alguns comentários a respeito da territorialização do movimento dos trabalhadores sem-teto...
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Esse trabalho se propõe a realizar uma breve análise das práticas espaciais desempenhadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-teto/PE em Recife, enfatizando seu processo de territorialização. Procura-se demonstrar como ocorre tal prática no âmbito da atuação desse movimento e de que forma ela promove transformações estruturais na cidade. Com base nos resultados do trabalho de dissertação do autor, concluímos que esse movimento sem-teto tem na territorialização o ponto de partida de toda a sua luta e que a Geografia deve compreender esse processo de apropriação dos espaços por meio de uma noção de território mais atrelada às práticas sociais cotidianas e aos micropoderes que são constantemente exercidos no interior das sociedades.http://revista.ufrr.br/index.php/actageo/article/view/1843TRANSCRIPT
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ALGUNS COMENTRIOS A RESPEITO DA TERRITORIALIZAO DO MOVIMENTO DOS
TRABALHADORES SEM-TETO (MTST/PE) EM RECIFE
SOME COMENTS ABOUT TO TERRITORIALITY OF THE HOMELESS WORKERS MOVEMENT
(MTST/PE) IN RECIFE (BRAZIL)
ALGUNOS COMENTARIOS SOBRE LA TERRITORIALIZACIN DE LO MOVIMIENTO DE LOS
TRABAJADORES SIN VIVIENDA (MTST / PE) EN RECIFE (BRASIL)
Otvio Augusto Alves dos Santos
Universidade Federal de Pernambuco
Resumo
Este artigo tem o objetivo de realizar uma breve anlise das prticas espaciais desempenhadas pelo
Movimento dos Trabalhadores Sem-teto/PE em Recife, destacando seu processo de territorializao.
Procura-se demonstrar o desenrola dessa prtica no mbito da atuao desse movimento e a forma a partir da
qual ela promove transformaes estruturais na cidade. Com base nos resultados do trabalho de dissertao
do autor, conclui-se que esse movimento sem-teto tem na territorializao o ponto de partida de toda a sua
luta e que a Geografia deve compreender esse processo de apropriao dos espaos por meio de uma noo
de territrio mais atrelada s prticas sociais cotidianas e aos micropoderes que so constantemente
exercidos no interior das sociedades.
Palavras-chave: Movimento Sem-teto; Prticas espaciais; Territorializao
Abstract
This paper aims realize a brief analysis about the spatial practices performed by Movement of Homeless
Workers in Recife, emphasizing his territoriality. We seek demonstrate how this practice happens in
actuation and how it promotes structural changes in the city. Supported in the results of the dissertation of
the author, we concluded that this movement has in the territorialization process the base of all his struggles
and that Geographers must study this practice through of a notion of territory most related with the social
quotidian practices and the micro-powers that are exercised in the societies.
Key words: Homeless Movement; Spatial Practices; Territoriality
Resumen
Este trabajo tiene como objetivo hacer un breve anlisis de las prcticas espaciales realizadas por lo
Movimiento de los trabajadores sin Vivienda en Recife, enfatizando el proceso de territorializacin. Se
pretende demostrar cmo sucede esta prctica en la accin de este movimiento y cmo se promueve cambios
estructurales en la ciudad. Con base en los resultados de la disertacin del autor, llegamos a la conclusin de
ISSN 1980-5772 eISSN 2177-4307
ACTA Geogrfica, Boa Vista, v.8, n.18, set./dez. de 2014. pp.55-71
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que este movimiento tiene en la territorializacin el punto de partida de todas sus luchas, y que los geografos
deben entender este proceso de apropiacin de los espacios por medio de una nocin de territorio ms
vinculada a las prcticas sociales cotidianas y a los micropoderes que son ejercidos en las
sociedades.Palabras clave: Movimiento de los sin vivienda; praticas espaciales, territorializacin
Introduo
Como afirmamos em Santos (2012), outras formas de luta insurgiram mais recentemente na realidade
urbana brasileira, inaugurando novas estratgias de aes polticas. Entre essas novas formas de luta urbana
se destacam os movimentos de luta por moradia, como os movimentos sem-teto ou sem-casa. Mesmo
operando com insatisfaes circunscritas na esfera da reproduo, esses movimentos passaram a empreender
uma nova forma de luta de classe, ocupando espaos nas cidades e construindo suas precrias moradias com
madeiras, lonas e restos de materiais de construo. So movimentos sociais que atuam territorializando e
produzindo outros espaos, muitas vezes a revelia do modelo capitalista hegemnico. Por isso, como
afirmou Porto-Gonalves (2006), tratam-se de sujeitos sociais cuja compreenso de sua natureza sociolgica
e de suas aes coletivas nos leva a considerar, via de regra, o seu espao de vida.
O objetivo deste trabalho apresentar alguns dos resultados do trabalho de dissertao do autor1,
onde foram elencadas as diferentes prticas espaciais desempenhadas pelo Movimento dos Trabalhadores
Sem-teto de Pernambuco (MTST/PE) na Regio Metropolitana do Recife (RMR) a partir de uma anlise
crtica dos discursos de seus integrantes. Em funo do espao, daremos nfase apenas prtica da
territorializao.
Inicialmente, faremos um breve excurso terico a cerca do conceito de territrio na geografia, no
intuito determinar a perspectiva utilizada durante a pesquisa. Em sequencia, apresentaremos de maneira
muito sucinta a trajetria e as diversas prticas espaciais realizadas pelo MTST/PE na RMR para, no final,
caracterizar os diferentes processos de territorializao levados a termo pelo MTST/PE em sua luta
permanente contra o modelo hegemnico de urbanizao.
Concepes de territrio na geografia
Em um trabalho sucinto e extremamente esclarecedor, o gegrafo brasileiro Marcos Aurlio Saquet
(2010) expe as inmeras abordagens e concepes de territrio, demonstrando tambm a importncia deste
conceito no mbito do desenvolvimento histrico do pensamento geogrfico. Segundo Saquet (2010, p.17),
1 Intitulada Em Busca de Territrios Autnomos: as prticas espaciais do Movimento dos Trabalhadores Sem-teto na Regio Metropolitana do Recife, a referida dissertao foi defendida em Fevereiro de 2013 no Programa de Ps-graduao em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco.
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as abordagens e concepes de territrio transitaram desde uma concepo naturalista e geopoltica para
uma relacional/dinmica:
[...] passa-se de estudos do territrio de matriz biolgica ou com base na atuao do Estado-Nao,
entendendo o territrio como suporte ou conjunto de recursos naturais, para abordagens relacionais-
processuais, reconhecendo-se outros nveis de relaes de poder, os conflitos, a apropriao e
dominao do espao, enfim, o movimento histrico e multiescalar.
A palavra territrio surge ainda na antiguidade com o propsito de designar uma frao do espao
governada por um poder soberano. Os gegrafos daquela poca ainda no haviam se debruado
teoricamente sobre essa categoria de anlise e, por isso, ela sempre foi tratada sem muito rigor cientfico, at
por que a prpria geografia ainda se encontrava em seu estado selvagem, ou seja, ainda no havia se
modernizado e se institucionalizado enquanto uma unidade disciplinar. Por isso, a primeira e mais elementar
discusso explcita sobre o territrio s veio ocorrer na Renascena europia, atravs das contribuies do
pai da Cincia Poltica, Nicolau Machiavel. Os postulados deste pensador presentes, por exemplo, em sua
obra O Prncipe (1513), trazia o que talvez tenha sido a primeira reflexo sobre o Estado e o territrio
(muito mais sobre o primeiro do que o segundo, bem verdade). Nessa obra Machiavel descrevia as
estratgias necessrias para constituio de um principado forte e duradouro atravs da dominao de
espaos e a imposio de uma rgida disciplina, destinada a manter a coeso interna do territrio.
A contribuio de Machiavel serviu para subsidiar o pensamento burgus que estava em vias de sua
fundamentao, mas que s se consolidaria no sculo XVIII com as revolues burguesas. A Revoluo
Francesa e o nascimento do Estado-nao fez difundir uma concepo de territrio atrelada ao poder do
Estado. O territrio passou a ser concebido, ento, como a rea geogrfica cujas regras e normas de
coabitao eram definidas pelos poderes democraticamente institudos. Contudo, a definio conceitual
desta categoria ainda se achava diluda nas discusses sobre o Estado e, por isso, ainda no se podia falar do
territrio enquanto conceito e categoria de anlise da Geografia.
Isso s veio a ocorrer no sculo XIX com a grande contribuio do gegrafo alemo Friedrich
Ratzel. Considerado por muitos como o fundador da moderna Geografia humana, Ratzel entendia o territrio
enquanto uma rea de recursos naturais. Por isso, em sua concepo, o territrio era muitas vezes tratado
como solo (Boden). Na verdade, as reflexes sobre a natureza, o Estado, as raas humanas e as paisagens
naturais estavam no cerne das preocupaes de Ratzel, refletindo a modernidade ento galopante na Europa
e o processo de unificao da Alemanha.
Como bem resume Saquet (2010, p. 31), Ratzel fundamenta sua anlise a partir de pressupostos
positivistas. Seu mtodo indutivo resume-se na observao, descrio e classificao das paisagens, bem
como na defesa de uma concepo de territrio atrelada ao substrato, s condies naturais necessrias a
realizao da vida humana. Fazendo isso, Ratzel naturaliza o povo e o territrio, ligando-os ao Estado-
Nao.
Essa noo de territrio atrelada ao Estado-Nao perdurou como paradigma na Geografia durante
dcadas, sendo apenas repensada no extenso processo de renovao desta disciplina, ou seja, a partir da
segunda metade do sculo XX. Essa renovao, por sua vez, deu-se mediante distintos fatores. Dentre eles,
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vale destacar, esto os repdios antipositivistas contra as ideias de regio e paisagem (em suas acepes
tradicionais) que insurgiram no mbito do processo de renovao crtica da Geografia. A dialtica
materialista e a crtica marxista da economia poltica, por certo, foram basilares nesse processo, mas outras
perspectivas filosficas tambm foram cruciais, tais como a fenomenologia. Autores como Jean Gottmann,
Henri Lefebvre, Giuseppe Dematteis e Robert Sack foram decisivos nesse processo de rejuvenescimento do
conceito de territrio (SAQUET, 2010).
Mas nada foi to determinante ao processo de renovao deste conceito do que a noo de poder
adjudicada pelo filsofo francs Michel Foucault (1995, 1997, 2001 [1986] e 2009 [1979]). Como se sabe, o
poder sempre foi tradicionalmente concebido enquanto um corpo nico do qual se podia apropriar para o
governo. Contudo Foucault revolucionou essa noo ao dizer que o poder no algo do qual se pode
apropriar, mas unicamente se exercer. Embora no tenha desenvolvido nenhum trabalho sistematizado sobre
o poder, Foucault o incluiu em seu projeto filosfico, refletindo sobre essa categoria em diversos trabalhos.
Para Foucault, no possvel descobrir a origem do poder ou as formas de se obt-lo, mas apenas identifica-
lo e caracteriza-lo no interior dos diferentes mecanismos de poder existentes e dispersos nas relaes sociais.
Com efeito, o poder para Foucault no possui uma unidade basilar, ou alguma espcie de ponto irradiador,
pois ele se encontra diludo nas relaes sociais. E por conta dessa sua disperso nas sociedades, no se pode
se apoderar do poder, uma vez que ele , na verdade, constantemente exercido. Neste sentido, o fenmeno
da apropriao e da dominao de espaos preexiste ao Estado, pois o poder exercido de diferentes formas
no mbito das relaes sociais cotidianas.
Foi a partir dessa noo de poder em Foucault que surgiram as chamadas abordagens relacionais
sobre o conceito de territrio, abordagens essas que primavam mais os micropoderes do que os
macropoderes na constituio dos territrios. Foi a partir de Foucault, entre outras referncias, que Claude
Raffestin elaborou uma das propostas mais complexas e determinantes para o novo conceito de territrio.
Sua perspectiva parte da ideia de que toda ao do homem no mundo tem por caracterstica intrnseca um
processo de apropriao do espao, uma territorializao. O territrio corresponde, assim, a um espao onde
se projetou um trabalho primeiramente idealizado por um ator social. Esse ator o sujeito da
territorializao, o que se apropriou de certa parcela do espao. O territrio ocorre de maneira difusa, junto
s prticas cotidianas das pessoas. Portanto, o que Raffestin props foi, em suma, a superao da noo
Geopoltica do poder e do territrio, sugerindo uma concepo para alm da institucionalidade do Estado, ou
seja, uma noo de territrio ao nvel das relaes sociais cotidianas. O territrio, a partir de ento, deixou
de ser concebido enquanto o espao de soberania de um Estado e passou a ser entendido enquanto uma
frao do espao apropriada pelas relaes de poder exercidas cotidianamente.
Depois, no desenvolvimento das demais abordagens relacionais, tem-se entre as dcadas de 1980 e
1990, uma inflexo para abordagens cada vez mais idealistas, que privilegiavam a dimenso simblica ou
imaterial dos territrios. Essa tendncia se intensificou, sobretudo, depois da seminal contribuio de
Bourdieu com seu "Poder Simblico" (2007). Uma outra importante contribuio que vai caracterizar o
surgimento de uma concepo de territrio numa perspectiva imaterial advm de Bonnemaison e Cambrzy
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(apud HAESBAERT, 2007). Esses dois autores radicalizaram essa perspectiva idealista, atrelada s relaes
de poder simblico e, conforme um ponto de vista mais contemporneo, atriburam primazia aos valores e a
cultura na constituio dos territrios.
Portanto, de base para sustentao do Estado, passou-se a uma concepo relacional e imaterial de
territrio. E foi neste mesmo processo de desenvolvimento da abordagem territorial que os gegrafos
passaram a levar em conta, cada vez mais, o movimento. Isso porque, com a globalizao, foi necessrio
levar em conta a dinamicidade dos territrios diante das fortes e constantes mudanas em nvel material e
imaterial proporcionadas pelo desenvolvimento das redes de comunicao. Autores como Manuel Castells
(2008) e Bertrand Badie (1995) foram importantes nesse processo, uma vez que evidenciaram o fim dos
territrios em sua acepo moderna, constatando uma sociedade global que passou a se organizar
socioespacialmente atravs de redes. Ou seja, a lgica zonal de organizao socioespacial fora subsumida
pela lgica reticular.
Essa concepo de territrio que compreende o movimento teve tambm na contribuio de autores
no gegrafos como Deleuze e Guattari um de seus principais desenvolvimentos e refinamentos. Como se
sabe, esses autores so responsveis pela introduo, na Geografia, das noes de desterritorializao e
reterritorializao. "Simplificadamente podemos afirmar que a desterritorializao o movimento pelo
qual se abandona o territrio, ' a operao de linha de fuga' e a reterritorializao o movimento de
[re]construo do territrio" (DELEUZE & GUATTARI apud HAESBAERT & RODRIGUES, 2002, p. 14)
(acrscimos nossos). Para esses autores, desterritorializao e reterritorializao so duas fases de um
mesmo processo, uma vez que constituem o prprio devir da realidade social do ponto de vista material e
imaterial. Mais tarde Haesbaert (2007) vai chamar de multiterritorialidade o processo socioespacial
contemporneo caracterizado pela sobreposio de territrios e que tem possibilitado a vivncia social entre
diferentes territrios em escalas e tempos distintos.
Ademais, foi luz destas ltimas abordagens que procuramos fundamentar a nossa perspectiva
durante a pesquisa. Neste sentido, procuramos juntar elementos e construir uma abordagem consequente da
unio dessas ltimas concepes, ou seja, o territrio enquanto relaes de poder, operando a partir de uma
frao do espao, de maneira dinmica e nos nveis material e simblico.
Essa territorializao ocorre, vale destacar, depois ou durante o processo de produo do espao
geogrfico, pois a partir da construo de territrios que, muitas vezes, os sujeitos produzem seus espaos.
Da mesma forma, eles tambm se apropriam do que j est constitudo, inaugurando com isso novos usos e,
no limite, produzindo novos espaos. Nessa apropriao concreta incidem aspectos imateriais e dinmicos,
possibilitando o surgimento de fenmenos como a construo dos territrios simblicos, dos territrios-
redes, da multiterritorialidade etc.
Os movimentos sociais urbanos contemporneos, por exemplo, s podem ser plenamente
compreendidos a luz dessa concepo de territrio, uma vez que eles frequentemente se apropriam
dinamicamente de certos espaos das cidades como forma de conquistar a emancipao dos indivduos
envolvidos, seja no mbito material ou imaterial.
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O movimento dos trabalhadores sem-teto de Pernambuco e suas prticas espaciais
A territorializao de espaos na cidade a primeira e mais importante prtica espacial
desempenhada pelo MTST/PE na Regio Metropolitana do Recife. Essa uma de muitas outras
constataes que obtivemos enquanto resultado de nosso trabalho de dissertao. Nesse mesmo trabalho
foram elencadas as diferentes prticas espaciais desenvolvidas pelo MTST/PE e apontadas as formas atravs
das quais elas podem protagonizar mudanas estruturais na cidade.
Como j esclarecido em Santos (2012 e 2013), os movimentos sem-teto so, em sua maioria,
organizaes que visam amparar famlias economicamente muito pobres, mas que tambm organizam
mobilizaes, ocupaes e outras aes polticas at que essas famlias sejam atendidas por programas
habitacionais de interesse social. Em Recife, o MTST/PE surgiu na ocasio da ocupao do prdio do
Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), no bairro de Santo Antnio, centro do Recife, em 1999.
Essa ocupao, por sua vez, foi resultado de uma marcha organizada pela Central nica dos Trabalhadores
(CUT), pela Comisso Pastoral da Terra (CPT) e pelas demais organizaes que compunham o Frum de
Luta por Terra, Trabalho e Cidadania.
Por conta de choques de interesses entre lideranas pertencentes a diversos partidos e movimentos
sociais que atuavam naquela ocupao, uma importante fatia de lideranas e ocupantes mais prximos ao
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST) e ao Partido dos Trabalhadores (PT) afastaram-se do
ato, passando a construir a bandeira e os princpios do MTST Pernambuco.
O MTST/PE hoje o mais importante movimento sem-teto em atuao na RMR, chegando a
coordenar mais de 48 ocupaes em todo o Estado de Pernambuco. Atualmente, esse movimento participa
de inmeros Fruns e Conselhos destinados a discutir os rumos das cidades, contribuindo na formulao de
polticas pblicas graas aos instrumentos participativos consolidados pelo Estatuto da Cidade.
Em sua trajetria na RMR, o MTST/PE vem construindo sua luta por meio de diferentes prticas
espaciais: a territorializao, a ressignificao de espaos e a construo de redes socioespaciais2. Ambas
ocorrem de maneira complementar e, muitas vezes, simultaneamente, tendo como objetivo a construo
coletiva da emancipao das famlias sem-teto.
A territorializao corresponde ao processo de apropriao dos espaos da cidade, com carter
permanente ou temporrio, de abrangncia familiar ou coletiva. Nesse sentido, as ocupaes se constituem
no principal tipo de territorializao, pois a partir dela que toda a atuao do MTST/PE edificada. Em
suma, essas ocupaes correspondem a aes coletivas organizadas que visam se apropriar de terrenos
2 Nosso estudo tomou por base o trabalho de Souza (2010), para quem h seis prticas espaciais provenientes dos ativismos
socioespaciais urbanos contemporneos: a Territorializao em sentido estrito; Territorializao em sentido amplo;
Refuncionalizao/reestruturao do espao material; Ressignificao de lugares; Construo de circuitos econmicos
alternativos; Construo de redes espaciais. Como se pode depreender, no utilizamos as mesmas definies do autor, pois nosso
objetivo foi identificar as prticas do MTST/PE em sua atuao real.
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baldios ou edificaes abandonadas para, a partir de ento, desencadear um processo de resistncia e luta
pela conquista de moradias. Sobre os diferentes tipos de territorializao nos debruaremos mais adiante.
A ressignificao de espaos, por sua vez, corresponde ao processo por meio do qual os sem-teto
atribuem novos significados, novos valores e novos usos a certos espaos da cidade. por meio dessa
prtica que os sem-teto fazem frente ao sentido burgus da propriedade privada, na medida em que realam
a funo social das propriedades urbanas. J em suas passeatas e protestos, os sem-teto resgatam o sentido
principal dos espaos pblicos, reafirmando-os enquanto lcus da atividade poltica.
Por fim, a construo de redes socioespaciais diz respeito ao processo por meio do qual o MTST/PE
estabelece articulaes de cooperao tcnica e poltico-pedaggica, nas mais diversas escalas geogrficas.
Tais redes so constitudas sob o fito de fortalecer as lutas do movimento e as possibilidades de conquista de
seus principais objetivos, que a garantia de moradias e a emancipao das famlias sem-teto.
Foram a partir dessas prticas, portanto, que o MTST/PE construiu sua trajetria, garantindo a
conquista de moradias para inmeras famlias pobres, mas tambm fazendo frente ao modelo hegemnico de
urbanizao em curso. No trabalho em tela, focaremos apenas a prtica da territorializao. Procuraremos
agora descrever como elas se processam no mbito da atuao do MTST/PE e, qual sua importncia na luta
deste movimento.
A territorializao do mtst/PE em Recife
Como dito, a partir da territorializao de certos espaos da cidade que o MTST/PE inicia todo o
seu processo de resistncia e luta contra a urbanizao capitalista. Na realidade desse movimento, essas
territorializaes se efetivam de diferentes formas, a partir de diferentes motivaes e com diferentes
objetivos. A ocupao a principal delas, mas podemos tambm destacar as passeatas, os protestos e as
territorialidades intra-ocupao.
i) As ocupaes:
Correspondem a um conjunto de aes muito bem arquitetadas por parte das lideranas e das famlias
sem-teto que visa, como dito, apropriar-se de terrenos baldios e edificaes abandonadas para, a partir dali,
desencadear todo o seu processo de resistncia e luta pela conquista da moradia e da emancipao:
Nas ocupaes, a gente fazemos um levantamento do terreno, n?! E convidamos as famlias, vamos
de porta em porta e explicamos para as famlias qual o objetivo do movimento, qual o trabalho que
o movimento faz pra conquistar a moradia. E a gente fazemos reunies, ns temos de oito dez
reunies. E depois dessas dez reunies, a gente ocupamos o terreno ou prdio, dependendo do que
seja (Entrevista com membro da coordenao estadual do MTST/PE em 29/12/2012, em Recife).
(Quando interpelada sobre como se organiza uma ocupao...)
Uma ocupao surge de uma conversa entre algumas famlias que esto necessitadas junto com os
coordenadores que j tem essa experincia. A gente no ocupa um lugar por ocupar! A gente organiza
o espao por mais de trs meses, v os nibus. As famlias s sabem que vo ocupar aquele espao no
dia da ocupao. Chegando l a gente divide os lotes. Cada famlia pega seu lote que so de tamanhos
iguais. Geralmente eles so muito pequenos, devido ao grande nmero de famlias, mas isso o que a
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gente faz. Dali em diante, naquela mesma noite, a gente tira uma coordenao local, n?! Uma
coordenao que vai tentar estruturar aquele momento. Hoje a gente no quer passar mais de seis
meses numa ocupao, at porque muito sub-humano, n?! Ento a gente tenta ir, fazer o ato,
chamar a ateno do municpio e do governo. Mas enquanto a gente estiver l, tem suas regras. Temos
coordenadores locais e temos apoios. Ento, se tiver porto, ns temos que nos dividir, homens e
mulheres, para que se tenha a segurana adequada [...] Ns estipulamos que haja uma contribuio de
trs reais para que a manuteno daquela ocupao permanea (Entrevista com membro da
coordenao estadual do MTST/PE em 09/01/2013, em Recife).
(A respeito dos critrios utilizados para a escolha dos terrenos e edifcios a serem ocupados...)
Primeiramente, a gente procura terrenos e prdios que no sejam privados, que sejam do governo
federal, municipal ou estadual. Mas que no seja de empresas. Por qu? Por que a ideia de ocupar,
alm de chamar a ateno da sociedade, tambm fazer daquilo ali um empreendimento futuro.
Ento, a primeira coisa que a gente visualiza aquilo como um empreendimento. O segundo que a
gente no procura ir muito longe de onde as famlias j moravam, tipo em gua Fria. A gente pega
famlias daqueles bairros vizinhos e a j visualiza um terreno que est desocupado h muito tempo.
Ento a gente no tira aquelas famlias que j tinham ali seu habitat h muito anos. A gente tenta ver
terrenos e edificaes que estejam prximos. Hoje a gente est at mais ousado, agente est at no
centro. Como voc sabe, ns ocupamos o Trianon, ocupamos o IBGE, porque a gente acredita que
morar no centro tambm para famlias de baixa renda, e no s para famlias de classe mdia. Ento
mais ou menos essa linha, essa diviso que a gente tem (Entrevista com membro da coordenao
estadual do MTST/PE em 09/01/2013, em Recife).
O alto grau de organizao e o carter sistemtico das ocupaes o que distingue os prprios
movimentos sem-teto dos demais movimentos sociais urbanos ou de luta por moradia. Os motivos que
levam a realizao de uma ocupao, segundo as lideranas, correspondem quase sempre s demandas
populares. Mas o surgimento em maior ou menor frequncia pode se dar tambm em funo de desavindos
com alguma postura governamental.
Olhe, por ns, j dissemos isso em vrios lugares, ns no achamos nenhuma graa em ocupar, n?!
No achamos nenhuma graa em ver um "mi" de gente na rua gritando por moradia, fazendo
paralisao, queimando pneu. Ns fazemos juntamente com este coletivo, por falta ou por uma
ausncia de uma poltica habitacional no pas. Ento, a ausncia de uma poltica habitacional que
move as pessoas, as famlias, os sem-teto a se organizarem para fazer o que a gente chama de
ocupaes (Entrevista com membro da coordenao estadual do MTST/PE e coordenador nacional da
UNMP em 29/01/2013, em Recife).
Conforme informaes obtidas nas entrevistas que basearam a dissertao do autor, mais da metade
dos sem-teto justificam as ocupaes enquanto ato poltico, alm da demanda popular. Neste sentido vale
conferir o que disse uma das coordenadoras estaduais do movimento:
(Sobre os motivos que impulsionam a realizao de ocupaes...)
Existe uma falta de dilogo com os municpios. Ora, se voc tem um movimento organizado, se tem
demanda de famlias precisando de habitacionais e o municpio no chama esse movimento para
conversar, ignora literalmente. Isso impulsiona o movimento a fazer o qu? A ocupar! O movimento
no ocupa porque acha bonito, pelo contrrio. Muitas vezes a gente est acampado, eu j vivenciei
isso por cinco anos, e sub-humano voc no ter um banheiro, n?! No ter espao de lazer, no ter
energia [...] Ento a gente ocupa por conta disso, um dos principais critrios esse, a falta de dilogo
com os municpios, n?! Se o municpio tiver um dilogo com o movimento, inscrever essas famlias
do movimento e essas famlias forem beneficiadas, no teria o por que de a gente estar ocupando, n?!
Ns faramos atos, como a gente sempre faz no dia mundial do habitat, atos com o Frum de Reforma
Urbana, ns iramos continuar fazendo tudo isso. Agora, o acampamento ele se faz necessrio por
conta disso, porque no h um dilogo com os prefeitos nos municpios e o movimento. O que
impulsiona justamente isso, a falta de habitacionais e a falta de dilogo entre os municpios e o
movimento (Entrevista com membro da coordenao estadual do MTST/PE em 09/01/2013, em
Recife).
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Esse carter poltico das ocupaes caracteriza ainda mais esses territrios como resultado de
relaes de poder. Na verdade, apenas o fato de haver um grupo de excludos agindo por sobre o espao
urbano j nos induz a supor que nesses territrios h, como em nenhum outro, um conflito de poderes com o
resto da cidade, pois a urbanizao em curso intrinsecamente desigual e se reproduz mediante a construo
social de uma pobreza crnica e politicamente amorfa. Toda ao dos sem-teto, portanto, mesmo que pouco
pretensiosa e despida de intenes radicalmente transformadoras, naturalmente consegue fazer frente ao
modelo de produo do espao urbano capitalista.
O referido processo de luta contra a urbanizao posta se faz ainda mais notvel diante da forte
participao coletiva exercida pelos ocupantes em todo o processo de territorializao. A horizontalidade das
relaes, por si s, uma afronta lgica hegemnica de produo do espao que, por sua vez, quase
sempre hierarquicamente orientada pelo poder econmico.
Embora hajam hierarquias abertamente declaradas entre as lideranas e as demais famlias sem-teto,
a relao entre as representaes locais e as famlias no totalmente assimtrica, assim como a relao
entre os lideres estaduais e os locais. Tem-se, portanto, um modelo hbrido de organizao poltica que
mescla uma estrutura poltica hierrquica (semelhante a sindical ou a partidria) com estruturas simtricas,
horizontais e auto-gestionrias, configurando um modelo de desenvolvimento territorial onde as relaes de
poder entre os ocupantes existem no sentido de direcionar as aes coletivas, sem necessidade de coero e
violncia. Esse carter autnomo das ocupaes est claro nas seguintes falas:
(A respeito dos processos decisrios no mbito da ocupao...)
um trabalho bem coletivo, n?! Pronto, no caso mesmo que aconteceu no Trianon, que a gente teve
que desocupar, n?! E ali veio a coordenao estadual, junto da coordenao local e as famlias, n?!
E a gente passa para as famlias qual o motivo de a gente est saindo dali, porque no tem condies
da gente ficar ali. Ento faz uma avaliao, um levantamento ali e o povo escuta a gente e a gente
escuta o povo. Muita gente chega a interrogar, e diz: "E se l no der certo?!" A gente diz: "Se l no
der certo a gente vai procura de outro terreno e coloca as pessoas, n?!" Sempre tem aquele
trabalho, tudo no coletivo, e ningum trabalha individualmente. At pra tomar uma deciso dentro
de nossas ocupaes, no coletivo. O coordenador local, ele no toma deciso s, certo?! Se tiver de
tirar algum ocupante que esteja perturbando, traz pra coordenao toda, a coordenao toda conversa,
depois a gente leva para o povo, leva para a assembleia, explica a situao, e a assembleia toma a
deciso junto com a coordenao (Entrevista com membro da coordenao estadual do MTST/PE em
29/12/2012, em Recife).
(A respeito do movimento e das ocupaes...)
Ela tem uma hierarquia, uma hierarquia declarada. Porque? Porque num encontro nosso, ns
elegemos uma coordenao estadual. Essa instncia de coordenao estadual responde politicamente
pelo rumo da organizao. Ento ela tem uma coordenao. Essa coordenao composta por
coordenadores de rea n?! Que so os representantes dos trabalhadores. Esses coordenadores de rea que formam a coordenao estadual, este Frum, esta composio entre coordenadores de rea
e estadual... que dirige a organizao politicamente, no ?! Esses coordenadores assumem um
papel poltico na organizao: um de articulao poltica, outro de acompanhar as ocupaes, outro
fica na frente de massa, outro trabalha a questo da formao poltica, outro trabalha a questo das
mulheres, outro trabalha a questo do fortalecimento da juventude, e por a vai... Agora, ns usamos
essa nomenclatura coordenao pra evitar que uma liderana se sobreponha a outra liderana. Ento, todas as decises do movimento, elas so resolvidas na coordenao estadual, ta certo?! Agora,
quando o problema nas ocupaes, a elas so resolvidas nas ocupaes. Quando se esgota l e no
se resolve, ento se traz pra coordenao estadual (Entrevista com membro da coordenao estadual
do MTST/PE e coordenador nacional da UNMP em 29/01/2013, em Recife) (destaques nossos).
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(A respeito das reunies e dos processos decisrios...)
Ns temos reunies, no comeo da ocupao, todas as noites [...] Depois que a ocupao se estrutura,
uma vez por semana com coordenao estadual e a local. E no somos ns quem d a linha, pois
quem d a linha a coordenao local com o apoio da coordenao estadual. E os moradores que no
se sentem a vontade com essas normas, eles se colocam e podem ser mudadas. S que sempre
pensando no coletivo (Entrevista com membro da coordenao estadual do MTST/PE em 09/01/2013,
em Recife).
Por outro lado, devido a certos contextos sociais, algumas ocupaes mantm uma estrutura
organizacional mais hierrquica e desptica, como se pode verificar na fala que segue:
A organizao tem sim uma hierarquia, porque a gente marca as nossas reunies, a gente sempre
comunica Marcos. Tem reunies que ele necessrio, mas tambm tem reunies que ele no
necessrio, porque ele d todo o aval de confiana mim e Claudivnio. E a hierarquia que existe
em nossa ocupao que o coordenador, ele tem que ser respeitado. [...] A hierarquia que a gente faz
que eles tem um certo respeito pela gente porque somos ns que vamos para a prefeitura. Ento
tudo, tudo, toda reunio que a gente faz na prefeitura politicamente, ns fazemos nossa reunio
tambm no acampamento de quinze em quinze dias. No fica nada sem ser passado. A verdade
acontece l na prefeitura, a verdade tambm acontece na ocupao (Entrevista com coordenador local
do MTST/PE em 10/01/2012, em Cabo de Santo Agostinho).
Nesse modelo hbrido de organizao poltica e de territorializao desempenhado pelo MTST/PE,
os lderes locais exercem a funo de catalisadores do permanente processo de politizao das famlias,
rumo construo de sua autonomia e emancipao. Sua funo , na maioria dos casos, mediar conflitos e
convocar todos participao, organizando as reunies e os atos polticos. Eles ainda exercem um papel
educativo, procurando manter a coeso dentro da ocupao, no sentido de salvaguardar sua autonomia em
relao aos ditames da sociedade que a cerca.
Portanto, no h um s sujeito no processo de territorializao do MTST/PE, pois todos os sem-teto
formam um nico corpo coletivo que, em meio a relaes de poder, apropriam-se de alguns recortes do
espao urbano. Mas preciso reconhecer que as lideranas exercem um papel mais importante neste sentido,
pois por meio de sua atuao que o processo de ocupao ultrapassa seu objetivo imediato. Devido ao seu
alto grau de precarizao socioeconmica, as famlias sempre esto mais interessadas nos ganhos matrias
de curto prazo, como a posse da terra ou da moradia. De maneira diferente, a ao das lideranas sempre se
direcionam superao desse sentido imediato da ocupao, consolidando seu carter mais poltico e
transformador, o de construo da emancipao das famlias pobres. Isso est muito claro na seguinte fala:
(Quando interpelado sobre o papel do movimento para as famlias...)
Acho que a reflexo n?! A reflexo poltica da ausncia de um projeto habitacional. Eu acho que a
gente traz uma luz l no fim do tnel para a elevao da autoestima, porque as famlias com que o
MTST trabalha... so famlias que os partidos polticos no querem, as igrejas no querem, porque s
do trabalho, pois so pessoas que tem as vezes sua identidade perdida, sua autoestima l em baixo e
que a sociedade rejeita. Ento, ns temos uma responsabilidade danada de trabalhar esse itens com
essas famlias. Isso muito trabalhoso. No fcil! Ento o MTST consegue, com esta bandeira, fazer
com que as famlias olhem nelas a luz que est no fim do tnel. E atravs dessa bandeira, ressuscitar
nela a autoestima, o sonho, o desejo de conseguir essa moradia. A vontade de se conseguir esse
direito. Evidentemente que a gente incuti na cabea das pessoas, no debate poltico, de que agente no
quer apenas a moradia, agente quer a moradia, a gente quer a diverso, a gente quer o lazer, a gente
quer a comida boa, o trabalho [...] (Entrevista com membro da coordenao estadual do MTST/PE e
coordenador nacional da UNMP em 29/01/2013, em Recife) (destaques nossos).
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Portanto, embora uma ocupao signifique, a priori, uma ao que visa simplesmente obter ganhos
materiais, como uma moradia, trata-se tambm de uma prtica poltica, fundamentada em relaes de poder,
horizontalmente construda e politicamente direcionada pelos coordenadores, e que visa estabelecer um
novo modelo de organizao social e poltica que, muitas vezes, consegue fazer frente ao modelo capitalista,
at porque geralmente se sobrepem ao regime hegemnico de propriedade, s regras, normas e instituies
burguesas.
Cabe ainda registrar as especificidades das ocupaes frente a forma espacial apropriada. Como se
pode perceber, os sem-teto territorializam tanto terrenos urbanos baldios, como edificaes abandonadas.
Para cada um desses tipos de espao apropriado h diferentes conformaes polticas, diferentes desafios
conquista da moradia e diferentes processos educativos e de luta. As ocupaes que se do em edifcios
abandonados, por exemplo, geralmente intentam para a construo de moradias no prprio edifcio, j as
ocupaes em terrenos urbanos geralmente ocorrem como forma de regatear moradias junto ao poder
pblico, independente do local.
Ocupaes como a segunda de Campo Grande (Figura 01), ou a da Rua da Linha buscam
explicitamente a conquista de moradias em outro lugar. J a do Trianon tinha como objetivo a construo
de moradias na prpria edificao. Entretanto, ocupaes de prdios como a do Posto 11 (Figura 02) no
buscavam moradias na mesma edificao, mas em outro lugar. Outras excees so os casos das ocupaes
de Lagoa da Conquista (Figura 03) e a Lus Incio (Figura 04) que mesmo sendo em terrenos baldios,
buscam a construo de moradia no local onde as famlias se encontram.
Figura 01: Entrada da segunda Ocupao Campo Grande, mais conhecida como Favela de Plstico Fotografia: o autor (2013)
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Figura 02: Ocupao Posto 11, na zona norte do Recife Fotografia: o autor (2010)
Figura 03: Esgoto cu aberto na ocupao Lagoa da Conquista, zona sul do Recife
Fotografia: o autor (2010)
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Figura 04: Ocupao Lus Incio, no municpio do Cabo de Santo Agostinho
Fotografia: o autor (2013)
Cada ocupao, portanto, possui suas especificidades. Embora haja certas tendncias do ponto de
vista organizacional, elas no seguem rigidamente objetivos pr-determinados ou regras de funcionamento.
O que elas mais possuem em comum a diversidade.
Por fim, importante tambm destacar o conflito terminolgico que h entre as palavras ocupao e
invaso. Estes termos, como observou Souza (2011), buscam designar a mesma prtica espacial, porm o
primeiro mais utilizado entre os defensores da agenda da reforma urbana que, por sua vez, reconhecem a
legitimidade da apropriao de certos espaos, por parte dos excludos urbanos, como forma de conquistar o
direito cidade. O termo invaso, por seu turno, possui uma conotao muito mais conservadora, pois
geralmente tende a associar o processo de territorializao do espao urbano com a violenta atitude de um
invasor, que se apropria do que de propriedade alheia. O MTST/PE, obviamente, recorre muito mais
primeira definio.
ii) Passeatas e protestos
Outras importantes territorializaes desempenhadas pelo MTST/PE so as passeatas e protestos que
vez ou outra atraem a ateno da opinio pblica. As passeatas so caminhadas coletivas organizadas que
ocorrem pelos espaos pblicos no intuito de chamar a ateno da sociedade para a bandeira e para os
princpios que fundamentam o movimento, bem como para os problemas os quais o movimento procura
combater. J os protestos podem ser caminhadas ou a simples aglomerao de pessoas em espaos pblicos,
onde se entoam palavras de ordem que visam se opor a alguma situao socioeconmica e poltica
desfavorvel.
Embora as duas prticas se confundam, muitas vezes adquirindo o mesmo significado, as passeatas
geralmente so mais pacficas e possuem uma certa periodicidade. Os protestos ocorrem apenas mediante
a instaurao de um contexto socioeconmico desfavorvel e, por isso, costumam adquirir mais visibilidade.
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O que ambas possuem em comum o fato de corresponderem a territorializaes fluidas, apropriaes do
espao urbano que se fazem, desfazem e refazem continuamente durante um dado perodo de tempo.
Em uma passeata ou em um protesto, os sem-teto se apropriam de certos espaos, desterritorializam e
reterritorializam outros espaos de maneira dinmica. Esse territrio fluido e muitas vezes caminhante se
fundamenta, como toda prtica territorial, em relaes de poder. O espao ocupado por uma passeata ou por
um protesto se estabelece a partir de um conflito em relao ao resto da cidade, conflito esse que envolve o
papel dos espaos pblicos e a necessidade de manifestar o descontentamento frente aos desmandos do
poder econmico e do poltico. Esse tipo de territorializao, consequentemente, envolve tambm questes
imateriais, pois na medida em que reala o carter poltico dos espaos pblicos, tal prtica tambm
promove sua ressignificao frente ao sentido atribudo pelo modelo capitalista de produo do espao.
iii) Territorialidades intra-ocupao
Cada ocupao se dispe em um acordo mtuo entre os sem-teto e a cpula maior do movimento,
sendo que cada ocupante possui seu prprio espao, um barraco (quando se trata de ocupaes de terrenos
urbanos) ou um cmodo (quando o espao ocupado um edifcio). Esse territrio individual no interior da
ocupao onde eles executam suas atividades mais ntimas e onde as regras e normas de convivncia so
determinadas no mbito familiar. Fora desses espaos, as regras e normas de coabitao so definidas pelo
conjunto da ocupao e do movimento. As ocupaes se constituem, assim, em um arranjo muitas vezes
conflituoso de pequenos territrios familiares e coletivos (Figura 05).
Figura 05: Parcelamento de uma ocupao para a construo dos primeiros barracos
Fotografia: o autor (2010)
Os coordenadores locais que, como constatamos, possuem um papel catalisador no processo de
politizao dos ocupantes encontram o limite de sua atuao nos territrios familiares, pois as regras e
normas de convivncia familiar geralmente so respeitadas. Poucas so as vezes em que os coordenadores
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locais e o movimento intervm na vida familiar, o que nos leva a crer que o territrio da ocupao possui
uma estrutura interna muito determinada, onde os espaos coletivos e os espaos privados so bem
definidos. Isso est bastante evidente na seguinte fala:
Eu trabalho junto com os coordenadores l dentro. Eu sou pau pra toda obra. Eu sei como fazer, como
trazer, como administrar uma ocupao [...] Voc no pode mandar na porta dos outros pra dentro.
Voc s manda na porta dos outros pra fora. E eu sempre digo aos coordenadores que trabalham
comigo, , esse o quadrado da ocupao, ns temos quatrocentos barracos, a gente manda na via, mas da porta pra dentro quem manda so eles [...] Pra eu entrar, eu s entro se voc me permitir. Eu no posso chegar e emburacar no (Entrevista com membro da coordenao estadual do MTST/PE em 29/12/2012, em Recife) (destaques nossos).
Nitidamente delimitados, os territrios familiares fazem limite com os espaos coletivos que so, em
sua maioria, de usufruto de todos para os momentos de reunio ou mesmo para atividades educativas e
ldicas, como se pode ver na fala que segue:
(A respeito da existncia de espaos para convvio coletivo nas ocupaes...)
Temos n! Temos os espaos que ele coberto. No caso assim, voc chega como um voluntrio, voc
chega e diz: Olha Cludia, ns estamos aqui com dois caldeires de sopa, temos po, queremos
distribuir, no de porta em porta. E a gente temos aqui local, chega voluntrio pra querer dar aula,
porque tem muita gente dentro que analfabeto. E a gente temos a rea coberta, sempre a gente
deixamos o espao, no to grande, mas temos pra fazer nossas reunies, dar aulas, tem aula de
bordado, aula de croch. Ento, sempre a gente temos que ocupar as nossas famlias, nesse convvio
assim, no local, n?! Em Junho agora eu estava no Cabo e a gente fizemos l o dia dos namorados,
n?! Porque raro voc ver comemorar no local se no for voc e seu namorado ou voc e sua
namorada, n?! E a gente fizemos o dia dos namorados n, e foi muito gostoso naquela areazinha
assim fechado. Tivemos poltico l, porque era eleio. Tivemos poltico, tivemos ajuda. Mas ns
sempre temos. A nica ocupao que a gente no temos e se voc chegar l agora e for procurar a
ocupao de Campo Grande, porque como so trs movimentos, o espao ficou pequeno, n?!
(Entrevista com membro da coordenao estadual do MTST/PE em 29/12/2012, em Recife)
(destaques nossos).
Por ltimo, vale acrescentar que a organizao interna de uma ocupao tambm causa de conflitos
entre os ocupantes. Desde o momento inicial da ocupao instaurado um conflito permanente pela
definio dos limites para a construo dos barracos (quando se tratam de ocupaes de terrenos urbanos) ou
pela definio dos cmodos a serem ocupados pelas famlias (quando o espao ocupado um edifcio). Esse
conflito continuamente refreado pelos coordenadores locais e pelo movimento que procuram sempre a
negociao. Contudo, algumas vezes esses conflitos se sobrepem a capacidade de regulao do movimento
e evoluem para disputas individuais generalizadas, onde a coeso do territrio da ocupao posta em risco.
Nesses casos, ou o movimento intervm de maneira mais rgida, ou alguns moradores se retiram da
ocupao por conta prpria, muitas vezes vendendo suas moradias provisrias.
Consideraes finais
Como se pde perceber, a prtica da territorializao basilar luta do MTST/PE. Esse movimento,
assim como muito outros no mundo contemporneo, tem sua atuao calcada em processos de apropriao
dos espaos. E essas territorializaes nada tem haver com os poderes institudos ou com os exerccios de
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legitimao do Estado, pois so orquestradas pela sociedade, sobretudo pelos segmentos
socioeconomicamente excludos. Por isso, para entender esses processos, a Geografia deve lanar mo de
uma concepo de territrio atrelada s prticas sociais cotidianas e aos micropoderes que so
constantemente exercidos no interior das sociedades.
O MTST/PE tem na ocupao o mote de toda a sua atuao, ou seja, a apropriao de certos espaos
da cidade o ponto de partida para sua resistncia e luta. Mas essas territorializaes constitudas no mbito
da atuao do MTST/PE no so estticas, nem apenas concretas, mas tambm dinmicas e abstratas, pois
ao promover passeatas e protestos, esse movimento tambm territorializa descontinuamente os espaos
pblicos, assim como atribuem a eles novos significados. Em outras palavras, os territrios construdos
pelos sem-teto so, de fato, relaes de poder operando a partir de uma frao do espao, de maneira
dinmica e nos nveis material e simblico.
As formas de territorializao realizadas pelo MTST/PE sempre intentaram, primeiramente, pela
conquista de melhores condies de vida para as famlias sem-teto. Mas nesse mesmo percurso, essas
prticas tem transcendido a esfera da reproduo e apontado para uma luta mais radical contra o modo
hegemnico de produo do espao. Dessa forma, no se pode dizer apenas que o MTST/PE territorializa
certos espaos da cidade no intuito de conquistar moradias, uma vez que ele tambm tem promovido um
questionamento profundo da propriedade privada capitalista, dos discursos, regras, normas e instituies
burguesas. A territorializao do MTST/PE em Recife mais que uma ttica obteno de bens materiais,
pois tambm uma estratgia de enfrentamento das condies socioeconomicamente excludentes impostas
pelo capitalismo na cidade. Conclumos, ento, que por meio de sua territorializao, o MTST/PE tem
contribudo para a transformao da cidade, independente das limitaes existentes.
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