriores, escreve Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, é conflito
existente que deve ser resolvido, conforme opinião majoritária, “[...] pelas regras de Direito
Intertemporal [...].” É que “[...] pelo prisma do Direito Intertemporal – a incompatibilidade
se resolve pela revogação – ou através do juízo de inconstitucionalidade.” Ainda para ele,
“a só entrada em vigor da nova Constituição revoga, automaticamente, todas as normas
anteriores que com ela não se harmonizam.”36
Trata-se, em verdade, de revogação por ausência de recepção. Aliás, a norma
infraconstitucional anterior à nova Constituição que foi por esta revogada por ausência de
recepção, não pode ser objeto de exame de constitucionalidade, ou melhor, não pode ter
sua (in)constitucionalidade diretamente apreciada por meio de Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIn) ou de Ação Direta de Constitucionalidade (ADC), eis que o
sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente.
Esse, diga-se, é o posicionamento, e acertado, que vem tomando o Supremo Tribunal
Federal em reiteradas decisões.37
35 KELSEN, Hans, op. cit., 1987, p. 292-293. 36 DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p.56-57. Para esse autor, “o fenômeno da recepção,
processo legislativo abreviado (Kelsen), implica a absorção, pela nova ordem, das normas inferiores vigentes sob o manto do antigo sistema constitucional, dando-lhe novo fundamento de validade. Procura-se dar continuidade à dinâmica das relações sociais, sem que seja necessária nova atividade legislativa integradora. Afirma-se, por isso, que ocorre uma novação do sistema anterior pela nova Constituição; as normas anteriores passam a existir como se editadas fossem a partir da entrada em vigor da nova ordem constitucional.” Ainda para Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz, “em síntese: sob o parâmetro do novo sistema constitucional, ou as normas anteriores são recepcionadas, porque com ela se harmonizam, ou são rejeitadas por serem incompatíveis. A incompatibilidade, aqui, dá origem, em princípio, à cessação de sua vigência.” Demais, “até esse ponto, jurisprudência e doutrina convivem harmoniosamente. A dissonância passa a ocorrer quanto ao modo pelo qual é visualizada a colisão acima posta em destaque: pelo prisma do Direito Intertemporal – a incompatibilidade se resolve pela revogação – ou através do juízo de inconstitucionalidade.” Ibid., 1995, p.55-56.
37 Sobre essas questões, veja-se: BRASIL. Recurso Extraordinário nº 346084/PR – Paraná. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Ilmar Galvão. Julgado em 09 nov. 2005. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009; BRASIL. Recurso Extraordinário nº 396386/SP – São Paulo. Segunda Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Carlos Velloso. Julgado em 26 jun. 2004. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009; BRASIL. Agravo de Instrumento em
30
Como, então, atacar, em tese, a norma infraconstitucional anterior à nova
Constituição que não foi por ela recepcionada, já que é impossível atacar por meio de ADIn
ou ADC norma revogada? Neste caso, é possível recorrer à Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental em razão do disposto no parágrafo 1º do artigo 102 da Lei
Suprema e no parágrafo único, inciso I, do artigo 1º da Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de
1999, que assim reza:
Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.38
Para o ajuizamento de Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental junto ao Supremo Tribunal Federal para atacar, em tese, norma
infraconstitucional não recepcionada pela Carta Magna, contudo, é necessária a
comprovação de divergência jurisdicional relevante.39
O vácuo normativo resultante do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da
não recepção, pela Constituição da República, de determinada norma jurídica que possuía
aplicação antes de seu advento pode perfeitamente ser suprido pelo legislador ordinário
que, por sua vez, deve observar todos os parâmetros exigidos pela Constituição Federal de
1998. É, aliás, isto que deve ocorrer caso entenda o Supremo Tribunal Federal não ter sido
o Decreto-lei n° 911/69 recepcionado pela Carta Constitucional de 1988, se a referida
Agravo Regimental nº 232386/GO – Goiás. Primeira Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Moreira Alves, Julgado em 17 ago. 1999. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009; BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1360MC/DF – Distrito Federal. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Moreira Alves. Julgado em 26 out. 1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009; BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 175/PR – Paraná. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Célio Borja. Julgado em 01 abr. 1992. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009 e BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 129/SP – São Paulo. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 07 fev. 1992. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
38 BRASIL. Presidência da República. Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2009.
39 Registre-se ser pertinente a divergência judicial constitucional relevante exigida pela Lei n° 9.882/99, uma vez que uma lei revogada não se submete ao controle abstrato de constitucionalidade, mas pode “[...] ter sua aplicação recusada pelas autoridades, já que não mais tem potencialidade para incidir [...]”, como observa Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, muito embora referido autor defenda a possibilidade de a lei tornada inconstitucional pela superveniência de nova Constituição possa ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade. DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p.63. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de admitir a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de norma não recepcionada pela Carta Política de 1988. Consulte-se, para tanto: BRASIL. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 33/PA – Pará. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgado em 29 out. 2003. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
31
norma chegar a ser objeto de Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental. Até a ação integradora do legislador ordinário, contudo, é perfeitamente
possível a aplicação do Código de Processo Civil, para suprir o vácuo normativo processual
nos contratos de alienação fiduciária em garantia e do Código de Defesa do Consumidor,
enquanto lei principiológica que é, aos casos que envolvam relação de consumo.
2 A PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Tamanha é a importância do consumidor, este indispensável protagonista da atividade
econômica, mola propulsora do desenvolvimento nacional, que a Constituição de 1988 o
fez titular de direitos fundamentais, direitos estes que não podem ser olvidados nem pelo
legislador ordinário, repita-se, nem pelo outro integrante da relação de consumo: o
fornecedor. Não se pode negar que incontáveis contratos de consumo, incluindo os de
alienação fiduciária em garantia, são celebrados diariamente no mercado, contratos que em
regra impõem a vontade exclusiva do fornecedor, posto que de adesão, deixando o
consumidor exposto ao arbítrio daquele.
Atenta a tudo isto e inovando no constitucionalismo brasileiro, a Constituição Federal
de 1988 consagrou o consumidor como titular de direitos fundamentais, pois é através das
relações de consumo que o homem-consumidor provê suas mais fundamentais
necessidades. Nesse sentido, determinou que o Estado promovesse, na forma da lei, a
defesa desse novo sujeito de direitos fundamentais, erguida à categoria de princípio da
ordem econômica, incumbindo ao Congresso Nacional a elaboração do Código de Defesa
do Consumidor no prazo de cento e vinte dias contados a partir da promulgação da Carta
Política, nos termos dos artigos 5º, XXXII, 170, V, e 48 do ADCT. 1
2.1 O consumidor na Constituição Federal de 1988
A massificação da sociedade de consumo exigiu o desenvolvimento de técnicas de
contratação também em massa que permitissem que os produtos, agora produzidos em
larga escala, chegassem rapidamente às mãos dos consumidores, fazendo surgir um tipo de
formulário com cláusulas preestabelecidas que imprimissem a necessária velocidade às
contratações, instrumento hoje denominado contrato de adesão.
1 BRASIL. Constituição (1988), op. cit., 2008.
33
A desigualdade entre os adquirentes dos produtos e os seus fornecedores se acentuou
de tal forma que o Estado teve que intervir nessas relações econômicas privadas, buscando
equilibrá-las. Foi preciso, portanto, amparar a parte mais frágil da relação: o consumidor.
Atendendo às necessidades da sociedade, onde os consumidores precisavam de um Estado
mais presente, fiscalizador e intervencionista, a Constituição Federal de 1988 ergueu à
categoria de princípio da ordem econômica a defesa do consumidor e determinou que o
Estado promovesse, na forma da lei, a defesa do consumidor, nos termos de seu artigo 5º,
XXXII. Nesse tocante, oportuna a lição de Marinoni, que ensina que “[...] Defender o
consumidor na forma da lei não quer dizer, evidentemente, que basta ao estado editar
normas voltadas à sua proteção, uma vez que o dever de proteção é do Estado e não do
legislativo.[...]”.2
Importante ter em mente que a localização da “defesa do consumidor” na
Constituição Republicana, logo no seu artigo 5°, XXXII, faz desse consumidor titular de
direitos fundamentais, direitos esses imunes a qualquer reforma por parte do legislador
constitucional derivado, em razão de se tratar de cláusula pétrea, nos moldes do artigo 60,
§4º, IV, da “Constituição Cidadã.”3 Discorrendo sobre o assunto, Cláudia Lima Marques
aponta duas consequências da identificação do consumidor como novo sujeito de direitos
fundamentais, quais sejam: “[...] não só o contrato deve ser interpretado de forma diferente,
a proteger o sujeito de direitos especiais, mas também o direito daí resultante merece
interpretação teleológica (de proteção dos mais fracos na sociedade) e ‘conforme a
Constituição’.”4 Rizzatto Nunes vai mais além, pois entende que “[...] os princípios
fundamentais instituídos no art. 5° da Constituição Federal são, no que forem compatíveis
com a figura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo
constitucional”.5
2 MARINONI, Luiz Guilherme. A conformação do processo e o controle jurisdicional a partir do dever estatal de
proteção do consumidor. In: CHAVES, Cristiano; SAMPAIO, Aurisvaldo (Org.). Estudos de direito do consumidor: tutela coletiva (homenagem aos 20 anos da lei da ação civil pública). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p.361-393, p.362. Ronaldo Porto Macedo Júnior, por sua vez, entende que “O direito do consumidor seria uma parte importante das políticas do Welfare State tendo em vista o estabelecimento de parâmetros éticos para o mercado, proporcionando igual acesso a direitos e oportunidades de consumo e garantia da dignidade, cidadania e justiça social.” MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998, p.293.
3 O termo Constituição Cidadã foi proferido pelo deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Assembléia Nacional Constituinte, na sessão de 27 de julho de 1988. GUIMARÃES, Ulysses. A constituição cidadã. Disponível em: <http://www.fugpmdb.org.br>. Acesso em: 26 mar. 2009.
4 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.214.
5 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.12.
34
Ademais, a ordem econômica, nos moldes estabelecidos pelo legislador constituinte,
embora baseada no sistema de livre iniciativa e concorrência, encontra limites na defesa do
consumidor, tal é a importância desse novo sujeito de direitos, além de ter por fim
assegurar a todos existência digna, como se pode observar pelo disposto no artigo 170, V,
da Carta Política de 1988. Aliás, pauta-se a Constituição da República pelo princípio da
dignidade da pessoa humana, cujos reflexos, como não poderia deixar de ser, também são
sentidos na proteção e defesa do consumidor por ela dispensados.6
Mas não é só, Rizzatto Nunes chega a afirmar que “[...] a livre concorrência implica
proteção ao consumidor.”7, pensamento com o qual a pesquisadora concorda sem qualquer
restrição. Nesse sentido, importantes são os ensinamentos de Roberto Gomes:
[...] Hoje, após inúmeras modificações, a Carta de 1988 ainda representa a opção constitucional brasileira, que adotou o modelo capitalista, todavia criou um sistema de limites para que este modelo econômico encontrasse freios, para não perder de vista a condição de cumprimento dos comandos constitucionais, que apontam de forma clara para a proteção da dignidade humana como uma condição essencial para se fazer garantir a vontade da constituição.8
A defesa do consumidor, em suma, pode-se constituir em legítima limitação da
autonomia privada e, em caso de choque entre a autonomia da vontade e a defesa do
consumidor, mostra-se ideal o “recurso à proporcionalidade”, como ensina Bruno
Miragem.9 Mas há ainda outros dispositivos esparsos pela Constituição da República que
6 Bruno Miragem ensina que a tutela do direito do consumidor deve ter preferência em relação à livre iniciativa:
“[...] Assim que a tutela dos direitos do consumidor deve ter preferência em relação a outras, como a livre iniciativa - sob o critério do amplo espaço de autonomia negocial - ou liberdade de expressão - quando esta for exercida de modo a atingir, de qualquer modo, o discernimento ou mesmo a integridade do consumidor.” MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa. O direito do consumidor como direito fundamental – conseqüências jurídicas de um conceito. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 43, p.111-132, jul./set. 2002, p.131. [...].” já Roberta Densa é clara ao afirmar que “[...] a defesa do consumidor busca a proteção da pessoa humana, que deve sempre sobrepor-se aos interesses produtivos e patrimoniais [...]”, o que ocorre também por força do princípio da dignidade da pessoa humana. DENSA, Roberta. Direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.4. Acresça-se que não poderia haver efetiva concretização do princípio da pessoa humana se a Carta Política não tivesse igualmente traçado como um dos objetivos de nossa República a construção de uma sociedade solidária, ou melhor, se não houvesse abraçado a solidariedade social, sendo este outro valor que, conforme Fábio Soares, informa a proteção jurídica do consumidor: “A solidariedade social aparece como outro valor que informa a proteção jurídica do consumidor, consagrada pela Lei Maior entre os objetivos da República Federativa do Brasil de 1988 (artigo 3º, inciso I), quando o constituinte originário indica o objetivo de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” SOARES, Fábio Costa. Acesso do consumidor à justiça: Os fundamentos constitucionais do direito à prova e da inversão do ônus da prova. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p.55.
7 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto, op. cit., 2005, p.59. 8 GOMES, Roberto de Almeida Borges. Princípios da demanda e dispositivo: uma leitura à luz do processo
coletivo. In: CHAVES, Cristiano; SAMPAIO, Aurisvaldo (Org.), op. cit., 2005, p.453-490, p.463. 9 Miragem assim se manifesta: “Por outro lado, ao tempo em que tais princípios assumem o caráter de
conformadores da ordem econômica, sujeitam-se em maior ou menor grau a situações práticas de colisão. Neste particular, então, embora não se esteja tratando de hierarquia ou status diferenciados entre princípios,
35
rendem homenagens ao consumidor. Assim é que o artigo 24, VIII, incumbe à União,
Estados e Distrito Federal legislação concorrente sobre matérias afetas ao consumidor.
Dispõe o artigo 129, III, da CF/88 ser função institucional do Ministério Público promover
o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos,
categoria em que pode perfeitamente ser inserido o consumidor.10 O artigo 150, §5º, da Lei
Maior, por sua vez, impõe ao legislador infraconstitucional a adoção de medidas, através da
lei, que esclareçam os consumidores sobre os impostos incidentes sobre as mercadorias e
serviços em aquisição.11
Embora não imune a falhas nem críticas, andou muito bem o legislador constitucional
nacional ao inserir a defesa do consumidor como direito fundamental e princípio da ordem
econômica, dadas as consequências jurídicas daí advindas para as relações de consumo,
uma das quais o direito do consumidor de exigir do Estado que o proteja nas suas relações
com os fornecedores, consectário lógico do princípio da igualdade. Neste sentido, o
constituinte brasileiro determinou, no artigo 48 do ADCT – Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, que fosse elaborado no prazo de cento e vinte dias contados a
partir da promulgação da Constituição Federal o Código de Defesa do Consumidor, missão
que fora conferida ao Congresso Nacional, e que culminou com a promulgação do Código
de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.12
2.2 O Código de Defesa do Consumidor (CDC)
Promulgada no dia 11 de setembro de 1990, a Lei nº 8.078, Código de Defesa do
Consumidor, é instrumento de exercício da cidadania, vez que dispensa efetiva proteção e
defesa do consumidor, incluindo amplo acesso deste à justiça, constitui-se num verdadeiro
formas de solucionar o eventual choque devem estar dispostas pelo ordenamento. Nesse aspecto que o recurso à proporcionalidade é a fórmula usual [...]”. MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa, op. cit., 2002, p.130.
10 BRASIL. Constituição (1988), op. cit., 2008. 11 Id. Constituição (1988), op. cit., 2008. Assim manifestou-se José Afonso da Silva, ao discorrer sobre abuso do
poder econômico: “É bem verdade que as constituições brasileiras, desde 1946, inscreveram um dispositivo que poderia servir de base à proteção do consumidor, se fosse eficaz. Referimo-nos à repressão ao abuso do poder econômico, que, na Constituição de 1988, aparece com enunciado menos eficaz ainda, porque o fez depender da lei. Esta é que ‘reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros’ (art. 173, § 4º). Ajudará, por certo, a caracterização do mercado interno como patrimônio nacional.” SILVA, José Afonso da, op. cit., 2000, p.226.
12 Id. Constituição (1988), op. cit., 2008.
36
microssistema jurídico, eis que contém normas de diversos ramos do direito: civil,
administrativo e penal.13
Na visão de Nery Júnior, trata-se igualmente de uma lei principiológica, ou seja, de
um diploma legal que contém “[...] preceitos gerais [...]” e que fixa “[...] os princípios
fundamentais das relações de consumo. [...]”. Para ele: “[...] É isto que significa ser uma lei
principiológica. Todas as demais leis que se destinarem, de forma específica, a regular
determinado setor das relações de consumo deverão submeter-se aos preceitos gerais da lei
principiológica, que é o Código de Defesa do Consumidor.”14
Em verdade, aplica-se a Lei Protetora a todas as relações de consumo, mesmo que
existente lei específica sobre determinada questão que envolva relação de consumo, vez
que se trata de lei geral e também principiológica, conforme mencionado há pouco. Sobre a
importância desse instrumento, assim se manifesta Guilherme Fernandes Neto:
Todavia, em que pese a influência malévola que alguns grupos de pressão efetuaram no decorrer da aprovação do CDC, forçoso é convir que o Código é um marco importantíssimo não somente para o direito pátrio, mas, também, para o mundo atual, com grande significação histórica. Denota o enfraquecimento da autonomia privada pátria provinda do liberalismo, que, por si só, durante décadas, mostrou-se insuficiente e incapaz para limitar as deturpações do exercício do direito subjetivo - causadas por empresários - que permeavam as obrigações advindas dos contratos; consubstancia-se o novo diploma em um avanço da justiça social, dos interesses coletivos, difusos e do dirigismo contratual, necessário para a redução das dissimetrias sociais, após a percepção de que a igualdade dos contratantes nunca passou de uma ficção jurídica criada pela classe dominante. 15
13 A expressão microssistema jurídico consta da obra de José Geraldo Filomeno, que assim se manifesta: “E é
disso que se cuida, quando se fala no Código de Defesa do Consumidor. Ou seja, um verdadeiro microssistema jurídico, por conter: (a) princípios que lhe são peculiares (isto é, a vulnerabilidade do consumidor, de um lado, e a destinação final de produtos e serviços, de outro); (b) por ser interdisciplinar (isto é, por relacionar-se com inúmeros ramos de direito, como constitucional, civil, processual civil, penal, processual penal, administrativo etc.); (c) por ser também multidisciplinar (isto é, por conter em seu bojo normas de caráter também variado, de cunho civil, processual civil, processual penal, administrativo etc.)” (Destaques no original). FILOMENO, José Geraldo de Brito. Manual de direitos do consumidor. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2007a, p.10. Sobre o mencionado instrumento de exercício da cidadania ver MAIA, Daniela. Princípios constitucionais do direito do consumidor. In: GUERRA, Isabela Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly; PEIXINHO, Manoel Messias (Org.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. p.409-415, p.409.
14 NERY JÚNIOR, Nelson. Art.46-54. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.441-570, p.144. Para José Geraldo Filomeno, “[...] o Código de Defesa do Consumidor, muito mais do que um conjunto de normas inovadoras, em diversos aspectos do direito, é muito mais uma filosofia de ação, eis que traça uma política ou um conjunto de diretrizes que devem ser seguidas para que o consumidor seja efetivamente protegido e defendido.” FILOMENO, José Geraldo Brito. Curso fundamental de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2007b, p.15.
15 FERNANDES NETO, Guilherme. O abuso do direito no Código de Defesa do Consumidor: cláusulas, práticas e publicidade abusivas. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p.57.
37
No que tange ao Código Civil, é o mesmo aplicado subsidiariamente ao CDC desde
que, por óbvio, não haja conflito entre as normas deste e daquele.16 No intuito de dispensar
a necessária e eficaz proteção ao consumidor, conforme imposto pela Carta Maior, o CDC
inaugura seus dispositivos estabelecendo normas de proteção e defesa do consumidor, de
ordem pública e interesse social.17
Uma lei tão protetora dos direitos e interesses do consumidor, como é a Lei n°
8.098/90, permeada de tantos princípios e direitos básicos, não poderia, contudo, correr o
risco de ser aplicada a outras relações que não às de consumo. Por esta razão, o legislador
achou por bem trazer determinados e necessários conceitos, delineadores inclusive da
própria relação de consumo. Nesse sentido, faz-se necessário identificar quando um
contrato de alienação fiduciária em garantia se caracteriza como relação de consumo, já
que o novel Código Civil permitiu a celebração desta espécie de contrato entre iguais. Uma
vez classificado o contrato de alienação fiduciária em garantia como contrato de consumo,
cabe verificar se a ele aplicar-se-ão todos os princípios consagrados na Lei Protetora, que
igualmente determina a observância, pelo fornecedor, dos direitos básicos do consumidor.
2.2.1 Conceitos aplicáveis ao Código do Consumidor (CDC)
Para restringir sua aplicação às relações de consumo, evitando assim a aplicação de
seus princípios e direitos básicos a outras relações que de consumo não se caracterizam,
achou por bem o legislador do Código de Defesa do Consumidor definir as figuras do
consumidor e do fornecedor, delimitando-as, bem como conceituar produto e serviço. A
bem da verdade, o CDC trouxe quatro conceitos de consumidor, sendo um conceito padrão,
16 Nesse tocante, o próprio Código Civil dispõe em seu artigo 593 que: “A prestação de serviço, que não estiver
sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo.” BRASIL. Código Civil Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
17 Dizer o CDC que suas normas são de ordem pública e interesse social “[...] equivale a dizer que são inderrogáveis por vontade dos interessados em determinada relação de consumo, embora se admita a livre disposição de alguns interesses de caráter patrimonial [...]”, conforme anota José Geraldo Filomeno. FILOMENO, José Geraldo Brito. Art. 1-7. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001, p.21-142, p.24, manifestando-se no mesmo sentido se Bruno Miragem, que escreve: “A nosso ver, nessa acepção é que devem ser vislumbradas as características indicadas pelo Código de Defesa do Consumidor em seu art. l°. A determinação da lei como de ordem pública revela um status diferenciado à norma que, embora não a torne hierarquicamente superior às demais, lhe outorga um caráter preferencial. De outra parte, na medida em que realiza o conteúdo de um direito fundamental de matriz constitucional, retira da esfera de autonomia privada das partes a possibilidade de derrogá-las. MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa, op. cit., 2002, p.126-127. Ainda sobre o tema Maldonado escreve: “Elencado entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão, como já assinalado, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor – CDC, cujas normas são de ordem pública e interesse social (art. 1º), permite ao julgador conhecer de ofício qualquer questão relativa às relações de consumo, não se operando entre elas a preclusão. CARVALHO, José Carlos Maldonado de. Direitos do consumidor: fundamentos doutrinários e visão jurisprudencial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p.4.
38
nos termos do caput de seu Artigo 2º, e os demais conceitos de consumidor por
equiparação, como se pode observar pelo disposto no parágrafo único do Artigo 2º, que
traz o conceito coletivo de consumidor, bem como pelas disposições dos artigos 17 e 29 da
Lei Protetora.
Consumidor padrão é, portanto, nos termos do artigo segundo do Código de
Consumo, “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como
destinatário final.” O consumidor destinatário final, segundo majoritária doutrina pátria, é
aquele destinatário final fático e econômico do bem, o que utiliza o serviço ou adquire o
produto para uso próprio ou familiar, não havendo utilização profissional.18
Contudo, numa sociedade massificada, onde o sistema de produção e distribuição de
produtos se faz em série, não se pode valorizar exclusivamente o indivíduo per se, na
medida em que, ao lado dos conflitos individuais, despontam os conflitos coletivos,
fazendo-se necessária a proteção, por parte do legislador, da coletividade de consumidores.
Assim é que o Código de Defesa do Consumidor, para proteger o consumidor
universalmente considerado, traz o conceito de consumidor coletivo, primeiro conceito por
equiparação, que vem estampado no parágrafo único do Artigo 2º de CDC, nos seguintes
moldes: “Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis,
que haja intervindo nas relações de consumo.”19
O terceiro conceito de consumidor, segundo por equiparação, consta do artigo 17 do
Diploma Legal em análise. Trata-se do terceiro vítima do acidente de consumo, este
decorrente do defeito do produto ou do serviço.20 Já o Artigo 29 dispõe que “Para os fins
deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas
determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”. Os capítulos mencionados são o
18 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Para maiores detalhes acerca
dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto e serviço, incluindo as teorias maximalista e finalista, que pregam, em suma e respectivamente, uma maior ampliação e restrição do conceito de destinatário final presente na norma ora analisada, ver MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002 e DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: conceito e extensão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.
19 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. A proteção desse ente coletivo se dá através do recurso à legitimação extraordinária, conforme exigido pelo 6º artigo do Estatuto processual Civil, que reza que: “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”.
20 Importante observar, entretanto, que para haver terceiro, vítima do acidente de consumo, necessário se faz uma relação anterior que seja caracterizada como relação de consumo, apta, portanto, a ser albergada pelo microssistema protetor do consumidor. Assim é que um terceiro que padece danos em decorrência de um defeito do produto lançado no mercado, por exemplo, poderá invocar o CDC se a relação existente entre o adquirente deste produto e o seu fabricante se qualificar como relação de consumo. Se, ao revés, de relação empresarial se tratar, o diploma legal a ser invocado pelo terceiro vítima será diverso do CDC.
39
V, que versa sobre as práticas contratuais e se subdivide na oferta, publicidade, práticas
abusivas, cobrança de dívidas e bancos de dados e cadastros de consumidores, e o VI, que
trata da proteção contratual, cujas seções são as das cláusulas abusivas e contratos de
adesão.21
A figura do fornecedor, por sua vez, vem conceituada no artigo 3º do CDC, que
considera fornecedor:
[...] toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.22
Para ser considerado fornecedor de produtos ou serviços no mercado de consumo, o
CDC exige seja o mesmo profissional, que “desenvolva atividades” ou preste serviços.
Produto, de acordo com seu §1º, é “qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”.
Trata-se de elástico conceito, que não reclama maiores esclarecimentos.23 Já o serviço vem
definido no §2º do mesmo artigo como “qualquer atividade fornecida no mercado de
consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e
securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. 24
21 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. Abra-se aqui um parêntese para esclarecer que
apenas pode ser considerada consumidor por equiparação, nos termos do artigo 29 do CDC, a pessoa que for vulnerável. Trata-se de uma interpretação finalista aprofundada do conceito de consumidor, apta a trazer para o campo das relações de consumo uma relação que, de início, era considerada meramente empresarial, como se pode conferir através do seguinte julgado: RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70023522337. Nona Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Odone Sanguiné. Julgado em 04 jun. 2008.
22 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. 23 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. 24 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. Diga-se, por oportuno, que a doutrina sabiamente
exclui da relação de consumo os serviços públicos próprios, igualmente denominados uti universi, eis que prestados pelo Estado a todos os cidadãos, indistintamente, numa relação de visível subordinação destes para com aquele. Exemplo típico de serviço público próprio é o de segurança pública, que não pode ser delegado a terceiros, sendo, normalmente, remunerado por imposto, espécie do gênero tributo. Trata-se, portanto, de relação submetida ao Código Tributário Nacional e não ao Código de Defesa do Consumidor. Já a prestação dos serviços públicos próprios ou uti singuli pode ou não ser classificada como relação de consumo, sendo qualificada como tal se não remunerada por taxa, a exemplo dos serviços públicos essenciais de telefonia, energia elétrica, água encanada e tratada. Tratar-se-á, todavia, de relação tributária e não de consumo, submetida, portanto, ao Código Tributário Nacional, se a remuneração desse tipo de serviço público for compulsória, através de outra espécie do gênero tributo, como a taxa. Para maiores detalhes sobre o assunto consultar DONATO, Maria Antonieta Zanardo, op. cit., 1993, p.116-132. Igualmente oportuno esclarecer que a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2.591, de 2001, que tramitou no Supremo Tribunal Federal, mais conhecida como ADIn dos Bancos, que pretendia excluir do artigo 3º do CDC a expressão “inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária” e, assim “livrar” as instituições bancárias, financeiras, de crédito e securitárias de serem consideradas como fornecedoras de serviços, felizmente não logrou êxito. Para maiores esclarecimentos ver NUNES, Rizzatto. A ADIn dos bancos terminou: a vitória da cidadania. Disponível em: <http://www.saraivajur.com.br>. Acesso em: 25 maio 2008.
40
2.2.2 Princípios e direitos básicos no Código de Defesa do Consumidor (CDC)
O Código do Consumidor destinou seu Capítulo II à Política Nacional das Relações
de Consumo, cujo objetivo é o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito
à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos e a melhoria
de sua qualidade de vida, primando, de igual forma, pela transparência e harmonia das
relações de consumo, reconhecendo, acima de tudo, a vulnerabilidade do consumidor não
profissional no mercado de consumo, por entender ser o mesmo a parte mais frágil da
relação, nos termos do artigo 4º, III.25
O Código do Consumidor consagrou alguns princípios informadores das relações de
consumo, que devem ser observados inclusive pelas leis específicas posteriores ao CDC,
dentre os quais sobressaem os princípios da transparência, da boa-fé e do equilíbrio (ou
equivalência). Constantes do caput do artigo 4º, e no seu inciso III, respectivamente, os
princípios da transparência, do equilíbrio e da boa-fé, além de estarem intimamente ligados
entre si, uma vez que não existe transparência sem boa-fé e, sem esta, não há equilíbrio
entre as partes, são o alicerce da Lei do Consumidor e, por conseguinte, da proteção do
vulnerável, deles decorrendo outros princípios, além de alguns dos direitos básicos do
consumidor, cujo rol repousa no artigo 6º desse Diploma Legal.26
A boa-fé nos termos do CDC não é a clássica boa-fé subjetiva, que exige ausência de
conhecimento da violação do direito por parte do sujeito, mas boa-fé objetiva, que exige a
observância de regras de conduta por parte do sujeito da relação de consumo, quer dizer,
exige “[...] o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e
lealdade, a fim de estabelecer o equilíbrio das relações de consumo. Não o equilíbrio
25 Discorrendo sobre o tema, Cláudia Lima Marques reconhece três tipos de vulnerabilidade: a técnica, que
ocorre quando o “[...] comprador não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo e, portanto, é mais facilmente enganado quanto às características do bem ou quanto à sua utilidade, o mesmo ocorrendo em matérias de serviços. [...]”, de forma que o consumidor não detém domínio algum sobre a produção dos produtos ou sobre a prestação do serviço em aquisição; a vulnerabilidade jurídica ou científica, onde predomina a “[...] falta de conhecimentos jurídicos específicos, conhecimentos de contabilidade ou de economia [...]” e a vulnerabilidade fática ou sócio-econômica, “[...] onde o ponto de concentração é o outro parceiro contratual, o fornecedor que por sua posição de monopólio, fático ou jurídico, por seu grande poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço, impõe sua superioridade a todos que com ele contratam [...]”. MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.270-273.
26 Cláudia Lima Marques entende que o princípio da transparência é o novo princípio básico norteador das relações de consumo, cuja “[...] idéia central é possibilitar uma aproximação e uma relação contratual mais sincera e menos danosa entre consumidor e fornecedor. [...]”. Para ela, “[...] Transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo.” MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.594-595.
41
econômico, [...], mas o equilíbrio das posições contratuais. [...]”, conforme anota Rizzatto
Nunes.27
Aliás, para Paulo Valério Moraes, “[...] a expressão ‘boa-fé’ possui importância
muito maior do que a de um mero conceito jurídico, sendo, verdadeiramente, um princípio,
uma diretriz a ser seguida quando da interpretação das normas e também da sua
concretização.” Mas não é só, para ele:
A boa-fé objetiva traduz a necessidade de que as condutas sociais estejam adequadas a padrões aceitáveis de procedimento que não induzam a qualquer resultado danoso para o indivíduo, não sendo perquirido da existência de culpa ou de dolo, pois o relevante na abordagem do tema é a absoluta ausência de artifícios, atitudes comissivas ou omissivas, que possam alterar a justa e perfeita manifestação de vontade dos envolvidos em um negócio jurídico ou dos que sofram reflexos advindos de uma relação de consumo.28
Por tudo isso, Cláudia Lima Marques entende que o princípio da boa-fé objetiva traz
em si alguns deveres anexos, que devem ser observados pelos protagonistas das relações de
consumo, quais sejam: o dever anexo de informar, que “[...] é ‘anexo’ a toda a relação
contratual, acompanhando-a do nascimento à morte total, não se esgotando na fase pré-
contratual.”, haja vista serem as informações “[...] fundamentais para a decisão do
consumidor [...]”, interferindo inclusive na sua liberdade de escolha; o dever anexo de
cooperação, “[...] dever (leia-se, obrigação contratual) de colaborar durante a execução do
contrato, conforme o paradigma da boa-fé objetiva. [...], vez que “cooperar é agir com
lealdade e não obstruir ou impedir.” e o dever de anexo de cuidado, que “[...] tem por fim
preservar o co-contratante de danos à sua integridade [...]”, seja pessoal, moral ou
patrimonial. Ausente a boa-fé, base das relações de consumo, certamente, registre-se, não
existirá equilíbrio entre as partes contratantes, tampouco equivalência entre obrigações e
prestações decorrentes da avença.29
Já Guilherme Fernandes Neto aponta outros princípios norteadores, dentre eles o da
proporcionalidade e o da equidade das relações de consumo. Para este autor, o princípio da
proporcionalidade surgiu no direito administrativo, enveredou pelo direito constitucional e
atingiu o direito do consumidor, que o consagrou. Isto porque, ainda segundo o mesmo
autor, a “Lei Magna adotou a justiça social como base para a ordem econômica, [...].” e, de
27 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto, op. cit., 2000, p.533. O novel Código Civil, de igual forma, adotou
expressamente o princípio da boa-fé objetiva como informador dos contratos, dispondo em seu art. 422 que “os contratantes são obrigados a guardar assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé. BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008.
28 MORAES, Paulo Valério Dal Pai, op. cit., 1999, p.200. 29 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.187-198.
42
acordo com as regras hermenêuticas, “[...] forçoso é convir que a defesa do consumidor
recebeu a carga constitucional da justiça social, na qual se subsume o princípio da
proporcionalidade.”, eis que, nos termos do artigo 4º, III, do Código de Consumo, as
relações de consumo “[...] devem ser harmônicas, o que se dá em razão do equilíbrio, que é
a consubstanciação do princípio da proporcionalidade.” E é “[...] justamente a
proporcionalidade nas relações de consumo que possibilitará alcançar a justiça social e,
ipso facto, como antecedente lógico, a justiça contratual.” Ademais, ainda na ótica de
Guilherme Fernandes Neto, há diversos dispositivos na Lei Protetora que retratam o
princípio da proporcionalidade, a exemplo, dentre outros, dos artigos 6º, V, 39, I e IV, 42,
51, IV, § 1º, II e III, e § 2º, 52, § 2º e 53, caput e § 2º.30
No que diz respeito à equidade, importante de logo esclarecer que o Código de
Defesa do Consumidor a utiliza em duas acepções distintas, com consequências diversas,
como explica Guilherme Fernandes Neto, que assim se pronuncia:
Existem duas acepções distintas de eqüidade, das quais o legislador usou mão no diploma normatizador das relações de consumo: a primeira, constante do art. 7º, caput, e a segunda, no art. 51, IV, ambos do CDC. O primeiro dispositivo (art. 7º, caput) é princípio básico de todas as relações de consumo; o segundo é a positivação do princípio dentro das relações incoadas pelos contratos de consumo, com força normativa e sancionadora. [...] Em surgindo conflito em qualquer das espécies da relação de consumo, deverá o magistrado utilizar-se de juízo equitativo, moldando a norma ao caso concreto e evitando que, com a aplicação do CDC, venha a cometer injustiça. Na segunda hipótese, o legislador conferiu à equidade força diversa da prevista para o gênero da relação de consumo, ou seja, difere da previsão do art. 7º, pois enquanto neste se visualiza a simples previsão legal da eqüidade, para possibilitar ao magistrado a sua utilização, no art. 51, IV, o desrespeito a ela macula a cláusula do contrato de consumo – seja ou não de adesão – nulificando o dispositivo contratual, conceituando-o como abusivo.31
Dos princípios albergados pela Lei Protetora decorrem direitos básicos do
consumidor, constantes dos incisos de seu 6° artigo, dos quais merecem destaque: dever de
informação; liberdade de escolha; igualdade nas contratações; proteção contra práticas e
cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; efetiva prevenção e
reparação de danos; e a facilitação da defesa dos direitos do consumidor, inclusive com a
inversão do ônus da prova em seu benefício.
30 FERNANDES NETO, Guilherme, op. cit., 1999, p.68-73 e 77-81. 31 Ibid., 1999, p.77 e 80-81. Importante esclarecer que, por guardar importante enunciado, merece o 7° do CDC ser
transcrito na íntegra: “Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.” BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.
43
O dever de informação do fornecedor ao consumidor é amplo e deve ocorrer
previamente à contratação, através de informações adequadas, verdadeiras, claras e
precisas, vez que decorre do princípio da transparência. Ademais, constitui-se o princípio
da informação uma das pilastras do Código de Consumo, que também assegura liberdade
de escolha e igualdade nas contratações, estas entendidas da maneira mais ampla possível,
pois devem encampar não apenas a liberdade de escolha dos produtos e serviços dispostos
no mercado, mas igualmente liberdade de escolha, por todas as partes contratantes, do
conteúdo da avença, além de englobar tanto a igualdade de tratamento para todos os
consumidores como a igualdade das partes envolvidas no contrato: fornecedor e
consumidor. Tudo para que se possa alcançar a exigida harmonia das relações de consumo
(artigo 4º, caput).
As práticas contratuais, nas quais se situa a proteção contra as práticas no fornecimento
de produtos e serviços e a proteção contratual, onde são tratadas as cláusulas abusivas e os
contratos de adesão, serão objeto do capítulo seguinte, no qual também se discorrerá sobre o
contrato, este importante instrumento de circulação de riquezas. Destaque-se que o direito de
propriedade está indissociavelmente ligado ao contrato, instrumento cuja finalidade mor é
permitir a distribuição de riquezas, especialmente a aquisição de produtos de consumo, como
é o caso do veículo automotor, muitas vezes adquirido através do contrato de alienação
fiduciária em garantia, tema específico desta dissertação.
3 LIMITES CONSTITUICIONAIS INCIDENTES NA CONTRATAÇÃO
No presente capítulo abordar-se-ão o direito de propriedade e o contrato, como
direitos fundamentais do cidadão estabelecidos pelo artigo 5º da Carta Republicana de
1988, cabendo-lhes cumprir a função social que lhes é inerente. No caso da alienação
fiduciária em garantia, espécie de contrato largamente utilizado, envolve ela a transferência
de um bem de propriedade do alienante (devedor fiduciante) para o credor (credor
fiduciário) como garantia do pagamento da dívida contraída, gerando para este a chamada
propriedade fiduciária.
3.1 Propriedade
Antes de se adentrar no tema específico deste trabalho – alienação fiduciária de
veículo automotor, relativamente ao consumidor inadimplente – entende-se necessário
tecer considerações acerca da propriedade e do contrato, temas que se encontram
umbilicalmente ligados, sendo o contrato o instrumento por excelência que permite a
difusão da propriedade privada, fazendo circular as riquezas na sociedade. Ademais, o
contrato, por caminhar lado a lado com o direito de propriedade, acaba desfrutando de sua
história e evoluindo juntamente com este.1
1 No mesmo sentido Paulo Valério Moraes afirma que “[...] não poderia haver propriedade sem a liberdade de
gozá-la, de dispor e, principalmente, de transferi-la por intermédio do contrato, ficando evidenciado, desta forma, a íntima vinculação entre o contrato e a propriedade.” MORAES, Paulo Valério Dal Pai, op. cit., 1999, p.194. Sobre propriedade, a história do direito de propriedade e propriedade na Idade Média, na Idade Contemporânea e pós-Revolução Francesa consultar VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v.5, p.152; ; GUIDIO, Jorgina de Fátima Marcondes. A evolução do conceito de propriedade. Revista Argumentum Jure, Mato Grosso do Sul: FACSUL, v.2, n.2, p.105-120, jul./dez. 2003, p.112-118 e BARONI JÚNIOR, Eraldo. O direito de propriedade e suas limitações. Unesc em Revista, Espírito Santo: Centro Universitário do Espírito Santo, v.8, n.17, p.49-59, jan./jun. 2005; LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2004; ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003 e VENOSA, Sílvio de Salvo. Artigos 1196-1368. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). Código Civil comentado: direito das coisas, posse, direitos reais, propriedade. São Paulo: Atlas: 2003, p.19-533.
45
A princípio entendido como direito absoluto e imprescritível, o direito à propriedade
particular foi alçado à categoria de cláusula pétrea, como direito fundamental à propriedade
privada assegurado pela Constituição de 1988, desde que cumpra sua função social. Razão
de ser da sociedade e centro das relações em torno das quais giram os interesses dos
homens, a propriedade2 desperta ambições e gera conflitos das mais variadas espécies e,
por isto, sempre necessitou de regramento jurídico.
3.1.1 Conceito de propriedade
O direito de propriedade foi inicialmente compreendido como uma relação entre uma
pessoa e uma coisa, relação esta de caráter absoluto, natural e imprescritível. Só depois é
que se entendeu que não poderia haver relação jurídica entre uma pessoa e um objeto, posto
que relação jurídica apenas ocorre entre pessoas. Assim, o direito de propriedade passou a
ser entendido como uma relação entre um indivíduo, que era o sujeito ativo, e um sujeito
passivo universal, composto de todas as outras pessoas que não eram donas do objeto em
pauta, que tinham que respeitá-lo, passando a ser o direito de propriedade, como assinala
André Tavares: “[...] em síntese, o direito subjetivo de exploração de um bem que todos os
demais integrantes da sociedade devem respeitar [...].” Isto porque numa sociedade com
fundamento na propriedade, impõe-se o reconhecimento e o respeito da propriedade pelo
não proprietário.3
Percebe-se ainda nos dias atuais o caráter demasiado civilista que alguns autores
emprestam ao conceito de propriedade, considerando-a direito real fundamental absoluto,
não alcançando “[...] a complexidade do tema, que é resultante de um complexo de normas
jurídicas de Direito Público e de Direito Privado, e que pode interessar como relação
2 O termo “propriedade” vem do latim “proprietas”, de “proprius”, a significar a qualidade do que é próprio, o
que pertence a alguma pessoa, indicando a relação jurídica de apropriação de um determinado bem que pode ser corpóreo ou incorpóreo. GONÇALVES, Carlos Roberto, op. cit., 2006. v.5, p.206. Este autor, aliás, seguindo o Código Civil, define propriedade como sendo “[...] o poder jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha.” O Código Civil pátrio, contudo, limita-se a disciplinar as relações civis respeitantes à propriedade. Uso, gozo e disposição são unicamente os atributos ou faculdades inerentes à propriedade. Ibid., 2006, v.5, p.206-207. Interessante e digna de nota é a lição de Caio Mário, que assim se manifesta sobre o conceito de propriedade: “[...] a propriedade mais se sente do que se define, à luz dos critérios informativos da civilização romano-cristã. A idéia de ‘meu e teu’, a noção do assenhoramento de bens corpóreos e incorpóreos independe do grau de cumprimento ou do desenvolvimento intelectual. Não é apenas o homem ou o business man que a percebe. Os menos cultivados, os espíritos mais rudes, e até crianças têm dela a noção inata, defendem a relação jurídica dominial, resistem ao desapossamento, combatem o ladrão. Todos ‘sentem’ o fenômeno propriedade.” PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p.89.
3 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.475.
46
jurídica e como instituição jurídica”, conforme ensina José Afonso da Silva (grifos no
original). É que o regime jurídico da propriedade tem fundamento na Constituição, não se
podendo subordiná-lo exclusivamente ao direito civil, em detrimento das regras de direito
público, especialmente as de direito constitucional, que, em primeiro lugar, disciplinam a
propriedade:
Esse conjunto de normas constitucionais sobre a propriedade denota que ela não pode mais ser considerada como um direito individual nem como instituição do Direito Privado. Por isso deveria ser prevista apenas como uma instituição da ordem econômica, como instituição de relações econômicas, como nas Constituições da Itália (art. 42) e de Portugal (art. 62). É verdade que o art. 170 inscreve a propriedade privada e a sua função social como princípios da ordem econômica (incs. II e III). Isso tem importância, porque, então, embora prevista entre os direitos individuais, ela não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. (Destaques no original).4
3.1.2 Função social da propriedade na Constituição de 1988
Por ser imprescindível ao desenvolvimento das sociedades capitalistas de produção,
as Constituições sempre conservaram o direito à propriedade particular, alterando apenas
seu conteúdo, hoje com função social definida. A propriedade é um direito primário ou
fundamental que não se encontra nem acima nem abaixo de nenhum outro direito
fundamental, não sendo sagrada como afirmava a declaração de 1789.5 A limitação do
direito de propriedade para que a mesma cumpra uma função social se justifica porque a
propriedade individual precisa coexistir harmoniosamente com direitos alheios, de igual
natureza, bem como porque o interesse público é maior e mais importante que o individual,
devendo ser igualmente protegido pelo poder público.
No período contemporâneo, o direito de propriedade, que era essencialmente
individualista, passa a ter uma feição social. Além disto, seu caráter absoluto, como
assevera José Afonso da Silva, apenas limitado à proporção que também fosse garantido 4 SILVA, José Afonso da, op. cit., 2006, p.270-271. Para Rodrigo Xavier Leonardo, pode-se perceber “[...] que a
alocação da propriedade dentre os direitos e garantias fundamentais – bem como dentre os princípios da ordem econômica –, colore este instituto com um status diverso do individualismo próprio ao direito subjetivo absoluto, preconizado no século XVIII e XIX.” (Itálico no original). LEONARDO, Rodrigo Xavier. A função social da propriedade: em busca de uma contextualização entre a Constituição Federal e o novo Código Civil. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo: Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v.1, n.1, p.271-289, 2004, p.278.
5 A íntegra da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 consta da obra de Fábio Konder Comparato, rezando seu artigo 17 que: “Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente verificada, o exigir de modo evidente, e sob a condição de uma justa e prévia indenização.” COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.159-160.
47
aos demais indivíduos o exercício de seus direitos, foi sendo vencido desde o emprego da
teoria do abuso do direito.6 No Brasil, a função social da propriedade apareceu
primeiramente na Constituição de 1934, reaparecendo na de 1946, sendo mantida pela de
1969. Contudo, foi a Constituição Federal de 1988 que a inseriu no âmbito dos direitos e
garantias fundamentais, conferindo-lhe status de cláusula pétrea, mantendo-a também entre
os princípios da ordem econômica, que pretende “assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social.”, nos termos do artigo 170, caput.7
Dada a existência de mais de um sujeito proprietário protegido juridicamente, o
Direito aparece nessa relação, impondo-lhes novos deveres e responsabilidades perante a
sociedade, para trazer um resultado vantajoso a esta. Diga-se de início que o conteúdo da
função social da propriedade está ligado ao trabalho que nela é desempenhado e o modo
como esse trabalho é realizado, traduzindo-se enfim na utilização do bem pelo dono8. Os
bens de produção, ou seja, aqueles destinados ao desempenho de uma atividade econômica,
a propriedade urbana, a agrária, os bens culturais e os ambientais, sem dúvida, são bens
capazes de servir tanto aos interesses individuais como aos sociais.
Não se perca de vista, entretanto, que o direito de propriedade ainda tem caráter
individual e que essa função social, que autoriza desapropriações e até expropriações, não
pode chegar ao ponto de trazer insegurança jurídica aos cidadãos. Acentue-se, portanto,
que esse caráter dúplice da propriedade, ao mesmo tempo individual e social, deve ser
interpretado levando em conta a unidade axiológica da Constituição, como um todo
uniforme e coerente, que impõe a harmonização dessas duas características de que desfruta
a propriedade.
Passa-se agora a tecer algumas considerações sobre o contrato, esse importante
instrumento propagador da propriedade.
6 SILVA, José Afonso da, op. cit., 2006, p.272. 7 Sobre o constitucionalismo brasileiro e o direito de propriedade nas constituições do Brasil ver FERREIRA,
Pinto. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.43-67 e 105-114. Consultar ainda BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006a, p.7-45 e CLARK, Sarah Fernanda Pereira, op. cit., 2003, p.157-168.
8 Para Giselda Hironaka, a função social é inerente ao conceito mesmo de propriedade, quando escreve que: “A função social, como qualidade inerente ao conceito de propriedade, visa a adaptar este direito aos interesses maiores de toda a coletividade, além da figura singular do proprietário.” HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p.103.
48
3.2 Contrato
O contrato, enquanto instrumento de circulação de riquezas, é imprescindível ao
desenvolvimento da sociedade. Sua origem, como a da propriedade, é tão remota que
alcança a antiguidade, tanto que o 7º artigo do Código de Hamurabi faz expressa menção a
esse importante instrumento, nos seguintes termos: “Se alguém, sem testemunhas ou
contrato, compra ou recebe em depósito ouro ou prata ou um escravo ou uma escrava, ou
um boi ou uma ovelha, ou um asno, ou outra coisa de um filho alheio ou de um escravo, é
considerado como um ladrão e morto.”9
Neste sentido Sheila Leal afirma que “O contrato, em diferentes momentos da
história da humanidade, e assumindo diferentes formas e finalidades, sempre esteve
presente no cotidiano da vida das pessoas como instrumento jurídico imprescindível à
satisfação de suas necessidades.”10 Por nascer da realidade social, o contrato, ensina
Theodoro Júnior, “[...] é instituto jurídico que se amolda sempre à ideologia dominante no
Estado a cuja organização econômica instrumentaliza.[...].”11 Desta forma, uma sociedade
mais voltada ao individualismo terá uma visão mais liberal de contrato enquanto uma
sociedade mais voltada ao social terá uma concepção mais social deste instrumento.
3.2.1 Conceito de contrato
A ideia de contrato está intrinsecamente ligada à ideia de vontade das partes
contratantes. Poderosa fonte de obrigações, o contrato é definido por Álvaro Villaça “[...]
como a manifestação de duas ou mais vontades, objetivando criar, regulamentar, alterar e
extinguir uma relação jurídica (direitos e obrigações) de caráter patrimonial.” Certo é que
Villaça não olvida da existência de contratos que não versem sobre direitos patrimoniais,
mas faz alusão este autor a contrato em “[...] seu sentido restrito, nas relações de direito
econômico.”12
9 CÓDIGO DE HAMURABI. Cultura Brasil. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org>. Acesso em: 18 jul. 2008. 10 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via internet. São
Paulo: Atlas, 2007, p.57. 11 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.37; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor:
a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do direito civil e do direito processual civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.7.
12 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral dos contratos típicos e atípicos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p.23.
49
Sílvio Rodrigues conceitua contrato como “[...] uma fonte de obrigação, visto que
gera, para cada um dos contratantes, o mister de se desincumbir de um dever assumido, sob
pena de responder pelo inadimplemento [...].”13 Cláudia Lima Marques vê o contrato como
o negócio jurídico por excelência, cujos efeitos são não apenas permitidos como, em
princípio, protegidos pelo Direito. São palavras suas:
É o negócio jurídico por excelência, onde o consenso de vontades dirige-se para um determinado fim. É ato jurídico vinculante, que criará ou modificará direitos e obrigações para as partes contraentes, sendo tanto o ato como seus efeitos permitidos e, em princípio, protegidos pelo Direito.14
O contrato é, portanto, espécie de negócio jurídico, e este, por sua vez, enquadra-se
na categoria de ato jurídico, que tem por finalidade adquirir, resguardar, transferir,
modificar ou extinguir direitos.15 A validade do negócio jurídico, entretanto, nos termos do
artigo 104 do Código Civil de 2002, requer agente capaz, objeto lícito, possível,
determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.16
Mas não basta à validade do negócio jurídico o preenchimento dos requisitos
objetivos exigidos pelo novel Código Civil. Exige-se igualmente a conformação do
conteúdo e da execução da avença aos direitos fundamentais consagrados na Lei Suprema.
Nessa senda, manifesta-se Cristiano Schmitt nos seguintes termos: “[...] A validade de
negócios jurídicos, por exemplo, está condicionada aos direitos fundamentais [...].”17
Assim, a capacidade do agente constitui condição necessária à validade do negócio jurídico
porque apenas de pessoa capaz pode emanar uma vontade livre de vícios. Como tal, a
autonomia da vontade é em sua conformação constitucional precípua.
13 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.2, p.3. 14 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.38. 15 Ensina Álvaro Villaça que “Em sentido amplo (lato), o ato jurídico engloba o negócio jurídico. Isso porque, no
negócio jurídico, as partes interessadas, ao manifestarem sua vontade, vinculam-se, estabelecem, por si mesmas, normas regulamentadoras de seus próprios interesses.” AZEVEDO, Álvaro Villaça, op. cit., 2004, p.18.
16 Pedro Arruda França lembra que existe exceção à regra da capacidade civil, eis que “[...] menor incapaz, pela idade, pode celebrá-lo como v.g., na compra e venda a balcão, com pedido verbal do comprador; e o de transporte, bastando que o menor em caso tal faça o pedido e obtenha a pequena mercadoria ou passe na roleta, pagando o preço, nascendo em qualquer caso o vínculo entre as partes [...].” Quer dizer, portanto, que vale o negócio jurídico firmado por agente absolutamente incapaz, em razão de sua idade, apenas quando é o mesmo de pequena monta e de execução instantânea, ou seja, aqueles cuja execução se dá num momento único. FRANÇA, Pedro Arruda. Prática dos contratos: doutrina, jurisprudência (casos concretos). Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.5.
17 SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.101.
50
3.2.2 Princípios contratuais antes e depois da Constituição de 1988
Antes de se abordar os princípios contratuais especificamente, cumpre esclarecer que
quando se fala em princípios contratuais antes e depois da Constituição Federal de 1988
não se quer dizer que antes do advento da Carta Magna tenha havido determinados
princípios que hoje, após sua promulgação, não existam mais. Busca-se apenas chamar a
atenção para o fato de que a interpretação dos princípios contratuais sofreu alteração ao
longo da história, representando a Carta Republicana de 1988 um verdadeiro divisor de
águas nesse tocante, haja vista que, por se tratar de documento de cunho eminentemente
social, acabou por provocar uma diferente interpretação desses princípios, antes entendidos
como princípios de ordem exclusivamente individual. A Carta Constitucional de 1988
termina, portanto, por assim dizer, infiltrando-se e iluminando o caminho a ser percorrido
pelos demais ramos do direito.
Enquanto fonte de obrigações, aplicam-se aos contratos os princípios norteadores das
relações obrigacionais, dentre os quais se destacam os seguintes: autonomia da vontade,
liberdade contratual, força obrigatória do contrato, relatividade subjetiva do contrato,
equivalência material, boa-fé objetiva e função social do contrato.18 A autonomia da
vontade constitui o núcleo da concepção tradicional de contrato, dela decorrendo não
apenas o princípio da força obrigatória do pacto, que faz lei entre as partes,
consubstanciado no brocardo jurídico pacta sunt servanda, bem como o princípio da
relatividade subjetiva, que limita o conteúdo do pacto às partes dele participantes, que, em
pé de igualdade, emitiram sua vontade. Tudo, conforme assinala Rodolfo Pamplona Filho,
no intuito de:
[...] garantir um mínimo de segurança entre os contratantes, pois, ao disporem livremente de sua vontade e, consequentemente, de seu patrimônio, as partes estabelecem obrigações que devem ser cumpridas, sob pena de total subversão e negação do instituto do negócio jurídico.19
Desta forma, salvo raríssimas exceções, o acordo de vontades não poderia ser
alterado pelo Poder Judiciário, posto que intangível. Esta liberdade contratual, conforme 18 O novel Código Civil assim dispõe: “Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos
antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.” BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008.
19 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Esboçando uma teoria geral dos contratos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.682, 18 maio 2005. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 19 jul. 2008.
51
ensina Cláudia Lima Marques, está intimamente ligada à autonomia da vontade, vez que
consiste em pressuposto dessa vontade, fonte por excelência da obrigação:
Como se observa, mesmo nesta exposição alternativa do dogma da liberdade contratual, este aparece intrinsecamente ligado à autonomia da vontade, pois é a vontade, que na visão tradicional, legitima o contrato e é fonte das obrigações, sendo a liberdade um pressuposto desta vontade criadora [...].20
Lembra Rodolfo Pamplona Filho que o princípio da liberdade contratual envolve três
modalidades distintas de liberdade contratual, quais sejam: a liberdade de contratar. Vale
dizer, de decidir celebrar ou não um negócio jurídico; a liberdade de escolher a pessoa com
quem contratar, ressalvada a existência de monopólio; e, finalmente, a liberdade de escolha
do conteúdo da avença. Destarte, ao Estado cabia apenas proteger a vontade do indivíduo,
que tinha autonomia para se obrigar, sem intervir no conteúdo do contrato, o que apenas
poderia ocorrer em casos excepcionais, como vício da vontade ou ocorrência de fatos
imprevisíveis, que impedissem o devedor de cumprir sua parte no acordo.21
Era assim nos Códigos Civis de outrora, influenciados pela Revolução Francesa,
cujos postulados valorizavam o indivíduo, a liberdade e a propriedade privada, marcos do
Código Civil francês de 1804 (o “Código de Napoleão”) que, conjugando as influências
individualistas e voluntaristas da época com as ideias do Direito Natural Moderno,
representou uma:
[...] codificação, que influenciaria grande parte dos ordenamentos jurídicos do mundo, coloca como valor supremo de seu sistema contratual a autonomia da vontade, afirmando, em seu art. 1.134, que as convenções legalmente formadas têm lugar das leis para aqueles que as fizeram.22
Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, ocorrida durante o século
XX, o Estado passou a se fazer presente nas relações entre particulares, regulando-as, o que
representa uma relativização do princípio da autonomia da vontade. É o que se denomina
dirigismo contratual, que representa, sem sombra de dúvidas, a passagem de uma
concepção clássica ou tradicional do contrato para o que se vem chamando de uma
concepção moderna ou social desse instrumento, como anota Sheila Leal:
Seguindo a tendência evolutiva da própria ciência jurídica, os contratos passaram por transformações profundas, a ponto de serem apontadas ‘duas diferentes concepções sobre o direito contratual: a clássica ou liberal e a moderna ou social’. A concepção clássica, do período das grandes codificações (século XIX), reflete as exigências do Estado Liberal,
20 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.49. 21 PAMPLONA FILHO, Rodolfo, op. cit., 2008, on line. 22 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2003, p.46.
52
arraigado ao modo de produção predominantemente agrário. A concepção moderna surge como resposta às novas necessidades emergentes dos novos modelos de produção, o industrial e o pós-industrial, marcantes na sociedade de consumo.23
Nesse contexto, o Estado, reconhecendo que os indivíduos nem sempre contratam de
igual para igual, razão pela qual o princípio da autonomia da vontade não pode ser levado
às últimas consequências, passa a editar normas específicas reguladoras dos contratos,
inclusive, no caso brasileiro, através do Código Civil de 2002 e do Código de Defesa do
Consumidor que, iluminados pela “Constituição Cidadã” de 1988, cuja diretriz é o
princípio da dignidade da pessoa humana, consagraram princípios voltados à proteção do
interesse social, como os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da
equivalência material, embora a este último não se faça alusão expressa, como observa
Rodolfo Pamplona Filho:
Embora não explicitado expressamente como os princípios anteriores, tal princípio se encontra consagrado em diversos dispositivos, consistindo na idéia básica de que, nos contratos, deve haver uma correspondência, a saber, equivalência, de obrigações entre as partes contratantes. [...] No CC-2002, tal princípio é claro, por exemplo, na disciplina do contrato de adesão (arts. 423/424), no reconhecimento positivado da resolução por onerosidade excessiva (a cláusula ‘rebus sic stantibus’ implícita em todo contrato, agora consagrada nos arts. 478/480) e, na disciplina genérica do negócio jurídico, na anulabilidade da avença por força do vício da lesão (art. 157), em que, embora exija um elemento subjetivo (primeira necessidade ou inexperiência), não se tem positivada a exigência de um dolo ou aproveitamento.24
Sobre o assunto, pertinente é a lição de Cláudia Lima Marques, que afirma: “[...] O
CDC se propõe a restringir e regular, através de normas imperativas o espaço antes
reservado totalmente para a autonomia da vontade, instituindo como valor máximo a
eqüidade contratual.” Aliás, a própria Lei do Consumidor estabelece no §4º do artigo 51 ser
facultado ao consumidor ajuizar ação para declarar nulidade de cláusula contratual que
contrarie o disposto no código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre
direitos e obrigações entre as partes.25
Ninguém pode duvidar que deve haver uma equivalência de obrigações entre as
partes contratantes até porque o contrato nada mais é que um instrumento que possibilita
uma troca entre duas ou mais pessoas, troca essa que deve ser equilibrada, sob pena de, se
não for, causar um prejuízo a qualquer das partes contratantes. Ou seja, o equilíbrio entre
prestação e contraprestação é da essência do próprio instrumento de contrato. Lembre-se 23 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos, op. cit., 2007, p.45-46. 24 PAMPLONA FILHO, Rodolfo, op. cit., 2008, on line. 25 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.153.
53
que o princípio da equivalência material ou do equilíbrio contratual representa verdadeira
flexibilização do princípio da obrigatoriedade dos pactos, que determina fazer o contrato lei
entre as partes, de forma que este princípio cedeu “[...] lugar ao princípio do equilíbrio das
prestações contratuais, que, em última análise, objetiva a preservação da justiça
contratual”, conforme leciona Sheila Leal.26
Quanto ao princípio da boa-fé, o Código de Defesa do Consumidor o consagra
expressamente como princípio geral informador das relações de consumo no seu artigo 4º,
III, e como princípio informador específico do contrato, nos termos do artigo 51, IV, que
considera nula de pleno direito a cláusula contratual que seja incompatível com a boa-fé,
hoje entendida não mais na forma subjetiva, mas na objetiva, impondo deveres anexos a
serem observados pelos participantes das relações de consumo, conforme mencionado no
capítulo anterior.27
Mas não é só, hodiernamente, tal qual ocorre com a propriedade, reconhece-se que o
contrato cumpre importante função na sociedade, tanto que o artigo 421 do Código Civil de
2002 estabelece que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função
social do contrato.”28 É que, conforme alerta Paulo Valério Moraes, em decorrência do
contexto histórico, econômico, político e social, “passou a existir vinculação direta do conceito
de propriedade aos valores humanos, disso resultando um forte sentido social”, de forma que
“O contrato, como instrumento ligado de forma umbilical ao domínio dos bens e serviços,
inevitavelmente sofreu as mesmas alterações, [...].”29 O contrato, então, deve perseguir os
valores consagrados pela Constituição atual da República, primando pela dignidade da pessoa
humana e pelos valores sociais do trabalho, além de contribuir para o desenvolvimento do país,
com a consequente redução das desigualdades sociais e a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, conforme consta dos artigos 1º e 3º da Lei Fundamental. 30
26 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos, op. cit., 2007, p.66-67. 27 Mônica Bierwagen afirma, com acerto, referir-se a boa-fé subjetiva “[...] a aspectos internos dos sujeitos, ao
estado de desconhecimento ou compreensão equivocada acerca de determinado fato.” BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.52.
28 BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008. 29 MORAES, Paulo Valério Dal Pai, op. cit., 1999, p.195. 30 Nesse sentido Márcio Casado assevera que “[...] o contrato, em primeiro lugar, deve respeitar o princípio da
dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º. III, da CF.” Assim, segundo esse autor, “[...] o contrato servirá ao destinatário das normas constitucionais sempre que atender e prezar a dignidade destas pessoas. Logo, não se pode admitir que um contrato seja o motivo da escravidão financeira da pessoa humana, desde que ela, de boa-fé, tenha dirigido sua conduta no desenvolvimento do processo obrigacional.” CASADO, Márcio Mello. Proteção do consumidor de crédito, bancário e financeiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2006, p.19.
54
Mas não é só: de acordo com esses valores, o contrato deve ser interpretado pelo
operador do direito que, no escólio de Márcio Casado, “[...] tem que buscar, como valor
inicial de seu processo interpretativo do relacionamento obrigacional, a pessoa humana”,
que, assim prossegue: “[...] Agindo ela de acordo com a boa-fé, como norma de conduta,
dela são pinçados os fundamentos para a solução do problema, visto que é a ela que o
direito tutela em primeiríssimo lugar.”31 Nesse mesmo caminho, Cláudia Lima Marques
alerta para o fato de o contrato possuir dupla função econômica, encerrando uma troca de
valores e não meramente de objetos (concepção objetiva do contrato), senão veja-se:
[...] uma dupla função econômica do contrato: instrumentalizar a livre circulação das riquezas na sociedade e ao mesmo tempo indicar o valor de mercado de cada objeto cedido (sua nova ‘utilidade’). Evolui-se, assim, para considerar o contrato menos um instrumento de troca de objetos, mas sim uma troca de valores. 32
Assim, conforme Paulo Valério Moraes, “[...] o contrato não pode ser aceito como
uma manifestação isolada do contexto social, em que dois polos executam um negócio
jurídico de que dispõem plenamente”, eis que, ainda segundo este autor:
O massificado mercado de consumo atual obriga a uma nova e atualizada maneira de observar a vida moderna, evidenciado que ficou que o contrato é um mecanismo fundamental para a circulação rápida e eficaz das riquezas, as quais retornam para a sociedade sob a forma de salários ou investimentos na realização das políticas públicas do Estado.33
Sobre a função social do contrato, diga-se que este instrumento deve, antes de tudo,
sobrepor-se aos interesses meramente individuais para atender aos ditames do interesse
coletivo, conforme lição de Giselda Hironaka:
A doutrina da função social emerge, assim, como uma dessas matizes, importando em limitar institutos de conformação nitidamente individualista, de modo a atender aos ditames do interesse coletivo, acima daqueles do interesse particular, e importando, ainda, em igualar os sujeitos de direito, de modo que a liberdade que a cada um deles cabe seja igual para todos.34
Desta forma, nem o conteúdo nem o cumprimento da avença podem ficar à mercê do
arbítrio, que se convencionou chamar vontade autônoma das partes contratantes, cabendo
ao Estado, através da lei e em nome do interesse social, limitar a autonomia da vontade das
31 Ibid., 2006, p.20. 32 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.47. 33 MORAES, Paulo Valério Dal Pai, op. cit., 1999, p.201. Nesse tocante, lembra Paulo Khouri que embora o
Código Civil de 2002 albergue expressamente o princípio da função social do contrato, o mesmo já era previsto de forma implícita no Código de Proteção e Defesa do Consumidor. KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.32.
34 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, op. cit., 2000, p.101.
55
partes envolvidas sempre que houver necessidade. Trata-se de uma nova e mais social
concepção do contrato, atribuindo-se à lei o papel de limitadora e verdadeira legitimadora
da vontade, como preleciona Cláudia Lima Marques, que finaliza dizendo que: “A lei
passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no
vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.”35
Não se pode perder de vista, como alerta Paulo Khouri, que o limite do dirigismo
contratual é o interesse social: “O que se observa hoje é que o Estado se tem limitado a
intervir nas relações contratuais de olho tão-somente no interesse social. Este é o limite
entre o dirigismo contratual e a liberdade de contratar, que continua sendo impulsionada e
movimentada pelo mercado.” Pode, portanto, o juiz, quando instado a tal, intervir no
conteúdo da avença, modificando-a para permitir o cumprimento da obrigação por parte do
consumidor quando a ocorrência de fatos supervenientes torne sua prestação
desproporcional, conforme autorizado pelo artigo 6º, V, do Código de Defesa do
Consumidor, ou declarar a nulidade de alguma cláusula contratual, nos termos do artigo 51
desse mesmo Diploma Legal. Afinal de contas, o consumidor contratante é titular de
direitos fundamentais, o que é suficiente para justificar a intervenção do Judiciário no
controle do conteúdo do contrato firmado com o consumidor na forma autorizada pela lei.36
Justifica-se a adoção do princípio da função social do contrato, segundo Rodolfo
Pamplona Filho, porque “O contrato, embora aprioristicamente se refira somente às partes
pactuantes (relatividade subjetiva), também gera repercussões e - por que não dizer? -
deveres jurídicos para terceiros, além da própria sociedade, de forma difusa.”37 Diga-se
ainda que o conteúdo da função social do contrato se relaciona com o fim que é dado ao
instrumento e a utilização que dele se faz.
O que foi dito até aqui, entretanto, não autoriza a conclusão de que o contrato não
obriga os contratantes ou que o Judiciário pode, sem justa razão, modificar o conteúdo da
avença. Ainda vigem os princípios da autonomia da vontade, da liberdade contratual, da
força obrigatória do pacto e da relatividade subjetiva do instrumento, pois é necessário um
mínimo de segurança jurídica a todos. Tais princípios apenas foram relativizados no
decorrer do tempo e o contrato perdeu a qualidade de intocável que lhe foi atribuída pelo
35 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.175. 36 KHOURI, Paulo Roque Antônio, op. cit., 2002, p.34. 37 PAMPLONA FILHO, Rodolfo, op. cit., 2008, on line.
56
liberalismo econômico para sofrer a intervenção do Estado sempre que o interesse social o
exigir.
3.2.3 Práticas e cláusulas abusivas na Lei do Consumidor
Afigura-se imprescindível a proteção ao consumidor dispensada pela lei contra
cláusulas e práticas abusivas nas relações de consumo, pois abusos indiscutivelmente há
nessas relações, a prejudicar a parte mais frágil tanto no plano extracontratual como no
plano contratual. Neste sentido, práticas abusivas “[...] são condutas, comissivas ou
omissivas, praticadas por fornecedores, nas quais estes abusam de seu direito, violam os
direitos dos consumidores ou infringem de alguma forma a lei.”38 Já para Herman
Benjamin, “Prática abusiva (lato sensu) é a desconformidade com os padrões
mercadológicos de boa conduta em relação ao consumidor. [...].”Ainda segundo esse autor,
“[...] as práticas abusivas podem ser contratuais (aparecem no interior do contrato), pré-
contratuais (atuam na fase do ajustamento contratual) e pós-contratuais (manifestam-se
sempre após a contratação). [...].” (Itálicos no original).39
Dentre as práticas abusivas exemplificativamente elencadas pelo artigo 39 da Lei
Protetora, chamam a atenção os incisos IV e V, que rezam respectivamente “prevalecer-se da
fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou
condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços” e “exigir do consumidor
vantagem manifestamente excessiva.” Com relação ao inciso IV, diga-se que, apesar de o
Código de Consumo dispensar ao consumidor a qualidade de vulnerável, há dentre os
vulneráveis uns mais que os outros. Trata-se de uma vulnerabilidade especial, grupo em que
se enquadram os consumidores que, em razão de sua situação, tornam-se presas mais fáceis
nas mãos dos fornecedores, a exemplo dos idosos, pessoas doentes, pobres, crianças etc.,
consumidores que, sem dúvida, necessitam de uma maior proteção por parte do Estado.40
Quanto à vantagem manifestamente excessiva, o conceito deve ser preenchido pelo
magistrado à luz do caso concreto. O Código do Consumidor presume exagerada, entre
outras, a vantagem que ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que
pertence, restrinja direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de 38 BONATTO, Cláudio; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de Defesa do
Consumidor: principiologia, conceitos, contratos. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.145. 39 BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcelos. Art.29-45. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001,
p.215-440, p.319-320. 40 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.
57
tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual ou se mostrar excessivamente
onerosa para o consumidor, considerados a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse
das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso, como se pode observar no artigo 51, §
1º, I a III, o que pode auxiliar o juiz a delinear, no caso concreto, vantagem manifestamente
excessiva.41 Acresça-se que a presunção de exagero constante do CDC é meramente
relativa, eis que admite prova em contrário por parte do fornecedor, conforme explicações
de Nélson Nery Júnior.42
No que condiz com as cláusulas abusivas43, são as mesmas reprimidas pelo Código de
Consumo, que as sanciona com a nulidade de pleno direito, nos termos do artigo 51 do
CDC, cujo rol é apenas exemplificativo, cabendo ao juiz verificar, à luz do caso concreto, a
abusividade ou não de determinada cláusula contratual.
O sistema de nulidade absoluta adotado pelo CDC garante que a nulidade da cláusula
pode ser arguida por qualquer interessado por meio de ação direta (ou reconvenção), defesa
(contestação) ou ainda de ofício pelo juiz em qualquer tempo ou grau de jurisdição, vez que
sobre a mesma não incide a preclusão. Também é imprescritível a ação de que pode se valer o
interessado para declaração de abusividade de tais cláusulas, que não desfrutam de eficácia
alguma, dada a sua condição de absolutamente nulas. Por esta razão, a sentença que a declara,
que é constitutiva negativa, possui efeitos ex tunc, como ensina Nélson Nery Júnior.44
Sobre a questão, oportuna é a lição de Guilherme Fernandes, que lembra que os atos
nulos existem no mundo fático, razão pela qual não se pode confundir o plano da validade
com o da existência ou eficácia. Veja-se:
[...] Não se pode confundir o plano da validade com o plano da inexistência ou da ineficácia, porque os atos nulos existem no mundo fático e devem assim ser declarados, mesmo porque a lei lhes nega efeitos; os atos anuláveis existiram e produziram efeitos até o momento de sua desconstituição, assim, precisa sua juridicidade ser desconstituída [...].45
Mesmo que a clausula abusiva seja considerada pelo Código de Consumo como nula
de pleno direito, não se pode olvidar que a mesma, como aduz Guilherme Fernandes Neto,
“[...] é curável, não pela convalidação – porque não pode ser convalidada – mas pode ser
41 Ibid., 2008. 42 NERY JÚNIOR, Nelson. Art.46-54. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001, p.441-570, p.533. 43 Nelson Nery Júnior conceitua cláusula abusiva como “[...] aquela que é notoriamente desfavorável à parte mais
fraca na relação contratual [...]”, ou seja, ao consumidor. Referidas cláusulas, diga-se, ferem de morte o princípio da boa-fé objetiva, inviabilizando a necessária transparência nas relações de consumo. Ibid, 2001, p.441-570, p.501.
44Id. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001, p.441-570, p.504-505. 45 FERNANDES NETO, Guilherme, op. cit., 1999, p.167.
58
modificada, quando cessarão os efeitos da sanção, porque simplesmente o vício foi
extirpado. [...].” Nesse momento, ainda segundo este autor, o sistema de nulidade adotado
pelo CDC difere do sistema de nulidade absoluta consagrado pelo Código Civil porque
“[...] a nulidade de uma cláusula (ilícita) do diploma civil é insanável [...].”46 Isto porque o
§2º do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor dispõe que “a nulidade de uma
cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar
dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.” Trata-se do
princípio da conservação do contrato; assim, o contrato apenas poderá ser resolvido no caso
de acarretar ônus excessivo ao fornecedor ou ao consumidor.47
Dessa forma, uma vez declarada a nulidade de determinada cláusula, cabe ao juiz
promover a integração do contrato, o que apenas poderá ocorrer por intermédio das normas
que compõem o ordenamento jurídico pátrio, excetuada a hipótese prevista no artigo 6º, V,
do Diploma Legal Protetor do Consumidor, que permite ao juiz a modificação das
cláusulas contratuais excessivamente onerosas ou que estipulem prestações
desproporcionais. Esse o ensinamento de Cláudia Lima Marques, que assim se expressa:
A integração aqui é a dos efeitos do negócio, agora não mais previstos expressamente em virtude da invalidade da cláusula, recorrendo o juiz a normas supletivas ou dispositivas do ordenamento jurídico brasileiro. As nulidades absolutas, como as do art. 51 do CDC, caracterizam-se por não serem sanáveis pelo juiz, passando a relação contratual, naquele aspecto, a ser regida pela lei. [...] O art. 6º, V, do CDC abre uma exceção no sistema da nulidade absoluta das cláusulas, permitindo que o juiz revise ou ‘modifique’, a pedido do consumidor, as ‘cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais ou que sejam excessivamente onerosas’ para ele em razão de fatos supervenientes.48
Dito isto, convém mencionar as cláusulas contratuais previamente tachadas de nulas
pelo Código de Consumo, que interessam mais de perto ao presente trabalho, as quais estão
dispostas nos incisos II, IV, X, XII e XV do artigo 51 desse diploma legal, cujo caput traz
o seguinte enunciado: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais
relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:”, incisos sobre os quais se tecerão
46 FERNANDES NETO, Guilherme, op. cit., 1999, p.166-167. 47 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. Segundo Cláudio Belmonte, é o princípio da
conservação do contrato, aliado ao princípio da proporcionalidade, que permite a aplicação do instituto da redução do negócio jurídico, ou seja, “[...] a manutenção do mesmo ajuste firmado pelas partes, consagrando a autonomia privada, circunscrevendo a parte inválida de seu conteúdo, independentemente de tratar-se de nulidade ou anulação, pelo fato de a mesma ter ido de encontro a determinadas normas jurídicas ou a princípios gerais consagrados no respectivo ordenamento jurídico. [...].” BELMONTE, Cláudio. Proteção contratual do consumidor: conservação e redução do negócio jurídico no Brasil e em Portugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.21-22 e 29.
48 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.780-781.
59
brevíssimos comentários.49Configura cláusula abusiva, portanto, tirar do consumidor a
opção de reembolso de quantia já paga nos casos previstos no próprio Diploma Legal ora
em estudo (art. 51, II, CDC). É o caso, por exemplo, do disposto no artigo 53 do CDC, que
assim dispõe:
Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.50
Diga-se aqui que a jurisprudência pátria vem entendendo que, nos moldes do artigo
53 do CDC, a devolução das prestações pagas cabe inclusive quando é do próprio
consumidor inadimplente, e não do credor, a iniciativa do ingresso de ação judicial.
Ademais, o direito à resolução do contrato cabe exclusivamente ao consumidor, jamais ao
fornecedor. Igualmente abusiva é a cláusula que estabelece obrigações iníquas, abusivas, a
ponto de colocar o consumidor em desvantagem exagerada ou que seja incompatível com a
boa-fé ou equidade (art. 51, IV, CDC).51 Analisando o dispositivo do Artigo, Nélson Nery
Júnior entende que o Código de Defesa do Consumidor adotou implicitamente uma
cláusula geral de boa-fé. Demais, na verificação da abusividade da cláusula inquinada,
cumpre ao magistrado pesquisar se as partes agiram com boa-fé para a conclusão do
negócio, avaliando ainda se a cláusula está de acordo com a equidade, senão veja-se:
A utilização da equidade, como técnica de julgamento no processo civil, é circunscrita aos casos autorizados por lei, segundo dispõe o art. 127 do CPC. A norma aqui analisada dá ao juiz a possibilidade de valoração da cláusula contratual, a fim de verificar se é ou não contrária à equidade e boa-fé. O juiz não julgará por equidade, mas dirá o que .está de acordo com a equidade no contrato sob seu exame.52
49 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. 50 Ibid., 2008. 51 Apenas a título de exemplo, confiram-se os seguintes julgados: BRASIL. REsp Nº 871.421/SC – Santa
Catarina. Segunda Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Sidnei Beneti. Julgado em 11 mar. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 8 ago. 2008; BRASIL. REsp Nº 437.607/PR – Paraná., Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Hélio Quaglia Barbosa. Julgado em 15 maio 2007. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 8 ago. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70021633748. Décima Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS. Relator: Sejalmo Sebastião de Paula Nery. Julgado em 26 jun. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 8 ago. 2008 e RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70024103046. Décima Quarta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Isabel de Borba Lucas. Julgado em 17 jul. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 8 ago. 2008.
52 NERY JÚNIOR, Nélson, op. cit., 2001, p.441-570, p.513. No entender de Cláudia Lima Marques, os termos utilizados no inciso IV do artigo 51 do Código de Consumo são amplos e subjetivos “[...] por natureza, deixando larga margem de ação ao juiz [...]”, competindo ao “[...] Poder Judiciário brasileiro, concretizar, através desta norma geral, escondida no inciso IV do art. 51 do CDC, a almejada justiça e eqüidade contratual. [...].” (Destaques no original). MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.796.
60
É ainda vedado ao fornecedor, de maneira unilateral, ainda que indiretamente, a
variação do preço (51, X), bem como obrigar o consumidor ao ressarcimento dos custos de
cobrança de sua obrigação, sem que o mesmo direito lhe seja conferido contra o fornecedor
(51, XII). Por fim, é considerada abusiva a cláusula inserta em contrato de consumo que
esteja em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor (51, XV), disposição que,
para Nélson Nery Júnior, configura norma de encerramento, conferindo completude ao
sistema de nulidades de cláusulas abusivas adotado pela Lei de Consumo, a permitir que a
proteção do vulnerável extravase e seja igualmente conferida por outras normas constantes
do ordenamento jurídico pátrio. São suas palavras:
DESACORDO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR - Esta disposição configura norma de encerramento, que possibilita ao juiz ampla margem para integrar o conceito jurídico indeterminado e dizer o que significa ‘estar em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor’. Essa possibilidade e a dicção do caput do art. 51 - que, com a expressão ‘entre outras’, permite a consideração de outras hipóteses de cláusulas proibidas além das enumeradas na lei - fazem com que o sistema de cláusulas abusivas do CDC seja insuscetível de lacuna. O ‘sistema’ de proteção ao consumidor encerra conceito mais amplo do que o de um ‘Código’ de proteção do consumidor. Incluem-se no ‘sistema de proteção ao consumidor’ as disposições legais de proteção do consumidor em sentido estrito, bem como as relativas à proteção indireta do consumidor, como as leis de combate à concorrência desleal e leis antitruste. [...] (Itálicos no original).53
Antes de se encerrar esta parte, convém trazer à baila breve discussão sobre a
cláusula penal que, de acordo com Cláudia Lima Marques:
[...] é aquela cláusula teoricamente estimuladora da prestação, do cumprimento do contrato por impor uma pena em caso de inadimplemento parcial ou total ou em caso de mora, é a cláusula prefixadora da indenização, teoricamente compensatória do inadimplemento, também chamada de pena ou multa convencional, é pacto acessório estipulando multas ou penas para aquele que descumprir suas obrigações contratuais.54
É que a cláusula penal pode ser estipulada pelo fornecedor de forma desproporcional
ou irrazoável, de modo a impor excessiva onerosidade à parte mais frágil da relação, isto é,
ao consumidor, transformando-se assim em cláusula abusiva e, portanto, nula de pleno
direito, de acordo com o disposto no artigo 51, IV, da Lei de Consumo. Diz-se isto também
porque a cláusula penal, conforme leciona Cláudia Lima Marques, possui dupla função: uma
principal, de garantia de execução do contrato, uma secundária, de sanção da inexecução
ilícita da obrigação de garantia, além de uma terceira função apontada pela doutrina e pela
jurisprudência: de pré-fixação da indenização compensatória. Em suas palavras:
53 NERY JÚNIOR, Nélson, op. cit., 2001, p.441-570, p.532. 54 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.870
61
A cláusula penal ‘clássica’, como estamos aqui denominando-a, possui claramente uma dupla função. Em primeiro lugar, a função de garantia da execução do contrato e somente secundariamente, a função de pena, a sancionar a inexecução ilícita da obrigação de garantia. A doutrina e a jurisprudência brasileira sempre destacaram, porém, uma terceira função, qual seja a de prefixar a indenização compensatória. Daí ser impossível a sua cumulação com perdas e danos.55
O sistema de nulidade de pleno direito das cláusulas abusivas abraçado pelo CDC,
portanto, tem como objetivo mor a busca da proteção da parte contratante vulnerável,
relevante principalmente na era dos contratos massificados, ou contratos de adesão, de que
se tratará a seguir.
3.2.4Limites aos contratos de adesão
Na ótica dada pelo CDC, o contrato de adesão é definido no artigo 54 como “[...] aquele cujas
cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas
unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa
discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”, razão pela qual se entende
desnecessária a clássica e inicial distinção entre contrato de adesão e contrato por adesão,
feita pela maioria dos autores que escrevem sobre direito do consumidor.56
Ressalta Carlos Alberto Bittar que o contrato de adesão nasceu por força do dirigismo
econômico e da concetração de capitais nas grandes empresas. Largamente utilizado pelos
fornecedores de produtos e serviços, especialmente os fornecedores de crédito, este 55 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.876. Ressalte-se, contudo, que o devedor moroso responde pela
atualização da moeda e pelos juros moratórios ainda que estes não tenham sido convencionados ou, quando o forem sem taxa estipulada ou forem provenientes de determinação legal, quando incidirá a taxa que viger para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional, nos termos dos artigos 389 e 406 do novel Código Civil, sendo ainda oportuno mencionar que referidos valores serão devidos cumulativamente com uma multa moratória de até 2% (dois por cento) do valor da prestação, conforme redação dada pela Lei n° 9.298, de 1º de agosto de 1996 ao §1º do artigo 52 do Código de Consumo, dispositivo que versa sobre concessão ou outorga de crédito ao consumidor. Essas as redações dos artigos 398 e 406, respectivamente, do Código Civil: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado” e “Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.” BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008. Já o Código de Consumo dispõe no artigo 52 que “No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:”, trazendo seu primeiro parágrafo a seguinte redação: “As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação.” BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.
56 Discorrendo sobre contrato de adesão, Cláudia Lima Marques lembra que esse tipo de contrato predomina em quase todas as relações contratuais do despersonalizado e desmaterializado tráfico jurídico. Para ela, “Na sociedade de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em grande quantidade, o comércio jurídico se despersonalizou e se desmaterializou. Os métodos de contratação em massa, ou estandardizados, predominam em quase todas as relações contratuais entre empresas e consumidores.[...]”. MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.52-53.
62
instrumento reduz a participação do consumidor à sua aceitação global, em bloco, do
conteúdo da avença:
Considera-se de adesão o contrato que, nascido por força dirigismo econômico e da concentração de capitais em grandes empresas, em especial nos campos de seguros, fïnanciamentos bancários, vendas de imóveis, de bens duráveis e outros, tem a participação volitiva do consumidor reduzida à aceitação global de seu contexto, previamente definido e impresso, em modelos estandardizados, com cláusulas dispostas pelos fornecedores ou resultantes de regulamentação administrativa, ou da sua combinação.57
Extrai-se de imediato do texto um dos principais atributos do contrato de adesão,
que é justamente sua padronização. Trata-se de um modelo estandardizado, cujo
conteúdo é previamente elaborado pelo fornecedor, sem qualquer intervenção do
futuro partícipe da relação, ou seja, do consumidor, a denunciar a “[...] ausência de
uma fase pré-negocial decisiva. [...]”, como ensina Cláudia Lima Marques.58
Convém esclarecer, com Nélson Nery Júnior, que o contrato de adesão não é um
novo tipo contratual, nem categoria autônoma de contrato, “[...] mas somente técnica de
formação do contrato, que pode ser aplicada a qualquer categoria ou tipo contratual,
sempre que seja buscada a rapidez na conclusão do negócio, exigência das economias de
escala.”59 Faz-se necessário destacar as características desse contrato que, no escólio de
Cláudia Lima Marques, são: “1) a sua pré-elaboração unilateral; 2) a sua oferta uniforme e de
caráter geral, para um número ainda indeterminado de futuras relações contratuais; 3) seu modo
de aceitação, onde o consentimento se dá por simples adesão à vontade manifestada pelo parceiro
contratual economicamente mais forte.”60
Em razão do contrato de adesão ser ambiente favorável à inserção de cláusulas
abusivas por parte do fornecedor, a Lei Protetora impõe algumas exigências a serem
observadas pelo mesmo, quais sejam: o contrato de adesão escrito será obrigatoriamente
57 BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do consumidor: Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078, de 11 de
setembro de 1990). 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.61-62. 58 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.59. 59 NERY JÚNIOR, Nélson, op. cit., 2001, p.441-570, p.566. 60 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.60. As vantagens dos contratos de adesão apontadas por esta autora são
as seguintes: contratação rápida e facilitada, racionalização da transferência de bens de consumo na sociedade, possibilidade de previsão dos riscos por parte dos fornecedores e rapidez de sua adaptação a novas situações. Por outro lado, esse método de contratação é ambiente propício para a inclusão de cláusulas abusivas por parte do fornecedor. Ainda para esta autora, antes da adesão do consumidor não há contrato de adesão, mas simples “[...] oferta geral e potencial. O consentimento do consumidor, a sua adesão, é que provoca o nascimento do contrato, a concretização do vínculo contratual entre as partes.” MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.62, 64 e 65, sendo oportuno ressaltar que o artigo 424 do Código Civil de 2002 dispõe que “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.” BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008.
63
redigido em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, para facilitar a
compreensão do conteúdo da avença pelo consumidor, a quem cabe, com exclusividade, a
opção de resolução do instrumento que contemple cláusula resolutória expressa, ressalvada
a disposição do §2º do artigo 53 do CDC. Ademais, as cláusulas contratuais que importem
limitação de direito do consumidor devem ser redigidas com destaque, a fim de que o
vulnerável imediata e facilmente as compreenda, conforme estabelecido nos §§2º a 4º do
artigo 54 do CDC, que também informa que a inserção de cláusula contratual no formulário
não altera a natureza de adesão do contrato (54, §1º).61
Mas não é só, o contrato, de adesão ou não, não obrigará o consumidor se não lhe for
dada a oportunidade de tomar prévio conhecimento do conteúdo ou se o contrato for
redigido de forma a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance pelo consumidor, nos
moldes do artigo 46 da Lei Protetora. Ademais, as cláusulas contratuais em qualquer
contrato de consumo serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor, nos
termos do artigo seguinte do mesmo Diploma Legal.
Assim, é tarefa do fornecedor esclarecer e informar previamente o conteúdo do
instrumento ao consumidor, incluindo os ônus, encargos e riscos contratuais que o mesmo
apresenta, sob pena da inexistência de vínculo com o consumidor, conforme alerta Sheila
Leal, que reconhece que em muitos contratos – incluindo os bancários – falta um
consentimento esclarecido por parte do consumidor:
Ressalte-se que não é suficiente a leitura, pelo consumidor, do instrumento do contrato, incumbindo ao fornecedor o dever de esclarecê-lo e informá-lo previamente sobre o conteúdo do contrato, dirimindo dúvidas, alertando sobre os ônus e encargos contratuais e riscos, sob pena do contrato não criar vínculo contratual (artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor). É dever do fornecedor propiciar ao consumidor conhecimento detalhado e esclarecido de todos os direitos e deveres que decorrem do contrato, especialmente das cláusulas restritivas dos seus direitos, que devem vir redigidas em destaque (artigo 54, § 4a, do Código de Defesa do Consumidor), sob pena da não-obrigatoriedade em relação ao consumidor. Também, no artigo 52, aparece a exigência de informação prévia e adequada nos contratos de concessão de crédito. No dia-a-dia, quando da formação do vínculo contratual nos contratos de adesão, constata-se a falta de consentimento prévio e esclarecido, a exemplo dos contratos bancários, planos de saúde, seguro e outros, nos quais o consumidor, muitas vezes, sequer tem conhecimento do conteúdo contratual, não discute e não negocia os termos e as condições do contrato, limitando-se a aceitar em bloco as cláusulas uniformemente predispostas pelo fornecedor.62
No que diz respeito aos contratos que envolvam outorga de crédito ou concessão de
financiamento ao consumidor, há regras específicas a serem cumpridas pelos fornecedores, 61 Ibid., 2008. 62 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos, op. cit., 2007, p.72.
64
impostas pelo artigo 52, incisos e parágrafos do Código de Defesa do Consumidor. Desta
forma, é dever do fornecedor informar, dentre outros requisitos, prévia e adequadamente ao
consumidor sobre o preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional, montante
dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros praticada naquela relação, acréscimos
legalmente previstos, como valores a serem pagos pelos consumidores a título de tributo,
número e periodicidade das prestações e valor total a pagar, com e sem financiamento, pelo
consumidor, a quem é assegurado o desconto proporcional dos juros e demais acréscimos
em caso de liquidação antecipada, total ou parcial, do débito.63
Nestes termos, o Código de Defesa do Consumidor, afastando-se das amarras do direito
privado tradicional oriundos do liberalismo econômico, está cumprindo a missão constitucional
que lhe foi conferida, dispensando ao consumidor a mais ampla proteção e defesa.
63 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.
4 APLICABILIDADE DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
No presente capítulo, entrar-se-á no tema alienação fiduciária em garantia, contrato
que dá origem à propriedade fiduciária, que é direito real, eis que espécie do gênero
propriedade. Antes, contudo, de se falar da alienação fiduciária em garantia propriamente
dita, delimitar-se-ão os conceitos de negócio fiduciário e propriedade fiduciária, institutos
que precisam ser entendidos para que se possa responder adequadamente às questões
práticas que se apresentam no dia a dia.
4.1 Negócio fiduciário: conceito e validade
Renascido no direito moderno, o negócio fiduciário pode ser entendido como um tipo
de negócio jurídico inominado ou atípico em que as partes buscam alcançar uma finalidade
que não é a finalidade própria de transferência do negócio utilizado. Pontes de Miranda
assevera que “sempre que a transmissão tem um fim que não é a transmissão mesma, de
modo que ela serve a negócio jurídico que não é o da alienação àquele a quem se transmite,
diz-se que há fidúcia ou negócio fiduciário [...].” (Itálico no original).1
É, portanto, ínsita ao negócio fiduciário, como explica Luciano Penteado2, uma
relação de fidúcia, de confiança, entre as partes contratantes. Isto porque no negócio
fiduciário “[...] existe um aparente descompasso entre o ato realizado e o objetivo
perseguido [...]” e, por isso, valoriza-se a fidúcia, ou confiança, nesse tipo de negócio.3
1 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983a, v.III,
p.115-116. Segundo Arnaldo Rizzardo: “[...] existem negócios que, embora tecnicamente visem certos e determinados fins, os quais aparecem externa ou ostensivamente, na verdade objetivam finalidades outras, maiores, mais importantes, que superam os elementos técnicos [...].”RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas: Lei n° 10.406, de 10.01.2002. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.462.
2 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.441. 3 PEREIRA, Hélio do Valle. A nova alienação fiduciária em garantia – Aspectos processuais. 2. ed.
Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p.27.
66
Para melhor entender o assunto, providenciais e dignos de transcrição são os exemplos
trazidos por Hélio Valle, quando discorre sobre negócio fiduciário:
Tal ocorrerá, por exemplo, se for doado um bem a terceiro, tencionando as partes que, podendo administrá-lo por certo tempo, possa o donatário obter o pagamento de dívida até então existente. Firma-se o compromisso segundo o qual, passado determinado período, a propriedade retorne à titularidade primitiva. Identicamente, haverá o negócio fiduciário se ‘A’ ceda crédito a ‘B’, permitindo que ele exija o pagamento do devedor ‘C’. ‘A’ e ‘B’ ajustam, entretanto, que oitenta por cento do resultado seja transferido para o primeiro - o qual fizera a cessão porque reconhecera que ‘B’ era mais astucioso, além de superiores as chances de êxito na cobrança, ainda que houvesse o deságio relativo à comissão em prol do cessionário. Nos dois exemplos, as partes poderiam recorrer a outros negócios. No lugar da doação, poderia ser feito simples arrendamento; em vez de cessão de crédito, bastaria a outorga de procuração. No fundo, não havia propriamente interesse na doação ou na cessão de crédito (ainda que ambos os atos tivessem sido reais e efetivamente praticados): buscava-se, respectivamente, pagar uma dívida e remunerar uma prestação de serviços. Ocorre que podem ser inconvenientes essas medidas: a) o proprietário (donatário) teria mais liberdade para gerir o negócio; b) o cessionário, apresentando-se como titular do direito, contaria com maior poder de persuasão ante o devedor.4
Pelos exemplos transcritos, nota-se que o negócio fiduciário é fruto do
inconformismo do homem, vez que, não se sujeitando o indivíduo exclusivamente a lançar
mão do leque de negócios jurídicos típicos existentes, incapaz de atender a todas as suas
necessidades, pode o mesmo criar negócio(s) jurídico(s) que esteja(m) mais próximo(s) de
atender a seus interesses.
Aqui, uma questão aflora: quais os limites de validade do negócio fiduciário? A
resposta, embora tenha causado e ainda cause tanta discussão nos campos doutrinário e
jurisprudencial, é simples e positiva, desde que o negócio fiduciário obedeça aos requisitos
exigidos pelo artigo 104 do Código Civil. Vale dizer: sejam os contratantes capazes,
persigam objeto lícito, além de possível e determinado ou, pelo menos, determinável e
adotem forma não defesa em lei para o ato.5 Não se confunde o negócio fiduciário com o
negócio jurídico simulado6. Tampouco pode aquele ser confundido com o negócio indireto,
4 Ibid., 2008, p.27. 5 Ao deixar de ser válido porque alvo de abusos capazes de lhe expulsar da esfera da licitude, o negócio jurídico
não pode mais ser chamado de negócio fiduciário. Nesse sentido, os ensinamentos de Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, que consideram os negócios fiduciários “[...] válidos e sérios porque, adotados pelas partes no seu interesse próprio, de consecução de algum fim prático lícito, não afrontam a lei, não acrescentam indevidamente o patrimônio do fiduciário e não prejudicam direitos alheios”, razão pela qual “não podem ser confundidos com os negócios simulados [...].”RESTIFFE NETO, Paulo; RESTIFFE, Paulo Sérgio. Garantia fiduciária. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.28.
6 Sobre simulação, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho assim se manifestam: “Segundo noção amplamente aceita pela doutrina, na simulação celebra-se um negócio jurídico que tem aparência normal, mas que, na verdade, não pretende atingir o efeito que juridicamente devia produzir. É um defeito que não vicia a vontade do declarante, uma vez que este mancomuna-se de livre vontade com o declaratário para atingir fins espúrios, em detrimento da lei ou da própria sociedade [...].” (Destaques no roiginal). GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007b. v.I,
67
que, no entender de Oswaldo e Silvia Opitz, caracteriza-se pela realização do fim
econômico que as partes desejam. Ademais, “o negócio indireto tem por fim a realização
de um negócio real e não se funda na fidúcia.”7
Para Moreira Alves, ocorre negócio jurídico indireto “[...] quando as partes recorrem
a um negócio jurídico típico, sujeitando-se à sua disciplina formal e substancial, para
alcançar um fim prático ulterior [...], o qual não é normalmente atingido por meio desse
negócio [...].”8 De acordo com Ecio Perin Júnior9, existe negócio jurídico indireto “[...]
quando as partes recorrem a um negócio jurídico determinado para alcançar, consciente e
consensualmente, finalidades diferentes das que, em princípio, são típicas à sua disciplina
legal. Assim o negócio jurídico, através desse uso indireto, preenche novas funções.” Desta
forma, para ele, “o negócio jurídico indireto pode ser um negócio único ou resultar da
combinação de mais negócios, juridicamente distintos, embora economicamente conexos
[...].” Segundo Luciano Penteado:
O negócio indireto consiste em declaração negocial efetuada para obter fim oblíquo, diverso do típico e, ainda, diverso daquele que se declarou, sem que haja uma vontade oculta não manifestada socialmente. O fim indireto é declarado, mas obtém-se não através da declaração negocial em si, mas através da substância econômica da operação desempenhada. Assim, por exemplo, nas chamadas ‘renúncias translativas’, com a cláusula ‘em favor de’, nos autos de inventário, declara-se renúncia, mas o efeito é de doação. A doação, no caso, é indireta.10
Do exposto, compreende-se que há negócio jurídico indireto quando, por meio de um
negócio jurídico típico, as partes contratantes buscam alcançar finalidade diversa da
finalidade própria do negócio jurídico típico, mas igualmente lícita. Tudo para atender
melhor aos seus interesses, estes, via de regra, de ordem econômica.
Note-se que, diversamente do que ocorre com o negócio fiduciário, o negócio
indireto contém em si um negócio jurídico típico. Ademais, como observa Orlando Gomes,
p.371. Para Pontes de Miranda, o negócio fiduciário “não se confunde com o negócio jurídico simulado, porque o fim do negócio jurídico simulado foi querido, ao passo que, na fidúcia, se quer outro fim [...].” MIRANDA, Pontes, op. cit., 1983a, p.116.
7 OPITZ, Oswlado; OPITZ, Sílvia Carlinda Barbosa. Alienação fiduciária em garantia. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p.151.
8 ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.5. 9 PERIN JUNIOR, Ecio. O hedging e o contrato de hedge. Mercados futuros. Jus Navigandi, Teresina, ano 4,
n.41, maio 2000. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 26 ago. 2000. 10 PENTEADO, Luciano de Camargo, op. cit., 2008, p.440.
68
“[...] os negócios indiretos não constituem uma categoria jurídica, o que não ocorre com os
negócios fiduciários.”11
Alienação fiduciária em garantia e negócio fiduciário não se confundem. Importa
saber, contudo, se alienação fiduciária em garantia é ou não espécie de negócio fiduciário,
bem como se este instituto se origina ou não do negócio fiduciário de origem romana ou do
negócio fiduciário de origem germânica.
4.2 Conceito de alienação fiduciária em garantia
Orlando Gomes define alienação fiduciária, em sentido lato, como “[...] o negócio
jurídico pelo qual uma das partes adquire, em confiança, a propriedade de um bem,
obrigando-se a devolvê-la quando se verifique o acontecimento a que se tenha subordinado
tal obrigação, ou lhe seja pedida a restituição.”12 Para o autor, “[...] na alienação fiduciária
em garantia, também importa fundamentalmente o fator confiança, porquanto o alienante
permanece na posse do bem e se apresenta, aos olhos de todos, como seu proprietário, que
está a usá-lo. Se falta à confiança do financiador, deteriorando, por exemplo, o bem,
diminui a garantia” (destaque no original).”13
11 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p.26.
Semelhante o entendimento de Oswaldo e Sílvia Opitz quando afirmam “[...] que o negócio indireto não forma uma categoria própria a requerer uma disciplina específica [...].” OPITZ, Oswlado; OPITZ, Sílvia Carlinda Barbosa, op. cit., 1971, p.154.
12 GOMES, Orlando, op. cit., 1972, p.18. Caio Mário da Silva Pereira conceitua alienação fiduciária “[...] como a transferência, ao credor, do domínio e posse indireta de uma coisa, independentemente de sua tradição efetiva, em garantia do pagamento de obrigação a que acede, resolvendo-se o direito do adquirente com a solução da dívida garantida.” (Itálico no original). PEREIRA, Caio Mário, op. cit., 2002, p. 273. Já Fábio Ulhoa Coelho entende por alienação fiduciária “[...] aquele negócio em que uma das partes (fiduciante), proprietária de um bem, aliena-o em confiança para a outra (fiduciário), que, por sua vez, se obriga a devolver-lhe a propriedade do mesmo bem nas hipóteses previstas em contrato [...].” Destaca ainda esse autor a natureza instrumental do instituto, vez que “[...] ela é sempre um negócio-meio, vocacionado a criar condição para a realização do negócio-fim pretendido pelas partes. A função econômica do contrato, portanto, pode estar relacionada à viabilização da administração do bem alienado, da subseqüente transferência de domínio a terceiros ou, em sua modalidade mais usual, à garantia do pagamento de dívida do fiduciante em favor do fiduciário. Ainda segundo Fábio Ulhoa Coelho, a alienação fiduciária é gênero do qual é espécie a alienação fiduciária em garantia. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: de acordo com o novo Código Civil e a nova Lei de Falências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v.3, p.148. Para Arnaldo Rizzardo, a alienação fiduciária em garantia é “[...] um negócio fiduciário de garantia pelo qual o devedor transfere a favor do credor a propriedade de uma coisa móvel, permanecendo ele com a posse, e colocando-se na posição de depositário.” RIZZARDO, Arnaldo, op. cit., 2007, p.464. Registre-se, por oportuno, que Moreira Alves, distinguindo alienação fiduciária em garantia do negócio fiduciário de origem romana e germânica e do trust receipt, acaba por concluir que a alienação fiduciária em garantia, negócio jurídico típico que é, “[...] com a estrutura que se lhe deu no direito brasileiro [...]”, embora se aproxime do chattel mortgage, “[...] é instituto próprio do direito brasileiro, em cujo sistema - do qual, à primeira vista, parece aberrar - se ajusta dogmaticamente, já prestando amplo benefício como instrumento jurídico adequado à segurança do crédito.” ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.28 e 32.
13 Ibid., 1972, p.19.
69
Se a confiança a que alude Orlando Gomes se adapta bem à época em que fora
proferida a frase acima transcrita, não consegue a mesma se adaptar, sem qualquer ressalva,
à atualidade. Isto porque a experiência demonstrou que, muito embora o bem seja dado em
garantia da dívida contraída pelo devedor, este, geralmente, contrai a dívida justamente
para poder adquirir o próprio bem ofertado em garantia no contrato de alienação de
fiduciária. Desta forma, em que pese aparecer o devedor, aos olhos de todos, como
proprietário do bem que, fiduciariamente, alienou ao credor, sua intenção, em regra, é usar
e cuidar desse bem com o zelo de quem dele possui a plena propriedade, bem como pagar o
que deve ao credor, pois, uma vez quitada a dívida, a propriedade da coisa volta, total e
plenamente, a compor seu patrimônio (do devedor). Daí, conclui-se, a impropriedade de
falar-se em diminuição de garantia.14
Acresça-se a isso o fato de a Lei n° 4.728/65, que disciplina o mercado de capitais, ter
introduzido o instituto da alienação fiduciária em garantia no ordenamento pátrio para
incrementar o consumo. Tanto que o legislador ordinário se preocupou em admitir o
contrato de alienação fiduciária mesmo que o devedor ainda não tivesse a propriedade do
bem objeto do contrato (§3º do artigo 66), muito embora tenha, impropriamente, à posse se
referido. Tudo a deixar transparecer que o crédito obtido pelo devedor poderia
perfeitamente ser destinado à aquisição do bem que lhe serviria de posterior garantia da
dívida.15
A primeira questão a ser colocada quando se define alienação fiduciária em garantia
como um negócio fiduciário de garantia é saber se aquele instituto é realmente espécie de
negócio fiduciário. Conforme exposto anteriormente, o negócio fiduciário é negócio
jurídico atípico e lícito utilizado pelas partes para melhor atender aos seus interesses, vez
que nem sempre os negócios jurídicos típicos dispostos pelo ordenamento jurídico são,
nesse sentido, satisfatórios. Desta forma, não se pode, a rigor, considerar a alienação
fiduciária em garantia espécie de negócio fiduciário, mas apenas espécie de negócio
jurídico, mesmo que não tenha a mesma por fim a real transmissão da propriedade, mas
apenas dar o bem alienado em garantia da dívida contraída até o seu pagamento, quando
deverá a propriedade desse bem retornar ao patrimônio do devedor, eis que fora a alienação
14 Registre-se que na obra póstuma de Orlando Gomes é mantida a importância fundamental ao elemento
confiança com elação ao contrato de alienação fiduciária em garantia. GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. atualizada por Luiz Edson Fachin. Coordenado por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.388.
15 Fala-se aqui da redação primeira do artigo 66, antes, portanto, do advento do Decreto-lei n° 911/69 e, por óbvio, da Lei n° 10.931/2004.
70
fiduciária em garantia expressamente prevista pelo ordenamento jurídico pátrio, dele
extirpando o fator confiança.
Nem por isso o devedor fiduciante está desprotegido pela lei, haja vista ter o domínio
do bem, de que desfruta da posse direta, resolvido em seu favor quando da quitação da
dívida contraída, voltando o mesmo a integrar seu patrimônio, independentemente da
conduta do credor, e poder inclusive reivindicar a coisa de terceiro, desde que, claro, tenha
havido o necessário registro do contrato ou a devida anotação no certificado de registro do
bem pela repartição competente para seu licenciamento, quando se tratar de contrato de
alienação fiduciária em garantia que envolva veículo automotor.16
Ademais, tratando-se de contrato de alienação fiduciária em garantia que envolva
relação de consumo, ou seja, celebrado entre um fornecedor e um consumidor, que constitui
precisamente o objeto deste trabalho, a “confiança” deve ser simplesmente encarada como
risco do negócio. Nada mais, nada menos, haja vista não poder o fornecedor escolher seu
parceiro contratual, que deve ser aquele que atenda, em abstrato, aos requisitos exigidos na
oferta do fornecedor ao público, quais sejam: aptidão à concessão de crédito e capacidade
para pagamento da dívida, sob pena de incorrer em discriminação.
Alienação fiduciária em garantia nada mais é, portanto, que o contrato através do qual
o devedor, também chamado fiduciante, transfere, ao credor, a propriedade de um bem
16 O novel Código Civil não exige, para constituição da propriedade fiduciária, o registro do contrato de
alienação fiduciária em garantia no cartório de registro de títulos e documentos quando o mesmo versar sobre veículo automotor, sendo suficiente a anotação da alienação fiduciária no certificado do registro na repartição competente para o licenciamento, como se depreende de seu artigo 1.361, 1°. Sobre a questão ver MARQUES, Eugênio Cícero. Registro de alienação fiduciária em garantia constituída através de cédulas. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.58, ago. 2002. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2009; MACHADO, Renato Chagas. Considerações sobre a nova formalidade para constituição e formalização da alienação fiduciária de veículo automotor. Aplicabilidade do art. 1.361, § 1º, do novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.1076, 12 jun. 2006. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2009 e ARRUDA, Vanuza de Cássia. Alienação fiduciária de veículos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008. Esta última autora aponta o “[...] infeliz erro de redação [...]” do Código Civil quanto à abolição do registro do contrato de alienação fiduciária de veículo automotor no cartório de registro de títulos e documentos, o que fez em nome da vulnerabilidade do negócio jurídico de alienação fiduciária não registrado e em razão da alegada afronta à Lei n° 101/2000, “[...] que prevê sanção aos Estados e Municípios que abrirem mão de suas fontes de receitas, uma vez que é sabido que os Cartórios pagam diretamente aos cofres do Estado parte do valor cobrado ao usuário [...]”, ARRUDA, Vanuza de Cássia, op. cit., 2008, on line. Da referida posição discorda-se diametralmente, pois não se enxerga nem a vulnerabilidade do contrato de alienação fiduciária de veículo automotor não registrado no Registro de Títulos e Documentos, até porque é suficiente a anotação da alienação fiduciária no certificado do registro na repartição competente para o licenciamento, nem se entende terem os Estados e/ou Municípios aberto mão de receita neste caso especificamente. Sobre o assunto, ver recente decisão do Superior Tribunal de Justiça: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Registro em cartório do contrtato de alienação fiduciária de carro não oferece condição para transferir o bem. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/noticias>. Acesso em: 10 abr. 2008.
71
como garantia do pagamento da dívida perante este contraída, não a propriedade plena,
frise-se, mas a propriedade fiduciária, sendo o credor também denominado fiduciário.17
Assim entendido, o contrato de alienação fiduciária em garantia aqui estudado encerra, de
uma banda, obrigação de direito real, dada a transmissão da propriedade, ainda que
fiduciária, ao credor e, de outra banda, obrigação de cunho pessoal, em função da
obrigação de devolução da propriedade ao fiduciante pelo fiduciário, uma vez liquidada a
dívida por aquele.18
Largamente utilizado nas operações de crédito direto ao consumidor, o contrato de
alienação fiduciária em garantia tem por fim a transmissão da propriedade fiduciária ao
credor, que é imitido na posse indireta do bem, permanecendo o devedor na posse direta do
mesmo até a quitação da dívida contraída, oportunidade em que adquire a propriedade
plena do objeto (propriedade resolúvel).
4.3 Propriedade fiduciária
Propriedade fiduciária é uma espécie de propriedade que decorre do contrato de
alienação fiduciária em garantia, ou melhor, do registro desse instrumento no Registro de
Títulos e Documentos ou, em se tratando de veículo automotor – e esse é o caso do
presente estudo – do registro da propriedade fiduciária na repartição competente para o
licenciamento do bem, a quem incumbe fazer a anotação no certificado de registro do
mesmo, nos termos prescritos pelo § 1º do artigo 1361 do novel Código Civil.
17 Ressalte-se que o contrato de alienação fiduciária em garantia é um contrato solene ou formal, vez que a lei
determina assuma o mesmo forma escrita, por instrumento público ou particular, como se depreende do disposto no §1º do artigo 1361 do CC/2002.
18 Raphael Manhães aponta as seguintes características do contrato de alienação fiduciária em garantia: “(i) natureza real, isto é, existe a transferência da propriedade ou do direito do bem alienado e, junto com isto, todos os direitos e deveres inerentes a um direito real; (ii) natureza obrigacional, ou seja, se configura uma obrigação ao fiduciário (o adquirente) de, após cumprida a obrigação que deu causa à alienação fiduciária, restituir a propriedade do bem ao fiduciante (transmitente ou alienante); (iii) bilateralidade, por gerar obrigações tanto para o adquirente como para o alienante; (iv) onerosidade, porque o fim deste contrato é gerar ganhos para ambos os contratantes; (v) acessoriedade, uma vez que sua existência jurídica sujeita-se à uma obrigação a priori, cuja sorte lhe segue; e (vi) formalidade, porque há de constar sempre de instrumento escrito, seja público ou particular. MARTINS, Raphael Manhães. A alienação fiduciária em garantia de acordo com uma perspectiva civil-constitucional.” Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 425, 5 set. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 14 ago. 2008. No que diz respeito ao caráter acessório do contrato de alienação fiduciária em garantia, Moreira Alves é enfático ao dizer que “[...] é a alienação fiduciária contrato acessório daquele de que decorre o crédito que a propriedade fiduciária visa a garantir.” Já a propriedade fiduciária é “[...] direito acessório por natureza, porquanto se destina a assegurar a satisfação do direito de crédito, que é o principal [...].”ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.65 e 124. Lembre-se que o contrato de alienação fiduciária em garantia não se reduz às coisas móveis, haja vista a Lei nº 9514, de 20 de novembro de 1997, ter instituído a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel, tema que não faz parte desta dissertação.
72
Constitui a propriedade fiduciária garantia real, haja vista destinar-se a garantir o
cumprimento de uma obrigação e, por ser “[...] constituída com a precípua finalidade de
assegurar o cumprimento de obrigação, que, em geral, corresponde à satisfação de um
crédito, que é o principal [...]”, trata-se a propriedade fiduciária de direito acessório, como
ensina Melhim Chalhub.19
De acordo com Moreira Alves, não é a propriedade fiduciária decorrente da alienação
fiduciária em garantia propriedade plena, como não é também propriedade limitada pela
aposição de condição resolutiva, eis que se qualifica como direito real típico, criado por lei
“[...] para atender, especificamente, a determinada necessidade de ordem econômica [...]”, e
apenas pode ser utilizado para fins de garantia exatamente como previsto pela lei. Mesmo
que a lei expressamente declare ser a propriedade fiduciária resolúvel, esta, por suas
particularidades, “[...] não se enquadra na categoria dogmática da propriedade resolúvel nos
moldes em que ela se apresenta disciplinada [...]” pelo Código Civil. Isto porque a condição
resolutiva da propriedade resolúvel propriamente dita, disciplinada nos artigos 1359 e 1360
do Código Civil de 2002, deriva exclusivamente da vontade das partes, conforme se pode
observar do artigo 121 desse mesmo Diploma Legal, enquanto a condição resolutiva da
propriedade fiduciária se dá ex vi legis. Diante dessa singularidade, razão assiste a Moreira
Alves quando afirma que a propriedade fiduciária “[...] é uma nova espécie de propriedade
limitada, a par daquelas [...] que o são, ou por terem ônus real, ou por serem resolúveis”,
sendo oportuno aclarar que o autor refere-se aqui à condição resolutiva propriamente dita, ou
seja, aquela decorrente exclusivamente da vontade das partes, quando a limitação à
propriedade fiduciária decorre da vontade do legislador. Para o autor:
[...] enquanto não se vence o débito, pendente condicione juris, o proprietário fiduciário não desfruta de todas as faculdades jurídicas que se contêm na propriedade plena, porque é da essência da propriedade fiduciária o desdobramento da posse, ficando o devedor como possuidor direto, e podendo usar e tirar os furtos da coisa alienada em garantia;
19 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Não se confunde,
portanto, a propriedade fiduciária “[...] com a propriedade que, em virtude do negócio fiduciário, se transmite ao credor com escopo de garantia (e que os autores, em geral, também denominam propriedade fiduciária), nem com qualquer dos direitos reais limitados de garantia (penhor, anticrese ou hipoteca) [...] pois, nestes, seu titular não é proprietário da coisa dada em garantia, ao contrário do que sucede com o titular da propriedade fiduciária, que tem, sobre a coisa que garante o pagamento do débito, direito de propriedade, embora limitado. Nos direitos reais limitados de garantia – o que não se verifica com a propriedade fiduciária – há, em regra, de um lado o proprietário da coisa dada em garantia (o que somente não ocorre se ela se tornar res nullis) e, de outro lado, o credor que é, apenas, titular do penhor, da anticrese ou da hipoteca (conforme o caso) sobre coisa alheia.” (Itálico no original). ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.113 e 116. Já quando se trata de negócio fiduciário, diga-se que ao credor é transmitida a propriedade plena e não limitada. Logo, aqui não se cogita de propriedade fiduciária.
73
ademais [...] o proprietário fiduciário somente pode transferir seu domínio se ceder ao adquirente o crédito cuja satisfação a propriedade fiduciária garante.20
Com efeito, a propriedade fiduciária vem disciplinada no Capítulo IX do novel
Código Civil, artigos 1361 a 1368, logo após o capítulo que trata da propriedade resolúvel,
a revelar a distinção feita pelo legislador ordinário entre a propriedade resolúvel
propriamente dita, típica, e a propriedade resolúvel decorrente do contrato de alienação
fiduciária em garantia.21 Assim, nos termos do Código Civil, é considerada fiduciária a
propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, para fins de garantia,
transfere ao credor e, uma vez constituída essa propriedade, dá-se o desdobramento da
posse, tornando-se o devedor possuidor direto do bem e depositário do mesmo até o
pagamento da dívida. Aqui, duas questões de imediato brotam: 1ª) O fato de ser o devedor
depositário do bem dado em garantia lhe sujeita à prisão como depositário infiel quando
não possui mais o bem e não pagou o valor devido ao credor? 2ª) O fato de haver apenas o
desdobramento da posse – e não da propriedade – impede o devedor de ofertar esse bem
em garantia de outra dívida?
À primeira das questões tentar-se-á responder em outro momento deste trabalho, mais
precisamente quando se abordar a possibilidade ou não da prisão civil do devedor
equiparado, por lei, a depositário. Já para responder ao segundo questionamento, impõe
antes analisar-se a posição que ocupa o devedor no contrato de alienação fiduciária em
garantia em relação à propriedade do bem dado em garantia da dívida contraída. Terá ele
mera expectativa de direito ou será titular de direito expectativo?
Antes de tudo, convém relembrar que, uma vez saldada a dívida pelo fiduciante, a
propriedade fiduciária retorna, plena, ao seu patrimônio. Isto torna o devedor, sem sombra
de dúvidas, titular de direito expectativo. Nessa senda, a opinião de Moreira Alves, para
quem o alienante (fiduciante) é titular de direito expectativo que se consubstancia na
recuperação da propriedade, que é também direito real. São suas palavras: “[...] o
expectante é titular de direito expectativo à aquisição da propriedade, que é o direito
20 Ibid., 1979, p.115, 120 e 121. 21 Esclareça-se, por oportuno, que também não se confunde a propriedade fiduciária oriunda do contrato de
alienação fiduciária em garantia nem com a compra e venda com reserva de domínio, nem com a compra e venda com pacto de retrovenda. Sobre o assunto, consultar DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v.3, p. 199 e 190. Apesar de haver mais de uma diferença entre os três institutos, é suficiente para diferenciá-los o simples fato de que na propriedade fiduciária serve a coisa para garantir o pagamento de uma dívida porque assim determina a lei. Já sobre os demais institutos pende condição resolutiva ou suspensiva porque acordado entre as partes.
74
expectado.” E continua: “seu direito expectativo à recuperação da propriedade é direito real
[...]”, eis que ambos, direito expectativo e direito expectado, possuem a mesma natureza.22
A Pontes de Miranda atribui-se não apenas a expressão direito expectativo, mas o
sentido que este possui e o que o diferencia da expectativa de direito. Para Pontes de
Miranda, o que diferencia o direito expectativo da expectativa de direito é a probabilidade,
a chance de concretização de um e de outro, vez que ambos ainda se situam no mundo dos
fatos. Isto porque “[...] todos os direitos ainda não adquiridos, ainda não formados, não
existem. Porém há diferença de probabilidade de virem a existir e, a juízo do titular futuro,
são bem próximos de existência, de surgimento, aqueles cuja formação só depende de ato
seu [...].”23
Para esse autor, o direito expectativo, malgrado ainda não tenha atravessado a linha
que dá acesso ao mundo jurídico, não é tão dependente do fático. Por isto, “[...] nem seria
possível pensar-se, razoavelmente, em direito expectativo, cabendo, ainda, tanta insegurança,
tanta dependência do fáctico [...].” Uma maior segurança traduzida pela maior proximidade
de ingresso no mundo jurídico diferencia o titular de direito expectativo de quem apenas
possui expectativa de direito, pois aqui, ao revés, espera-se totalmente no mundo fático,
vez que “expectativa é fato fora do mundo jurídico.”, só havendo “[...] expectativa simples
se o suporte fáctico não entrou no mundo jurídico [...].”24
22 ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.131. Com este entendimento, com razão, Moreira Alves rechaça
as teses de ter o alienante apenas expectativa de direito ou ser ele proprietário sob condição suspensiva, conforme afirma Orlando Gomes, nos seguintes termos: “[...] divisa-se, na alienação fiduciária em garantia, uma duplicidade, porquanto, por esse negócio jurídico, o fiduciário adquire uma propriedade limitada, sub conditionis, a denominada propriedade resolúvel. Ele passa a ser proprietário sob condição resolutiva e o fiduciante, que a transmitiu, proprietário sob condição suspensiva. Bem é de se ver que, nesta qualidade, o fiduciante não tem propriedade atual do bem transferido, mas simples expectativa de direito, a ser convertida em direito adquirido tão-logo pague a dívida [...].” (Itálicos no original). GOMES, Orlando, op. cit., 1972, p.38. Ora, a condição resolutiva inerente à propriedade fiduciária ocorre ex vi legis, o que a distancia da condição propriamente dita, que decorre exclusivamente da vontade das partes, não cabendo falar em condição suspensiva se a lei nada dispôs a esse respeito e, neste tipo de contrato, não há, nesse tocante, espaço para o arbítrio das partes. Nesse sentido, Pontes de Miranda esclarece que “condições e condiciones iuris são referentes a acontecimentos futuros. Mas, enquanto as condições, em sentido próprio, são postas pelo manifestante ou pelos manifestantes da vontade, as condiciones iuris são-no pela lei [...].” MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983b. v.V, p.111. E mais, pendente condição suspensiva, há igualmente direito expectativo e não apenas expectativa de direito, como ensina Pontes de Miranda, que assim se manifesta: “[...] o direito expectativo, em caso de condição suspensiva, é direito a adquirir, ipso iure, outro direito, ao se cumprir a condição [...].” Mas não é só, para este autor, “o direito expectativo é direito como outro qualquer. Não cabe dizer-se que é expectativa que se há de tratar como direito [...].” Ibid., 1983b, p.174. Ressalte-se, contudo, que mesmo não aludindo a lei à condição suspensiva que penderia sobre a propriedade do alienante, nada obsta que se lhe dê um tratamento semelhante, atribuindo ao fiduciante o direito expectativo à recuperação da propriedade plena do bem que deu em garantia da dívida contraída.
23 MIRANDA, Pontes de, op. cit., 1983b, p.282. 24 Ibid., 1983b, p.290, 291 e 296.
75
Ademais, ao contrário do que ocorre com o titular do direito expectativo, a quem
possui apenas expectativa de direito não assiste tutela jurídica alguma dessa expectativa,
manifestando-se Pontes de Miranda da seguinte forma:
[...] o titular do direito expectativo já tem ‘direito’, a tutela desse direito, a ação, quiçá exceções: a expectação é atitude que se enche, aí, de certeza, ou, pelo menos, de extrema probabilidade[...]. [...] [...] O suporte fáctico da expectativa é incompleto: no lugar em que haveria de estar certo fato, está, tão-só, a previsão de tal fato. Ao sujeito da expectativa, ao que, de fato, espera não está reconhecida nenhuma atividade, concernente ao que ele espera; nenhuma iniciativa, nenhuma tutela jurídica, se alguém nega ou se opõe ao que é previsão do expectante; nenhum ato de disposição, a respeito da expectativa, entraria no mundo jurídico. Não há credor, nem devedor; nem titular de gozo ou de uso, nem a totalidade dos sujeitos é adstrita a abster-se de negar a previsão, ou pretender que a eles, ou a qualquer deles, caiba a expectativa.[...]. (Itálico no original).25
Tudo isso leva Pontes de Miranda a concluir que: “a expectativa passa-se no foro
psíquico, individual, do promitente-comprador, titular do direito à compra-e-venda, e não
no mundo dos direitos, que é objetivo-subjetivo social,” vez que “as expectativas são,
certamente, expectativas de direitos; não são direitos [...].” Já o direito expectativo é aquele
“[...] que vai nascer, porque já existe direito [...]”. Basta, para tanto, a realização da
condição, quando nasce o direito expectado. O titular do direito expectativo, portanto, “[...]
tem direito a esperar [...].” Aqui existe vínculo. “[...] O titular do direito expectativo é pré-
titular do direito expectado [...].” (Itálicos no original).26
Desta forma, o titular do direito expectativo, no escólio de Pontes de Miranda, pode
dele dispor. O direito expectativo, então, “[...] é transferível, empenhável (caucionável),
arrestável, penhorável e herdável (salvo condição de vida); bem como suscetível de ser
garantido por fiança, hipoteca e penhor [...].”27 Tanto isso é verdade que o direito
expectativo ou direito eventual, veio tratado pelo artigo 121 do Código Civil de 1916 e pelo
artigo 130 da nova Lei Civil, nos seguintes termos: “ao titular do direito eventual, nos
casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a
conservá-lo”, convindo esclarecer que a diferença entre o artigo da lei de antanho e o da
atual consiste no fato desta ter acrescido a condição resolutiva, pois o artigo do Código
revogado fazia alusão apenas à condição suspensiva.28
25 Ibid., 1983b, p.297. 26 Ibid., 1983b, p.284, 285, 137, 135, 287 e 286. 27 Ibid., 1983b, p.175. 28 BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008.
76
Conclua-se esse questionamento, dizendo que o fato de o devedor, no contrato de
alienação de fiduciária em garantia, ter apenas a posse direta – e não a propriedade – do
bem cuja propriedade fiduciária foi transferida ao credor não o impede de oferecer seu
direito à propriedade desse bem em garantia de outra dívida, ofertando-o à penhora em
ação executiva, por exemplo.
Não se chegue, contudo, à apressada e insensata conclusão de que o devedor pode
prejudicar os direitos do credor fiduciário. Na realidade, isto jamais poderá ocorrer porque
o fiduciante não pode dar o próprio bem objeto de alienação fiduciária em garantia de outra
dívida, mas apenas o direito expectativo de que é titular, que é a propriedade. Assim, se o
devedor, em ação de execução fundada em dívida diversa da existente no contrato de
alienação fiduciária em garantia, faz menção de oferecer à penhora o bem sob o qual pende
a garantia fiduciária, está ele apenas ofertando seu direito expectativo à propriedade plena
daquele bem, a ser objeto de alienação posterior somente se e quando adquirida por ele a
propriedade plena do mesmo, restando os direitos do credor fiduciário devidamente
preservados, até porque permanece o fiduciante na posse do bem cujo direito expectativo à
propriedade futura fora à penhora ofertado.
Não é pacífico o entendimento dos Tribunais pátrios sobre a questão, quiçá porque
alguns ainda não se aperceberam da posição de titular de direito expectativo que desfruta o
fiduciante no contrato de alienação fiduciária em garantia, sendo perfeitamente possível a
penhora de direitos, nos termos do artigo 655, XI, do Código de Ritos, inciso acrescido
pela Lei n° 11.382, de 7 de dezembro de 2006.29
4.4 Legislação aplicável à alienação fiduciária
Antes de indicar, em breve síntese, a atual legislação aplicável à alienação fiduciária
em garantia30, pelo menos a que se relaciona mais diretamente ao teor desta dissertação,
convém ressaltar que o instituto da alienação fiduciária em garantia ingressou no
29 Sobre o assunto, veja-se as decisões: BRASIL. Recurso Especial n° 626.999/SC – Santa Catarina. Segunda
Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. João Otávio de Noronha. Julgado em 12 dez. 2006. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 19 ago. 2008; BRASIL. Recurso Especial n° 910.207/MG – Minas Gerais. Segunda Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Castro Meira. Julgado em 09 out. 2007. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 19 ago. 2008 e RIO GRANDE DO SUL. Agravo de Instrumento nº 70025738840, Décima Sexta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Paulo Sérgio Scarparo. Julgado em 15 ago. 2008. Disponível em: <www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008.
30 Paulo Resttife Neto e Paulo Sérgio Restiffe relacionam de forma ampla as normas que regem a alienação fiduciária em garantia. Ibid., 2000, p.34-47.
77
ordenamento jurídico nacional com a Lei de Mercado de Capitais, Lei n° 4.728, de 14 de
julho de 1965, tratada que foi pela Seção XIV, artigo 66. Referida lei, no escólio de Maria
Helena Diniz, adotara “[...] esse instituto jurídico para atender aos reclamos da política de
crédito [...] com o escopo precípuo de melhorar vantajosamente as operações de crédito e
de financiar a aquisição de certos bens de consumo [...].”31 Isto porque não adiantaria em
nada estimular o crédito sem criar um instituto jurídico capaz de atender, de forma segura,
aos interesses do credor prejudicado pelo inadimplemento do débito por parte do devedor,
dada a insuficiência das garantias clássicas previstas pelo direito brasileiro.32
Pouco tempo de prática, contudo, foi suficiente para se perceber que apesar de o
instituto da alienação fiduciária em garantia trazer segurança ao credor, este não contava
com instrumentos processuais ágeis para entrar na posse direta do bem rapidamente se o
devedor não lhe entregasse, sponte sua, o bem fiduciariamente alienado quando do
inadimplemento da obrigação pecuniária por ele assumida, dada a polêmica causada pela
imprecisão dos termos do §2º do artigo 66 da Lei de Mercado de Capitais, que dispunha
continuar o devedor a possuir o bem em nome do adquirente, a suscitar discussão a respeito
da ação judicial cabível – se reintegração de posse ou imissão na posse, uma vez que a ação
reivindicatória, indiscutivelmente cabível, por ser ordinária, não permitia, de forma célere,
a recuperação do capital envolvido na transação, imprescindível à movimentação do
negócio do credor.
Já a ação de busca e apreensão, da forma como prevista pelo Código de Processo
Civil, também não se prestava a atender a contento os interesses do credor fiduciário em
razão de demandar o futuro ingresso de ação principal, o que foi suficiente para fazer cair
em desuso o instituto da alienação fiduciária em garantia, razão pela qual os Ministros da
Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar resolveram estabelecer o Decreto-
lei n° 911, datado de 1º de outubro de 1969, alterando o instituto da alienação fiduciária em
garantia na sua forma material e processual, introduzindo, neste campo, uma ação de busca
e apreensão autônoma independente, inclusive de qualquer procedimento ulterior por parte
do credor fiduciário. Tudo, é certo, para atender aos interesses do credor fiduciário.33
31 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v.4, p.583. 32 As clássicas garantias a que se refere são: penhor, hipoteca e anticrese. 33 Toda essa polêmica é noticiada com riqueza de detalhes por Moreira Alves. ALVES, José Carlos Moreira, op.
cit., 1979, p.10-14.
78
Hélio Valle traz o seguinte quadro normativo atual do instituto da alienação fiduciária
em garantia:
a) arts. 1.361 a 1.368-A do Código Civil, os quais disciplinam a propriedade fiduciária de bens móveis, aplicando-se genericamente a todos os contratos de alienação fiduciária em garantia, ressalvada norma especial; b) art. 66-B da Lei 4.728/66 (na redação da Lei 10.931/2004), que define os contornos de direito material para a alienação fiduciária celebrada no âmbito do mercado financeiro (de sorte que o Código Civil apenas se aplique subsidiaria-mente); c) arts. 2° a 8°-A do Decreto-lei 911/69 (o art. 1° se limitara a dar nova redação ao art. 66 da Lei 4.728/65, hoje revogado), que se dedicam especialmente aos contornos processuais dos contratos de alienação fiduciária em garantia firmados no âmbito do mercado financeiro; d) arts. 22 e ss. da Lei 9.541 /97, vinculada à alienação fiduciária em garantia de imóveis, tanto na parte material quanto processual. (Destaque no original)34
Convém questionar se não deve também o Código de Defesa do Consumidor ser
citado na legislação aplicável ao instituto da alienação fiduciária em garantia por haver
legislação específica definidora dos contornos materiais da alienação fiduciária em garantia
realizada no âmbito do mercado financeiro. Fala-se mais precisamente do artigo 66-B da
Lei n° 4.728/66, na redação que lhe fora dada pela Lei n° 10.931/2004, lei que é posterior
ao Código de Consumo, e que faz referência apenas ao Código Civil de 2002, cuja
aplicação subsidiária é ressaltada e naquilo, certamente, que não for incompatível com o
estabelecido pela lei especial. Trata-se, enfim, de saber se o Código de Defesa do
Consumidor é aplicável principalmente como regra geral definidora da conduta das partes
antes, durante e após a contratação, incluindo a questão relativa às práticas e cláusulas
contratuais abusivas porventura impostas pelo fornecedor ao consumidor.35
Há quem sustente ainda nos dias de hoje a impossibilidade de aplicação do Código de
Defesa do Consumidor aos contratos de alienação fiduciária em garantia. É o caso de
Márcio Assumpção, que assim se manifesta:
[...] sustentamos que nos contratos de mútuo com alienação fiduciária o objeto do contrato principal (mútuo), que é o dinheiro, não pode ser classificado como consumível pelo
34 PEREIRA, Hélio Valle, op. cit., 2008, p.25. Alerta referido autor ainda para o fato de existirem “[...] outras
normas que esparsamente fazem menção à alienação fiduciária, como os arts. 27 e 28 do Decreto-lei 413/69 (títulos de crédito industrial), 148 a 152 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86), 40, 100 e 113 da Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações, 22 e 23 da Lei 4.864/65 (que criou estímulos à construção civil) e 7º a 11 da Lei 8.668/93 (Fundo de Investimento Imobiliário), além de várias passagens existentes na Lei 10.931/2004 [...]” Ibid., 2008, p.25-26.
35 Não se enfrentará a questão sobre antinomias porventura ocorridas entre lei específica sobre determinada relação de consumo e o Código de Defesa do Consumidor, que é uma lei principiológica, porque tal discussão extrapolaria, em muito, os limites deste trabalho, muito embora se entenda prevalecer, em caso de choque, o Código de Defesa do Consumidor, mesmo em sendo este Diploma legal lei geral frente a uma lei específica sobre a matéria.
79
devedor fiduciante, na medida em que deverá este mesmo dinheiro ser devolvido, pelo devedor fiduciante ao credor fiduciário, com os encargos pactuados no contrato, como forma de resolução da propriedade fiduciária e retomada do domínio do bem pelo devedor fiduciante. E, especificamente quanto à constituição da alienação fiduciária, na qualidade de venda com escopo de garantia, esse instituto não se amolda ao conceito quer de produto, quer de serviço. Daí a não-incidência das regras consumeristas à alienação fiduciária em garantia. (sic).36
E complementa: “as disposições do Código do Consumidor não se aplicam
indiscriminadamente aos contratos de alienação fiduciária (JTA 164/407) [...]”, porque
“[...] as relações entre as partes se perfazem em um contrato de abertura de crédito em
dinheiro, com a garantia da alienação fiduciária de um bem, em geral adquirido por
terceiro.”37 O autor advoga, portanto, a tese de jamais poder o contrato de mútuo ser
qualificado como contrato de consumo porque o dinheiro não pode ser consumido pelo
fiduciante, que deverá devolver “este mesmo dinheiro” ao credor fiduciário. Ora, apesar de
o consumidor não poder ser o destinatário final do produto dinheiro (ou crédito) que é o
“carro-chefe” dos fornecedores qualificados como instituições bancárias, ele o será do
produto (ou serviço) adquirido com o dinheiro obtido no banco, como ensina Nélson Nery
Júnior:
O aspecto central da problemática da consideração das atividades bancárias como sendo relações jurídicas de consumo reside na finalidade dos contratos realizados com os bancos. Havendo a outorga do dinheiro ou do crédito para que o devedor o utilize como destinatário final, há a relação de consumo que enseja a aplicação dos dispositivos do CDC. Caso o devedor tome dinheiro ou crédito emprestado do banco para repassá-lo, não será destinatário final e, portanto, não há que se falar em relação de consumo [...]. O problema maior parece ocorrer com os contratos de mútuo e de abertura de crédito rotativo em conta de depósitos (tipo ‘cheque especial’), já que se poderia objetar sua caracterização como relação de consumo, porque o dinheiro vai ser gasto pelo devedor, que não seria, assim, consumidor no sentido do Código. Esse entendimento não pode ser aceito por ferir princípio básico de hermenêutica: o de que nenhuma interpretação pode conduzir ao absurdo. Seria despropositado entender-se que o consumidor devesse ficar eternamente com o dinheiro emprestado do banco, colocando-o debaixo do colchão, para que pudesse ser considerado consumidor do crédito bancário. (Itálico no original).38
Não se pode olvidar, ademais, que o contrato de alienação fiduciária em garantia
celebrado no campo das relações de consumo é um contrato complexo, eis que envolve, no
mínimo, três pessoas e dois contratos, que são entre elas celebrados. Envolvendo três
pessoas, ao menos duas delas ostentam a qualidade de fornecedor. Exemplifica-se: uma
pessoa deseja adquirir um veículo, por exemplo, mas por não dispor de numerário
36 Esse comentário encontra-se inserto em nota de rodapé. ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de. Ação de busca e
apreensão: alienação fiduciária. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.15. 37 Ibid., 2006, p.16. 38 NERY JÚNIOR, Nelson. Art.46-54. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001, p.441-570, p.472-474.
80
suficiente para fazê-lo à vista, procura uma loja que lhe possibilite o pagamento desse bem
a prestação. Essa loja (vendedor), contudo, não possui sistema de crediário próprio, mas
trabalha juntamente com uma (ou mais) instituição(ões) financeira(s), que financia o bem
para o adquirente, vale dizer, empresta-lhe quantia suficiente à aquisição desse bem e,
como garantia do pagamento do mútuo levantado, aquele adquirente dá o bem adquirido
como garantia do pagamento da dívida contraída. Assim, tem-se um contrato de compra e
venda que se passa entre a loja (vendedor) e o adquirente do veículo e outro contrato, desta
feita havido entre a financeira e o adquirente do bem.
Referidos contratos estão, sem dúvida, ligados entre si, a revelar, como ensina
Cláudia Lima Marques, “[...] um fenômeno econômico de organização do modo de
produção e distribuição [...] envolvendo grande número de atores que unem esforços e
atividades para uma finalidade comum, qual seja a de poder oferecer no mercado produtos
e serviços para os consumidores [...].” E prossegue, afirmando que: “o consumidor muitas
vezes não visualiza a presença de vários fornecedores, diretos e indiretos, na sua relação de
consumo, sequer tem consciência [...] que mantém relação contratual com todos [...].”
Ademais, para essa autora, a nova teoria contratual, além de permitir a visão de conjunto do
esforço do fornecedor econômico de fornecimento, a valoriza, responsabilizando
solidariamente os fornecedores que se dedicam a “[...] organizar e realizar o fornecimento
de produtos e serviços”, arrematando no sentido de não importar o tipo de relação, se direta
ou indireta, contratual ou extracontratual, do fornecedor com o consumidor.39
Nestes termos, Cláudia Lima Marques, com razão, sustenta que quando há relações
contratuais tão conexas, essenciais, interdependentes e complexas, sendo impossível
distingui-las, realizar uma sem a outra, deixar de realizá-las ou separá-las, como ocorre na
alienação fiduciária em garantia, acresça-se, se uma das atividades, ou fins, é de consumo,
a outra, ou outras relações, restam por esta contaminadas, tornando-se relação de consumo.
No caso específico da alienação fiduciária em garantia, há um grupo de contratos, ou seja,
“contratos vários que incidem de forma paralela e cooperativa para a realização do mesmo
fim [...]”, onde “[...] cada contrato [...] tem um objetivo diferente [...] mas concorrem para
um mesmo objetivo [...] e somente unidos podem prestar adequadamente”, como explica
Cláudia Lima Marques.40
39 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.334-335. 40 Ibid., 2002, p.341 e 343.
81
De fato, ao consumidor apenas importa a aquisição do veículo (o contrato de compra
e venda), mas se esta aquisição (ou contrato de compra e venda) apenas pode se realizar se
atrelada a um contrato de financiamento, celebra ele os dois contratos, que, por sua vez,
concorrem para um mesmo fim, tornando-se de consumo se o adquirente for o destinatário
final do produto veículo, o que enseja a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. No
caso do exemplo dado, que envolve alienação fiduciária em garantia, têm-se dois
fornecedores, partes fortes da relação, que agem profissionalmente, e um consumidor
destinatário final do bem, parte frágil, que ficaria desprotegida se negada lhe fosse a
aplicação, à relação vertente, do Código de Defesa do Consumidor, cuja função precípua é
promover o equilíbrio das partes envolvidas na relação de consumo, dispensando a
necessária proteção ao vulnerável. Demais, dispõe o artigo 29 da Lei Protetora que: “para
os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas
determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”, sendo oportuno relembrar que
este capítulo e os seguintes tratam da oferta, publicidade, práticas abusivas, cobrança de
dívidas, bancos de dados e cadastros de consumidores, proteção contratual, cláusulas
abusivas e contratos de adesão.41
Os Tribunais pátrios, inclusive o Superior Tribunal de Justiça, aplicam o Código de
Defesa do Consumidor aos contratos de alienação fiduciária em garantia quando presentes
os personagens exigidos para a configuração da relação de consumo.42 O próprio Código de
Defesa do Consumidor traz dispositivo específico acerca dos contratos de alienação
fiduciária em garantia, a indicar sua aplicação quando presente a relação de consumo,
como se depreende de seu artigo 53 e §3º:
Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado. [...] § 3° Os contratos de que trata o caput deste artigo serão expressos em moeda corrente nacional.43
41 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. 42 Para tanto, examine-se a seguinte decisão: BRASIL. AgRg no REsp nº 992.272/RS – Rio Grande do Sul.
Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12 ago. 2008. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2008.
43 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.
82
Ressalte-se ainda que aludidos dispositivos nem de longe se chocam com o disposto
na legislação específica da alienação fiduciária em garantia celebrada no âmbito do
mercado financeiro, seja em razão da lei especial nada prever acerca do contrato de
alienação fiduciária poder utilizar moeda diversa da moeda corrente nacional, seja em
razão da expressa determinação constante no §3º do artigo 66-B da lei especial (Lei de
Mercado de Capitais) de devolução, se houver, do saldo credor ao fiduciante após a venda
de excussão do bem.
Desta forma, o quadro sinóptico da atual legislação aplicável ao instituto da alienação
fiduciária em garantia que tem pertinência com o tema abordado nesta obra é o seguinte:
a) Lei 4.728/66, com a redação determinada pela Lei 10.931/2004: artigo 66-B; b) Código de Defesa do Consumidor, e; c) Código Civil: artigos 1361 a 1368-A, 1421, 1425, 1435 e 1436, conforme expressamente aludido pela Lei n° 10.931/2004 e demais dispositivos gerais aplicáveis ao contrato de alienação fiduciária em garantia que não se choque com a legislação especial, inclusive o Código de Defesa do Consumidor, em razão de sua aplicação exclusivamente subsidiária.
Suprimiram-se as refências à Lei n° 9.541/97, por dizer respeito tão somente à
alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, e ao Decreto-lei n° 911/69 porque ainda
não se examinou sua (in)constitucionalidade ou (não) recepção, assunto que será apreciado
no capítulo quinto. Com relação ao disposto no artigo 53 da Lei de Consumo e ao teor do
§3º do artigo 66-B da Lei de Mercado de Capitais, serão eles objeto de melhor apreciação
no capítulo que se segue, no qual tratar-se-á dos direitos e deveres do devedor fiduciante
inadimplente, incluindo a parte processual aplicável ao instituto e a venda de excussão do
bem por parte do credor fiduciário.
5 ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE VEÍCULOS AUTOMOTORES COMO RELAÇÃO DE CONSUMO
No presente capítulo, abordar-se-á a alienação fiduciária em garantia de automóveis
no âmbito das relações de consumo em situações de atraso no pagamento de prestações do
financiamento garantido por alienação fiduciária, dada a adesão a esse tipo de contrato no
dia a dia por inúmeros consumidores. O tema é de indiscutível relevância devido ao
considerável volume de ações de busca e apreensão de veículos intentadas pelas
instituições financeiras em face do devedor fiduciante moroso, que, não raro, desconhece
as implicações dessa mora. Por esta razão, convém enfrentar a questão da
constitucionalidade do Decreto-Lei n° 911, de 1º de outubro de 1969, em face da
Constituição de 1969, e de sua recepção ou não pela Constituição Republicana de 1988,
acaso não vislumbrada nenhuma incompatibilidade com a Constituição de 1969.
Conforme visto, a alienação fiduciária em garantia de bens móveis entrou no
ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei de Mercado de Capitais. Referido Diploma
legal, de 14 de julho de 1965, que teve por objetivo precípuo fomentar o crescimento
econômico no Brasil, uma vez que, nessa época de ditadura, os militares pretendiam
alcançar estabilidade política e econômica para atrair investimentos estrangeiros para o
país.1 Nestes termos, a legitimidade passiva para figurar nos contratos de alienação
fiduciária em garantia, que transmitiam inquestionável segurança ao credor, fora conferida
exclusivamente às instituições financeiras. Assim, não havia possibilidade de um cidadão
comum celebrar com seu igual contrato de alienação fiduciária em garantia, restando a
1 Para maiores informações sobre a ditadura militar e sobre o período a que se denominou milagre econômico
brasileiro consultar GIAMBIAGI, Fábio; VELOSO, Fernando Augusto Adeodato; VILLELA, André. Determinantes do “milagre” econômico brasileiro (1968/73): Uma análise empírica. Disponível em: <http://www.eg.fip.mg.gov.br>. Acesso em: 26 set. 2008 e o sítio <http://www.historiadomundo.combr>. Acesso em: 26 set. 2008.
84
estes apenas o socorro ao negócio fiduciário, arcando as partes com os riscos inerentes a
este tipo de negócio.2
A prática, contudo, encarregou-se de demonstrar que se o contrato de alienação
fiduciária em garantia transmitia segurança à satisfação do crédito pelo credor não lhe
garantia a necessária rapidez ao ingresso, por parte deste, na posse direta do bem alienado
fiduciariamente, se não houvesse sua entrega espontânea pelo fiduciante moroso, em razão
da polêmica reinante na década de 60, no cenário jurídico nacional a respeito da ação
judicial cabível, se possessória ou petitória, vez que a imprecisão da linguagem utilizada
pelo legislador no §2º do artigo 66 da Lei de Mercado de Capitais trazia dúvidas acerca de
ser o devedor possuidor direto ou mero detentor do bem alienado fiduciariamente a impedir
solução rápida na recuperação do capital investido no negócio pelo credor fiduciário.
Ademais, questionava-se o cabimento da ação de busca e apreensão tipificada pelo Código
de Processo Civil, mesmo como medida cautelar e preparatória, impasse que inviabilizava
o atendimento, a contento, dos interesses do credor, que passou a desprezar o instituto da
alienação fiduciária em garantia.3
Por isto, os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar,
visando a resolver o impasse e proteger as instituições financeiras, expediram, em 1º de
outubro de 1969, o Decreto-lei n° 911, alterando sobremaneira o instituto da alienação
fiduciária em garantia e introduzindo, neste campo, uma ação de busca e apreensão
autônoma e independente, inclusive, de qualquer procedimento ulterior por parte do credor
fiduciário. Resta saber se a proteção dispensada às instituições financeiras pelo
suprarreferido diploma normativo ultrapassava ou não os limites constitucionais vigentes à
época de sua edição, representando alguma ameaça ao princípio da igualdade, previsto no
§1º do artigo 150 da Constituição da República de 1969, que dispunha que “todos são
2 Nesse tocante, Ana Carolina Freire e Mateus Donato lembram que “tendo em vista as vantagens oferecidas ao
credor na alienação fiduciária, o STF acabou por determinar que esta somente poderia ser utilizada por instituições financeiras sujeitas à fiscalização do Banco Central do Brasil, o que limitava a utilização do instituto, inclusive nos casos de financiamentos concedidos por instituições estrangeiras.” FREIRE, Ana Carolina de Salles; GIANETI, Mateus Donato. A propriedade fiduciária e o novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n.269, 2 abr. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 ago. 2008. Essa informação pode, aliás, ser conferida pelo RE 111219/1987. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 21 fev. 2009.
3 Maiores detalhes acerca dessa polêmica em ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.10-14.
85
iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções
políticas [...].”4
5.1 O Decreto-lei n° 911/69 e a Constituição da República de 1969
O Decreto-lei n° 911/69 nasceu com a missão de proteger as financeiras. Tanto que
de sua exposição de motivos constam as seguintes passagens:
[...] Pretendendo o governo baixar o custo operacional das instituições financeiras, tornou-se indispensável dar solução rápida e eficaz na hipótese de inadimplemento do devedor, justificando-se, pois, a elaboração de um projeto de Decreto-lei para atender a tais situações. [...] [...] A busca e apreensão é, no caso, processo autônomo e exaustivo cuja decisão termina o litígio, autorizando a venda extrajudicial do bem, sem prejuízo de qualquer ação que o devedor possa intentar contra o credor se se julgar prejudicado. Admite-se, excepcionalmente, a purgação da mora quando o devedor já pagou mais de 40% do preço e requerer o pagamento do seu débito acrescido de juros, custas judiciais e honorários de advogado. [...] A elaboração do projeto, em última análise, visa a dar maiores garantias às operações feitas pelas financeiras, assegurando o andamento rápido dos processos, sem prejuízo da defesa, em ação própria, dos legítimos interesses dos devedores.[...]. (Destacou-se e sublinhou-se).5
Pretender o governo, conforme afirma ele próprio, baixar o custo operacional das
instituições financeiras criando uma ação de busca e apreensão como processo autônomo e
exaustivo em que a decisão põe termo ao litígio, autorizando a venda extrajudicial do bem
sem responsabilidade para essas instituições, e suprimindo sobremodo a defesa do devedor,
a quem compete purgação da mora somente em caráter excepcional, e quando já pago mais
de 40% (quarenta por cento) do financiamento, condicionando a defesa unicamente em
ação própria, parece ir de encontro ao princípio da igualdade, constante do §1º do artigo
150 da Constituição da República de 1969, vigente à época de sua edição.6
Em primeiro lugar, os réus dessa ação de busca e apreensão eram injustificada e
diferentemente tratados, pois apenas os que houvessem ultrapassado o percentual de
pagamento do financiamento é que poderiam requerer a purgação da mora, efetivando o
4BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em
<http//www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008. 5 Essa exposição de motivos do Decreto-lei n° 911, que data de 1969, consta da obra de Márcio Assumpção.
ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de, op. cit., 2006, p.217-218. 6 Referir-se-á sempre ao termo Constituição de 1969 porque é o termo mais advogado, visto ter a Emenda
Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969, prevista para entrar em vigor em 30 de outubro de 1969, provocado profundas alterações na Carta de 1967, inclusive a ponto de teórica e tecnicamente, como aduz José Afonso da Silva, não ter se tratado de emenda, “[...] mas de nova constituição.” SILVA, José Afonso da, op. cit., 2000, p.87.
86
pagamento sem qualquer discussão quanto aos valores estipulados pelas instituições
financeiras. Nestes termos, nenhum fiduciante poderia, nos autos da ação de busca e
apreensão ora analisada, questionar e pagar apenas o valor realmente devido, ainda que se
deparasse com a cobrança de valores abusivos por parte da instituição financeira autora,
hipótese que não era (nem é na atualidade) difícil de ocorrer, eis que teria que exercer sua
defesa obrigatoriamente em ação própria. Este procedimento, por não ter o condão de
sustar a venda extrajudicial do mencionado bem porventura efetivado pelo credor
fiduciário, acabava frustrando o direito expectativo à aquisição da propriedade do bem
alienado fiduciariamente pelo devedor fiduciante, que tinha (e tem ainda hoje) o direito,
diga-se, de pagar unicamente o montante real devido, cabendo-lhe, no final das contas,
somente a via da indenização em caso de prejuízo, pois não poderia questionar com o
terceiro que adquirira da financeira o bem que fora a esta fiduciariamente alienado.
Assim, flagrante é o tratamento legal diferenciado, beneficiando as instituições
financeiras, transmutando-se em verdadeira regalia em detrimento do devedor fiduciante,
este sim a parte mais vulnerável da relação e carecedora de proteção legal. Demais, o
decreto-lei, cujo sucedâneo é a Medida Provisória, nos termos do artigo 58, I e II, da
Constituição de 1969, apenas poderia ser expedido pelo Presidente da República em casos
de urgência ou de interesse público relevante e sobre matérias que dissessem respeito à
segurança nacional ou às finanças públicas, desde que não resultasse em aumento de
despesa. O Decreto-lei n° 911/69, facilmente se constata, não versava (ou versa) nem sobre
a segurança nacional nem sobre as finanças públicas, razão pela qual sequer poderia ter
sido expedido. 7
5.2 O Decreto-lei n° 911/69 e a Constituição da República de 1988
A análise acerca da recepção ou não pela Constituição Republicana de 1988 do
Decreto-lei n° 911/69 deve ser feita levando-se em consideração vários aspectos, que vão
desde a possibilidade de existência desta norma em um Estado Democrático de Direito até
se saber se foram violados o princípio da igualdade e as garantias do devido processo legal,
da ampla defesa e do contraditório. Além do mais, importa saber se é juridicamente
possível a alteração do Decreto-lei em estudo pela Lei n° 10.931/2004 e se esta nova lei
7 É certo que nessa época nem se cogitava da existência do Código de Defesa do Consumidor e tampouco se
falava em vulnerabilidade, mas isso está longe de impedir a constatação, e fácil, da desigualdade das partes que permeava a relação, sempre em prejuízo do fiduciante.
87
também pode ser considerada constitucional sob o ponto de vista das garantias acima
mencionadas.
5.2.1 O Decreto-lei n° 911/69 no Estado Democrático de Direito
De 1964 a 1985 vigorou no país a ditadura militar. Nesta época os direitos e garantias
constitucionais foram simplesmente olvidados. Três anos após esse nebuloso período,
contudo, é promulgada a Constituição de 1988, que abre seus dispositivos declarando
constituir a República Federativa do Brasil um Estado Democrático de Direito. Referida
expressão, no dizer de José Afonso da Silva, não significa apenas a união formal dos
conceitos de Estado Democrático e de Estado de Direito. Consiste, na verdade, num
conceito novo, “[...] que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os
supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do
status quo [...].” Desta forma, “a democracia que o Estado Democrático de Direito realiza
há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º,
I), em que o poder emana do povo e deve ser exercido em proveito do povo [...].”8 Para o
supracitado constitucionalista, a tarefa fundamental do Estado Democrático de Direito, que
é calcado, dentre outros, nos princípios democrático, da justiça social, da igualdade, da
divisão de poderes e da legalidade, “[...] consiste em superar as desigualdades sociais e
regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social.”9
O Decreto-lei editado pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da
Aeronáutica Militar nada tem de democrático, contribuindo inclusive para a promoção de
desigualdades e injustiças, na medida em que se preocupa unicamente em garantir o lucro
das instituições financeiras, eis que lhes autoriza a lançar mão de agilíssima ação judicial,
com concessão obrigatória de liminar de busca e apreensão pelo Judiciário em seu favor,
uma vez comprovada a mora do fiduciante.10
Ademais, é referida norma ilegítima, posto não decorrer da vontade popular, conforme
exigido pela Constituição de 1988, como explicam Henriques Leite e Walter Lemos:
8 SILVA, José Afonso da, op. cit., 2000, p.123. 9 Ibid., 2000, p.126. 10 Registre-se que a mora do fiduciante ocorre pela simples expedição, por meio do Cartório de Registro de
Títulos e Documentos, de carta registrada ou com o mero protesto do título do devedor, a quem cabe o direito à sua purgação exclusivamente quando já integralizado mais de 40% do valor do financiamento do bem, sem possibilidade alguma de discussão acerca dos valores apresentados pela instituição autora.
88
A norma jurídica só é legitima quando tem a sua origem emanada da vontade do povo, em consonância com o Parágrafo único do artigo 1° da Constituição Federal. A lei há que ser elaborada em atendimento aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, ou seja: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantida do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.3°, I, II, III e IV, da CF/88). O DL n° 911/69 desdenha de todos os critérios de criação de uma lei. Faltam-lhe os critérios de legalidade, de justiça, de amplitude, de finalidade, e tantos outros. Falta-lhe coerência como conceito de lei, pois expressa apenas a vontade dos poucos que assinam e das empresas beneficiadas [...].11
O fato de a norma em estudo não emanar da vontade popular, contudo, apesar de sua
indiscutível relevância, não se afigura como critério único suficiente capaz de impedir sua
recepção pela Constituição Republicana de 1988. Por isto, analisar-se-á sob outros pontos
de vista, passando agora a tratar sobre a violação ou não ao princípio da igualdade.
5.2.2 O Decreto-lei n° 911/69 e o princípio da igualdade
O princípio da igualdade, considerado por Paulo Bonavides como “o centro modular
do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica [...]”, impede o tratamento
privilegiado dispensado às instituições financeiras pelo Decreto-lei n° 911/69, eis que “o
Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática [...]”, e apresenta-se como
critério suficiente para impedir a recepção desta norma pela Carta Política de 1988,
produtora que é de desigualdades sociais. O tratamento privilegiado a que se refere consiste
não apenas no patente desequilíbrio existente entre os interesses do credor e os do devedor
promovido pelo Decreto-lei n° 911/69 e que permeiam a ação de busca e apreensão
independente e autônoma por ele produzida, mas também no tratamento injustamente
desigual dispensado por esta norma aos particulares instituições financeiras e particulares
não integrantes do sistema financeiro nacional.12
É justamente em atenção ao princípio da igualdade, que está consubstanciado na
máxima de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na exata medida de
suas desigualdades, que o Código Civil de 2002 trouxe para suas disposições a propriedade
fiduciária, que, por sua vez, decorre do contrato de alienação fiduciária em garantia,
permitindo que qualquer pessoa, e não unicamente as instituições financeiras, desfrute da
11 LEITE, Antônio Henriques Lemos; LEMOS, Walter Gustavo da Silva. Novos rumos da alienação fiduciária
em garantia. Disponível em: < http://www.direitonet.com.br>. Acesso em: 2 out. 2008. Relembre-se ainda que o decreto, com força de lei, substituído fora pela Medida Provisória, que conforme reza o artigo 62 da Carta Maior, apenas poderá ser adotada pelo Presidente da República em casos de relevância e urgência, medida que deve ser submetida de imediato ao Congresso Nacional para que delibere sobre sua conversão ou não em lei.
12 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.376.
89
condição de credor fiduciário. Nestes termos, o novel Código Civil alertou para uma
gravíssima e desapercebida situação: o tratamento desigual dispensado pelo legislador ao
credor fiduciário integrante do sistema financeiro nacional e aquele não integrante desse
sistema, consistente no fato de este último não poder manejar a ação de busca e apreensão
independente e autônoma prevista pelo Decreto-lei n° 911/69, e aquele sim.13
O desequilíbrio de tratamento entre credor e devedor permitido pelo decreto-lei em
análise fica patente ao exame de seu primitivo artigo 3º (e incisos), que determinava, após
ser despachada a inicial e executada a liminar, seria a medida necessariamente deferida em
benefício do credor. O réu seria citado para, no reduzidíssimo prazo de três dias, apresentar
contestação (e não resposta) ou, se já tivesse pago 40% do preço financiado, requerer a
purgação da mora, caso em que não poderia dispor de prazo superior a dez dias. Nestes
termos, oferecida ou não contestação ou não efetivado o depósito no prazo assinalado pelo
juiz quando requerida a purgação da mora pelo devedor, a sentença consolidaria a
propriedade e a posse plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário, sendo
prolatada de plano no prazo de cinco dias, sem que ficasse impedida a venda extrajudicial
do bem alienado fiduciariamente em garantia, dela cabendo apenas agravo de instrumento,
frise-se, sem efeito suspensivo.14
Para usufruir das benesses relativas à ação de busca e apreensão independente e
autônoma introduzida pelo Decreto-lei n° 911/69, basta ao credor fiduciário, desde que
13 Diga-se, por oportuno, que, o Código Civil de 2002 pretendeu, na realidade, corrigir essa enorme
desigualdade, e porque não dizer injustiça, semeada e cultivada pelo Decreto-lei n° 911/69, tanto que seu projeto, que data de agosto de 1972 e que contou com um prazo de quatro meses, corridos já a partir do dia 7 daquele mês, para o recebimento de sugestões, já previa a propriedade fiduciária, garantindo, via de conseqüência, que qualquer pessoa, e não exclusivamente as instituições financeiras, pudesse desfrutar da qualidade de credor fiduciário em contrato de alienação fiduciária em garantia. Prova isso o fato de Moreira Alves, já em 1979, na sua obra, intitulada “Da alienação fiduciária em garantia”, falar sobre o Projeto de Código Civil e o prazo de quatro meses para recebimento de sugestões. ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.193-199. Mas a sua tramitação foi tão demorada no Congresso Nacional que o Código Civil foi promulgado anos depois da Constituição de 1988, apesar de ter sido apreciado pela Câmara dos Deputados no ano de 1975, não admirando o fato de este Projeto de Lei, de nº 634-D, ter sofrido mais de mil emendas na Câmara dos Deputados e mais de quatrocentas no Senado Federal, como afirma, com propriedade, Miguel Reale. REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 26 set. 2008.
14 Utiliza-se aqui a palavra “primitivo” para deixar claro que nesse momento se está abordando o Decreto-lei n° 911/69 anteriormente ao advento da Lei n° 10.931/2004, que, dentre outras normas, pretende alterar “[...] o Decreto-Lei n° 911, de 1° de outubro de 1969 [...].” BRASIL. Presidência da República. Lei n° 10.931, de 2 de agosto de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 30 jun. 2008. Sobre a impossibilidade de purgação da mora quando não integralizado 40% do valor financiado, veja-se a Súmula 284 do Superior Tribunal de Justiça. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 284. A purga da mora, nos contratos de alienação fiduciária, só é permitida quando já pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do valor financiado. Segunda Seção. Julgado em 28 abr. 2004. Diário de Justiça, Brasília, DF, 13 maio 2004, p. 201. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2009.
90
instituição financeira, repita-se, a comprovação, através de carta registrada expedida pelo
Cartório de Títulos e Documentos ou pelo protesto do título, da mora do devedor, o que se
dá com o simples vencimento, in albis, do prazo para pagamento de uma única prestação.
Já o credor fiduciário em contrato de alienação fiduciária em garantia que não goze da
qualidade de instituição financeira não pode propor essa agilíssima ação de busca e
apreensão independente e autônoma quando se deparar com a mora do devedor que não lhe
entregue, voluntariamente, o bem fiduciariamente alienado, mesmo quando a relação
existente entre as partes se configure como relação jurídica de consumo.
Com o advento do novel Código Civil têm-se, portanto, duas situações distintas,
quais sejam: 1º) O contrato de alienação fiduciária em garantia celebrado no âmbito do
mercado financeiro e de capitais, que exige a presença de uma instituição financeira como
contratada, leia-se credora fiduciária, regido pela Lei de Mercado de Capitais e apenas
subsidiariamente pelo Código Civil, incidindo o Código de Defesa do Consumidor se de
relação de consumo se tratar; e 2º) O contrato de alienação fiduciária em garantia celebrado
fora do âmbito do mercado financeiro e de capitais (mercado privado), governado pelo
Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, se envolver relação de consumo.
Nos dois tipos de contrato ter-se-ão proprietários fiduciários, que devem ser igualmente
tratados, mas apenas o credor fiduciário que se qualifique como instituição financeira é que
pode mover a ação de busca e apreensão independente e autônoma gerada pelo Decreto-lei
n° 911/69 quando, ocorrida a mora do devedor fiduciante, este não lhe entregue, por livre e
espontânea vontade, o bem fiduciariamente alienado, o que configura injustificado
tratamento assimétrico e atenta, por conseguinte, contra o princípio da igualdade.
E nem se argumente no sentido de que as instituições financeiras podem gozar de
tratamento diferenciado por servirem de impulsionadoras da economia e contribuírem para
o desenvolvimento, uma vez que contratos de mútuo ou de financiamento garantidos por
alienação fiduciária podem encerrar relação de consumo mesmo quando celebrados no
âmbito do mercado privado, por pessoas físicas ou jurídicas, que também estimulam o
crescimento econômico e contribuem para o engrandecimento da nação. Além disto, não há
crescimento econômico sem a presença, no mercado, do consumidor, que merece toda a
91
consideração por parte do legislador, que é obrigado pela Constituição de 1988 a lhe
dispensar tratamento no mínimo equivalente ao conferido às instituições financeiras.15
Quer-se dizer que o tratamento diferenciado dado às instituições financeiras pelo
Decreto-lei n° 911/69 se alicerça no fato desse financiamento garantido por alienação
fiduciária ser realizado no âmbito das relações de consumo, que antes apenas poderia ser
praticado por instituição financeira.
Nestes termos, a proteção jurídica normativa foi conferida não à parte mais frágil,
vulnerável, da relação, que é o consumidor, mas à parte mais forte dela, quer dizer, ao
fornecedor, desde que este ocupe a posição de instituição financeira, em flagrante violação
ao princípio da igualdade e à determinação consitucional dirigida ao Estado de promoção,
na forma da lei, da defesa do consumidor, nos termos do artigo 5º, XXXII, da CF/88.
Acresça-se a isto o fato de que a justificativa primeira de exclusiva utilização do contrato
de alienação fiduciária em garantia e manejo da ação de busca e apreensão autônoma e
independente pelas financeiras, com exclusão do particular não integrante do sistema
financeiro como credor fiduciário, parte da gratuita acusação feita a este último de praticar
comumente juros usurários (acima da taxa legal). Além disso, a defesa do réu na ação de
busca e apreensão independente e autonoma é restrita a ponto de quebrar o equilíbrio entre
as partes, impondo interpretar a palavra “credor” restritivamente, privilegiando, como
consequência, as instituições financeiras. Elucidativas, neste sentido, as palavras de
Moreira Alves:
Entretanto, o Decreto-lei nº 911 [...] ao disciplinar a ação de busca e apreensão, restringiu de tal forma a defesa do réu que tornou evidente a inaplicabilidade do instituto às relações entre particulares. [...]
15Esclareça-se aqui, com Andréa Andrezo e Iran Lima, que o mercado financeiro é aquele “[...] composto pelo
conjunto de instituições e instrumentos financeiros destinados a possibilitar a transferência de recursos dos ofertadores para os tomadores, criando condições de liquidez no mercado”, encontrando-se, sob um ponto de vista financeiro, tradicional e basicamente , dividido em duas categorias: o Mercado de Crédito e o Mercado de Capitais, este “[...] composto pelo conjunto de instituições e instrumentos financeiros destinados a possibilitar operações de médio ou longo prazo ou de prazo indefinido, como no caso de ações, por exemplo [...]. Existem, ainda, as negociações efetuadas diretamente entre tomadores e poupadores, sem intermediação de instituição financeira, no denominado mercado privado. Um exemplo é um contrato de mútuo entre duas pessoas físicas.” Tudo isso, acresça-se, é mercado e contribui para a circulação de riquezas e, via de consequência, para o crescimento nacional. (Negrito no original). ANDREZO, Andréa Fernandes; LIMA, Iran Siqueira. Mercado financeiro: aspectos históricos e conceituais. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002, p. 3-5. O próprio Decreto-lei nº 911/69, em sua exposição de motivos, porque reconheceu que “a importância crescente do crédito ao consumidor [...]”, exigiu “[...] uma reformulação do Instituto da Alienação Fiduciária, que passou a desempenhar função relevante como garantia nas operações feitas [...] para financiamento ao usuário de bens de consumo ou de produção.” Essa exposição de motivos consta da obra de Márcio Assumpção. ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de, op. cit., 2006, p.217-218.
92
não poderá o réu sequer invocar, em sua defesa, a inexistência da própria relação obrigacional, ou – o que é relativamente comum nas relações entre particulares – a nulidade do empréstimo garantido em decorrência de juros usurários. [...]. Quebrou-se, portanto, dessa forma, o equilíbrio entre os interesses do credor e do devedor, dando-se tal prevalência àquele que, para não se chegar à iniqüidade, facilitando-se a usura, é mister se interprete restritivamente o termo credor utilizado, genericamente, no referido Decreto-lei. Em face da nova disciplina que o Decreto-lei nº 911 deu à alienação fiduciária em garantia, somente poderá o instituto ser utilizado pelas instituições financeiras em sentido amplo e por entidades estatais ou paraestatais, ainda que não se enquadrem entre aquelas (como sucede com o INPS) [...]. [...], pelo interesse público que está em jogo, justifica-se a prevalência que se dá à proteção do credor e diminui-se o risco que sofre o devedor com o cerceamento de sua defesa [...].16
Reconheceu-se assim o completo e patente tratamento desiquilibrado entre credor e
devedor implantado pelo Decreto-lei n° 911/69 em benefício daquele (fiduciário), optando-
se por interpretar restritivamente o conceito de credor fiduciário, fundamentado na frágil
alegativa de redução da prática da usura.17
Isto porque a repulsa a essa prática possui expressa previsão em norma vigente, cuja
aplicação depende unicamente das autoridades competentes. Ademais, à Lei da Usura, que
data de 1933, nunca se submeteram as instituições financeiras que, com o beneplácito do
governo e dos Tribunais superiores, mesmo antes do advento da Lei n° 4.595/64 – que
dispõe sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias, cria o Conselho
Monetário Nacional e dá outras providências – aplicavam a taxa de juros que melhor lhes
convinha nos contratos celebrados com os consumidores, até conseguirem chegar à
liberação total da taxa de juros remuneratórios, hoje correspondente à taxa média praticada
no mercado pelas próprias instituições financeiras, cujo lobby foi capaz inclusive de obter a
16 ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.86-87. Aliás, cabe aqui mencionar que Denival Francisco da
Silva acertadamente enxerga no Decreto-lei n° 911/1969 um instrumento de agiotagem permitida, garantindo a “[...] satisfação dos interesses meramente econômicos da indústria automobilística e das instituições financeiras, as quais, inclusive, estão se transformando numa coisa só, dada, sobretudo a rentabilidade deste segundo setor, como instrumento de agiotagem permitida.” SILVA, Denival Francisco da. É nula a nota promissória nos contratos bancários: ausência de pressuposto para ação de busca e apreensão regida pelo Decreto-Lei n° 911/1969. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n.1349, 12 mar. 2007. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 22 jul. 2008.
17Sobre o assunto Melhim Namem Chalhub assevera que “a despeito dessa nova orientação, importa registrar que a legislação especial anterior que autorizava a utilização dessa garantia para casos específicos continua em vigor.” Ao tratar da ação de busca e apreensão independente e autônoma, o autor aponta para a exclusão da legitimidade ativa do particular que não desfrute da condição de instituição financeira, ressalvada a possibilidade de integrar o pólo ativo da lide o avalista, o fiador ou o terceiro interessado que tenha se sub-rogado nos direitos de crédito e garantia decorrente dos contratos de alienação fiduciária em garantia celebrada no âmbito do mercado de capitais, o que conduz à inevitável conclusão da injusta diferenciação feita pelo Decreto-Lei n° 911/69 entre as instituições financeiras e os demais credores particulares. Tanto isso é verdade que, para Melhim Namem Chalhub, essa ação de busca e apreensão: “é a ação mais freqüente, aplicável somente aos casos em que o crédito tiver natureza fiscal, previdenciária ou tiver sido contratado no âmbito do mercado financeiro e de capitais.” CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p. 193 e 221.
93
revogação do disposto no §3º do artigo 192 da Consituição de 1988, por limitar à aplicação
a taxa de juros remuneratórios de 12% (doze por cento) ao ano.18
Com relação à restrita defesa do réu – que até o advento da Lei n° 10.931/2004
limitava-se ou à apresentação, no tríduo legal, de contestação, que poderia versar
exclusivamente sobre o pagamento do débito vencido ou sobre o cumprimento das
obrigações contratuais, ou à purgação da mora, caso tivesse adimplido 40% do valor
financiado – diga-se ser inadmissível sua recepção pela “Constituição Cidadã”, que
assegura o contraditório e a ampla defesa aos litigantes em processo judicial ou
administrativo, assunto a que se voltará mais adiante.
Não sem razão o comentário de Waldirio Bulgarelli acerca do vergastado decreto-lei
que muniu as financeiras de vários tipos de ações para evitar qualquer perda, por mínima
que seja, por parte destas:
18 Fala-se aqui da Emenda Constitucional nº 40/2003, que revogou o §3º do artigo 192. Sobre a possibilidade de
aplicação, pelas instituições financeiras, da taxa média de juros remuneratórios existente no mercado, a ser apurada pelo Banco Central do Brasil, veja-se as seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça: BRASIl. REsp Nº 682.299/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12/ ago. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008; BRASIl. AgRg no Resp Nº 992.272/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12 ago. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008 e BRASIL. AgRg no REsp Nº 697.588/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12 ago. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008; BRASIL. Recurso Especial n° 439.828/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 22 abr. 2003. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008. Consigne-se que as referidas decisões se baseiam no argumento que após o advento da Lei n° 4.595/64 não mais existe, para as instituições financeiras, a restrição prevista na Lei da Usura devendo prevalecer o entendimento constante da Súmula n° 596 do Supremo Tribunal Federal (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 596. As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional. Plenário. Julgado em 15 dez. 1976. Diário de Justiça, Brasília, DF, 3 jan. 1977, p. 7. Disponível em: <http//www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 ago. 2009). Demais, não enxergam os Tribunais superiores que a cobrança, por parte das instituições financeiras, de taxa de juros acima de 12% ao ano constitua, por si só, vantagem exagerada. Consigne-se também antes da revogação do §3º do artigo 192 da Consituição da República foi preciso criar engenhoso artifício para evitar sua aplicação, que consistiu na simples negativa de auto-aplicabilidade do mencionado parágrafo, a pretexto de exigir edição de lei complementar, que jamais existiria. Tudo com a complacência do Supremo Tribunal Federal, a quem, é de pasmar, compete a guarda da Carta de 1988. Acerca da não auto-aplicabilidade do primitivo §3º do artigo 192 da CF/88 examine-se a seguinte decisão do STF: BRASÍLIA. Recurso Extraordinário nº 231548/RS – Rio Grande do Sul, Segunda Turma, Supremo Tribunal Federal, Relator: Min. Nelson Jobim, Julgado em 29/10/1998. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 4 out. 2008. Toda essa complacência do governo, que até agora contou com a ajuda do Poder Judicário, culminou no império do mercado pelas instituições financeiras, que corriqueiramente cobram taxas de juros remuneratórios das mais elevadas, chegando até a 18,9% a.m. quando se trata de cartões de crédito, juros que, diga-se, ainda são capitalizados mensal, anual ou até diariamente, a representar excessiva onerosidade para os consumidores, que, não raro, tornam-se eternos devedores dessas instituições, cujo exorbitante lucro atinge cifras que boa parte dos brasileiros sequer consegue ler, dada a quantidade de zeros à direita. Nesse cenário, apenas os que não integram o Sistema Financeiro Nacional é que podem ser punidos pela Lei da Usura.
94
que elas, a seu alvedrio e a seu talante, escolhem a que melhor couber na oportunidade, para sempre se ressarcir, jamais perdendo, do que resulta que, neste país, a atividade do crédito — ao contrário do que ocorre no resto do mundo — passa a ser uma atividade em que não há risco para o banqueiro [...].19
Outra violação do princípio da igualdade: o desmoronamento de pelo menos dois dos
princípios sobre os quais se funda a ordem econômica, o da função social da propriedade e
o da defesa do consumidor, em razão de o risco da atividade mercantil exercida pelas
instituições financeiras, que deveria ser, como em qualquer outro, inerente ao negócio, no
que diz respeito ao contrato de alienação fiduciária em garantia, finda reduzido a quase
nenhum, ou melhor, transferido integral e indevidamente pelo Decreto-lei n° 911/69 ao
consumidor, afinal de contas alguém tem que sofrer as consequências de tanta
benevolência do legislador para com as instituições financeiras.
5.2.3 O Decreto-lei n° 911/69 sob a ótica das garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.
Para se averiguar uma possível violação às garantias constitucionais do devido
processo legal, da ampla defesa e do contraditório, necessário se faz abordar o Decreto-lei
nº 911/69 em dois momentos distintos: antes e depois do advento da Lei n° 10.931/2004.
Os termos do primitivo artigo 3° do Decreto-lei n° 911/69, ao permitirem ao réu da
ação de busca e apreensão unicamente apresentar contestação e não resposta ou purgar a
mora caso tenha adimplido 40% do preço financiado, privilegiaram o autor da lide em
detrimento do réu, não atenderam às exigências da Constituição de 1988 da ampla defesa e
do contraditório na medida em que restringiram sua defesa ao ponto de quase anulá-la, até
porque na contestação o réu estava preso à alegação do pagamento do débito vencido ou ao
cumprimento das obrigações contratuais.
Supondo-se que numa determinada ação de busca e apreensão o réu fora proibido de
purgar a mora por não haver ainda pago 40% do preço financiado (conforme Súmula 284
do Superior Tribunal de Justiça), e não tenha podido alegar, no caso concreto, a ocorrência
da mora do credor em razão, por exemplo, da cobrança de valores indevidos expressamente
previstos em cláusula contratual, impedido fora ele de exercer seu constitucional e amplo
direito de defesa, que conduziria à imediata extinção da ação de busca e apreensão sem
julgamento de mérito, nos moldes do artigo 267, IV, do Código de Processo Civil. É que a
19 BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis. 9. ed. São Paulo: Atlas, 1997, p.308.
95
cobrança de valores indevidos implica a mora do credor e esta esvazia o pressuposto da
ação de busca e apreensão, cujo fundamento reside exatamente na mora do devedor .20
Agravar de instrumento da sentença de nada adiantaria ao fiduciante, já que seria o
mesmo recebido unicamente no efeito devolutivo e não impediria nem a venda
extrajudicial do bem objeto da alienação fiduciária nem a consolidação da propriedade e
posse plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário. Pior ainda a situação do
fiduciante quando o réu na ação de busca e apreensão fosse o terceiro e não determinasse o
magistrado a citação daquele, devedor fiduciante, a quem a norma não protegeu, pois esta
apenas alude à citação de réu da mencionada ação, outra anomalia.
Tudo isso ocorreu, não se pode negar, em prejuízo da parte frágil da relação, o
fiduciante, que se tivesse tido a oportunidade de exercer sua defesa de forma ampla poderia
ver afastada pelo magistrado a cláusula contratual responsável pela cobrança de valores
indevidos e efetuado o pagamento do valor realmente devido, pagamento que ocorreria em
ação diversa da ação de busca e apreensão, enquanto esta era extinta sem julgamento de
mérito. Quanto ao bem, passaria este automática e plenamente a integrar o patrimônio do
fiduciante quando do pagamento da última parcela do financiamento, situação não ocorrida
porque desrespeitado fora o due process of law que, repita-se com Celso Ribeiro Bastos,
apenas se concretiza para a parte a partir do momento em que ela tenha acesso ao Judiciário
e possa se defender amplamente.21
20 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 284. A purga da mora, nos contratos de alienação fiduciária,
só é permitida quando já pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do valor financiado. Segunda Seção. Julgado em 28 abr. 2004. Diário de Justiça, 13 maio 2004 p. 201. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2009.
21 BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., 2002, p.386. Segundo Celso Ribeiro Bastos, o princípio do devido processo legal “[...] se caracteriza pela sua excessiva abrangência e quase que se confunde com o Estado de Direito [...]”, sendo justamente por isso que “[...] hoje o princípio se desdobra em uma série de outros direitos, protegidos de maneira específica pela Constituição.” Para ele, “o due process of law se concretiza para a parte a partir do momento em que ela tenha acesso ao Judiciário e possa se defender amplamente.” Tudo porque o processo, no mundo moderno, é manifestação de um direito da pessoa humana. Já por ampla defesa, de acordo com esse constitucionalista, “[...] deve-se entender o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade [...].” Assim, o devido processo legal consiste em um “[...] instrumento assegurador de que o processo não se converterá numa luta desigual, em que ao autor cabe a escolha do momento e das armas para travá-la e ao réu só cabe timidamente esboçar negativas [...].” (Itálico no original). BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p.385-387. O contraditório, por sua vez, ensina Nelson Nery Júnior, garante, através do juiz, igualdade de tratamento entre as partes litigantes. “Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis.” NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 206. Paridade de armas, este é o cerne da questão ora analisada, e exatamente o que reclamam as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, à qual integra o princípio do contraditório.
96
Assim, mais uma vez resta comprovada a não recepção do Decreto-lei n° 911/69 pela
Carta Constitucional de 1988, desta feita por violação frontal aos incisos LIV e LV de seu
artigo 5°. Entretanto, no dia 2 de agosto de 2004, foi promulgada a Lei n° 10.931 que
pretendeu alterar, dentre outras normas, o Decreto-lei n° 911/69.22 Ora, se o Decreto n°
911/69 não foi, como se sustenta, recepcionado pela Constituição de 1988, mas sim
revogado por ausência de recepção, impossível sua alteração por uma norma posterior.
Entretanto, é preciso prosseguir, analisando-se as supostas alterações feitas pela Lei n°
10.931/2004 no Decreto-lei n° 911/69, frente aos ditames constitucionais consubstanciados
nas garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.
5.2.3.1 Análise do Decreto-lei n° 911/69 após o advento da Lei n° 10.931/2004
A recente lei, pretendendo atribuir nova redação ao artigo 3° do Decreto-lei n°
911/69, permitiu ao devedor fiduciante apresentar resposta no prazo de quinze dias após
execução da liminar, ainda que tenha ele purgado a mora desde que, nesse caso, entenda ter
efetuado pagamento a maior e deseje se restituir do excedente ao passo que, anteriormente,
torne-se a dizer, era permitido ao réu da referida ação apresentar simples contestação, esta
restrita à alegação do pagamento do débito vencido ou do cumprimento de suas obrigações
contratuais. Quanto à purgação da mora, determina a lei o pagamento da integralidade da
dívida pendente segundo os valores apresentados pelo credor e não unicamente das
parcelas vencidas, tanto que a purgação da mora importa na devolução do bem livre de
ônus ao devedor.
Nesse momento, dois questionamentos vêm imediatamente à tona: 1°) Em que prazo
deve ser efetivada a purgação da mora?; e 2º) É compatível o pagamento da integralidade
da dívida com as garantias constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e
contraditório que dispõe o titular de direitos e garantias fundamentais, o consumidor
devedor? A resposta a esses questionamentos exige detida análise em razão da novel
redação do §1° do artigo 3° do Decreto-lei n° 911/69, que consolida a propriedade e posse
plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário livre do ônus da propriedade
fiduciária, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado 22 Registre-se que há, contudo, quem não enxergue representar cerceamento à defesa do devedor o fato de a ação
de busca e apreensão apenas admitir que o devedor argua em sua contestação ou o pagamento do débito vencido ou o cumprimento de suas obrigações contratuais simplesmente porque “[...] não é permitido ao devedor em nível destas ações estender o conteúdo da contestação [...].” FORGIARINI, Giorgio. Aspectos relevantes da alienação fiduciária em garantia. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.58, ago. 2002. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
97
de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre desse
ônus. É que antes do advento da Lei n° 10.931/2004, essa consolidação ocorria apenas com
a sentença.
Vozes, contudo, já se levantaram em defesa da Lei n° 10.931/2004. Márcio Calil de
Assumpção enaltece a iniciativa do legislador, que pretendeu “[...] agilizar sobremaneira a
venda dos bens retomados sob o manto da ação de Busca e Apreensão [...]” e entende que a
nova redação do §1º do art. 3º do Decreto-lei n° 911/69 não viola o devido processo legal
em razão do caráter provisório da medida antecipatória. Assim, para o autor é:
de todo sustentável afirmar que a nova redação ao § l° do art. 3º do Decreto-lei n° 911/69 não ofende o preceito constitucional do devido processo legal, uma vez que a liminar nele referida, de natureza cognitiva sumária, pode ser denominada de relativamente exauriente na medida em que a tutela definitiva (na sentença) confirmará ou não a antecipação deferida initio litis, mantido assim o caráter de provisoriedade da antecipação de tutela.23 (Itálicos no original).
Com relação à omissão do legislador apontada pelo mencionado autor, identificada
pela ausência de determinação da citação do réu, omissão que traz importantes
consequências de ordem prática, defende ele que deve ser procedida à citação
imediatamente após o cumprimento da medida liminar e apenas a partir do ato citatório, e
não da execução da liminar, é que fluirão os prazos de cinco dias para purgação da mora e
de quinze dias para resposta, sob pena de se afrontar “[...] flagrantemente a garantia
constitucional ao contraditório, que por sua vez, esbarra na também garantia constitucional
do devido processo legal [...].” Isto porque o devedor fiduciário apenas poderá purgar a
mora e ter o bem restituído livre de ônus se souber o montante devido, que é apresentado
pelo credor na inicial de ação de busca e apreensão, fato que apenas se resolve com a sua
citação, principalmente se o réu da ação de busca e apreensão for um terceiro de cujas
mãos tenha sido apreendido o bem.24
23 ASSUMPÇÃO, Márcio Calil, op. cit., 2006, p.191. Já Alberto Bezerra de Souza destaca os efeitos processuais da
Lei n° 10.931/2004. SOUZA, Alberto Bezerra de. Efeitos processuais da Lei nº 10.931/04 aos pactos de alienação fiduciária de bens móveis. Uma análise do direito intertemporal quanto aos processos em curso. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 885, 5 dez. 2005. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008.
24 ASSUMPÇÃO, Márcio Calil, op. cit., 2006, p.194 a 196. Registre-se que este autor sustenta a tese de que a defesa do réu não alcança a reconvenção, seja pela especialidade do procedimento da ação de busca e apreensão, seja em razão de “[...] tratar-se de ação onde a sentença a ser proferida possui eficácia lato sensu (o comando da sentença realiza-se sem a necessidade de instauração de processo de execução).” Ibid., 2006, p.199. Já para Alex Sandro Ribeiro, na resposta do réu à ação de busca e apreensão, inserem-se tanto a contestação, como a exceção e a reconvenção. RIBEIRO, Alex Sandro. Polêmicas da nova alienação fiduciária de bens móveis. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.607, 7 mar. 2005. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008. Da mesma forma entendem Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, para quem a defesa do réu engloba a reconvenção. RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo. Alienação fiduciária e o fim da prisão civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.167.
98
Na mesma linha de raciocínio, Melhim Namem Chalhub conclui que “[...] embora a
nova lei seja omissa quanto à citação, o princípio constitucional do devido processo legal e
a articulação sistemática das normas processuais conduzem naturalmente à conclusão de
que o réu deve ser citado [...]”, fato que deve ocorrer, segundo o autor, imediatamente após
a apreensão do bem, “[...] contando-se os prazos para purgação da mora e para resposta da
juntada do mandado de citação.”25 A respeito, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe
asseveram que a citação do réu continua a ser o fundamental ato processual indispensável
pertinente ao contraditório. Uma vez não citado o réu por ocasião da efetivação do ato de
busca e apreensão:
[...] não terá incidência a regra especial de início de prazo para contestação; isto é, nem ocorrerá preclusão consumativa desse direito fundamental se só tiver havido a apreensão, enquanto não efetivada a citação, que é o convite com ônus processual, passando a contar-se o termo inicial para resposta, nos moldes da disposições do Código de Processo Civil, da juntada do mandado citatório cumprido, e não do antecedente ato constritivo isolado.26
Com relação à consolidação da propriedade nas mãos do credor após o decurso
quinquídio legal – que segundo a doutrina começa a fluir da juntada aos autos do mandado
citatório e não da execução da medida, como consta da Lei n° 10.931/2004 – para autores
como Melhim Namem Chalhub não existe dano ao princípio do devido processo legal
porque inexiste ameaça ao direito de propriedade do devedor, eis que, in casu, a
propriedade é do credor.27 Demócrito Reinaldo Filho igualmente admite a purga da mora
pelo devedor com o pagamento das prestações vencidas, inclusive em razão da aplicação de
outros dispositivos legais, a exemplo do artigo 401, I, do Código Civil. E, para ele, se de
relação de consumo se tratar, com mais firmeza é que se admite a purga da mora em função
25 CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p.222. 26 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.166. 27 Diz-se isto porque o raciocínio utilizado pelo autor ao tecer comentário à lei instituidora da alienação fiduciária
de coisa imóvel, Lei n° 9.514/97, deixa evidente sua posição quanto à alienação fiduciária de bens móveis. Fala-se aqui do seu comentário sobre o disposto no §7º do artigo 26 da Lei n° 9.514/97, que autoriza ao oficial do Registro de Imóveis a promover à averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário quando vencida a dívida, no todo ou em parte e, constituído em mora, o devedor fiduciante não paga no prazo de quinze dias, pois nesse momento Melhim Namem Chalhub destaca que o efeito natural da mora é a consolidação da propriedade no credor, o que, inclusive, independe de intervenção de qualquer autoridade, judicial ou administrativa, eis que no contrato de alienação fiduciária em garantia a condição resolutiva é expressa e sua ocorrência consolida, de pleno direito, a propriedade no credor. É de se ressaltar, contudo, que o autor defende ser facultado ao devedor fiduciário o pagamento das prestações vencidas ou da integralidade da dívida, muito embora a lei disponha sobre o pagamento da integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, quando o bem será restituído ao devedor livre do ônus. Isso em nome da estrutura e da função do contrato de financiamento, que se destina à aquisição de bens duráveis, bem como em razão da prioridade que o direito confere à manutenção do contrato. Deve-se ainda atender à função econômica e social do contrato de crédito e de venda com pagamento parcelado, ainda mais os que envolvam situações de maior densidade social. Ademais, o tratamento dado aos contratos semelhantes, como o de compra e venda com reserva de domínio e o de leasing, admite-se a purgação da mora mediante o pagamento das prestações vencidas. CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p. 206-208 e 356-358.
99
do disposto no §2° do artigo 54 do CDC.28 Neste sentido, Marco Antônio Pissurno afirma
que se deve dar ao §2° do artigo 3° do Decreto-lei n° 911/69, com a redação que lhe deu a
Lei n° 10.931/2004, interpretação conforme a constituição, sem redução do texto
excludente para que o devedor possa “[...] purgar a mora, pagando a integralidade das
parcelas em aberto (e não de todo o valor do contrato), segundo os valores apresentados
pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre de ônus.”29
Claro está, contudo, que na hipótese de não ter o devedor fiduciante optado pelo pagamento
integral da dívida, quer dizer, pelo valor total do contrato, o bem não pode lhe ser restituído
livre de ônus, mas apenas restituído, persistindo o gravame até a quitação do contrato, sob
pena de enriquecimento sem causa por parte do devedor, o que é repudiado pelo
ordenamento jurídico pátrio (artigo 884 do Código Civil de 2002).
Digna de menção é a posição de Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, que
entendem que a Lei 10.931/2004, muito embora à primeira vista tenha parecido a alguns
intérpretes trazer “[...] normas mais austeras para penalizar o devedor fiduciante moroso ou
inadimplente [...]”, teve o virtuoso propósito de “[...] adaptar-se com equilíbrio às regras
vigentes de direito material da mora pecuniária e sua purgação irrestrita [...] assegurando a
função social do contrato, a prevenção de danos e a defesa dos direitos do consumidor.”
Demais, referida lei “[...] não extinguiu o direito material da purgação da mora; apenas
suprimiu o rito procedimental de purgação da mora na ação de busca e apreensão [...]”,
dando ensejo, inclusive, “[...] à atuação plena da norma de ordem pública do § 2º do art. 54
[...]” do Código de Defesa do Consumidor, que admite cláusula resolutória nos contratos de
adesão unicamente quando a alternativa da resolução do contrato couber ao consumidor.
(Itálico no original).30
28 REINALDO FILHO, Demócrito. Lei nº 10.931/2004: breves comentários às alterações no procedimento da ação
de busca e apreensão de bem objeto de alienação fiduciária (Decreto-Lei nº 911/69). Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009.
29 PISSURNO, Marco Antônio Ribas. A polêmica interpretação do art. 3º, § 1º, do Decreto-Lei nº 911/69, alterado pela Lei nº 10.931/2004. Como fica a purgação da mora na busca e apreensão de veículo em alienação fiduciária?. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009. Já Leonardo Perceu da Silva Costa entende que o melhor posicionamento a ser adotado será o “[...] de considerar como dívida pendente a totalidade do débito oriundo do inadimplemento, pois o bem será entregue ao devedor fiduciante livre de qualquer ônus, não existindo mais a figura da emenda da mora.” COSTA, Leonardo Perseu da Silva. Das alterações introduzidas pela Lei nº 10.931/2004 no instituto da alienação fiduciária em garantia (Decreto-Lei nº 911/1969 e Lei nº 4.728/1965). Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009.
30 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.133 e 141.
100
Segundo os citados autores, isto ocorre porque, como a novel redação do artigo 3º do
Decreto-lei n° 911/69 assegura ao credor fiduciário instituição financeira, Fisco ou
Previdência, a ação de busca e apreensão independente e autônoma de qualquer outro
procedimento mediante a comprovação da mora ou inadimplemento do fiduciante, uma vez
fundamentada a ação no comprovado inadimplemento do devedor que, relembre-se, ocorre
em razão da não purgação da mora que lhe fora rigorosa e regularmente ofertada pelo
credor fiduciário, pode ainda o réu, utilizando-se do beneplácito do legislador, liquidar
integralmente a dívida pendente do contrato já resolvido, observada a devida redução
proporcional dos juros e demais acréscimos, e ter o bem restituído, desta feita livre de ônus.
Se, todavia, basear-se a referida ação de busca e apreensão na simples mora do devedor
fiduciante, o que ocorre quando o credor não lhe oferece oportunidade de pagamento das
prestações vencidas, ao devedor fiduciante é perfeitamente possível purgar a mora no valor
das parcelas vencidas, procedidos os devidos acréscimos, claro, por ser a purgação da
mora instituto de direito material e não processual. Trata-se, na ótica de Paulo Restiffe
Neto e Paulo Sérgio Restiffe, de um enigmático mecanismo legal, cuja “[...] força oculta
não é, portanto, um retrocesso jurídico; antes, é um avanço de atualização do direito
fiduciário ao compasso dos novos tempos [...].”31 Propõem, ainda, os referidos autores, por
parte do intérprete, uma releitura do caput do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69,
integrando-o ao §2º do artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor e ao parágrafo único
do artigo 395 e inciso I do artigo 401, ambos do Código Civil, o que leva à seguinte
equânime orientação:
O proprietário fiduciário ou credor poderá requerer contra o fiduciante ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual só será concedida liminarmente, desde que comprovado o inadimplemento do devedor, que é o estado de mora não purgada extrajudicialmente, isto é, quando respeitada e assegurada, antes, a prerrogativa de escolha dessa alternativa de não-resolução pelo credor predisponente ao devedor aderente que não a tenha aproveitado. Só com a observância desse padrão de conduta pré-processual das partes contratantes o novo sistema legal vigente autoriza a instauração e desenvolvimento válido do rito procedimental atualizado, inscrito nos novos parágrafos do art. 3.°, para a modificada ação, de natureza resolutória, de busca e apreensão de bem móvel alienado fiduciariamente em garantia de pagamento de dívida, no âmbito do mercado financeiro expandido.32
31 Ibid., 2007, p.121-132 e 153. Ressalte-se que nos termos do artigo 401, do Código Civil de 2002, purga o
devedor a mora oferecendo a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta. Já o credor purga a mora oferecendo-se a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data. Já o §2º do artigo 52 do Código de Consumo assegura ao consumidor que liquida total ou parcial e antecipadamente seu débito a redução proporcional dos juros e demais acréscimos.
32 Ibid., 2007, p.156-157. Acerca da purgação da mora em ação de busca e apreensão, a jurisprudência, sem tecer maiores detalhes, mostra-se oscilante, ora permitindo que o devedor fiduciante purgue a mora depositando unicamente o valor referente às parcelas vencidas, ora determinando que o fiduciante purgue a mora mediante
101
Opinam igualmente que a Lei n° 10.931/2004 não violou os preceitos constitucionais do
devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório Pablo Berger, que entende que o
deferimento da liminar na ação de busca e apreensão initio litis configura hipótese de
contraditório diferido33, Marcus Vinicius Moura de Oliveira, para quem não existe afronta nem
ao princípio do devido processo legal, já que o bem apenas passa a fazer parte do patrimônio
do devedor quando do pagamento da integralidade da dívida, nem do contraditório, posto que a
nova legislação trouxe um prazo maior para a defesa do réu, e Demócrito Reinaldo Filho, que
conclui pela natureza cognitiva e de execução sumária da ação de busca e apreensão
independente e autônoma do Decreto-lei n° 911/69, não ofendendo o contraditório nem a
ampla defesa “[...] a simples antecipação da consolidação da propriedade e posse plena no
patrimônio do autor [...]”, após os cinco dias da execução da liminar.34
o pagamento das parcelas vencidas e vincendas. Todavia, é de se observar, predominarem as decisões no sentido de determinar a purgação da mora através do pagamento das prestações vencidas e vincendas tomando por base os cálculos apresentados na inicial pelo credor. Nesse sentido, de inclusão das parcelas vincendas no cálculo para a purgação da mora, confiram-se as seguintes decisões do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios: APC 20060710069994/2008, APC 20070110912724/2008, APC 20050310240792/2008, APC 20080210006252/2008, AGI 20070020080877/2008, AGI 20080020031238/2008, AGI 20080020055814/2008, AGI 20080020077515/2008, AGI 20080020118955/2008 e AGI 20080020104470/2008. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009. Em sentido contrário, permitindo a purgação da mora tendo por base unicamente as parcelas vencidas, vide: RIO GRANDE DO SUL. AGI n° 70013642665/2006. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http//www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009, e DISTRITO FEDERAL. APC n° 20070110809374. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009. Neste último julgado, ressalta-se, o entendimento é no sentido de que a dívida pendente é a dívida vencida e não vincenda, entendimento que deve prevalecer sob pena de se inviabilizar a faculdade da purgação da mora e, desnaturando o contrato de financiamento garantido por alienação fiduciária, obrigar o devedor fiduciante a adquirir o bem à vista e não à prestação, como consta do próprio julgado.
33Ao comentar o §1º do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69, Pablo Berger afirma que: “muito se tem discutido na doutrina nacional acerca da suposta inconstitucionalidade do dispositivo legal acima transcrito, por suposta violação do preceito constitucional do devido processo legal. Não é, contudo, nossa posição acerca do tema em voga. Tratando-se de liminar deferida initio litis, ou seja, com natureza cognitiva sumária, nada obsta que o Juízo, quando da prolação da sentença, deixe de confirmar a liminar deferida, o que mantém o caráter de provisoriedade da tutela antecipada, tratando-se, como tem entendido a melhor doutrina, de contraditório diferido, amplamente permitido pelo Código de Processo Civil.” BERGER, Pablo, op. cit., 2009, on line.
34 BERGER, Pablo. Considerações gerais sobre as modificações introduzidas pela Lei nº 10.931/04 na ação de busca e apreensão regida pelo Decreto-Lei nº 911/69. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 753, 27 jul. 2005. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009; OLIVEIRA, Marcus Vinícius Moura de. Lei nº 10.931/04: as alterações ao Decreto-Lei nº 911/69. Questões relevantes. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 533, 22 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008; REINALDO FILHO, Demócrito, op. cit., 2009, on line. Para este último autor, a decisão liminar que consolida a propriedade e posse plena no patrimônio do autor não é irreversível porque o devedor tem a faculdade de impedir os seus efeitos pagando a integralidade da dívida ou purgando a mora. Além disso, o despacho liminar que determina a busca e apreensão é provisório e pode ser atacado por via de agravo de instrumento. De mais a mais, como nem sempre a sentença é prolatada depois da alienação do bem pelo credor, os efeitos da consolidação podem ser desconstituídos antes que provoquem resultados irreversíveis (em termos da impossibilidade de devolução do mesmo bem ao devedor). Portanto, segundo ele, em termos fáticos, se não é impossível é praticamente muito difícil que o provimento liminar produza efeitos irreversíveis, sem que o devedor possa ou tenha meios para evitá-los. Já em termos econômicos, “[...] também não se pode dizer
102
Para reforçar a comprovação da tese por eles esposada: de que a Lei n° 10.931/2004
não ofendeu as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do
contraditório, referidos autores recorrem ao fato de ter a mencionada lei estabelecido a
condenação do credor fiduciário, na sentença de improcedência da ação de busca e
apreensão, de uma multa equivalente a 50% (cinquenta por cento) do valor originalmente
financiado caso o mesmo, credor fiduciário, tenha se desfeito do bem, multa não
excludente da responsabilidade deste por perdas e danos, a qual deve reverter em benefício
do devedor fiduciante. Além disso, a multa acima aludida, conforme estabelece o §7º do
artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69, com a redação da Lei n° 10.931/2004, não exclui a
responsabilidade do credor fiduciário por perdas e danos, tendo estes por fundamento os
prejuízos amargados pelo fiduciante em decorrência da venda do bem pelo credor antes do
advento da sentença.35
Nesse tocante, Márcio Calil de Assumpção lembra que essa situação se diferencia
sobremaneira daquela outra tratada pelo §6º do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69, “[...] já
que para esta (multa) seu cabimento está condicionado única e exclusivamente à prolação de
uma decisão de improcedência do pedido.” Já no que condiz com a indenização por perdas
e danos estipulada na sentença, esta, indenização, exige uma cognição destinada a
quantificar os prejuízos sofridos pelo devedor, cognição que, a critério do devedor, “[...]
poderá ocorrer (ou não), à escolha do devedor fiduciante, nos mesmos autos em que ficou
definitivamente reconhecida a inexistência do direi to do credor fiduciário, ou seja, na
própria ação de Busca e Apreensão [...]”, podendo ainda ser liquidada e executada nos
próprios autos da ação de busca e apreensão, em razão de uma “[...] interpretação analógica ao
que o despacho de busca e apreensão produza efeitos irreversíveis. A própria Lei que regula o procedimento da ação previu uma multa como substitutivo patrimonial pela perda antecipada da posse do bem, na base de 50% do valor originalmente financiado pelo devedor, que o Juiz condena o credor fiduciário a pagamento em caso de improcedência da ação (par. 6o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69, na nova redação). Ademais, o pagamento da multa não exclui a possibilidade de o credor responder por outros prejuízos que a decisão possa eventualmente causar ao devedor, visto que o parágrafo 7o. do art. 3o. ressalva a responsabilidade daquele por perdas e danos. E a título de perdas e danos, o Juiz poderá sempre condenar o credor a entregar bem idêntico, com as mesmas características (de marca, modelo, ano de fabricação, valor etc), compensando, por essa via, a perda da posse do bem primitivamente transacionado.” Ibid., 2009, on line.
35 BERGER, Pablo, op. cit., 2009, on line; OLIVEIRA, Marcus Vinícius Moura de, op. cit., 2008, on line e REINALDO FILHO, Demócrito, op. cit., 2009, on line. Aliás, sobre a aludida multa, destaca Pablo Berger que sua aplicação não exclui a responsabilidade do credor em caso de perdas e danos comprovadamente sofridos pelo devedor, bem como que a mencionada multa apenas pode ser aplicada pelo juiz se o bem tiver sido por aquele alienado e em caso de improcedência total da ação, sendo vedada sua aplicação em caso de improcedência parcial ou extinção do feito sem julgamento de mérito. Isto porque a responsabilidade do credor fiduciário é, in casu, objetiva, ou seja, independe da existência de culpa. BERGER, Paulo, op. cit, 2009, on line.
103
disposto no art. 588 do Código de Processo Civil, que corresponderá ao novo art. 475-O do
diploma processual (por força da recente Lei nº 11.232/05).”36
A citada lei determina ainda que da sentença, seja ela de procedência ou de
improcedência da ação de busca e apreensão, cabe apelação e não mais agravo de
instrumento, recurso que será recebido apenas no efeito devolutivo.37 Mas não é só: dentre
as alegadas maravilhas da nova lei, destaca-se a nova redação do §4° da Lei n°
10.931/2004, que autoriza o devedor a reclamar a devolução das parcelas eventualmente
pagas em desacordo com a lei ou com o próprio contrato, concluindo pelo seu caráter
dúplice,38 ou então:
[...] se o novo procedimento da ação de busca e apreensão não lhe confere a característica de ação de natureza dúplice - pois o réu não pode demandar a posse do bem no mesmo processo que é promovido contra si -, é certo que o Juiz, no comando sentencial, ainda quando não julgue improcedente o pedido do autor, pode condená-lo a devolver diferenças e valores cobrados em desacordo com a lei, como conseqüência de uma verdadeira revisão que faz do contrato e de suas cláusulas [...].39
Não obstante, contudo, a precisão do raciocínio dos doutrinadores que consideram
constitucional a Lei n° 10.931/2004 na parte que tencionou alterar o Decreto-lei n° 911/69
e parecem enxergar naquela lei verdadeira “panacéia” capaz de remediar todos os males
deste decreto-lei, pensa-se que mesmo que essa norma tivesse sido recepcionada pela Carta
de 1988 as alterações pretendidas pela lei de 2004 seriam igualmente inconstitucionais por
ofenderem as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do
contraditório. Paridade, repise-se, é o cerne da questão ora analisada, e exatamente o que
reclamam as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, à qual
36 ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de, op. cit., 2006, p.204-205. Para esse autor, portanto, “não haverá necessidade
de um processo de conhecimento autônomo para reconhecimento do an debeatur. A obrigação de ressarcir os prejuízos do devedor fiduciário decorrerá da própria decisão que permitiu a venda extrajudicial do bem apreendido (execução provisória) antes do trânsito em julgado.” Ibid., 2006, p.205.
37 Registre-se que a sentença que julgar procedente o pedido constante da ação de busca e apreensão “[...] tem caráter declaratório, pois não tem efeito constitutivo relativamente à consolidação da propriedade; esta resulta, de pleno direito, da verificação da condição, que corresponde à não-purgação da mora. A sentença apenas declara a consolidação.” CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p.228. Lembra, contudo, Márcio Calil de Assumpção que “[...] apesar da carga condenatória não ser preponderante na sentença proferida na ação de Busca e Apreensão, na hipótese de aplicação da multa, bem como na condenação nas verbas de sucumbência, constará do corpo do decisum inevitavelmente um capítulo condenatório.” (itálico no original). ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de, op. cit., 2006, p.202.
38 Nestes termos manifesta-se Marcus Vinícius Moura de Oliveira: “Doravante, com a possibilidade de pedido de repetição de indébito pelo requerido, a ação de busca e apreensão prevista nos casos do Decreto-Lei 911/69 tem caráter dúplice, cabendo, inclusive, a realização de perícia contábil para apuração de valores.” OLIVEIRA, Marcus Vinícius Moura de, op. cit., 2008, on line.
39 REINALDO FILHO, Demócrito, op. cit., 2009, on line.
104
integra o princípio do contraditório. Nestes termos, cabe a pergunta: estão instituições
financeiras e consumidores igualmente protegidos?
Começa-se a analisar a questão pelos prazos para purgação da mora e exercício do
direito de defesa, agora ampla (?), por parte do fiduciante, réu na ação de busca e apreensão
independente e autônoma intentada pelo fornecedor instituição financeira. A purgação da
mora que, segundo a doutrina, pode ser feita tendo por base unicamente as prestações
vencidas sem englobar as parcelas vincendas, como determina a Lei n° 10.931/2004, deve
se dar nos termos dos valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial e dentro do
quinquídio seguinte à juntada aos autos do mandado de citação, sob pena de no sexto dia
consolidam-se de pleno direito a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no
patrimônio do credor, enquanto o prazo para resposta é de quinze dias.40
Ora, é justamente na sua resposta que o fiduciante poderá levar ao conhecimento do
juízo toda a matéria de sua defesa, inclusive acerca da cobrança de valores abusivos
porventura constantes da planilha apresentada pelo credor na inicial de busca e apreensão
e/ou componentes das prestações do financiamento. Assim, mesmo que o réu consiga
provar na sua defesa que o valor por ele efetivamente devido é menor que o valor apontado
pelo credor, será ele impedido de pagar esse valor porque o prazo para a purgação da mora,
de cinco dias, já se esgotou inteiramente antes mesmo de exaurido o prazo para
apresentação de sua resposta, que é de quinze dias, já tendo se consolidado a propriedade e
posse plena do bem infungível nas mãos do credor, eis que o prazo destinado à purgação da
mora apenas permite, sem qualquer discussão, o pagamento pelo devedor do valor cobrado
pelo credor.
Ademais o contrato de alienação fiduciária em garantia firmado entre um consumidor
e uma instituição financeira é indiscutivelmente de adesão, que é ambiente propício à
inserção de cláusulas abusivas e, portanto nulas de pleno direito, cláusulas cuja extirpação
do contrato podem responder inclusive pela vitória no réu na demanda. Contudo, sua
análise apenas se dá na defesa do réu, o que pode ocorrer tardiamente, ou seja, após a
consolidação da propriedade e posse plena do bem infungível nas mãos do credor.41
40 Relembre-se que o pagamento de parcelas vincendas em contratos de financiamento obriga o credor a reduzir
proporcionalmente os juros, nos termos do §2° do artigo 52 do Código de Consumo, já que se trata de liquidação antecipada de débito.
41 Além disso, no contrato de adesão, repise-se, não há espaço para o consumidor exercer sua liberdade na contratação, cabendo-lhe aceitar todas as condições impostas pelo fornecedor que, não raro, sequer lhe dá a
105
Nestes termos, pensa-se não se poder falar em asseguramento às garantias
constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, pois mesmo
que o bem não integre ainda o patrimônio do devedor fiduciante, este, consumidor que é
titular de direitos fundamentais, teve frustrado pela norma seu direito expectativo à
aquisição da propriedade plena do bem, já que impedido fora de ter sua defesa apreciada, e
possivelmente provida, porque antes mesmo que isso pudesse acontecer, a propriedade e a
posse plena e exclusiva do bem objeto do contrato de alienação fiduciária em garantia
operaram-se nas mãos do credor. E se este optou por vender o bem, o terceiro que o
adquiriu não pode ter seu direito molestado.
Argumenta-se que se trata apenas de “contraditório diferido”,42 diferido demais, diga-
se de passagem, a ponto inclusive de ser totalmente inútil ao devedor que não apenas
pretende como possui a legítima expectativa de adquirir a propriedade plena do bem
infungível financiado. Pode-se falar assim em defesa em mero sentido formal, pois não se
presta a atingir os objetivos próprios de uma defesa, em total desobediência aos ditames
constitucionais. Nem se argumente no sentido de que o contraditório pode se manifestar de
uma maneira peculiar: por iniciativa do devedor que, reagindo a algum ato praticado pelo
credor que possa culminar na lesão ou ameaça de lesão a direito seu, ajuíza ação cabível,
como se dá na ação de execução ou monitória, onde o contraditório é iniciado pelo devedor
por meio do ingresso de embargos.
A tese, apesar de seu arcabouço lógico, não é convincente. A análise, ainda que
perfunctória, do tema leva à conclusão de que os embargos à execução opostos pelo
devedor mostram-se como instrumento útil à sua defesa, capaz de prevenir danos ao seu
patrimônio. Isto porque podem ser os mesmos opostos pelo devedor independentemente de
penhora, depósito ou caução de sua parte, além de poder ter atribuído pelo juiz, mediante
requerimento do devedor, efeito suspensivo quando, relevantes seus fundamentos, o
prosseguimento da execução possa manifestamente causar dano de difícil ou incerta
oportunidade de tomar conhecimento prévio do conteúdo do instrumento, conditio sine que non para que o contrato obrigue o consumidor, nos termos do artigo 46 do Código de Consumo. Demais, o consumidor conta com a possibilidade de inversão do ônus da prova a seu favor, nos termos do artigo 6°, VIII, da Lei Protetora, fato que, em ocorrendo, também pode culminar na sua vitória na demanda. Tudo isso, contudo, requer tempo e tempo é justamente o que não dispõe o fiduciante demandado na ação de busca e apreensão independente e autônoma, haja vista consolidar-se automaticamente a propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor fiduciário após o quinquídio legal. Nestes termos, sequer se pode conceber que a Lei n° 10.931/2004 “presenteou” o fiduciante com ampla defesa
42 Consultar nota de rodapé n° 34 deste capítulo.
106
reparação ao executado, nos termos do artigo 736 e do §1º do artigo 739-A do Código de
Processo Civil.
Diga-se o mesmo com relação à ação monitória, pois uma vez oferecidos embargos
pelo réu, suspensa resta a eficácia do mandado inicial, ou seja, a formação do título até o
julgamento destes, nos termos do artigo 1.102-C do Código de Processo Civil. Quer dizer
que tanto na ação de execução como na ação monitória, ambas classificadas como lide de
cognição sumária e contraditório diferido, é possível ao réu, no exercício de sua defesa,
expressão que aqui se emprega em sentido amplo, ter apreciada e impedida lesão ou
ameaça de lesão ao seu direito em razão, inclusive, do excesso de cobrança porventura
existente por parte do credor. 43
Assim, se não se pode falar em inconstitucionalidade por afronta às garantias
constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, nem em sede
de ação de execução, nem em sede de ação monitória, o mesmo não se pode dizer da ação
de busca e apreensão independente e autônoma engendrada pelo Decreto-lei n° 911/69, de
alegada cognição sumária e contraditório diferido, eis que nesta é impossível ao devedor
ver frustrada a lesão, ou ameaça de lesão, ao seu direito, por parte do credor fiduciário –
leia-se instituição financeira – mesmo após o advento da Lei n° 10.931/2004.
Olvidadas, portanto, foram as garantias do devido processo legal44, da ampla defesa e
do contraditório pela lei ora estudada na parte que pretendeu alterar o Decreto-lei n°
911/69, vez que nem a multa estipulada no §6° do artigo 3º do referido decreto nem a
indenização por perdas e danos a que pode ser o credor condenado, conforme consta do §7°
43 Idêntico entendimento adota Denival Francisco da Silva: “Tolerar todos estes excessos sob o mísero
argumento de previsão legal é admitir ofensas constitucionais. Comparar com outros procedimentos judiciais – embora não haja paralelo – para querer justificar a possibilidade das extravagâncias aqui praticadas, é usar da velha prática de que, não obstante as evidências de inconstitucionalidades, se noutras procedimentos eventualmente também as têm, que mal haveria? Dizer, simplesmente que os tribunais têm admitido o procedimento estatuído no Dec. Lei 911/1969, porém sem estes questionamentos, é negar a tarefa judicial de controle difuso da constitucionalidade, e neste caso específico de não recepcionamento. Enfim, diversas outras ponderações são possíveis, podendo ser sintetizadas na clara constatação de que o procedimento regido no decreto não assegura os direitos instrumentais prescritos na Constituição Federal.” SILVA, Denival Francisco da, op. cit., 2008, on line. (Negrito no original).
44 A necessidade de uma razoável duração do processo, igualmente assegurada pelo artigo 5°, LXXVIII da Constituição da República, não pode ser utilizada em prejuízo das demais garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, constantes do artigo 5°, LIV e LV, seja em homenagem à interpretação sistemática das normas constitucionais, seja em razão de essa garantia, de duração razoável do processo, ter sido incluída pela Emenda Constitucional n° 45/2004 e o artigo 60, §4° da mesma constituição não tolerar proposta de emenda sequer tendente a abolir os direitos e garantias individuais, onde já se repousavam as garantias do devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório.
107
do mesmo artigo, prestam-se a suprir as garantias constitucionais já mencionadas.45 Nesse
sentido, Denival Francisco da Silva faz as seguintes considerações:
Quanto ao Dec. Lei 911/1969, a despeito dos remendos que recebeu com a Lei n. 10.931, de 02 de agosto de 2004, trata-se de legislação que, a nosso ver, não fora recepcionada pela Constituição Federal de 1988, pelo fato de extrair do devedor garantias fundamentais que sequer esta última tratativa legal conseguiu reparar. E não haveria de ser diferente, porque somente sua extirpação completa do ordenamento jurídico, com edição de uma nova legislação para regular o instituto da alienação fiduciária, com total atenção ao consumidor, é que se poderia atender integralmente as disposições constitucionais de agora. E se isso não fosse possível, seria mais uma comprovação sintomática de que o malfadado instrumento legal não pode prevalecer nos dias atuais, sobretudo na sua concepção original.46
Por outro lado, ainda que se admita que o fiduciante possa defender seus direitos por
meio do ajuizamento de ações revisionais e/ou ações de consignação em pagamento, tem-
se que levar em consideração que o consumidor, leigo em sua maioria, não está em pé de
igualdade com o fornecedor instituição financeira, seja porque não está preparado para
litigar como este, que não raro possui um setor jurídico organizado à sua disposição, seja
porque nos próprios contornos da ação de busca e apreensão independente e autônoma é
que deve ser garantido ao devedor o devido processo legal e plenamente assegurado direito
à ampla defesa, aí incluído o contraditório. Além disso, as referidas ações, revisional e
consignatória, não se mostram como meios eficazes para barrar os efeitos da ação de busca
e apreensão independente e autônoma. Isto porque, uma vez comprovada, pelo credor
fiduciário, a mora do devedor fiduciante, ao juiz cabe unicamente a concessão da medida
liminar requestada pelo credor, já que a apreciação da defesa do réu, na qual certamente
constará a alegação do depósito porventura feito em juízo e o consequente pedido de
45 A previsão dessa multa pela lei, como é óbvio, contudo, não tem o condão de elidir o vício da
inconstitucionalidade que habita no novo §1º do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69. Esse, aliás, o entendimento de Alex Sandro Ribeiro: “Essa previsão tenta aplacar a insurgência contra a drástica consolidação liminar da propriedade (art. 3º, § 1º, do Decreto Lei n. 911/69) e a faculdade de alienação extrajudicial do bem. Realmente, ameniza de algum modo o prejuízo e acalma a irresignação. Não tem, contudo, o condão de expungir o vício de inconstitucionalidade daqueloutro dispositivo, que permite a privação do patrimônio sem o devido processo legal.” RIBEIRO, Alex Sandro, op. cit., 2008, on line.
46 SILVA, Denival Francisco da, op. cit., 2008, on line. Mesmo tecendo inúmeras e acirradas críticas ao Decreto-lei n° 911/69 e admitindo as evidentes inconstitucionalidades desta norma, referido autor conclui apenas no sentido de ser conferido ao referido decreto-lei uma interpretação conforme os princípios constitucionais: “Não há como admitir a atualidade e plena vigência do Dec. Lei 911/1969 sem ao menos formular-lhe uma crítica acirrada. Mas, a despeito das evidentes inconformidades com a nova ordem constitucional, esta legislação tem ainda assim recebido os beneplácitos dos juristas de agora, seja nas decisões judiciais, seja na doutrina. [...] Assim é que, em face das argumentações aqui expedidas, mesmo que se tolere a vigência do Dec.-Lei 911/1969, não se pode desprezar, na sua interpretação, os princípios constitucionais do devido processo legal e da defesa do consumidor, devendo por isso dar-se nova sistemática procedimental, pouco (ou quase nada) se podendo aproveitar da referida legislação.” Ibid., 2008, on line. (destaques no original).
108
liberação da dívida, apenas ocorrerá após a consolidação da propriedade e a posse plena
nas mãos do credor fiduciário.47
Sequer se concebe a possibilidade de o particular que celebra com seu par um
contrato de alienação fiduciária em garantia poder manejar a ação de busca e apreensão
independente e autônoma engenhada pelo Decreto-lei n° 911/69, como se infere de seu
novo artigo 8º-A, acrescido pela Lei n° 10.931/2004, que, para pôr fim a toda e qualquer
discussão doutrinária e jurisprudencial, reza que o procedimento judicial ali disposto
aplica-se exclusivamente às hipóteses da Seção XIV da Lei no 4.728, de 14 de julho de
1965, vale dizer, quando o contrato de alienação fiduciária em garantia tiver sido celebrado
no âmbito do mercado de capitais, ou seja, por financeiras, ou ainda nos casos de
constituição da propriedade fiduciária para fins de garantia de débito fiscal ou
previdenciário, deixando mais que claro privilegiar as instituições financeiras,
47 Acompanhemos a seguinte hipótese: A adquire um veículo automotor para uso pessoal na loja B, aderindo a
contrato de financiamento, leia-se contrato de adesão, com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia junto ao banco C, que diluiu valores indevidos na prestação mensal cobrada ao consumidor, fato suficiente para configurar a mora do credor. Diante do não pagamento de três prestações do financiamento pelo devedor fiduciário, o credor intentou ação de busca e apreensão do veículo adquirido após protestar o título firmado pelo fiduciante, tendo o magistrado concedido liminarmente seu pleito apoiado no §1° do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69, com a redação que lhe emprestara a Lei n° 10.931/2004, eis que comprovada fora a mora através do protesto. O devedor, por sua vez, não pagou o montante cobrado pelo credor na inicial de busca e apreensão e acabou por ser impedido de afastar a mora debitoris porque sua defesa fora apreciada e provida somente após a consolidação da propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor. Uma vez extinto o feito sem julgamento de mérito em razão de constituir a mora do devedor o fundamento da ação de busca e apreensão, restou o devedor como único prejudicado, eis que o credor se desfez do bem antes mesmo da prolação da sentença, frustrando não apenas seu direito expectativo à aquisição da propriedade plena da coisa, mas também seu direito básico à efetiva prevenção dos danos previsto no artigo 6°, VI, do CDC. Sobre a aceitação da mora do credor fiduciário em razão da cobrança de valores indevidos ao devedor fiduciante, inclusive previstos em cláusula contratual abusiva, e a conseqüente extinção da ação de busca e apreensão sem julgamento de mérito, vide as seguintes decisões: RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70026762989. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Julgado em 27 nov. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70026964189. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Julgado em 30 out. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70027214139. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Julgado em 27 nov. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70027331750. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Julgado em 27 nov. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70026987677. Décima Quarta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Relator: Dorval Bráulio Marques. Julgado em 22 jan. 2009. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009. Registre-se ainda que segundo Alex Sandro Ribeiro, ao consagrar a consolidação da propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor fiduciário a Lei n° 10.931/2004 “Data venia, atinge as raias do absurdo, principalmente se considerado que se está diante de uma decisão interlocutória (que decide incidentes do processo) deferida initio litis e inaudita altera parte que, olvidando sua essência de provisória, termina por produzir efeitos de coisa julgada material, como se de sentença meritória irrecorrida se tratasse.” Para ele, portanto, é inconstitucional a consolidação liminar da propriedade nas mãos do credor fiduciário. RIBEIRO, Alex Sandro, op. cit., 2008, on line.
109
equiparando-as até ao fisco e à previdência social, que sempre gozaram dos beneplácitos do
legislador brasileiro.48
Flagrante, desse modo, a violação ao princípio da igualdade e às garantias do devido
processo legal, da ampla defesa e do contraditório, todos albergados pela Constituição de
1988, a denunciar a inconstitucionalidade da Lei n° 10.931/2004, bem como a não
recepção do Decreto-lei n° 911/69 pela Carta Maior.49
Consigne-se ainda que não se admite possa ser dada uma interpretação conforme a
constituição à Lei n° 10.931/2004, na parte que pretendeu reformular o Decreto-lei n°
911/69, pois mesmo que isso fosse possível com relação à purgação da mora, para permiti-
la no prazo de cinco dias seguintes à juntada aos autos do mandado de citação, com o
depósito pelo devedor das parcelas vencidas, sem englobar, portanto, as prestações
vincendas, como determina a aludida lei, o mesmo não se pode fazer com relação aos
demais dispositivos que ofendem o princípio da igualdade e as garantias do devido
processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Isto porque não se pode, a pretexto de
dispensar uma interpretação conforme a constituição a uma determinada norma, alterá-la a
ponto de fazer do intérprete o próprio legislador, em atentado inclusive ao princípio da
separação dos poderes, como ocorreria caso se tentasse proceder à conformação integral da
Lei n° 10.931/2004, na parte que tencionou alterar o Decreto-lei n° 911/69, aos ditames
constitucionais, para adequá-la ao princípio da igualdade e assegurar ao devedor fiduciante
48 Importante esclarecer aqui que quando se fala em equiparação de instituição financeira à entidade estatal não
se pretende dizer que as entidades estatais devam gozar de privilégios frente ao cidadão, mas apenas que podem tais entidades ser tratadas diferentemente do cidadão quando o interesse público o exigir, e apenas nesse caso. Entretanto, a constitucionalidade ou não do tratamento legal diferenciado dispensado ao fisco e à previdência social diante do devedor nos contratos de alienação fiduciária em garantia não será aqui abordada por extrapolar, em muito, o âmbito da presente dissertação.
49 No mesmo sentido o entendimento de Walter Lemos e Henriques Leite: “Outro princípio constitucional ofendido por esta determinação legal é da igualdade, que está descrito no art. 5°, onde se afirma que todos são iguais perante a lei. Com Decreto-lei n° 911/69, as instituições financeiras são tratadas de forma especial e privilegiadas pela legislação em detrimento dos devedores fiduciário, o que demonstra que a lei trata desigualmente as partes.” LEMOS, Walter Gustavo da Silva; LEITE, Antônio Henriques Lemos, op. cit., 2008, on line. Para Eduardo Prado Kolton e Mateus Lima Silveira, as alterações mais importantes trazidas pela Lei n° 10.931/2004 ao Decreto-lei n° 911/69 “[...] somente facilitam a atuação das instituições credoras, tanto na busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, como na sua venda, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa no contrato, ficando, o devedor fiduciário indefeso. Além disso, ferem os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, da isonomia e do livre convencimento do juiz, levando-o a conceder a busca a apreensão do bem alienado fiduciariamente sem a oitiva da parte contrária.” KOLTON, Eduardo Prado; SILVEIRA, Mateus Lima. Abordagem crítica ao Decreto-Lei nº 911/69 e suas alterações. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br>. Acesso em: 15 maio 2009.
110
as garantias legais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, na ação de
busca e apreensão independente e autônoma do Decreto-lei n° 911/69.50
Não bastasse tudo isso, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe chamam a
atenção para a existência de grave vício formal na formulação da Lei n° 10.931/2004, “[...]
argüido e pronunciado de ofício em acórdão do TJSP, 23ª Câmara de Direito Privado, AI
7.011.347-2, rel. Des. J.B. Franco de Godói, j. 29.06.2005.”, vício capaz de responder pela
sua expunção do sistema normativo brasileiro:
Na oportunidade do exame de tema paralelo, que foi o da cédula de crédito bancário, caracterizada como título executivo extrajudicial no capítulo IV, arts. 26 a 45, por aquela nova lei, a Turma Julgadora suscitou preliminar, resolvida com o entendimento de que a inobservância, pelo legislador ordinário, na elaboração da Lei 10.931, de princípios insculpidos na Lei Complementar 95/1998, macula-a de ‘grave vício capaz de rechaçá-la do ordenamento jurídico’, por violação no processo legislativo ao determinado no art. 7.° da lei de hierarquia superior, fincada em cânone constitucional, art. 59, parágrafo único, que determina que ‘o primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação’; e ainda que, excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto, de modo que ‘a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão’ (inciso II). O aresto paulista detecta que o art. 1.° da Lei 10.931 dispõe exclusivamente sobre a instituição do ‘regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias’, enquanto no bojo dessa lei vêm disciplinados vários outros assuntos, o que mereceu a seguinte crítica: ‘O embaralhamento das matérias cuidadas pela Lei 10.931/2004 é de causar espécie a qualquer operador do Direito, eis que dispõe sobre a matéria acima referida, bem como ainda: da letra de crédito imobiliário; da cédula de crédito imobiliário,dos contratos de financiamento de imóveis; de alterações da lei de Incorporações; das alterações da Lei sobre Alienação Fiduciária no mercado financeiro e de capitais; alterações no Código Civil e, pasmem, alterações na Lei de Registros Públicos.’ É certo que o acórdão (que examinava tema sobre cédula de crédito bancário) faz a ressalva, expressa, de que ‘as demais situações jurídicas contidas no indigitado diploma legal refogem ao âmbito de análise do presente recurso’; mas a reestruturação da alienação fiduciária pelos arts. 55, 56, 58 e 67 da Lei 10.931, encontra-se em similar situação de anomalia formal da cédula de crédito bancário, execrada no julgamento que por isso anulou o processo de execução intentado.51
Antes de se partir para a averiguação da possibilidade de prisão civil do devedor
fiduciante nos contratos de alienação fiduciária em garantia, há ainda um aspecto que
precisa ser analisado: a venda extrajudicial do bem pelo credor independentemente de
avaliação prévia de seu valor e de prestação de contas ao devedor após a consolidação da
propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor.
50 Para Antônio Henrique Graciano Suxberger, “[...] interpretar conforme a Constituição não significa alterar o
conteúdo da lei. Até mesmo porque, se assim fosse, tratar-se-ia de uma intervenção extremamente drástica na esfera de competência do legislador – mais drástica do que a própria declaração de nulidade dessa mesma lei. Tal hipótese permitiria ao ente legiferante a possibilidade de uma nova conformação da matéria, traindo, portanto, a eminente natureza de sua tarefa primitiva.” SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Interpretação conforme a Constituição. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n.39, fev. 2000. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2009.
51 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.17-18.
111
5.2.4 Consolidação da propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor
A apreciação do momento que se segue à consolidação da propriedade e posse plena
do bem objeto de alienação fiduciária em garantia nas mãos do credor diz respeito à
decisão por ele tomada com relação à coisa recebida. Fala-se aqui mais precisamente da
opção do credor de ficar com o bem ou aliená-lo a um terceiro. Neste tocante, alerta a
doutrina para o fato de que o advento da Lei n° 10.931/2004 pôs fim à proibição do pacto
comissório no âmbito do mercado de capitais em razão da revogação do §7° do artigo 66
da Lei n° 4.728/65, que rezava ser nula a cláusula que autorizasse o proprietário a ficar com
a coisa alienada em garantia se a dívida não fosse paga no seu vencimento. Nestes termos,
decorrido o quinquídio da execução da liminar nos autos da ação de busca e apreensão
independente e autônoma sem a purgação da mora por parte do devedor, o credor passa a
ter a plena propriedade da coisa, “[...] podendo revendê-la para recuperar seu crédito ou
simplesmente ficar com ela para uso próprio [...].”52
Ora, uma vez suprimido o §7º do artigo 66 da Lei n° 4.728/65, a matéria passa a ser
regida subsidiariamente pelo Código Civil, desde que, claro, os dispositivos que regulem
essa matéria específica não sejam incompatíveis com o disposto na Lei de Mercado de
Capitais. O artigo 1.364 da Lei Comum determina que uma vez vencida e não paga a dívida
fica o credor obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros e a
aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, entregando o
saldo, se houver, ao devedor, proibida expressamente que é pelo caput do artigo seguinte
do mesmo diploma legal a instituição do pacto comissório nos contratos de alienação
fiduciária em garantia. Por via transversa, contudo, o parágrafo único do artigo 1.365 do
Código Civil acaba por permitir o pacto comissório em momento posterior à celebração do
contrato, ao facultar ao devedor, desde que haja a anuência do credor, dar seu direito
eventual à coisa em pagamento da dívida, após vencida esta, muito embora ocorra, nesse
caso, a quitação legal do débito.53
Isto porque, se a dação de seu direito eventual à propriedade do bem pelo devedor
tem por fim o pagamento da dívida, o destinatário dessa dação é ninguém mais ninguém
52 REINALDO FILHO, Demócrito, op. cit., 2009, on line. 53 Paulo Sérgio Restiffe e Paulo Restiffe Neto entendem que “não há incompatibilidade de integrar-se a proibição
codificada do pacto comissório harmonicamente com o espírito da lei especial, por aplicação subsidiária, à alienação fiduciária no âmbito do mercado financeiro e de capitais e, com maioria de razão, aos créditos fiscais e previdenciários [...].”RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.102.
112
menos que o próprio credor fiduciário, que adquirindo a propriedade do bem alienado
fiduciariamente, acaba por dispor da propriedade plena da coisa, podendo dar a esta o
destino que melhor lhe aprouver. Deságua, portanto, o parágrafo único do artigo 1.365 do
Código Civil na permissão da estipulação do pacto comissório nos contratos de alienação
fiduciária em garantia quando da ocorrência de mora pelo devedor, mesmo que de forma
oblíqua e em momento posterior à celebração da avença, conquanto extinga o vínculo
existente entre o credor e o devedor pela quitação do débito.
A dicção legal não dispensa a anuência do credor à dação do direito eventual pelo
devedor exatamente porque a mesma tem por finalidade o pagamento, ou melhor, a
quitação da dívida, liberando o devedor do vínculo com o credor. Além disto, extrai-se dos
termos do artigo 356 do mesmo Código Civil que cabe ao credor a decisão de receber ou
não prestação diversa da que lhe é devida que, no caso da alienação fiduciária em garantia,
é o dinheiro emprestado e não o bem que fora dado em garantia do pagamento do dinheiro.
Ademais, a Lei n° 10.931/204, ao tencionar dar nova redação ao §1° do artigo 3° do
Decreto-lei n° 911/69 (que consolida a propriedade e posse plena e exclusiva do bem no
patrimônio do credor fiduciário uma vez decorrido cinco dias da execução da liminar sem a
purgação da mora por parte do devedor) permitiu às repartições competentes expedir novo
certificado de registro de propriedade do bem em nome do credor, ou do terceiro por ele
indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária, o que leva à conclusão de que sua real
intenção foi eliminar a proibição do pacto comissório nos contratos de alienação fiduciária
em garantia celebrados no âmbito do mercado de capitais.54
Ressalte-se que, uma vez considerada constitucional a integralidade da Lei n°
10.931/2004, a permissão do estabelecimento do pacto comissório por ela trazida seria
válida, eis que altera o disposto na Lei n° 4.728/65, Lei de Mercado de Capitais, que regula
a parte material dos contratos de alienação fiduciária em garantia celebrados no âmbito do
54 Importante consignar que quando houver, pelo credor, venda a terceiro do bem fiduciariamente alienado, pode
o devedor, mediante ação monitória, haver o saldo remanescente por ventura existente, nos termos da Súmula 384, recentemente editada pelo Superior Tribunal de Justiça. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 384. Cabe ação monitória para haver saldo remanescente oriundo de venda extrajudicial de bem alienado fiduciariamente em garantia. Segunda Seção. Julgado em 27 maio 2009. Diário de Justiça, Brasília, DF, 08 jun. 2009. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2009. Registre-se que acaso válido fosse, o Decreto-lei n° 911/69 não constituiria óbice algum à permissão do estabelecimento do pacto comissório entre os contratantes, uma vez que além do disposto no §1º de seu artigo 3º, seu artigo 2º se limita a autorizar a venda da coisa a terceiros, “[...] independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato [...].”BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei n° 911, de 1º de outubro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 30 jun. 2008.
113
mercado de capitais, muito embora a referida modificação ocorra em total descompasso
com a natureza mesma do contrato de alienação fiduciária em garantia, cujo fundamento
precípuo é o estabelecimento de uma garantia que permita a rápida recuperação do crédito
pelo fiduciário, que é obtida com a venda do bem a terceiro e não com a integração da
propriedade plena do bem no patrimônio do credor para que este possa dele se utilizar, em
vez de aliená-lo.55 No caso do Decreto-lei n° 911/69, uma vez consolidada a propriedade e
posse plena nas mãos do fiduciário, o que ocorre após o quinquídio da execução da liminar
concedida na ação de busca e apreensão ajuizada pelo credor quando não purgada a mora
pelo devedor, aquele não é legalmente obrigado nem a proceder à avaliação prévia do bem,
nem a prestar contas da venda de excussão do bem ao fiduciante, que também não precisa
ser chamado para acompanhar o procedimento.56
Uma vez procedida à avaliação do bem, é provável que não se possa mais precisar
seu exato valor na época de sua entrega pelo devedor ao credor e esmorecido estará o
direito daquele. Atente-se ainda para o fato de que ausente discussão em ação judicial
acerca do valor da dívida decorrente do contrato de alienação fiduciária em garantia pelo
fiduciante, esta, dívida, importará no montante cobrado pelo credor e, em havendo excesso
na cobrança por parte deste, apenas o devedor sofrerá prejuízo, até porque raros não são os
casos em que o devedor confessa dívidas nos moldes ditados pelo credor, que se beneficia
inclusive com títulos executivos extrajudiciais prontos para execução. É que o devedor
55 Semelhante é o entendimento de Melhim Namem Chalhub: “[…] no caso de inadimplemento do fiduciante, a
propriedade se consolida no credor, sendo este obrigado a promover a venda do bem para, com o produto da venda, obter a satisfação do seu crédito. Não se trata de mera autorização dada ao fiduciário, mas, sim, um direito-dever intrínseco à natureza do contrato de alienação fiduciária, […], pois esse contrato caracteriza-se, mesmo, ‘pelo fato de constituir, em favor do credor, uma propriedade resolúvel e onerada com encargo’.” CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p.231-214. Entretanto, a Lei Comum deixou a porta aberta para o cometimento de abusos por parte do credor fiduciário, que jamais receberá o bem objeto do contrato de alienação fiduciária como pagamento, liberando, por conseguinte, o devedor da dívida se a coisa não tiver, no mínimo, o mesmo valor desta e, como essa situação é matematicamente bem difícil, embora não impossível, de ocorrer, frequentemente acontecerá de o credor apenas anuir em receber o bem cujo valor seja superior, e quiçá bem superior, ao valor da dívida do fiduciante, que nada mais poderá reclamar em juízo ou fora dele, autorizado que fora o enriquecimento sem causa do credor em razão dessa dação de seu direito eventual em pagamento pelo devedor, situação que assume primordial importância quando se trata do mercado de capitais, onde o contrato de alienação fiduciária em garantia é celebrado em larga escala com o consumidor, este vulnerável por expressa disposição legal.
56 No mesmo sentido manifestam-se Walter Lemos e Henriques Lemos: “o enfoque central deste artigo é sobre a venda extrajudicial do bem a bem prazer do credor, independente de avaliação e em procedimento administrativo próprio, sem nenhum critério de vigilância pré-estabelecido, o que resulta sempre em alcance de preço vil.
E, soando como desmando, o proprietário fiduciário não é obrigado prestar contas sobre a venda no processo judicial que autorizou, cabendo ao devedor pedi-la em ação própria, o que deixa o credor em posição bastante confortável, pois realiza a venda e não é obrigado à prestação de contas. Assim, é visível que o proprietário fiduciário, ao decidir unilateralmente sobre o preço na venda da coisa apreendida a terceiros, pratica ato privativo do Juiz, podendo cometer abusos e, absurdamente, ainda lhe resta o direito de promover a cobrança judicial dos valores remanescentes da dívida em face do devedor fiduciante.” LEMOS, Walter Gustavo da Silva; LEITE, Antônio Henriques Lemos, op. cit., 2008, on line.
114
continua pessoalmente obrigado a pagar o valor restante da dívida quando o montante
apurado na venda do bem a terceiro levada a efeito pelo credor for inferior ao valor do
débito do fiduciante, sob pena de enriquecimento sem causa.57
Contra o que argumentam os defensores da Lei n° 10.931/2004, que pretendeu
reformular o Decreto-lei n° 911/69, é preciso lembrar que a mesma não foi capaz de
obrigar o credor fiduciário a fazer a prévia avaliação do bem logo após a consolidação de
sua propriedade plena em seu patrimônio, nem de deixar a ação de busca e apreensão
independente e autônoma em aberto, ou suspensa, mesmo após a prolação da sentença, até
que o credor apresentasse uma prestação de contas ao devedor caso decidisse pela
alienação da coisa, já que o produto da venda reverte para o pagamento da dívida, a
propiciar inclusive a apuração do saldo remanescente e sua cobrança pelo agora credor, que 57 Sobre o assunto escrevem Paulo Sérgio Restiffe e Paulo Restiffe Neto: “quanto à não reprodução do texto do §
5º do art. 66 da Lei 4.728/1965, que mantinha a obrigação do devedor pelo saldo devedor, quando o preço da venda de excussão fosse insuficiente para cobrir o crédito mutuado, a permanência dessa responsabilidade pelo restante para o devedor na fidúcia paritária decorre do Código Civil (art. 1.366), e deve ser considerada não só compatível com a garantia fiduciária financeira da legislação especial, mas sobretudo da essência da natureza do mútuo, que caracteriza o contrato principal de empréstimo inadimplido, o direito do mutuante de recuperar o seu capital. [...]. A liberação excepcional do mutuário pelo restante dependeria de lei expressa, sob pena de locupletamento sem causa [...]” RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.98. (Itálico no original). Abra-se um parêntese para registrar que as dívidas bancárias, como é cediço, tornam-se impagáveis rapidamente, dado o seu crescimento em progressão geométrica. A avidez das instituições financeiras chega a ser tamanha que Marcos Antonyo Lima, em artigo sobre os devedores dos bancos, dá-nos conta do estado emocional desses devedores, que: “[...] entram em pânico, e não sabem como lidar com o fato, nem qual atitude tomar [...]”, havendo até “[...] caso de infarto fatal, pois muitas, ao se deparar com uma dívida impagável, imaginam que terão seus bens penhorados automaticamente pelo banco para atender o monstruoso débito apresentado [...].” Exemplificando melhor o crescimento da dívida, escreve Marco Antonyo no mesmo artigo que: “e se algum dia, por motivos de força maior, você ficar inadimplente com seu banco, por um período de cinco ou seis meses, ou mais, em um débito com valor principal de 10 mil reais, por exemplo, e esse banco lhe apresentar uma dívida de 30 mil reais, ou mais que isso, não se assuste, pois o uso dessa fórmula matemática, em benefício próprio, é muito comum pelos bancos brasileiros [...].” LIMA, Marcos Antonyo. Escravo$ dos banco$. Disponível em: <http://www.escravosdosbancos.com.br>. Acesso em: 15 maio 2009. Claro que não se faz aqui apologia à inadimplência, absolutamente não. Se há dívida, deve haver seu correspondente pagamento. Entretanto, não se pode aceitar jamais que um consumidor que não conseguiu pagar sua dívida a um banco precise trabalhar quiçá pelo resto de sua vida unicamente para tentar pagá-la transferindo praticamente todo o seu salário para a instituição financeira credora, reduzindo-se à condição análoga a de um escravo. Trata-se de abominável resquício de escravatura, sendo oportuno ressaltar que na atualidade, nem o pagamento de pensão alimentícia, um dever inquestionável de um pai para com os filhos, que busca viabilizar o direito à vida, pode se constituir em espécie de escravidão, como vêm se pronunciando os Tribunais nacionais. Nesse sentido, confiram-se as Apelações Cíveis n°s 70007168461 e 70008859928. RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível nº 70007168461. Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 12 nov. 2003. Disponível em: <http//www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 15 maio 2009. RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível nº 70008859928. Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 23 jun. 2004. Disponível em: <http//www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 15 maio 2009. Tampouco, registre-se, “[...] se pode olvidar que o direito existe para fomentar a paz social e servir ao homem. O homem não pode ser escravo de norma escorchante, nem dela fazer uso para pôr em movimento a desagregação.” Assim se pronunciou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal na Apelação Cível n° 20000150005270. DISTRITO FEDERAL. Apelação Cível nº 20000150005270. Segunda Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Romão C. Oliveira. Julgado em 13 ago. 2001. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 15 maio 2009.
115
tanto pode ser o fiduciário ou o fiduciante, a depender da análise do caso concreto. E nem
se argumente no sentido de que a ação de busca e apreensão, por sua própria natureza, não
se prestaria a, após a apuração do débito, viabilizar a cobrança do saldo credor pelo
fiduciante, uma vez que ao fiduciário que não receber a coisa nem seu equivalente em
dinheiro, é garantido, nos termos do artigo 906, do Código de Processo Civil, “[...]
prosseguir, nos próprios autos da ação de depósito por conversão, para haver o que lhe for
reconhecido na sentença, observando-se o procedimento cabível.”, o que ocorreria também
em atenção aos princípios da economia processual e do amplo acesso à justiça.58
Nestes termos, ao devedor foi negada a possibilidade de imediata reação, consectário
lógico do contraditório, não se podendo sequer alegar que a possibilidade de reação nesse
caso é possível através do ingresso com ação judicial autônoma. Isto porque esta jamais
será imediata se o devedor fiduciário não souber, porque não lhe foi assegurado o direito de
saber, o valor do bem quando da consolidação da propriedade deste nas mãos do credor,
vez que este não é obrigado a proceder a uma avaliação prévia na coisa. Demais, não é o
credor obrigado a chamar o devedor para acompanhar a venda extrajudicial do veículo, não
obtendo este último, a partir do momento que é desapossado do bem, nenhuma informação
por parte do credor fiduciário, que se limita, não raro, a cobrar o saldo remanescente da
dívida ao fiduciante tempos depois da integração da propriedade no seu patrimônio, quiçá
meses ou até anos após.
Relembre-se que se a não recepção do Decreto-lei n° 911/69 se deu com a
promulgação da Constituição Federal de 1998, não poderia a Lei n° 10.931/2004 alterá-la.
Mesmo que se admitisse a possibilidade de alteração daquele decreto-lei por uma nova lei,
inclusive pelo fato de ser esta posterior à Constituição de 1988, a novel norma teria
primeiro que satisfazer o vital requisito da conformidade com a Carta Maior, sob pena de
nascer morta, que foi exatamente o que aconteceu com a Lei n° 10.931/2004, na parte que
pretendeu alterar o aludido decreto-lei.
Ultrapassados esses pontos, resta ainda responder à questão formulada no capítulo
anterior, que versa sobre a possibilidade ou não de estar sujeito o devedor fiduciante à
prisão quando considerado depositário infiel do bem fiduciariamente alienado.
58 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.174.
116
5.2.5 Constitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciário
Nos termos dos artigos 627 e 629 do Código Civil pátrio, existe contrato de depósito
quando o depositário recebe um objeto móvel para guardar até que o depositante o reclame,
constituindo obrigação do depositário dispensar na guarda e conservação da coisa
depositada o cuidado e a diligência que costuma ter com o que é de sua propriedade.59 O
§17 do artigo 150 da Constituição de 1969 dispunha que não haveria prisão civil por
dívida, salvo o caso do depositário infiel ou do responsável pelo inadimplemento de
obrigação alimentar, na forma da lei.60 Já o antigo §2º do artigo 66 da Lei n° 4.728/65, Lei
de Mercado de Capitais, com a redação que lhe emprestara o Decreto-lei n° 911/69,
equiparando o devedor fiduciário a depositário, rezava transferir o instrumento de alienação
fiduciária o domínio da coisa alienada independentemente de sua tradição, continuando o
devedor a possuir o bem em nome do adquirente, segundo as condições estabelecidas no
contrato e com as responsabilidades de depositário.61
Como o artigo 4º do Decreto-lei n° 911/69 previa (e ainda prevê) a possibilidade de
conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, nos mesmos autos, adotando-
se a forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil,
se o bem alienado fiduciariamente não fosse encontrado ou não se achasse na posse do
devedor fiduciante, e o §1º do artigo 902 do mencionado Diploma Legal permitia (e ainda
permite), mediante pedido do interessado, a cominação da pena de prisão pelo prazo de até
1 (um) ano, nos termos do parágrafo único do artigo 904 do Código de Ritos, julgado
procedente o pedido na convertida ação de depósito, o juiz ordenaria a expedição do
59 Informa Odete Novais Carneiro Queiroz haver no direito brasileiro três modalidades de depósito: o depósito
civil, regulado pelos artigos 627 e seguintes do Código Civil Brasileiro; o depósito mercantil, “[...] que é aquele feito por comerciante, ou ainda aquele oriundo de negócio relativo ao comércio (art. 628 do CCB), que tem como uma das modalidades mais usuais o depósito bancário [...]” e o depósito judicial, proveniente de determinação do Poder Judiciário, via mandado. Já com relação ao depósito civil, que é a espécie de depósito que guarda relação com o assunto que ora se estuda, subdivide-se este em duas outras categorias: a do depósito voluntário, que é a espécie de contrato livremente acordado entre as partes, e a do depósito necessário, que é aquele determinado pelas circunstâncias e compreende o depósito legal, ou seja, o depósito determinado pela lei; o depósito miserável, que ocorre em situações de calamidade e o depósito do hoteleiro ou do hospedeiro, equiparado ao depósito necessário e presente no parágrafo único do artigo 629 do Código Civil. QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. Prisão civil e os direitos humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.26, 30 e 31. Em regra gratuito, o contrato de depósito, nos moldes do artigo 628 do CC/2002, torna-se oneroso se houver convenção em contrário, se resultante de atividade negocial ou se o depositário o praticar por profissão.
60 Eis a redação do §17 do artigo 150 da Constituição de 1967: “Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel, ou do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar na forma da lei.” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008.
61 Fala-se na antiga redação do mencionado dispositivo porque com as alterações introduzidas na Lei de Mercado de Capitais pela Lei n° 10.931/2004 não há mais referência à responsabilidade do fiduciante como depositário.
117
mandado para a entrega da coisa depositada ou seu equivalente em dinheiro no prazo de 24
(vinte e quatro) horas, sob pena de prisão do devedor fiduciante, equiparado este que era a
depositário infiel. Isto porque nos termos do artigo 1.287 do Código Civil de antanho, o
depositário que não restituísse o bem quando este lhe fosse exigido seria compelido a fazê-
lo mediante prisão não excedente a 1 (um) ano e a ressarcir os prejuízos sofridos pelo
depositante, nos casos de depósito voluntário ou necessário, dispositivo que corresponde ao
artigo 652 do Código Civil de 2002.62
Nesse cenário, tornou-se praxe a conversão da ação de busca e apreensão
independente e autônoma em ação de depósito com o pedido de prisão do devedor
fiduciante quando o bem alienado fiduciariamente não fosse encontrado, não se achasse na
sua posse ou não houvesse o pagamento de seu equivalente em dinheiro. E prisões houve,
já que, relembre-se, pelo legislador ordinário, conforme permitiu a Constituição de 1969,
equiparado fora o devedor fiduciante a depositário infiel quando não devolvia o bem nem
entregava seu equivalente em dinheiro ao credor fiduciário. Por muito tempo então, como
informa Odete Novais Carneiro Queiroz, não houve “[...] vacilação em condenar-se à
prisão o fiduciante inadimplente que não restituísse a coisa alienada [...]” nem oferecesse
seu equivalente em dinheiro. Dificuldades, entretanto, enfrentaram doutrina e
jurisprudência:
[...] em virtude da similitude e equiparação de diversos institutos feita pelo legislador, muito embora se façam também presentes características que os distinguem. Por exemplo, a alienação fiduciária em garantia, conforme o próprio nome sugere, não é um depósito e sim um acréscimo de garantia que se criou em benefício do credor, visando, na verdade, questões meramente econômicas. No entanto, por um grande período, aplicou-se a pena da prisão civil ao devedor fiduciante por ter havido remissão ‘do legislador ordinário ao depósito genuíno.63
No autêntico contrato de depósito, governado pelo Código Civil, o bem é confiado ao
depositário para custódia e deve ser restituído quando requerido pelo depositante. Já no
62 Era a seguinte a redação do artigo 1.287 do CC/16: “Seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário,
que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo, mediante prisão não excedente a 1 (um) ano, e a ressarcir os prejuízos (art. 1.273).” Já o artigo 652 do Código Civil vigente traz a seguinte redação: “Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos.” BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008; BRASIL. Código Civil de 1916. São Paulo: Manole, 2003.
63 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.58 e 25. Registre-se aqui que Celso Marcelo de Oliveira noticia que: “[...] já em 1972 se levantam vozes contrárias ao decreto de prisão basicamente porque não teria sido intenção do legislador constitucional impor a aplicação da coerção e nem deixar ao arbítrio do legislador ordinário a sua fixação aleatória, notadamente considerando a equiparação do devedor fiduciante a depositário realizada por técnica de ficção, incorporando à situação fictícia uma medida reprovada pela lei mais alta.” OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Impossibilidade de prisão civil em contratos com garantia de alienação fiduciária. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 37, dez. 1999. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 10 ago. 2008.
118
contrato de alienação fiduciária em garantia, depósito não existe, mas verdadeira posse da
coisa, que pode ser utilizada pelo fiduciante em razão da própria natureza do contrato de
alienação fiduciária em garantia, onde há, inclusive, direito expectativo à propriedade do
bem por parte do fiduciante. Nestes termos, a custódia do bem é apenas acidental no
contrato de alienação fiduciária em garantia ao passo que é inerente ao contrato de depósito
mesmo quando autorizada, pelo depositante, a utilização do bem por parte do depositário,
autorização que se dá, aliás, em caráter excepcional.64
No contrato de depósito é regra a entrega do bem assim que solicitado pelo
depositante. Já no contrato de alienação fiduciária em garantia, o credor não pode solicitar
o bem ao fiduciante adimplente mesmo nos casos de deterioração, depreciação ou
perecimento da coisa ainda que insolvente ou falido o devedor fiduciante, eis que tais casos
acarretam apenas o vencimento antecipado da dívida, nos termos do artigo 1.425 do
Código Civil Brasileiro. Demais, no contrato de depósito, incide a regra res perit domino,
ou seja, perecendo a coisa sem culpa do depositário, a perda do bem ocorre para o
proprietário, que é o depositante, conforme o disposto no artigo 1.275, IV, do Código Civil,
não se podendo dizer o mesmo com relação ao contrato de alienação fiduciária em garantia,
no qual há inversão dessa regra por força do artigo 1.363 do mesmo Diploma Legal, vez
que o devedor pode utilizar a coisa segundo sua destinação, mas às suas expensas e risco.65
Malgrado constituísse absurdo comparar institutos em essência distintos para cercear
a liberdade do devedor fiduciante que não mais possuísse o bem ou não tivesse seu
equivalente em dinheiro (o que ocorria com a finalidade última, não se pode negar, de
satisfazer interesses meramente econômicos do credor), até bem pouco tempo prisões
houve. É que o artigo 5º, LXVII, da Carta Republicana de 1988, apesar de ter impedido a
prisão civil por dívida, ainda ressalvou duas hipóteses ao permitir a prisão civil do
64 Nos moldes do artigo 1.363 do Código Civil, aliás, antes de vencida a dívida, o devedor fiduciante pode usar a
coisa segundo sua destinação. 65 Consigne-se que assiste o direito de retenção da coisa pelo depositário nos casos expressos no artigo 633 do
Código Civil, bem como que todas essas questões, como as características do contrato de depósito, sua comparação com o contrato de alienação fiduciária em garantia constam das obras de Odete Novais Carneiro Queiroz, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe e de Glauco Polachini Gonçalves e João Agnaldo Donizeti. QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.33, 38 e 49. RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.117-118 e de GANDINI, João Agnaldo Donizeti; GONÇALVES, Glauco Polachini. As recentes alterações do Decreto-Lei nº 911/69 e a prisão civil na alienação fiduciária em garantia (Lei nº 10.931/04). Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 4 maio 2009. Sobre a impossibilidade de conversão do contrato de alienação fiduciária em garantia em contrato de depósito consultar RIVAS, Fernanda Bandeira. A prisão civil na alienação fiduciária em garantia. Disponível em: <http://www.facs.br>. Acesso em: 14 maio 2009.
119
responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do
depositário infiel.66
Com o advento da “Constituição Cidadã”, a jurisprudência tornou-se desigual, “[...]
sendo, também, considerável a parte da doutrina que não aceita tal sanção civil, muito
embora sejam díspares a fundamentação e argumentação apresentadas, buscando, todavia,
o mesmo objetivo.”67 Um dos fundamentos a impedir o decreto de prisão do devedor
fiduciante foi a supressão, pela Constituição de 1988, da expressão “na forma da lei”
constante no §17 do artigo 150 da Constituição de 1969, vez que essa expressão:
[...] indicava que a lei ordinária estaria autorizada a criar outras hipóteses equiparadas ao depósito e, sendo assim, estariam alcançadas igualmente pela aplicação da prisão civil, como é o caso da AFG. Todavia, suprimida essa expressão em 1988, não deveria mais ser admitida tal coerção a não ser para o devedor de alimentos e o depósito genuíno, assim apenando tão-somente tais devedores, dada a excepcionalidade da prisão civil. Mas, uma outra parcela de nossos julgadores manifesta-se em sentido contrário por entender que essa expressão ‘na forma da lei’ era, na verdade, alusiva ao procedimento e não tendo nada a ver, pois, com a questão de direito material. 68
Apenas em 2000, “[...] a partir do julgamento do EREsp 149.518/GO, rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar [...]”, conforme afirmam Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, é
que nas Turmas do Superior Tribunal de Justiça se manteve o entendimento de “[...] que ‘a
falta de devolução do bem alienado fiduciariamente não autoriza a prisão civil do devedor’
(3ª T., HC 43.245/SP, rel. Min. Ari Pargendler, j. 23.08.2005, DJU 19.09.2005) [...].”, eis
que distintos são os institutos da alienação fiduciária em garantia e o de depósito típico,
havendo mesmo “[...] ausência de afinidade entre as duas espécies jurídicas.”69
66 Trata-se, contudo, de norma de eficácia restringível ou contida a demandar expressa permissão legal. Nesse
sentido, o então Ministro da Corte Suprema Francisco Rezek, em seu voto no Habeas Corpus n° 744383/MG, relatado pelo Ministro Néri da Silveira, ressaltou que o inciso LXVII do artigo 5º da Constituição de 1988 apenas permite que o legislador ordinário discipline a prisão do alimentante omisso e a do depositário infiel, nos seguintes termos: “[...] o inciso LXVII proíbe a prisão por dívida e, ao estabelecer a exceção possível, permite que o legislador ordinário discipline a prisão do alimentante omisso e do depositário infiel. Permite, não obriga. O constituinte não diz: prenda-se o depositário infiel. Ele diz: é possível legislar nesse sentido [...].” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 744383-8/MG – Minas Gerais. Segunda Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Ministro Néri da Silveira. Julgado em 22 out. 1996, on line, Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 4 maio 2009. A íntegra de seu voto pode também ser consultada na obra de Odete Novais Carneiro de Queiroz: QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.95-98.
67 Ibid., 2004, p.65. Registra ainda a referida autora que: “Enfim, a jurisprudência recalcitrava na aplicação da prisão civil aos casos equiparados, como os da alienação fiduciária em garantia; vacilação que mais se fez sentir a partir da vigência, em nosso direito, dos tratados internacionais de direitos humanos, dos quais somos signatários, muito embora passando a ter fundamentação diversa e muito mais convincente [...].” QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.67.
68 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.66. 69 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2004, p.79.
120
Outros fundamentos, contudo, permeavam a discussão jurisprudencial e doutrinária
acerca da possibilidade ou não de prisão civil do fiduciante até porque diverso do Superior
Tribunal de Justiça era o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Fala-se aqui do Pacto de
San José da Costa Rica, que fora ratificado pelo Brasil, em 25 de setembro de 1992, e aprovado
pelo Decreto Legislativo n° 27, de 26 de maio de 1992, passando este a vigorar no dia 6 de
novembro de 1992, por meio do Decreto n° 67870, rezando o §7º do artigo 7º do mencionado
pacto que ninguém será detido por dívidas, princípio que não “[...] limita os mandados de
autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação
alimentar.”71 Ademais, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI
Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas, no dia 16 de dezembro de 1966, texto que
fora aprovado pelo Congresso Nacional pelo Decreto n° 226, de 12 de dezembro de 1991, com
Carta de Adesão depositada em 24 de janeiro de 1992, entrando em vigor no Brasil no dia 24
de abril de 1992, conforme consta no Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992, que traz como
anexo o texto do mencionado pacto, já dispunha em seu artigo 11 que “ninguém poderá ser
preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual.”72
Apesar de serem referidos tratados destinados à proteção dos direitos humanos,
possuindo incorporação automática ao direito positivo brasileiro e status de norma
constitucional, nos termos dos §§1° e 2º do artigo da CF/8873, o Supremo Tribunal Federal
entendia ser possível a prisão do devedor fiduciante inadimplente que não devolvia o bem
nem entregava seu equivalente em dinheiro, porque a Carta Política de 1998 a admitia em
seu artigo 5º, LXVII. É que, para a Suprema Corte, prevalece a supremacia da Constituição
da República frente aos citados Tratados Internacionais, eis que nem o Pacto de San Jose da
Costa Rica nem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foram aprovados por
cada uma das Casas do Congresso Nacional – em dois turnos, por três quintos dos votos dos
seus respectivos membros – o que lhes concederia o status de emenda constitucional, nos
termos do §3º do artigo 5º, da Carta Política de 1988, conforme Emenda Constitucional n°
45/2004. entretanto, o Supremo Tribunal Federal, “[...] em sua nova composição, reviu e
alterou antigo posicionamento [...].”, passando a não mais permitir a prisão civil do devedor
70 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.128. 71 COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San Jose da Costa Rica). San Jose,
1969. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br>. Acesso em: 29 jun. 2008. 72 BRASIL. Presidência da República. Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 11 maio 2009. 73 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.73.
121
fiduciante inadimplente. Caiu igualmente por terra, acresça-se, a possibilidade de prisão civil
do depositário infiel, mesmo que de contrato de depósito típico se trate.74
Somente em 2008 o Recurso Extraordinário n° 466.343 levou ao Plenário da
Suprema Corte a discussão sobre a possibilidade de ainda subsistir no direito brasileiro a
prisão civil do depositário infiel nos casos de contrato genuíno de depósito, sendo oportuno
registrar que, no ano de 2002, o Supremo Tribunal Federal ainda entendia ser possível a
prisão civil do devedor inadimplente nos contratos de alienação fiduciária em garantia, eis
que sua equiparação legal a depositário infiel não afrontava a nova ordem constitucional
inaugurada pela Carta Magna de 1988, não prevalecendo sobre a soberana Constituição da
República nem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos nem o Pacto de San
Jose da Costa Rica.75
74 RESTIFFE, Paulo Sérgio. RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.82. Ressalte-se que o entendimento do
Supremo Tribunal Federal que os tratados internacionais não podem ir além dos limites impostos pela Constituição da República é a conclusão que se extrai da leitura do voto do então Ministro Sepúlveda Pertence no RHC 79.785-RJ, decisão cuja íntegra repousa no anexo IV da obra de Odete Novais Carneiro Queiroz. QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.219-229. Dispõem os §§1º, 2º e 3º, do artigo 5°, da CF/88, que: “§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. §2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
75 Confirmam o que se acaba de dizer o HC n° 72131/RJ; HC nº 80710/RS; HC nº 81319/GO e o RE nº 206482/SP. BRASIL. Habeas Corpus nº 72131/RJ – Rio de Janeiro. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgado em 23 nov. 1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009; BRASIL. Habeas Corpus nº 80710/RS – Rio Grande do Sul. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julgado em 21 jun. 2001. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009; BRASIL. Habeas Corpus nº 81319/GO – Goiás, Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 24 abr. 2002. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009; BRASIL. Recurso Extraordinário nº 206482/SP – São Paulo. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgado em 27 maio 1998. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009. Sobre o Recurso Extraordinário N° 466.343, que levou ao Plenário da Suprema Corte a discussão sobre a possibilidade de ainda subsistir no direito brasileiro a prisão civil do depositário infiel nos casos de contrato genuíno de depósito, registre-se que além de ter sido reconhecida sua repercussão geral pela Suprema Corte brasileira, à medida que a maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal proferia seus votos reconhecendo a impossibilidade de prisão do depositário infiel autêntico, habeas corpus foram sendo concedidos pelas Turmas do Tribunal Supremo, a exemplo do HC n° 0094307. BRASIL. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 562051/MT – Mato Grosso. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Cezar Peluso. Julgado em 14 abr. 2008. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 11 maio 2008. BRASIL. Habeas Corpus nº QO94307/RS – Rio Grande do Sul. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Cezar Peluso. Julgado em 14 abr. 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 11 maio 2009. Além disso, esclarecedor é o voto do Ministro Celso de Mello no mencionado Recurso Extraordinário n° 466.343. Disponível em <http://www2.oabsp.org.br>. Acesso em: 9 maio 2009. Ressalte-se, por oportuno, que a posição da Corte Suprema no sentido de não mais permitir a prisão civil do devedor fiduciante inadimplente como depositário infiel quando o bem não mais se encontrava em seu poder e não havia o pagamento de seu equivalente em dinheiro é anterior ao advento da Lei n° 10.931/2004 que, alterando a Lei n° 4.728/65, Lei de Mercado de Capitais, não mais fez referências à responsabilidade do devedor inadimplente como depositário
122
Há muito tempo, não apenas os doutrinadores, mas os operadores do direito de modo
geral, ansiavam pelo fim da prisão civil do depositário infiel, já que a Carta Republicana de
1988 primou pela prevalência dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana, não
havendo justificativa plausível para negar aplicação ao Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos e/ou Pacto de San Jose da Costa Rica. Demais, não se mostra razoável e
ofende os princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana a prisão civil
do devedor, ressalvando-se apenas a prisão do responsável pelo inadimplemento voluntário
e inescusável de obrigação alimentícia, eis que aqui outro interesse de ordem pública se
revela, com maior importância.76
Para acabar de vez com a possibilidade da prisão civil do depositário infiel, como se
extrai do voto do ministro Celso de Mello, no Recurso Extraordinário n° 466.343, adotou o
Pretório Excelso a teoria da supralegalidade:
[...] Isso significa, portanto, examinada a matéria sob a perspectiva da “supralegalidade”, tal como preconiza o eminente Ministro GILMAR MENDES, que, cuidando-se de tratados internacionais sobre direitos humanos, estes hão de ser considerados como estatutos situados em posição intermediária que permita qualificá-los como diplomas impregnados de estatura superior à das leis internas em geral, não obstante subordinados à autoridade da Constituição da República. [...] Em suma: o entendimento segundo o qual existe relação de paridade normativa entre convenções internacionais e leis internas brasileiras há de ser considerado, unicamente, quanto aos tratados internacionais cujo conteúdo seja materialmente estranho ao tema dos direitos humanos. (destaques no original).77
infiel nos contratos de alienação fiduciária em garantia, como bem ressaltam Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe. RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2004, p.82-83.
76 Odete Novais Carneiro Queiroz já em 2004 defendia a impossibilidade da prisão civil do depositário infiel mesmo nos casos de contrato típico de depósito: “Ademais, é com supedâneo na doutrina especializada existente, nacional e estrangeira, sobre os tratados internacionais, face ao tema maior dos direitos humanos que firmamos nossa convicção e fortalecemos nossa tese a respeito do absurdo da prisão civil do depositário infiel, pena essa hoje injustificável e insustentável, além de, conforme já ressaltado, inconstitucional.” QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.132. Antes disso, contudo, mais precisamente em 1999, Celso Marcelo de Oliveira já se manifestava sobre a impossibilidade de prisão civil por dívida, ressalvando exclusivamente a prisão civil do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia: “[...]a) há uma norma internacional, posterior a 1988, que, tutelando os direitos humanos, restringe a uma única hipótese a prisão civil; b) essa norma tem a eficácia de norma constitucional, de modo que se pode dizer que, a partir de 1992, o artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal, encontra-se revogado, não mais sendo lícito falar em prisão civil por depósito.” OLIVEIRA, Celso Marcelo de, op. cit., 2008, on line.
77 Essa passagem consta do voto do ministro Celso de Mello no Recurso Extraordinário n° 466.343, disponível em <http://www2.oabsp.org.br>. Acesso em: 9 maio 2009. Trata-se da adoção do entendimento do antigo integrante da Corte Suprema, Ministro Sepúlveda Pertence, para quem os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos ocupam uma posição intermediária entre a Constituição da República e as leis ordinárias, sendo, portanto, inferior àquela e superior a estas, como explica Odete Novais Carneiro Queiroz ao discorrer sobre a corrente doutrinária que adota tal entendimento. QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.154. É também esse o entendimento do Ministro da Corte Suprema Carlos Britto em BRASIL. Habeas Corpus nº 94.013-7/SP – São Paulo. Primeira Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Carlos Britto. Julgado em 10 fev. 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009.
123
Nestes termos, embora a Constituição Federal ressalve a prisão do depositário infiel
no inciso LXVII, de seu artigo 5º, por ser referido dispositivo de eficácia restringível, a
demandar expressa permissão legal, não existe mais a possibilidade de haver legislação
ordinária permissiva da prisão civil do depositário infiel por flagrante violação aos pactos
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e de San Jose da Costa Rica, agora de
reconhecida hierarquia supralegal, o que esvazia de conteúdo o artigo 652 do novel Código
Civil, pelo menos no tocante à parte que prescreve “seja o depósito voluntário ou
necessário, o depositante que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo
mediante prisão não excedente a um ano [...]”, perdendo sentido a discussão doutrinária
acerca da aplicação subsidiária do artigo 652 do Código Civil pátrio à Lei de Mercado de
Capitais que, com as alterações sofridas pela Lei n° 10.931/2004, não alude mais à
condição de depositário de devedor fiduciário, revogado que fora o artigo 66 da Lei de
Mercado de Capitais pelo artigo 67 da Lei n° 10.931/2004.78
Para encerrar a discussão trazida pelo Recurso Extraordinário n° 466.343, o Supremo
Tribunal Federal achou por bem reconhecer a não recepção pela Magna Carta do Decreto-
lei n° 911/69, pelo menos no ponto em que a citada norma faz remissões ao Código de
Processo Civil, permitindo a prisão civil do depositário infiel, ressalvando, contudo, a
possibilidade da conversão da ação de busca e apreensão independente e autônoma em
ação de depósito, nos termos do artigo 906 do Código de Processo Civil, e sem a
possibilidade de prisão civil do devedor inadimplente:
Essas razões que venho de referir levam-me a reconhecer que o Decreto-lei nº 911/69 - no ponto em que, mediante remissão ao que consta do Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do CPC (art. 904 e respectivo parágrafo único), permite a prisão civil do devedor fiduciante - não foi recebido pelo vigente ordenamento constitucional, considerada a existência de incompatibilidade material superveniente entre referido diploma legislativo e a vigente Constituição da República. Isso significa, portanto, tal como bem assinalado pelo eminente Ministro CEZAR PELUSO, em douto voto proferido no julgamento plenário do RE 466.343/SP, que o credor fiduciário pode valer-se da ação de depósito, ‘mas sem cominação nem decretação da prisão civil do fiduciante vencido, contra o qual tem, como bem notou o acórdão
78 BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008. Sobre a revogação do artigo 66 da lei n° 4.728/65, Lei de
Mercado de Capitais, pela Lei n° 10.931/2004, manifesta-se Alex Sandro Ribeiro: “o artigo 66, da Lei n. 4.728/65, conceituava alienação fiduciária como sendo a transferência ao credor do domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbiam de acordo com as leis civil e penal. Esse artigo foi revogado, ex vi do artigo 67, da Lei n. 10.931/04. Em seu lugar, no que diz respeito à condição de depositário do devedor ou alienante, não há na nova lei, S.M.J., disposição igual ou semelhante, de modo que, doravante inexiste a qualidade do depositário inserta no devedor, assim como não existem mais as conseqüências jurídicas que desta condição advinham, como a ação de depósito e a prisão civil.” RIBEIRO, Alex Sandro, op. cit., 2008, on line. (Destaques no original).
124
impugnado, interesse jurídico em prosseguir nos próprios autos,apenas na forma do art. 906 do Código de Processo Civil’ . (Destaques no original).79
Malgrado indiscutível o engenho da tese utilizada pela Corte Suprema para expulsar
de vez a possibilidade de prisão civil do depositário infiel, inclusive nos casos que
envolvem contrato de depósito legítimo, observando a supremacia da Carta Maior e ao
mesmo tempo fazendo prevalecer os direitos humanos ao prestigiar a dignidade da pessoa
humana, que constitui um dos fundamentos da Constituição da República, tímida foi a
posição do Excelso Pretório ao não mencionar a não recepção pela “Constituição Cidadã”
do Decreto-lei n° 911/69, apenas na parte em que a citada norma permitia a prisão civil do
depositário infiel, perdendo a oportunidade de assumir uma postura mais firme e registrar,
de passagem que fosse, no citado Recurso Extraordinário, a não recepção integral do
mencionado decreto-lei e parcial da Lei n° 10.931/2004, esta na parte que pretendeu alterar
os dispositivos do Decreto-lei n° 911/69.
Tudo em atenção ao Estado Democrático de Direito, que jamais se compatibilizou
com o acima referido decreto-lei, e aos princípios constitucionais da igualdade, do devido
processo legal, da ampla defesa e do contraditório, princípios tão caros a esse Estado
Democrático de Direito e com os quais os aludidos diplomas legais não se coadunam.
Demais, nem o Decreto-lei n° 911/69 nem a Lei n° 10.931/2004, na parte que tencionou
alterá-lo, admitem interpretação conforme a Constituição, pois isto implicaria na alteração
total do conteúdo dessas normas em afronta, inclusive, ao princípio da separação dos
poderes, cuja proteção constitucional chegou ao ponto de impedir a simples deliberação de
proposta de emenda constitucional tendente a aboli-lo (artigo 60, §4º, III, da CF/88).
É preciso ousar, romper os paradigmas, ir de encontro aos grandes interesses
econômicos e exercer com afinco a tão nobilíssima quão árdua função guardiã outorgada
pela Constituição da República, registrando, sempre que houver oportunidade, a não
recepção do anacrônico Decreto-lei n° 911/69, até que seja interposta, por algum
legitimado, Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e possa ser
declarada, de uma vez por todas, a não recepção do referido Decreto-lei pela Constituição
de 1988, sob pena de irremediável afronta aos princípios mais fundamentais insculpidos na
Lei Suprema.
79 Voto do Ministro Celso de Mello no referido RE n° 466.343, 2009, on line.
CONCLUSÃO
Levantou-se a questão da recepção pela Constituição da Republica de 1988 do
Decreto-lei n° 911/69, norma que introduz no ordenamento jurídico pátrio a ação de busca
e apreensão independente e autônoma de qualquer outro procedimento ulterior, actio não
manejável pelo cidadão comum, mas exclusivamente pelas instituições financeiras (Fisco e
Previdência) em face do devedor fiduciário inadimplente ou moroso nos contratos de
alienação fiduciária em garantia quando não há a entrega espontânea ao credor do bem que
lhe fora fiduciariamente alienado.
A análise desta (não) recepção levou em consideração vários aspectos, que foram
desde a (im)possibilidade de existência desta norma em um Estado Democrático de Direito,
editada que fora no auge da ditadura militar pelos Ministros da Marinha de Guerra, do
Exército e da Aeronáutica Militar, sem levar em consideração a vontade popular, portanto,
até se saber se foram ou não violados o princípio da igualdade e as garantias do devido
processo legal, da ampla defesa e do contraditório, uma vez que o mencionado decreto-lei
passou incólume pela Constituição de 1967 e os Tribunais nacionais aplicam-no
constantemente, pelo menos em sua parte processual, aos contratos de alienação fiduciária
em garantia, que ingressou no ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei de Mercado de
Capitais, Lei n° 4.728, de 14 de julho de 1965. O fato, contudo, de o Decreto-lei n° 911/69
não ter emanado da vontade popular, atentando contra o Estado Democrático de Direito,
apesar de sua indiscutível relevância, não se afigura como critério único suficiente capaz de
impedir sua recepção pela Constituição Republicana de 1988.
O mesmo, entretanto, não se pode dizer com relação aos demais aspectos (princípio da
igualdade e as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório).
Ofende o Decreto-lei n° 911/69 flagrantemente o princípio da igualdade não apenas quando
proíbe o cidadão comum ou fornecedor não integrante do sistema financeiro nacional que
celebra contrato de alienação fiduciária com seu igual ou consumidor de lançar mão da
referida ação de busca e apreensão independente e autônoma, mas igualmente quando
126
beneficia as instituições financeiras em detrimento do devedor fiduciante, não lhe ofertando
mecanismo processual algum capaz de prevenir lesão ao seu direito, como a possibilidade de
sustação da venda extrajudicial do bem fiduciariamente alienado porventura efetivada pelo
credor fiduciário, ao inviabilizar a análise da defesa do fiduciante antes da ocorrência da
consolidação da propriedade nas mãos do credor instituição financeira, cuja única prova
exigida para o manejo desta agilíssima ação e concessão de liminar em seu favor é a da mora
ou do inadimplemento do devedor, que se dá ou com a mera comprovação, através de carta
registrada expedida pelo Cartório de Títulos e Documentos, ou pelo simples protesto do
título, o que, nos termos do §2° do Artigo 2º da norma vergastada, pode ocorrer apenas com
o decurso in albis do vencimento de uma única prestação, mesmo nos casos de ocorrência de
mora do credor, cuja posição vantajosa frente ao consumidor é inquestionável, além de
incompatível com o direito à propriedade, como delineado na Carta Maior.
Igualmente evidente por parte do decreto-lei retrocitado a violação à garantia
constitucional do devido processo legal, que tem como corolários a ampla defesa e o
contraditório, eis que a nulifica em sua dupla faceta: de proteção aos direitos de liberdade e
de propriedade (âmbito material) e de plenitude de defesa (âmbito formal), ao frustrar
qualquer possibilidade de reação eficaz pelo devedor fiduciante. E assim o é mesmo após
as supostas modificações pela Lei n° 10.931/2004 no Decreto-lei nº 911/69. Tudo isto, não
se pode olvidar, beneficia o fornecedor, parte forte da relação, em detrimento do
consumidor, parte frágil, cuja reconhecida vulnerabilidade reclama proteção legal e
compromete, senão destrói, pelos menos dois dos princípios sobre os quais se funda a
ordem econômica: o da função social da propriedade e o da defesa do consumidor, que
passa praticamente a responder pelo risco da atividade mercantil exercida pelas instituições
financeiras quando esse risco deveria ser inerente ao próprio negócio.
Fica comprometida ainda a determinação da constituição vigente de proteção legal a
ser conferida ao consumidor pelo Estado (artigo 5°, XXXII, CF/88), muito embora este, em
atenção ao disposto no artigo 48 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, tenha promulgado a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, Código de
Defesa do Consumidor, que, enquanto lei principiológica e dispensando efetiva proteção e
defesa do consumidor, traz normas de ordem pública e interesse social. Gravemente feridos
estão, portanto, os artigos 5º, caput, XXII, XXXII, LIV e LV, e 170, III e V, da
Constituição Republicana de 1988, a impedir a recepção do Decreto-lei n° 911/69.
127
Uma vez revogada esta norma por ausência de recepção, impossível sua alteração por
uma norma posterior, in casu, a Lei n° 10.931/2004, que sequer pode ser objeto de
interpretação conforme a constituição, pelo menos na parte que pretendeu reformular o
Decreto-lei n° 911/69. Isto porque não se pode, a pretexto de dispensar uma interpretação
conforme a constituição a uma determinada norma, alterá-la a ponto de fazer do intérprete
o próprio legislador, atentando inclusive contra o princípio da separação dos poderes.
Importante ressaltar, ainda, que a questão da recepção de uma norma pela nova
Constituição é objeto de profundas discussões doutrinárias por ser extremamente difícil
conferir quais as normas componentes de um vasto ordenamento jurídico foram ou não
recebidas pela nova ordem constitucional instaurada. É que nenhuma norma anterior à
Carta Republicana de 1998 pode ser objeto de exame de constitucionalidade via Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) ou de Ação Direta de Constitucionalidade (ADC)
por falta de contemplação da figura da constitucionalidade superveniente pelo sistema
jurídico brasileiro.
Resta, contudo, a via da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental para atacar, em tese, norma infraconstitucional não recepcionada pela Carta
Magna, ação cujo ajuizamento junto ao Supremo Tribunal Federal exige a comprovação de
divergência jurisdicional relevante.
O vácuo normativo decorrente do eventual reconhecimento, pela Corte Suprema, da
não recepção do Decreto-lei n° 911/69 pela Constituição da República de 1988, pode
perfeitamente ser suprido pelo legislador ordinário que, por sua vez, deve observar todos os
parâmetros exigidos pela Constituição Federal de 1998.
Até a edição de nova norma regulamentar, relativamente aos casos que encerrem
relação de consumo, recomenda-se a aplicação do Código de Defesa do Consumidor,
enquanto lei principiológica que é, e do Código de Processo Civil, para suprir o vácuo
normativo processual nos contratos de alienação fiduciária em garantia. Mesmo assim, o
Decreto-lei n° 911/69, supostamente alterado pela Lei n° 10.931/2004, que é também
inconstitucional, sobretudo na parte que tencionou reformular o citado decreto-lei, continua
sendo aplicado pelo Poder Judiciário que, relativamente ao devedor fiduciante consumidor,
vem negando a aplicação direta dos direitos fundamentais e privilegiando excessivamente
até o princípio da autonomia da vontade, grande cânon do direito privado, quando constitui
128
objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a redução das desigualdades
sociais, o que deve ocorrer por meio de ações práticas.
Esse excesso de viés privado presente nas decisões do Poder Judiciário olvida não
unicamente a posição ocupada pelo consumidor na Carta Política de 1988, de titular de
direitos fundamentais, mas também o fato de os fornecedores, leia-se instituições
financeiras, constituírem verdadeiro poder social e, não raro, não observarem esses direitos
fundamentais nas suas relações particulares, marcando-as pela subordinação do vulnerável
à sua vontade, quando relação de coordenação deveria existir.
Pode-se dizer assim que a Constituição brasileira, embora não determine
expressamente a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações entre
particulares, a recomenda. Tanto que direitos fundamentais especificados na Carta Política
de 1998 há que, por sua própria natureza, se aplicam às relações entre particulares. É o
caso, por exemplo, do direito de resposta, previsto no seu artigo 5°, V. Tudo vai depender,
contudo, da análise do caso concreto, vez que direitos fundamentais também há cuja
essência não permite sua aplicação às relações entre particulares. Importa, de igual forma,
observar a nova ordem de valores implantada pela Constituição de 1988.
Relativamente à nova ordem de valores instaurada pela Constituição de 1988, vitórias
foram conquistadas pelo consumidor. É que o Poder Judiciário extirpou de vez do
ordenamento jurídico pátrio a prisão civil do depositário infiel, a quem era equiparado o
devedor fiduciante moroso ou inadimplente que não devolvia o bem objeto de garantia ao
credor nem pagava seu equivalente em dinheiro. Fala-se aqui mais precisamente do
Supremo Tribunal Federal, que em homenagem aos Pactos de San José da Costa Rica e
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que por sua vez prestigiam o princípio da
dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,
seguiu a linha já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça desde 2000.
129
REFERÊNCIAS
ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.271-297.
ANDREZO, Andréa Fernandes; LIMA, Iran Siqueira. Mercado financeiro: aspectos históricos e conceituais. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.
ARRUDA, Vanuza de Cássia. Alienação fiduciária de veículos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008.
ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de. Ação de busca e apreensão: alienação fiduciária. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral dos contratos típicos e atípicos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
BARONI JÚNIOR, Eraldo. O direito de propriedade e suas limitações. Unesc em Revista, Espírito Santo: Centro Universitário do Espírito Santo, v.8, n.17, p.49-59, jan./jun. 2005.
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006a.
___________. O novo direito constitucional e a constitucionalização do direito. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (Org.). Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006b. p.321-331.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 2002.
BATALHA, Wilson de Sousa Campo. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
BELMONTE, Cláudio. Proteção contratual do consumidor: conservação e redução do negócio jurídico no Brasil e em Portugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcelos; MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
___________. Art.29-45. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p.215-440.
130
BERGER, Pablo. Considerações gerais sobre as modificações introduzidas pela Lei nº 10.931/04 na ação de busca e apreensão regida pelo Decreto-Lei nº 911/69. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 753, 27 jul. 2005. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009.
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do consumidor: Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990). 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Traduzido por Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999.
_________. Teoria da norma jurídica. Traduzido por Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2003.
BONATTO, Cláudio; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor: principiologia, conceitos, contratos. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
BRASIL. Código Civil Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. (2002)
_________. Código Civil de 1916. São Paulo: Manole, 2003.
_________. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, Assembléia Nacional Constituinte, 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008.
_________. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008.
_________. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008.
_________. Constituição da República Federativa do Brasil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
_________. Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
_________. Presidência da República. Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 11 maio 2009.
_________. Presidência da República. Lei n° 4.728, de 14 de julho de 1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 30 jun. 2008.
131
_________. Presidência da República. Lei n° 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2009.
_________. Presidência da República. Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2009.
_________. Presidência da República. Lei n° 10.931, de 2 de agosto de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 30 jun. 2008.
_________. Presidência da República. Decreto n° 22.626, de 7 de abril de 1933. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 fev. 2009.
_________. Presidência da República. Decreto-lei n° 911, de 1º de outubro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 30 jun. 2008.
_________. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 129/SP – São Paulo. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 07 fev. 1992. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
_________. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 175/PR – Paraná. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Célio Borja. Julgado em 01 abr. 1992. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
_________. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1360MC/DF – Distrito Federal. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Moreira Alves. Julgado em 26 out. 1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
__________. Agravo de Instrumento em Agravo Regimental nº 232386/GO – Goás. Primeira Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Moreira Alves. Julgado em 17 ago. 1999. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
_________. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 697.588/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12 ago. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008.
_________. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 992.272/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12 ago. 2008. Disponível em: < http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2008.
_________. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 33/PA – Pará. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgado em 29 out. 2003. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
__________. Habeas Corpus nº QO94307/RS – Rio Grande do Sul. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Cezar Peluso. Julgado em 14/ abr. 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 11 maio 2009.
132
_________. Habeas Corpus nº 72131/RJ – Rio de Janeiro. Pleno, Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgado em 23 nov. 1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009.
_________. Habeas Corpus n° 744383-8/MG – Minas Gerais. Segunda Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Ministro Néri da Silveira. Julgado em 22 out. 1996. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 4 maio 2009.
_________. Habeas Corpus nº 77527/MG – Minas Gerais. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgado em 23 set. 1998. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009.
________. Habeas Corpus nº 80710/RS – Rio Grande do Sul. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julgado em 21 jun. 2001. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009.
________. Habeas Corpus nº 81319/GO – Goiás. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 24 abr. 2002. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009.
________. Habeas Corpus nº 94.013-7/SP – São Paulo. Primeira Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Carlos Britto. Julgado em 10 fev. 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009.
_________. Recurso Especial n° 439.828/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 22 abr. 2003. Disponível em: < http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008.
_________. Recurso Especial n° 626.999/SC – Santa Catarina. Segunda Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. João Otávio de Noronha. Julgado em 12 dez. 2006. Disponível em: < http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 19 ago. 2008.
_________. Recurso Especial nº 437.607/PR – Paraná. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Hélio Quaglia Barbosa. Julgado em 15 maio 2007. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 8 ago. 2008.
_________. Recurso Especial n° 910.207/MG – Minas Gerais. Segunda Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Castro Meira. Julgado em 09 out. 2007. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 19 ago. 2008.
_________. Recurso Especial nº 871.421/SC – Santa Catarina. Segunda Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Sidnei Beneti. Julgado em 11 mar. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 8 ago. 2008.
_________. Recurso Especial nº 682.299/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12 ago. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008.
133
_________. Recurso Extraordinário nº 231548/RS – Rio Grande do Sul. Segunda Turma, Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Nelson Jobim. Julgado em 29 out. 1998. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 4 out. 2008.
_________. Recurso Extraordinário nº 202829/RJ – Rio de Janeiro. Segunda Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Ellen Gracie, Julgado em 11 out. 2005. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008.
_________. Recurso Extraordinário nº 206482/SP – São Paulo. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgado em 27 maio 1998. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009.
_________. Recurso Extraordinário nº 346084/PR – Paraná. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Ilmar Galvão. Julgado em 09 nov. 2005. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
_________. Recurso Extraordinário nº 396386/SP – São Paulo. Segunda Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Carlos Velloso. Julgado em 26 jun. 2004. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
_________. Superior Tribunal de Justiça. Registro em cartório do contrtato de alienação fiduciária de carro não oferece condição para transferir o bem. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/noticias>. Acesso em: 10 abr. 2008.
_________. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 30. A comissão de permanência e a correção monetária são inacumuláveis. Segunda Seção. Julgado em 09 out. 1991. Diário de Justiça, Brasília, DF, 18 out. 1991, p. 14591. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2009.
_________. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 284. A purga da mora, nos contratos de alienação fiduciária, só é permitida quando já pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do valor financiado. Segunda Seção. Julgado em 28 abr. 2004. Diário de Justiça, Brasília, DF, 13 maio 2004, p. 201. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2009.
_________. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 296. Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado. Segunda Seção. Julgado em 12 maio 2004. Diário de Justiça, Brasília, DF, 09 set. 2004, p. 149. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 25 fev. 2009.
_________. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 384. Cabe ação monitória para haver saldo remanescente oriundo de venda extrajudicial de bem alienado fiduciariamente em garantia. Segunda Seção. Julgado em 27 maio 2009. Diário de Justiça, Brasília, DF, 08 jun. 2009. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2009.
_________. Supremo Tribunal Federal. Súmula 596. As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional. Plenário.
134
Julgado em 15 dez. 1976. Diário de Justiça, Brasília, DF, 3 jan. 1977, p. 7. Disponível em: <http//www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 ago. 2009.
_________. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 562051/MT – Mato Grosso. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Cezar Peluso. Julgado em 14 abr. 2008. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 11 maio 2008.
BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis. 9. ed. São Paulo: Atlas, 1997.
CHALLHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. Traduzido por Peter Naumann. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.223-243.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
_________. Dogmática de direitos fundamentais e direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.339-357.
CARVALHO, José Carlos Maldonado de. Direitos do consumidor: fundamentos doutrinários e visão jurisprudencial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.
CASADO, Márcio Mello. Proteção do consumidor de crédito, bancário e financeiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2006.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: de acordo com o novo Código Civil e a nova Lei de Falências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v.3.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
COSTA, Leonardo Perseu da Silva. Das alterações introduzidas pela Lei nº 10.931/2004 no instituto da alienação fiduciária em garantia (Decreto-Lei nº 911/1969 e Lei nº 4.728/1965). Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009.
COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San Jose da Costa Rica). San Jose, 1969. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br>. Acesso em: 29 jun. 2008.
COUTINHO, Aldacy Rachid. A autonomia privada: em busca da defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.165-183.
DENSA, Roberta. Direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
135
DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos. Controle de constitucionalidade e teoria da recepção. São Paulo: Malheiros, 1995.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v.3.
_________. __________. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v.4.
DISTRITO FEDERAL. Agravo de Instrumento n° 20070020080877. Quarta Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Sérgio Bittencourt. Julgado em 09 jan. 2008. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Agravo de Instrumento n° 20080020031238. Terceira Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Humberto Adjuto Ulhoa. Julgado em 11 jun. 008. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Agravo de Instrumento n° 20080020055814. Primeira Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Flavio Rostirola. Julgado em 16 jul. 2008. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Apelação Cível n° 20050310240792. Sexta Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Silvânio Barbosa dos Santos. Julgado em 23 ago. 2006. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Apelação Cível n° 20060710069994. Segunda Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Sandoval Oliveira. Julgado em 26 mar. 2008. Disponível em<: http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Apelação Cível n° 20070110912724. Segunda Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Ângelo Passareli. Julgado em 09 abr. 2008. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Agravo de Instrumento n° 20080020077515. Quarta Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Cruz Macedo. Julgado em 03 mar. 2008. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Agravo de Instrumento n° 20080020118955. Segunda Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Ângelo Passareli. Julgado em 05 nov. 2008. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Agravo de Instrumento n° 20080020104470. Primeira Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Fábio Eduardo Marques. Julgado em 26 nov. 2008. Disponível em:< http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Apelação Cível nº 20000150005270. Segunda Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Romão C. Oliveira. Julgado em 13 ago. 2001. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br>. Acesso em:15 maio 2009.
136
_________. Apelação Cível n° 20070110809374. Segunda Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Waldir Leôncio Júnior. Julgado em 04 fev. 2009. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Apelação Cível n° 20080210006252. Segunda Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Sandoval Oliveira. Julgado em 03 set. 2008. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: conceito e extensão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.87-104.
_________. Ensaio sobre a incidência dos direitos fundamentais na construção do direito privado brasileiro contemporâneo a partir do direito civil-constitucional no Brasil. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (Coord.). Direitos fundamentais e novos direitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p.67-76.
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.11-60
FERNANDES NETO, Guilherme. O abuso do direito no Código de Defesa do Consumidor: cláusulas, práticas e publicidade abusivas. Brasília: Brasília Jurídica, 1999.
FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2007a.
___________. Art. 1-7. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2001, p.21-142.
___________. Curso fundamental de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2007b.
FORGIARINI, Giorgio. Aspectos relevantes da alienação fiduciária em garantia . Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.58, ago. 2002. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
FRANÇA, Pedro Arruda. Prática dos contratos: doutrina, jurisprudência (casos concretos). Rio de Janeiro: Forense, 2000.
137
FREIRE, Ana Carolina de Salles; GIANETI, Mateus Donato. A propriedade fiduciária e o novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n.269, 2 abr. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 ago. 2008.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007b. v.I.
GANDINI, João Agnaldo Donizeti; GONÇALVES, Glauco Polachini. As recentes alterações do Decreto-Lei nº 911/69 e a prisão civil na alienação fiduciária em garantia (Lei nº 10.931/04). Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 4 maio 2009.
GIAMBIAGI, Fábio; VELOSO, Fernando Augusto Adeodato; VILLELA, André. Determinantes do “milagre” econômico brasileiro (1968/73): Uma análise empírica. Disponível em: <http://www.eg.fip.mg.gov.br>. Acesso em: 26 set. 2008.
GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972.
_________. Direitos reais. 19. ed. atualizada por Luiz Edson Fachin. Coordenado por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
GOMES, Roberto de Almeida Borges. Princípios da demanda e dispositivo: uma leitura à luz do processo coletivo. In: CHAVES, Cristiano; SAMPAIO, Aurisvaldo (Org.). Estudos de direito do consumidor: tutela coletiva (homenagem aos 20 anos da lei da ação civil pública). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p.453-490.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil: direito das coisas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.3.
_________. _________. São Paulo: Saraiva, 2006. v.5.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2003.
GUIDIO, Jorgina de Fátima Marcondes. A evolução do conceito de propriedade. Revista Argumentum Jure, Mato Grosso do Sul: FACSUL, v.2, n.2, p.105-120, jul./dez. 2003.
GUIMARÃES, Ulysses. A constituição cidadã. Disponível em: <http://www.fugpmdb.org.br>. Acesso em: 26 mar. 2009.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Traduzido por João Baptista Machado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
138
KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
KOLTON, Eduardo Prado; SILVEIRA, Mateus Lima. Abordagem crítica ao Decreto-Lei nº 911/69 e suas alterações. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br>. Acesso em: 15 maio 2009.
LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via internet. São Paulo: Atlas, 2007.
LEITE, Antônio Henriques Lemos; LEMOS, Walter Gustavo da Silva. Novos rumos da alienação fiduciária em garantia. Disponível em: < http://www.direitonet.com.br>. Acesso em: 2 out. 2008.
LEONARDO, Rodrigo Xavier. A função social da propriedade: em busca de uma contextualização entre a Constituição Federal e o novo Código Civil. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo: Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v.1, n.1, p.271-289, 2004.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2004.
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998.
MACHADO, Renato Chagas. Considerações sobre a nova formalidade para constituição e formalização da alienação fiduciária de veículo automotor. Aplicabilidade do art. 1.361, § 1º, do novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.1076, 12 jun. 2006. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
MAIA, Daniela. Princípios constitucionais do direito do consumidor. In: GUERRA, Isabela Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly; PEIXINHO, Manoel Messias (Org.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. p.409-415.
MARINONI, Luiz Guilherme. A conformação do processo e o controle jurisdicional a partir do dever estatal de proteção do consumidor. In: CHAVES, Cristiano; SAMPAIO, Aurisvaldo (Org.). Estudos de direito do consumidor: tutela coletiva (homenagem aos 20 anos da lei da ação civil pública). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p.361-393.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
_________; MIRAGEM, Bruno. O princípio da proteção do consumidor e sua tutela coletiva no direito brasileiro. In: CHAVES, Cristiano; SAMPAIO, Aurisvaldo (Org.). Estudos de direito do consumidor: tutela coletiva (homenagem aos 20 anos da lei da ação civil pública). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p.123-152.
139
MARQUES, Eugênio Cícero. Registro de alienação fiduciária em garantia constituída através de cédulas. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.58, ago. 2002. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2009
MARTINS, Raphael Manhães. A alienação fiduciária em garantia de acordo com uma perspectiva civil-constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 425, 5 set. 2004. Disponível em: < http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 14 ago. 2008.
MEZZARI, Mário Pazutti. Alienação fiduciária da Lei n° 9.514, de 20-11-97. São Paulo: Saraiva, 1998.
MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa. O direito do consumidor como direito fundamental – conseqüências jurídicas de um conceito. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n.43, p.111-132, jul./set. 2002.
_________. O princípio da proteção do consumidor e sua tutela coletiva no direito brasileiro. In: CHAVES, Cristiano; SAMPAIO, Aurisvaldo (Org.). Estudos de direito do consumidor: tutela coletiva (homenagem aos 20 anos da lei da ação civil pública). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p.123-152.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983ª. v.III.
_________. _________. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983b. v.V.
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.105-147.
MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade, nas demais práticas comerciais. Porto Alegre: Síntese, 1999.
NERY JÚNIOR, Nelson. Art.46-54. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p.441-570.
_________. Princípios do processo na Constituição Federal. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
NEUNER, Jörg. O Código Civil da Alemanha (BGB) e a Lei Fundamental. Traduzido por Peter Naumann. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.245-269.
NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988.
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. A ADIn dos bancos terminou: a vitória da cidadania. Disponível em: <http://www.saraivajur.com.br>. Acesso em: 25 maio 2008.
140
_________. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.
_________. Curso de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Impossibilidade de prisão civil em contratos com garantia de alienação fiduciária. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 37, dez. 1999. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 10 ago. 2008.
OLIVEIRA, Marcus Vinícius Moura de. Lei nº 10.931/04: as alterações ao Decreto-Lei nº 911/69. Questões relevantes. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 533, 22 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008.
ONÓFRIO. Fernando Jacques. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
OPITZ, Oswlado; OPITZ, Sílvia Carlinda Barbosa. Alienação fiduciária em garantia. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971.
PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Esboçando uma teoria geral dos contratos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.682, 18 maio 2005. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 19 jul. 2008.
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
_________. _________. 17. ed. Rio de Janeiro, 2002. v.4.
PEREIRA, Hélio do Valle. A nova alienação fiduciária em garantia – Aspectos processuais. 2. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.
PERIN JUNIOR, Ecio. O hedging e o contrato de hedge. Mercados futuros. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n.41, maio 2000. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 26 ago. 2008.
PISSURNO, Marco Antônio Ribas. A polêmica interpretação do art. 3º, § 1º, do Decreto-Lei nº 911/69, alterado pela Lei nº 10.931/2004. Como fica a purgação da mora na busca e apreensão de veículo em alienação fiduciária?. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009.
LIMA, Marcos Antonyo. Escravo$ dos banco$. Disponível em <http://www.escravosdosbancos.com.br>. Acesso em 15 maio 2009.
PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008.
QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. Prisão civil e os direitos humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
141
RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo. Garantia fiduciária. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
_________. Alienação fiduciária e o fim da prisão civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: < http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 26 set. 2008.
REINALDO FILHO, Demócrito. Lei nº 10.931/2004: breves comentários às alterações no procedimento da ação de busca e apreensão de bem objeto de alienação fiduciária (Decreto-Lei nº 911/69). Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009.
RIBEIRO, Alex Sandro. Polêmicas da nova alienação fiduciária de bens móveis. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.607, 7 mar. 2005. Disponível em: <http://www.jus.navigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008.
RIO GRANDE DO SUL. Agravo de Instrumento n° 70013642665. Décima Quarta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Isabel de Borba Lucas. Julgado em 23 mar. 2006. Disponível em: <http//www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Apelação Cível nº 70020817516. Nona Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Odone Sanguiné. Julgado em 26 set. 2007. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008.
_________. Apelação Cível nº 70023522337. Nona Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Odone Sanguiné. Julgado em 04 jun. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008.
_________. Apelação Cível nº 70021633748. Décima Quarta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Sejalmo Sebastião de Paula Nery. Julgado em 26 jun. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 8 ago. 2008
_________. Apelação Cível nº 70024103046. Décima Quarta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Isabel de Borba Lucas. Julgado em 17 jul. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 8 ago. 2008.
_________. Agravo de Instrumento nº 70025738840. Décima Sexta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Paulo Sérgio Scarparo. Julgado em 15 ago. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008.
_________. Apelação Cível nº 70026762989. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito, Julgado em 27 nov. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Apelação Cível nº 70026964189. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Julgado em 30 out. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
142
_________. Apelação Cível nº 70027214139. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito, Julgado em 27 nov. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Apelação Cível nº 70027331750. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito, Julgado em 27 nov. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
_________. Apelação Cível nº 70026987677. Décima Quarta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Dorval Bráulio Marques. Julgado em 22 jan 2009. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.
__________. Apelação Cível nº 70007168461. Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 12/11/2003. Disponível em: <http//www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 15 maio 2009.
__________. Apelação Cível nº 70008859928, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 23 jun. 2004. Disponível em: <http//www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 15 maio 2009.
RIVAS, Fernanda Bandeira. A prisão civil na alienação fiduciária em garantia. Disponível em: <http://www.facs.br>. Acesso em: 14 maio 2009.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas: Lei n° 10.406, de 10.01.2002. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.2.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.
SANHUDO, João Paulo Vieira. A propriedade privada e as desapropriações à luz da Constituição Federal. Direito & Justiça, Revista da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: EDIPUCRS, v.1, n.1, p.27-34, jul./dez. 2004.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007a.
_________. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007b.
_________. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 16, n. 61, p.91-125, jan.- mar. 2007c.
143
SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
SILVA, Denival Francisco da. É nula a nota promissória nos contratos bancários: ausência de pressuposto para ação de busca e apreensão regida pelo Decreto-Lei n° 911/1969. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n.1349, 12 mar. 2007. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 22 jul. 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
_________. ________. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.
SOARES, Fábio Costa. Acesso do consumidor à justiça: Os fundamentos constitucionais do direito à prova e da inversão do ônus da prova. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
SOUZA, Alberto Bezerra de. Efeitos processuais da Lei nº 10.931/04 aos pactos de alienação fiduciária de bens móveis. Uma análise do direito intertemporal quanto aos processos em curso. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 885, 5 dez. 2005. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008.
SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Interpretação conforme a Constituição. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n.39, fev. 2000. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2009.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor: a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do direito civil e do direito processual civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Artigos 1196-1368. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). Código Civil comentado: direito das coisas, posse, direitos reais, propriedade. São Paulo: Atlas: 2003. p.19-533.
___________. Direito civil: direitos reais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v.5.