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Trabalho Final de Graduação, Luana Fonseca Damásio //Arquitetura e Urbanismo - Universidade Federal Fluminense

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praxisautônoma

á

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Universidade Federal FluminenseEscola de Arquitetura e Urbanismo

Trabalho Final de GraduaçãoLuana Fonseca Damásio

Orientadora: Clarissa Moreira

PRÁXISautônoma,

auto-construída, participativa,

socioespontânea, libertária, dissidente,

emancipadora, contra-hegemônica,

comum, insurrecional,

humana, subversiva,

de livre associacão, em rede.

[da arquitetura e do urbanismo]

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“Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, al-gures entre a falange, a falanginha e a falangeta. Aquele ou-tro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que transportemos a ele, nunca conse-guiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas, e sobre-tudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos de-verão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque des-pachou uma ordem às mãos e aos dedos, crê, ou finge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremida-des dos braços, aparecesse feito. Nunca teve a curiosidade de se perguntar por que razão o resultado final dessa manipula-ção, sempre complexa até nas suas mais simples expressões, se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instruções às mãos. Note-se que, ao nascermos, os dedos ain-da não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O au-xílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre soube-ram fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem so-brenatural, mágico e infuso, foram os dedos e seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso se ferirem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nesses tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo.”

José Saramago, “A caverna”, pág. 82-83Figura 01: Arquivo pessoal

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Conjuntura sócio-política; captura/alienação arquiteto

Práxis autônoma

Materialidade e alteração

Participação e alteridade

Autoconstrução e corpo

Projeto e contingência

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Índice

Glossário

Apresentação

ConjunturaMundo, capitalismo e o discurso único

Arquiteto no Contexto - captura e alienação

Práxis autônoma

Experiências Com participação diretaSem participação direta

As principais questõesParticipação e alteridade

Materialidade e alteraçãoAutoconstrução e corpo

Projeto e contingência

Estética da precariedade

Perspectivas

Agradecimentos

Bibliografia

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Conjuntura sócio-política; captura/alienação arquiteto

Práxis autônoma

Materialidade e alteração

Participação e alteridade

Autoconstrução e corpo

Projeto e contingência

Figura 02: “Aranha conceitual”, colagem a partir de recortes de revistas AU, com edição digital

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GlossárioAlienação . Michaelis¹: “sf (lat alienatione) 1 Ação ou efeito de alienar; alheação. (...) 5 Indiferentismo moral, político, social ou mesmo apenas intelectual. Antôn (acepção 5): engajamento, participação.” DA²: alienação política (estado daquele que se mantêm ignorante/alheio ao contexto social e político); alienação em relações de trabalho (es-tado do trabalhador alienado, parte de um sistema que afasta o trabalhador do produto resultante).

Alteração . Michaelis: “sf (alterar+ção) 1 Ação ou efeito de alterar. 2 Modificação, mu-dança. 3 Corrupção, decomposição, degeneração, deterioração. (...) 6 Filos Passagem de uma qualidade para outra no ser.” DA: Modificação semântica sofrida por determinado material reutilizado, empregado em construção, que se deve à sua mudança de uso.

Alteridade . Michaelis: “sf (lat alter+dade) Estado ou qualidade do que é outro, distinto, diferente.” DA: Prática de observação da diferença; relação entre diferentes. Oposto de identidade, parte do pressuposto de que todo homem social interage e depende do ou-tro, e que o “eu” só existe por existir o “outro”. Resulta em aprendizado sobre si e sobre o que é externo a si, enriquecendo experiências de troca e desnaturalizando comporta-mento e opiniões; mas também pode gerar tensões e conflitos.

Autoconstrução . Michaelis, definição para “construção”: “sf (lat constructione) 1 Ação de construir. 2 Arte de construir. 3 Edificação, edifício. 4 Modo como uma coisa é forma-da. 5 Compleição, organismo. (...) Antôns (acepção 1): demolição, destruição.” DA: Ação de construir, sem intermediários, algo que será de uso próprio, e/ou que haja sido pro-jetado/idealizado por quem o executa diretamente.

Autogestão . Michaelis: “sf (auto+gestão) Gerência de uma empresa pelos próprios empregados, representados por uma direção e por um conselho de gestão.” DA: Gestão horizontal (sem hierarquia, através de estruturas de democracia direta), e sem interme-diários, por parte dos usuários de um espaço e/ou organização.

Autonomia . Michaelis: “sf (gr autonomía) 1 Qualidade ou estado de autônomo. 2 So-ciol e Polít Autodeterminação político-administrativa de que podem gozar, relativamen-te, grupos (partidos, sindicatos, corporações, cooperativas etc.), em relação ao país ou comunidade política dos quais fazem parte. 3 Liberdade moral ou intelectual.” DA: Ca-pacidade e/ou opção de atuar de forma paralela (o mais possível) em relação ao hege-monicamente estabelecido.

Captura . Michaelis: “sf (lat captura) 1 Ação de capturar. 2 Quantidade capturada: A _____________________________________________________________________¹ Extrato de definição do Dicionário Michaelis on-line² Definição aplicada no trabalho, baseada na leitura da bibliografia

Figura 03: Página anterior - Caderno de caligrafia (fonte:

internet)

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captura de camarões foi boa hoje. C. automática de dados, Inform: sistema onde o dado, ao entrar, é automaticamente gravado em um sistema de computador.” DA: Ato ou efeito de cooptação, por parte do sistema dominante de valores, de indivíduos indiferentes ou que concordem com ele. Totalização, no caso da mais-valia, do saber-fazer (alienação), da inventividade e criatividade.

Contestação . Michaelis: “sf (lat contestatione) 1 Ação de contestar. 2 Contenda. (...) 5 Altercação, debate, questão, polêmica. 6 Negação. 7 Contradição.” DA: Contestação dentro das estruturas políticas, sociais e de trabalho.

Contingência . Michaelis: “sf (lat contingentia) 1 Qualidade do que é contingente. 2 Eventualidade. 3 Fato possível mas incerto.” DA: Imprevisibilidade inevitável dos proje-tos de arquitetura e urbanismo.

Contra-hegemônico . Michaelis, definição para “hegemonia”: “sf (gr hegemonía) (...) 3 Preponderância, supremacia.” DA: O que afasta-se do hegemônico.

Cooperação . Michaelis: “sf (cooperar+ção) 1 Ato de cooperar; colaboração; prestação de auxílio para um fim comum; solidariedade.” DA: Forma de trabalho (intelectual e/ou prático) executado em conjunto (entre pessoas ou grupos de distintas organizações), baseado na ajuda mútua e na troca, sempre de forma horizontal.

Copyleft . Michaelis: não possui definição. DA: O conceito de copyleft advém de um conjunto de estruturas normativas, as quais dizem respeito à legislação de propriedade intelectual, que contemplam diferentes níveis de liberdade em relação ao uso de uma obra. Difere do “domínio público” por haver a exigência de que a obra “copiada” man-tenha o mesmo nível de liberdade que a original. De forma mais abrangente, se refere às práticas e conhecimentos que visam difusão e apropriação, em lugar de objetivos comerciais e restritivos.

Dissidente . Michaelis: “adj m+f (lat dissidente) 1 Que dissente, diverge, não concorda, não se conforma. 2 Separado. s m+f Pessoa que diverge da opinião ou crença gerais.” DA: Oposição ativa, ação que visa separar-se, no sentido de se diferenciar, da fonte ge-radora de discordância.

Emancipação . Michaelis: “sf (lat emancipatione) 1 Ato ou efeito de emancipar ou de se emancipar. (...) 3 Alforria, libertação.” DA: Realização/alcance de um estado autônomo, independente, mais favorável (e livre) que o estado anterior.

Em rede . Michaelis, definição para “rede”: “(ê) sf (lat rete) (...) 6 Qualquer trançado de fios de qualquer material. (...) 16 Radiotécn Fontes de potencial conjugadas de modo que qualquer uma ou todas possam ser utilizadas pelas estações delas dependentes. (...) R. de difusão, Inform: rede que envia dados para um número de receptores. (...) Pren-der-se nas redes de Cupido: enamorar-se.” DA: Capacidade/ação de se trabalhar em

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conjunto, simultaneamente, entre grupos distintos que atuem em lugares distintos, em cooperação.

Empoderamento . Michaelis: não possui definição. DA: Refere-se ao ato de conquistar e/ou constituir espaços de tomada de decisão e exercício da cidadania, por iniciativa “popular” (ou de pessoas historicamente excluídas dos processos de decisão), que sejam paralelos à hierarquia excludente do estado, representando assim um ganho pessoal e coletivo que extrapola o âmbito deste ou daquele grupo, tomando cada vez mais a forma de uma complexa rede, que devolve poder e dignidade aos indivíduos, construindo a consciência de autonomia e direito por parte destas pessoas.

Heteronomia . Michaelis: sf (hétero+ônimo+ia1) 1 Subordinação ou sujeição à vontade de outrem ou a uma lei exterior. 2 Sujeição da vontade ao controle dos apetites naturais, paixões e desejos, em vez de à lei normal ou da razão. 3 Biol Condição ou qualidade de ser heterônomo. DA: Conceito explorado por Kant que refere-se ao oposto da autonomia, quando algo externo ao indivíduo lhe sujeita a regras ou modelos que são condicionan-tes de sua vivência (ex.: leis).

Horizontalidade . Michaelis: “sf (horizontal+i+dade) Qualidade de horizontal.” DA: For-ma de organização onde não há hierarquia, e todos os membros possuem mesmo grau de poder de decisão, normalmente funcionando a partir de estruturas assembleárias.

Humano . Michaelis: “adj (lat humanu) 1 Que pertence ou se refere ao homem. 2 Huma-nitário. 3 Bondoso, compassivo, caridoso. sm pl O gênero humano, os homens, os mor-tais.” DA: Característica do que se aproxima ao humano, à escala do indivíduo ou grupo de indivíduos; do que visa observar e responder às necessidades e desejos das pessoas, em contraposição a ações de caráter e objetivo mercantil, de escala global, e de conse-quências injustas ou prejudiciais para os afetados (as pessoas).

Insurrecional . Michaelis, definição para “insurreição”: “sf (lat insurrectione) 1 Ato ou efeito de se insurgir; sublevação, revolta. 2 Oposição ou reação vigorosa” DA: Qualidade da iniciativa, ou conjunto de iniciativas, que parte de um grupo de descontentes ou re-voltosos, visando a derrubada de algum conceito ou estrutura estabelecida. Em geral são ações e grupos não reconhecidos por essa mesma estrutura, ou seja, não “autorizados”.

Libertário . Michaelis: “adj+sm (fr libertaire) Que, ou o que é partidário da liberdade.” DA: Prática, ação, lugar ou pensamento capaz de libertar, ou causar sensação de liberda-de. Refere-se à libertação de práticas, comportamentos, e valores dominantes.

Livre associação . Michaelis, definição para “associação”: “sf (associar+ção) 1 Ato ou efeito de associar. 2 Organização de pessoas para um fim ou interesse comum; (...) 5 So-ciol Forma básica de interação social que leva à integração de agrupamentos humanos.” DA: Associação entre pessoas (ou grupos de pessoas) que se dá de forma espontânea, como fruto de sua vontade e de identificação pessoal, profissional, ideológica.

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Materialidade . Michaelis: “sf (material+i+dade) 1 Qualidade do que é material. 2 Cir-cunstância material que constitui um fato, abstraindo-se os motivos: A materialidade do crime.” DA: Característica intrínseca aos materiais, em especial os utilizados em constru-ção, seja de edifícios, mobiliário ou objetos.

Microprática . Michaelis, definição para “prática”: “sf (gr praktiké) 1 Ação ou efeito de praticar. 2 Realização de qualquer ideia ou projeto. 3 Aplicação das regras ou dos princí-pios de uma arte ou ciência. 4 Exercício de qualquer ocupação ou profissão. (...) 7 Modo ou método usual de fazer qualquer coisa. 8 Maneira de proceder; uso, costume. (...) 12 pej Exercício maquinal de alguma arte ou ofício; rotina. (...) P. do mundo: a) experiência da vida; b) conhecimento dos usos e costumes da sociedade em que se vive. Pôr em prática: efetuar, executar, realizar.” DA: Práticas de pequena escala, menores, capazes de impacto à média ou larga escala quando se multiplicam e reproduzem mantendo, individualmente, a pequena escala original.

Okupa . Michaelis: não possui definição. DA: Termo libertário que se refere à ação de ocupar edifícios ou espaços abandonados/vazios, a fim de dar-lhes um uso social, cole-tivo e cultural, com o objetivo de criar uma esfera de vivência libertária.

Participação . Michaelis: “sf (lat participatione) 1 Ato ou efeito de participar. 2 metaf União da parte com o todo, do ser finito com o infinito.” DA: Envolvimento ativo, em maior ou menor grau, por parte dos usuários ou “clientes” de um projeto ou ação.

Práxis . Michaelis: “(cs) sf sing+pl (gr práxis) V praxe.” DA: Prática de um indivíduo no mundo, que transfere saberes para a execução de algo na prática; trabalho dos coletivos.

Socioespontâneo . Michaelis, definição para “espontâneo”: “adj (lat spontaneu) 1 Que se pratica de livre vontade, voluntário. (...) 3 Sem artifício; natural.” DA: Qualidade do que se manifesta socialmente de forma natural, em coletivo.

Subversivo . Michaelis, definição para “subverter”: “(lat subvertere) vtd 1 Revolver de baixo para cima; arruinar, derribar, desordenar, perturbar, transtornar (...) vtd 6 Aliciar para ideias ou atos subversivos; revolucionar: Subverter os operários. vtd e vpr 7 Perverter(--se): Subverter os costumes, os hábitos, os usos. Subverter-se a justiça.” DA: Aquilo que busca negar a ordem estabelecida, basear-se em premissas distintas, modificadas. Que pratica oposição sutil e prolongada.

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Figura 04: Página anterior - Teatro da Refinaria “CRAV de

Penco” (fonte: internet)

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Apresentação Este trabalho nasce do casamento entre a indigna-ção e a esperança. Matrimônio delicado, é sobrevivente a brigas e medidas de força constantes. A esperança - em-bora mais experiente - por vezes cansada, se supre cons-tantemente da energia renovadora que a indignação lhe oferece. A outra aprende a cada dia a calma e a persistência necessárias para se fazer valer uma vida de inquietações; isso lhe ensina a esperança. Essa é uma fábula que não possui final, nem moral da história. É escrita de forma constante, incessante; indivi-dual e coletiva. Dela se ramificam inúmeras possibilidades de desdobramentos, de forma sempre empírica, experi-mental. Seus resultados contribuem a uma volta à fábula--matriz, e a uma reescritura permanente, em espiral. Existe uma infinidade de encontros e fenômenos espontâneos nessa fábula-rede; surgem do entrelaçamen-to das diversas possibilidades que se multiplicam a todo tempo. Um grupo desses resultados, de matriz comum, é o que será apresentado e analisado neste texto. Outro re-sultado é a própria feitura do trabalho em si, fruto de uma ramificação em particular, que de forma fractal reproduz a complexidade da estrutura originária. A minha fábula pessoal possui alguns vetores, rami-ficações e encontros importantes de serem mencionados aqui. Escolher estudar na Escola de Arquitetura e Urbanis-mo da Uff, mudar-se do Espírito Santo ao Rio de Janeiro, conhecer amigos inspiradores (trocas com outras fábulas), trabalhar em favelas, conhecer ocupações e movimentos sociais, fazer intercâmbio na Espanha. Os desdobramentos desse último elemento da his-tória é o que nos interessa mais objetivamente nessa apre-sentação. Vivi em Sevilha por pouco mais de um ano; comi paella, fui a espetáculos de flamenco, hablé español. Mas o que a Espanha me mostrou de mais importante, o que registrou marca profunda, foram os jardins e hortas comu-nitárias, as casas okupa autogeridas, as iniciativas de em-poderamento popular, as manifestações massivas e orga-nizadas horizontalmente; e um número cada vez maior de pessoas buscando trabalhar (e viver) da maneira que acre-

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La Bachi

El huerto de Julian y Mari

Repensar Bon Pastor

ecoLAB

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ditam, em particular os “coletivos de arquitetura”, e a rede Arquitecturas Colectivas.

Encontros

O mapa ao lado representa graficamente um recorte da minha experiência na Espanha. Demonstra uma série de encontros, através dos quais conheci a maioria dos grupos e lugares que são importantes para o que se deseja con-tar aqui. Note-se que as linhas representam não mais que caminhos; através deles cheguei, de uma maneira ou de outra, a todas as extremidades. Os elementos que escolhi representar possuem diferenças e pontos em comum. Quase a totalidade dos grupos é gerido de forma horizontal, com pouquíssimas exceções. Alguns representam organizações comunitárias de um espaço público ou edifício “okupado”, cooperativas e grupos de consumo ecológico e justo. A grande maioria dos ícones, porém, responde a coletivos, ongs e escritórios de arquitetura e urbanismo; alguns daqueles que buscam fazer valer em suas práticas outros paradigmas sociais.

Coletivos de Arquitetura e Urbanismo

Surgidos na Espanha durante o boom imobiliário espanhol, como uma resposta crítica a esse momento, e multiplicando-se a partir do início da crise de 2008, os co-letivos de arquitetura e urbanismo são grupos de trabalho, quase sempre que se configuram como fonte de renda de seus integrantes, os quais pensam e organizam sua forma de produção e seus produtos de forma distinta ao que é comumente praticado por seus colegas de profissão. A começar pelo engajamento social, grande motiva-ção, o movimento dos coletivos de arquitetura se caracte-riza por uma postura de definição política, contrária à he-gemonia do capitalismo e seus resultados. De tal premissa se derivam questões como a gestão horizontal da equipe de trabalho; os recorrentes projetos de espaços públicos, ocupados, comunitários, de fim social; o uso de materiais reciclados; o trabalho em cooperação, em rede; e a assun-

Figura 05: “Mapa de econtros”, colagem digital (fonte: arquivo pessoal e internet)

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ção de uma quebra nas relações de produção do objeto arquitetônico: a autoconstrução.

Práxis autônoma, auto-construída, participativa, soci-oespontânea, libertária, dissidente, emancipadora, contra-he-gemônica, comum, insurrecional, humana, subversiva, de livre associacão, em rede. [da arquitetura e do urbanismo] O extenso título do trabalho surge num momento inicial de busca por termos que estabelecessem alguma relação com as práticas a serem abordadas. É fruto de um brainstorm que teve como objetivo começar a esboçar as potências e os limites dessas práticas. Foi adotado de iní-cio como brincadeira (apesar de conter muita seriedade nos termos), a partir da necessidade de entrega de docu-mentos de definição da proposta, e lidava justamente com a amplitude de possibilidades de desenvolvimento do tra-balho, e também com uma necessidade de definições e de-limitações. Estava claro que se tratava de um assunto pouco co-nhecido por colegas e professoras da escola, e os termos permaneceram numa tentativa de elucidação. Os matizes oferecidos pelo conjunto de palavras reunidos tornaram--se portanto importantes. No entanto, adotaremos como “título sintético” a ex-pressão “práxis autônoma”. O matiz da autonomia destaca--se dos restantes por julgar-se que o caráter de desliga-mento dos modelos hegemônicos de prática profissional no campo da arquitetura, de construção de espaços e de gestão é sua característica mais valiosa, pois é dela que se derivam todas as outras.

Questões

O objetivo deste trabalho é apresentar e analisar o movimento dos coletivos de arquitetura espanhóis e lati-no-americanos, a partir dos pontos de vista político, meto-dológico e poético/simbólico/filosófico. No decorrer da pesquisa e idealização do que seria tratado, algumas questões importantes de tentar-se res-ponder surgiram:

Figura 06: Trabalho com ferro em “Lafábrika Detodalavida” (fonte: internet)

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Conjuntura sócio-política; captura/alienação arquiteto

Práxis autônoma

Materialidade e alteração

Participação e alteridade

Autoconstrução e corpo

Projeto e contingência

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> Em que contexto estão inseridas as práticas arquite-tônicas e urbanísticas?> Como se relacionam as práticas dos coletivos de ar-quitetura com seu contexto cultural, social e político? Como respondem a ele?> De que maneira se organizam estes coletivos, em que constituem suas práticas?> Qual é o papel do projeto nesses casos? Quando, onde e como ele se dá? Até que nível de proposição?> Em quais etapas do processo a participação é/pode ser utilizada como metodologia? Qual a importância disso?> O que significa autoconstrução nessas práticas, como experiência corporal e valor encarnado mate-rialmente?> Que se pode entender e valorizar na ação de reuti-lizar materiais já utilizados para outro fim? Que his-tória/informação carregam e comunicam essas mate-rialidades?> Do ponto de vista estético, o que se assume?> Quais são as perspectivas de aplicação no contexto brasileiro e no futuro?

Roteiro

A imagem ao lado é uma representação visual do que seria a estrutura conceitual do trabalho, e baseia-se formalmente em uma das “Aranhas” de Santiago Cirugeda, do Recetas Urbanas (um dos coletivos chave no processo, a ser abordado mais adiante). Foi produzida como colagem por se considerar essa linguagem visual uma metáfora, tan-to da forma de pensamento da sociedade contemporânea, quanto da ação antropofágica de devorar e produzir. A co-lagem é feita a partir de recortes de revistas AU, simboli-zando esse ato de digestão do existente para construção do novo, no âmbito da arquitetura e do urbanismo. A “aranha” apóia-se sobre uma base (chão), que re-presenta a conjuntura social, político, cultural em que está inserida. Suas quatro patas, que sustentam a cabeça - “prá-xis autônoma”, representam os temas “participação e al-teridade”, “materialidade e alteração”, “autoconstrução e

Conjuntura sócio-política; captura/alienação arquiteto

Práxis autônoma

Materialidade e alteração

Participação e alteridade

Autoconstrução e corpo

Projeto e contingência

Figura 07: “Aranha conceitual”, colagem a partir de recortes de revistas AU, com edição digital

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corpo” e “projeto e contingência”; os quais, junto à conjun-tura anteriormente mencionada, conformam nossas bases analíticas principais. Dessa maneira a figura é uma imagem da lógica do trabalho e também do próprio movimento dos coletivos: a prática, sustentada por essas quatro questões, se encontra sobre o embasamento/conjuntura, o qual, ao mesmo tempo que permite sua existência, é rejeitado por ela, o que se demonstra com a atitude de afastamento en-carnada na elevação da construção. Estão colocadas, dessa forma, a posição do movimento frente ao sistema (político, econômico e de valores) e as ferramentas das quais se uti-liza para combater suas estratégias. O desenvolvimento do trabalho se estrutura, por-tanto, da seguinte maneira:

_ Conjuntura - situa sócio, político e culturalmente o momento em que vivemos e a relação e inserção das práticas arquitetônica e urbanística no mesmo; enu-mera características “alienantes” da forma atual de trabalho no campo da arquitetura; afirma a necessi-dade de trabalho consciente por parte do arquiteto, em relação às dinâmicas globais e particulares do contexto em que se insere._ Práxis Autônoma - apresenta de forma mais apro-fundada as práticas tratadas no trabalho._ Experiências - apresenta, caso a caso, seis experiên-cias práticas, analisando cada uma delas através de uma mesma metodologia determinada._ Principais Questões - analisa de forma mais detida e algumas das principais questões envolvidas, através de matizes de análise. As questões são: participação e alteridade, materialidade e alteração (de significado e uso), autoconstrução e corpo, projeto e contingência._ Estética da precariedade - discorre sobre o resulta-do estético das práticas autônomas como algo assu-midamente “precário”; desenvolve o conceito de pre-cariedade como posicionamento e potência contra a estética hegemônica e como mecanismo de aproxi-mação e empoderamento._ Perspectivas - pretende traçar algumas perspecti-vas e possibilidades, considerando a complexidade

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envolvida em prever as consequências a longo prazo, particulares e gerais, destas ações.

Pretende-se, nas páginas que seguem, desenvolver uma teoria sobre algo que é intrinsecamente prático. De início, teoria e prática podem parecer formar uma dicoto-mia; no entanto, acredita-se que toda prática produz uma teoria, mesmo que essa não esteja registrada de forma es-crita, assim como a produção de teoria se configura como um tipo de prática. Propõem-se aqui que realidade e teoria crítica devem retroalimentar-se:

“Teoria e prática se distinguem, mas não se separam. Não há teoria que não esteja nutrida de práticas, nem prática que não seja animada por teorias. É caso de perceber os atravessamentos. A prática eficaz pode ajudar a mobilizar teorias até então infecundas, tan-to quanto uma boa teoria pode desbloquear práticas ineficazes. Uma prática pura é tão impossível quanto uma teoria pura. Erros simétricos: voluntarismo e inte-lectualismo. Teoria e prática que não se percebem en-tre si significam teoria ruim e prática ineficaz.” (Bruno Cava, “Copesquisa”, Revista Global Brasil)

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Práxis autônoma

Trabalho Final de Graduação

Conjuntura Aqui se apresenta parte da conjuntura geral - po-lítica, cultural, social e econômica - que gere as práticas dominantes na produção de arquitetura e cidade, da qual, em certa medida, escapam e se afastam as práticas dos co-letivos de arquitetura e urbanismo.

Figura 08: Página anterior - Ocupação Zumbi dos Palmares, Zona portuária do Rio de Janeiro, (fonte:

arquivo pessoal)

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Conjuntura

Luana Fonseca Damásio

É notável que grande parte da produção arquitetô-nica e urbanística atual se dá de maneira a que se ignore (pretensa ou levianamente) o contexto sócio-político-cul-tural em que se insere. Se por um lado há práticas e ações conscientes, no sentido de conhecer e/ou pretender, de início, os efeitos e resultados dessas sobre a sociedade, há também aquelas, as que constituem maioria, em que o su-jeito atuante desempenha seu trabalho e aplica suas ferra-mentas possuindo pouco, ou quase nenhum, conhecimen-to das forças e dos fenômenos que o cercam e que, sem que ele reconheça, influem diretamente sobre sua vida (trabalho e tempo livre, caso se faça a distinção). Como de-corrência disso, atua-se amiúde sem que se compreenda as intenções e os efeitos dessa atuação, corroborando com políticas públicas ou mesmo ações de mercado que têm como resultado, muitas vezes, o agravamento de questões como gentrificação, desigualdade social, segregação espa-cial, mercantilização dos espaços da cidade, manutenção do status quo, entre outras. Partindo do pressuposto de que formam parte cons-tituinte do dever “ético” profissional do arquiteto o reco-nhecimento e a análise das dinâmicas atuantes nas cidades e nas sociedades, e considerando que uma prática profis-sional mais afinada com a realidade, de forma a contribuir positivamente à sua mudança, é possível, o trabalho parte de um esforço de identificar o que a essa altura é visível. Nesse sentido, apresenta-se como análise inicial um mapa mental que objetiva cartografar relações e processos influentes na prática da arquitetura dominante, afim de re-conhecer o que é o nosso tempo e, relacionalmente, como a arquitetura e o urbanismo, de um modo geral, derivam-se destes. O fluxograma, embasado pela leitura da bibliogra-fia, é baseado na relação entre termos. O conjunto termos--vetoresrelação forma uma rede que, se representados os alcances e desdobramentos das relações, tomaria uma terceira dimensão, o que sobre o papel não é possível de-monstrar. Porém a imagem ao fundo visa, como fator de compensação, atribuir e demonstrar que haveria ali maior complexidade. Inicia-se, portanto, pela apresentação dos fundamentos por trás dessa imagem de fundo.

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Ação Arquitetônica

MundoEspaço-tempo

Em que momento da história nos encontramos?Como se relacionam a arquitetura e o urbanismo com nosso tempo?

momentohistórico

capitalismo

cultura

sistema social

poder mobilizador

discurso único

trabalho manutenção

arquiteto

objeto (arq/urb)

transmissorinformação

política renda/fetiche da forma

status quo

alienação

aceleraçãocompetitividade

desenho

monopólioconhecimento

controle

alienação

construtor - conhecimento

arquiteto - execução

heteronomia

softwares

perda manualidade

virtualidade

abstraçãofragmentação

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Conjuntura

Luana Fonseca Damásio

A ilustração (figura mundo-cristal) parte da repre-sentação de “mundo espaço-tempo”, representando mais ao mundo como “o conjunto das coisas artificiais produ-zidas pelo homem”¹ que como planeta no sentido geoló-gico, na medida em que entende que os acontecimentos se dão dentro de uma lógica espaço-temporal, que escapa de certa forma ao tempo cronológico do relógio, e entende o “mundo” como uma rede complexa de acontecimentos superpostos no espaço-tempo. Por essa razão há linhas em meandros, que se cruzam e se curvam umas sobre as outras. A ação arquitetônica seria, portanto, mais um dos acontecimentos nesse espaço-tempo, sendo também mun-do espaço-tempo. O “cristal” representa a análise de um “fragmento”, ao mesmo tempo parte do mundo espaço--tempo e ação sobre ele. É essa ação que se pretende ana-lisar, porém o mundo permanece em cena pois se conside-ra o fragmento parte do todo, de maneira que a análise não perde relação com o todo. No mapa as perguntas direcio-nam e fazem o recorte da análise. Observado com mais proximidade, o cristal é com-posto por retalhos de ações/acontecimentos (arquitetôni-cos), simbolizando a ação de refinar e depurar para então produzir, podendo esses retalhos ser ao mesmo tempo re-pertório de reprodução e negação. Em todas as figuras há transparência, pois uma camada influi na outra. Por essa razão há uma imagem que se soma ao con-junto, o gráfico não se basta por si mesmo; é preciso de-monstrar que há sempre mais fatores e camadas de com-plexidade conectados e exercendo influência umas sobre as outras. A imagem de Escher (Relatividade, 1953, litogra-vura) representa uma busca incessante que dá voltas sobre si mesma, que se perde e se encontra, ao mesmo tempo que demonstra que a lógica da análise, e/ou do que está sendo tratado no mapa mental em si, não segue uma lógi-ca causal e racional estrita; comunica que as perspectivas têm outros caminhos e ângulos por vezes invisíveis, o que depende sempre do que vê e quer ver o observador, de modo que varia de olho para olho. As escadas simbolizam ascensão e descensão simultâneas, porém não resultando em estagnação, e sim numa volta outra sobre o mesmo, ao ___________________________________________________¹ Eduardo Jardim, “Homo faber: o animal que tem mãos”, pág. 109

Figura 09: “Mapa mental”, colagem digital (fonte: arquivo pessoal e internet)

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modo da figura “espiral”, a “repetição diferente”, como o labirinto de que trata Paola Jacques em Estética da Ginga. Com relação à rede de termos e significados presen-tes no mapa, por se tratar de um esforço de resumo que representa ideias gerais, irá-se tratar pouco a pouco dentro da estrutura do texto.

Mundo, capitalismo e o discurso único

“O incrível poder do capitalismo como sistema social está em sua capacidade de mobilizar os múltiplos imaginários dos empreendedores, financiadores, pro-motores de desenvolvimento, artistas, arquitetos e mesmo planejadores e burocratas governamentais (e todo um conjunto de outros protagonistas, incluindo o trabalhador comum) no sentido de se envolver em atividades materiais que mantêm o sistema em auto--reprodução, ainda que em escala crescente.” (David Harvey,“Espaços de esperança”, pág. 268)

As premissas básicas do sistema capitalista não se baseiam apenas na propriedade privada da terra e dos meios de produção, no livre mercado e na reinante busca pelo lucro. Sua capacidade de penetração e orquestração é capaz de fazer mover-se involuntariamente a menor das engrenagens. Ele se sustenta, entre tantos outros aspectos, em relações exploratórias de trabalho, na concentração de renda e informação, na disparidade de direitos, na cruelda-de maquiavélica das decisões; em um amplo jogo ideoló-gico para o qual contribuem desde instituições religiosas à indústria cinematográfica. Vivemos sob uma lógica capitalista e mercadológi-ca, que nos parece constituída no mundo enquanto modus operandi certamente não único, mas dominante. A lógica capitalista se impõe como sistema de valores e relações sociais e de trabalho, engendrado da micro à macro escala; em uma leitura mais livre, do inconsciente da unidade ser humano à definição de parâmetros de políticas globais. O sistema se mantém e é mantido de um modo quase auto-mático, ou automatizado, pois sua forma de funcionamento e os valores que o compõem são profundamente naturali-

Figura 10: Chaplin em “Tempos modernos” (fonte: internet)

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zados pelos indivíduos - “marionetes dos mundos institu-cionais e imaginativos que habitamos”², de maneira que se instaura uma forte crença em sua máquina motora. No mesmo sentido, o geógrafo brasileiro Milton San-tos observa a criação de um discurso único fundador da “racionalidade” capitalista, que não escapa do processo de fabulação.

“Quando tudo permite imaginar que se tornou pos-sível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, que se apro-veita do alargamento de todos os contextos (...) para consagrar um discurso único. Seus fundamentos são a informação e o seu império, que encontram alicerce na produção de imagens e do imaginário, e se põem ao serviço do império do dinheiro, fundado este na economização e na monetarização da vida social e da vida pessoal.” (Milton Santos, “Por uma outra globa-lização”, pág. 18)

A esse império serve, como ator fundamental, o sis-tema da informação, composto por componentes educa-cionais e midiáticos, ideológicos sempre. A fabulação do discurso único, cultivada pela informação hegemônica, é essencial à sociedade de consumo e à manutenção do status quo e seu modus operandi, pois é ela que constrói e alimenta o repertório ideológico e de valores sociais da grande massa. O que é transmitido aos indivíduos e aos grupos, através da informação veiculada pelo “jornalismo”, pela grande mídia, pelas instituições de ensino e por um conjunto de “formadores de opinião” é, de fato, manipu-lado em sua origem, afim de lubrificar as conexões povo--trabalhador-consumidor-mercado, antecedendo a tudo, incluindo a técnica, a produção, o consumo e o poder. O que a hegemonia da informação faz é dar coesão ao con-junto, e revesti-lo de ideologia.

“Tirania do dinheiro e tirania da informação são os pilares da produção da história atual do capitalismo globalizado. Sem o controle dos espíritos seria impos-

___________________________________________________² Unger in David Harvey, “Espaços de esperança”, pág. 266

Figura 11: Misha Gordin “New Crowd” (fonte: internet)

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sível a regulação pelas finanças. Daí o papel avas-salador do sistema financeiro e a permissividade do comportamento dos atores hegemônicos, que agem sem contrapartida, levando ao aprofundamento da situação, isto é, da crise” (Milton Santos, “Por uma outra globalização”, pág. 35)

Milton Santos mostra que o que a rede de informa-ção, em especial a mídia, constrói de benéfico ao sistema é a produção do consumidor antes do produto; sendo o próprio consumidor operador da produção, trabalhador, formando-se assim um ciclo de produção/consumo que vincula dinheiro, trabalho, necessidades humanas e consu-mo; combustível que faz com que o ciclo retorne ao ponto inicial, e mantêm seu movimento constante. “Transformar tudo em mercadoria e submeter quase todas as transações (incluindo as vinculadas à produção do conhecimento) à ló-gica singular da lucratividade comercial e ao cálculo de cus-to-benefício é um modo dominante de pensar.”³ Pois é este modo de pensar que está na base de nosso entendimento de mundo, o qual passa pela competitividade e pelo con-sumo. O que se está tentando demonstrar aqui é que o trabalho, como construção social, se encontra ideologica-mente vinculado ao sistema hegemônico da informação e de valores, constituindo, portanto, uma via de mão dupla, onde se colabora com a construção deste “modo de vida dominante”, ao mesmo tempo que usufrui-se e alimenta--se do mesmo, através do consumo. “A capacidade de mobilizar os múltiplos imaginá-rios” em “atividades materiais” se sustenta, portanto, em um sistema ideológico que injeta ideologia dominante, na forma de discurso, em toda a escala de produção humana, do trabalhador a seu produto. Por essa razão se afirma aqui que a produção de arquitetura e cidade é resultado desse mesmo sistema social, agindo de acordo com as mesmas regras de funcionamento, e produzindo objetos que repre-sentam, simbolicamente, os valores que o sustentam.

“O fato de que, no mundo de hoje, o discurso antece-___________________________________________________³ David Harvey, “Espaços de esperança”, pág. 291

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de quase obrigatoriamente uma parte substancial das ações humanas — sejam elas a técnica, a produção, o consumo, o poder — explica o porquê da presença ge-neralizada do ideológico em todos esses pontos. Não é de estranhar, pois, que realidade e ideologia se con-fundam na apreciação do homem comum, sobretudo porque a ideologia se insere nos objetos e apresenta--se como coisa.” (Milton Santos, “Por uma outra glo-balização”, pág. 39)

Nessa passagem, Santos aborda como questão de fundo a cultura da imagem, da representação como sinôni-mo da verdade; como se a realidade estivesse prontamente apresentada no que é visível. Temos, portanto, um fenô-meno retroalimentado: ideologia apresentada como coisa, encarnada na visibilidade e tatibilidade das imagens e dos objetos, comunicando, direta ou indiretamente, seu discur-so; e uma leitura imagética, superficial, que toma como ver-dade o que se vê. Desta lógica totalizante, como já afirmamos, não escapa a produção de arquitetura e espaço, privado e co-mum; como mostra Harvey ela reforça e reproduz essa lógi-ca, constitutiva de quase todo “fazer” contemporâneo.

Arquiteto no contexto - captura e alienação

“Ninguém quer discutir a relação entre arquitetura e política. É um assunto pouco palatável. Todos estes políticos, toda essa retórica, misturada com as verda-des sem tempo incorporadas nas nobres formas da arquitetura. Mas a resistência para entrar nesta dis-cussão não é nada nobre. Todos os arquitetos estão profundamente envolvidos, em seu trabalho, com o político, admitam eles ou não para os outros, ou para si mesmos. A maior parte dos arquitetos nesta era al-tamente comercial, que aceitam comissões e clientes que afetam a vida pública, estão de fato comprometi-dos em apoiar sistemas políticos. Só uns poucos tra-balham contra isto, por que eles acreditam que seja retrógrado em termos de arquitetura ou sociedade, ouambas. Não é nenhuma surpresa que a maioria dos

Figura 12: René Magritte, “Ceci n’est pas une pipe” - “Isto não é um cachimbo” (fonte: internet)

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arquitetos evitem as implicações políticas de seu tra-balho. Eles se crêem criadores, ou inovadores, quando na verdade são nada mais nada menos que os exe-cutores se uma ordem física e social desenhada por aquelas instituições que atualmente detém a auto-ridade política e o poder.” (Lebbeus Woods in Hel-mholtz Watson, “Rebelião (arqui)tecnológica”, Re-vista Rizoma.net, 2002, pág. 113)

Dentre os fiéis trabalhadores que movem a cada dia as engrenagens da grande máquina, está a grande maioria dos arquitetos e urbanistas. Tendo em conta e valorizan-do as capacidades e qualidades de concepção espacial e alinhamento de conceitos e valores mais diversos, incor-porados à materialidade física inevitável das arquiteturas, há de se reconhecer que a maioria massiva dos arquite-tos atuantes se vê quase que impedida de desempenhar à plena poesia suas habilidades (algumas vezes nem de-senvolvidas, devido a uma cooptação que se inicia mesmo dentro das escolas). Isso em parte se deve, como já vimos, ao poder coercivo do dever competitivo e especulativo do mercado, que vincula diretamente o trabalho do arquiteto a obrigações de caráter mercantil e publicitário. A arquite-tura é também, portanto, objeto de encarnação de valores sociais; podendo utilizar-se dessa capacidade para efeitos diversos, como veremos. A produção arquitetônica em larga escala de hoje responde à representação e à reprodução de símbolos so-ciais, correspondentes aos atribuídos a mercadorias de va-lor estritamente especulativo, ostentativo e de consumo, como manutenção do papel mercadológico da profissão. A maioria dos arquitetos tem como referencial arquitetos--estrela que, como grifes, representam marcas diretamente comprometidas com a reprodução desses mesmos símbo-los sociais; fenômeno que serve, portanto, como mobili-zador constante dos ânimos, que têm no star system uma imagem do sucesso que se espera, e que se seguirá espe-rando, uma vez que é constitutivamente destinado a pou-cos - estabelecendo-se um monopólio, no sentido do que coloca Ferro:

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“Em eco à concentração escandalosa do poder econô-mico, a elite da profissão concentra a tarefa acumu-lada de dar corpo a seus negócios e enfeitá-los com a aparência de monopólio simbólico.” (Sérgio Ferro, prefácio de “Arquitetura na era digital-financeira, Pedro Fiori Arantes, pág. 08)

Além do impacto social na profissão, a arquitetura monumental dos arquitetos-estrela, embora exceção, se tornou um fator de extrema importância na constituição do espaço urbano contemporâneo. Nas duas últimas déca-das essa arquitetura assumiu definitivamente seu papel no universo midiático das logomarcas, produzindo edifícios que são indubitavelmente “logotectures”; como troféus, são conteúdo de disputa entre as ditas “cidades globais”.

“Essas obras, em geral, não estão diretamente à ven-da, apesar de muitas vezes fazerem parte de estra-tégias de ‘cidades à venda’ ou da valorização das marcas. Seu valor de uso é o de representação e dis-tinção.” (Pedro Arantes, “Arquitetura na era digital--financeira”, pág. 18)

A esse efeito Pedro Arantes dá o nome de “renda da forma”, ou seja, a lucratividade de um edifício, para uma cidade ou parcela da cidade, que se dá a partir da circula-ção midiática e da capacidade de atrair riquezas, apenas por seu componente visual. Uma arquitetura de exceção, produzida por um número restrito de arquitetos, que gera grandes impactos nas cidades nas quais se instala, agindo em favor da gentrificação na medida em que promove um aumento de valor, consumindo enormes fatias dos orça-mentos públicos, servindo de mecanismo de lavagem de dinheiro. Ainda assim, por seu potencial imagético e mi-diático, por muitas vezes representar uma ousadia formal, viabilizada pelo enorme capital investido, essa arquitetura serve de referência para o trabalho da grande maioria de arquitetos.

“Da aceitação e compromisso com o falseamento da profissão instalou-se o conceito de arquitetura

Figura 13: “Arquipix”, Frederico Babina - Torre Agbar, Barcelo-na, 2000, Jean Nouvel (fonte: internet)

Figura 14: “Arquipix”, Frederico Babina - Swiss Re Headquar-ters, Londres, 2004, Norman Foster (fonte: internet)

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como artigo de luxo, parâmetro de aferição do grau de aburguesamento ou elemento de identificação de nossa ‘elite’ com os padrões de outras nações. O con-ceito se alargou e, hoje, encobre outras implicações. Associa-se a empreendimentos imobiliários, quando reúne o ‘bom gosto’ com uma funcionalidade ‘sus-peita’, ao ‘design’ meramente estético, ao urbanismo plástico das paisagens agradáveis, etc” (Sérgio Ferro, Arquitetura experimental, 1965, Arquitetura e traba-lho livre, pág. 39)

O que ocorre de mais frustrante nesse processo é que o arquiteto comum, em sua busca eterna pelo assento na fileira das estrelas, se esforçando por reproduzir, estéti-ca e simbolicamente, o repertório de seus mestres estrelas, reduz-se muitas vezes a um escravo da técnica, dos fatores econômicos e da burocracia.

“Regulamentos, custos, taxas de retorno do capital, preferências do cliente, e assim por diante, têm de ser levados em consideração a ponto de com frequência parecer que os promotores de desenvolvimento, fi-nanciadores, contadores, construtores e o aparato do Estado têm mais a dizer sobre a forma final da coisa a construir do que o arquiteto. O processo de ‘prati-car a arquitetura’ envolve todos esses complicadores. ‘Praticar arquitetura’ é uma prática inserida num dado contexto, uma prática espaçotemporal. Não obstante, há sempre um momento em que o livre jogo da ima-ginação - a vontade de criar - tem de entrar no pro-cesso.” (David Harvey,“Espaços de esperança”, pág. 268)

Além da reprodução de representações simbólicas do status quo, e da desvinculação de suas práticas de al-gum engajamento social, o arquiteto e urbanista dos escri-tórios encarna, também, um modo de fazer correspondente às dinâmicas de alienação nas relações de trabalho con-temporâneas, específicas de suas atribuições ou não. Como parte do corpo de trabalhadores da contem-poraneidade, o arquiteto sofre, consequentemente, com o

Figura 15: “Playtime”, Jacques Tati (fonte: internet)

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processo de aceleração e tirania do tempo, assim como se torna agente do mesmo.

Tempo, aceleração e competitividade

Tomando um panorama relativamente amplo, pode--se dizer que a invenção do relógio impôs uma organização do tempo que não responde às diversas temporalidades possíveis, variáveis segundo os ciclos da natureza, as per-cepções sensíveis, o tempo natural das tarefas. Essa ques-tão, embora tocada aqui de forma superficial, é importante para nós pois regula parte da maneira de pensar e de agir operacionalmente dos seres humanos, como seres sociais e como seres produtivos, até os dias de hoje.

“Apenas quando se generalizam os relógios mecâni-cos – a partir do século XIV – se chega a uma nova concepção de tempo, inconcebível em épocas an-teriores: o tempo como uma magnitude abstrata e homogênea, com existência própria. Foi o relógio que permitiu dissociar o tempo dos ciclos naturais e chegar à noção de tempo abstrato. (...) O relógio, não a máquina a vapor, é a máquina chave da moderna idade industrial.” (Jorge Riechmann, “Tiempo para la vida”, pág. 07)¹

“A noção de tempo real faz parte do discurso contem-porâneo a propósito da velocidade e da aceleração de nossa época. (...) A velocidade dilata o tempo no instante em que estreita o espaço.” (Paola Berens-tein Jacques, “Estética da ginga”, pág. 49)

Contemporaneamente a internet, os gadjets, os ce-lulares, se configuram como aparatos desta corrida desen-freada pela “produção” de tempo dentro do tempo. Tudo é acelerado, o tempo se densifica, com a multiplicação de temporalidades transversas (multitasking).

“(...) ela [a técnica da informação] tem um papel deter-minante sobre o uso do tempo, permitindo, em todos os lugares, a convergência dos momentos, assegu-

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rando a simultaneidade das ações e, por conseguinte, acelerando o processo histórico.” (Milton Santos, “Por uma outra globalização”, pág. 25)

Às dinâmicas de aceleração produtiva e do tem-po, soma-se a cultura da competitividade. Segundo David Harvey, o capitalismo “é com frequência entendido como girando basicamente em torno da competição”, onde a so-brevivência dos mais aptos é avaliada em termos de lucra-tividade. Dentro de ambientes de trabalho e mesmo fora deles, o que se constrói é um individualismo tão exacer-bado, focalizado na necessidade de vencer, de se destacar, que impede relações de cooperação entre grupos, a iden-tificação das necessidades do outro, empatia por situações de injustiça social, entre outros fenômenos. Sendo os pró-prios colegas da empresa adversários em potencial, multi-plica-se a tensão (mental e física, corporal, corroborando para quadros de tendinites, LERs, e outras somatizações corporais) e diluem-se a humanidade e o trato sensível na atividade produtiva de todos os dias.

“A competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais fa-cilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instala. Tem as mesmas origens a produção, na base mesma da vida social, de uma violência estrutu-ral, facilmente visível nas formas de agir dos Estados, das empresas e dos indivíduos” (Milton Santos, “Por uma outra globalização”, pág. 37)

Arquitetura, produção, desenho e canteiro

Segundo Sérgio Ferro, pode-se, de maneira geral, distinguir três grandes ciclos quanto à produção material da arquitetura: o classicismo (séc. XVI a XX), no qual o capi-tal esteve fundado na subordinação formal do trabalho; o modernismo, com o capital fundado na subordinação real do trabalho; e o terceiro ciclo, correspondente à etapa atu-al, da subordinação do capital produtivo ao financeiro, no qual o conflito entre capital e trabalho se agrava. Defende também que ambos os ciclos anteriores terminaram por re-

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ações destrutivas do capital diante de perigosas “tomadas de consciência”. “A subordinação somente formal do traba-lho se confronta com a possibilidade de insubordinação e o métier monopolizável pelos trabalhadores ser utilizado como arma. O capital responde à ameaça com a industrialização” (em prefácio de “Arquitetura na era digital-financeira”, pág. 10). Na construção a industrialização não é possível, pois o fator gerador de maior mais-valia nessa indústria é o tra-balhador. Por essa razão, o que ocorre na arquitetura é a substituição de materiais tradicionais (monopolizáveis pe-los trabalhadores) por outros industrializados, como con-creto e ferro. Neste ponto faremos um retorno no tempo para abranger uma outra questão: o desenho. Os antigos cons-trutores, gregos, romanos e muitos outros, reuniam habi-lidades de projeto e execução, porém o projeto era feito em escala 1:1, diretamente no canteiro. Os trabalhadores chamavam-se artistas, pois possuíam grande parte do co-nhecimento necessário à execução e eram responsáveis por grande parte das decisões na construção. Não existiam planos completos que servissem de guia, apenas ideias ge-rais. Com o tempo, começou-se a produzir desenhos, em geral posteriores à construção, a fim de servirem de do-cumento de registro para a administração local. O “dese-nho separado”, como o chama Sérgio Ferro, como projeto, anterior à execução, surgiu, ao que tudo indica, das mãos de Bruneleschi, como resultado de um avanço tecnológico, que possibilitou a construção da cúpula de Florença. Tal monumento só pode ser construído após uma série de cál-culos e operações geométricas, apenas possíveis, de início, no desenho. Esse processo, no entanto, apesar de representar um avanço, decretou também o estabelecimento da alienação por parte dos trabalhadores; não mais artistas, pensantes, mas executores de regras estabelecidas, externas a ele; o trabalho passa a ser ele próprio abstrato.

“Do ponto de vista da acumulação do capital, essa abstração do desenho em relação ao canteiro é o ca-minho obrigatório para a extração da mais-valia (...) É

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o desenho, enquanto instrumento de comando do ca-pital, reunindo numa totalização forçada os trabalha-dores parcelados no ‘trabalhador coletivo’, que, posto em movimento, valoriza o capital.” (PA, pag 128).

Pouco a pouco, o desenho se tornou ferramenta para definições cada vez mais detalhadas, minuciosas e amarradas. O arquiteto, então, emancipa-se cada vez mais do canteiro, tornando-se ele, por sua vez, alienado do pro-duto final de seu trabalho. Com a industrialização dos ma-teriais de construção, o desenho separado pareceu ainda mais justificado. Passou a ser necesário maior definição e maior detalhamento no projeto. A detenção do conheci-mento na construção está, agora, nas mãos dos fabricantes industriais, além do arquiteto.

“A ideologia de todo master-builder é revivida, mas agora sob o arbítrio da era digital e amparada pelos novos modelos multidimensionais de gestão de in-formações de projeto, como ‘ideação’ arquitetônica transformada em programação total” (Pedro Arantes, “Arquitetura na era digital-financeira”, pág. 19)

Fetiche da forma

Além dessas questões, a propagação dessa fórmula arquitetural se dá de maneira predominantemente formal e imagética. O “fetiche da forma”, nas palavras de Pedro Arantes, é o maior vetor de produção e consumo da arqui-tetura; o que afirma, ainda mais, sua posição como produto de consumo do capitalismo.

“A história da produção efetiva se esvai sob a capa das relações plásticas. Há uma forma (plástica) da forma mercadoria dos produtos que assegura, reforça e pro-longa sua fetichização sob o capital.” (Sérgio Ferro, O fetichismo na arquitetura, 2002, Arquitetura e tra-balho livre, pág. 299)

Esta forma, tomada como a forma “final” da constru-ção, assume, também ela, elementos alienantes em relação

Figura 16: “Imitation”, Gordon Matta-Clark (fonte: internet)

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a seu processo de produção. As soluções de revestimento, cada vez mais afastadas da materialidade real dos edifí-cios, cada vez mais externas a eles, como verdadeiras ca-pas, escondem ao olhar o verdadeiro processo de constru-ção que se deu ali; em especial escondem processos ainda manuais, resultando

“Por sua vez, na ausência das distâncias impostas pela mecanização da indústria, são instauradas outras dis-tâncias, ainda por meio do desenho: a ‘mediação ar-quitetônica’ (formalismo, jogo de volumes, texturas) e o apagamento das marcas do processo de produção, sobretudo por meio da camuflagem do revestimento (‘cujo segredo é fazer do trabalho concreto trabalho abstrato’).” (Pedro Arantes, “Arquitetura na era digi-tal-financeira”, pág. 130)

Os softwares

Uma das características mais importantes do tra-balho do arquiteto hoje é o uso de softwares. Apesar de possuírem diversas vantagens em relação aos processos manuais utilizado há algumas décadas atrás, os softwares, do ponto de vista dos processos alienantes de trabalho, configuram mais uma camada de alienação e heteronomia, pois aprofundam a separação entre produção no canteiro e representação em desenho, agora digital.

“O saber projetual que passava pelas mãos dos arqui-tetos, ao ser cada vez mais automizado, irá avançar a ponto de questionar a dimensão estritamente hu-mana da ação de projetar (...). A unidade entre mãos e cabeça na criação do arquiteto foi metamorfoseada pela introdução da máquina e limitada a momentos mais restritos do que anteriormente, quando ele exe-cutava como artífice sua mercadoria-projeto.” (Pedro Arantes, “Arquitetura na era digital-financeira”, pág. 142)

Mais uma vez coloca-se a questão do afastamento da realidade da produção do objeto, somada à perda da

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gestualidade e habilidade manual do arquiteto.

“No desenho técnico, nas perspectivas, nas maquetes, todos em crescente automação, há uma prática que se disvincula tanto da materialidade, numa ‘descone-xão entre simulação e realidade’, como lembra Sen-net, quanto da experiência da habilidade de artífice que aproxima o arquiteto do mundo do trabalho, e, de algum modo, da própria experiência de trabalho em canteiro, do qual um dia fez parte organicamente” (Pedro Arantes, “Arquitetura na era digital-financei-ra”, pág. 142-143)

Além da perda de habilidades, do afastamento do trabalho em canteiro e da realidade do produto, o resultado corporal do trabalho em computador é bastante eloquente quanto à antianatomia deste tipo de prática cotidiana. O arquiteto se transforma em operador de máquinas, para o qual conta apenas com braços, mãos, dedos e olhos na tela.

“No clique do mouse há uma atrofia da gestualidade do arquiteto desenhista, pois é um movimento repeti-tivo, causador de novas doenças de trabalho. A posi-ção do desenho é estática e o olho é exigido constan-temente para encontrar linhas e pontos, nem sempre facilmente visualizáveis na tela.” (Pedro Arantes, “Ar-quitetura na era digital-financeira”, pág. 138)

O uso de programas do tipo CAD representa tam-bém a tomada de passos largos em direção a uma abstra-ção cada vez maior do trabalho do arquiteto de escritório. Se antes já havia a ruptura entre desenho e canteiro, com o trabalho em computador e a divisão cada vez maior das tarefas do escritório, o arquiteto afasta-se ainda mais do conhecimento quanto ao que está produzindo.

“A habilidade artesanal está fraturada e inserida na divisão do trabalho, que separa o profissional da parcela do seu saber. Sem participar das decisões to-madas a priori que conformam o projeto, a maioria dos profissionais desenha fragmentos do produto. (...)

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Apenas o arquiteto-chefe e seus auxiliares imediatos (...) têm a ideia completa do que se executa” (Pedro Arantes, “Arquitetura na era digital-financeira”, pág. 130)

Uma imagem dessa abstração e da perda da noção de todo no projeto é a ação do zoom na tela, com auxílio do mouse, esse mergulho em direção a fragmentos desconec-tados do projeto, rumo ao negro infinito do fundo da tela.

“O processo de desenho ocorre por fragmentos, é não linear, com idas e vindas, como peças de um quebra--cabeça - o que guarda similaridade com a própria fragmentação pós-moderna da linguagem.” (Pedro Arantes, “Arquitetura na era digital-financeira”, pág. 143)

Há também outra camada de heteronomia, acres-cida pelo fato de que o software determina quais opera-ções o arquiteto pode ou não utilizar, na medida em que “privilegia determinadas práticas e marginaliza outras, sim-plesmente fazendo com que aquelas que você apoia com seu software se tornem muito mais eficientes, rápidas e fáceis; o que introduz uma distinção entre as práticas, reforçada pela dinâmica comercial.” 4

Construção de alternativas

É contra todo esse modelo, que vai da sobrevivên-cia à lógica do capital - da inserção em sua grande agenda pragmática ao imaginário único - que se insurgem grupos de arquitetos e pessoas interessadas em construir a partir de outros parâmetros e hipóteses suas práticas e os espa-ços da cidade. Propõem um tipo de relação produtiva não mediada pelo capital, ou mediada por ele o mínimo possí-vel. Demonstraremos, ao longo do texto, as táticas e estra-tégias utilizadas por esses grupos.

“Não se trata exatamente de uma postura utópica, ___________________________________________________4 Willian Mithcel in Pedro Arantes, “Arquitetura na era digital-financei-ra”, pág. 143

Figura 17: O zoom na tela do CAD (fonte: arquivo pessoal)

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não estamos propondo uma nova espécie de cidade ou sociedade, nem mesmo uma nova disciplina urba-na, mas sim um outro tipo de profissional urbano.(..) As situações urbanas extremas, os casos-limite e os espaços-movimento das cidades contemporâneas - e, principalmente, das periferias marginais (ou margens periféricas) das cidades, que também são marginali-zadas na periferia do mundo globalizado, como é o caso da maioria das cidades brasileiras - parece im-plorar pelo surgimento (ou pela legitimação, reconhe-cimento e formação) desse outro tipo de arquiteto.” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 154)

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“Então, o mundo da consciência não é criação, mas sim, elaboração humana. Êsse [sic] mundo não se constitui na contemplação, mas no trabalho.” (Erna-ni Maria Fiori, prefácio de “Pedagogia do oprimido”, pág. 10)

“(...) a real mudança política advém de alterações si-multâneas e bem pouco coordenadas tanto no pen-samento como na ação” (David Harvey, “Espaços de esperança”, pág. 306)

“Nosso processo será sempre o da repetição diferente, o labirinto do percurso, da descoberta, da surpresa, da experiência, da multiplicidade e, sobretudo, da liber-dade. Isso exclui muitos outros tipos de labirintos - os que são impostos, planejados, projetados e, particu-larmente, os que são ortogonais, racionalistas, os que são cartesianos.” (Paola Jacques, “Estética da Ginga”, pág. 95)

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Práxis autônoma Arquitecturas Colectivas é uma rede de pessoas e coletivos que se interessa pela construção participativa do entorno urbano, e visa trabalhar de forma colaborati-va, gerando conhecimento compartilhado e promovendo diversos tipos de projetos e iniciativas em conjunto. Surge em 2007, a partir de uma oportunidade oferecida a Recetas Urbanas, o coletivo de arquitetura e urbanismo de Santiago Cirugeda. Cirugeda trabalhava há sete anos promovendo “si-tuações urbanas”: intervenções urbanas, artísticas e arqui-tetônicas, construções temporárias em vazios urbanos e todo tipo de situação “alegal” que pudesse explorar; sem-pre trabalhando com o reuso de materiais. No ano de 2003 funda o coletivo Recetas Urbanas, através do qual passa a trabalhar de maneira mais intensa e coletiva; produzindo literalmente receitas, em forma de fichas, como manuais de instrução, para a execução livre de suas propostas. Como ele, haviam alguns coletivos trabalhando de forma a envol-ver a participação cidadã, a autoconstrução e o reuso de materiais. Em 2007 a prefeitura de Zaragoza (norte da Espa-nha) cedeu ao coletivo de Cirugeda 45 containers, pro-vindos de um assentamento provisório para ciganos, que estava sendo desmontado. A prefeitura lhe dera duas con-dições para a doação dos containers: que lhes desse um uso social e que não lucrasse com eles. Enxergando uma oportunidade de expandir as fronteiras de suas práticas, trabalhar em conjunto e estabelecer vínculos, o coletivo articulou então que a doação fosse repartida com outros doze coletivos espanhóis, que atuavam de maneira pare-cida e que já trabalhavam juntos ou estavam em contato com Recetas Urbanas. Continuavam valendo as duas regras para todos os projetos. Pouco a pouco, foram-se organizan-do os transportes necessários para levar o material, e cada grupo começou a trabalhar em soluções de gestão, uso e arquitetura diferentes. Esse foi o início da rede Arquitectu-ras Colectivas, e o começo de um trabalho em cooperação que pouco a pouco iria tomando maiores proporções.Figura 18: “Situações urbanas”, Santiago Cirugeda (fonte:

internet)

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“Esta experiência serviu realmente como uma oportu-nidade de experimentar diferentes situações que, com o passar do tempo, nos foram mostrando diversos protocolos de gestão e financiamento, mecanismos de ocupação de terrenos ou edifícios, maneiras de funcionar como coletivos, associações e cooperativas, instrumentos de auto-crítica e avaliação. Apesar de o reuso dos containers haver envolvido a um número de 13 coletivos que trabalham com a autoconstrução como uma de suas armas de participação, a pesquisa e os contatos realizados nestes três anos de trabalho intenso, não se limitou só a eles. Hoje em dia são mais de 50 coletivos de toda Espanha e 11 da América La-tina¹ (Argentina, Colômbia, México, Paraguai y Uru-guai) que trabalham em rede em diferentes projetos.” (TDA, Santiago Cirugeda, “Camiones, contenedores, colectivos”, pág. 44)

Os membros da rede se comunicam principalmen-te através de uma página na internet, que funciona como uma plataforma interativa, onde se pode criar e comparti-lhar conteúdos. Além disso, todo ano ocorre um encontro das Arquitecturas Colectivas, onde os grupos expõem seus trabalhos, suas dificuldades, discutem-se soluções e estra-tégias, além de realizarem-se mutirões de trabalho. Há uma diversidade grande de grupos na rede: cole-tivos de arquitetura, de arte, de hackers, espaços comuni-

Figura 19: “Ferramentas coletivas”, em “Camiones, Contenedores, Colectivos”, pág. 80-81

___________________________________________________¹ Para ver lista de coletivos inscritos na rede acessar http://www.meipi.org/redaacc.list.php

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tários, expositivos. A cada dia mais membros se inscrevem e se interessam por essa outra maneira de trabalhar, em cooperação. No entanto, apesar da diversidade, há algumas coisas em comum entre os grupos: buscam outras maneirar de relacionar-se e de produzir cidade, trabalham de forma colaborativa, promovem e dão assistência a iniciativas ci-dadãs, entre outras questões.

Contexto de crescimento

Nos últimos anos houve um impulso de crescimento de grupos com essas características; na Espanha, na Europa e na América Latina. Os coletivos latino-americanos em ge-ral se estabeleceram a partir de contatos com o país ibéri-co, através dos quais se estabeleceram alianças e se estru-turaram forças para o trabalho. No entanto, o crescimento registrado nos últimos anos pela Europa se deve, em parte, a um momento histórico bastante específico. A crise americana de 2008 atingiu muito rapida-mente a Europa. Na Espanha, após alguns anos de estímulo da cultura da “casa própria” e de um intenso boom no setor da construção, o impacto foi muito forte. Os índices de de-semprego se tornaram altíssimos; os que dizem respeito a jovens e a arquitetos, estão entre os maiores. Grande parte das famílias de classe média a baixa tiveram seu padrão de vida bastante modificado, muitas perderam suas casas por não poderem pagar a hipoteca. Consumir, vestir-se, alimentar-se, abrigar-se, passaram a ser dificuldades cada vez maiores. Em 2010 uma onda de manifestações tomou a Es-panha, e em 15 de maio, com o início da acampada na Praça do Sol, em Madri, surgiu o 15M, o movimento mul-titudinário dos indignados espanhóis. No contexto da pri-

Figura 20: Cartografia da rede (fonte: internet)

Figura 21: “Complicidades”, em “Camiones, Contenedores, Colecti-

vos”, pág. 82-83

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mavera árabe, e no auge da indignação quanto às políticas do governo e as práticas criminosas dos bancos, milhares de pessoas, em diversas cidades da Espanha, de idosos a crianças, estabeleceram um fórum permanente de ideias, ocupando espaços públicos da cidade. Hoje o movimento persiste, através de assembléias de bairros. É bastante coerente, portanto, afirmar que esse con-texto de crise, de indignação e de organização cidadã con-tribuiu em grande proporção para o alastramento dessas práticas e para a criação de novos grupos. Os europeus de classe média passaram a ter de lidar com a escassez, algo a que não estavam acostumados. Ti-veram, portanto, de encontrar novas maneiras de trabalhar, de produzir e de consumir, ou seja, novas táticas de vida, resistência e mesmo luta.

Táticas e estratégias

O conceito de tática e o seu oposto, de estratégia, elaborados por Michel de Certeau é de fato esclarecedor do modo de ação dos coletivos:

“(...) [o conceito de tática] trata-se - dizia Corax - de ‘fortificar ao máximo a posição do mais fraco’. Em sua densidade paradoxal, esta palavra destaca a relação de forças que está no princípio de uma criatividade intelectual tão tenaz quanto sutil, incansável, mobi-lizada à espera de qualquer ocasião, espalhada nos terrenos da ordem dominante, estranha às regras pró-prias da racionalidade e que esta impõe com base no direito adquirido de um próprio². As estratégias são, portanto, ações que, graças ao postulado de um lu-gar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem.” (Michel de Certeau, “A

___________________________________________________² “O ‘próprio’ é uma vitória do lugar sobre o tempo. Permite capitalizar vantangens conquistadas, preparar expansões futuras e obter assim para si uma independência em relação à variabilidade das circunstâncias. É um domínio do tempo pela fundação de um lugar autônomo.” (Michel de Certeau, “A invenção do cotidiano”, pág. 99)

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invenção do cotidiano”, pág. 96)

As táticas partem de situações de escassez e/ou precariedade, utilizando-se de oportunidades, aproveitan-do o tempo e os poucos recursos disponíveis, enquanto as estratégias contam, de antemão, com uma infraestrutura potente à disposição. Pode-se dizer que, na política social, as estratégias são mobilizadas por agentes hegemônicos, enquanto as táticas são as armas das “minorias”. Neste sentido, pode-se afirmar que as práticas dos coletivos são táticas, dentro do âmbito social e da profis-são.

“Em arquitetura este traçado dependeria do posicio-namento do interlocutor. A prática tradicional (profis-sional) trabalha a partir da visão panóptica do pro-fissional moderno, herança do geômetra onisciente renascentista, abstrato e de controle. Uma prática tática implicaria uma leitura e ação ao nível da rua, a partir de onde se sucedem as coisas. Dentro do campo da arquitetura isso implica, necessariamente, uma crí-tica do papel do arquiteto, e por extensão da arquite-tura, já que em sua concepção mesma está absorvida como veículo de Poder e de exercício de uma verda-de.” (Gustavo Crembil e Pablo Capitanelli, “Arquite-tura tática”, in Revista Rizoma.net, 2002)

Potência

A potência do trabalho dos coletivos se encontra em sua capacidade de promover situações de empodera-mento e desalienação, através de um conjunto de táticas, derivadas de uma forte atitude política de resistência, por eles adotadas: trabalho coletivo, em cooperação, horizon-tal; participação do usuário; reciclagem/reuso de materiais; autoconstrução; imprevisibilidade/improviso na execução do projeto. Através dessa potência, caracterizam-se como microatores e microrresistências, promotoras de ações do tipo bottom-up. Analisaremos algumas dessas questões de forma aprofundada mais adiante.

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Figura 22: Página anterior - “Lafábrika Detodalavida” (fonte:

internet)

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Experiências

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Experiências Este capítulo se dedica a apresentar e analisar seis experiências práticas. A escolha dos casos se deu de ma-neira quase natural, pois em quatro deles tive participação. Pareceu importante relatar experiências vivenciadas dire-tamente. Seguramente as análises que se seguem após o relato das experiências derivam também dessa experiên-cia pessoal. Me envolvi nos quatro primeiros casos de formas distintas: em mutirões esporádicos, tendo participação continuada ou mesmo trabalhando diretamente, propondo situações. Apresentará-se aqui, também, questões de metodo-logia que não pôde-se explorar como merecido no traba-lho. Coisas como metodologia de participação, de projeto, meios de financiamento e acordos legais, como convênios de cessão de uso. Esses tópicos serão tratados dentro dos caso a caso, especificamente dentro de cada experiência.

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Experiências

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As tabelas ao lado registram uma análise rápida, através de categorias, de alguns dos projetos/ações pesquisados previamente. As categorias foram defi-nidas de acordo com o interesse parti-cular do presente trabalho, que busca iniciativas coletivas, participativas, que envolvam autoconstrução e reutilização/reciclagem de materiais e com propostas não usuais de gestão do espaço, financia-mento e regimes de posse. Dizem respei-to tanto a questões programáticas, espa-ciais e de uso quanto questões de caráter operacional. A primeira tabela é um esforço de demonstração (e resumo) das diversas possibilidades de combinação desses fa-tores, dentro do universo de muitas ou-tras experiências. Lista um número redu-zido delas, mas que pode ser o suficiente para que se faça um pequeno panorama. Após uma análise geral foram es-colhidas seis experiências, quatro das quais tive envolvimento pessoal, para serem estudadas de forma mais próxi-ma e mais profunda. Usando os mesmos critérios, selecionou-se os exemplos que melhor representassem as iniciativas que o trabalho pretende demonstrar. Obser-vando a tabela das experiências escolhi-das, vemos que todas são de uso públi-co e/ou coletivo; de caráter “fixo” ou de longa duração; envolveram reutilização de materiais; em sua maioria possuem regime de posse em cessão de uso e/ou ocupação, sendo de propriedade pública ou privada; com mecanismos de financia-mento diversos, porém em grande parte de fonte coletiva; e todas partiram de au-togestão, participação e autoconstrução. A análise mais aproximada de cada uma das seis experiências segue a partir de agora.

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Campinho, La Bachillera Este primeiro exemplo, logo se verá, se difere em parte dos demais, pois não envolveu o trabalho organizado de coletivos de arquitetura, propriamente. Houve a presen-ça de arquitetos e outros profissionais dotados de diploma, pontualmente e com algumas colaborações, mas pode-se dizer que é um caso de iniciativa popular, principalmente. Se trata de um espaço que foi sendo trabalhado ao longo de muitos anos, para o qual não existe um “projeto”. Está incluído aqui por compartilhar várias questões com os ou-tros exemplos, e por ter servido como catalizador de outras experiências que tive. La Bachillera é um bairro popular de Sevilha, de ca-sas autoconstruídas e população em estado de sub/de-semprego, em sua maioria. Se tornou marginalizado pelo restante da cidade, e estigmatizado como lugar perigoso, violento, onde haveria assaltantes e traficantes de droga. Há de fato alguma atividade de tráfico por ali, mas é uma comunidade familiar sobretudo, e o clima de violência, se-gundo os moradores, não existe, pois a venda de droga não

......................Breve descrição: Ocupação/uso de terreno para lazer de

crianças e adultos, envolvendo a partici-pação de moradores, amigos e o uso de

materiais reciclados.

............................Localização:Campinho, bairro La Bachillera,

Sevilha, Espanha

.....................................Datas:Meados de 2001 aos dias de hoje

..........Viabilização econômica:Recursos mínimos, próprios - coletivos,

apoio de Recetas Urbanas com mate-riais e mobiliário

................Com participação direta> Mapa de Atores

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Experiências

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ofereceria insegurança para a população local. O bairro surge a partir dos anos 50, com a cessão em regime de aluguel do terreno por parte de sua proprietária, a Associação Sevilhana de Caridade. As casas que foram sendo construídas eram de propriedade dos moradores, e foram dispostas de forma orgânica, considerando a econo-mia de espaço e de recursos, sendo utilizada mão-de-obra familiar. Ao longo de 60 anos, as casas que de início eram feitas de materiais mais precários, como madeira e lona, foram paulatinamente sendo substituídas e melhoradas. Apesar de pagarem à associação um aluguel bas-tante baixo pelo terreno, não dispunham de infraestrutura básica como luz, água e saneamento; tampouco pavimen-tação. O que se conseguiu ao longo do tempo foi através de mobilizações e iniciativas dos próprios moradores, pois a prefeitura não possuía ingerência no local e a associação não estava interessada em implementar melhorias. No fim da década de 70 a população se organizou e contratou o serviço de uma construtora para melhoria da rede de sa-neamento (construída por moradores) e pavimentação das ruas. Este feito é considerado um marco na história do bair-ro, sendo comemorado por muitos anos na festa tradicional do bairro: “Velá”. À medida que as casas eram vendidas, os terrenos (ainda de propriedade da associação) foram sendo aluga-dos cada vez por valores mais altos, muito mais altos que de início. Alguns dos moradores realizaram a compra de seus terrenos, mas esse grupo representa uma ínfima mi-noria do bairro, o que resultou em um quadro bastante de-sigual Com tradição associativa, a comunidade possui as-sociação de moradores, de mulheres, de jovens, e luta há alguns anos pela melhoria do bairro e sua integração no Plano Urbanístico de Sevilha, além da resolução definitiva da questão fundiária. Por possuírem pouco espaço livre público e dentro dos lotes, em 2001 moradores começaram a limpar o terre-no vazio que restava ao longo da avenida (foto) e a utilizá--lo como campo de futebol. A partir de 2007 as ações no campinho se inten-sificaram, se construíram brinquedos e mobiliários com o

Figura 23: Localização do “campinho”: Sevilha, Bachillera, Campinho (fonte: Google Earth)

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Trabalho Final de Graduação

apoio do coletivo Recetas Urbanas, reaproveitando bancos e estruturas de outra praça. O campinho foi movimentado por jogos de futebol, paellas coletivas, cinemas ao ar livre, mutirões. Em 2011 se tentou fazer uma horta, mas a bai-xa participação dos vizinhos e o verão escaldante fizeram com que a plantação não fosse adiante. A análise deste caso se detêm nos processos ocorri-dos no “campinho”, a partir do ano de 2010.

> Desafios e forças

Num esforço de síntese, buscando traçar um pano-rama objetivo, essa etapa da metodologia de análise se propões a identificar desafios e forças nos processos de ação dessas experiências.

DESAFIOS.................................................................................... - Quase nenhum recurso financeiro - Pouca participação constante dos moradores - Famílias em situações difíceis, desemprego, mem-bros presos, conflitos familiares - Imagem marginalizada com relação à cidade - Iniciativas centralizada em uma pessoa, o que cau-sou certa dependência - Constantes ameaças de remoção, vencidas segui-das vezes por vizinhos - Não inclusão proposital no Plano Geral de Sevilha - Uso de drogas na praça durante a noite (conflito)

FORÇAS..................................................................................... - Crianças muito ativas e participantes - Ponto nodal e entrada do bairro, maior relação com a cidade - Alguns (poucos) moradores extremamente dedica-dos ao espaço - Uso de mobiliário e estruturas cedidas por Recetas Urbanas

> Materiais empregados Mudas de plantas, rodas de bicicleta, tinta, pneus, azulejos reaproveitados, barras de ferro, “gelo bahiano” de

Figura 24: Mutirões no campinho (fonte: arquivo pessoal)

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Experiências

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plástico, madeira, etc. Quase a totalidade dos materiais foi reaproveitado de sobras de casas do bairro.

> Quadro anterior / posterior Antes de ser utilizado como espaço de lazer, o cam-pito era um terreno ocioso, usado como depósito de lixo. Se tornou aos poucos um dos espaços livres ativos do bair-ro, e uma referência para as crianças, em situação familiar delicada, de lugar de lazer e de atividades. Seguramente por alguns anos, apesar das inúmeras dificuldades, o cam-pito representou uma fonte de esperança não só para essas crianças, mas para todos os que se envolveram na manu-tenção do lugar. > Perspectivas Atualmente, ao que tudo indica, o lugar encontra-se “abandonado”, como se vê na última das imagens ao lado. Como me disse um morador, que conversei para este traba-lho, “o ‘campito’ não se encontra em seu melhor momento”. Os adultos que tocavam as atividades do lugar foram aos poucos perdendo as energias, devido às dificuldades em manter a continuidade com a baixa participação que havia. As crianças continuam utilizando o espaço para brincar, conversar e jogar bola; porém elas mesas, que aju-daram a plantar as plantas e pintar os muros, continuam “depredando” o lugar, arrancando plantas ou cortando ga-lhos para fazer fogueiras. Não se sabe dizer se existem perspectivas para a volta das atividades.

___________________________________________________Nota sobre participação direta: neste caso estive participando durante alguns meses do ano de 2011, em atividades e mutirões.

Figura 25: Espantalho da horta, dia de pintura de muros e estado atual do campinho (fonte: arquivo pessoal)

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Lafábrika Detodalavida O Coletivo Conceptuar_te é formado por estudantes de belas artes da Universidade de Granada, na Espanha, os quais provêm de Los Santos de Maimona - um povoado rural de cerca de oito mil habitantes ao sul da província de Extremadura, na Espanha. No início de 2010 o grupo conseguiu com a prefeitura de Los Santos, após muita in-sistência, um convênio de cessão de uso, por cinco anos, de dois galpões da antiga fábrica de cimento da cidade, aban-donada há quase quarenta anos e ameaçada de demolição. O objetivo do coletivo é criar ali uma “fábrica de gestão social do território” e da “ociocultura”, em âmbito rural, a ser gerida coletivamente, onde se promovam atividades culturais, produtivas, comunitárias. Para isso estão promovendo, aos poucos, a reabili-tação do espaço através de autoconstrução, organizando mutirões que reúnem outros coletivos, amigos e pessoas interessadas. A fábrica de cimentos Asland se instalou na cidade na década de cinquenta, como resposta a um plano regio-

......................Breve descrição: Antiga fábrica de cimento ocupada e

sendo reabilitada por coletivo de arte,

afim de estabelecer um centro cultural.

............................Localização:Los Santos de Maimona, Badajoz,

Extremadura, Espanha

.....................................Datas:Meados de 2010 aos dias de hoje

..........Viabilização econômica:Prêmios e patrocínios, futuro

crowdfunding

................Com participação direta> Mapa de Atores

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Experiências

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nal de desenvolvimento, o qual utilizaria, para sua execu-ção, o cimento produzido pela nova fábrica da região. O im-pacto na localidade rural foi muito grande, com a geração de novos empregos (chegando a ter 300 funcionários em seu ápice produtivo), e causando um novo clima econômi-co e empresarial na cidade, majoritariamente agrícola. Após anos de produtividade, beneficiando a muitos, mas sendo vítima também de queixas referentes à poluição que causava (e que prejudicava as plantações), a cimentei-ra passou por uma crise, mantendo, em seus últimos anos, uma produção baixíssima, resultado do trabalho de apenas vinte funcionários. Decidiu-se então por seu fechamento no ano de 1973, gerando outra vez impacto sobre a cidade, que vem reduzindo sua população desde então. Com a conquista do convênio, válido por cinco anos, o coletivo de artistas entrou em contato com Recetas Ur-banas, que visitou o local e se responsabilizou por gerir o projeto do espaço, que já estava sendo utilizado para ativi-dades, a ser reformado em regime de mutirão. O trabalho começou já em 2010, em um evento que reuniu coletivos de arte e arquitetura, durante o qual tam-bém foram feitas intervenções artísticas. Demoliu-se pare-des, pintou-se algumas das restantes, construiu-se mobi-liário e se deu início o processo projetual colaborativo do espaço. Em fevereiro de 2011 realizou-se “Autorrascantes”, jornada de autoconstrução, na qual reuniram-se coletivos da rede Arquitecturas Colectivas e moradores da região. Realizou-se debates, reuniões institucionais sobre o con-vênio, apresentações musicais, atividades para crianças, construção de mobiliário, pintura e reforma do espaço. Hoje a fábrica, após alguns anos de poucas ativida-des e discussão acerca dos objetivos da associação para uso dos galpões, se encontra em um momento de reorgani-zação para levar a cabo o projeto, enfocando-se na questão legal e burocrática. O convênio assinado há três anos foi cancelado, por não cumprimento dos objetivos por parte do coletivo. A prefeitura tem agora uma nova gestão, com a qual se está realizando a construção de um novo convênio, elaborado colaborativamente, a partir da rede Arquitec-turas Colectivas na internet. Deste convênio faz parte um

Figura 26: Localização da “Fábrika Detodalavida”: Los Santos de Maimona, Fábrica de Cimento, naves cedidas ao projeto

(fonte: Google Earth)

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Trabalho Final de Graduação

projeto arquitetônico, elaborado por Recetas Urbanas, em conjunto com o escritório bAuk. O projeto foi exigido pela administração, enfatizando a insegurança que representa o atual estado dos telhados, e foca na reestruturação da infraestrutura básica do espaço. > Desafios e forças

DESAFIOS.................................................................................... - Poucos recursos financeiros - Edifício abandonado há muitos anos, necessitando bastante reforma - Não cumprimento do primeiro acordo - Necessário muitos recursos - Entraves burocráticos - Possível revogação do novo convênio, caso não se-jam cumpridos, em dois anos, os objetivos

FORÇAS..................................................................................... - Trabalho junto a Arquitecturas Colectivas, coopera-ção, muita gente implicada - Convênio de cessão de uso com prefeitura - Prêmio recebido junto a Recetas Urbanas

> Processo projetual Neste caso o projeto se deu de maneira mais con-vencional, por exigência do convênio firmado com a prefei-tura da cidade. De início, em 2010, o que se apresentou foi uma proposta de uso do espaço, mas logo questões técni-cas se fizeram necessárias. Foi preciso realizar um levantamento do local e ela-borar, para os galpões cedidos, projetos de recuperação das coberturas, acessibilidade e instalações. Este projeto técnico se encontra como parte do convênio. No entanto não há previsões dos usos e de como se ocupará os espa-ços dos galpões. > Materiais empregados - Reutilizados: silos antigos, pallets, barras de ferro, pneus, madeira de diversos tamanhos, armários, madeiras de todos os tipos, etc. - Comprou-se: tinta, revestimento, pregos, parafu-

Figura 27: Antiga cimenteira (fonte: arquivo pessoal e internet)

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Experiências

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sos, ferramentas.

> Quadro anterior / posterior Apesar de a transformação física do espaço estar se dando de forma gradual, a apropriação e o uso foram total-mente renovados - a fábrica encontrava-se abandonada há quarenta anos. Ainda não se alcançaram os objetivos pro-postos pelo grupo (reforma dos galpões, atividades conti-nuadas do centro cultural), mas as atividades e dinâmicas que ocorreram ali, como almoços, festas, debates, exposi-ções, intervenções e mutirões de construção e limpeza, são um grande avanço na direção de uma gestão integralizada e comunitária daquele espaço, tendo gerado conhecimen-to e movimentação.

> Perspectivas Após estes anos de amadurecimento da discussão e do trabalho, essencialmente legal, acerca da fábrica, e com a realização de um novo acordo, construído colaborativa-mente com outros coletivos mais experientes, “Lafábrika Detodalavida” está retomando forças para seguir com o projeto. Com a perspectiva de arrecadação de fundos atra-vés de Goteo, uma plataforma de financiamento coletivo, abrem-se possibilidades de avanço para o projeto do Cole-tivo Conceptuar_te.

___________________________________________________Nota sobre participação direta: neste caso participei de um mutirão em janeiro de 2011.

Figura 28: Mutirões (fonte: internet)

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Práxis autônoma

Trabalho Final de Graduação

Comboi a la fresca, “Solar Corona” Todos os anos Arquitecturas Colectivas promove um encontro de coletivos em uma cidade da Espanha. No ano de 2011 o encontro aconteceu durante o verão, em Valên-cia. Havia uma série de atividades espalhadas pela cidade, mas o ponto central, de convergência, foi uma terreno (em castelhano, solar) na rua Corona, no centro histórico. O centro de Valência é marcado por uma série de imóveis e de terrenos vazios, resultado de edifícios que ruíram ou foram demolidos por oferecerem riscos à segu-rança. Tais lotes permanecem vazios durante anos devido a uma dinâmica na qual se somam a especulação imobiliária sofrida pela região central, a legislação urbanística restriti-va da zona e o momento de crise, inviabilizando propostas e afastando o interesse de empresários do setor de cons-trução. A falta de espaços livres e a existência de tantos lotes em desuso, no entanto, fizeram com que houvesse um movimento muito forte na cidade, no sentido de lançar

......................Breve descrição: Encontro de coletivos que deu-se em

terreno ocupado, que após o evento foi apropriado por moradores, promovendo

diversas atividades.

............................Localização:Terreno na rua Corona,

Barrio del Carmen, Centro, Valência, Espanha

.....................................Datas:Julho de 2011 aos dias de hoje

..........Viabilização econômica:Encontro: inscrição de participantes,

apoio de empresas com materialUso posterior do terreno: coletiva

................Com participação direta> Mapa de Atores

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Experiências

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propostas de uso para esses terrenos e de ocupação co-letiva e comunitária dos mesmos. Foram promovidos con-cursos de ideias a arquitetos e urbanistas nesse sentido, e alguns grupos já estavam colocando em prática certas ações. O terreno da rua Corona estava em debate tempos antes do encontro, pois já havia uma luta por parte dos mo-radores no sentido de utilizar o espaço. O terreno é com-posto de dois lotes, sendo um de propriedade da prefeitu-ra e o outro particular. Existe um projeto urbanístico para o terreno público, visando construir ali um estacionamento subterrâneo, uma praça e formalizar a rua que o corta. O projeto é antigo, e não há previsão para sua implementa-ção; por essa razão moradores da região se organizaram, junto a um escritório de arquitetura da cidade, para soli-citar, junto à prefeitura e ao proprietário privado, a cessão de uso do espaço. Para a realização do encontro, os grupos que o estavam organizando somaram esforços à luta da vi-zinhança, e conseguiram o acordo. Foi feita a limpeza do espaço, em regime de mutirão, durante a qual se encontrou ruínas de um subsolo - prova-velmente utilizado para tingimento de tecidos, atividade típica da zona -, havendo ali também as únicas árvores de todo o terreno. Acredita-se que este espaço já havia sido usado como horta ou pomar, pois quando foi “limpo” (re-tirados escombros, mato, etc) para o encontro se encon-trou nele algumas espécies frutíferas. A esse espaço lhe foi dado o nome de “Jardim das Ruínas”; durante o encontro se interviu nele de forma a facilitar o acesso e a permanên-cia das pessoas. Os muros foram pintados com novas artes (já havia muito grafitti), e um grande mural foi produzido na empena cega que restava do edifício ao lado. Se raliza-ram também oficinas de construção de mobiliário reciclado para o espaço. Nesse processo, anterior ao evento, partici-param coletivos da organização e vizinhos. O evento teve seus efeitos na cidade - que claro, de certo modo se espalham por outros territórios, com as vivências dos participantes -, promovendo atividades e intervenções em diversos pontos e bairros. Participaram cerca de sessenta coletivos e seis bairros (associações de moradores, inscritas em uma convocatória que aconteceu

Av. del Cid

Av. Tres Forques

Espais // Espacios

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Estació Metro ColónPl. Pinazo (C. Colón)Arte&FactoC. Peu de la Creu, 8 · Ciutat VellaPl. Manuel GraneroPl. Manuel Granero · RussafaPl. PatraixPl. de Patraix · Patraix | L3, L5 | 11, 3C. Puente AstillerosC.Puente de Astilleros (junt antiga desembocadura del riu) · Natzaret | 3, 4, N8C. Major de NatzaretC. Major de Natzaret (parada tramvia front al mercat) · Natzaret | 3, 4, N8Parc MarazulParc Marazul · Natzaret | 3, 4, N8Reials DrassanesPl. Juan Antonio Benlliure · El Grau | 4AmalteaPl. Escoles Pies · Ciutat VellaAntic escorxador del CabanyalC. Sant Pere 27 · El Cabanyal

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Les trobades Arquitecturas Colectivas es celebren des de 2007. Es tracta de trobades entre la ciutadania, professionals i agents socials de diversa procedència, en els quals conceptes com a art i arquitectura s’utilitzen com a recurs per a pensar i debatre sobre la construcció i gestió participativa de l’entorn urbà. Els col·lectius participants procedeixen, entre uns altres, dels camps de l’associacionisme urbà i veïnal, educació, art, ecologia, sociologia, pensament, arquitectura, gestió cultural, cooperativisme, estudis sobre habitatge i noves tecnologies.

En aquesta ocasió, Comboi a la Fresca, un grup de persones i col·lectius de València constituït arran de l’organització d’Arquitecturas Colectivas_2011, hem organitzat la trobada a València amb l’objectiu de:

1. Crear xarxes entre persones i col·lectius de València i entre aquests i Arquitecturas Colectivas

2. Canalitzar dinàmiques urbanes mitjançant nous discursos i pràcti-ques transformadores tractant d’ampliar el cercle d’Arquitecturas Colectivas per a arribar a la ciutadania.

3. Difusió del potencial polític real de la ciutadania.

Proposant un format que consisteix en la col·laboració a distància entre col·lectius (locals i forans, local-local o forà-forà) durant els mesos previs a la convocatòria. Les propostes, accions o tallers desenvolupats es presenten durant la setmana de la trobada.

_

Los encuentros Arquitecturas Colectivas se han venido celebrando desde 2007. Se trata de encuentros entre la ciudadanía, profesionales y agentes sociales de diversa procedencia, en los que conceptos como arte y arquitectura se utilizan como recurso para pensar y debatir sobre la construcción y gestión participativa del entorno urbano. Los colectivos participantes proceden, entre otros, de los campos del asociacionismo urbano y vecinal, educación, arte, ecología, sociología, pensamiento, arquitectura, gestión cultural, cooperativismo, estudios sobre vivienda y nuevas tecnologías.

En esta ocasión, Comboi a la Fresca, un grupo de personas y colectivos de Valencia constituido a raíz de la organización de Arquitecturas Colectivas_2011, hemos organizado el encuentro en Valencia con el objetivo de:

1. Crear redes entre personas y colectivos de Valencia y entre éstos y Arquitecturas Colectivas.

2. Canalizar dinámicas urbanas mediante nuevos discursos y prácticas transformadoras tratando de ampliar el círculo de Arquitecturas Colectivas para llegar a la ciudadanía.

3. Difusión del potencial político real de la ciudadanía.

Proponiendo un formato que consiste en la colaboración a distancia entre colectivos (locales y foráneos, local-local o foráneo-foráneo) durante los meses previos a la convocatoria. Las propuestas, acciones o talleres desarrollados se presentan durante la semana del encuentro.

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Figura 29: Localização do “Solar Corona”: Valência, Centro Histórico, Solar Corona (fonte: Google Earth)

Figura 30: Locais de atividades do encontro (fonte: Google Earth)

Page 74: PRÁXIS AUTÔNOMA

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Práxis autônoma

Trabalho Final de Graduação

antes do encontro). Após o encontro, a associação de moradores do lo-cal seguiu com as atividades. Hoje o terreno é bastante movimentado, todos os dias. Os vizinhos cultivam ali uma horta/pomar, realizam festas, shows e cinemas ao ar livre.

> Desafios e forças

DESAFIOS.................................................................................... - Poucos recursos financeiros - Possível execução do projeto de praça da prefeitu-ra ( já sabido de antemão, porém pouco provável)

FORÇAS..................................................................................... - Grupo forte de vizinhos interessados e envolvidos - Encontro de Arquiteturas Coletivas Comboi a la Fresca

> Processo Projetual Muito pouco houve de “projetado” nesse espaço, apesar de que desde seu condicionamento para Comboi a la Fresca se definiu algumas “zonas de uso”: jardim das ruínas (descanso, contemplação, horta), espaço restante do terreno (atividades), muros (espaço para arte mural).

> Materiais empregados Reciclados: carretéis de fios elétricos, pallets, tábu-as de conglomerado, vigas de madeira, bandejas de plás-tico, pneus, latas de tinta, carretéis de plástico filme, redes de proteção de obra, restos de lajes pré-moldadas de obras adjacentes. Comprou-se: tintas, pincéis, parafusos, ferramentas, etc.

> Quadro anterior / posterior O terreno da Rua Corona se encontrava abandona-do, sem uso, desde “tempos imemoriais”¹. Após a luta pela cessão de uso, e o consequente sucesso, o encontro fun-cionou como ponto nodal de um evento que agiu sobre toda a cidade de Valência, em muitos aspectos, havendo

Figura 31: “Solar” Corona, letreiro do encontro, e espaço de assembleia (fonte: arquivo pessoal)

Page 75: PRÁXIS AUTÔNOMA

75

Experiências

Luana Fonseca Damásio

sido um lugar catalizador de energias.

> Perspectivas O Solar Corona encontra-se hoje muito ativo, com muitos vizinhos e grupos implicados, abrigando diversas possibilidades. Devido às poucas chances de execução do projeto por parte da prefeitura, é provável que o uso comunitário e ativo desse espaço, tão importante para o bairro e também para uma dinâmica global das cidades (em especial as eu-ropéias no período de crise), continue demonstrando ser um bom exemplo de micro-prática cidadã.

Figura 32: Jardim das ruínas”, construção de cobertura com tubos de papelão, sessão de cinema em terreno ocupado

(fonte: arquivo pessoal e internet)

___________________________________________________Nota sobre participação direta: neste caso participei do encontro em julho de 2011.

Page 76: PRÁXIS AUTÔNOMA

76

Práxis autônoma

Trabalho Final de Graduação

Praça das Crianças O Morro do Vital Brazil é uma favela de Niterói, loca-lizada na zona sul da cidade, próxima ao bairro de Icaraí. O início de sua ocupação foi impulsionado pela instalação do Instituto Vital Brazil, o qual era o proprietário de um grande terreno que contemplava também as áreas circundantes ao complexo do Instituto (incluindo o morro que havia detrás). A parte do terreno que se localizava no que se identificara como “cidade formal” foi loteada, com o objetivo de que os terrenos se destinassem a casas para trabalhadores do ins-tituto. Com o passar do tempo e contando com uma certa permissividade por parte da instituição, funcionários e ex--funcionários ocuparam as encostas do morro, dando início à construção de um novo bairro autoconstruído. Após anos de estabelecida a favela, e como parte das iniciativas de “responsabilidade social” do Instituto Vi-tal Brazil, foi montado um projeto, em parceria com a Ong Soluções Urbanas, para promover a regularização fundiá-ria de toda a área e a posterior melhoria habitacional de pouco mais de 100 casas (num universo de 500) do morro,

......................Breve descrição: Praça para crianças, envolvendo a par-ticipação de alguns moradores (muitas crianças) e o uso de materiais recicla-

dos.

............................Localização:Antiga Cisterna, Morro do Vital Brazil,

Niterói, Rio de Janeiro

.....................................Datas:De 17 a 20 de abril de 2013 (mutirão)

..........Viabilização econômica:Apoio financeiro do Studio-X Rio (con-

vite a arquiteto) e recursos coletivos do Erea Niterói 2013, através das inscri-

ções dos participantes (construção)

................Com participação direta> Mapa de Atores

Page 77: PRÁXIS AUTÔNOMA

77

Experiências

Luana Fonseca Damásio

além da construção de um centro comunitário. Em ocasião da organização do Erea Niterói 2013, convidou-se o arquiteto Santiago Cirugeda, do Recetas Ur-banas, para vir realizar uma intervenção em mutirão. Sua vinda foi em parte financiada pelo Studio-X, um laboratório da Universidade de Columbia no Rio de Janeiro, e em parte pelo Erea, com as inscrições de participantes. Como já ha-via um trabalho prévio no local, que alguns de nós da or-ganização conhecíamos e no qual já havíamos trabalhado, entrou-se em contato com a Ong Soluções Urbanas e, com antecedência de poucas semanas para o encontro, come-çou-se a tentar articular com os moradores um mutirão de quatro dias. A principal parceira foi Carina, uma moradora que trabalha também no Arquiteto de Família. Com ela cami-nhou-se pelo morro, afim de ver que lugares abertos havia, que poderiam potencialmente ser transformados em espa-ços públicos ativados. Como já se pensava, dois lugares fo-ram previamente elencados como principais candidatos: o “campinho”, uma espécie de rotatória em que, quando não há carros estacionados e materiais de construção, as crian-ças jogam bola; e a antiga cisterna. Neste momento se faz necessário contar uma dinâmica de segregação que exis-te no próprio morro: a comunidade não se considera uma só, havendo duas comunidades (no sentido de sentimento de identificação coletiva) dentro do Vital Brazil. Um lado, o lado leste (que possui casas em melhores condições, e é onde se localizam as duas “instâncias” de “trabalho social”, o Médico de Família e o centro comunitário), se relaciona muito pouco com o outro, o lado da cisterna (oeste), que se diz desfavorecido nas ações externas no bairro, e com casas em piores condições. Ambos os grupos consideram o oposto como sendo parte dos morros imediatamente vizinhos: Souza Soares e Cavalão. Já de início tinha-se a intenção de trabalhar na parte da favela que havia rece-bido menos iniciativas, afim de não contribuir mais a esse desequilíbrio. Mas para decidir como e onde seria essa in-tervenção marcou-se algumas reuniões com os moradores. Apenas dois encontros aconteceram de fato, com a presença de poucas pessoas, todas habitantes do lado oeste do morro, onde se localizam o campinho e a cisterna.

Figura 33: Localização da “Praça das Crianças”: Niterói, Morro do Vital Brazil, Antiga Cisterna (fonte: Google Earth)

Page 78: PRÁXIS AUTÔNOMA

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Práxis autônoma

Trabalho Final de Graduação

Nesses dois momentos se conversou sobre a demanda de uso e programa de espaço livre para o bairro, além de se discutir os possíveis locais de intervenção e qual seria o melhor deles. Rapidamente e de forma muito clara o pro-grama de espaço para as crianças se colocou como prioritá-rio, por haver muito pouco espaço livre para elas. As vanta-gens de se utilizar a área da antiga cisterna também foram levantadas, e o fato de os moradores presentes serem vi-zinhos dessa região fez com que a decisão fosse pela cis-terna. Essa localização oferecia algumas outras vantagens, como o fato de ser um ponto nodal e de entrada da favela, de modo a ter muito movimento de passagem e bastante visibilidade. Isso influenciou de forma positiva também na decisão, pois as crianças teriam sempre algum “olho” adul-to por perto, além da ideia de que um espaço para crianças, bem estabelecido, do qual ecoam vozes, gritos e sons de brincadeira, imporia algum respeito e cuidado à policiais e traficantes ao entrarem no morro. Resolvidas as questões de localização e programa, se deu início a um mutirão de quatro dias, parte da progra-mação do encontro, em que a cada dia um grupo se dirigia ao “canteiro” para os trabalhos. Esse grupo variou ao longo dos dias, com exceção de algumas pessoas que se envol-veram mais intensamente; grupo o qual, após o encontro, viria a estabelecer-se como Coletivo Enxame.

> Desafios e forças

DESAFIOS.................................................................................... - Curto prazo para promover debate e mobilização anteriores ao mutirão - Iniciativa externa, não tendo sido buscada pela co-munidade - Pouco interesse e baixa participação dos morado-res (adultos) - Pouco ou quase nenhum recurso financeiro - Dificuldade de coleta de material de reuso de qua-lidade e com variedade - Dificuldade de transporte de material - Poucas ferramentas - Sem perspectiva de recursos para prosseguir com

Figura 34: Processo, “Praça das Crianças” (fonte: arquivo EREA)

Page 79: PRÁXIS AUTÔNOMA

79

Experiências

Luana Fonseca Damásio

construção - Baixo interesse, em relação ao que se esperava, por parte dos participantes do Erea - Descontinuidade do grupo, ocasionando perda de ideias - Falta de experiência do Coletivo Enxame para dar prosseguimento às ações - Possível dificuldade de manutenção a longo prazo - Ocupação noturna por usuários de drogas - Presença da polícia - Moradores (adultos) insatisfeitos com o uso que se deu do espaço - crianças promovendo gritaria, usuários de drogas

FORÇAS..................................................................................... - Alguns vizinhos interessados e muito presentes: Carina, Jean e Seu Antônio - Muitas crianças participantes - Potencial espacial, paisagístico e nodal da praça - Processo colaborativo, conexões criadas - Criação de um coletivo que posteriormente manti-vesse o trabalho - Erea Niterói 2013 - Obra abandonada na Uff, com “permissão” do rei-tor para “usar” material - Apoio do Studio-X para participação do Recetas Ur-banas - Ferramentas pesadas emprestadas temporaria-mente

> Processo projetual No primeiro dia de mutirão os participantes conhe-ceram o local, a história do morro e conversaram com mo-radores. Os estudantes foram divididos em quatro grupos, cada qual responsável por uma tarefa: pintura dos muros, propostas para a área de terra, propostas para a área ci-mentada da cisterna e diálogo com moradores. Esse últi-mo grupo seria o responsável em transmitir aos três pri-meiros os desejos e ideias dos moradores, de forma que estes mantivessem um contato mais aproximado com um grupo pequeno de pessoas. Essa metodologia foi proposta

Figura 35: Processo, “Praça das Crianças” (fonte: arquivo EREA)

Page 80: PRÁXIS AUTÔNOMA

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Práxis autônoma

Trabalho Final de Graduação

por Santiago Cirugeda. Na parte da tarde o grupo voltou ao local do encontro de estudantes, onde se sentaram em mesas e continuaram a trabalhar nas propostas, baseando--se no que havia de materiais coletados. Em relação ao processo projetual o fato de a cada dia haver sido um grupo diferente foi prejudicial, pois hou-ve perda de continuidade das ideias. O exercício criativo em si, de esforço de desenho com os materiais disponíveis, foi muito interessante, mas o que acabou sendo executa-do resultou bastante diferente do planejado; o que nessas situações costuma ser comum em certa medida, mas que nesse caso em particular tomou proporções consideráveis.

> Materiais empregados - Reutilizados: fôrmas de laje nervurada de dois ta-manhos, batentes de porta, madeiras variadas, joelhos de 100, pneus, pallets, cabo de vassoura - Comprou-se: cimento, areia, brita, barras de rosca, porcas, chumbadores (parafusos para concreto), tinta látex branca, xadrez de muitas cores

> Quadro anterior / posterior O espaço da antiga cisterna, era majoritariamente ocioso, embora servisse, muito esporadicamente, para reu-niões comunitárias, e, com maior frequência, para a brin-cadeira das crianças. A parte de terra, no entanto, não era utilizada. À partir da intervenção no espaço e nos muros, o lu-gar recobrou outra vida. Embora há reclamações quanto ao barulho das crianças, esse fato na verdade demonstra que houve apropriação do espaço. Faltam brinquedos, há que se revolver questões como iluminação, seria muito bom se os bancos fossem pintados coloridos, pois assim tornam-se visualmente mais atrativos para as crianças (e também adultos, que “apelida-ram” os bancos de “túmulos”). A atividade do cinema teve enorme participação das crianças, e contou também com o envolvimento de alguns moradores para sua realização.

> Perspectivas

Figura 36: Processo, cinema, “Praça das Crianças” (fonte: arquivo EREA)

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Experiências

Luana Fonseca Damásio

Após a cessão de cinema, as atividades na praça, e do Coletivo Enxame, ficaram quase paralisadas. Por dificul-dades internas de organização e motivação, foi se tornan-do difícil organizar atividades das mais simples, apesar das inúmeras tentativas de promover mais sessões de cinema. O conflito da polícia com o tráfico interrompeu as ativida-des por um tempo, mas depois foram mesmo questões de organização do coletivo que impossibilitaram as ações. No entanto, há um desejo de alguns em ver a praça mais bonita e ativa. Por isso se está estabelecendo conta-tos com outros coletivos do Rio e de Niterói, a ver se rea-lizam-se mutirões de construção com terra, para feitura de um escorrega.

Figura 37: A praça hoje (fonte: arquivo EREA)___________________________________________________Nota sobre participação direta: neste caso participei de todo o proces-so.

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Práxis autônoma

Trabalho Final de Graduação

As Biblio Criativas O processo de criação de bibliotecas criativas no Equador teve início na Fundação Mundo Juvenil, um espa-ço dentro do Parque La Carolina, em Quito, dedicado ao desenvolvimento das capacidades criativas e de aprendi-zado das crianças. Identificando a carência da cidade por um espaço público de leitura infantil e buscando atualizar os conceitos de biblioteca, um grupo de funcionários da fundação começa a pensar em como reabilitar um espaço sem uso de mais de 400m². Em tempos de virtualidade, excesso de informação e consequente desinteresse pela leitura manual e pelas bibliotecas; em tempos em que a forma de educar foi mo-dificada pela maneira de raciocinar imposta pela internet, é preciso buscar modelos mais dinâmicos e interessantes para os pequenos. Um espaço onde as crianças se sintam livres e in-teressadas, onde é proibido proibir; onde se aprenda a ter curiosidade, a unir peças e tirar conclusões, ao invés de simplesmente decorar e reproduzir. É preciso educar seres

> Mapa de Atores

......................Breve descrição: Projeto colaborativo e participativo de

duas bibliotecas infantis, envolvendo o uso de materiais reciclados.

............................Localização:Parque de los libros: Parque La Carolina, Quito, Equador; Mafalda Vive: Montalvo,

Los Ríos, Equador

.....................................Datas:Parque de los libros: 20 a 30 de junho

de 2011, Mafalda Vive: 19 de março a 1 de abril de 2012

..........Viabilização econômica:Apoio financeiro da Bic (construção),

Embaixada Espanhola em Quito (convite a coletivos), Colégio de Arquitectos de

Quito (eventos de apresentação), SINAB e AEA

................Sem participação direta

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Experiências

Luana Fonseca Damásio

livres para pensar e críticos para viver, atuantes em socieda-de. A biblioteca criativa parte do princípio da escola como espaço público e da construção coletiva como ferramenta de educação comunitária e alternativa à passividade.¹ A primeira biblioteca criativa surge então no Parque La Carolina: El Parque de los libros. A Fundação Mundo Ju-venil, com o apoio da Embaixada da Espanha, convida aos coletivos equatorianos Tranvía Cero e Al Borde e aos espa-nhóis Makea Tu Vida e Recetas Urbanas, que durante duas semanas organizam e ativam o mutirão de projeto e cons-trução, envolvendo funcionários da fundação e estudantes universitários. Passadas algumas semanas da inauguração do Par-que de los libros, Tranvía Cero é contactado por Oscar Aquilar, da Fundação Paulo Freire, interessado em trans-formar um espaço comunitário abandonado em Montal-vo, um povoado afastado, em mais uma biblioteca criati-va. Convida-se mais uma vez a Makea Tu Vida, realizam-se alianças com o SINAB (Sistema Nacional de Bibliotecas do Equador) e com a AEA (Asociación de Egresados Agostinos)e iniciam-se os trabalhos. Com a participação de um grupo de pedagogas e alguns vizinhos muito empenhados, nasce a biblioteca criativa Mafalda Vive.

> Desafios e forças

DESAFIOS.................................................................................... - Dificuldade em despertar o interesse das crianças pela leitura - Escassos recursos financeiros - Parque de los libros: localização em um parque, pouca proximidade com a cidade, ocasionando menor par-ticipação - Possível dificuldade de manutenção a longo prazoFORÇAS..................................................................................... - Voluntários interessados - Processo colaborativo, conexões criadas - Material coletado durante 2 meses - Mafalda Vive: cidade pequena, localização central, ___________________________________________________¹ “Las Biblio Creactivas: donde nada es lo que parece y todo se aprende”, pág 09

Figura 38: Localização do “Parque de los libros”: Quito, Parque La Carolina, Fundación Mundo Juvenil. Obs: o povo-

ado de Montalvo, onde está “Mafalda Vive”, não aparece nas ferramentas de mapeamento por satélite (fonte: Google Earth)

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Trabalho Final de Graduação

grande participação por parte dos vizinhos - Bienal de Arquitectura de Quito - Apoio financeiro de Bic, Embaixada Espanhola em Quito, SINAB e AEA

> Processo projetual Com estudantes universitários e funcionários em Quito, pedagogas e vizinhos em Montalvo, os “projetos” se deram de maneira a primar pelo processo sobre o objeto, de forma coletiva, interdisciplinar e experimental. Impul-sionados por arquitetos e artistas dos coletivos, os grupos se reuniram para discutir as necessidades e oportunidades dos espaços, analisar o material reunido e traçar diretrizes para a construção. Em mesas de trabalho e a partir de de-cisões consensuais, foram postas em prática metodologias de desenho participativo; em pequenas reuniões e uma grande assembleia. Com base no trabalho prévio, iniciaram-se as “min-gas” (como tradicionalmente se chamam os mutirões no Equador). A partir de ateliês de projeto, dos quais saíam “versões em processo”, os pequenos projetos de mobili-ário e o projeto do espaço foram se definindo in situ, no momento da execução. Todos os dimensionamentos se ba-searam no tamanho das crianças.

> Materiais empregados - Parque de los libros: castelo inflável, estruturas metálicas de diferentes tamanhos e formas, retalhos de te-cido colorido, cavaletes, quadros-negro, cadeiras, rolos de cabo, pallets, rodas, entre outros. - Mafalda Vive: material procedente da biblioteca de Montalvo (estruturas de metal de cadeiras velhas, mesas, estantes), pallets e madeiras de diversos tamanhos, bam-bús “de guadúas”, garrafas de 25 l, um depósito de água, exaustores de ar, tábuas de fôrma para concreto, lonas e malhas de las granjas avícolas, rodas de caminhão, móveis velhos trazidos pelos vizinhos, retalhos de tecido proce-dentes de um ateliê de roupa esportiva, bobinas y rolos de cabo, ventiladores, entre outros.

> Quadro anterior / posterior

Figura 39: Processo, “Parque de los libros” (fonte: internet)

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Experiências

Luana Fonseca Damásio

Em ambos os casos, espaços ociosos foram ativados por trabalho coletivo de projeto e autoconstrução, mate-riais considerados como lixo transformados em mobiliário criativo e inspirador. Grupos de amigos, estudantes e associações pude-ram trabalhar coletivamente, junto aos coletivos de arqui-tetura, para a construção dos espaços, o que seguramente configurou um marco social para essas pessoas.

> Perspectivas Hoje ambas as bibliotecas funcionam diariamente e promovem atividades como narração de contos, leitura guiada, encenações e atividades artísticas. Até a finalização deste trabalho não se soube se existem projetos similares para outras bibliotecas criativas no Equador. No entanto, as perspectivas para as duas exis-tentes são muito promissoras.

Figura 40: Processo, “Mafalda Vive” (fonte: internet)

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Trabalho Final de Graduação

“Sala Aberta” Aula abierta (em português “sala aberta”) se localiza em La carpa, um centro cultural em terreno ocioso cedido pela prefeitura de Sevilha, no prolongamento do Parque Miraflores. O parque está no distrito de Macarena, um dos pior urbanizados de Sevilha, por ser composto de conjun-tos de blocos habitacionais idênticos e possuir carência de equipamentos e espaços públicos. Constituído por bairros obreiros, o distrito tem tradição de lutas: após 10 anos os moradores conseguiram a implementação do parque, que hoje representa um espaço verde importante para a cida-de, abrigando também hortas de vizinhos e centros comu-nitários. A iniciativa do projeto foi do coletivo Varuma Teatro que, associado a Recetas Urbanas (responsável pela realiza-ção do projeto, pela gestão dos recursos e da construção). O objetivo é estabelecer um espaço de cultura descentrali-zado, e fornecer infraestrutura para o desenvolvimento de trabalhos no campo do circo e do teatro, além de abrigar outras atividades culturais e profissionais, e outros cole-

......................Breve descrição: Espaço de uso social e cultural que

contempla escola de teatro e circo, mais uma série de atividades

............................Localização:Terreno ocioso, parte do Parque

Miraflores, Sevilha, Espanha

.....................................Datas:Setembro de 2010 aos dias de hoje

..........Viabilização econômica:Prefeitura cede o terreno, Recetas

Urbanas cede estruturas e materiais, patrocínios, Goteo e espetáculos da cia.

financiam projeto

................Sem participação direta> Mapa de Atores

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Experiências

Luana Fonseca Damásio

tivos de trabalho (de variadas práticas e disciplinas). A in-tenção é que um dia o espaço seja a sede da futura Escola Superior de Artes Circenses da Andaluzia. A respeito deste projeto, nos serviu de base infor-mativa um texto, escrito pelo diretor da cia. de teatro, no qual relata uma série de dificuldades enfrentadas no de-correr do processo. Apesar de ser um dos exemplos mais exitosos e importantes deste trabalho, apresentará-se aqui algumas dessas dificuldades, por considerar-se importante o relato dos entraves e da busca por soluções. Nesse senti-do é possível que se diferencie de certa maneira dos exem-plos anteriores, pois se teve pouco acesso à informações acerca de suas dificuldades. Varuma Teatro começou a se reunir com diversos órgãos do governo em 2008, apresentando sua proposta de espaço cultural, que abarcaria a sede da companhia, atividades culturais constantes e a futura escola de circo. Obtiveram o apoio do Instituto da Cultura e das Artes de Sevilha, através do qual assinaram, junto à secretaria de urbanismo, uma notificação de cessão de uso por quatro anos, renováveis por mais cinquenta. No entanto, ao assi-narem o contrato de cessão, um mês depois, notaram que o documento registrava a cessão de quatro anos, renováveis por apenas mais quatro anos. Em seguida a isso mais dificuldades apareceram: os furtos do primeiro container instalado no terreno e do furgão da companhia, com todos os materiais de circo. A construtora contratada para nivelar o terreno faliu e desa-pareceu, sem devolver o pagamento. Apesar dos entraves, o grupo reuniu forças e con-tinuou na batalha por conseguir todos os papéis: licença de obra, licença de abertura, registro do projeto no colégio de arquitetos, etc. Passaram-se meses até que o processo burocrático estivesse finalizado. Enquanto isso, alugaram uma retroescavadeira e um parente terminou o serviço de movimento de terra; con-seguiram mais materiais cedidos por Recetas Urbanas e começou-se um trabalho de trabalho durante o dia e vigília durante a noite. Instalaram-se cercas ao redor do espaço, parte cedidas pelo coletivo de arquitetura e parte compra-das pela companhia; porém, isso não impedia totalmente

Figura 41: Localização de “La Carpa Espacio Artístico”: Sevilla, Estrada Carmona, La Carpa (fonte: Google Earth)

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Experiências

Luana Fonseca Damásio

os furtos, portanto seguia sendo necessário vigiar o espaço durante a noite. O diretor da companhia e sua esposa dor-miram no terreno durante meses. Com a data de inauguração se aproximando, mais familiares e amigos se uniram ao trabalho, e assim impri-miu-se mais rapidez ao processo. Recuperar e re-trabalhar os materiais conseguidos por Recetas Urbanas, além de re-alizar as instalações de infraestrutura; tudo isso em parale-lamente à burocracia e à organização do evento de inaugu-ração. Na ocasião da instalação de mais um container, o caminhão que fazia o transporte, ao entrar no terreno, ar-ruinou o trabalho feito pela retroescavadeira; o solo ainda não estava assentado. Não havia mais dinheiro e nem mais possibilidades de empréstimos ou patrocínio. O grupo re-alizou portanto, mais uma vez, o movimento de dois mil metros quadrados de terra, com carrinho de mão, enxada e pá. Este foi o processo do espaço “La Carpa”. No entan-do, analisaremos mais detidamente, como objeto, a “Aula Abierta” (sala aberta). Este edifício, construído após a inauguração do es-paço, destina-se a uso coletivo, desde que previamente acordado com a cia. de teatro, seja para atividades, cursos, discussões ou espaço de trabalho. Nos interessa mais es-pecificamente pois foi construído a partir do desmonte de um outro edifício, marco para a história dos coletivos: “Aula Abierta Granada”. A construção original foi realizada em 2005, para abrigar um espaço para alunos de Belas Artes da Universi-dade de Granada, e serviu de sede para o primeiro encon-tro de Arquitecturas Colectivas. Para ela, desmontou-se um galpão ocioso da administração local, e realizou-se uma oficina de autoconstrução com alunos da universidade. Funcionou até 2007, passou dois anos fechada, foi ocupa-da em 2009 mas logo se tornou ociosa outra vez. Foi então que em 2012 foi desmontada e carregada, em três cami-nhões, para Sevilha. Ao material provindo de Granada somaram-se ou-tros, advindos de antigos projetos de Recetas Urbanas, comprados de segunda mão, doados por obras, comprados

Figura 42: Processo, “Aula abierta” (fonte: internet)

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Trabalho Final de Graduação

em ferro-velhos, além de provindos de um convênio com o museu de arte contemporâneo de Sevilha para uso de materiais de exposições passadas. O projeto foi viabilizado em parte por meio de uma campanha de crowdfunding, através da plataforma espa-nhola Goteo.

> Desafios e forças

DESAFIOS.................................................................................... - Poucos recursos financeiros - Roubos de material do canteiro - Dificuldade em conseguir financiamento, patrocí-nio - Quebra da construtora responsável pela nivela-mento do terreno - Lentidão na concessão de licença para obra

FORÇAS..................................................................................... - Diversos coletivos e um grande grupo de amigos dedicados a contribuir na execução - O fato de Varuma Teatro haver decidido dividir o espaço do terreno com outros coletivos deu força extra - Rapidez de tomada de decisões do grupo de traba-lho - Rapidez no processo de execução: 9 meses - Recursos materiais reutilizáveis cedidos por diver-sas empresas e projetos a Recetas Urbanas - Cessão de uso do terreno pela prefeitura - Recursos coletivos - crowdfunding

> Processo projetual Foi realizado anteprojeto (imagem na página ante-rior), projeto executivo e orçamento para ocasião do con-vênio com a prefeitura; no entanto, apesar de haverem sidoutilizados materiais muito similares ao previsto, o que foi executado resultou bastante diferente do projetado. As de-cisões sobre o espaço, ao final, apesar de em grande parte geridas por Recetas Urbanas, foram tomadas coletivamente pelo grupo de gestão do espaço. Figura 43: Processo, “Aula abierta” (fonte: internet)

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Experiências

Luana Fonseca Damásio

> Materiais empregados (Aula Abierta) Reutilizados: estrutura metálica, unglass, pallets, te-lhas sanduíche, painéis de divisória, fôrmas de lage nervu-rada, vigas de concreto, madeiras de diversos tipos, portas , janelas, escadas, telhas de diversos tipos, etc. Comprou-se: tintas (doadas), parafusos, porcas, etc. O gráfico ao lado representa a origem dos materiais reutilizados no complexo.

> Quadro anterior / posterior Um espaço público, de propriedade da prefeitura de Sevilha, em total desuso, em pouco tempo foi transfor-mado num dos mais importantes espaços de cultura livre da cidade. Com o envolvimento de muitas pessoas, que se somaram a iniciativa e montaram ali seus espaços de traba-lho, ou que participaram nos mutirões de autoconstrução, ou simplesmente passaram a frequentar o lugar, o espaço artístico La Carpa seguramente foi agente transformador das dinâmicas e sofreu uma importante transformação.

> Perspectivas A cada dia mais grupos se somam à associação que divide o espaço de La Carpa. O local tem já diversas ativi-dades, cursos, espetáculos e frequentadores. No momento não se sabe se haverão mais construções, mas como centro social esse espaço artístico possui enorme potencial e mui-tas possibilidades.

Figura 44: Recursos materiais, “Aula abierta” (fonte: internet)

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Trabalho Final de Graduação

( Um parêntesis ) Esta seção do trabalho se dedica a uma análise mais aprofundada de questões inerentes ao trabalho dos coleti-vos. No entanto, antes de entrarmos nelas, se faz necessá-ria a apresentação de alguns conceitos filosóficos utiliza-dos por Paola Berenstein Jacques em “Estética da ginga”: rizoma, fragmento e labirinto. Utilizaremos esses três ter-mos em diversos pontos no texto que se segue.

O conceito de Rizoma

A ideia de Rizoma tem origem na filosofia de Deleu-ze, e se propõe como “sistema de pensamento”, possuindo diversas possibilidades de aplicação. Se inspira no tipo de raiz das plantas do tipo erva, ou até “mato”, que apresen-tam um crescimento em tese “desordenado”, horizontal, que estabelece uma rede.

“O ‘sistema de pensamento’ da erva/rizoma é o opos-to do da árvore/raiz, enquanto o sistema arbusto/radícula, por conservar a estrutura arborescente, se caracteriza por uma falsa multiplicidade. O sistema erva/rizoma é o pensamento da multiplicidade, em oposição ao pensamento binário; é uma cultura acen-trada e instável, em oposição à cultura arborescente e enraizada. Por outro lado, o sistema erva/rizoma não tem modelo; e não se trata simplesmente de substituir a imagem da árvore pela imagem do mato no espírito das pessoas ou de substituir a busca das raízes e das origens pela busca do rizoma e do meio. O rizoma não tem imagem precisa. O que importa é mais o proces-so que a imagem formal, é o próprio movimento, o germinar, o crescimento, o ímpeto.” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 108)

O pensamento rizomático visa a horizontalidade, a não-linearidade de pensamentos, a contemplação de pos-___________________________________________________¹ Paola Jacques, “Estética da Ginga”, pág. 44

Figura 45: Rizoma - raiz (Fonte: internet)

Figura 46: Página anterior - edi-fício de Todo por la práxis (fonte:

internet)

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As principais questões

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sibilidades diversas, dentro de uma “desordem” que lhe é inerente.

“O Rizoma constitui, portanto, uma rede; com ele se quebra a ideia - própria árvore - de ordem e hie-rarquia. Mas, diferentemente de outros tipos de re-des, o Rizoma não é simétrico, é heterogêneo, visto que as conexões se fazem por acaso, na desordem. Os pontos de um rizoma não não fixos, deslocam--se, formando linhas, ‘linhas de fuga’ ou de ‘dester-ritorialização’. O Rizoma funciona por descentrali-zações em diferentes dimensões. Ao contrário da árvore, não se preocupa com origens (ou raízes), é ‘anti-genealógico’” (Paola Jacques, “Estética da gin-ga”, pág. 132)

Pode-se dizer que a rede Arquitecturas Colectivas é, portanto, uma estrutura rizomática, que se estabelece de forma horizontal, na qual não há limites para crescimento, e de onde surgem e desaparecem conexões a todo tempo.

Fragmento e espiral

A noção de fragmento no senso comum é de auxílio aqui, pois aproxima-se do sentido filosófico. Para a filoso-fia, o fragmento é a unidade última, indivisível, constituti-vamente “separada”.

“O verdadeiro Fragmento não quer se religar a nada, nem mesmo a outro fragmento; nunca vai em direção à unidade. Isso cria um fragmento isolado, em dissi-dência, em desunião, em interrupção.” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 46)

Possui também uma dimensão temporal, na medida em que representa o tempo fragmentário, o tempo do mo-mento, em detrimento do tempo “real”.

“A arquitetura sempre esteve ligada à ideia do durá-vel. (...) Constatamos que os arquitetos têm uma pre-ocupação prática com o tempo, têm o prazer de desa-

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Trabalho Final de Graduação

fiar Cronos e, talvez, ainda, uma atração megalômana pelo eterno. Por outro lado, o que mais particularmen-te nos interessa da noção de Fragmento é da ordem do efêmero e do inconstante - do momento - Kairos. O tempo temporário, heterogêneo, não mensurável ou desmedido.” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 47)

A espiral representa a “repetição diferente”, o tem-po que, ao invés de reproduzir uma lógica contínua, apre-senta, a cada movimento, mudanças.

“A noção de tempo ‘diferido’, em compensação, renun-cia a essa linearidade temporal, a toda essa cronolo-gia possível, à ordem estabelecida: presente/passado/futuro. Esses diferentes tempos se envolvem mutua-mente, estão entrelaçados, dobrados uns nos outros e formam o que podemos chamar de tempo cíclico com mudanças contínuas, ou tempo ‘espiralado’, um tem-po em espiral. É o tempo da repetição sem volta ao mesmo, e sim com volta ao outro - ‘o mesmo indefini-damente alterado’ - uma volta à diferença, o tempo da diferença.” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 50)

Assim como o rizoma, na ideia de fragmento “A ‘de-sordem’ é necessária porque a força do Fragmento está preci-samente em suas potencialidades anárquicas que provocam tensões.”¹

Labirinto

O conceito de labirinto refere-se à experiência do labirinto, ao processo de perder-se, para o qual é destina-do. Sua intenção não é o encontrar a saída, e sim o perder--se.

“A ideia do Labirinto é, portanto, mais da ordem da ex-periência subjetiva que da do próprio labirinto como objeto, apesar de ambos estarem inevitavelmente ligados. Assim como na noção de Fragmento - que

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As principais questões

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considera mais importante o fragmentário do que o próprio fragmento -, na noção de Labirinto, interessa mais o labiríntico que o labirinto como forma. (...) A ideia do Labirinto é a do estado labiríntico, relacio-nado não necessariamente à forma do labirinto, mas, sobretudo, à experiência de nele penetrar.” (Paola Jac-ques, “Estética da ginga”, pág. 93)

O labirinto dialoga também com o modo natural e orgânico dos processos:

“A proposta de estruturas orgânicas abertas às expe-riências não-opressivas é diretamente baseada na ex-periência comunitária, alternativa e marginal” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 123)

( )

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Trabalho Final de Graduação

As principais questões Com as análises que seguem, me proponho desa-fios. Identifico aqui componentes do trabalho dos coletivos que são claramente centrais e dos mais importantes; fa-cilmente destacáveis em qualquer observação. Três deles são: participação do usuário, reciclagem de materiais, auto-construção. No entanto, em lugar de analisá-los dos pontos de vista habituais, como horizontalidade, sustentabilidade e economia de recursos, pretendo observá-los desde pers-pectivas distintas, afim de utilizar outros filtros e trazer ou-tras questões à tona. Ao abordar a participação, nos projetos, na gestão dos espaços e na construção, o que me interessa princi-palmente aqui, sem esquecer elementos como empodera-mento e democracia, essenciais ao conceito, é a ideia de alteridade. Me interessam as trocas, o aprendizado com o “outro”, as inteligências coletivas, o conceito de copyleft e da revisão da autoria. Em lugar de tratar da questão da reciclagem como estratégia para a sustentabilidade, como uma tecnologia “verde”, ou até mesmo “ecológica”, trabalharei com a se-mântica dessas materialidades, e seus valores táticos e simbólicos. A autoconstrução, além de ferramenta de subver-são de um sistema de produção alienante, que aliena tan-to arquiteto quanto construtor, será analisada também do ponto de vista físico, corporal, e de sua importância como artesania. O papel do projeto nessas práticas é claramente dis-tinto do assumido na arquitetura convencional. Enfocare-mos na contingência envolvida nesses processos.

Participação e alteridade

“A participação do espectador é fundamental aqui, é o princípio que se poderia chamar de ‘proposições para criação’, que culmina no que formulei como antiar-te. Não se trata de impor um acervo de ideias e estru-turas acabadas ao espectador, mas de procurar pela

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As principais questões

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descentralização da arte, pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial; dar ao ho-mem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de experi-mentar a criação, de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua signifi-cado.” (Hélio Oiticica in Paola Berenstein Jacques, “Estética da ginga”, pág. 110)

Oiticica abre com uma fala sobre o participador como “ex-espectador”, no caso da obra de arte; porém o deslocamento “do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial”, e outras proposições feitas pelo artista, se aplicam ao nosso caso. Utilizaremos como paralelo às dinâmicas de participação na arquitetura, sem pretender explorar sua relação com a arte, o trabalho de Oiticica e sua ideia de “participação”. Como conceito social e político, a participação é o ato de envolver ao “público alvo” de um projeto, ou ao povo de uma cidade, ou aos “afetados” por determinadas ações, no processo de tomada de decisões que envolve tal projeto, lei ou ação. Pode se dar em vários níveis, poden-do funcionar como uma “consulta” ou como mecanismo de efetiva decisão; em diferentes etapas do processo; através de estratégias que podem variar bastante. Em arquitetura e urbanismo, apesar de haver dife-rentes metodologias de projeto participativo, a “partici-pação” do “cliente” (a palavra vítima tem aplicação mais precisa em alguns casos) se dá, na quase totalidade dos exemplos, no âmbito “social”, comunitário, institucional (projetos governamentais, planejamento urbano, etc).

“(...) trata-se claramente de valorizar a liberdade indi-vidual e a prioridade das decisões pessoais dos usuá-rios de imóveis. (...) trata-se de denunciar, de maneira explícita, a incapacidade crônica dos tecnocratas no enfrentamento de situações altamente complexas, e sua tendência a se fixar em soluções abstratas, padro-nizadas ou formais, que nunca chegam a correspon-der exatamente à realidade concreta. (...) se aconse-lhar, abertamente, a descentralização da produção e

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Trabalho Final de Graduação

uma participação dos interessados na tomada de de-cisões, valorizando a espontaneidade dos indivíduos, a renúncia ao controle e ‘o deixar fazer’.” (Maurice La-gueux, “Arquitetura e participação”, Revista Rizoma.net, 2002, pág. 43)

Como pudemos observar em alguns dos exemplos de experiências, grande parte dos projetos dos coletivos, ou quase todos eles, se baseia na relação participativa dos usuários, vizinhos, clientes, que perpassa o processo des-de a formalização da demanda até a execução do objeto/espaço.

“(...) o importante do espaço comum não é tanto sua dimensão física e material como a vivencial. Nem tudo está conseguido com a solução da ocupação e a autoconstrução. O uso é necessário para seguir vivos, e desgraçadamente, esta é uma responsabilidade que em muitos casos não está só nas mãos dos coletivos.” (TDA, Santiago Cirugeda, “Arquitecturas Colectivas, in “Camiones, contenedores, colectivos”, pág. 44)

Saskia Sassen, ao ser questionada por Paula Benítez, em entrevista para o livro “Camiones, contenedores, colec-tivos”, sobre Arquitecturas Colectivas, a respeito da multi-tude de lutas “micro-sociais” no contexto dos coletivos, e a importância de se traçar vínculos com os cidadãos, ou a cidadania, responde da seguinte forma:

“A relevância dos vínculos com os cidadãos varia de acordo com o tipo de prática artística, porém sem dúvida sim são importantes no caso da arquitetura e das práticas urbanas —aqui incluo aquelas que per-tencem ao que se veio a chamar “direct action art” (arte de ação direta). Existem, certamente, múltiplas maneiras de pensar os desafios que enfrentam a ar-quitetura e o urbanismo como prática e como teoria. Frequentemente, o que se vê como a postura mais ju-diciosa é em grande medida intrínseca aos problemas específicos da profissão de arquiteto e não se estende ao campo social no qual opera. Mas vivemos um perí-

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odo estratégico para as práticas urbanas. (...) Aqueles significados mais antigos não desaparecem, continu-am sendo cruciais, mas não podem responder com fa-cilidade a estas novas situações, incluindo a crescente importância das redes, das interconexões, dos fluxos de energia e das cartografias subjetivas. (...) Não posso evitar acreditar que os artistas de ação direta consti-tuem parte da resposta, se trate de representações pú-blicas e instalações efêmeras, ou de arquitetos como Cirugeda capazes de navegar em espaços e possibili-dades que não formam parte do repertório habitual.” (Entrevista a Saskia Sassen in “Camiones, contenedo-res, colectivos”, pág. 62)

Apesar de estar clara a importância da participação cidadã nos processos das cidades e nas arquiteturas, em particular dos coletivos, quando nos debruçamos mais so-bre o assunto, e em especial sobre o termo, notamos que, apesar de se constituir um vetor em direção à horizontali-dade, a “participação” supõe uma hierarquia. Um partícipe pode se tornar sujeito de uma vivência, no caso de uma obra de arte, mas a autoria e os direitos de decisão conti-nuam, grande parte das vezes, privilégio do artista.

“(...) porque havia um elemento gozoso também nessa prática artística, pelo espectador, que seria, no caso, um co-partícipe do próprio fazer, do próprio elaborar aparentemente inconclusos, cuja perfeição, ou seja, cujo desenrolar supunha a presença do outro, o de-sejo do outro: supunha alteridade.” (Haroldo de Cam-pos in Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 83)

Acredita-se que hoje se caminha para novas estra-tégias e táticas de empoderamento, e para o uso de novos termos. A ideia de copyleft, que surge como alternativa a normativas de propriedade intelectual, baseia-se no com-partilhamento livre de informações, contanto que esteja garantido que as informações veiculadas mantenham as condições de “licença” originais, ou seja, continuem livres de restrições de uso. O termo é usado também com outros sentidos, de aplicação social, como saberes e inteligências

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coletivas, os quais não possuem “propriedade”. Pode-se dizer que a rede Arquitecturas Colectivas e o trabalho dos coletivos, em especial Recetas Urbanas, cuja metodologia envolve fichas que funcionariam como “receitas” para exe-cução (livre de arquitetos) dos projetos, e mesmo outros, com o envolvimento de “usuários-partícipes” na constru-ção, assentam-se sobre a ideia de copyleft e de conheci-mento livre e compartilhado. Não há restrições ao acesso à rede - com exceção de naturais discrepâncias ideológicas -, que cresce a cada dia. Todas as informações acumuladas pelos grupos de trabalho estão disponíveis no site, basta cadastrar-se. Faz-se necessário, contudo, uma revisão do concei-to de autoria. No atual momento da sociedade em rede, do compartilhamento infinito de informações, dos levantes coletivos e da dissolução dos monopólios de informação, o desejo por um trabalho demarcadamente autoral se torna algo que não dialoga com as dinâmicas coletivas. Nos inte-ressa, portanto, a coautoria, a autoria compartilhada, cole-tiva, onde o arquiteto/artista se encontra dissolvido.

“A noção de autor de uma obra é também posta em questão no momento em que o espectador passa a ser participante: ele se torna co-autor da obra quando a veste. (...) A obra do artista fica, assim, completamente inacabada e aberta; ela depende da participação do outro.” (Paola Jacques, “Estética da Ginga”, pág. 32)

Defende-se aqui, portanto, um empoderamento e uma horizontalidade que vão além do compartilhamento de técnicas e informações, mas que assumem uma coope-ração mútua verdadeira, valorizando-se os saberes tanto dos arquitetos quanto dos “partícipes”, passando estes úl-timos a assumirem o papel de coautores. No entanto, não cabe a este trabalho o papel de re-definir termos; continuará-se utilizando a palavra “partici-pação”, mas registra-se aqui a necessidade de um debate acerca os termos, objetivos e efeitos que envolvem essas metodologias. O objetivo do arquiteto, “menos criador - o autor - e mais aquele que propõe a criação coletiva”¹, com a partici-

Figura 47: Ficha demolição - Recetas Urbanas (fonte: internet)

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___________________________________________________¹ Paola Jacques, “Estética da Ginga”, pág. 84

pação nesses casos seria então proporcionar situações de criação, propor a vivência do trabalho e assumir-se como “declanchador”, um dos atores do processo, onde o partici-pante torna-se tão importante quanto ele.

“O artista, o papel dele, é declanchar no participador, que é o ex-espectador, o estado de invenção. O artista declancha no participador o estado de invenção (...) Eu declancho o grande estado de invenção (...) as pes-soas normais se transformam em artistas plásticos (...) eu declancho (...) eu não me transformei num artista plástico, eu me transformei num declanchador de es-tados de invenção.” (Hélio Oiticica in Paola Berens-tein Jacques, “Estética da ginga”, pág. 109)

Seguindo essa mesma lógica, segundo a qual valo-riza-se a experiência vivencial do sujeito partícipe, em lu-gar do resultado final, coloca-se também a discussão des-se resultado, no caso do objeto arquitetônico, construído. Nestes processos importa menos a estética que o processo, assim como nas obras de Oiticica:

“O que seria então o objeto? Uma nova categoria ou uma nova maneira de ser da proposição estética? A meu ver, apesar de também possuir estes dois sen-tidos, a proposição mais importante do objeto, dos fazedores do objeto, seria a de um novo comporta-mento perceptivo, criado na participação cada vez maior do espectador, chegando-se a uma superação do objeto como fim da expressão estética. Para mim, na minha evolução, o objeto foi uma passagem para experiências cada vez mais comprometidas com o comportamento individual de cada participador: faço questão de afirmar que não há aqui a procura de um novo condicionamento para o participador, mas sim a derrubada de todo o conhecimento para a procura da liberdade individual, através de proposições cada vez mais abertas.” (Hélio Oiticica in Paola Berenstein Jacques, “Estética da ginga”, pág. 112)

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Para além dos efeitos da participação sobre o par-tícipe, nos interessa também os efeitos sobre o arquiteto. Queremos enfatizar a importância dessas experiências de troca para o arquiteto, o quanto ele aprende com elas. O conceito de alteridade foi por muito tempo utili-zado para referir-se à relação entre colonizador e coloniza-do, entre civilizados e povos exóticos. Baseia-se na relação entre “eu” e o “outro”, sendo este outro tão diferente que faz com que o “eu” repense o que “é” ou “sabe”.

“(...) se no passado o outro era de fato diferente, dis-tante e compunha uma realidade diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é também um mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de confundir certezas pois, não se trata mais de outros povos, outras línguas, outros costumes. O outro hoje, é próximo e familiar, mas não necessa-riamente é nosso conhecido.” (Gusmão in Andréa Zanella, “Sujeito e alteridade: reflexões a partir da Psicologia Histórico-Cultural”)

A alteridade portanto, está presente no contato com o diferente. Supõe aprendizado e troca; é, nas palavras de Sennet:

“(…) a ideia de que as pessoas só podem crescer atra-vés de processos de encontro com o desconhecido. Coisas e pessoas estranhas podem perturbar ideias familiares e verdades estabelecidas; o terreno não familiar tem uma função positiva na vida de um ser humano. Essa função é a de acostumar o ser huma-no a correr riscos. O amor pelo gueto, especialmente o gueto de classe média, tira da pessoa a chance de enriquecer as suas percepções, a sua experiência, e de aprender a mais valiosa de todas as lições humanas: a habilidade para colocar em questão as condições já estabelecidas de sua vida.” (Richard Sennet in Ga-briel Schvarsberg, “A rua e a sociedade capsular”, pág. 143)

Ao trabalharmos em contato com o outro estamos,

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portanto, uma vez que se permite que este contato estabe-leça relações minimamente horizontais e de respeito, pra-ticando alteridade. Contextos sócio-econômicos distintos dos nossos, como é o caso da favela, oferecem maior desa-fio e também maior aprendizado.

“O que chamei de estética da ginga, que pode ser cha-mado de estética das favelas, seria a estética desses espaços outros ou ‘outros espaços’ (‘Heterotopias’, cf. Foucault) construídos e habitados pelo ‘outro’. A sin-gularidade, ou melhor, a alteridade, desses espaços ditos ‘informais’ era até pouco tempo completamente desprezada pelos arquitetos e urbanistas.” (Paola Jac-ques, “Learning from favelas”)

Porém não são só as diferenças sociais que exigem uma visão de alteridade do arquiteto. Tal olhar seria de ex-trema riqueza em qualquer projeto de arquitetura e urba-nismo, caso os arquitetos considerassem os usuários mais que apenas “clientes” em busca de um “produto”. No caso das práticas de que tratamos especificamente neste traba-lho, nas quais há, quase sempre, a “participação” do usuá-rio, a questão da alteridade faz-se presente a todo tempo. Por essa razão defende-se aqui o diálogo, como meio de ferramenta de empoderamento real, um empoderamento que no trato pareça sutil, mas que supõe um “poder” ante-rior às práticas, ao valorizar o outro como “potência”.

“No círculo da cultura, a rigor, não se ensina, aprende--se em ‘reciprocidade de consciências’; não há profes-sor, há um coordenador, que tem por função dar as in-formações solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica do grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo.” (Ernani Maria Fiori, prefácio de “Peda-gogia do oprimido”, pág. 03)

Isto implica, portanto, uma revisão do papel do ar-quiteto. Se esse se coloca em oposição à alienação a que sua classe está submetida, se propõe-se subverter compo-nentes dessa alienação, se coloca-se como “declanchador

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de estados de invenção”, de criação, se almeja uma visão de alteridade que lhe proporcione aprendizado com o “ou-tro”, o arquiteto passa a ser um propositor de situações, um viabilizador de experiências de empoderamento. Neste novo papel do arquiteto, o não-arquiteto com quem se re-laciona assume o papel principal, e sua relação baseia-se no diálogo.

“O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial in-tersubjetividade humana; ele é relacional e, nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes ‘ad-miram’ um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele coincidem: nele põem-se e opõem-se. Vimos que, assim, a consciência se existencia e busca perfazer--se. O diálogo não é um produto histórico, é a própria historicização. É ele, pois, o movimento constitutivo da consciência que, abrindo-se para a infinitude, ven-ce intencionalmente as fronteiras da finitude e, inces-santemente, busca reencontrar-se além de si mesma. Consciência do mundo, busca-se ela a si mesma num mundo que é comum; porque é comum esse mundo, buscar-se a si mesma é comunicar-se com o outro. O isolamento não personaliza porque não socializa. Intersubjetivando-se mais, mais densidade subjetiva ganha o sujeito.” (Ernani Maria Fiori, prefácio de “Pe-dagogia do oprimido”, pág. 09)

O “arquiteto urbano”, como propôs Paola Jacques, necessita intersubjetivar-se. Nessa proposta não caberia o arquiteto como figura fria, com distanciamento profissional. Interessa a “densidade subjetiva”, as trocas, os aprendiza-dos, as experiências vivenciadas, os estados de invenção, o diálogo. Interessa a fusão dos conhecimentos, o conhe-cimento copyleft, compartilhado, mesclado, tecnologia so-cial e tecnologia técnica unidas. Nesse sentido, Paulo Freire explora a questão do sentimento de auto-suficiência, frente à necessidade de estabelecimento do diálogo.

“A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não têm humildade ou a perdem, não

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podem aproximar-se do povo. (...) Neste lugar de en-contro, não há ignorantes absolutos, nem sábios ab-solutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais.(...) O homem dialógico, que é crítico, sabe que, se o poder de fazer, de criar, de transformar, é um poder dos homens, sabe também que podem eles, em situ-ação concreta, alienados, ter êste poder prejudicado. Esta possibilidade, porém, em lugar de matar no ho-mem dialógico sua fé nos homens, aparece a êle, pelo contrário, como um desafio ao qual tem de responder. Está convencido de que êste poder de fazer e transfor-mar, mesmo que negado em situações concretas, ten-de a renascer. Pode renascer. Pode constituir-se. Não gratuitamente, mas na e pela luta por sua libertação. Com a instalação do trabalho não mais escravo, mas livre, que se dá a alegria de viver.Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. Trans-forma-se, na melhor das hipóteses, em manipulação adocicadamente paternalista.Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos ho-mens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é consequência óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé, o diálogo não provocasse êste clima de confiança entre seus sujeitos.” (Paulo Freire, “Peda-gogia do oprimido”, pág. 96)

Materialidade e alteração Reciclar é o ato de pôr de volta ao ciclo material de uso algo que estaria destinado a estar fora dele, a não ter mais utilização. A reciclagem é tida como uma prática “eco-lógica” em todo o mundo, por considerar-se que a diminui-ção do volume de lixo produzido e a eliminação da neces-sidade de produzir/consumir um material são benéficas ao equilíbrio natural do planeta. Poderia ser chamada também de prática “sustentável”. No entanto, considerando o avan-ço na discussão acerca da “sustentabilidade”, e das falácias muitas vezes derivadas do termo, não nos deteremos nas

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questões “ecológicas” da reciclagem. O reaproveitamento de materiais na construção re-presenta uma tática - no sentido de Certeau - adotada, por exemplo, por bricoleurs das grandes cidades, que buscam nesse modo de construção coletor e fragmentário a solu-ção para fazer-se um abrigo sem que se possua os recursos financeiros necessários, mas utilizando-se dos recursos tá-ticos disponíveis.

“(...) ao contrário da maioria dos arquitetos, o brico-leur trabalha com materiais de segunda mão, com restos do que já foi usado em outras construções, às vezes com outras finalidades técnicas. A bricolagem é uma reciclagem arquitetural, sobretudo aleatória, que nasce da fragmentação de antigas arquiteturas. A recomposição desses fragmentos, restos e pedaços, misturados com muitos outros, tem sempre como re-sultado uma forma completamente diferente daquela de onde eles provêm. A incessante reconstrução com fragmentos de materiais já utilizados, detentores de uma história construtiva própria, constitui a tempora-lidade dessa outra maneira de construir.” (Paola Jac-ques, “Estética da ginga”, pág. 25)

Essas táticas estão ligadas a um exercício funda-mental de criatividade, necessária à resolução das ques-tões da construção. A criação se dá a partir do descobri-mento, da revelação, dos objetos/materiais encontrados, a serem coletados num processo contínuo. O ato criativo primeiro reside neste encontro-descobrimento, que revela, criativamente, o potencial encerrado num material que, a priori, não possuía possibilidades de uso construtivo. Tal ato de apropriação devolve à materiais em esta-do de degradação um sentido útil, e retira-os de estágios terminais, transportando-os a estágios intermediários de vida.

“Esta viagem pendular induz a entender a degrada-ção e a obsolescência como parte do ciclo vital, po-rém sem um caráter terminal senão como um estado intermediário a partir do qual investigar novas pos-

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sibilidades através da metamorfose da matéria e dos espaços arruinados. A possibilidade de submeter a realidade esgotada a um processo para que se pos-sa voltar a utilizar supõe inevitavelmente uma refle-xão sobre o tempo e sobre a possibilidade de agarrar oportunidades descartadas.” (TDA, Juan José de la Cruz, “Proyectos encontrados”, pág. 74)

Se olharmos nossos edifícios como ruínas, entende-mos que todos os estágios temporais de sua materialidade são estados de degradação. E que a escolha estética de de-clarar a morte a um edifício ou material não deve, necessa-riamente, ditar seu fim; pode ser revista.

“Sustenta Flaubert que ‘mal chegamos a este mundo, pedaços de nós começam a cair’, sendo assim, viver é um contínuo derrubamento e os processos de deterio-ração e obsolescência são parte de nossa cultura. Tal-vez um mundo sem degradação seria um mundo sem memória, portanto a reutilização do que já foi usado pode ser um método de transmissão da mesma. A ca-ducidade de uma vida tal como a conhecemos pode dar lugar a outra através da oportunidade de reutilizar a matéria descartada, porém enquanto que uma ruína é uma perturbação da lembrança, seria possível tam-bém a assimilação de conceitos transladados de uma a outra, como o tempo, o espaço ou o significado. (...) A arquitetura se converte deste modo em instrumen-to para repensar quanto nos rodeia, assumindo a de-gradação e a obsolescência como parte do ciclo vital mas não sendo necessariamente o fim deste, senão um momento intermediário a partir do qual explorar outros caminhos através da metamorfose das arqui-teturas e projetos esquecidos.” (TDA, Juan José de la Cruz, “Proyectos encontrados”, pág. 10)

Se os materiais carregam, portanto, memória, se transmitem e comunicam histórias, se são depositários de pensamentos e de valores, os materiais têm, portanto, uma semântica própria, que também é socialmente construída. O ato de “reciclar”, agora do ponto de vista semântico, seria

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portanto um retorno, simbólico, aos ciclos de significação, porém a um ciclo distinto do anterior, a exemplo da espiral. Analisaremos aqui, portanto, a ressignificação vivida pela matéria dos objetos reciclados. Em 1917, Robert Mutt submetia à Exposição de Ar-tistas Independentes de Nova York um trabalho que con-sistia em um mictório, objeto de fabricação industrial, com sua posição invertida, e assinado. Mutt era, na verdade, Duchamp, e fora expulso da exposição. Abriam-se, naquele momento, possibilidades infinitas para a arte. Com o ato artístico dando-se a partir da apropria-ção de objetos industriais, cotidianos, surgiam os “ready--mades”; os quais, ao serem apropriados, assinados e colo-cados na posição (e no contexto) de obra de arte, assumiam outros valores e outros significados. Questionava-se ali, portanto, o que é a obra de arte, qual seu papel, e até que ponto nos servem os meios e técnicas tradicionais. Coloca-va-se também o problema da produção em série, da crise do objeto de arte como objeto único.

“O objeto de natureza industrial adquire uma nova significação através da descontextualização que leva a cabo o autor e o novo olhar do espectador que duvi-da ante a natureza original do que contempla.” (TDA Juan José de la Cruz, “Proyectos encontrados”, pág. 24)

A exemplo de tal processo, é possível também, como já vimos, que a arquitetura se aproprie de fragmentos “rea-dy-made”, e que opere, por sua vez, processos de recontex-tualização, ressignificação e revaloração de materiais.

“O objeto reutilizado observado por si mesmo, como fazia Duchamp com aparelhos industriais, nos oferece já seu significado em um processo onde os materiais são escolhidos por sua própria expressão física mais além de suas qualidades funcionais ou seu significa-do original. Materiais de ‘lixo’, elementos esgotados ou não associados ao mundo da construção pode-riam convertir-se assim na tectônica da arquitetura.” (TDA Juan José de la Cruz, “Proyectos encontrados”,

Figura 48: Marcel Duchamp, “La Fontaine”, 1917

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pág. 42)

“O certo é que foi um urinol e ainda, como tantas ou-tras vezes, à arquitetura coube esperar que a arte lhe abrisse as portas para entrar mais tarde. Pese a tudo, Duchamp intuiu antes de todos a possibilidade de fa-zer da própria arquitetura um ready made, propondo converter o edifício Woolworth de Nova York em um deles, retirando assim, de pronto, a arte dos museus. Cheque-mate.A proposta do ready made de dar uma nova significa-ção a objetos comuns a partir de uma nova denomi-nação e um processo de descontextualização, poderia ser uma definição mais acertada de reciclagem” (TDA Juan José de la Cruz, “Proyectos encontrados”, pág. 24)

Um dos exemplos de ready-made na arquitetura ci-tados por Juan José de la Cruz em seu livro são as Dyma-xion Deployment Units, de Buckminster Fuller. Em 1940 o arquiteto viajava por uma estrada nos Estados Unidos e avistou ao longe uma série de silos prateados. Num con-texto de guerra e crise, com muitos desabrigados no país, Fuller notou que esses pequenos silos tinham a metragem quadrada ideal para uma unidade básica habitacional, e fez uma proposta. Contatou a empresa que os fabricava, apre-sentando seu projeto. Nas décadas que se seguiram, milha-res de pessoas viveram nessas unidades habitacionais de baixo custo.

“Um ponto que gostaria de esclarecer é que a escolha desses ready-mades não estava nunca ditada por de-leite estético. Esta escolha se baseava em uma relação de indiferença visual combinada com uma ausência total de bom ou mau gosto.” (TDA Pierre Chareau in Juan José de la Cruz, “Proyectos encontrados”, pág. 29)

É claro que o exemplo de Fuller representa a reci-clagem da ideia do silo, e o aproveitamento de um projeto de objeto industrial, já que para a produção das casas que

Figura 49: “Dymaxion Deployment Units”, Buckminster Fuller, 1940

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projetou, foram fabricados mais desses produtos; não ca-racterizando assim, uma reciclagem efetiva de um material já em desuso, mas sim uma estratégia para construção de baixo custo, à partir da tecnologia industrial. Outro exemplo citado no livro, é o projeto do escri-tório de arquitetura holandês MVRDV, para os Frosilos em Copenhagen. Com a proposta de fazer um edifício habita-cional reutilizando dois silos de grãos desativados, o es-critório optou por levar o programa ao exterior, resultan-do numa espécie de apartamentos-varanda. No interior se localizaram apenas circulações. No entanto, a excessiva transformação e sobreposição de camadas construídas por sobre os silos, o excesso de “maquiagem”, através do qual não se assume a materialidade original dessas estruturas, nos faz perguntar onde estaria o interesse em reciclar edifí-cios, uma vez que a estrutura original esteve praticamente retirada, ocultada, não havendo ali a verdade do material, e a transmissão de memória da qual tratamos. Esses dois exemplos representam tentativas de abordagem ao ready-made e à reciclagem na arquitetura, ou “ready-constructable”, como propõe Paola Jacques. No entanto, no nosso contexto, não representam os exemplos ideais. Esta tensão entre significado original e deslocado é onde reside o interesse e o momento criativo. É nessa tran-sição semântica que está a oportunidade, e a linha tênue da reciclagem arquitetural.

“Todos esses procedimentos têm em comum a reu-tilização e a regeneração de objetos e significados a partir de outros encontrados. Também compartilham a aceitação do azar frente ao projeto fechado. Não há certezas que estabeleçam uma relação direta entre seu significado inicial e o final senão que o tempo e a interpretação lhe outorgam uma nova identificação aceitando a manipulação do material como parte do processo criativo e expressivo da nova obra.” (TDA, Juan José de la Cruz, “Proyectos encontrados”, pág. 44)

Gordon Matta-Clark, arquiteto de formação, traba-

Figura 50: “Frosilos”, MVRDV, 2005

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lhou na linha de tensão da ressignificação, com a recicla-gem semântica de edifícios abandonados, a partir de ações de recorte, fragmentação, demolições parciais. Seu trabalho dialogava com questões de verdade do material, expondo os “órgãos internos” dos edifícios, de valor da arquitetura como símbolo, de degradação e ciclo de vida. De modo di-ferente dos exemplos anteriores e também da prática dos coletivos, o trabalho de Matta-Clark dialoga conosco a par-tir do momento que constrói narrativas a partir dos estados materiais das arquiteturas e dos valores sociais atribuídos a elas.

“Como rotular meu trabalho é realmente um proble-ma. Num artigo recente, publicado na revista italia-na Casabella, o editor, Germano Celant, referiu-se ao meu trabalho como um ready-made arquitetônico. (...) Entretanto, o ‘ready-to-be-unmade’ estaria mais próximo do que estou fazendo. Há várias coisas pron-tas para serem desfeitas e refeitas. Nem tudo, entre-tanto.(...) À primeira vista, nada parece mais ridículo do que desfazer um edifício. Pelo contrário, desfazer é uma abordagem incrivelmente significativa para o progresso do pensamento arquitetônico neste mo-mento. Praticamente todo mundo encara a arquitetu-ra como algo para contemplar, algo estático. Poucas pessoas se importam em visualizar como se afastar disso, transformando a arquitetura em algo além de um objeto estático, seja um verbo ou uma ação.” (Gor-don Matta-Clark, entravista com Donald Wall, 1975, “Gordon Matta-Clark: desfazer o espaço”, pág. 158)

Nos aproximamos, portanto, de uma reflexão acerca da relação de morte e vida na arquitetura e nos materiais - de construção ou não - que podem constituí-la. Neste sentido, a figura do labirinto, o processo/caminho errático, assume também a imagem desta transformação, desse re-viver, à partir de uma operação semântica.

“O mito do labirinto é muito frequentemente relacio-nado a um rito de passagem, ao caminho iniciático; em muitas civilizações, o labirinto é o símbolo das di-Figura 51: “Conical intersect”, Gordon Matta-Clark, 1975

Figura 52: “Splitting”, Gordon Matta-Clark, 1974

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fíceis provocações pelas quais se deve passar para pe-netrar num novo mundo ou num novo estado de espí-rito. Muitas vezes esse mito se acompanha da ideia de renascimento, resultado da passagem pelo labirinto, da ideia de que é preciso morrer para nascer de novo.” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 73)

Segundo Juan José de la Cruz, a reciclagem arquite-tural necessita do processo de morte e vida, o qual, apesar de preservar certa comunicabilidade do sentido original do material, garante que sua ressignificação esteja completa, e que seja visto e aceito, portanto, como material consti-tuinte de um edifício. Segundo ele, é necessário o “esva-ziamento” de sentido, antes de seu “re-preenchimento”, de maneira com que se elimine o excesso de literalidade que impediria a apropriação devida dos novos usos e sentidos do objeto. Como exemplo disso, narra uma experiência de Matta-Clark na ocasião da exposição “Under the Brooklyn Bridge”, que propunha como espaço expositivo um lugar onde viviam sem-teto, sob uma ponte de Nova York. Em seu desejo de aproximação e ímpeto por criar um diálo-go produtivo com aquelas pessoas, propôs como método construtivo o empilhamento de lixo, devidamente molda-do e compactado, imaginando estar provendo assim, aos sem-teto, uma solução para sua falta de moradia. O resul-tado, no entanto, foi o oposto; os moradores de rua não só negaram a apropriação daquela “nova maneira de cons-truir”, como não compareceram à exposição, afastando-se dela. Como segunda tentativa, Matta-Clark chegou a pro-mover o assado de um porco, naquele mesmo espaço, afim de conseguir uma oportunidade de travar algum diálogo. Como era de se esperar, o porco fez mais sucesso que sua “parede de lixo”, porém o diálogo acerca da obra não foi estabelecido. Ao “fracasso” de Gordon Matta-Clark com os sem--teto (as “Garbage Walls” produzidas em seguida figuram até hoje em espaços museológicos) Juan José de la Cruz atribui a excessiva literalidade resultante do método cons-trutivo de suas paredes feitas de lixo; o valor atribuído ao lixo seguia muito presente ali, o que impediu qualquer

Figura 53: “Pig Roast”, Gordon Matta-Clark, 1970

Figura 55: Galpão desmontado para construção de Aula Abierta Granada

Figura 54: “Garbage Wall”, Gordon Matta-Clark, 1970

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apropriação positiva por parte dos moradores de rua, que conviviam todos os dias com “restos”, e nos quais viam re-fletida sua própria imagem frente à sociedade. Aula Abierta, um de nossos exemplos de experiên-cias, é um bom caso para o qual retornarmos aqui. Resulta do desmonte de um edifício que já havia sido originado do desmonte de outro edifício. Telhas de diversos tipos, divisórias, pallets, portas, janelas, caixotes-fôrma de lage pré-moldada, entre outros materiais, fora utilizados como fechamento vertical. A estrutura de Granada, pintada e reu-tilizada em Sevilha, foi originalmente produzida e utilizada para sustentar fachadas de edifícios antigos em processo de restauro. Em ambos os edifícios passa a assumir, em lu-gar de estrutura auxiliar, o esqueleto mesmo da constru-ção. Vigas de concreto aproveitadas do galpão desmonta-do, assim como painéis sanduíche, constituíram sua base e o piso. Antigas telhas-sanduíche, compradas de segunda mão, foram “tunadas” (expressão utilizada por Cirugeda) com o acréscimo de pequenos caixotes de laje, recheados com material térmico também reaproveitado de um edifí-cio de Recetas Urbanas. A escada, em parte reutilizada e em parte construída a partir de perfis de alumínio e tábuas de madeira, representa visualmente, em sua fragmentação, a colagem resultante. A “dúvida” diante do objeto está presente neste edifício. Resta pouco espaço para a literalidade e, embora sejam quase todos materiais originalmente de construção, seu uso corrente foi subvertido e modificado, atendendo à funções distintas das que foi projetado para servir. No en-tanto, está claro que aquelas telhas configuram agora pare-de, as fôrmas de laje cobertura e as “escoras”, estrutura. Desse modo, apesar de seguirem comunicando, em maioria, sua função original, o processo de transmissão se-mântica se dá de forma completa. Está ali impressa a his-tória destes materiais, mesmo que não se conheça essa história, mesclada à sua nova história, até o próximo des-monte.

“A incessante reconstrução com fragmentos de ma-teriais já utilizados, detentores de uma história cons-trutiva própria, constitui a temporalidade dessa outra

Figura 56: Aula Abierta Sevilha(fonte: internet)

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maneira de construir. ” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 25)

Autoconstrução e corpo O termo “autocontrução” refere-se à construção sem intermediários; à execução pelas mãos e pelo corpo correspondentes à mente que idealiza. Numa estimativa, poderia-se dizer que mais da me-tade da produção construtiva do Brasil se dá a partir de autoconstrução. Os favelados, os índios, os habitantes do sertão e dos bairros populares das pequenas cidades, por exemplo, produzem, eles mesmos, suas casas. Seja em re-gime de mutirão ou utilizando mão-de-obra familiar, o bra-sileiro constrói para si. No entanto, os arquitetos brasileiros não; a classe média brasileira tampouco. A massa que auto-constrói coincide, em grande parte, com a força de trabalho empregada nas construções da cidade dita formal. À diferença dos nossos, os arquitetos europeus², em diálogo com o brasileiro construtor, necessita nesse mo-mento de crise e de revisão de valores, de uma prática táti-ca, de sobrevivência. A autoconstrução surge então como ferramenta para a autonomia e para a autogestão. Em geral, organizam-se mutirões, com a presença de um ou mais coletivos e de usuários-participantes envolvi-dos. Por vezes isso se configura um evento, chamado por eles de “jornadas de autoconstrução”. Como esboçado anteriormente, deseja-se defen-der aqui que a metodologia dos coletivos de arquitetura subverte em diversos pontos as relações hegemônicas de trabalho em arquitetura e urbanismo. Isso porque operam no âmbito da “desalienação”, na contramão do modelo do-minante. Estas práticas acarretam, também, em um impacto urbano e social, na medida em que a desalienação esten-de-se em escalas crescentes, da participação no processo, à autogestão do espaço e à difusão das ações. A autoconstrução implica num “domínio” do proces-___________________________________________________² Pode-se dizer que a cultura européia, talvez pela falta de herança escravocrata (como no Brasil), é mais aproximada do trabalho e das pe-quenas tarefas físicas - da casa, por exemplo - o que também contribui.

Figura 57: Processo “Mafalda vive” (fonte: internet)

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so - considerando-se as contingências envolvidas - de tra-balho e de produção, que qualifica o trabalho como “real”. Essa ideia está presente, com muita intensidade, no mani-festo de Hundertwasser:

“Todos deveriam poder construir, mas enquanto a li-berdade de construir não existir, a arquitetura plane-jada de hoje não será de maneira alguma arte. (...) É somente quando o arquiteto, o pedreiro e o ocupan-te formam uma unidade, isto é, quando se trata da mesma pessoa, podemos falar em arquitetura. Todo o resto não é de modo algum arquitetura, porém a en-carnação física de um ato criminoso.” (Friedensreich Hundertwasser, “Manifesto do Mofo contra o Racio-nalismo em Arquitetura”)

Nesse “ato criminoso” estaria contido também a maneira de certa forma autoritária dos processos projetu-ais correntes, e a violência subjetiva com que os espaços resultantes desses processos se impõe e “enquadram” o usuário. Esse alijamento se radicaliza em ações como as remoções, por exemplo, que visam “limpar” da superfície insurgências autoconstrutivas. Para além das problemáticas referentes ao trabalho do arquiteto, os fenômenos corporais de que trataremos aqui implicam também numa desalienação corporal, no sentido de configurar um vetor contrário à crescente virtu-alidade contemporânea, como nos lembra Paola Jacques, na medida em que atuam no campo do físico, do material, do real.

Autoconstrução como experiência corporal

“A visão desliza pelo universo. A mão sabe que o obje-to é habitado pelo peso, que é liso ou rugoso, que não está soldado ao fundo de céu ou de terra com o qual ele parece formar um só corpo. A ação da mão define o oco do espaço e o pleno das coisas que o ocupam. Superfície, volume, densidade e peso não são fenôme-nos ópticos. Foi entre os dedos, no oco da palma das mãos, que o homem primeiro os conheceu. O espaço,

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ele o mede não com o olhar, mas com a mão e com o passo. O tato preenche a natureza de forças misterio-sas. Sem ele, a natureza seria semelhante às delicio-sas paisagens da câmara escura, diáfanas, planas e quiméricas.” (Henri Focillon, “O elogio da mão”, pág. 11)

A participação no trabalho dos coletivos, da qual tra-tamos anteriormente, está em grande parte contida na au-toconstrução. Na forma física da autoconstrução, portanto, o maior valor também reside no processo: a construção não só de um edifício, mas de valores coletivos, de significação, de empoderamento; de um corpo que encarna um fazer político e adquire habilidades e conhecimentos, através da experiência. Pensamos no ato de construir como práti-ca corporal porque, além de demandar tremenda energia e esforço físico, a vivência do trabalho é, realmente, o motor e a motivação dessas arquiteturas. É no suor coletivo que se estabelece a potência imanente dos mutirões.

“O ponto mais importante da exposição de Aristóteles (...) tem a ver com o critério adotado para diferenciar o fazer e o agir. Para o filósofo (...) enquanto a finali-dade do fazer é o produto final obtido, a finalidade do agir está contida na própria ação.” (Eduardo Jardim, “Homo fazer: o animal que tem mãos”, pág. 104)

Mais uma vez está colocada, portanto, a importân-cia do processo vivenciado ante o produto final. Nas pala-vras de Jacques, “Apenas a experiência do espaço labiríntico nos interessa. O sujeito ‘labirintado’ é mais importante que o próprio objeto labirinto.”³. Esta ação de construir, é desem-penhada por corpos, movimentos, materiais e ferramentas. Exploraremos portanto a componente corporal, sensorial, experimental e física dessa potência.

“Sustento duas teses polêmicas: primeiro, que todas as habilidades, até mesmo as mais abstratas, têm início como práticas corporais; depois, que o entendimento técnico se desenvolve através da força da imaginação. A primeira tese focaliza o conhecimento adquirido

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com a mão, através do toque e do movimento. A tese sobre a imaginação começa explorando a linguagem que tenta direcionar e orientar a habilidade corporal. Essa linguagem funciona melhor quando é capaz de mostrar de maneira imaginosa como fazer alguma coisa. A utilização de ferramentas imperfeitas ou in-completas leva a imaginação a desenvolver essas capacidades necessárias para reparar e improvisar.” (Richard Sennet, “O artífice”, pág. 21)

Sennet afirma que as habilidades (em especial as de artífice, mas não unicamente) se sustentam tanto em práticas corporais como imaginativas; na medida em que necessitam da prática para serem apreendidas e da cria-tividade para solucionar os problemas encontrados. Ao mesmo tempo, afirma que “fazer é pensar” estabelecendo assim um fenômeno retroalimentário entre mãos e cabeça. Já se foi considerada, cientificamente, a hipótese de que as informações que o cérebro recebe das mãos sejam mais confiáveis que as enviadas pelo olhar. Hoje já se sabe que entre olhos, mãos e cérebro há uma mesma rede neural, a qual permite com que trabalhem em harmonia, desen-volvendo habilidades como a preensão, por exemplo. No entanto, é bastante seguro que se afirme que as informa-ções e os estímulos originados nas mãos e nos olhos têm características bastante distintas e competem em reações também distintas.

“Quando tocamos um fogão quente, todo o nosso corpo sofre um súbito trauma, ao passo que uma vi-são dolorosa pode ser imediatamente neutralizada fechando-se os olhos.” (Richard Sennet, “O artífice”, pág. 173)

Charles Sherrington, biólogo, sustenta que o toque é tão proativo quanto reativo. “(...) mesmo quem enxerga precisa de mãos para ver, para completar, tateando e apal-pando, a percepção das aparências.”4 A mão seria também, portanto, órgão do conhecimento. Para concretizar a ação de construir, necessita-se ___________________________________________________³ Paola Berenstein Jacques, “Estética da ginga”, pág. 93

Figura 58: Processo “Praça das Crianças” (fonte: arquivo EREA)

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ferramentas. Elas seriam, diferentemente do computador, de robôs ou máquinas automizadas, mecanismos de exten-são de nosso poder de execução, auxiliares, sob total con-trole do corpo, das mãos e da mente de seu operador.

“Nova, a ferramenta não é nunca um “fato”, é preciso que se estabeleça entre ela e os dedos que a seguram aquela harmonia que nasce de uma possessão pro-gressiva, de gestos suaves e combinados, de hábitos mútuos e mesmo de um certo desgaste. Então, o ins-trumento inerte torna-se alguma coisa de vivo.” (Hen-ri Focillon, “O elogio da mão”, pág. 14)

Estabelece-se um diálogo com o mundo material através das ferramentas, do toque, e na lida com os ma-teriais. O arquiteto-artífice desenvolve uma relação e uma consciência quanto à materialidade do que trabalha, e ao mesmo tempo que exerce o papel de artesão, sujeito às er-râncias e aos erros da produção manual, relaciona-se tam-bém com a produção industrial e tednológica, através dos aparatos de que se utiliza e dos objetos de origem indus-trial que recicla. “A capacitação se escora na prática física”, diz Sen-net. O artífice trabalha nessa relação íntima entre a mão e a cabeça, e a prática repetitiva lhe confere um ritmo e uma sabedoria quanto a seu trabalho. Assim desenvolve suas habilidades, seus hábitos, como também aprende a lidar com a contingência, com os possíveis erros. Os arquitetos e partícipes autoconstrutores, portan-to, através da prática corporal, desenvolvem conhecimen-tos físicos e mentais, através da experiência corporal e da relação mãos-cabeça. Esses conhecimentos, potencializa-dos pelo momento de trabalho coletivo, caracterizam parte do poder empoderador dessa metodologia de trabalho.

Projeto e Contingência

O projeto desempenha o papel central na produção de arquitetura. Como apontado no primeiro capítulo deste ___________________________________________________4 Henri Focillon, “O elogio da mão”, pág. 05

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trabalho, ele é responsável por definir ao máximo todos os detalhes da execução. É o instrumento que encerra em si o monopólio do conhecimento do processo, afastando-o do construtor na maioria das vezes. Representa o desejo e a necessidade que o arquiteto tem de estender sua assinatu-ra ao parafuso da fechadura. É claro que, pela maneira que a construção funciona hoje, o projeto e toda essa definição são fundamentais. No entanto a quebra dessas relações nos oferece exercícios e reflexões bastante interessantes, escapando à dimensão “paralisante” do projeto.

“A verdadeira prisão não é o labirinto, mas o próprio projeto.(...) o projeto corta o devir, todas as possibi-lidades e transformações possíveis. Segundo Batail-le, o projeto é ‘jogar a existência para mais tarde’. O projeto é o inverso da experiência, é a antecipação do mapa, a vista do alto do cume da pirâmide, a visão total, ou seja, a impossibilidade da experiência do la-birinto.” (Paola Berenstein Jacques, “Estética da gin-ga”, pág. 92)

O fator contingência estará sempre presente em qualquer transferência de ideação à execução. A grande maioria dos arquitetos não lida bem com esse fator. É mui-to importante que se tenha tudo sobre controle, sempre. Aqui queremos valorizar a contingência como potência, como possibilidade de criação.

“O projeto convencional, no caso de qualquer espa-ço-movimento, acaba com as potencialidades ima-nentes do já existente, fixa formas por antecipação, inibe ações imprevistas e, sobretudo, impede uma participação efetiva da sociedade.” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 152)

Os coletivos produzem projeto. Em quase todas as situações. No entanto, ele serve mais como “proposta” in-cial que como imagem de representação perfeita do re-sultado. Na grande maioria dos casos o objeto construído difere-se em grande medida do que havia sido idealizado. E isso está considerado, de antemão.

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Há a presença de um fator muito importante, que mais uma vez demonstra valorizar processo sobre resulta-do: o improviso. O que importa no labirinto é o percurso, o sujeito “labirintado”.

“(...) a improvisação chega no momento preciso, onde a preocupação formal já se superou em um concei-to de ordem livre, de espaço e tempo, atingindo um grau mais universal de expressão. (...) O improviso não comporta nem maquetas nem estudos; nasce, sim-plesmente. (...) O improviso, pequeno e espontâneo, seria por outro lado rico e sintético; não admite de-vaneios, apesar dele mesmo (sic) se realizar como se fora um devaneio; o pensamento aqui tem o privilégio de se soltar de si mesmo.” (Hélio Oiticica in Paola Be-renstein Jacques, “Estética da ginga”, pág. 50)

Talvez seja importante observar, nesse momento, que os fatores analisados nessa fração do trabalho (par-ticipação, reciclagem, autoconstrução e “improviso”), su-perpõem-se física e temporalmente. Ocorrem juntos, são praticados concomitantemente. O sujeito partícipe atinge seu auge quando participa também dos mutirões de auto-construção, a qual sempre envolverá a reutilização dos ma-teriais e trabalhará na base do improviso e da contingência. Esta característica material, esse contínuo coletar e trans-formar, contribui sobremaneira para o processo labiríntico da construção e o resultado não-planejado.

“Os materiais recolhidos e reagrupados são o ponto de partida da construção, que vai depender direta-mente do acaso dos achados, da descoberta de sobras interessantes.” (Paola Jacques, “Estética da Ginga”, pág. 23)

Neste sentido, a contingência resulta também numa eterna incompletude. O modo de construir do bricoleur permite crescimentos, expansões, adaptações, remendos. Este espaço de silêncio que se coloca entre o aparente fi-nal e o fim de fato expande a potência dessas arquiteturas:

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As principais questões

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“(...) pois os fragmentos, destinados em parte ao bran-co que os separa, encontram nessa distância não o que os termina, mas o que os prolongará, o que já os prolongou, fazendo-os persistir por sua incompletu-de, sempre prontos a se deixar trabalhar pela razão incansável, em vez de permanecer a palavra deposta, deixada de lado, o segredo sem segredo que nenhuma elaboração consegue preencher.” (Maurice Blanchot in Paola Jacques, “Estética da Ginga”, pág. 43)

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Estética da precariedade Esta análise se encontra destacada das anteriores por algumas razões: não constitui elemento prático, ope-racional, do trabalho dos coletivos, sendo mais um efeito deste; como os anteriores conforma uma afirmação políti-ca no campo social e da arquitetura, mas talvez de forma um pouco mais indireta; aqui assumo, de certa forma, uma afirmação, quiçá arriscada, mas que pretendo tentar desen-volver. Esta afirmação é a de que a estética resultante das arquiteturas dos coletivos representa uma tomada de posi-ção, na medida em que se afasta da estética “dominante”, e aproxima-se de uma estética “precária”, correspondente a mecanismos táticos, e que se configura como potência. De início, para que se desfaçam as primeiras impres-sões, é necessário dizer que pretende-se aqui desconstruir o entendimento de precariedade no senso comum, como algo negativo, insuficiente. A “insuficiência” revela-se como uma tomada de vantagem por parte dessas práticas, que se utilizam da escassez para, através de suas táticas, solucio-nar as questões da construção. Nesse sentido, a precarie-dade apresenta-se como ferramenta. Esta assunção formal se coloca como ação dissiden-te e de resistência por contrapor-se às formas estéticas re-presentantes do status quo, constituindo-se como alterna-tiva. A noção de poder simbólico, apresentada por Bour-dieu através de Garry Stevens, nos auxilia aqui, pois aplica--se à produção dominante de arquitetura e de cidade. O poder simbólico opera no campo da cultura, de forma naturalizada, pois “envolve a manipulação de símbo-los e conceitos, ideias e crenças, para alcançar seus fins”¹. Dele se deriva a violência simbólica, através da qual se exerce um poder que, de outro modo, só poderia ser alcan-çado pela força. Ela é exercida quando se convence a um indivíduo, ou grupo de indivíduos, que algo deve ser assim simplesmente porque deveria ser. Isso se aplica à estética dos edifícios e das cidades, que não só representam o gosto de uma classe social (Bor-___________________________________________________¹ Garry Stevens, “O círculo privilegiado”, pág. 74

Figura 59: Página anterior - “Aula abierta Granada” (fonte: internet)

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dieu), como de um conjunto de produtos e modelos for-mais da sociedade.

“O poder simbólico opera de modo muito mais eficaz do que o poder físico porque ele convence aqueles que dele tiram menos proveito a participa-rem em sua própria sujeição, de serem cúmplices ativos.” (Garry Stevens, “O círculo privilegiado”, pág. 75)

Uma das funções do “campo da cultura”, segundo Bordieu, é legitimar a cultura dominante. O capital cultural ou simbólico pode se apresentar na forma de capital “ob-jetivado”, o qual é constituído de objetos, que transmitem o poder simbólico. Fica claro, portanto, que os edifícios são também capital simbólico objetivado, na medida em que representam valores e afirmam sua continuidade. O gosto, segundo Bourdieu, representa um mecanis-mo de distinção social entre classes. É socialmente cons-truído em função da classe social, da educação e da ex-periência de vida (em muito definida por sua situação de classe) do indivíduo.

“Assim, a disposição estética é a dimensão de uma re-lação distante e segura com o mundo e com os outros que pressupõe a segurança e a distância objetivas; a manifestação do sistema de disposições que produ-zem os condicionamentos sociais associados a uma classe particular de condições de existência quando eles assumem a forma paradoxal da maior liberdade concebível, em determinado momento, em relação às restrições da necessidade econômica. No entanto, ela é, também, a expressão distintiva de uma posição privilegiada no espaço social, cujo valor distintivo de-termina-se objetivamente na relação com expressões engendradas a partir de condições diferentes. Como toda espécie de gosto, ela une e separa: sendo o pro-duto dos condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência, ela une todos aqueles que são o produto de condições semelhan-tes, mas distinguindo-se de todos os outros e a partir

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daquilo que têm de mais essencial, já que o gosto é o princípio de tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que se é para os outros, daquilo que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se é classificado.” (Pierre Bourdieu, “A Distinção”, pág. 56)

No entanto, apesar de haver uma correspondência entre gostos e classes, o das classes altas se coloca como modelo às outras que, não possuindo condições econômi-cas para consumi-lo, consomem simulacros, reproduções, ou apenas contentam-se à admiração. Em decorrência dis-so, a linguagem formal da arquitetura destinada às classes médias mantêm um padrão que se espelha nessa estética “alta”. O meio desviante para essa questão é mesmo a esté-tica das arquiteturas pobres, vernáculas, que se distinguem demarcadamente. Como disse Paola Jacques, “a distinção mais recorrente entre a arquitetura erudita e a dita arquitetu-ra vernácula é exatamente de ordem estética.” O resultado visual dos edifícios transmite também, seu processo produtivo.

“O que há de misterioso na forma mercadoria consis-te simplesmente no seguinte (...) ela transmite (...) a imagem da relação social dos produtores no trabalho global como uma relação social existente fora deles, entre os objetos” (Marx in “O Fetichismo na arquite-tura”, 2002, “Arquitetura e trabalho livre”, pág. 299) fetiche

Da mesma forma que o cuidado com os revestimen-tos da arquitetura convencional impõe uma distância e um “disfarce” das relações produtivas, revelando sua intenção em esconder o trabalho alienado dos construtores, como apontado no início deste trabalho, o modo fragmentário da construção em bricolagem, revela o caráter “precário” de seu processo construtivo e de seu construtor. “Ela [a bri-colagem] ‘fala’ (...) também por meio das coisas: conta, por meio das escolhas feitas entre possíveis limitados, o caráter e a vida de seu autor.”²___________________________________________________² Paola Jacques, “Estética da Ginga”, pág. 25

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Os edifícios e espaços construídos pelos coletivos demonstram, então, também através de sua aparência, uma escolha política e profissional.

“Há então, longa e paulatinamente, a passagem desta posição de querer criar um mundo estético, mundo--arte, superposição de uma estrutura sobre o cotidia-no, do comportamento humano, e transformá-lo por suas próprias leis, por posições abertas, não-condi-cionadas, único meio possível como ponto de partida para isso.” (Hélio Oiticica in Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 126)

A “estética da precariedade” seria, portanto, uma negação à hegemônica, uma resistência à amplitude do poder e da violência simbólicos, reprodutores de uma es-tética comercial e reguladora que visa a perpetuação de um modelo, naturalmente seguido pelos indivíduos, que, convencidos, e certos de que seus gostos lhe são inatos, em lugar de produzidos por sua condição social. Dessa forma, o trabalho dos coletivos coloca-se tam-bém através de sua dimensão estética como contra-hege-mônico e combativo de modelos violenta e naturalmente impostos, produzindo, então, uma estética mais próxima da da liberdade.

“A impossibilidade da habitação material das fave-las é preferível à impossibilidade da habitação mo-ral da arquitetura funcional e utilitária. (...) Esse é en-tão o princípio das favelas – isto é, uma arquitetura de proliferação anárquica – que deve ser melhorado e tomado como ponto de partida, e não uma arqui-tetura funcional. A Arquitetura funcional revelou--se como um caminho errado, exatamente como a pintura com uma régua. Nós nos aproximamos ra-pidamente de uma arquitetura impraticável, inútil e finalmente inabitável.” (Friedensreich Hundertwas-ser, “Manifesto do Mofo contra o Racionalismo em Arquitetura”)

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Práxis autônoma

Trabalho Final de Graduação

“O arquiteto-urbano procuraria outros meios para atuar, interagir e intervir nessas situações contempo-râneas em que os procedimentos usuais já não abran-gem mais toda a complexidade urbana. Ele precisaria desnaturalizar esses procedimentos, subvertê-los e, a partir daí, reinventá-los. Tentaria contaminar princí-pios hegemônicos com seus próprios contrapontos: proporia o outro no lugar do mesmo, a alteridade no lugar da generalidade, a participação no lugar do espetáculo, o movimento no lugar do monumento, a improvisação no lugar do projeto, a deriva no lugar do mapa, o fragmento no lugar da unidade, o labirin-to no lugar da pirâmide, o rizoma no lugar da árvore, mas também buscaria encontrar o que existe em cada princípio desses no outro, ou melhor, tentaria vislum-brar uma relação possível, uma tensão construtiva entre eles.” (Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 154)

Figura 60: Página anterior - “Cul-tivos Colectivos Creactivos” (fonte:

arquivo pessoal)

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Perspectivas

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Perspectivas As práticas apresentadas neste trabalho apontam no sentido de uma construção de alternativas ao hegemônico, no âmbito da arquitetura e do urbanismo - como discipli-nas também políticas. Em dissenso ao majoritariamente praticado pelos arquitetos e urbanistas do mercado, esta nova “maneira de fazer” arquitetura visa o coletivo, colocando as pessoas na base e no centro das ações. Sua potência reside na pro-dução de novas relações - autônomas o mais possível da mediação do capital e do estado - de trabalho, produção e gestão dos espaços da cidade. Através das práticas co-letivas e colaborativas, coloca-se na contramão da cultura da competitividade e do individualismo; produz-se discus-sões, converte-se-as em ações e se dá início a um processo de “desalienação”, que envolve desde membros de coleti-vos, à participantes, usuários e outros, através dos meios de divulgação. Imaginemos, então, rumos possíveis para as “práti-cas autônomas”.¹ Observa-se uma rede de trabalho que se expande a cada dia. Observando-se também as razões para isso, vê-se um mundo em crise estrutural de seu sistema econômico; em que movimentos de insubordinação assumem uma es-cala crescente; em que cada vez mais se está conectado pela rede mundial de computadores, a qual serve também a estes movimentos, como ferramenta importantíssima. É notável que a crise, na Europa, fez insurgir não só massas de indignados, mas também muitos movimentos em busca de alternativas de trabalho e vida. Apesar de a América Latina não estar mergulhando em crise, vê-se tam-bém o surgimento de grupos por aqui. As táticas derivadas da crise européia acabam por inspirar quem, mesmo num momento-lugar externo a ela, observa seu caráter estrutu-ral e fundamental, e há tempos olha para a própria realida-___________________________________________________¹ Com apenas um tom de ressalva: “Acresce que, como nunca podemos ter inteira certeza das plenas implicações de nossas ações, as trajetórias de mudança histórico-geográfica resultantes sempre fogem ao controle total de nossa vontade individual e coletiva.” (David Harvey, “Espaços de esperança”, pág. 302)

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de política, profissional e comunitária com olhos críticos.

Coletivos em rede - um movimento?

O que se deseja apresentar aqui, no entanto, é a hi-pótese de que o que realizam neste momento esses coleti-vos em rede configure-se como um novo movimento de ar-quitetura e urbanismo, que agrega também características de movimento social. É possível que não exista um desejo explícito neste sentido, e que muitos não tenham ainda considerado essa denominação. Como disse Paola Jacques, “é o movimento que se move”², o que demonstra que mes-mo sem intencionalidade, o movimento nasce, do “mover--se”. O potencial da rede se estabelece na medida em que essas micropráticas, somadas, trabalhando em conjun-to, dão forma a uma estrutura muito maior, que trabalha, dentro do contexto global, de forma única, potente.

Possibilidades no Brasil

Embora não esteja num período de evidente crise econômica, o Brasil compartilha das mazelas de um siste-ma que possivelmente está em vias de entrar em colapso; mesmo que esse seja desde dentro, e que não represente sua deposição completa. O contexto de megaeventos, as grades obras e operações urbanas, o estado de exceção imposto às cidades sedes que permite ações arbitrárias de remoção e gentrificação, se apresenta como uma grave cri-se moral para o país. Já ocorrem, como na Espanha de 2011, movimentos multitudinários de indignados e, apesar das eternas diver-gências, há consciências em constante mudança. Há diver-sos coletivos atuando nas cidades, seja de arte, política, cinema ou cultura. Este cenário talvez se apresente como propício para disseminação de práticas outras, que assumam pra si algo de subversivo frente ao contexto hegemônico de absurdos. ___________________________________________________² Paola Jacques, “Estética da ginga”, pág. 149

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Perspectivas

Luana Fonseca Damásio

Adiante

A partir desse panorama e ao apontar adiante, numa reflexão sobre o papel do indivíduo no mundo, afim de que se aproximem indignações e esperanças pessoais à prática construtiva do trabalho (seja da forma que este tome), é importante dar mais uma vez voz a Harvey, quando afirma:

“o pessoal é político”.

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Agradecimentos

corpo

escola/professores EAU

família

amigos

Tapia

Dr. Márcio

Paulo

Renata yoga

Diana, Sara, Nacho, Viola

Mazetas, Leti

Santi, AACC

UFF - intercâmbio

Clarissa

Natacha, Cristina, Dinah

EREA Niterói - FeNEA, ComOrg

Natassia, Bruno, pai, Guilherme

psicólogas - Juliana, Ana

EAV

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leituras/opiniões

novas ideias

oportunidades

encontros

outros teatros

sabedoria

eixo

experiências

alteridade

descobertas

trabalho

ferramenta

conhecimento

rompimentos

parceria

força

motivação

superações

risadas

amor

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