alice no país das maravilhas

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TCC do livro Alice no País das Maravilhas

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“- De que serve um livro sem figuras nem diálogos?” Alice

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11Alice estava começando a se aborrecer de ficar

sentada ao lado de sua irmã num recosto do jardim, sem nada para fazer. Dava uma outra olhadela no livro que a irmã lia, mas implicava:- De que serve um livro sem figuras nem diálogos?Cheia de preguiça, por causa do calor do dia, ela se perguntava se o prazer de fazer um colar de margaridas valeria o esforço de se levantar e colher as flores, quando de repente um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou corendo junto a ela. Nada havia de muito estranho naquilo. Nem Alice achou assim tão esquisito quando viu o coelho dizer para si mesmo: - Oh, meu Deus! Eu vou chegar muito atrasado! Mas, quando ele tirou um relógio de bolso do colete, olhou-o e se apressou, Alice se levantou, dando-se conta que nunca antes havia visto um coelho nem com colete nem com relógio no bolso. Ardendo de curiosidade, seguiu-o correndo, a tempo de vê-lo entrar numa larga toca sobre a cerca.E lá se foi Alice, descendo atrás do Coelho, sem jamais considerar como faria depois para sair dali. A toca seguia reta como um túnel, porém afundava de repente, tão de repente, que Alice , sem perceber, acabou mergulhando num poço muito profundo.

Ou o poço era realmente muito profundo, ou ela caía muito devagar, aproveitando para olhar em volta e perguntar o que haveria de acontecer em seguida. Como o fundo do poço era muito escuro, ela passou a observar com mais atenção às paredes, percebendo que estavam cheias de guarda-louças e estantes, além de alguns mapas e quadros pendurados aqui e ali. De passagem, apanhou um pote numa prateleira. Nele estava escrito: GELÉIA DE LARANJA, mas para sua tristeza o pote estava vazio e ela o colocou de volta em outra prateleira pela qual passava então, pen-sando que, se o atirasse fora, poderia acertar a cabeça de alguém.“Puxa, que bela queda!”, Alice pensou consigo. “Depois disso, rolar pelas escadas não vai me provocar nenhuma emoção. Que valente eles vão me achar lá em casa! Mas não vou contar nada, mesmo se eu cair do telhado” (o que era bem capaz de acontecer).Caía, caía, caía.Será que a queda não terminaria nunca?– Quantos quilômetros será que eu caí? - disse ela em voz alta. – Devo estar próxima do centro da Terra. Devem ser mais ou menos 6 mil quilômetros (pois, como você vê, ela aprendeu uma porção de coisas desse tipo nas aulas e estava ansiosa para demonstrar seus conhecimentos, embora a situação não fosse muito oportuna). Sim, a distância deve ser mais ou menos essa, mas então, qual deve ser a latitude ou a longitude em que eu vim parar? (Alice não tinha a menor ideia do que fossem latitude ou

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12longitude, mas achou que eram palavras muito bonitas para dizer.)E continuou falando: – Será que eu vou atravessar a terra? Seria engraçado no meio daquela gente que anda de cabeça para baixo! Os Antipáticos, eu acho... (Ela ficou contente por não haver ninguém para escutá-la, pois me pareceu que essa não era a palavra correta.) Eu teria de perguntar a alguém que país era aquele, Nova Zelândia ou Austrália? (tentou fazer uma pose educada, mas era muito difícil enquanto caía.) Não, eu parecia muito ignorante, seria melhor procurar, talvez escrito em algum lugar, o nome do país.Caía, caía, caía.Como não havia mais nada a fazer, Alice voltou a falar: – Diná vai sentir muito a minha falta hoje! (Diná era a gat-inha.) Espero que alguém se lembre do seu pratinho de leite ao anoitecer. Diná, minha querida! Eu queria que você estivesse aqui embaixo comigo. Pena que não haja ratos no ar, mas você poderia pegar um morcego, que é bem parecido com um rato, sabe? Mas será que Diná, minha gata angorá, come morcego andirá?Adormecendo aos poucos ela continuou repetindo, como que a sonhar: “Angorás comem andirás? Angorás comem andirás?”, às vezes: “Andirás comem angorás?”, pois, já que ela não sabia responder a nenhuma dessas questões, tanto fazia sua ordem. Alice começou a sonhar que passeava de mãos dadas com Diná quando, de repente, tchibum! Caiu sobre um monte de gravetos e

folhas secas e a queda terminou.Alice não se machucou nenhum pouco e levantou-se num instante. Olhou para cima, mas estava tudo escuro. Diante dela havia uma outra passagem e o Coelho Branco ainda estava à vista, percorrendo-a às pressas. Não havia um momento a perder: Alice correu como vento, a tempo de ouvi-lo dizer, enquanto dobrava uma esquina: – Pelas minhas orelhas e meus bigodes! Está ficando tarde de-mais! Quando ela conseguiu virar a esquina, o Coelho desaparecera. Ela se viu então numa sala comprida e baixa, iluminada por uma fileira de lâmpadas penduradas no teto. Havia portas por toda a volta da sala, mas estavam fechadas. Alice correu tentando abrir uma por uma, mas ela percebeu que estava trancada e não sabia como faria para sair dali.Encaminhou-se para o centro da sala e, de repente, deparou com uma mesinha de três pés, toda de vidro. Nada havia sobre ela, a não ser uma pequenina chave dourada. Logo ocorreu à Alice que a chave deveria servir para alguma das portas, mas... Oh! Deus! Ou as fechaduras eram muito largas ou a chave muito pequena: não serviam em nenhuma... Dando uma segunda volta pela sala, ela notou uma cortina muito baixa, em que não tinha reparado antes, atrás da qual havia uma portinha de cerca de quarenta centímetros. Tentou então usar a chave, que para seu grande

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14contentamento, serviu! Alice abriu a porta e verificou que dava para um corredor estreito, não maior que um buraco de rato.Ela se ajoelhou e olhou através do corredor: seus olhos contemplaram o mais belo jardim que já se viu! Como ela gostaria de sair daquela sala escura e passear em meio àqueles canteiros de flores maravilhosas e àquelas fontes de água fresca! Porém, nem mesmo sua cabeça passava pela porta.“Mesmo que minha cabeça passasse, seria sem muito pouca utili-dade sem os meus ombros”, pensou a pobre Alice. “Ah, como eu gostaria de poder me colher como um telescópio. Acho até que eu conseguiria, se soubesse ao menos por onde começar.”Como se vê, tantas coisas extraordinárias vinham se passando, que Alice começou a pensar: muito pouca coisa era realmente impossível.Como era inútil esperar junto à porta, ela voltou à mesa. Na esperança de encontrar outra chave ou, ao menos, um manual de instruções para as pessoas encolherem como telescópios. Dessa vez encontrou uma garrafinha. (– Certamente não estava aqui antes – disse Alice.) Amarrada no gargalo havia uma etiqueta com as palavras: BEBA-ME. Tudo bem dizer beba-me, mas a pequena e esperta Alice não faria aquilo sem pensar.– Não, eu vou olhar primeiro – disse ela – e verificar se está escrito veneno ou não. Ela não se esquecia das muitas histórias que contavam que, se

alguém beber muito de uma garrafa onde está escrito veneno, é quase certo que vai se dar mal, cedo ou tarde.Como não estava escrito veneno, Alice Sr arriscou a provar, achando muito gostoso. (De fato, tinha um gosto misturado de torta de cereja, creme de leite, abacaxi, peru assado, caramelo e torradas quentes com manteiga.) Ela logo tomou tudinho.– Que sensação curiosa! – disse Alice. Devo estar encolhendo como um telescópio.E assim aconteceu: estava agora com mais ou menos 25 centímet-ros de altura. Seu rosto brilhou ao pensar que ela tinha então o tamanho exato para atravessar a portinha que a conduziria até aquele lindo jardim. Ela, porém, esperou ainda alguns minutos para ver se continuava encolhendo, o que a deixava um pouco preocupada. – Desse jeito, pode ser que eu suma de uma vez, como uma vela – dizia para si mesma. – E o que seria eu então? (Ela tentou imaginar o que acontecia com a chama de uma vela quando a vela se acabava, lembrando-se de que nunca tinha visto uma coisa as-sim antes.)Após um instante, vendo que nada mais acontecia, ela decidiu entrar no jardim de uma vez. Mas... Ah! Pobre Alice! Quando ela chegou à porta percebeu que havia esquecido a chavezinha dourada, e, quando voltou para pegá-la na mesa, deu-se conta de que não conseguia mais alcançá-la. Podia vê-la perfeitamente

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15através do vidro e tentou o quanto pode subir pelo pé da mesa, mas era escorregadia demais. Quando se cansou dos esforços, a pobre criatura sentou-se e começou a chorar.– Vamos lá! Não adianta nada chorar assim – disse para si mesma, severamente. – É bom parar com isso já!Ela, em geral, dava ótimos conselhos a si própria (embora rara-mente os seguisse). Às vezes, ralhava de modo tão duro con-sigo mesmo que chegava a ficar com lágrimas nos olhos. Ela se lembrava de ter, certa vez, tentado puxar as próprias orelhas por ter trapaceado no jogo de toque-emboque, que jogava contra si mesma. Essa curiosa menina gostava de fingir que era duas pes-soas.“Mas agora de nada adianta fingir ser duas pessoas”, pensou a pobre Alice, “pois pouco sobrou de mim sequer para inteirar uma pessoa que se respeite.”Nesse instante seus olhos depararam com uma caixinha de vidro que estava debaixo da mesa. Alice a abriu e encontrou um pequenino bolo sobre o qual estava escrito, num belo arranjo de frutas secas: COMA-ME.– Bem, eu vou comer – disse ela. – Se me fizer crescer eu alcanço a chave, e, se me fizer encolher, passo por baixo da porta. De qualquer modo, entro no jardim e estou pouco ligando para o que possa acontecer. Provou um pedacinho e, curiosa, disse para si mesma: “E agora? E agora?”.

Pôs em seguida a mão em cima da cabeça para sentir se estava au-mentando ou diminuindo, mas notou com surpresa, que continu-ava do mesmo tamanho. Na realidade é o que costuma acontecer quando se come bolo, mas Alice a essa altura, só esperava que coisas extraordinárias acontecessem e achava totalmente sem graça que a vida seguisse seu curso normal. Por isso, pôs mãos à obra e, num instante, comeu o bolo inteiro.

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19- Estranhissérrimo, estranhissérrimo! -

gritou Alice. (Ela estava tão assustada que, por um momento, esqueceu como se fala direito.) - Agoraestou me esticando como o maior telescópio que já se viu! Adeus, pés! (Pois quando ela olhou para os pés, eles estavam tão distantes que pareciam fora de sua vista.) Oh, meus pobres pés, quem vai lhes calçar meias e sapatos agora, meus queridos? Acho que não conseguirei, pois estar longe demais para cuidar de vocês. Vocês terão de se virar como puderem.“Mas é melhor eu ser boa com eles”, pensou, “ou talvez eles não me levem aonde eu quiser! Deixe-me ver... Vou dar a eles um par de botas todos os anos no Natal.”Ela se pês então a planejar como faria isso: “Devem ir pelo cor-reio”, pensou. “Como vai ser engraçado enviar presentes para os próprios pés! O endereço vai parecer tão esquisito... Ilmo. Sr. Pé Direito da Alice Tapete da lareira perto do guarda-fogo (com todo o amor da Alice)

Oh, meu Deus, que absurdo eu estou dizendo...”Nesse exato momento, sua cabeça bateu contra o teto da sala. De fato, Alice estava com mais de dois metros e meio de altura. Num segundo, ela pegou a chavezinha dourada e correu para a porta do jardim.Pobre Alice! Tudo o que ela pôde fazer foi deitar-se de lado, para enxergar o jardim com um único olho, mas entrar estava mais impossível que nunca. Ela se sentou e pôs-se a chorar de novo.- Você devia se envergonhar - disse Alice. - Uma menina do seu tamanho (de fato, ela estava bem grande agora), chorando desse jeito! Pare já, eu ordeno!Mas continuou chorando, despejando baldes de lágrimas, até que começou a se formar uma grande poça em sua volta, com uns dez centímetros de profundidade, chegando até o meio da sala.Após algum tempo, ela ouviu um leve ruído de passos distantes. Enxugou rapidamente os olhos para ver quem estava chegando. Era o Coelho Branco que voltava, magnificamente vestido, com um par de luvas brancas de pelica numa das mãos e um grande leque na outra. Vinha saltitando depressa, resmungando consigo mesmo:- Oh! A Duquesa, a Duquesa! Oh! Ela vai ficar uma fera se eu a fizeresperar!Alice estava tão desesperada que se sentia disposta a pedir a ajuda

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20de quem quer que fosse. Assim, quando o Coelho se aproximou, ela começoua lhe falar com uma voz baixa e acanhada:- Por favor, meu senhor...O Coelho teve um forte estremecimento, deixou cair as luvas e o leque e sumiu mais que depressa na escuridão. Alice apanhou o leque e as luvas e, como a sala estava muito quente, começou a se abanar enquanto dizia:- Meu Deus, meu Deus, como está tudo esquisito tão hoje! E ainda ontemas coisas estavam tão normais... Será que mudei durante a noite? Deixe-me ver: será que eu era a mesma quando acordei hoje de manhã? Quase consigo me lembrar de ter me sentido um pouco diferente... Mas, se não sou a mesma, a questão seguinte é: quem sou neste mundo? Ahá! Eis um grande mistério!E começou a pensar em todas as meninas da sua idade que ela conhecia, para ver se havia se transformado em alguma delas.- Estou certa de que não sou a Ada - disse -, pois ela tem os cabelos encaracolados e os meus são lisos. Tenho certeza também de que não soua Mabel, pois eu sei muitas coisas e ela... Oh! Ela sabe tão pouco! Além do mais, ela é ela e eu sou eu e... Oh! Puxa, como tudo isso é tão estranho!Deixe-me ver se eu sei todas as coisas que eu costumava saber:

quatro vezes cinco é doze; quatro vezes seis é treze; e quatro vezes sete é... Minha nossa! Desse jeito, eu nunca vou chegar até vinte! Bem, deixemos de lado a tabuada e vamos tentar a geo-grafia: Londres é a capital de Paris e Paris é capital de Roma e Roma... Não, está tudo errado, tenho certeza! Eu devo transfor-mado na Mabel. Vou tentar recitar o poema “Diverte-se o fofo crocodilo”.Mas sua voz soou rouca e estranha. Nem as palavras pareciam ser as mesmas:

O fofo crocodilo, em deixar sua cauda lustrada, mergulhando nas águas do Nilo, praficarcorriaescarnadourada.

Cheio dos sorrisos mais gostosos, tendo as patas bem esticadas, saúda os peixinhos tão ƒogosos, Com as mandíbulas arreganhadas.

- Tenho certeza de que essas não são as palavras certas - disse a pobre Alice, e seus olhos se encheram de lágrimas de novo. - Eu devo ter me tornado a Mabel mesmo. E vou ter de viver naquela casa pequena e desconfortável, quase sem brinquedos

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21para brincar e... Oh, sempre com tanta lição para fazer! Näo! Já tomei minha decisão: se eu for a Mabel, vou ficar aqui mesmo! E não vai adiantar nada eles enfiarem as suas cabeças aqui e me chamarem: “Suba de volta, queridinha”, pois vou olhar para cima e dizer: “Quem sou eu então? Digam primeiro quem eu sou”. E daí, se eu gostar de ser essa pessoa, eu subo; se não, vou ficar é bem aqui, até que eu vire outra pessoa. Mas, puxa vida! Bem que eu gostaria que algum enfiasse a cabeça´aqui. Estou tão cansada de ficar sozinha neste lugar...Assim que disse isso, ela baixou os olhos para as mãos e perce-beu, com surpresa, que havia vestido uma das luvas brancas do Coelho: “Como pude fazer uma coisa dessas?”, pensou. “Devo estar encolhendo de novo.”Levantou-se e se aproximou da mesa para se medir, percebendo que- tinha agora cerca de sessenta centímetros e estava diminuindo cada vez mais. Logo descobriu que a causa disso era o leque que ela estava segurando: jogou-o fora depressa, antes que desapare-cesse por completo.- Ufa! Escapei por pouco! - disse Alice, um bocado assustada com a repentina mudança, mas bastante feliz por ainda existir. - E agora, direto ao jardim!E saiu correndo a toda velocidade para a portinha. Mas... Oh, tristeza! A portinha estava fechada de novo e a pequenina chave

continuava sobre a mesa de vidro.“E agora? As coisas estão piores que nunca”, pensou a pobre menina. “Nunca estive tão pequena assim antes. Nunca! E isso é terrível! Essa é que é a verdade!”Logo que disse essas palavras, seu pé escorregou e tchibum! Ela ficoumergulhada até o queixo em água salgada. A primeira ideia que lhe veio à cabeça foi a de que, de algum modo, ela havia caído no mar...“Nesse caso, eu posso voltar de trem”, disse consigo, pensando na primeira e única vez que estivera no litoral e acreditando que toda praia devia ter cabinas de banho, crianças brincando na areia com pazinhas, uma fileira de hotéis e uma estação de trem atrás dela. Mas logo percebeu estava metida na lagoa de lágrimas que ela mesma havia chorado, quando tinha quase três metros de altura.- Puxa! Eu gostaria de não ter chorado tanto - disse Alice en-quanto nadava, tentando sair dali. - Acho que vou ser punida por isso, me afogando nas minhas próprias lagrimas. Vai ser uma coisa esquisita! Mas tudo tão esquisito hoje...Então ela ouviu algo se debatendo na água, a alguma distância dali. Aproximou-se a nado para ver o que era. A princípio imagi-nou que fosse um leão marinho ou um hipopótamo, mas lembrou o quão pequenina ela

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22agora e logo percebeu que se tratava de um rato, que também havia escorregado para dentro da lagoa.“Será que não valeria a pena falar com esse rato?”, pensou. “Tudo é tão extraordinário aqui, que é até bem provável que ele saiba falar... De qualquer jeito, não custa nada tentar.”- Ó Rato, ó Rato, você sabe como sair desta lagoa? - perguntou ela. – Eu estou muito cansada de ficar nadando! Ó Rato! (Alice achava que essa era a melhor maneira de se falar com ratos. Ela nunca havia feito isso antes, mas lembrava-se de ter visto certa vez, na Gramática Latina de seu irmão, um arranjo de palavras assim: rato, de um rato, para um rato, um rato, ó rato!)O Rato a olhou com curiosidade, pareceu piscar-lhe um dos seus olhinhos mas não disse nada.“Talvez ele não entenda inglês”, pensou Alice. “Eu acho até que é um rato francês, que veio junto com o rei Guilherme, o Conquis-tador, quando ele invandiu a Inglaterra” (pois, com todo o seu conhecimento de História, Alice não tinha uma noção muito clara sobre há quanto tempo as coisas aconteceram).Ela então voltou a tentar, pronunciando a primeira frase da sua cartilha de francês: - Où est ma chatte? (Onde está minha gata?)O Rato deu um pulo repentino na água e pareceu se arrepiar todo de terror.

- Oh, me desculpe - disse Alice rapidamente, com medo de ter magoado o pobre animal. - Eu esqueci completamente que você não gosta de gatos...- Não gosto de gatos! - gritou o Rato, com voz irritada. - Você gostaria de gatos se fosse eu?- Bem, talvez não! - disse Alice num tom suave. - Mas não fique nervoso por causa disso. Sabe, ainda assim eu gostaria de poder lhe mostrar nossa gata Diná. Acho que você começaria a gostar de gatos se pudesse conhecer a Dina. Ela é tão boazinha e se sen-ta de um jeito tão encantador perto da lareira, lambendo as patas e lavando a cara, e é tão gostosa de acariciar... E, quando se trata de pegar ratos, ela é a tal... Oh!, me desculpe! – gritou Alice de novo, pois dessa vez o Rato ficou todinho arrepiado e ela percebeu que ele devia estar muito muito ofendido. - Se você preferir assim, nos nunca mais falaremos dela.- Nós? Ora veja só! - protestou o Rato, que tremia até a última pontado rabo.- Como se eu alguma vez falasse desse assunto! Nossa famíliasempre odiou gatos: coisas detestáveis, baixas, vulgares! Nunca maispronuncie esse nome!- Prometo que não - disse Alice, apressada em mudar de assunto. -Você... Você gosta de... de cachorros?

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Como o Rato não respondesse, Alice seguiu em frente, toda animada.- Existe um cachorro tão bonito perto da nossa casa... Eu gostaria quevocê o conhecesse. É um terrier pequeno, de olhos brilhantes, sabe? E tem, ah!, um pelo marrom, longo e todo crespo. E ele vai buscar as as coisas que você joga, e se senta nas patinhas de trás para pedir o jantar e faz mais um montão de coisas que eu não lembro. Ele é de um fazendeiro, sabe?Que diz que ele e tão útil que vale uma nota! Ele diz que o ca-chorro caça todos os ratos e... Ai, meu Deus! - gritou Alice aflita. - Acho que ofendi o Rato de novo.De fato, o Rato nadava tão rápido para se afastar dela, que agitoutoda a água da lagoa. Ela o chamou com voz carinhosa:

- Rato, meu querido, volte aqui. Nós não falaremos mais de gatos oucachorros, já que você não gosta deles.Ouvindo isso, o Rato voltou devagar, com a cara totalmente pálida, efalou bem baixinho:- Vamos até a margem e eu lhe conto a minha história. Dai então vocêvai entender por que eu odeio gatos e cachorros.

Já era hora de sair, pois a lagoa estava ficando superlotada de pás-saros e animais que iam caindo nela. Havia um Pato, um Dodó, um Periquito, um filhote de Águia e inúmeras outras criaturas curiosas. Alice foi na frente e o grupo inteiro a acompan-hou nadando até a margem.

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25Ogrupo que se formou na margem da lagoa

era realmente muito estranho. Os pássaros arrastavam as penas ensopadas, os animais tinham o pelo colado ao corpo e todos pingavam de tão molhados, todo mundo irritado e incomodado.A primeira questão, claro, era como ficar seco de novo. Eles se reuniram e conversaram a esse respeito. Após alguns minutos pareceu muito natural para Alice ver-se falando com familiari-dade a todos eles, como se já os conhecesse há muito tempo. Ela chegou até a ter uma longa discussão com o Periquito, que acabou ficando zangado e disse:- Eu sou mais velho que você, e portanto sei melhor como as coisas devem ser.Alice não se conformou e insistiu em saber a idade dele. Mas, como o Periquito se recusou terminantemente a dizer a idade, a conversa terminou por aqui mesmo.Por fim o Rato, que parecia ser uma pessoa com alguma autori-dade entre eles, gritou:- Sentem-se todos e me escutem! Sei como fazer todo mundo secar rapidamente!Todos se sentaram na hora, formando um amplo círculo, com o Rato no meio. Ansiosa, Alice fixou os olhos nele, certa de que, se não secasse imediatamente, pegaria um belo resfriado.

- Ham! Ham! - principiou o Rato com ar de importância. – Estão todos preparados? Esta é a história mais secante que eu conheço. Todo mundo em silêncio, por favor! Guilherme, o Conquistador, cuja causa era apoiada pelo Papa, logo conseguiu a aprovação dos ingleses, que precisavam de líderes e já tinham se habituado a usurpação e à conquista. Eduíno e Morcar, os condes das regiões da Mércia e da Nortúmbria...- Bru! - fez o Periquito, tremendo de frio.- Como é? - disse o Rato com delicadeza, mas franzindo as so-brancelhas. - Você disse alguma coisa?- Eu não! - respondeu o Periquito mais que depressa.- Tive a impressão de que você tinha falado - disse o Rato. – Vou prosseguir: Eduíno e Morcar, condes da Mércia e da Nortúmbria, declararam-se a favor dele. E até Estigande, o patriótico arcebispo da Cantuária, achou uma coisa recomendável...- Achou o quê? - perguntou o Pato.- Achou uma coisa - respondeu o Rato, irritado. - Claro que você deve saber o que significa “uma coisa”.- Eu sei muito bem o que significa “uma coisa”, quando eu acho essa coisa - disse o Pato. – Trata-se em geral de uma rã ou uma minhoca. A questão é: o que o arcebispo achou? O Rato não levou em consideração essa questão e foi em frente mais que depressa:-...achou uma coisa recomendável ir com Edgar Atelino ao en-

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26contro de Guilherme e oferecer-lhe a coroa. O comportamento de Guilherme, no começo, foi moderado. Mas o atrevimento de seus guerreiros normandos... Como está se sentindo agora, minha querida? - continuou ele, voltando-se para Alice enquanto falava.- Tão molhada quanto antes - respondeu Alice, com uma voz triste. - Não parece que isso vai me secar de jeito nenhum...- Nesse caso - disse o Dodó, pondo-se de p e falando num tom de respeito -, eu proponho que a reunião seja interrompida para a formulação de providências mais eficazes...- Fale de um jeito que se entenda - disse o filhote de Águia. - Eu não entendi nem metade das palavras complicadas que você disse. E tem mais: acho que nem você entendeu - e se abaixou para esconder um sorriso. Algumas das outras aves também deram risinhos de zombaria.- O que eu queria dizer - respondeu o Dodó meio ofendido - é que o melhor jeito de nós ficarmos secos e uma corrida de Con-venção.- E o que é uma corrida de Convenção? - perguntou Alice. Não que estivesse muito interessada em saber, mas porque o Dodó parou um momento, esperando que alguém falasse alguma coisa e ninguém parecia disposto a dizer nada.- Bem, a melhor maneira de explicar isso é fazendo. (E como você mesmo pode querer testar a coisa num dia de inverno, vou lhe dizer como foi que o Dodó fez.)

Primeiro, ele desenhou no chão uma pista de corrida, no formato de um círculo (“A forma exata não importa”, ele explicou); em seguida, o grupo foi todo distribuído ao longo da pista. Não havia essa história de “um, dois, três e já!”. Cada um começava a correr quando quisesse e parava quando achasse melhor, de modo que não era fácil saber quando a corrida tinha terminado. Quando, porém, eles já haviam corrido uma meia hora e já estavam com-pletamente secos, o Dodó gritou de repente: - A corrida acabou!Todos se reuniram então ao redor dele, cansados, e perguntaram:- Mas quem foi que ganhou?O Dodó não soube responder a essa pergunta sem antes pensar um bocado. Por isso, ficou sentado um tempão, com o dedo na testa (a posição típica em que os grandes escritores aparecem nos retratos), enquanto os demais esperavam em silêncio. Até que, finalmente, o Dodó anunciou:- Todo mundo ganhou e todos devem receber prêmios.- Mas quem vai entregar os prêmios? - perguntou um coro de vozes.- Ora bolas, ela, é claro - respondeu o Dodó, apontando para Alice com um dedo. E a turma toda começou logo a gritar em volta de Alice:- Prêmios! Prêmios!Não sabendo o que fazer, Alice, em desespero de causa, enfiou a

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27- Minha história é como um rabisco longo e triste - disse o Rato, suspirando.- É, de fato, um rabicho muito longo - comentou Alice, entenden-do mal o que o Rato havia dito e olhando surpresa para o rabinho dele. - Mas por que você diz que ele é triste?Ela continuou confusa a respeito do que o Rato dizia; assim, a id-eia que ela fez da história que ele contava foi mais ou menos esta:

mão no bolso e tirou um saquinho de doces (felizmente, a água salgada não tinha entrado nele) e os distribuiu como prêmios. Havia exatamente um para cada um.- Mas ela deve ganhar um prêmio também - disse o Rato.- Claro! - respondeu o Dodó muito sério. - O que mais você tem no bolso? - perguntou para Alice.- Só um dedal - respondeu Alice meio triste.Então todos se reuniram em volta dela mais uma vez, enquanto o Dodó, com um jeito cerimonioso, a presenteava com o dedal, dizendo:- Nós lhe rogamos que aceite este elegante dedal.E, quando terminou essa espécie de discurso, a turma toda aplaudiu. Alice achou tudo aquilo muito absurdo, mas, como todos estavam muito sérios, ela não se atreveu a rir; apenas se curvou em agradecimento e pegou o dedal com o maior respeito.Em seguida, passaram a comer os doces, fazendo grande ruído e confusão. As aves grandes reclamavam que as balas eram peque-nas demais, enquanto as aves menores se engasgavam e tinham que receber tapas nas costas. Quando tudo acabou, sentaram-se em círculo de novo e pediram ao Rato que lhes contasse mais alguma coisa.- Você prometeu que iria contar a sua história, lembra? - disse Alice. - E a razão pela qual você odiava G e C - sussurrou, com medo de que ele se ofendesse novamente.

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29Era o Coelho Branco que voltava, saltitando

devagar e olhando com ansiedade ao seu redor, como se tivesse perdido alguma coisa. Alice o ouviu murmurar consigo mesmo:- A Duquesa! A Duquesa! Ai, minhas pobres patas! Ai, minha pele e meus bigodes. Ela vai mandar me executar! Isso é tão certo como uma raposa é uma raposa! Onde será que eu os deixei cair, meu Deus?Alice logo adivinhou que ele estava procurando o leque e o par de luvas brancas. Cheia de boa vontade, se pôs a procurá-los, olhan-do por todo lado, mas não via nem a sombra deles. Tudo parecia ter mudado desde que ela caíra na lagoa. A sala grande, com a mesa de vidro e a portinha, tinha desaparecido completamente.Quando o Coelho viu Alice procurando suas coisas, gritou com raiva:- E então, Mariana, o que é que você esta fazendo aqui? Corra já pra casa e me apanhe um par de luvas e um leque! Já, já!Alice ficou tão assustada que correu na direção que o Coelho indicava, sem ter tempo para explicar o engano que ele havia cometido.- Ele me tomou pela empregada - falou Alice consigo mesma enquanto corria. - Que grande surpresa ele vai ter quando desco-brir quem eu sou na realidade. Mas, por enquanto, é melhor eu ir

buscar seu leque e suas luvas... isto é, se conseguir achá-los.Logo ela chegou a uma casinha muito bonita, em cuja porta havia uma placa de bronze, lustrada, com o nome COELHO B gravado nela. Alice entrou sem bater, subiu correndo as escadas, mor-rendo de medo de encontrar a verdadeira Mariana e ser tocada da casa antes mesmo de ter encontrado o leque e as luvas.“Que coisa esquisita”, pensou Alice, “ficar obedecendo às ordens de um coelho! Só falta agora a Diná começar a me dar ordens também!”E ela se pôs a imaginar o tipo de coisas que poderiam acontecer. Sua governanta chamando: “Senhorita Alice, venha já para cá e apronte-se para o seu passeio!“. E ela responderia: “Espere só um instantinho, minha senhora, porque eu tenho de ficar vigiando esse buraco de rato, até que a Diná volte, para que ele não fuja...”.- Eu só acho - completou Alice, em voz alta - que eles nunca iriam deixar a Diná ficar lá em casa, se ela se pusesse a dar ordens para todo mundo desse jeito!A essa altura, ela tinha entrado num quarto pequeno, bem-arru-mado, com um leque e um par de luvinhas brancas. Apanhou-os e já estava saindo, quando seus olhos deram com uma garrafinha perto de um óculos. Dessa vez não havia nenhum rótulo com as palavras BEBA-ME. Mas, assim mesmo ela destampou e a levou à boca.- Eu sei que alguma coisa interessante na certa há de acontecer

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30– disse ela. - É o que sempre ocorre quando bebo ou como qualquer coisa por aqui. Portanto, deixe-me ver do que essa gar-rafinha é capaz. Espero que me faça crescer de novo, pois eu já estou farta de ser essa coisinha de nada.Foi o que aconteceu e muito mais cedo do que ela esperava. Antes que tivesse bebido metade da garrafa, sentiu sua cabeça sendo pressionada contra o teto, de forma que teve de se agachar toda, para evitar que seu pescoço se quebrasse. Ela largou então a garrafa, dizendo:- Já chega... Espero não crescer mais que isso... Do jeito que eu estou, já não posso passar pela porta... Acho que não devia ter bebido tanto.Mas... minha nossa! Já era tarde demais para se lamentar! Ela con-tinuou crescendo e crescendo... Logo teve de se ajoelhar no chão. Quando nem isso adiantava mais, teve de se deitar no chão, com um cotovelo apoiado contra a porta e o outro braço passando por baixo da cabeça. Mas como ela ainda continuava crescendo, enfiou um braço para fora da janela e um pé pela chaminé. Por fim, disse para si mesma: “Agora, o que quer que aconteça, não há mais nada que eu possa fazer. Meu Deus, o que será de mim?”.Para sorte de Alice, o efeito da garrafinha já tinha se completado e ela não cresceu mais. Mas se achava numa situação muito desconfortável e parecia não haver nenhum jeito de conseguir sair daquele quarto, o que fez com que se sentisse muito, muito triste.

“Era bem mais gostoso lá em casa”, pensou, “quando não se fica-va crescendo e diminuindo e recebendo ordens de ratos e coelhos. Eu quase preferia não ter entrado naquela toca de coelho... e no entanto... e no entanto... Esse tipo de vida é tão curioso, sabe? Eu fico pensando: o que será aconteceu comigo? Quando lia contos de fada, eu achava que aquele tipo de coisa nunca acontecia, mas agora... Eis-me aqui bem no meio de um deles! Eu tenho absoluta certeza de que deve existir um livro escrito sobre mim. E quando crescer, vou escrever um...” - Mas, espere, já estou crescida agora - acrescentou em voz alta, num tom infeliz. - Pelo menos, não há mais nenhum espaço neste quarto para que eu ainda possa crescer mais aqui.“Isso quer dizer então...”, pensou Alice, “que eu nunca vou ter mais idade do que tenho agora? Bem, por um lado, isso parece muito gostoso... não ser nunca uma velha... mas, por outro lado... ter que fazer lições para sempre! Ah, não, eu detestaria isso!”“Ah, Alice, sua boba!”, respondeu para si mesma. “Como é que pode fazer lições aqui? Não há sequer espaço para você, quanto mais para qualquer livro de lições!”E assim ela continuou falando consigo mesma, ora perguntando, ora respondendo, como numa verdadeira conversa. Após alguns minutos,porém, ouviu uma voz do lado de fora e calou-se para escutar melhor.- Mariana! Mariana! - dizia a voz. – Traga-me as luvas já!

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31Um ruído de passos começou a vir da escada. Alice sabia que era o Coelho procurando por ela e tremeu até chacoalhar a casa, esquecendo completamente que ela era agora umas cem vezes maior que o Coelho e que, portanto, não tinha motivos para ter medo dele.Nesse instante, o Coelho chegou até a porta e tentou abri-la, mas, como o cotovelo de Alice estava todo apoiado nela, ela não conseguiu entrar. Alice ouviu-o dizer: - Então eu vou dar a volta e entrar pela janela.“Isso é que não”, pensou Alice. E, assim que ela o sentiu chegar debaixo da janela, esticou de repente o braço e ameaçou pegar o Coelho. Não conseguiu pegá-lo, mas escutou um gritinho hor-rorizado e o barulho de uma queda, algo assim como o vidro quebrado de uma estufa de plantas.Ela ouviu em seguida a voz furiosa do Coelho:- Pati, Pati, onde está você?Logo veio uma voz que ela nunca tinha ouvido antes:- Eu to aqui! Colhendo maças, meu sinhô!- Essa é muito boa! Colhendo maças! – disse o Coelho, cheio de raiva.- Venha já aqui! Ajude-me a sair disto! (Mais barulho de vidro quebrado.) Agora me diga uma coisa, Pati: o que é aquilo na janela?- Tá mais que certo que é um braço, meu sinhó! (ele pronunciava

barço)- Um braço, seu burro? Alguma vez já se viu um braço daquele tamanho? Ele ocupa a janela inteira!- Tá mais que certo que ocupa, meu sinhô, mas inda anssim não deixa de sê um braço.- Bem, ele não tem nada que estar fazendo lá: vá e tire-o dali!Houve um longo silêncio depois disso. Alice só conseguia ouvir alguns cochichos como:- Tá mais que certo que eu não gosto disso, meu sinhô, de jeito nenhum!- Faça como eu lhe mandei, seu covarde!Alice ameaçou apanhá-los de novo e dessa vez houve dois gritin-hos assustados e mais barulho de vidros quebrados.“Nossa, como deve haver estufas por aí!”, pensou Alice. “Fico imaginando o que eles vão fazer agora. Se vão me puxar pela janela, eu até gostaria que conseguissem. O que eu não quero é ficar aqui nem mais um pouco!”E não ouviu mais nada por algum tempo, até que chegou a ela o ruído de uma pequena carreta e o barulho de uma multidão de vozes falando juntas. Ela pôde perceber apenas algumas palavras.- Onde está a outra escada? - Eu só pude trazer uma; o Gui é que está com a outra... – Gui! Traga-a aqui, rapaz... Aqui, ponha nesse canto... - Näo... não, primeiro amarre as duas juntas... Elas não chegam nem à metade ainda... - Ah, chegam sim. Não seja

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32chato!... - Gui! Pegue essa corda... Será que o teto aguenta? Cui-dado com a telha solta... Ai, lá vem ela! Atenção, abaixa a cabeça! (barulhäo de coisa quebrando) – Então! Quem fez isso? - Foi o Gui, acho. - Bem, quem é que vai descer pela chaminé? - Eu é que não! Vá você! - Eu? De jeito nenhum! Quem vai é o Gui... Tá vendo, Gui, o patrão tá dizendo que é você quem desce pela chaminé!- Ah! Então o Gui vai descer pela chaminé, não é? - disse Alice para si mesma. - Por que empurram tudo para o Gui? Eu é que não queria estar napele dele: essa lareira é bem estreita, mas da muito bem para eu dar um chutinho...Ela afundou o pé o quanto pôde para dentro da chaminé e aguar-dou até ouvir um animalzinho (não conseguia saber de que tipo ele era) se arrastando bem em cima do seu pé.“É o Gui”, pensou e deu-lhe então um ligeiro pontapé, esperando para ver o que acontecia.A primeira coisa que ela ouviu foi um coro de vozes dizendo:- Lá vai o Gui!E, logo depois, a voz do Coelho, que dizia:- Vão buscá-lo ali, junto da cerca.Primeiro fez-se silêncio, depois houve uma grande confusão de vozes, percebeu uma vozinha fraca e estridente (“Certamente é o Gui”, pensou ela):- Segura firme a cabeça dele.

- Lá vai cachaça.- Cuidado! Não afoga ele.- Como se sente, meu velho? O que lhe aconteceu? Conte para a gente.- Até que por fim, Alice percebeu uma vozinha fraca e estridente (Certamente é o Gui”, pensou ela):- Bem, eu não sei como foi... Poxa, obrigado, chega de cachaça... Estou melhor agora, mas um pouco tonto... tudo o que sei é que uma coisa me atingiu por baixo, como um boneco de molas, e eu voei como um foguete!- Voou mesmo, amigão! - disseram os outros.- Nós vamos ter que pôr fogo na casa! - disse o Coelho.Alice então gritou com todas as suas forças:- Se você fizer isso, eu mando a Diná pegar vocês!Na mesma hora, fez-se um silêncio mortal e Alice pensou con-sigo: “O que eles vão fazer agora?”.Após alguns minutos, o movimento recomeçou e Alice ouviu o Coelho dizer:- Um carrinho cheio vai dar conta disso.“Um carrinho cheio do quê?”, pensou Alice.Alice não pôde continuar pensando, pois logo uma chuva de pedrinhas repicou pela janela, algumas atingindo-a no rosto.- Vou pôr um ponto final nessa história - disse ela; e gritou para fora: - Acho melhor não fazerem isso de novo!

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33O que fez voltar o silêncio mortal. Alice então reparou, com sur-presa, que as pedrinhas se transformavam em pedacinhos de bolo assim que caíam no chão, o que lhe deu uma ótima ideia:“Se eu comer um desses bolos”, pensou, “tenho certeza de que vou mudar de tamanho: e já que não dá para ficar maior, devo ficar menor, acho...”Então ela engoliu um dos bolos e percebeu, contente, que encol-hia bem depressa. Assim que ficou bem pequena para passar pela porta, saiu correndo da casa e encontrou uma grande multidão de pássaros e peque nos animais do lado de fora.Gui, o Lagarto, estava no meio deles, amparado por dois porquin-hos-da-índia, que lhe serviam alguma coisa numa garrafa. Todos eles correram na direção de Alice, mas ela escapuliu tão depressa quanto pôde e logo se viu a salvo num denso bosque.- A primeira coisa que eu tenho a fazer - disse Alice enquanto caminhava - é voltar ao meu tamanho normal; e a segunda é en-contrar o caminho que leva àquele jardim maravilhoso. Acho que esse é o melhor plano.Parecia ser de fato um excelente plano; a única dificuldade era que ela não sabia como realizá-lo. Enquanto observava entre as árvores, com ansiedade, um latido curto mas forte, bem em cima da sua cabeça, fez com que erguesse os olhos rapidamente.Um cachorrinho enorme olhava para ela, esticando devagar sua patinha para tentar alcançá-la.

- Pobre coisinha! - disse Alice num tom suave, tentando assobiar para ele, mas ao mesmo tempo com um medo terrível de que ele pudesse estar com fome, pois, nesse caso, é muito provável que a devorasse, apesar de toda a sua gentileza.Sem saber muito bem o que fazer, ela apanhou uma varinha e a estendeu para o cachorrinho, o que o fez pular de alegria ime-diatamente. Ele latia e corria em direção ao graveto, disposto a abocanhá-lo. Alice fugiu então para trás de um enorme cardo, com medo de ser pisoteada. Assim que ela aparecia de um dos lados do cardo, o cachorrinho corria para lá, latindo e pulando, e tentava pegar a varinha. Quando finalmente ele ficou cansado, respirando rapidamente e pondo a língua de fora, sentou-se num canto, com os olhos meio fechados.Pareceu então um bom momento para Alice escapar. E foi o que ela fez, correndo até ficar sem fôlego e até que os latidos do cachorrinho desaparecessem na distância.- Mas, apesar de tudo, que graça de cachorrinho ele era! - disse Al-ice, enquanto se recostava num pé de violetas, abanando-se com uma das folhas. Pôs-se a pensar então:“Puxa vida! Eu não posso me esquecer de que tenho que crescer novamente. Deixe-me ver... Como é que vou fazer? Acho que eu tenho de comer ou beber alguma coisa. Mas a grande questão é: o quê?”Sem dúvida alguma, essa era a grande questão... Alice observou

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34as flores e a grama ao redor, mas não havia nada que parecesse próprio para comer ou beber. Havia um grande cogumelo perto dela, quase do seu tamanho, e depois de olhar embaixo dele, dos dois lados e atrás, ocorreu-lhe que poderia muito bem olhar o que é que havia em cima dele também.Ficou na ponta dos pés e deu uma espiada na beira do cogumelo. Seus olhos encontraram imediatamente os de uma grande lagarta azul, que repousava lá no alto, com os braços cruzados, fuma-ndo calmamente um narguilé, sem se dar conta de nada, nem de ninguém.

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37A Lagarta e Alice se olharam por algum tempo

em silêncio. Por fim, ela tirou o narguilé da boca e disse, dirigin-do-se a Alice com uma voz calma e sonolenta:- É você?Não foi um modo muito encorajador de começar a conversa. Alice disse um pouco acanhada:- Eu neste momento não sei muito bem, minha senhora... Quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que mudei várias vezes...- O que você quer dizer com isso? - perguntou a Lagarta seca-mente. – Pode-se explicar melhor?- Eu acho que não consigo me explicar, minha senhora, pois não sou eu mesma, como a senhora pode ver.- Não vejo nada... - disse a Lagarta.- Receio que eu não possa ser mais clara - respondeu Alice edu-cada - já que, para começar, eu mesma não consigo entender o que se passa. E, além do mais, ficar de tantos tamanhos diferentes num só dia é uma coisa que deixa a gente muito confusa.-De jeito nenhum - disse a Lagarta.- Bem, talvez a senhora não tenha passado por isso ainda - disse Alice -, quando a senhora tiver de se transformar numa crisálida e depois numa borboleta, como vai acontecer um dia, a senhora

sabe, então eu acho que nesse dia a senhora vai achar a mudança um bocadinho esquisita, não vai?- Nem um pouco... - respondeu a Lagarta.- Bem, talvez a sua maneira de sentir as coisas seja diferente - disse Alice - O que eu sei é que tudo isso ia parecer muito esquisito para mim.- Para você? - disse a Lagarta com pouco caso. - E quem é você?Isso fez com que elas voltassem de novo para o começo da conversa. Alice já estava se sentindo irritada com essa mania que tinha a Lagarta de ficar só dizendo frases curtas. Assumiu então um ar muito seno e concluiu:- Acho que é a senhora que deve me contar primeiro quem é.- E por quê? - perguntou a Lagarta.Essa pergunta deixou Alice ainda mais confusa. Como não con-seguia achar nenhuma boa razão e a Lagarta parecia estar muito incomodada, ela se virou e foi embora.- Volte aqui! - chamou a Lagarta. - Tenho uma coisa importante para dizer. Isso soou como algo interessante. Alice deu meia volta e retor-nou.- Acalme-se - disse a Lagarta.- Isso é tudo que a senhora tem a dizer? - perguntou Alice, se esforçando para controlar a raiva.- Não - disse a Lagarta.

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38Alice ficou aguardando com alguma paciência, até que a Lagarta soprou algumas baforadas de fumaça, descruzou os braços, tirou o narguilé da boca e falou:- Então você acha que está mudada, não e?- Acho que sim, minha senhora - disse Alice. - Eu não consigo lembrar as coisas como antes, nem me manter de um mesmo tamanho por mais de dez minutos!- Que tipo de coisas você não consegue lembrar? - perguntou a Lagarta.- Bem, eu tentei recitar “Diverte-se o fofo crocodilo”, mas saiu tudo diferente - respondeu Alice, com uma Voz muito triste.- Então tente recitar “Estás Velho, Seu Zé” - disse a Lagarta.Alice juntou as mãos e começou:

“Estás velho, Seu Zé”, disse o petiz, `Oteucabeloficoutodobranco,Mas de ponta cabeça dormes ƒeliz. Tem cabimento? Sejas ƒranco!“ “Quando jovem”, respondeu ao pimpolho, “Achava que isso achatava os miolos, Mas como até ajuda a matar piolho, Deixo a preocupação para os tolos.” Mas estás velho, é o que importa”,Disse o moço, “e ainda engordaste à beça,

Entras porém às cambalhotas a porta, Veja lá se pode uma coisa dessa!” Disse o pai, chacoalhando a cabeleira, Eu moço, mantinha o corpo alinhado, Graças ao Elixir de Macaxeira, Se quiseres, tenho ainda um bocado”

”Ah Cê ta’ velho”, repetiu o pixote,“E embora com poucos dentes, e moles,Comestes o ganso todo e o ƒrangote,Que forças tens, que tudo mordes e engoles”

“Quando jovem, de cabeça oca”,Disse o velho, “em todos os lugares,Que eu ia, discutia e batia boca,Tomando bem ƒortes os maxilares.”

Bem sei que és velho”, disse o garoto,“Mastensosolhosfirmesdeumpetiz,Ao ponto que um gato e um gafanhoto,Equilibras na ponta do nariz.”

“Arre! Cê já ƒalou muita asneira”Reclamou o velho, bravo a valer,“Chega! Acabou-se a brincadeira.Vá enxugar chuva ou te ponho a correr!”

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39- Você não recitou certo - disse a Lagarta.- Acho que eu não recitei completamente certo - disse Alice, um pouco acanhada -Algumas palavras mudaram.- Está errado do começo ao fim - disse a Lagarta com muita certeza.Ambas ficaram em silêncio por alguns instantes.A Lagarta foi a primeira a voltar a falar:- De que tamanho você quer ficar? ¬ perguntou.-Ah, eu não faço muita questão do tamanho - respondeu Alice rapidamente. - Só que a gente não gosta de ficar mudando assim o tempo todo, sabe?- Eu não sei - disse a Lagarta.- Bem, na verdade, eu gostaria de ficar um bocadinho maior, se a senhora não se incomodar - disse Alice. – Afinal de contas, oito centímetros é um tamanhinho de nada...- Trata-se de um tamanho excelente! - disse a Lagarta zangada, erguendo-se enquanto falava (ela media exatamente oito centimet-ros).- Mas eu não estou acostumada com essa altura - reclamou Alice, num tom cheio de dor, E falou consigo mesma: - Gostaria que as criaturas não se ofendessem assim tão facilmente!Você vai se acostumar - disse a Lagarta, pondo o narguilé na boca e começando a fumar de novo. Mais uma vez, Alice teve de esperar com paciência enquanto na lagarta acabava de fumas. Em

seguida, ela se espreguiçou, se sacudiu, desceu do cogumelo e foi se arrastando pela grama, dizendo enquanto se afastava:- Um lado te fará crescer e o outro lado te fará diminuir.‘Um lado do quê? O outro lado do quê?” - pensou Alice.- Do cogumelo, e claro! - disse a Lagarta, como se tivesse ouvido o pensamento de Alice. E sumiu de vista.Alice ficou olhando pensativa para o cogumelo por um minuto, tentando descobrir quais eram os dois lados. Como o Cogumelo era perfeitamente redondo, ela achou que essa era uma questão muito difícil. Por fim, esticou os braços o mais que pôde em volta do cogumelo e tirou um pedacinho de cada lado.- E agora, qual é qual? - disse para si mesma e deu uma mordid-inha no pedaço da sua mão direita para ver o efeito. No mesmo instante, sentiu um violento golpe no queixo: ele tinha ido bater nos seus pés!Ela ficou muito assustada com essa mudança repentina, mas per-cebeu que não havia tempo a perder, pois continuava diminuindo rapidamente.Tentou comer depressa o pedaço da outra mão, mas, como o queixo estavaespremido pelos pés, o pedaço mal entrava na sua boca. Até que finalmente conseguiu engolir o outro pedaço. ***

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40- Ufa! Até que enfim a minha cabeça está livre! - disse Alice, com enorme alegria. Mas a alegria só durou ate ela descobrir que não conseguia mais ver os seus ombros. Olhando para baixo, só via um pescoção enorme, como se fosse um imenso caule, que saía

de um mar de folhagens verdes bem lá embaixo dela.- O que será que significa esse verde

todo? - perguntou-se Alice. - E onde é que foram parar os meus ombros?

Ah, e as minhas pobres mãos! Por que é que eu não consigo vê-1as?

Como parecia que ela não iria mais conseguir trazer

as mãos à altura da cabeça, tentou baixar a cabeça até elas e

descobriu, cheia de alegria, que

seu pescoço se dobrava em qualquer

direção, como uma verdadeira ser-

pente. Ela tinha conse-

guido curvá-lo num zigue-zague gracioso e estava pronta para mergulhar na folhagem - que ela descobriu não ser outra coisa senão os galhos das árvores que estavam debaixo dela - quando um forte chiado a fez voltar-se depressa. Era uma pomba enorme que havia voado até seu rosto e lhe batia violentamente com as asas.- Uma serpente! - gritou a Pomba.- Eu não sou uma serpente! - disse Alice, indignada. – Deixe-me em paz!- Uma serpente, repito! - insistiu a Pomba, mas já num tom mais controlado. E acrescentou ainda, meio entre soluços: ~ Eu já experimentei de tudo, mas nada parece dar certo!- Eu não tenho a menor ideia do que é que você está falando – disse Alice.- Eu já tentei as raízes das árvores, tentei os barrancos, tentei as cercas -continuou a Pomba sem prestar atenção nela -, mas sem-pre me aparecem as serpentes! Elas não param nunca!Alice estava cada vez mais intrigada, mas percebeu que não adian-tava falar nada até a Pomba acabar.- Como se já não fosse um trabalhão enorme chocar os ovos – disse a Pomba -, ainda preciso ficar vigiando as serpentes noite e dia! Faz três semanas que não prego o olho!- Sinto muito pelo seu aborrecimento - disse Alice, começando a compreender do que se tratava.

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41- E justo agora, que eu me instalei na árvore mais alta da floresta e achava que estava livre delas, elas parecem descer se enroscando lá do céu! Irra! Como odeio as serpentes!- Mas eu já disse que não sou uma serpente! - insistiu Alice. – Sou uma... uma...- Raios! O que você é? - gritou a Pomba. - Percebo que você esta tentando inventar alguma coisa!- Eu... eu sou uma menina - disse Alice meio em dúvida, lembran-do as inúmeras mudanças pelas quais já tinha passado durante o dia.- Que história mais engraçadinha! Conte outra! - disse a Pomba com profundo desprezo. - Eu já vi muitas meninas na minha vida, mas nenhuma com um pescocão como esse! Näo, não e nào! Você é uma serpente e não adianta negar. Suponho que você vá dizer agora que nunca provou um ovo!- Mas é claro que eu já provei ovos - disse Alice, que não cos-tumava mentir. -Você deve saber que as meninas comem ovos, assim como as serpentes...- Eu não acredito - respondeu a Pomba. - Mas, se elas fazem isso, então é porque são um tipo de serpente... É o que eu digo!Alice nunca havia pensado nisso e ficou em silêncio por alguns minutos, o que deu a Pomba a oportunidade de acrescentar:- Eu sei muito bem que você está procurando ovos, e pouco me importa se você é uma menina ou uma serpente.

- Mas importa muito para mim - disse Alice mais que depressa. – Além do mais, eu não estou procurando ovos e, se estivesse, não iria querer os seus: não gosto de ovos crus!- Se é assim, então suma daqui! - disse a Pomba, com uma cara rabugenta, sentando de novo no ninho.Alice se enfiou como pôde pelo meio das árvores, enroscando o pescoço de vez em quando em algum galho. Logo se lembrou de que ainda tinha os pedaços de cogumelo e começou então a mordiscá-los aos poucos, um e outro de cada vez, até chegar ao seu tamanho normal.Fazia tanto tempo que ela não tinha mais aquele tamanho, que demorou um pouco para se acostumar com ele. Voltou então a falar consigo mesma:- Ufa! Metade do meu plano já deu certo! Como são estranhas essas mudanças... Mas enfim estou de volta ao meu tamanho nor-mal. O próximo passo é retornar àquele lindo jardim. Deixe-me ver: como é que eu vou fazer?Caminhava com esses pensamentos, quando de repente se viu numa clareira, na qual havia uma casinha de pouco mais de um metro de altura.“Eu não posso me aproximar, nesse meu tamanho, de quem quer que more ai”, pensou Alice. “Ia ser um tremendo susto para eles.”Põs-se então a mordiscar o pedaço de cogumelo da mão direita até atingir uns vinte centímetros de altura.

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43Por alguns instantes, Alice ficou parada con-

templando a casa e pensando no que iria fazer, quando, de repente, surgiu correndo do bosque um criado, com uma roupa de serviço muito elegante (ela achou que ele era um criado porque estava vestido com aquele uniforme tão distinto; caso contrário, a julgar somente pela sua Cara, ela diria que ele era um peixe).O Criado-Peixe bateu na porta com força. Um outro criado com uniforme de cara redonda e olhos grandes como uma rã, foi quem abriu a porta. Alice percebeu que os dois usavam perucas brancas e encaracoladas. Ela ficou muito curiosa para saber o que estava acontecendo e se aproximou mais um pouco para escutar.O Criado-Peixe tirou de baixo do braço uma carta enorme, quase do tamanho dele, e a entregou ao outro, dizendo, com muita cerimônia:- É para a Duquesa! Trata-se de um convite da Rainha para jogar toque-emboque.O Criado-Rã repetiu no mesmo tom cerimonioso, apenas mu-dando um pouco a ordem das palavras:- É da Rainha. Trata-se de um convite para a Duquesa jogar toque-emboque.Os dois então se curvaram ao mesmo tempo e suas perucas se embaraçaram uma na outra.

Alice riu tanto com isso, que teve de voltar correndo para o bosque, com medo de que a ouvissem. Quando ela espiou de novo, o Criado-Peixe já tinha ido embora e o outro estava sentado junto à porta, olhando o céu embasbacado,Alice avançou devagarinho até a porta e bateu.- Não adianta bater, por duas boas razões - disse o Criado. - Primeira, porque eu estou do mesmo lado da porta que você. Seg-unda, porque estão fazendo tanto barulho lá dentro, que ninguém vai te ouvir.E, de fato, havia uma tremenda barulheira lá dentro: uivos, espir-ros e, de vez em quando, um ruído de coisas se quebrando, como se pratos e panelas estivessem sendo espatifados.- Mas, então, por favor - disse Alice -, como eu faço para entrar?O Criado continuou falando sem prestar atenção nela:- Se nós estivéssemos cada um de um lado da porta, então teria algum.sentido você ficar batendo...Ele continuava olhando distraído para o céu enquanto falava e Alice achou isso muito mal educado da parte dele.“Quem sabe ele não tem culpa”, pensou Alice. “Afinal os olhos dele ficam tão juntos e tão em cima da cabeça... Mas ele podia pelo menos responder às perguntas.”- Como eu faço para entrar? - repetiu ela em voz alta.- Vou ficar sentado aqui até amanhã... - disse ele.Nesse momento, a porta se abriu e uma tigela veio voando direto

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44na cabeça do Criado, mas só raspou seu nariz, indo se arrebentar numa árvore atrás dele.- ...ou até depois de amanha, talvez... - continuou o Criado, com a mesma calma, como se nada tivesse acontecido.- Como é que eu faço para entrar? - perguntou novamente Alice, com uma voz mais alta ainda.- Há alguma razão para você entrar? - perguntou o Criado. - Essa é a primeira questão, como você sabe.Alice sabia muito bem disso, é claro, só não gostava que falassem com ela desse jeito.- É uma coisa terrível - murmurou para si mesma - o modo como essas criaturas discutem com a gente. É de fazer qualquer um louco!O Criado continuou então falando naquele mesmo tom vago de antes:- Eu vou ficar sentado aqui, uma vez ou outra, por muitos e muitos dias.- Mas o que é que eu devo fazer? - perguntou Alice.- Faça o que você quiser - disse o Criado, e se pôs a assobiar.- Ah! Não adianta nada falar com ele - disse ela, desistindo. – Trata-se de um perfeito idiota!E então abriu a porta e entrou. A porta levava direto a uma grande cozinha, que se achava todinha cheia de fumaça. A Duquesa estava sentada bem no meio, num banquinho de três

pés, cuidando de um bebê.A cozinheira trabalhava no fogão, mexendo um enorme caldeirão, que parecia estar cheio de sopa.Alice começou logo a espirrar e pensou: “Deve haver pimenta demais naquela sopa, com certeza!”.Certamente havia muita pimenta no ar. Até mesmo a Duquesa espirrava de vez em quando. Quanto ao bebê, ele ora espirrava, ora berrava, o tempo todo sem parar. As únicas criaturas que não espirravam naquela cozinha eram a cozinheira e um grande gato, sentado junto ao forno, com um sorriso que ia de uma orelha à outra.Alice, muito acanhada, pois não sabia se era educado da sua parte ser a primeira a falar, perguntou:- Por favor, a senhora poderia me dizer por que seu gato sorri desse jeito?- Ele é um gato inglês - disse a Duquesa -, essa é a razão. Porco!Ela disse a última palavra de forma tão repentina e violenta, que Alice pulou na hora. Mas percebeu que a Duquesa se dirigia ao bebê e não a ela. Encheu-se então de coragem e continuou a falar:- Eu não sabia que gatos ingleses sorriam. Aliás, eu sempre achei que nenhum gato sabia sorrir- Todos eles sabem - disse a Duquesa - e a maioria deles sorri.- Eu não conheço nenhum que sorria - disse Alice muito educ-adamente, feliz por ter iniciado uma conversa.

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45- Você é que não sabe de quase nada - disse a Duquesa. - Essa é a verdade!Alice não gostou nem um pouco dessa observação da Duquesa e achou que era hora de mudar de assunto. Enquanto isso, a cozinheira tirou o caldeirão do fogo e começou a jogar tudo o que estava ao seu alcance na Duquesa e no bebê. Primeiro foram as ferragens da lareira; depois foi uma chuva de panelas, traves-sas e pratos. A Duquesa nem ligava, mesmo quando os objetos acertavam nela. E o bebê berrava de um tal modo agora, que nem dava para saber ao certo se tinham acertado nele também.- Ei, por favor, cuidado com o que você esta fazendo! - gritou Alice, pulando e se abaixando, cheia de terror. – Ai! Lá se vai o precioso narizinho dele! - disse, quando uma enorme travessa pas-sou raspando, quase atingindo o rosto do bebê; - Se cada um só cuidasse da sua própria vida - reclamou irritada a Duquesa -, o mundo andaria bem melhor e mais depressa.- O que não seria realmente uma vantagem - disse Alice, feliz por ter uma oportunidade de mostrar seus conhecimentos. - Pense só no que aconteceria com os dias e as noites. Pois, como a senhora sabe, a Terra leva vinte e quatro horas para dar uma volta em seu próprio eixo... Para a ciência, foi um achado...- Por falar em machado - disse a Duquesa -, corte a cabeça dela!Alice lançou um olhar ansioso para a cozinheira, vendo se ela pre-tendia atender a sugestão. Mas ela estava muito ocupada mexendo

a sopa e parecia não ouvir nada. Alice retomou então a conversa:- Bem, eu acho que são vinte e quatro horas, ou seriam doze? Eu...- Ora, não me aborreça - disse a Duquesa. - Eu nunca tive paciên-cia com números - e, dizendo isso, começou a acalentar o bebê, cantando uma canção de ninar e dando-lhe um chacoalhão no final de cada verso:

Ralha duro com o nenêe se ele espirrar, pode baterele quer é amolar você,o que ele gosta é de aborrecer.

Coro(no qual a cozinheira e o bebé entravam tambem)

Uau! Uau! Uau!

Quando se pôs a cantar a segunda parte da música, a Duquesa sacudia o bebê com tal força, para cima e para baixo, que ele começou a chorar aos berros e Alice mal pôde ouvir os versos:

Eugritofirmecommeumenino,e quando ele espirra, eu bato mesmo,

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46maselevaificarfeliz,euimagino,comendo pimenta com torresmo.

CoroUau! Uau! Uau!

Tome aqui! Você pode niná-lo um pouco, se quiser - disse a Duquesa, empurrando o bebê para Alice. - Eu tenho de ir me aprontar para jogar toque-emboque com a Rainha.E, dizendo isso, saiu da sala apressadamente. A cozinheira ainda lhe atirou uma frigideira enquanto ela se afastava, mas não acer-tou no alvo. Alice segurou o bebê com alguma dificuldade, pois se tratava de uma criaturinha muito estranha, que esticava os pés e os braços em todas as direções:“Exatamente como uma estrela-do-mar”, pensou Alice. A pobre coisinha roncava como uma máquina emperrada e não parava de se retorcer, de tal modo que Alice mal podia segurá-lo.Quando afinal conseguiu achar um modo de segurá-lo (que consistia em trancá-lo como uma espécie de nó, agarrando firme sua orelha direita e seu pé esquerdo, para que ele não se desamar-rasse), ela correu, levando-o para fora.“Se eu não levar essa criança”, pensou Alice, “eles vão terminar dando cabo dela em poucos dias. Se eu a deixasse, isso seria quase um assassinato.”Como Alice disse as últimas palavras em voz alta, o coitadinho

respondeu com um grunhido (a essa altura, ele já tinha parado de espirrar).- Pare de grunhir - disse Alice -, isso não são modos de se conver-sar.O nenê grunhiu de novo e Alice olhou ansiosa o seu rosto para ver o que se passava com ele. Sem dúvida ele tinha um nariz muito estranho: parecia mais um focinho que um nariz. Mesmo seus olhos eram pequenos demoais para um bebê. Alice não gos-tou nem um pouco da aparência dele.“Mas quem sabe é por causa do choro”, pensou, olhando seus olhos de novo para ver se neles havia lágrimas. Não, não havia lágrima alguma.- Se você está se transformando num porco, meu querido - disse Alice, muito séria -, então eu nada mais tenho a fazer por você, entendeu?!O coitadinho chorou de novo (ou grunhiu, é impossível dizer qual dos dois) e, por um momento, seguiram ambos em silêncio.Alice começou a pensar: “E agora, o que é que eu vou fazer com essa criatura quando eu voltar para casa?”.O bebê então grunhiu de novo, com uma tal violência, que ela o encarou assustada. Agora não podia haver nenhum engano: tratava-se, nem mais nem menos, de um verdadeiro porco. E ela achou que seria um absurdo continuar a carregá-lo.Ela o pôs no chão e ficou contente por ver que ele foi todo salti-

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47tante para o interior do bosque.- Se ele tivesse crescido - falou consigo -, teria se tornado uma criança horrorosa, mas, como porco, acho até que ele é muito bonitinho.E ela começou a pensar em outras crianças que conhecia e que ficariam muito bem como porcos: “Se pelo menos alguém con-hecesse um jeito de transformá-las...”,Foi quando se surpreendeu, ao ver o Gato Inglês sentado num galho de árvore a pouca distância dali. O Gato apenas sorriu quando viu Alice. Parecia muito simpático, ela pensou. Tinha, porém, garras muito longas e uma porção de dentes, de modo que ela considerou que deveria tratá-los com respeito.- Gatinho inglês - começou ela, meio tímida, pois não tinha muita certeza se ele iria gostar de ser tratado desse modo.O Gato apenas alargou um pouco o sorriso. “Ora vejam só! Parece que ele está gostando muito”, pensou Alice e foi em frente. - Você poderia me dizer, por gentileza, como é que eu faço para sair daqui?- Isso depende muito de para onde você pretende ir - disse o Gato.- Para mim tanto faz para onde quer que seja... - respondeu Alice.- Então, pouco importa o caminho que você tome - disse o Gato.- ...contanto que eu chegue em algum lugar... - acrescentou Alice, explicando-se melhor.

- Ah, então certamente você chegará lá se continuar andando bastante - respondeu o Gato.Alice achou que não se podia negar isso; tentou, portanto, uma outra pergunta:- Que tipo de gente vive por aqui?Naquela direção - disse o Gato, apontando com a pata direita – mora o Chapeleiro e naquela direção - fez ele, apontando com a outra pata - uma Lebre Aloprada. Visite qualquer um deles, tanto faz. Ambos são loucos.- Eu não quero ir parar no meio de gente maluca - observou Alice.- Ah, mas não adianta nada você querer ou não - disse o Gato. – Nós somos todos loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.- E como é que você sabe que eu sou louca? - perguntou Alice.- Bem, deve ser - disse o Gato - ou então você não teria vindo parar aqui.Alice não achou que isso provasse coisa alguma. Entretanto con-tinuou a conversa.- E como é que sabe que você é louco?- Comecemos considerando que um cachorro não é louco - re-spondeu o Gato. - Você concorda com isso?- Acho que sim - disse ela.- Nesse caso - continuou o Gato - lembre-se de que um cachorro rosna quando está bravo e abana o rabo quando está contente.

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Já eu rosno quando estou contente e abano o rabo quando estou bravo. Portanto, eu sou louco.- No seu caso, eu chamo de ronronar e não rosnar - disse Alice.

- Chame como quiser - disse o Gato. - Você vai jogar toque-emboque com a Rainha hoje?

- Eu gostaria muito - respondeu Alice - mas ainda não fui convidada.

- Você me encontrará lá - disse o Gato e desapareceu.

Alice não se surpreendeu muito com isso, pois já

estava ficando acostumada com o fato de acon-tecerem coisas estranhas.

Ela continuava olhando para o lugar de onde o Gato tinha sumido, quando de repente ele apareceu de

novo.- A propósito, o que foi que aconteceu

com o bebê? -

disse ele. – Eu quase ia me esquecendo de perguntar!- Ele se transformou num porco - respondeu Alice com toda a calma, como se o reaparecimento do Gato tivesse sido uma coisa perfeitamente natural.- Era o que eu tinha pensado - disse o Gato e desapareceu de novo.Alice aguardou um pouco, meio que esperando que ele aparecesse outra vez, mas como não veio, ela então caminhou na direção onde vivia a Lebre Aloprada.- Eu já vi chapeleiros antes... - disse ela para si mesma. -A Lebre A1oprada deve ser bem mais interessante.Assim que disse isso, olhou para cima: lá estava o Gato de novo, sentado no galho de uma árvore.- Você disse porco ou potro? - perguntou o Gato.- Eu disse porco - respondeu Alice - e gostaria que você não fi-casse aparecendo e sumindo assim tão de repente. Você me deixa completamente tonta.- Muito bem, então que seja como você quer - disse o Gato. E dessa vez ele foi sumindo bem devagar: começou pela ponta do rabo e acabou com um sorriso, que ficou visível ainda por algum tempo, enquanto todo o resto já tinha desaparecido.“Ora vejam só! Sempre vi gatos sem sorriso”, pensou Alice, “mas nunca tinha visto um sorriso sem um gato. É a coisa mais curiosa que eu já vi em toda a minha vida.”

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Alice não precisou andar muito para chegar à casa da Lebre Aloprada. Ela achou que tinha chegado na casa certa, pois as chaminés tinham forma de orelhas e o telhado era coberto de pele. Era uma casa tão grande que ela não quis se aproximar antes de mordiscar o pedaço de cogumelo da mão esquerda e crescer uns sessenta centímetros. Mesmo assim, foi até a casa com um pouco de receio, dizendo para si mesma:“E se afinal de contas ela estiver completamente maluca mesmo; Estou quase achando que eu deveria ter ido à casa do Chapeleiro, ao invés de vir para cá!”

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51Havia uma mesa posta, sob uma árvore, em

frente à casa onde a Lebre Aloprada e o Chapeleiro estavam tomando chá. Uma Marmota estava sentada entre eles, dormindo profundamente, e os dois a usavam como uma almofada, apoi-ando os cotovelos nela e conversando por cima da sua cabeça.“Deve ser muito desconfortável para a Marmota”, pensou Alice, “Mas, como ela está adormecida, acho que não esta nem ligando.”Era uma mesa muito comprida, mas, apesar disso, os três estavam amontoados num canto só e, assim que viram Alice chegar, puseram-se a gritar:- Não tem mais lugar! Não tem mais lugar!Alice respondeu com indignação:- Tem lugar demais! - e sentou-se numa grande poltrona, numa das pontas da mesa.- Aceita um pouco de vinho? - perguntou a Lebre Aloprada num tom mais cordial.Alice percorreu toda a mesa com os olhos, reparando que só havia chá.- Eu não vejo vinho nenhum! - observou ela.- Não há mesmo vinho nenhum - respondeu a Lebre Aloprada.- Pois então foi muita falta de educação da sua parte oferecer vinho - disse Alice com raiva.

- E foi muita falta de educação da sua parte sentar-se sem ter sido convidada - afirmou a Lebre Aloprada.- Eu não sabia que a mesa era sua - respondeu Alice -, e ela está posta para muito mais gente do que apenas três pessoas.- Você precisa cortar o cabelo - disse o Chapeleiro.Ele esteve observando Alice durante algum tempo e agora era a primeira vez que falava.- E você precisa aprender a não fazer comentários pessoais - disse Alice com severidade - Isso é muito grosseiro.O Chapeleiro arregalou os olhos ao ouvir isso; mas tudo o que ele disse foi:- Qual é a relação entre um corvo e uma escrivaninha?“Oba! Agora está começando a ficar divertido”, pensou Alice. “Estou feliz por eles terem começado a propor adivinhações.”-Acho que eu consigo acertar essa - acrescentou ela em voz alta.- Você quer dizer que acha que consegue adivinhar essa? – per-guntou a Lebre Aloprada.- Isso mesmo, exatamente - disse Alice.- Então você deve dizer o que acha - continuou a Lebre Aloprada.- Eu digo o que acho... – apressou-se em responder Alice - ou pelo menos... Pelo menos eu acho o que digo... É a mesma coisa, não é?- Não é nem um pouco a mesma coisa - disse o Chapeleiro -, pois da mesma forma você poderia dizer que “Eu vejo o que como” e

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52a mesma coisa que “Eu como o que vejo”!-Você pode do mesmo modo dizer que “Eu gosto daquilo que consigo” é a mesma coisa que “Eu consigo aquilo de que gosto”! - acrescentou a Lebre Aloprada.- Da mesma forma você pode dizer que “Eu respiro quando durmo” é a mesma coisa que “Eu durmo quando respiro”! - acrescentou a Marmota que parecia falar enquanto dormia.- No seu caso e de fato a mesma coisa - disse o Chapeleiro.E aqui a conversa foi interrompida, ficando o grupo em silêncio por alguns minutos, enquanto Alice meditava sobre as possíveis relações entre corvos e escrivaninhas, que, aliás, não eram muitas.O Chapeleiro foi o primeiro a romper o silêncio:- Que dia do mês e hoje? - perguntou ele, virando-se para Alice.Ele tinha tirado o relógio do bolso e o olhava inquieto, chacoal-hando-o de vez em quando e aproximando-o do ouvido. Alice pensou um pouco e respondeu:- Hoje é dia quatro.- Dois dias atrasado! - suspirou o Chapeleiro. - Eu bem disse que a manteiga não ia adiantar nada para fazer ele funcionar! - com-pletou, olhando furioso para a Lebre Aloprada.- Mas era manteiga da melhor - respondeu a Lebre Aloprada humildemente.- É, mas entraram migalhas de pão também - resmungou o Chapeleiro. - Você não devia ter posto a manteiga com a faca de

pão.A Lebre Aloprada pegou o relógio e ficou olhando para ele com uma cara triste. Não lhe ocorreu nada melhor para dizer do que o mesmo comentário:- Era de fato manteiga da melhor, sabe!Alice olhava por cima dos seus ombros com uma certa curiosi-dade,- Que relógio engraçado! - observou. - Ele diz o dia do mês, mas não diz que horas são!- E por que deveria? - resmungou o Chapeleiro. - Por acaso o seu relógio diz em que ano estamos?- É claro que não - respondeu Alice mais que depressa. - Mas é porque a gente fica muito tempo no mesmo ano.- Pois é exatamente isso que acontece com o meu relógio z disse o Chapeleiro.Alice ficou terrivelmente confusa. A resposta do Chapeleiro não fazia sentido nenhum para ela.- Eu não consigo entendê-lo de modo algum - disse ela da forma mais educada possível.- A Marmota está dormindo de novo - observou o Chapeleiro, enquanto derramava um pouco de chá quente no nariz dela.A Marmota sacudiu a cabeça e falou, sem abrir os olhos:- É claro, é claro! É exatamente o que eu ia comentar.- Você já achou a resposta da adivinhação? - perguntou o

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53Chapeleiro para Alice.- Não, eu desisto - respondeu ela. - Qual é a resposta?- Não tenho a menor idéia - disse o Chapeleiro.- Nem eu - acrescentou a Lebre Aloprada.Alice suspirou impaciente.- Acho que você poderia fazer coisa melhor com o tempo do que ficar desperdiçando com adivinhações que não têm resposta.- Se você conhecesse o Tempo como eu conheço - disse o Chapeleiro -, não estaria falando em coisa. Ele é uma pessoa.- Não entendo o que você quer dizer- disse Alice.- É claro que não! - disse o Chapeleiro, erguendo a cabeça com desprezo. - Eu até me atreveria a dizer que você nunca falou com o Tempo!- Talvez não - respondeu Alice cautelosamente. - Mas o que eu sei é que tenho de marcar o tempo quando estudo música.- Ahá! Eis a razão - disse o Chapeleiro. - O Tempo não tolera ser marcado. Mas, se você se der bem com ele, ele pode fazer quase tudo o que você quiser com o relógio. Por exemplo: suponha que sejam oito horas da manhã, hora de começar a estudar. Você só teria de sussurrar umas palavrinhas no ouvido do Tempo e, num piscar de olhos, meio-dia: o almoço esta na mesa!- Bem que eu gostaria - suspirou a Lebre Aloprada.- Seria uma maravilha, com toda certeza - disse Alice, pensativa. - Mas, nesse caso, eu ainda não estaria com fome, não é?

- Na mesma hora não, é certo - respondeu o Chapeleiro. - Mas você poderia manter o relógio em meio-dia por quanto tempo quisesse.- É assim que você faz? - perguntou Alice.O Chapeleiro fez que não com a cabeça e ficou triste.- Não, não é - respondeu. - Nós tivemos um desentendimento no ano passado, bem na época em que ela ficou louca, sabe? (E apontou a Lebre Aloprada com a colher de chá.) Foi no grande concerto oferecido pela Rainha de Copas, em que tinhamos que cantar:

Você, você, morceguinho o que faz fora do ninho?

- Acho que você conhece essa música, não?- Já ouvi alguma coisa assim - disse Alice.- Ela continua, sabe? - prosseguiu o Chapeleiro:

Sobre o mundo vai voando Pras estrelas vai em bando voa, voa...

Nesse momento a Marmota se sacudiu e começou a cantar en-quanto dormia:

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54-Voa, voa! Voa, voa!...E assim continuou, até que tiveram de beliscá-la para que ela parasse.- Pois bem, mal eu tinha terminado os primeiros versos - retomou o Chapeleiro - quando a Rainha se pôs a berrar:- Ele está matando o Tempo! Cortem a cabeça dele!- Que monstro horrível e selvagem - exclamou Alice.- E, desde então - concluiu o Chapeleiro num tom de profunda tristeza -, o Tempo não faz mais nada que eu lhe peço. São sem-pre seis horas agora.Uma ideia brilhou na cabeça de Alice:- Ah! Então é por isso que está todo o aparelho de chá na mesa?- Sim, essa é a razão - disse o Chapeleiro com um suspiro. - É sempre hora do chá e nos não temos nem tempo de lavar a louça nos intervalos.- Suponho que seja por isso que vocês ficam mudando de lugar em círculo ao redor da mesa - observou Alice.- Exatamente - confirmou o Chapeleiro. - Conforme as peças ficam usadas, nós mudamos de lugar.- Mas... E quando vocês chegarem ao começo de novo? - ar-riscou-se a perguntar Alice.- Que tal se nos mudássemos de assunto? - interrompeu a Lebre Aloprada bocejando. - Eu já estou ficando cansada disso. Pro-ponho que a mocinha nos conte uma história.

- Receio não saber nenhuma - disse Alice, meio assustada com a proposta.- Então é a Marmota quem vai nos contar! - gritaram os dois ao mesmo tempo. -Acorde, Marmota! - E beliscaram ambos a dorm-inhoca um de cada lado.A Marmota abriu os olhos devagar.- Eu não estava dormindo - disse com voz fraca e rouca. - Ouvi cada palavra que vocês estavam dizendo- Conte-nos uma história! - disse a Lebre Aloprada.- Sim, conte, conte! - pediu Alice.- E seja rápida, por favor - acrescentou o Chapeleiro -, porque, senão você vai adormecer de novo antes de acabar.- Era uma vez três irmãzinhas - começou a Marmota com uma pressa enorme. - E seus nomes eram Elza, Luisa e Teresa. Elas viviam no fundo de um poço...- E do que elas viviam? - perguntou Alice, que sempre tinha um grande interesse por tudo que se referisse a comer e a beber.- Viviam de melado - disse a Marmota, depois de ter pensado por um ou dois minutos.-Acontece que elas não poderiam viver assim, sabe? - observou Alice com delicadeza. - Elas acabariam ficando doentes.- Pois foi o que aconteceu - disse a Marmota. - Elas ficaram muito doentes.Alice tentou imaginar que estranho tipo de vida seria esse, mas

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55acabou ficando muito confusa e tornou a perguntar:- Mas por que elas viviam no fundo de um poço?- Tome um pouco mais de chá - sugeriu a Lebre Aloprada para Alice, num tom severo.- Eu ainda não tomei chá nenhum - respondeu Alice ofendida - e, portanto, não posso tomar um pouco mais.- Você quer dizer que não pode tomar menos - disse o Chapelei-ro. -É sempre mais fácil tomar mais que não tomar nada.- Ninguém pediu a sua opinião - reclamou Alice.- Quem é que está fazendo comentários pessoais agora? - pergun-tou o Chapeleiro, com ar de triunfo.Alice ficou completamente sem saber o que responder. Serviu-se de um pouco de chá e pão com manteiga. Voltou-se então para a Marmota e repetiu a pergunta:- Por que elas viviam no fundo de um poço?A Marmota levou novamente alguns minutos para pensar na questão, até que respondeu:- Era um poço de melado.- Mas uma coisa dessas não existe! - comentou Alice zangada.O Chapeleiro e a Lebre Aloprada protestaram contra a interrup-ção:- Psiu! Psiu!Muito aborrecida, a Marmota reclamou:- Se você não pode ser educada, é melhor que termine a história

você mesma.- Oh, não! Por favor, continuei - pediu Alice com delicadeza. – Prometo que não vou interromper de novo. Eu até admito que possa existir pelo menos um poço desses.- Um? Ora, vejam só - disse a Marmota indignada. No entanto, concordou em prosseguir.- E assim essas três irmãzinhas... Elas estavam aprendendo a tirar, vocês sabem...- O que elas tiravam? - perguntou Alice, esquecendo-se completa-mente de sua promessa.- Melado - respondeu a Marmota, dessa vez sem parar para pen-sar.- Eu quero uma xícara limpa - interrompeu o Chapeleiro. - Vamos todos avançar um lugar na mesa.Ele avançou conforme disse e a Marmota o acompanhou. A Lebre Aloprada foi para o lugar da Marmota e Alice, meio contra a sua vontade, foi para o lugar da Lebre Aloprada. O Chapeleiro foi o único que tirou vantagem da mudança. Alice ficou numa sit-uação muito pior que antes, pois a Lebre Aloprada tinha acabado de derramar o bule de leite no seu prato.Como Alice não queria ofender a Marmota de novo, ela retomou a conversa com bastante cuidado:- Mas eu não estou entendendo. De onde é que elas tiravam o melado?

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57- Assim como se pode tirar água de um poço de água - disse o Chapeleiro -, da mesma forma eu devo pensar que se pode tirar melado de um poço de melado, não é, sua idiota?- Mas elas estavam dentro do poço - disse Alice, tentando ignorar a última observação do Chapeleiro.- É claro, dentro do poço, isso eu posso garantir - confirmou a MarmotaEssa resposta confundiu tanto a pobre Alice, que ela deixou a Marmota continuar a história por um tempo sem interrompê-la.- Elas estavam aprendendo a tirar... - continuou a Marmota, boce-jando e esfregando os olhos, pois já estava ficando com sono - ... E tiravam todo tipo de coisas... Tudo que começa com a letra M - Com a letra M? - perguntou Alice.- E por que não? - respondeu a Lebre Aloprada.Alice ficou quieta. A essa altura, a Marmota já tinha fechado os olhos e tirava uma soneca, mas acordou com um beliscão do Chapeleiro, soltou um gritinho e continuou:- que começa com a letra m, como o mata-ratos e o mar e a memória e o montão... Você sabe, a gente sempre diz que as coisas são um “baita montão”... Por acaso você já viu algo assim como o desenho de um montão?- Bem, agora que você esta me perguntando - disse Alice, toda confusa -, eu não acho que...- Então você devia ficar de boca fechada - falou o Chapeleiro.

Uma grosseria dessas estava muito alem do que Alice podia suportar. Ela se levantou revoltada e afastou-se dali. A Marmota pegou no sono na mesma hora e nenhum dos outros dois sequer reparou na sua saída, embora ela tivesse olhado para trás uma ou outra vez, com uma certa esperança de que fossem chamá-la. Na última vez em que ela os viu, eles estavam tentando enfiar a Marmota no bule de chá.- Seja como for, eu nunca mais volto lá! - disse Alice, enquanto abria caminho pelo bosque. - Foi o chá mais idiota de que eu já participei em toda a minha vida!Quando acabou de dizer essas palavras, ela notou que uma das árvores tinha uma porta que dava para o seu interior.“Que coisa mais estranha!”, pensou. “Mas tudo está tão curioso hoje... Acho que eu devo entrar agora mesmo.” E entrou.Uma vez mais, ela se viu na sala comprida, junto da mesinha de vidro.- Muito bem, agora eu já sei o que devo fazer - falou consigo.Começou pegando a pequenina chave dourada e abrindo a porta que dava para o jardim. Feito isso, pôs-se a mordiscar o cogumelo (ainda tinha uns pedacinhos dele no bolso), ate ficar com uns trinta centímetros de altura. Desse modo, ela pode atravessar a portinha estreita e até que enfim: ela entrou no jardim maravil-hoso, entre os canteiros de flores multicoloridas e fontes de água fresca.

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59Havia uma grande roseira junto à entrada do

jardim. Suas rosas eram brancas, mas três jardineiros se aplicavam em pintá-las de vermelho. Alice achou aquilo curioso; aproximou-se para observar melhor e, assim que chegou perto dos jardinei-ros, ouviu um deles dizer:- Cuidado ai, Cinco! Não espirre tinta em cima de mim desse jeito!- Não pude evitar - disse Cinco zangado. - Foi o Sete que bateu no meu cotovelo.Ouvindo isso, Sete levantou os olhos e falou:- É isso ai, Cinco! Sempre pondo a culpa nos outros.- É melhor você fechar a boca - aconselhou Cinco. - Ontem mesmo ouvi a Rainha dizer que você deveria ser decapitado.- Com que finalidade? - perguntou aquele que havia falado primei-ro.-Isso não é absolutamente do seu interesse, Dois! - respondeu Sete.- É sim! É do interesse dele - disse Cinco. E eu vou lhe dizer: foi porque Sete levou para a cozinheira batatas de tulipa, ao invés de batatas de comer.Sete jogou o pincel no chão e estava começando a dizer:- Pois bem, de todas as coisas mais injustas... - quando seus olhos

casualmente depararam com Alice, que os observava sentada. Ele se calou imediatamente e os outros a viram também. Juntos, os três se curvaram com elegância, para cumprimentar Alice.- Será que vocês poderiam me dizer, por favor - disse ela um pouco tímida -, por que estão pintando essas rosas?Cinco e Sete não disseram nada, mas olharam para Dois. Ele começou então a falar em voz baixa:- Bem, como vê, Senhorita, essa deveria ser uma roseira vermelha, mas nós plantamos uma branca por engano e, se a Rainha vier a descobrir, vai mandar cortar as cabeças de todos nos, sabe? Pois então veja, Senhorita, nós estamos fazendo o melhor que podemos, antes que ela chegue, para...Nesse momento, Cinco, que estava olhando com ansiedade para todos os cantos do jardim, se pôs a gritar:- A Rainha! A Rainha!No mesmo instante, os três jardineiros se atiraram de bruços no chão, cobrindo o rosto com as mãos. Ouviu-se o som de muitos passos e Alice procurou com os olhos, animada para ver a Rainha.Primeiro surgiram dez soldados carregando porretes que tinham o formato do naipe de paus. Eles tinham todos a mesma aparên-cia dos jardineiros, retangulares e planos como cartas de baralho, com os pés e as mãos saindo dos quatro cantos. Em seguida vinham os membros da Corte, todos enfeitados com losangos de ouro, andando de dois em dois, tal como os soldados. Logo

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60depois chegaram os filhos do Rei e da Rainha. Eles eram dez e vinham pulando alegremente, de mãos dadas, também for-mando pares. Estavam todos enfeitados de corações, iguais aos do naipe de copas no baralho. A seguir vinham os convidados, Reis e Rainhas na maior parte; mas entre eles Alice reconheceu o Coelho Branco. Ele estava falando de um jeito nervoso, sorrindo a tudo que se dizia, e passou sem reparar nela. Depois disso vinha o Valete de Copas, carregando a coroa do Rei numa almofada de veludo vermelho. E, no final desse grande desfile, vinham o REI e A RAINHA DE COPAS.Alice ficou em dúvida se devia ou não se curvar com o rosto próximo ao chão, como fizeram os três jardineiros. Mas não se lembrava de nenhuma regra que obrigasse a isso nos desfiles.“E além do mais”, pensou ela, “de que serviria um desfile se as pessoas tivessem que ficar com o rosto abaixado, sem poder ver nada?”Sendo assim, ela permaneceu como estava e esperou.Quando o cortejo passou na sua frente, todos pararam e a ol-haram. A Rainha perguntou muito brava:- Quem é essa pessoa?Ela dirigiu a pergunta ao Valete de Copas, que, como resposta, apenas se curvou e sorriu.- Idiota! - disse a Rainha, erguendo a cabeça, toda agitada. Voltando-se para Alice, tornou a perguntar: - Como é o seu

nome, minha jovem?- Meu nome é Alice, às suas ordens, Majestade - disse ela com muita educação. Mas ao mesmo tempo pensava:“Ora vejam só, eles não passam de um punhado de cartas de baralho. Não preciso ter medo deles.”- E quem são esses? - perguntou a Rainha, apontando para os três jardineiros que estavam debruçados ao redor da roseira.É claro, como os três estavam com o rosto coberto e como o desenho nas suas costas era exatamente o mesmo de todo o resto do baralho, ela não podia saber se eles eram jardineiros, ou solda-dos, ou membros da Corte, ou três de seus filhos.- Mas como e que eu posso saber? - respondeu Alice, surpresa com sua própria coragem. - Isso não é da minha conta.A Rainha ficou vermelha de raiva e, depois de olhar para ela por um momento, como uma fera selvagem, começou a gritar:- Cortem a cabeça dela! Cortem...- Que grande tolice! - respondeu Alice em voz alta e num tom decidido. A Rainha ficou quieta. O Rei pôs a mão no braço dela e disse timidamente:- Não ligue minha querida, ela e apenas uma criança!A Rainha se afastou, irritada, e ordenou ao Valete:- Faça com que eles se levantem.O Valete então, muito delicadamente, fez com o pé sinal para que

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61os três jardineiros se levantassem.- De pé! - gritou a Rainha.Eles se levantaram de um salto no mesmo instante e começaram a se curvar para saudar o Rei, a Rainha, os principezinhos e todo o cortejo.- Parem com isso! - berrou a Rainha. - Vocês estão me deixando tonta.Ela se voltou então para a roseira e continuou:- O que e que vocês andavam fazendo aqui?- Esperando que fosse do agrado de Vossa Majestade - disse Dois num tom humilde, ajoelhando-se em uma perna enquanto falava- Nós estávamos tentando...-Já percebi! - disse a Rainha, examinando as rosas. - Cortem as cabeças deles!E o cortejo continuou seu caminho, enquanto três soldados saiam do desfile para executar os infelizes jardineiros, que correram para Alice pedindo proteção.- Não, senhor, vocês não vão ser decapitados! - disse Alice, escondendo-os num vaso que estava perto dela.Os três soldados circularam por um ou dois minutos, procurando pelos condenados, e depois retornaram silenciosamente para junto do cortejo.- As cabeças deles já estão cortadas? - gritou a Rainha.- Sim, as cabeças deles já se foram, para a glória de Vossa Majesta-

de! - gritaram os soldados em resposta.- Ótimo! - exclamou a Rainha. - Você sabe jogar toque-emboque?Os soldados ficaram quietos e olharam para Alice, Visto que a pergunta era evidentemente dirigida a ela.- Sim, eu sei! - respondeu Alice.- Então venha! - rugiu a Rainha.Alice juntou-se ao cortejo, imaginando, cheia de ansiedade, o que haveria de acontecer em seguida.- Está... está fazendo um lindo dia hoje, não? - disse uma voz muito tímida ao seu lado.Ela estava caminhando ao lado do Coelho Branco, que olhava muito inquieto para o rosto dela.- Muito lindo - respondeu Alice. - Onde está a Duquesa?- Psiu! Psiu! - fez o Coelho depressa e em voz baixa. Olhou assus-tado por cima do ombro enquanto falava, ficou na ponta dos pés, encostou a boca no ouvido dela e sussurrou: - Ela foi condenada a morte.- Por que motivo? - perguntou Alice- Você quer dizer “Que pena”? - tentou corrigir o Coelho- Não, não quero dizer isso - insistiu Alice. - Não acho pena nen-huma. Só quero saber qual o motivo.- Ela deu um sopapo na orelha da Rainha... - começou a explicar o Coelho.Alice não se conteve e deu um gritinho de quem ia gargalhar.

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62- Oh! Psiu! - sussurrou o Coelho assustado. - A Rainha vai ouvir! Entendeu o que houve? A Duquesa chegou muito atrasada e daí então a Rainha disse...- Tomem seus lugares! - gritou a Rainha, com voz de trovão.Foi um corre-corre geral em todas as direções, uns tropeçando nos outros. Em poucos minutos, entretanto, todos já haviam assu-mido seus postos e o jogo começou.Alice se pôs a pensar que nunca tinha visto um campo de toque-emboque tão esquisito em toda a sua vida. Ele era todo cheio de pequenos buracos e morrinhos, as bolas eram ouriços vivos, os tacos eram flamingos também vivos e os arcos, por dentro dos quais as bolas deveriam passar, eram formados por soldados que se dobravam, apoiando os pés e as mãos no chão.A primeira grande dificuldade de Alice foi manejar o seu fla-mingo. Ela conseguia segura-lo muito bem, todo encolhidinho, debaixo do seu braço. Mas, quando tentava esticar o pescoço dele bem firme e se preparava para dar uma tacada no ouriço com a cabeça dele, o coitado se virava e olhava para ela com um tal ar de espanto, que ela não conseguia se controlar e estourava de rir. E quando finalmente ela conseguia manter a cabeça do flamingo na posição certa e se preparava para começar de novo, então constatava com irritação que o ouriço tinha se desenrolado e ia se afastando de fininho. Além disso tudo, havia sempre um buraco ou um montinho na direção em que ela queria mandar a bola, e

os soldados, que tinham de ficar dobrados, estavam sempre se le-vantando e se movimentando para outros lugares do campo. Alice chegou assim a conclusão de que se tratava de um jogo realmente muito difícil.Os jogadores jogavam todos ao mesmo tempo, sem esperar pela sua vez, discutindo sem parar e brigando para disputar os ouriços. Em pouco tempo, a Rainha já estava tomada de uma violenta fúria e batia o pé gritando:- Cortem a cabeça dele - ou - Cortem a cabeça dela - quase sem parar. Alice começou a se sentir aflita. É verdade que ela ainda não tinha se enfrentado, de fato, com a Rainha, mas sabia que isso iria acontecer a qualquer instante.“E então”, pensou, “o que será de mim? Eles estão sempre terriv-elmente dispostos a cortar a cabeça das pessoas por aqui. O que me espanta é que ainda tenha sobrado alguém vivo!”Ela começou a procurar alguma maneira de escapar dali, imagi-nando um modo de sair sem ser vista, quando percebeu uma estranha aparição no ar. Ficou muito espantada a princípio, mas, depois de observar por alguns minutos, notou que se tratava de um sorriso e falou consigo mesma:- Oh! É o Gato Inglês! Agora eu vou ter alguém com quem conversar.- Como vai indo? - perguntou o Gato, assim que apareceu boca suficiente para que ele falasse.

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63Alice esperou até que os seus olhos aparecessem e então cumpri-mentou-o com a cabeça.“Não adianta falar nada ainda”, pensou ela, “até que as orelhas dele apareçam, ou pelo menos uma delas.”No minuto seguinte, a cabeça inteira apareceu e então Alice pôs o flamingo no chão e começou a comentar o jogo, sentindo-se muito feliz por ter alguém que a escutasse. O Gato parece ter pensado que já havia uma parte suficiente de si a vista e deixou invisível o restante do seu corpo.- Acho que ninguém por aqui joga limpo - começou a reclamar Alice. - E todo mundo discute tão horrivelmente que ninguém consegue ouvir sequer a própria voz. Além do mais, parece não haver nenhum tipo de regras ou, se ha, ninguém respeita nada. E você não pode nem imaginar a tremenda confusão que fazem to-das essas criaturas vivas. O arco pelo qual eu devia passar a minha bola, por exemplo, está andando lá do outro lado do campo. E eu tinha de acertar o ouriço da Rainha bem agora, mas, quando ele percebeu que eu estava me aproximando, fugiu correndo!- E a Rainha? O que acha dela? - perguntou o Gato em voz baixa.- Não acho - respondeu Alice. - Ela é tão tremendamente...Nesse exato instante, percebeu que a Rainha estava bem atrás dela, ouvindo tudo. Alice então mudou o sentido do que ia falar:- ... habilidosa para ganhar, que mal vale a pena continuar até o fim do jogo.

A Rainha sorriu e continuou seu caminho.- Com quem é que você está falando? - perguntou o Rei, aprox-imando-se de Alice e olhando para a cabeça do Gato com uma enorme curiosidade.- É um amigo meu, o Gato Inglês - disse Alice. - Permita que eu lhe apresente.- Não gosto muito do jeito dele - disse o Rei -, mas ele pode beijar a minha mão, se quiser - Eu prefiro não fazer isso - observou o Gato.- Não seja impertinente! - respondeu o Rei. - E não me olhe desse jeito - E correu para trás de Alice enquanto falava.

- Um gato pode olhar de frente para um Rei - disse Alice. - Eu li isso num livro, mas agora não consigo me lembrar onde foi.- Pois bem, ele deve ser removido daqui - disse o Rei muito decid-ido, e chamou a Rainha, que ia passando por ali nesse momento.- Minha querida! Eu gostaria que você se encarregasse de tirar esse gato daqui!A Rainha, como sempre, só tinha uma maneira de se livrar dasdi-ficuldades, fossem elas grandes ou pequenas:- Cortem a cabeça dele! - ordenou ela, sem sequer olhar para aquele lado.- Eu vou buscar o carrasco pessoalmente - disse o Rei, muito agitado, e saiu as pressas.

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65Alice achou que já era hora de voltar e ver como estava indo o jogo, quando ouviu a Voz da Rainha lá de longe, gritando cheia de raiva. Ela já tinha ouvido a Rainha condenar três jogadores a morte, por terem perdido sua vez, e não gostou nada do jeito que as coisas iam, pois o jogo estava numa tal confusão, que ela nunca sabia se era a vez dela ou não. Por isso, resolveu sair a procura do seu ouriço.O ouriço estava envolvido numa briga com outro ouriço, o que lhe pareceu uma excelente oportunidade para acertar um golpeando o outro. A única dificuldade era que o seu flamingo havia atravessado para o outro lado do jardim, onde Alice o viu tentando inutilmente voar para o alto de uma arvore.Quando ela conseguiu pegar o Flamingo e trazê-lo de volta, a briga tinha acabado e os dois ouriços já haviam sumido de vista.“Bem, afinal de contas não faz mal”, pensou Alice, “porque todos os arcos também foram embora desse lado do campo.”Assim sendo, ela segurou o flamingo bem encolhidinho debaixo do braço, cuidando para que ele não escapasse de novo, e voltou para conversar mais um pouco com o seu amigo.Quando retornou para onde estava o Gato Inglês, ela se surpreen-deu ao ver uma enorme multidão reunida ao redor dele. Ocorria ali uma agitada discussão entre o carrasco, o Rei e a Rainha, que falavam ao mesmo tempo, enquanto os demais permaneciam quietos, parecendo estar muito incomodados.

Assim que Alice apareceu, foi chamada pelos três para resolver a questão. Eles lhe repetiram suas opiniões, mas, como falavam todos de uma só vez, ela não conseguia entender o que diziam.A opinião do carrasco era a de que não se podia cortar uma cabeça, a menos que houvesse um corpo do qual ela pudesse ser cortada. E como ele nunca teve que fazer uma coisa dessas antes, não seria a essa altura da vida que iria começar.A opinião do Rei era a de que tudo o que tivesse uma cabeça po-deria ser decapitado e, portanto, não cabia ficar falando absurdos.A Rainha, por sua vez, insistia em dizer que, se alguma coisa não fosse feita naquela mesma hora, ela mandaria executar todo mundo que estava por ali (foi essa última afirmação que deixou o pessoal todo preocupado e agitado).Alice não imaginou nada melhor para dizer do que:- O Gato pertence à Duquesa e seria melhor que vocês a consul-tassem antes de tomar qualquer decisão.- Ela esta na prisão - disse a Rainha ao carrasco. – Traga-a aqui.O carrasco partiu como uma flecha. A cabeça do Gato começou a sumir quando o carrasco se foi e, quando ele voltou com a Duquesa, já tinha desaparecido completamente. O Rei e o car-rasco puseram-se a procurá-la feito loucos, para cima e para baixo, enquanto o resto do grupo retornava ao jogo.

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67- Você nem imagina quanto estou feliz

por vê-1a novamente, minha coisinha deliciosa!- disse a Duquesa, enquanto cruzava o seu braço carinhosamente com o de Alice e saiam caminhando juntas.Alice estava muito contente por encontrá-la tão bem-disposta e pensou que talvez tivesse sido apenas a pimenta que a tornara tão brava quando elas se encontraram na cozinha.- Quando eu for uma Duquesa - falou Alice para si mesma (em-bora sem muita esperança) - não vou querer ter pimenta nenhuma na cozinha. As sopas vão muito bem sem pimenta... E vai ver que é sempre a pimenta que deixa as pessoas com um temperamento esquentado.Muito feliz por ter encontrado uma nova espécie de lei da na-tureza,ela prosseguiu em suas divagações:- ...e o vinagre, que as torna azedas... e o café, que deixa as pes-soas amargas... e... e o açúcar e coisas assim, que fazem com que as crianças sejam tão suaves. Até que seria muito bom se todas as pessoas soubessem disso,daí elas não seriam tão mesquinhas na hora de oferecer doces, sabe?A essa altura ela havia quase esquecido a Duquesa e até estrem-eceu quando ouviu a voz dela bem pertinho do seu ouvido.

- Você deve estar pensando em alguma coisa, minha querida, e por causa disso você se esqueceu de conversar. Não sei dizer qual é a moral do tudo isso agora, mas já, já eu vou me lembrar.- Talvez não haja nenhuma - arriscou-se a dizer Alice.- Mas que tolice, minha jovem! - disse a Duquesa. - Tudo tem uma moral, desde que você tenha vontade de procurar.Ela se aproximava cada vez mais de Alice sempre que falava. Alice não estava gostando nada daquela agarração. Primeiro, porque a Duquesa era muito feia. Segundo, porque a altura dela fazia com que seu queixo se apertasse contra o ombro de Alice, toda vez que ela falava. E era um queixo pontudo e muito incômodo. Mas, como ela não queria ser indeli- cada ia aguentando o mais que podia.- O jogo vai indo bem melhor agora - comentou ela, para não deixar a conversa morrer.- É mesmo -respondeu a Duquesa -, e a moral disso é: “Oh, é o amor, é o amor que faz o mundo girar!”.- Alguém me disse - murmurou Alice - que isso só acontece quando cada um cuida da sua própria vida!- Excelente! Isso significa exatamente a mesma coisa - disse a Duquesa, enterrando seu queixo pontudo no ombro de Alice. - E a moral disso é: “Cuide do sentido, e os sons das palavras cuidarão de si mesmos”.“Puxa, como ela adora achar uma moral em tudo que se fala!”,

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68pensou Alice. - Acho que você deve estar se perguntando por que eu não passo o braço em volta da sua cintura - observou a Duquesa, depois de uma pausa.- O motivo é que eu não confio muito no temperamento desse seu flamingo. Será que eu devo arriscar?- Pode ser que ele bique – alertou Alice, sem vontade nenhuma de que a Duquesa a abraçasse.- É bem verdade – disse a Duquesa. - Porque você sabe: tanto os flamingos quanto a mostarda bicam as pessoas. E a moral disso é: “Pássaros da mesma cor voam todos pra onde um for”.- Só que a mostarda não é pássaro - observou Alice.- Certo outra vez - disse a Duquesa. - Que maneira clara você tem de perceber as coisas!- É um mineral, eu acho - completou Alice.- É claro que é - confirmou a Duquesa, que parecia pronta a concordar com tudo o que Alice dissesse. - Há um grande veio de mostarda numa mina aqui perto. E a moral disso é: “Cada vez que um veio, um outro sempre se foi”.-Ah! Já sei! - exclamou Alice, que não havia prestado atenção a esse último comentário. – Trata-se de um vegetal. Não parece muito, mas é. - Concordo inteiramente com você – disse a Duquesa- e a moral disso é: “Seja o que você pareceria ser.” Ou, se você preferir isso

dito de uma maneira mais simples: “Nunca se imagine como não sendo outra coisa do que aquilo que poderia parecer aos outros que aquilo que você foi ou poderia ter sido não fosse outra coisa do que o que você precisa ter sido parecia a eles ser outra coisa.”- Acho que eu poderia entender isso melhor – disse Alice de ma-neira muito educada – se estivesse tudo escrito. Mas, desse jeito, não consigo entender o que você quer dizer.- Ora, isso não é nada comparado com o que eu poderia dizer, se quisesse – respondeu a Duquesa muito satisfeita.- Por favor, eu lhe peço que não se preocupe em procurar falar coisas tão compridas assim – disse Alice.- Oh, minha querida! Não me preocupo absolutamente – respon-deu a Duquesa. – Veja, eu lhe dou de presente tudo o que eu disse até agora.“O tipo do presente bem barato!”, pensou Alice. “Ainda bem que ninguém dá presentes de aniversário como esse!” Mas ela não se arriscou a falar isso em voz alta.- Pensando de novo? – perguntou a Duquesa, enterrando outra vez seu queixinho pontudo no ombro de Alice.- Eu tenho o direito de pensar – respondeu Alice secamente, pois estava começando a ficar aborrecida.- Exatamente o mesmo direito - disse a Duquesa - que têm os porcos de voar. E a m...

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69Mas, nesse momento, para grande surpresa de Alice, a voz da Duquesa sumiu, bem no meio da sua palavra favorita: moral. O braço que estava enlaçado com o de Alice começou a tremer. Ela olhou para cima e lá estava a Rainha, bem na frente delas, com os braços cruzados, uma cara de fúria e um olhar tão ameaçador que parecia uma tempestade.- Que belo dia, näo, Majestade? - começou a Duquesa, com uma voz baixa e fraca.- Ouça bem, porque eu vou lhe dar um bom conselho - berrou a Rainha, batendo com o pé no chão. - Ou você ou a sua cabeça deve sumir daqui e isso num piscar de olhos! A escolha é sua!A Duquesa fez sua escolha e fugiu dali no mesmo instante.- Vamos continuar o jogo - disse a Rainha para Alice, que estava assustada demais para responder e por isso a acompanhou de volta ao campo de toque-emboque.Os outros convidados aproveitaram a ausência da Rainha para descansar na sombra. Porém, no momento em que a viram, todos correram de volta para o jogo, pois a Rainha já os avisara de que qualquer pequeno atraso lhes custaria a vida.Todos aqueles que ela condenava eram levados pelos soldados, que, para isso, tinham de abandonar a sua posição de arcos no jogo. Desse modo, apos meia hora, não havia mais nem arcos,nem jogadores, exceto o Rei, a Rainha e Alice. Todos os demais tinham sido levados e estavam condenados à morte.

A Rainha abandonou então a partida, já quase completamente sem fôlego, e perguntou para Alice:- Você já viu a Falsa Tartaruga?- Não – respondeu ela. – Eu nem mesmo sei o que vem a ser uma Falsa Tartaruga.- Ora essa, é aquilo de que é feita a Falsa Sopa de Tartaruga – disse a Rainha.- Nunca ouvi falar de uma coisa dessas – comentou Alce.- Então venha comigo - disse a Rainha – e ela vai lhe contar a sua história.Assim que saíram os três juntos, Alice ouviu o Rei dizer em voz baixa para todo o grupo que havia participado do jogo:-Vocês estäo todos perdoados.- Pois vejam só, eis aí uma coisa ótima! - falou Alice consigo mesma, visto que ela estava muito penalizada com o número enorme de execuções que a Rainha tinha ordenado.Logo eles chegaram junto de um Grifo, que dormia profunda-mente sob o sol.(Olhe o Grifo na página seguinte.)-Já de pé, sua coisa preguiçosa! - gritou a Rainha. – Leve esta sen-horita para ver a Falsa Tartaruga e ouvir a sua história. Eu preciso voltar e cuidar de algumas execuções que ordenei.E assim ela se foi, deixando Alice sozinha com o Grifo. Alice não gostou nada do aspecto daquela criatura, mas afinal de contas,pensou, o risco de ficar com ela deveria ser pelo menos

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70igual ao de acompanhar aquela Rainha feroz. O Grifo se sentou, esfregou os olhos e ficou olhando a Rainha se afastar, até que ela sumisse de vista. Deu então um risinho meio disfarçado e disse, em parte para Alice e em parte para si mesmo:- Que engraçado!- O que é engraçado? -perguntou Alice.- Ela, ora essa! - respondeu o Grifo. - É tudo fantasia dela. Na verdade, eles nunca executam ninguém, sabe? Vamos, venha comigo!“Todo mundo por aqui vive dizendo venha comigo”, pensou Alice, enquanto seguia devagar o Grifo. “Eu nunca antes recebi tantas ordens, em toda a minha vida. Nunca!”Não tiveram de andar muito: logo viram a Falsa Tartaruga perto dali. Ela estava sentada, sozinha e triste, na beirada de uma pedra. Quando se aproximaram, Alice pôde ouvi-la suspirando pro-fundamente, como se seu coração fosse estourar, e sentiu uma tristeza enorme por ela.- Por que ela e assim tão triste? - perguntou ao Grifo.O Grifo respondeu usando quase que as mesmas palavras da resposta anterior:- É tudo fantasia dela. Na verdade, ela não sente tristeza nen-huma, sabe? Vamos, venha comigo.Os dois se aproximaram então da Falsa Tartaruga, que os olhou com os olhos cheios de lágrimas, mas não disse nada.

- Esta senhorita aqui - disse o Grifo - ela quer conhecer a sua história. É o que ela quer.- Eu vou contar tudo para ela - respondeu a Falsa Tartaruga, com uma voz profunda e cavernosa. - Sentem-se os dois e não digam uma única palavra até que eu tenha terminado.Eles então se sentaram e ficaram calados, esperando um bom tempo. Alice pensou: “Eu não vejo como ela pode vir a termi-nar, se ela não começa nunca”. Mas continuou esperando com paciência.- Houve um tempo - disse por fim a Falsa Tartaruga, com um suspiro profundo - em que eu era uma Tartaruga de verdade.Alice já estava disposta a se levantar e dizer: “Muito obrigada, minha senhora, pela sua história tão interessante”. Mas ela não conseguia deixar de pensar que deveria haver mais coisa ainda para ser contada. E era só por isso que permanecia sentada e quieta.- Quando nós éramos pequenos – continuou por fim a Falsa Tartaruga, mais calma, embora ainda soluçando vez por outra – nós costumávamos ir à escola no mar. A professora era uma velha tartaruga; nós costumávamos chamá-la de Tetrarruga...- Mas por que vocês a chamavam de Tetrarruga? – perguntou Alice. – É um nome tão esquisito que eu nunca vi!- Nós a chamávamos de Tetrarruga porque, sendo uma tartaruga velha, tinha quatro rugas no pescoço, é lógico – respondeu a Falsa

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71Tartaruga bastante irritada. – Realmente, você é muito burra, heim!- Você deveria estar envergonhada de perguntar uma coisa tão simples – acrescentou o Grifo.Os dois então ficaram sentados em silêncio olhando para a coitada da Alice, que estava prestes a se enterrar no chão de tanta vergonha. Afinal, o Grifo falou para a Falsa Tartaruga:-Vamos em frente, minha cara amiga! Não vamos ficar nisso o dia inteiro!A Falsa Tartaruga continuou então a sua narrativa:- Sim, sim, nós íamos para a escola no mar, embora você possa não acreditar...- Eu nunca disse isso! -interrompeu Alice.- Disse sim - respondeu a Falsa Tartaruga.- E cale a boca! - acrescentou o Grifo, antes que Alice pudesse falar alguma coisa.A Falsa Tartaruga continuou:- Nós tivemos a melhor educação possível... na verdade, íamos para a escola todo dia...- Eu também vou a escola todo dia - disse Alice , portanto você não precisa ficar tão orgulhosa por causa disso.- Com direito a cursos especiais? - perguntou a Falsa Tartaruga um pouco ansiosa.- Sim – respondeu Alice -, aprendemos Francês e Música.

- E Lavagem também? – perguntou a Falsa Tartaruga.- Mas é claro que não! – respondeu Alice indignada.- Ah! Eu sabia. Então a sua não é uma escola realmente muito boa – disse a Falsa Tartaruga, respirando aliviada. – Já na nossa, no final do programa, eles punham: “ Francês, Música e Lavagem, cursos especiais”.- Mas, vivendo no Fundo do mar - observou Alice -, acho que vocês não iam precisar muito desses cursos.- Eu não tinha como pagar esses cursos – disse a Falsa Tartaruga com um suspiro. - Por isso, só tive as matérias regulares.- E quais eram? - quis saber Alice.- Língua Pétrea e Taburrada, para começar, é claro! – respondeu a Falsa Tartaruga. – E depois os diferentes ramos da Aritmética: Ambição, Distração, Enfeiaçäo e Gozação.- Eu nunca ouvi falar de Enƒeiaçâo - arriscou-se a dizer Alice. – O que é isso?O Grifo ergueu as patas dianteiras em sinal de surpresa e ex-clamou:- Como é? Nunca ouviu falar de Enfeiaçâo? Suponho que você deva saber o que é embelezar, não?- Sim - respondeu Alice um pouco confusa. - Quer dizer... fazer... uma coisa... ficar... mais bonita.- Pois então - continuou o Grifo -, se você não sabe o que é en-feiar, isso significa que você é realmente uma bestalhona.

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72Alice se sentiu desencorajada para perguntar mais o que fosse sobre esse assunto. Por isso virou-se para a Falsa Tartaruga e quis retomar o fio da história.- O que mais vocês tinham que aprender?- Bem, havia as aulas de Mistória - respondeu a Falsa Tartaruga,contando as matérias nas pontinhas da sua pata. - Sim, havia Mistória Antiga e Moderna. E havia também Marografia. E depois havia Desdenho. A Professora de Desdenho era uma velha enguia, que costumava vir apenas uma vez por semana. Ela nos ensinou Desdenho, Esticamento Linear e Desmaio em Espirais.- Como é que era isso? - perguntou Alice.- Bem, não vou poder lhe demonstrar isso eu mesma - disse a Falsa Tartaruga -, porque eu sou meio dura de corpo. E o Grifo ai nunca assistiu a essas aulas.

- Nunca tive tempo - acrescentou o Grifo. - No entanto, eu freqüentei o curso do professor de Línguas Clássicas. Ele era um velho caranguejo, isso ele era.- Eu nunca assisti as aulas dele - disse a Falsa Tartaruga com

um suspiro.- Pelo que dizem, ele en-

sinava

Gringo e Latir.- Isso mesmo, isso mesmo! - confirmou o Grifo, suspirando por sua vez. E ambas as criaturas cobriram seus rostos com as patas.- E durante quantas horas por dia vocês assistiam as aulas? - per-guntou Alice querendo mudar de assunto depressa.- Dez horas no primeiro dia - respondeu a Falsa Tartaruga -, nove nosegundo e assim por diante.- Que sistema curioso! - exclamou Alice.- É por isso que se costuma chamar o conjunto das matérias en-sinadas na escola de currículo - observou o Grifo. - Pela simples razão de que, a cada dia, a gente tem de correr mais para acom-panhar o curso.Essa era uma ideia completamente nova para Alice e ela ficou refletindo um pouco sobre isso antes de fazer a sua próxima pergunta.- Desse jeito, então, o décimo primeiro dia devia ser um feriado?- É claro que era - respondeu o Grifo.- E o que e que vocês faziam no décimo segundo? e continuou Alice muito interessada.- Já chega de falar sobre as aulas - interrompeu o Grifo com um tom muito decidido. - Agora conte a ela alguma coisa sobre as

brincadeiras.

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75A Falsa Tartaruga deu um suspiro profundo

e enxugou os olhos com uma das patas. Olhou então para Alice e tentou falar, mas por alguns minutos os soluços a deixaram sem voz.- É como se ela tivesse um osso atravessado na garganta – co-mentou o Grifo.Dizendo isso, começou a sacudir e a bater nas costas da coitada. Até que, por fim, a Falsa Tartaruga recuperou a voz e, com lágri-mas escorrendo pelo rosto, começou a falar.-Você pode não ter vivido no fundo do mar por muito tempo...- Eu nunca vivi lá - respondeu Alice.-... e por isso talvez nunca tenha sido apresentada a uma lagosta...Alice ia começar a dizer: “Certa vez provei uma...”, mas se con-teve depressa e disse apenas:- Não, nunca.-... então você não pode imaginar que coisa maravilhosa é uma Quadrilha da Lagosta!- Realmente não faço ideia - disse Alice - Que tipo de dança é essa?- Bem - começou a explicar o Grifo -, primeiro se forma uma fila na beira da praia...- Duas filas! – gritou a Falsa Tartaruga. – Focas, tartarugas,

salmões e assim por diante. Mas só depois que se tiver limpado o local de todas as águas-vivas que estiverem estorvando... - Coisa que geralmente leva algum tempo – interrompeu o Grifo.-... então se avançam dois passos...- Cada um tendo uma lagosta como par! - gritou o Grifo.- Naturalmente - disse a Falsa Tartaruga. -Avançam duas vezes, todos unidos em pares...-... trocam de lagostas e voltam para a posição inicial... – con-tinuou o Grifo.-... e então, veja bem - continuou a Falsa Tartaruga -, jogam-se as...- As lagostas! - gritou o Grifo, dando um salto no ar.-... tão longe, na direção do mar, quanto se conseguir...- Daí sai todo mundo nadando atrás delas! - gritou o Grifo de novo.- Dando cambalhotas em pleno mar! - disse aos berros a Falsa Tartaruga, saltitando de animação feito louca.- Daí se troca de lagostas novamente! - rugiu o Grifo com toda a força de seus pulmões.- E volta-se para a terra outra vez... Está terminado então o primeiro movimento da dança - concluiu a Falsa Tartaruga, baix-ando a voz de repente.As duas criaturas, que até ali estiveram gritando e pulando como doidas, tornaram a se sentar, tristes e caladas, e ficaram olhando

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76para Alice.- Deve ser uma dança muito bonita - disse Alice meio tímida.- Você gostaria de ver um pouquinho dela? - perguntou a Falsa Tartaruga.- É claro, eu gostaria demais! - respondeu Alice.- Então vamos lá, vamos tentar o primeiro movimento - disse a Falsa Tartaruga ao Grifo. - A gente pode tentar dançar mesmo sem as lagostas, sabe? Mas quem é que vai cantar?-Ah, canta você - disse o Grifo- Eu esqueci a letra.Assim, eles começaram a dar voltas e mais voltas em torno de Alice, com toda a cerimônia, pisando de vez em quando no seu pé quando passavam muito perto dela e balançando as patas dianteiras para marcar o ritmo. Enquanto isso, a Falsa Tartaruga cantava uma canção, muito lenta e triste:

“Dá pra apressar?”, disse a Sardinha ao Caramujo,“que atrás de mim vem um boto: ou encaro ou ƒujo!”“As tartarugas e as lagostas estäo dando uma ƒesta,Vamos dançar, gastar a energia que nos resta.”

“Vem ou não vem, cair nessa onda também?”“Vem ou não vem, dançar e brincar com alguém?“

“Ai! Você não pode imaginar que delícia,

Cada rodopio e pirueta é uma carícia!”“Não”, disse o Caramujo, É noite, pego um lençol,me enrolo, quieto e quente, no meu caracol.”

“Vem ou não vem, agitar a carcaça, meu bem?”“Vem ou não vem, lavar todas as mágoas, amém!“

“Se é noite, é ainda melhor”, disse a Sardinha,“sob as estrelas e a lua madrinha,saia da concha e mostra toda tua garrasalta da toca e caia de boca na farra.”

“Vem ou não vem, bailar a noite como ninguém?”“Vem ou não vem, agitar aqui, lá e além?”

- Muito obrigada, é uma dança bastante interessante de se ver – disse Alice, feliz por aquilo haver finalmente terminado, - Eu gostei muito também dessa música curiosa sobre o peixe: me fez lembrar de pescada-branca!- Ah! As pescadas-brancas! - exclamou a Falsa Tartaruga. - Elas... Bem, naturalmente você já deve ter visto algumas delas, não é?- É claro - disse Alice. - Eu sempre as vejo no jant... – deteve-se de repente- Não tenho a menor ideia de onde fica o Jant - disse a Falsa Tar-

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77taruga - mas, se você as vê sempre por lá, é claro que deve saber muito bem como elas são.- Acho que sim - respondeu Alice pensativa. - Elas têm o rabo na boca... e são todas cobertas de farinha de rosca.- Você está enganada quanto a farinha de rosca - observou a Falsa Tartaruga. - A farinha de rosca iria se dissolver na água do mar. Mas, de fato, elas têm o rabo na boca, e o motivo disso é...Nesse momento, a Falsa Tartaruga bocejou e fechou os olhos:- Diga a ela a razão disso e tudo o mais - pediu ao Grifo.- A razão é a seguinte - disse o Grifo -: elas queriam participar da dança com as lagostas. Por isso, elas foram jogadas bem longe no mar. Por isso, elas passaram um tempão caindo. Por isso, elas se agarraram com a boca no rabo. Por isso, elas não conseguiram soltá-lo mais. E isso é tudo.- Muito obrigada - disse Alice -, é uma historia muito interessante. Eu nunca soube tantas coisas sobre pescadas-brancas antes.- Posso lhe contar muito mais, se você quiser – ofereceu-se o Gri-fo. - Você sabe por que elas são chamadas de pescadas-brancas?- Nunca pensei nisso - respondeu Alice, - Qual é o motivo?- Elas servem para as botas e os sapatos - respondeu o Grifo com ar de importância.Alice ficou completamente confusa:- Servem para as botas e os sapatos! - repetiu para si mesma, cismada.

- É claro! O que é que você usa nos seus sapatos? - perguntou o Grifo. - Quero dizer, para fazer com que eles fiquem lustrosos.Alice baixou os olhos para eles e refletiu um pouco antes de dar a resposta.- Eu uso graxa preta de polir sapatos, acho.- Pois, no fundo do mar – concluiu o Grifo, num tom bem sério -, as botas e os sapatos são polidos com pescada-branca. Agora você já sabe.- E do que eles são feitos? – perguntou Alice cheia de curiosidade.- De três peixes: corvina, solha e os cordões, de enguia – respon-deu o Grifo, meio impaciente. – Qualquer peixinho sabe disso.- Eu não entendo por que a pescada-branca tinha tanta pressa em se afastar do boto... – disse Alice, que ainda pensava na canção.- Eles sempre o evitam de todas as formas – respondeu a Falsa Tartaruga. – Na realidade, nenhum peixe que se considere sabido admitiria andar junto com um boto.- É mesmo? - perguntou Alice muito surpresa. - E por que não?- Ora, está muito claro - respondeu a Falsa Tartaruga. - Se um peixe viesse me dizer que ia passear com um boto, eu diria que ele é um peixe embotado.Alice ficou toda desconcertada com essa resposta e o Grifo aproveitou para mudar de assunto:- Vamos lá! Conte você agora algumas das suas aventuras.- Eu poderia lhes contar as minhas aventuras... começando por

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78esta manhã - disse Alice um pouco encabulada. - Não adiantaria nada começar por ontem, porque então eu era uma pessoa difer-ente.- Explique isso direitinho - pediu a Falsa Tartaruga.- Não! Não! As aventuras primeiro - apressou-se em dizer o Grifo,muito impaciente- Explicações sempre tomam um tempão danado.Assim, Alice começou a lhes contar suas aventuras desde o momento em que viu que ela viu o Coelho Branco pela primeira vez. No início, ficou um pouco nervosa, pois as duas criaturas chegaram bem pertinho dela, uma de cada lado, e arregalaram os olhos e a boca de um tal modo, que ela ficou meio assustada. Mas tomou coragem e foi em frente. Os dois ouvintes permaneceram perfeitamente calados, até ela chegar à parte em que tentara re-citar “Estás velho, Seu Zé” para a Lagarta, mas as palavras saíram todas diferentes. Nesse ponto, a Falsa Tartaruga deu um longo suspiro e disse:- Isso é muito curioso.Alice estava tão terrivelmente confusa com a coisa toda, que não atendeu imediatamente à ordem do Grifo. Ele repetiu, agora já perdendo a paciência:- Vamos, vamos! O próximo verso. Ele começa assim: “Passei pelo seu jardim”.Alice não se atreveu a desobedecer, embora estivesse certa de que

tudo sairia errado. Começou a recitar com voz trêmula:Passei pelo jardim e vi, com o rabo do olho,a Coruja e a Pantera com a torta e o molho.A Pantera comia a massa e o recheio,a Coruja restou o prato vazio e ƒeio.Como consolo, ganhou também a colher.Já a Pantera, o garfo e a ƒaca pôde escolher.Feliz da vida com essa sorte oportuna,A fera rugiu e jantou a ave noturna.- Qual o sentido de ficar repetindo esse negocio todo - inter-rompeu a Falsa Tartaruga - se você não explica o que vai recitan-do? É a coisa mais confusa que eu já ouvi em toda a minha vida!- É isso mesmo! Acho que é melhor você ir embora - disse o Grifo, o que deixou Alice muito feliz, com a possibilidade de sair dali.- Será que nós deveríamos dançar um outro movimento da Quad-rilha da Lagosta? - continuou o Grifo. - Ou você preferiria que a Falsa Tartaruga lhe cantasse uma canção?- Oh! Uma canção, por favor, se a Falsa Tartaruga fizesse essa gentileza - respondeu Alice, tão animada que o Grifo comentou, meio ofendido:- Hum! Gosto não se discute! Cante-lhe então “A sopa da Tar-taruga”, minha cara amiga!A Falsa Tartaruga suspirou profundamente e começou a cantar,

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79sendo de vez em quando interrompida pelos soluços:

Sopaapetitosa,tãorica,tãofina,servida quente, numa bela terrina,quem não saudaria uma tal iguaria.Sopa-opa, opa, opa; ai, ai, ai-petitosa,sopa-opa, opa, opa; ai, ai, ai-petitosa. Sopa apetitosa, minha sopa noturna,ai, ai, ai-petitosa; não, não não-turva.

Sopa deliciosa, quem liga para o pato,para o peru, frango ou qualquer outro prato,quem não daria seus últimos centavos,cem ovos, cem aves e um vaso de cravos,pelo prato da sopa ai, ai, ai-petitosa?sopa não, não, não-turva “Sopra, ah! Sopra.”Sopaquente,sopafina,soberbaobra!

- O estribilho de novo! - gritou o Grifo.Mas, quando a Falsa Tartaruga ia começar a repeti-lo, um grito foi ouvido a distância:- Vai começar o julgamento!- Vamos lá! - exclamou o Grifo e, pegando Alice pela mão saiu correndo, sem esperar pelo fim da canção.

- Que julgamento é esse? - perguntou Alice, quase sem fôlego, enquanto corria. Mas o Grifo apenas respondeu:- Vamos! Vamos! - e continuou correndo o mais que podia en-quanto se ouvia, cada vez mais baixinho, trazidos pela brisa que os seguia os versos tristes:

Sopa apetitosa, minha sopa noturna,ai, ai, ai-petitosa; não, não não-turva.

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81O Rei e a Rainha de Copas estavam sentados

em seu trono quando eles chegaram. À volta deles havia uma multidão reunida: toda espécie de passarinhos e pequenos ani-mais, assim como o baralho inteiro. O Valete estava de pé diante deles, acorrentado, com um soldado de cada lado. Próximo ao Rei estava o Coelho Branco, com uma trombeta numa das mãos e um rolo de pergaminho na outra. Bem no meio da Corte havia uma mesa, com uma travessa cheia de tortas. Elas tinham uma aparência tão boa que Alice ficou morrendo de fome só de olhar para elas.“Bem que esse julgamento podia acabar logo”, pensou ela, “para que começassem a distribuir o lanche!”Mas era muito pouco provável que as coisas viessem a ocorrer as-sim. Por isso, ela ficou observando tudo que havia em torno, para se distrair e matar o tempo.Alice nunca tinha estado numa Corte de Justiça antes, mas já tinha lido alguma coisa a respeito nos livros. Estava satisfeita de poder constatar que ela sabia O nome de quase tudo que havia ali.“Aquele é o juiz”, pensou. “Sei disso por causa da sua peruca enorme.”O juiz, por sinal, era o Rei e, como ele usava a coroa por cima da peruca, não estava nem um pouco à vontade e a sua aparência

também não estava lá essas coisas.“E ali é a banca do júri”, pensou Alice. “E aquelas doze criatu-ras (ela tinha de falar criaturas, como veem, porque alguns eram animais e os outros eram pássaros) eu suponho que sejam os jurados.”Repetiu esta última palavra uma duas ou três vezes, muito orgul-hosa, pois acreditava, e até certo ponto estava certa, que poucas meninas de sua idade compreendiam o significado daquilo tudo. No entanto, a expressão membros do júri já seria igualmente apropriada.Os doze jurados estavam ocupadíssimos, todos escrevendo em pequenas lousas.- O que eles estão fazendo? - perguntou Alice ao Grifo. - Eles não devem ter nada para escrever, já que o julgamento ainda não começou.- Estão escrevendo os nomes deles - respondeu o Grifo. - Eles podem sentir tanto medo, que talvez esqueçam o seu próprio nome até o final do julgamento.- Que gente mais idiota! - exclamou Alice, em voz alta, cheia de indignação, mas parou de imediato, pois o Coelho Branco gritou:- Silêncio no Tribunal!O Rei colocou os óculos e passou os olhos cuidadosamente pela sala toda, para ver quem estava conversando.Alice pôde perceber, tão bem como se estivesse olhando por

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82cima de seus ombros, que todos os jurados estavam escrevendo Que gente mais idiota! em suas lousas. Viu até um que não sabia escrever idiota e estava perguntando ao seu vizinho.“Minha nossa! Mas que bagunça essas lousas vão ficar até o fim do julgamento!”Um dos jurados usava um giz que rangia na lousa. É claro que Al-ice não podia aguentar aquilo de jeito nenhum. Deu uma volta na sala, chegou bem atrás dele e logo achou uma oportunidade para surrupiar o giz. Fez isso tão depressa que o coitadinho (tratava-se de Gui, o Lagarto) nem pôde perceber o que se passava. Depois de procurar por todo lado, viu-se obrigado a escrever com o dedo daí por diante. O que não adiantava nada, porque o dedo não deixava traço nenhum na lousa.- Arauto, leia a acusação! – ordenou o Rei.Ao ouvir isso, o Coelho Branco tocou três vezes a trombeta, desenrolou o pergaminho e leu o seguinte:

A Rainha de Copas fez umas tortas,num belo dia de verão.O Valete de Copas roubou tais tortase fugiu como ladrão!

- Deem o seu veredicto! - ordenou o Rei aos jurados.-Ainda não! Ainda não! - interrompeu o Coelho. – Tem ainda um

montão de coisas antes disso!- Chame a primeira testemunha - mandou o Rei.O Coelho Branco tocou três vezes a trombeta e chamou:- Primeira testemunha!A primeira testemunha era o Chapeleiro. Ele entrou com uma xícara de chá numa das mãos e um pedaço de pão com manteiga na outra.- Peço desculpas, Majestade - começou ele -, por ter trazido essas coisas, mas eu ainda não tinha terminado o meu chá quando fui chamado.- Pois devia ter terminado - disse o Rei. – Quando foi que você começou?O Chapeleiro olhou para a Lebre Aloprada, que o havia acom-panhado até a Corte, de braços dados com a Marmota.- Acho que era catorze de março.- Quinze - disse a Lebre Aloprada.- Dezesseis - corrigiu a Marmota.- Escrevam isso! - ordenou o Rei aos membros do júri.Eles anotaram rapidamente as três datas, depois as somaram e converteram o resultado final em centavos.- Tire o seu chapéu! - mandou o Rei.- Esse chapéu não é meu - respondeu o Chapeleiro.- Roubado! - exclamou o Rei, voltando-se para os jurados, que imediatamente escreveram um comunicado a esse respeito.

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83- Eu tenho os chapéus para vender - explicou ele. - Nenhum deles me pertence. Sou um Chapeleiro.Nesse momento, a Rainha pôs os óculos e começou a olhar fixamente para o Chapeleiro, que empalideceu e passou a se remexer, inquieto.- Faça o seu depoimento - ordenou 0 Rei- e não fique nervoso, ou mando executá-lo agora mesmo!Isso tudo parecia não encorajar muito a testemunha, que ficou trocando de um pé para o outro, sem parar, e olhando assustado para a Rainha. Na confusão, ele acabou mordendo um grande pedaço da xícara, em vez do pão com manteiga.Nesse exato momento, Alice teve uma sensação muito curiosa, que a deixou bastante confusa até conseguir perceber do que se tratava: ela estava começando a crescer de novo! Num primeiro momento pensou em levantar-se e sair do Tribunal. Mas de-pois decidiu permanecer ali mesmo enquanto houvesse espaço suficiente para ela na sala.- Ei, por favor, não me esprema desse jeito! - reclamou a Mar-mota, que estava sentada ao lado dela. - Não estou conseguindo nem respirar.- Não posso fazer nada - explicou Alice com calma. - Estou crescendo.- Você não tem o direito de crescer aqui - protestou a Marmota.- Não diga bobagens - respondeu Alice irritada. - Você também

cresce.- É claro, mas eu cresço bem devagarinho - disse a Marmota - e não desse jeito ridículo.Levantou-se em seguida, muito brava, e atravessou para o outro lado do Tribunal.Durante todo esse tempo, a Rainha não despregou os olhos do Chapeleiro nem por um minuto e, quando a Marmota atravessou a sala, ela ordenou a um dos funcionários da Corte:- Traga-me a lista dos cantores do último concerto.Ao ouvir isso, o coitado do Chapeleiro começou a tremer de uma tal jeito que até perdeu os sapatos.- Faça seu depoimento - repetiu o Rei, com cara de zangado – ou então eu mando executá-lo, esteja você nervoso ou não!- Eu sou um pobre coitado - começou a se lamentar o Chapeleiro com a voz trêmula. - E eu mal havia iniciado o meu chá... faz uma semana,mais ou menos... e a fatia de pão estava ficando cada vez mais fina...ou e os chacoalhões da chaleira charmosa...- Da chaleira o quê? - perguntou o Rei.- Tudo começou com o chá - respondeu o Chapeleiro.- Eu ouvi muito bem que todas as palavras começaram com CHÁ! - exclamou o Rei, furioso - Será que você acha que eu sou surdo? Vamos, continue!- Eu sou um pobre coitado - continuou o Chapeleiro -, e houve muitos outros chacoalhões depois disso... só que a Lebre Alo-

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84prada disse que...- Eu não disse coisa alguma! – interrompeu a Lebre Aloprada mais que depressa.- Disse sim! - insistiu o Chapeleiro.- Eu nego! - respondeu a Lebre Aloprada.- Ela nega - disse o Rei. - Portanto, deixe isso de lado.- Bem, de qualquer modo... - começou a dizer a Marmota.O Chapeleiro olhou assustado para todos os lados, ansioso para ver se ela iria negar também. Mas a Marmota não negou nada, pois estava entregue a um sono profundo.- Depois daquilo tudo - continuou o Chapeleiro -, eu me servi de um pouco mais de pão com manteiga...- Mas o que foi que a Marmota disse? - perguntou um dos jura-dos.- Eu não consigo lembrar - respondeu o Chapeleiro.- Você tem de lembrar - observou o Rei - ou então eu vou condená-lo à morte.O infeliz do Chapeleiro largou a xícara e o pão com manteiga e se pôs num dos joelhos, implorando:- Eu sou apenas um pobre coitado, Majestade...- As suas desculpas é que são muito pobres – disse o Rei.Nesse ponto, um dos porquinhos-da-índia aplaudiu e foi ime-diatamente sufocado pelos funcionários da Corte. (Como essa palavra é muito forte, eu vou explicar melhor como as coisas

se deram. Eles tinham um grande saco de pano, que se fechava com cordões de amarrar, e ali enfiaram o porquinho pela cabeça, sentando em cima depois.)“Ora veja só, foi muito bom eu ter visto isso”, pensou Alice. “Sempre li nos jornais que depois dos julgamentos ‘houve tenta-tivas de aplauso, as quais foram imediatamente sufocadas pelos funcionários da Corte’ e nunca até hoje eu havia entendido o que eles queriam dizer com isso.”- Se isso é tudo o que você sabe, então pode descer – disse o Rei ao Chapeleiro, que ainda estava ajoelhado.- Não dá para descer mais do que isso - respondeu ele. – Eu já estou no nível do chão.- Pois então sente-se - ordenou o Rei.Nisso outro porquinho-da-índia aplaudiu e foi sufocado também.“Ainda bem! Com isso acabam os porquinhos-da-india”, pensou Alice. “Quem sabe agora as coisas andem melhor.”- Eu gostaria de poder terminar o meu chá - pediu o Chapeleiro, olhando com ansiedade para a Rainha, que lia a lista dos cantores.- Pode ir embora - disse o Rei.O Chapeleiro, assim que ouviu as palavras do Rei, disparou numa corrida para sair do Tribunal, sem sequer perder tempo para calçar os sapatos.-... e cortem a cabeça dele lá fora! - acrescentou a Rainha, voltan-do-se para um dos funcionários.

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85Mas o Chapeleiro já tinha sumido de vista antes que o funcionário pudesse chegar até a porta.- Chame a próxima testemunha! - ordenou o Rei.A testemunha seguinte era a cozinheira da Duquesa. Ela vinha trazendo a pimenteira em uma das mãos. Alice adivinhou quem era, antes mesmo que ela entrasse no Tribunal, pelo modo como as pessoas junto a porta começaram todas de repente a espirrar.- Faça o seu depoimento - mandou o Rei.- Faço não! - respondeu a cozinheira.O Rei olhou perturbado para o Coelho Branco, que lhe disse em voz baixa:- Vossa Majestade deve interrogar essa testemunha.- Bem, se eu devo, então eu devo e respondeu o Rei com um ar triste.Cruzou os braços e encarou a cozinheira, franzindo as sobrancel-has com tanta força que seus olhos quase sumiram. Perguntou então, com uma voz ameaçadora:- De que são feitas as tortas?- De pimenta, principalmente - respondeu a Cozinheira.- De melado - disse uma voz sonolenta bem atrás dela.- Agarrem essa Marmota! - berrou a Rainha. - Cortem a cabeça da Marmota! Expulsem a Marmota do Tribunal! Sufoquem a Marmota! Prendam! Arranquem os bigodes dela!Por alguns minutos, a Corte ficou na maior confusão, enquanto se

expulsava a Marmota. Quando por fim tudo se acalmou e as pes-soas voltaram aos seus lugares, a cozinheira tinha desaparecido.- Não importa! - disse o Rei, com cara de grande alívio. - Chame a próxima testemunha.Virando-se para a Rainha, ele Comentou em voz baixa:- Sabe, minha querida, eu preferia que você interrogasse a próxi-ma testemunha. Isso tudo me da uma tremenda dor de cabeça!Alice observava o Coelho Branco enquanto ele percorria a lista com os olhos. Ela estava muito ansiosa para ver quem sena a próxima testemunha.“... já que até agora eles não conseguiram nenhum depoimento”, pensou.Imagine, portanto, sua surpresa quando o Coelho Branco leu, gritando o mais alto que podia com a sua vozinha estridente, o nome de ALICE!

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87- Presente! - gritou Alice, esquecendo

por completo, com a emoção do momento, o quanto ela havia crescido nos últimos minutos.Saltou de pé com tamanha rapidez que derrubou a banca dos jurados com a barra de seu vestido, fazendo-os cair por cima das cabeças do público que assistia ao julgamento embaixo. E lá ficaram todos gritando e esperneando, o que a fez lembrar de um aquário de peixinhos dourados que ela havia derrubado acidental-mente na semana anterior.- Oh! Por favor, me desculpem! - ela exclamou toda preocupada.Começou a recolhê-1os o mais depressa que podia, pois ainda se recordava do acidente com os peixinhos dourados e tinha uma vaga impressão de que, se não os apanhasse a tempo e os colo-casse de volta na banca dos jurados, eles morreriam.- O julgamento não pode prosseguir - disse o Rei com voz seria - enquanto os jurados não estiverem nos seus devidos lugares... todos eles - insistiu, olhando duro para Alice.Ela olhou para a banca do júri e viu que, na pressa, tinha posto o Lagarto de cabeça para baixo e o pobre coitado estava agitando o rabo de um jeito aflito, sem conseguir voltar à posição normal. Alice logo o colocou na posição certa.“Não que isso vá adiantar muito”, pensou. “Acho que ele vai ter

exatamente a mesma utilidade para o julgamento, quer esteja de cabeça para cima ou para baixo.”Logo que os jurados se recuperaram do choque de terem capo-tado e assim que conseguiram reaver suas lousas e gizes, puseram-se todos a trabalhar animadamente para escrever a história do acidente. Exceto o Lagarto, que parecia abalado demais para fazer outra coisa senão ficar sentado de boca aberta, olhando para o teto da Corte.- O que você sabe sobre esse caso do roubo das tortas? – pergun-tou o Rei para Alice.- Nada – respondeu Alice.- Absolutamente nada? - insistiu o Rei.- Absolutamente nada - confirmou Alice.- Isso é muito interessante - disse o Rei, virando-se para os jura-dos.Eles estavam justamente começando a anotar isso nas lousas, quando o Coelho Branco os interrompeu:- Desinteressante é o que Vossa Majestade quer dizer, é claro - disse ele num tom de muito respeito, mas ao mesmo tempo franzindo as sobrancelhas e fazendo careta para o Rei.- Desinteressante, é claro, foi o que eu quis dizer – corrigiu-se o Rei rapidamente. Depois continuou repetindo para si mesmo em voz baixa: - interessante... desinteressante... desinteressante... interessante... – como se estivesse tentando avaliar qual palavra

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88soava melhor.Alguns jurados anotavam interessante e outros desinteressante. Alice pôde perceber isso, pois estava perto o bastante para poder olhar sobre suas lousas.“Mas isso não faz diferença nenhuma”, pensou.Nesse momento, o Rei, que estivera ocupado por algum tempo escrevendo, ordenou:- Silêncio! - E leu em voz alta na sua caderneta: - Regra quarenta e dois do regulamento: Todas as pessoas que tiverem mais de um quilômetro de altura devem retirar-se do Tribunal.Todo mundo olhou para Alice.- Eu não tenho um quilômetro de altura – respondeu ela.- Tem sim! – afirmou o Rei.- Tem quase dois quilômetros de altura – acrescentou a Rainha.- Pois bem, eu não saio daqui de jeito nenhum! – desafiou Alice.- E, além do mais, não existe essa tal regra, você acaba de inventar isso agora mesmo.- É a mais antiga regra do livro - disse o Rei.- Nesse caso, ela deveria ser a de Número Um - respondeu Alice.O Rei empalideceu e fechou depressa a sua caderneta.- Deem o veredicto - ordenou ao júri, com a voz fraca e tremu-lante.- Por favor, Majestade! Há ainda outros depoimentos a serem colhidos - declarou o Coelho Branco, saltando depressa. - Este

documento acaba de ser encontrado.- O que há nele? - perguntou a Rainha.- Eu ainda não abri - respondeu o Coelho Branco -, mas parece ser uma carta, escrita pelo prisioneiro para... para alguém.- Só pode ter sido assim - disse o Rei- a não ser que tenha sido escrita para ninguém, o que não parece ser muito habitual, não é?- Para quem está endereçada? - perguntou um dos jurados.- Ela não tem endereço algum - respondeu o Coelho Branco. – Na verdade não há nada escrito do lado de fora. - Abriu a carta enquanto falava e acrescentou: - Afinal de contas, não se trata de uma carta: é um conjunto de versos.- Estão escritos com a caligrafia do prisioneiro? - perguntou outro jurado.- Não, não estão - respondeu o Coelho Branco. - E isso é a coisa mais esquisita nesse caso todo. (O júri todo olhou espantado.)- Ele deve ter imitado a letra de outra pessoa - observou o Rei. (O júri todo se animou de novo).- Por favor, Majestade - interrompeu o Valete - eu não escrevi es-ses versos e ninguém pode provar que eu tenha escrito, pois não há nenhum nome assinado no final.- Se você não assinou - disse o Rei -, isso só torna as coisas piores. Você devia ter alguma má intenção, ou então teria assinado seu nome como fazem as pessoas honestas.Houve uma aplauso geral: era a primeira coisa sensata que o Rei

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89falava naquele dia.- Isso prova que ele é culpado – afirmou a Rainha.- Isso não prova coisíssima nenhuma! - respondeu Alice. – Ora, vocês nem sabem ainda o que dizem os versos! - Leia-os, então! Ordenou o Rei.O Coelho Branco pôs os óculos.- Por onde devo começar, Majestade? - perguntou ele.- Comece pelo começo - respondeu o Rei muito sério. – Continue depois até chegar ao fim e então pare.Eis os versos que o Coelho Branco leu:

Me disseram que você esteve com ela,mencionando a ele meu nome.Ela me deu uma porção de canela,mas nem assim matou minha fome.

Ele lhes disse então que eu tinha ido(nós sabemos que isso é verdade);suponha pois que eu lhes tenha mentido,quem saberia a minha idade?

Dei a ela um, eles lhe deram dois,você nos deu três, obrigado.Eles voltaram para você depois,

mas eu fui deixado de lado.

Se eu ou ela pudéssemos participarde algum modo nesse caso,eles, creio, haveriam de nos antecipar,qualquer data ou até um prazo,

Era portanto minha melhor impressão(antes que ela tivesse o ataque)que algo havia se interposto, ou não,entre eles, nós e o tique-taque.

Não o deixe saber que ela lhe impunha respeito,sempre que eles estavam a sós.esse em um segredo que ela guardava no peito,sabido por eles e por nós.

- Essa é a prova mais importante que foi apresentada aqui – ex-clamou o Rei, esfregando as mãos. - Agora deixemos que o júri..- Se algum deles conseguir explicar o que significam os versos... – disse Alice (ela havia crescido tanto nos últimos minutos que não tinha nem um pouquinho de medo de interrompero Rei) -... eu lhe darei uma moedinha. Eu tenho certeza de que eles não têm um pingo de sentido.

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90Os jurados todos anotaram nas suas lousas: “Ela tem certeza de que eles não têm um pingo de sentido”, mas nenhum deles tentou explicar os versos.- Se eles não têm sentido - disse o Rei -, isso nos livra de um problema enorme, pois, como você vê, nós não vamos ter de encontrar nenhum. Mas, ainda assim, eu não estou certo... - con-tinuou ele, abrindo o papel sobre o joelho e examinando-o com um olho só -... parece-me que eu vejo algum sentido neles, afinal de contas. Por exemplo, este verso: “Mas nem assim matou minha fome.” Você não está com fome, está? – perguntou voltando-se para o Valete.O Valete balançou a cabeça com tristeza e disse apenas:- Por acaso eu pareço alguém que esteja satisfeito? (Estava mais que na cara que não, visto ele ser liso e magrinho, como toda carta de baralho.)- Até aqui, tudo bem - disse o Rei, e continuou a murmurar tentando interpretar os versos. - “Nós sabemos que isso é ver-dade”... isso naturalmente refere-se ao júri. “Dei a ela um, eles lhe deram dois”... bem, isso deve ser o que ele fez com os pedaços de torta, não é?...- Mas os versos continuam e logo adiante dizem: “Eles voltaram para você depois” - observou Alice.- Sim, é claro! E ali estão eles! - respondeu o Rei, apontando orgulhoso para os pedaços de torta que estavam sobre a mesa. -

Nada pode ser mais claro que isso.E continuou a interpretar os versos.- “Antes que ela tivesse o ataque”... Você não costumava ter ataques não é, minha querida? - perguntou, virando-se para a Rainha.- Nunca! z exclamou a Rainha, furiosa, atacando um tinteiro no Lagarto que estava conversando. (O coitadinho do Gui tinha parado de escrever com o dedo na lousa quando se deu conta de que não adiantava nada. Mas agora ele voltava a escrever, usando para isso a tinta que escorria da sua cara, enquanto ela estava molhada.)- Será então que com esse verso ele não cometeu um ataque em você? - perguntou o Rei à Rainha, olhando sorridente para toda a Corte.Fez-se um silêncio mortal.- É só uma brincadeira com as palavras! - gritou o Rei com cara de bravo, e todos se puseram a rir. - Que o júri determine o vere-dicto – ordenou o Rei pela vigésima vez naquele dia.- Näo! Näo! - reclamou a Rainha. - Primeiro a sentença, depois o veredicto.- Quanta asneira! - disse Alice bem alto. - Onde já se viu dar a sentença antes de julgar se o acusado é culpado ou não?- Mais cuidado com o que fala! - gritou a Rainha, ficando toda vermelha de raiva.

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91- Vou falar o que eu quiser! - respondeu Alice.- Cortem a cabeça dela! Cortem a cabeça dela! – pôs-se a berrar a Rainha, com toda a força dos seus pulmões.Mas ninguém se mexeu.- Quem é que liga para você? - disse Alice (ela já tinha voltado ao seu tamanho normal nesse momento). - Vocês não passam de um pacote de cartas de baralho.Nisso, o pacote todo voou pelos ares e começou a cair por cima dela. Ela deu um gritinho, meio de medo e meio de raiva, e começou a lutar contra as cartas. Achou-se então deitada no recosto do jardim, com a cabeça no colo de sua irmã, que afastava carinhosamente algumas folhas secas, levadas pelo vento, que tinham caído sobre o seu rosto.- Acorde, Alice, minha querida! - dizia a irmã. - Puxa! Mas que sono comprido você teve hoje!- Oh! Eu tive um sonho tão curioso! - disse Alice. E contou para sua irmã, tanto quanto conseguia lembrar, todas as suas estranhas Aventuras, que você acabou de ler.Quando ela terminou, sua irmã a beijou e disse:- Foi de fato um sonho muito curioso, querida. Mas agora corra para casa, você está atrasada para o seu chá! Alice se levantou e foi correndo, pensando, ao longo do camin-ho, como tinha sido maravilhoso aquele sonho.

***

Mas sua irmã ainda continuou sentada, com a cabeça apoiada nas mãos, admirando o pôr do sol e pensando na pequena Alice e nas suas Aventuras maravilhosas, até que ela também começou a sonhar, a seu modo, e este era o sonho:Primeiro ela sonhou com a pequena Alice. Uma vez mais, as mãozinhas seguravam seus joelhos e os olhos vivos e brilhantes olhavam nos seus... ela podia ouvir cada um dos tons da voz de Alice e até ver aquele seu jeito de jogar a cabeça para trás, afastan-do os cabelos que teimavam sempre em sair sobre seus olhos... E enquanto ela ouvia ou parecia ouvir, o jardim todo se tornou vivo, cheio das criaturas do sonho de Alice.A folhagem se agitava a seus pés quando o Coelho Branco pas-sava correndo... o Rato, todo assustado, se debatia na lagoa ali perto... ela ouvia o ruído das xícaras de chá que a Lebre Aloprada e seus amigos tomavam juntos na sua refeição interminável, e a voz estridente da Rainha, condenando seus infelizes convida-dos à morte... uma vez mais o bebê-porco espirrava no colo da Duquesa, com os pratos e travessas se arrebentando ao redor... uma vez mais ouvia o chiado do Grifo e o rangido do giz do Lagarto... E os resmungos dos porquinhos-da-Índia, que foram ensacados porque batiam palmas, enchiam o ar, misturados com o soluçar longínquo da infeliz Falsa Tartaruga.Ela então se sentou, mantendo os olhos fechados, e acreditou um pouco no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abrir

Page 92: Alice no País das Maravilhas

92os olhos de novo e tudo voltaria à aborrecida realidade... o barulho da folhagem se agitando seria o sopro do vento, e o som da água cor-rendo viria do balançar dos caniços... o tintilar das xícaras se transfor-maria no sininho das ovelhas e os gritos da Rainha seriam a voz do jovem pastor... e os espirros do bebê, o chiado do Grifo e todos os outros ruídos esquisitos se tornariam (ela sabia) o barulho confuso das várias atividades do campo... assim como o mugir do gado, à distância, tomaria o lugar dos tristes soluços da Falsa Tartaruga.Por último, ela se pôs a imaginar como, muito mais tarde, essa sua irmãzinha seria uma mulher adulta. E como ela conservaria, através dos seus anos maduros, o coração simples e afetuoso da sua infân-cia. E como ela reuniria ao seu redor outras crianças e, dessa vez, faria os olhos delas brilhar de alegria com tantas histórias fantásticas. Talvez até mesmo com o seu velho sonho do País das Maravilhas. E como ela se emocionaria com as suas tristezas tão puras e encontraria prazer nas suas alegrias tão simples, lembrando-se da sua própria infância e dos dias felizes de verão.

Fim

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Para Maria da Graça(Paulo Mendes Campos)

Agora que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no país das Maravilhas.Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.A realidade, Maria, é louca.Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?”.Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é o lugar comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás.

Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevi-tável.Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.Somos todos bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acon-tece, geralmente, às pessoas que comem bolo.Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon!” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experi-menta o ponto de vista do rato.Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gatos se fosses eu?“.Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão

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97fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escon-didos que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhastes.Disse o ratinho: “Minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes.Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mais devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também ac-ontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim:

o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte: É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas.Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei casti-gada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

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