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ALICE VIEIRA - 25 ANOS DE VIDA LITERÁRIA LEONOR RISCADO A Literatura Infantil e Juvenil comemora os vinte e cin co anos de vida literária de Alice Vieira, a escritora que — tam bém e tão bem — sabe ser jornalista e se deixou prender pelo apelo da escrita. Conhecida internacionalmente como uma das melhores autoras para a infância e juventude da actualidade, Alice Viei ra foi a candidata nomeada pelo júri português do IBBY ao prémio mais prestigiado neste âmbito, o Prémio Hans Chris- tian Andersen, em 1996; depois de ter figurado em todas as pré-selecções do júri internacional, fez parte do conjunto dos dois autores finalistas. Em 1998, outra vez nomeada pelo júri português, é uma das quatro finalistas seleccionadas pelo júri internacional. Já em 1994, o romance Os Olhos de Am Marta fora incluído na Lista de Honra do International Board on Books for Young People (IBBY). Alguns dos seus livros estão traduzidos em galego, cas telhano, basco, francês, alemão, neerlandês, búlgaro, húngaro, servo-croata e russo e entre eles encontra-se um grupo que integra as listas de obras de qualidade e interesse internacio nal para crianças e jovens publicadas pela International Youth Library de Munique. O reconhecimento da qualidade da sua escrita, em Por tugal, começou logo com a publicação do primeiro romance

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ALICE VIEIRA - 25 ANOS DE VIDA LITERÁRIA

LEONOR RISCADO

A Literatura Infantil e Juvenil comemora os vinte e cin­co anos de vida literária de Alice Vieira, a escritora que — tam­bém e tão bem — sabe ser jornalista e se deixou prender pelo apelo da escrita.

Conhecida internacionalmente como uma das melhores autoras para a infância e juventude da actualidade, Alice Viei­ra foi a candidata nomeada pelo júri português do IBBY ao prémio mais prestigiado neste âmbito, o Prémio Hans Chris- tian Andersen, em 1996; depois de ter figurado em todas as pré-selecções do júri internacional, fez parte do conjunto dos dois autores finalistas. Em 1998, outra vez nomeada pelo júri português, é uma das quatro finalistas seleccionadas pelo júri internacional. Já em 1994, o romance Os Olhos de Am Marta fora incluído na Lista de Honra do International Board on Books for Young People (IBBY).

Alguns dos seus livros estão traduzidos em galego, cas­telhano, basco, francês, alemão, neerlandês, búlgaro, húngaro, servo-croata e russo e entre eles encontra-se um grupo que integra as listas de obras de qualidade e interesse internacio­nal para crianças e jovens publicadas pela International Youth Library de Munique.

O reconhecimento da qualidade da sua escrita, em Por­tugal, começou logo com a publicação do primeiro romance

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Rosa, Minha Irmã Rosa, que recebeu, em 1979, o Prémio de Li­teratura Infantil «Ano Internacional da Criança», instituído pela Caminho. A esse seguiram-se outros galardões importan­tes — em 1983, é-lhe concedido o Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças pelo texto Este Rei que Eu Escolhi; em 1994, Alice Vieira recebe o Grande Prémio Calouste Gul­benkian de Literatura para Crianças pelo conjunto da sua obra.

Tem uma produção literária muito vasta, dominada pela narrativa, especialmente o romance e a novela, mas tam­bém, o conto e, sobretudo, o reconto de histórias tradicionais (portuguesas e de Macau); uma recolha de poesia popular por­tuguesa e um texto dramático completam o leque de obras di­rigidas, preferencialmente às crianças (]). De entre os títulos conhecidos, a maior parte com várias reedições, destacam-se, no âmbito do romance e da novela, a trilogia Rosa, Minha Irmã Rosa (1979), (17.a ed. 2002), Lote 12, 2o Frente (1980), (13.a ed. 2002) e Chocolate à Chuva (1982), (13.a ed. 2003); A Espada do Rei Afonso (1981), ( l l .a ed. 2001), Este Rei que Eu Escolhi (1983), (12.a ed. 2001), Graças e Desgraças da Corte de El-Rei Tadinho (1984), (12.a ed. 2001), Águas de Verão (1985), (8.a ed. 2004), Paulina ao Piano (1985), (5.a ed. 1999), Flor de Mel (1986), (8.a ed. 2004), Viagem a Roda do Meu Nome (2.a ed. 1987), (9.a ed. 2001), Às Dez a Porta Fecha (1988), (6.a ed. 2000), A Lua não Está à Venda (1988), (8.a ed. 2004), Úrsula, a Maior (1988), (6.a ed. 2004), Os Olhos de Ana Marta (1990), (5.a ed. 2004), Promontório da Lua (1991), (4.a ed. 2000), Caderno de Agosto (1995), (3.a ed. 2000), Se Pergunta­rem por Mim Digam que Voei (1997), (5.a ed. 2003), Um Fio de Fumo nos Confins do Mar (1999), (2.a ed. 2001).

No âmbito do conto, foram publicados Trisavó de Pistola à Cinta (2001), (2.a ed. 2002) e 2 Histórias de Natal (2002).

Entre 1991 e 1998 surgiram catorze títulos da colecção «Histórias Tradicionais Portuguesas» — Corre, Corre Cabacinha; Um Ladrão debaixo da Cama; Fita, Pente e Espelho; A Adivinha do Rei; Rato do Campo e Rato da Cidade; Periquinho e Periquinha; Maria das Silvas; Desanda Cacete; As Três Fiandeiras; A Bela

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Moura; 0 Coelho Brancjuinho e a Formiga Rabiga; O Pássaro Verde; Os Anéis do Diabo; O Gigante e as Três Irmãs. Em finais de 2003, esta colecção foi enriquecida com As Moedas de Ouro de Pinto Pintão e Manhas e Patranhas, Ovos e Castanhas. Os seis Contos e Lendas de Macau, publicados em 2002 pela Caminho, já tinham sido editados em 1988, em volumes independentes, pelo Insti­tuto Cultural de Macau/Editorial Pública.

A «antologia da poesia popular portuguesa» Eu Bem Vi Nascer o Sol (1994), (6.a ed. 2004) entronca neste interesse ma­nifestado pelas tradições ancestrais e o texto dramático Lean­dro, Rei da Helíria (1991), (5.a ed. 2004) apresenta, com outras roupagens, uma temática recorrente na obra da autora — a incapacidade de captar o essencial, de ver para além das apa­rências, de saber entender, nas palavras ditas, as palavras en- treditas.

Alice Vieira, a narradora por trás do jogo de espelhos em que se movem as suas personagens, às vezes, também elas narradoras e co-autoras das histórias, desdobra-se numa mul­tiplicidade de vozes, que traduzem os olhares e as vivências, criando, assim, múltiplas fotobiografias a nível psicológico, familiar e social. As personagens criadas revolvem-se em con­flitos exteriores ou interiores que as levam, ora a repelirem-se, ora a atraírem-se mutuamente, de acordo com a situação. O conflito de gerações, o ensino, a instrução, a vida familiar, o mundo real, o da televisão, o presente e o passado funcionam como pano de fundo. A incomunicabilidade e a inoperância da palavra, o peso dos nomes ou da sua perda, a opressão dos espaços ou das atitudes, a solidão acompanhada, o medo, a incompreensão, mas também a alegria e o sonho, a curiosida­de da descoberta de si e dos outros são alguns dos leit-motiv que percorrem a obra. Entretecem-se, assim, teias que, de livro para livro, enleiam personagens. Nós, os leitores seguimos o fio condutor, estendido com habilidade e argúcia, procuramos ler para lá das entrelinhas e para lá dos silêncios, ganhamos familiaridade com essas personagens, que deixam de ser de

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papel e palavra, para passarem a ser gente de carne e osso, com muito mais coisas em comum entre elas do que alguma vez puderam imaginar.

Paulina, a personagem principal de Paulina ao Piano (2), detesta Otília, a filha da amiga da mãe, que atira as palavras de encontro às pessoas, como os índios atiravam setas nos filmes cjue Paulina vê às vezes na televisão (3). Maria João, personagem de Úrsula, a Maior (4), não morre de amores pela Xuxu, caída lá em casa, também por ser filha de uma grande amiga da mãe, que lê os Ecos das Filiteiras, tem treze anos, um irmão chamado Xaninho e um noivo de nome Lau, que lhe escreve cartas que são estes mimos de inteligência:

Querida Xuxu, espero cjue estejas bem por aí, que nós cá fa­zemos por isso. Espero que as aulas estejam a correr bem. Espero que aprendas muitas coisas. Espero que gostes de estar aí. Lembras-te da burra que estava para ter cria? Ima­gina que já nasceu, mas é cega! Ao princípio ninguém per­cebeu, mas só depois quando a burra andava aos tombos e de encontro a tudo é que se viu o que era. Já pensaste bem nesta infelicidade? Já pensaste bem no que deve sentir uma burra cega? Terrível, não é? Mas eu não te quero apoquen­tar. Todos nós temos a nossa cruz. Espero que as aulas con­tinuem bem e que as professoras não faltem. Espero que te alimentes bem. Despeço-me com um abraço — Lau.P.S. — 0 nome da burra cega é Catita. Adeus. (5)

Ambas — Paulina e Maria João — sentem o seu espaço pessoal, de raparigas normais, devassado e ameaçado por aquelas crianças educadas (6), com a cabecinha assim no lugar (7), detestáveis e incompreensíveis na sua vazia perfeição, mas tão elogiadas pela maior parte dos adultos. Paulina interroga-se sobre o que será, ao certo, educar (8) e tanto repete as palavras na sua imaginação, a procurar descobrir-lhes o sentido, que já elas perdem o significado (se é que, naquele contexto, alguma

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vez o tiveram!), «educa, educa, educa, duca, duca, traça, truca, bazaruca» (9). E quanto a Otília, Paulina só sente vontade de fu­gir para longe dela e das suas palavras tolas que magoam e ferem sem dó. Maria João socorre-se de Carolina, a nova mu­lher do pai, cuja teoria educativa para crescer passa por fazer disparates, sujar os vestidos, rasgar os bibes, esfolar os joelhos, dar com a cabeça nas paredes, namorar o colega do lado, morrer de amor e ressuscitar no dia seguinte, chorar sem razão, rir sem razão (10). Graças a Carolina, o processo de reeducação (n) da Xuxu, foi um sucesso e ela não só descobriu que gostava de si e do seu nome próprio — Úrsula — como também se deu conta de que gos­tava de fazer as coisas por prazer e não por obrigação, ou porque al­guém manda (12).

Melinda, a de Flor de Mel (13) e Marta, de Os Olhos de Ana Marta (14), têm em comum o facto de, durante um longo perío­do das suas vidas, ansiarem pelo carinho de um lar, de uma família que não têm. Carregam o peso de culpas que desconhe­cem e sentem-se, quase sempre, mal-amadas ou desamadas. Quando a tratavam como uma «responsabilidade» e se lhe re­feriam como «isto», Melinda chegava mesmo a pensar que «"Isto" e "responsabilidade" eram decerto defeitos que ela ti­nha, para as pessoas ficarem com uma cara tão franzida de cada vez que o diziam” (15). O coração apertado lá dentro do peito, refugiava-se, então, na memória muito antiga «de um vulto esguio de mulher, que lhe passava a mão pelos cabelos e repetia como se cantasse: — Flor de Mel, flor de mel, flor de mel à flor da pele...» (16). Marta desejou, durante treze anos, ter uma família como toda a gente e uma mãe que gostasse dela em vez de «uma família ao contrário de toda a gente, com uma avó desaparecida há muitos anos e a que chamavam Senhora [...] e uma mãe que só respondia pelo nome próprio porque — dizia — já não tinha idade para ser mãe de ninguém» (17).

O que acontecerá a todas essas crianças, espartilhadas pela rigidez dos adultos, quando se vêem transformadas em macaquinhos de imitação, em atracções de feira, e são obriga­

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das a debitar — de uma torneira lassa como a do Euzebiozinho d'Os Maias — o que decoraram na escola? Fazem o que qual­quer criança faria - revoltam-se, explodem, dizem o que lhes vai na alma. Assim fez Marta, numa das rituais visitas de D. Pepa e Conchinha, quando lhe davam

beijinhos meio lambuzados de petifures e de pão com queijo e fiambre, repetiam muitas vezes que [...] estava mui guapa e grandita, e [...]começavam uma monótona cantilena:— Estere, decisteres... e depois? Are, hectare... e depois? [•••]— Depois, morreram as vacas, ficaram os bois. (18)

Por norma, segue-se o castigo (não vêem televisão, não comem sobremesa) ou têm de ouvir o sermão redentor porque os adultos lá tiram sempre da manga, qual coelho da cartola em tempo de circo, o contraponto, o modelo, a solução inequí­voca. Já lá dizia a tia Eugénia para Melinda: «— Ninguém te pediu opinião, pois não? As meninas bem educadas só falam quando lhes perguntam qualquer coisa. Olha a Martógèna» (19). Já lá dizia, muito antes, no Grande Hotel das Termas, a D. Maria do Carmo para o António de Águas de Verão (20), quando ele, armado em homem, manifestava o seu desejo de querer fazer outra coisa nas férias desse ano: «— «Queria»? O menino não tem quereres! Vai para onde formos e acabou-se! Era o que faltava: andarmos às ordens de Sua Excelência!» (21)

Estas histórias de mães e filhos, de pais e filhos, de pa­rentes, enfim, de adultos e crianças — pequenas ou para lá de crescidas — têm muito que se lhes diga! E que, no fundo, tra­ta-se da descoberta da vida. Essa tarefa é muito, muito com­plicada, não há manuais ou escolas que lhes valham, nem a uns, nem aos outros. E os olhos dos adultos e os das crianças olham da mesma maneira mas não vêem as mesmas coisas. É notável a amostragem desse mundo às avessas em que os pa­péis se invertem e os filhos criam os pais. No tal Grande Hotel

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das Termas, em Aguas de Verão, as crianças olhavam umas para as outras em silêncio e Marta pensava com os seus botões que:

era a hora de os adultos começarem, eles também, a brincar. Geralmente só sabiam brincar aos pais e às mães ou aos doentes. Não tinha, realmente, a nossa imaginação, e às ve­zes, um de nós deixava cair da boca um leve suspiro de abor­recimento. Mas logo eles olhavam para nós, severamente, assim como se nos dissessem:— Vocês tiveram o dia inteiro para brincar, agora é a nossa vez!E lá nos acabávamos por sentar à mesa, deixando que eles nos explicassem, pela centésima vez, como é que se devia pegar na faca e no garfo. Eles gostavam tanto de dizer essas coisas, sentiam-se tão contentes, tão importantes, que ne­nhum de nós lhes queria estragar a alegria. (n)

A acompanhar Marta nas suas reflexões de criança grande, estão Letícia e Maurício, de Sc Perguntarem por Mim Digam que Voei (23), que também pensavam que «os adultos eram seres estranhos», e que «era preciso ter muita compreen­são para saber lidar com eles», ou melhor, no dizer de Maurí­cio, «muita pachorra» (24). Pensamento semelhante revelam Lavínia e Margarida, de «Mistérios de Natal» (25). Trata-se, ape­nas, de um sonho, como se vem a saber mais tarde, mas são deliciosas a compenetração no «problema» e a complacência manifestada durante a conversa entre as amigas, réplica digna de uma outra, possível entre mães «práfrentex», mas que desen­cadearia as fúrias, decerto, de muitas outras, mais «clássicas»:

— Fica sabendo que vão ser em criança aquilo que nós con­seguirmos fazer deles em adultos. Já li isso numa revista.— repetia Margarida muitas vezes [...].— Não são capazes de pedir nada de útil — murmurava Margarida, desconsolada.

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— São adultos, o que é que queres? — dizia Lavínia, pro­curando sempre desculpá-los. [...].— Só querem porcarias — rematava Lavínia. — É da ida­de. Há-de passar. [...].— Até já me lembrei — disse Margarida — de ir falar com o Bebé que toma conta deles e dizer-lhe para ter mão nos adultos à sua guarda, e não deixarem os piores influenciar os melhores com conversas dessas. Os filhos põem os pais nos empregos é para ficarem sossegados!Lavínia voltou a rir, e explicou à amiga que isso seria pura perda de tempo.— Eles precisam de descobrir por si próprios. É a vida. Têm tempo para isso quando forem crianças. (26)

Tudo está bem quando acaba bem, e assim acontece com Mariana, a personagem principal da trilogia Rosa, Minha Irmã Rosa tf7), Lote 12-2.° Frente (28) e Chocolate à Chuva (29). O mesmo se passa com Abílio, de Viagem à Roda do Meu No­me (30). Ele aprende quais são as coisas que, de verdade, impor­tam na vida, que «temos de saber viver com a vida e com a morte, tal como vivemos com o nosso corpo, e com o nome que temos.» (31) Mariana vai descobrindo, aos poucos, a importân­cia da partilha e da convivialidade, a necessidade dos afectos; aprende a aceitar os outros através daquela irmã recém-chega­da, aprende que o seu corpo cresceu, mas dá-se, sobretudo, conta de um crescimento interior, de uma maturidade nova que a torna mais forte.

Acho, que no fundo, toda a nossa vida se passa em pequeni­nos mundos que vão desaparecendo à medida que a gente cresce e deixa de caber nas saias e nos sonhos. E por cada mundo que a gente perde (ou mata?) a gente aumenta um centímetro, e começa a entender as coisas de outra maneira, e sente-se mais forte apesar de tudo. (32)

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D. Afonso Henriques, de A Espada do Rei Afonso (33) e o Ruca, de «Valsa a Três Tempos» (34) têm de comum, em ter­mos de linguagem — pese embora a distância de séculos que os separa — , uma notória e hilariante incapacidade expressi­va, que os leva, nos casos em que o entusiasmo do discurso os ataca, a socorrerem-se dos bordões preferidos. D. Afonso, far­to decerto do pobre português proto-histórico, decide enri­quecê-lo com o seu exclamativo catrâmbias, a propósito e a despropósito. O Ruca, rapaz da era dos bolicaos e da coca- -cola «diet», com o vocabulário reduzido a «fogo!» e «tás a ver». «E isto, claro», [...] «só nos dias de grande inspiração» (35), quando, no auge do entusiasmo, ainda consegue montar a se­guinte parlenda, que arrancaria, decerto, ao atordoado rei uma série de catrâmbias!, agora muito adequados:

— Ó setôra, e a gente também pode dançar aquela cena... não sei é o nome... deu há dias na SIC, setôra... é pá, setôra, fogo!, curti bué... O mangas ia buscar a chavala, ela não queria ir... [...]— ... e vai ele, tunfas!, prega-lhe duas lambadas e ela, fogo!, atira-se assim ao chão, tás a ver, e depois enrosca-se à perna do gajo, meu, e vai ele agarra-a assim, meu, que até pensei, fogo!, é agora que a garina se passa, mas ela ali, meu, fixe, meu, sem largar o chavalo, tás a ver... [...]— Curti bué essa cena. Palavra. Gramei mesmo. (36)

Vinda dos tempos de antanho, em Este Rei que Eu Es­colhi (37), surge a referência à figura heroica da «trisavó Bene­dita, que, de pistolas à cinta a fugir do general Soult, cavalgara dia e noite desde o seu solar minhoto até cair de cansaço à porta de um fidalgo em Alcanena» (38). Em Trisavó de Pistola à Cinta (39), a brava Benedita, em vez de fugir dos franceses, como fazia o povo todo, teria vindo — assim o pensaram, durante longas e orgulhosas gerações, os seus descendentes — «por aí abaixo», não a fugir, antes, «à cata de franceses» (40). Associa­

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da à figura da aristocrática senhora ainda havia a história do seu casamento com um fidalgo de Avelar de Cima. O pior foi que, bem esmiuçadas as pistas genealógicas, chegaram eles, afinal, à triste conclusão de que mais valeria deixar esquecida a ligação a esse ramo podre da família. Isto porque além de, segundo se apurou, junto do padre da freguesia, não só essa tal Benedita não seria «muito boa rês» (41), como, ainda por cima, até estava ao serviço de Filipe II de Espanha e gastou a fortuna toda do homem que teve o azar de legitimamente lhe chamar esposa.

Em Viagem à Roda do Meu Nome (4i), a prima Constança faz lembrar o avô de Vasco e Adriana, em «Um cheiro a lúcia- lima» (43) pelo desejo que ambos partilham do regresso à terra natal, por sentir saudades do ar do rio e da lúcia-lima, no caso do avô, ou para morrer, no caso de Constança, porque, como ela própria confessa: «Acho que a gente pertence sempre à ter­ra onde nasceu, por mais voltas que se dê, por mais mundo que se conheça» (44).

Estas vinte e cinco personagens e todas as outras que, neste momento, não foram convocadas ganharam vida pela mão de Alice Vieira, são gente. Com elas, nós leitores, rimos e chorámos. Recordámos, muitas vezes, embalados pelas pala­vras das histórias inventadas, que fazem sonhar e acordados pelas histórias verdadeiras, que fazem e fizeram sofrer. ESTAS SÃO AS LETRAS.

Notas

(b Sobre a obra de Alice Vieira veja-se o excelente estudo de José António Gomes, Introdução à Obra de Alice Vieira, Lisboa, Cami­nho, 1998. Registem-se também as comunicações à roda da obra de Alice Vieira presentes em AA.VV., No Branco do Sul as Cores dos Livros, Lisboa, Caminho, 2000, pp. 27-120.

(2) Alice Vieira, Paulina ao Piano, Mem-Martins, Europa-Amé- rica, 1985.

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(3) Idem, ibidem, p. 7.(4) Idem, Úrsula, a Maior, Lisboa, Caminho, 1989.(5) Idem, ibidem, pp. 74-75.(6) Idem, Paulina ao Piano, p. 22.(7) Idem, Úrsula, a Maior, p. 125.(8) Idem, Paulina ao Piano, p. 22.(9) Idem, ibidem, p. 23.(10) Idem, Úrsula, a Maior, p.134.(n) Idem, ibidem, p. 169.(12) Idem, ibidem, p. 182.(13) Idem, Flor de Mel, Lisboa, Caminho, 1998.(14) Idem, Os Olhos de Ana Marta, Lisboa, Caminho, 2000.(,5) Idem, Flor de Mel, p. 66.(16) Idem, ibidem, p. 17.C7) Idem, Os Olhos de Ana Marta, p. 25.(18) Idem, ibidem, p. 23.(19) Idem, Flor de Mel, p. 57.(20) Idem, Águas de Verão, Lisboa, Caminho, 2000.(21) Idem, ibidem, p. 39.(“) Idem, ibidem, p. 8.(23) Idem, Se Perguntarem por Mim Digam que Voei, Lisboa, Ca­

minho, 1997.(24) Idem, ibidem, p. 186.P ) Idem, 2 Histórias de Natal, Lisboa, 2002, p. 7.(26) Idem, ibidem, p. 11.(:7) Idem, Rosa, Minha Irmã Rosa, Lisboa, Caminho, 1980.(2!i) Idem, Lote 12-2.° Frente, Lisboa, Caminho, 1980.(29) Idem, Chocolate h Chuva, Lisboa, Caminho, 1982.(-30) Idem, Viagem à Roda do Meu Nome, Lisboa, Caminho, 1985.(31) Idem, ibidem, p. 140.(32) Idem, Chocolate à Chuva, p. 74.(^)Idem, A Espada do Rei Afonso, Lisboa, Caminho, 1981.(M) Idem, Trisavó de Pistola à Cinta, Lisboa, Caminho, 2001, p. 9. (35) Idem, ibidem, p. 10. í36) Idem, ibidem, pp. 20-21.(37) Idem, Este Rei Que Eu Escolhi, Lisboa, Caminho, 1999.(38) Idem, ibidem, p. 129.

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(^) Idem, Trisavó de Pistola a Cinta, p. 27.C]) Idem, ibidem, p. 27.(41) Idem, ibidem, p. 36.(42) Idem, Viagem a Roda do Meu Nome. (*)Idem , Trisavó de Pistola à Cinta, p. 43. í44) Idem, Viagem à Roda do Meu Nome, p. 90.