algumas notas sobre os desafios de empreender em rede

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1 AUGUSTO DE FRANCO ALGUMAS NOTAS SOBRE OS DESAFIOS DE EMPREENDER EM REDE Um depoimento pessoal

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AUGUSTO DE FRANCO

ALGUMAS NOTAS SOBRE OS DESAFIOS DE

EMPREENDER EM REDE

Um depoimento pessoal

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APRESENTAÇÃO

Durante o ano de 2015 resolvi empreender em rede para valer. Há muitos

anos venho fazendo tentativas, mais como experimentações para minhas

investigações sobre redes, que começaram no final da década de 1990.

Mas foi somente em 2015 que passei a depender financeiramente, em

grande parte, desses tipos de empreendimentos.

Ao mesmo tempo em que empreendíamos não parávamos um minuto de

conversar – eu e alguns amigos - sobre nossos empreendimentos

conjuntos em rede. Foram boas conversas. Como não tenho nenhuma

teoria geral sobre isso, da qual se pudesse inferir uma fórmula aplicável à

vida alheia, fui obrigado a partir da minha própria vida. O que valeu e vale

para mim, por certo, não valerá para outras pessoas. Mas a partir das

minhas próprias experiências posso chegar, quem sabe, a pensar em

situações homólogas e em suas implicações e consequências, pelo menos

para aquelas em que estou envolvido. Afinal, os humanos que vivemos há

seis milênios numa civilização patriarcal, não somos assim tão diferentes.

Saí de casa aos 22 anos. A partir daí já tive que arcar com meus gastos. Na

verdade comecei a trabalhar remuneradamente a partir dos 20 anos, mas

até àquela época nunca pensei muito em dinheiro. E, para falar a verdade,

nem depois. Fazia muitas coisas e delas tirava meu sustento - inicialmente

fui professor, depois dirigi organizações sem fins lucrativos, coordenei

programas de parceria entre governo e sociedade civil e, pasmem!, fui até

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dirigente de partido -, mas sempre dediquei uma ínfima parte do meu

tempo ao trabalho remunerado (em todo tempo restante eu vivia

organizando coisas que não davam um tostão, morando sete anos numa

favela para fazer "trabalho de base", lendo e escrevendo e publicando

muitos livros). Só fui pensar em empreender alguma coisa lucrativa depois

dos 50 anos. Mesmo assim, nunca almejando enriquecer, mas apenas

sobreviver.

Devo dizer que tive imenso sucesso em termos pessoais (consegui

investigar e descobrir algumas coisas novas - pelo menos para mim - e

experimentar muitas outras que desejava). Mas para ter tanto sucesso em

meus empreendimentos pessoais nunca fui bem-sucedido em meus

poucos negócios. Nisso dei uma sorte danada. Já pensaram se tivesse me

transformado num Beto Sicupira ou num João Paulo Lemann? Não poderia

ter feito o que fiz e continuar fazendo o que faço, nem mesmo escrever

este pequeno texto.

As pessoas que associam sucesso nos negócios à virtude (o que raramente

é verdadeiro, mas faz parte da mentalidade de escravos e... de senhores

de escravos que são escravos dos escravos), têm dificuldade de entender

meu ponto de vista. Elas perguntam: mas você não gostaria de ganhar

bem, ter uma vida tranquila, segura, confortável e um futuro garantido,

não ter dívidas, viver de renda, poder comprar o que quiser, realizar seus

sonhos, viajar pelo mundo, enfim, ter tempo livre para fazer o que deseja?

Como decidi - a partir dos 45 anos - nunca mais trabalhar para alguém ou

me empregar em qualquer organização hierárquica, há 20 anos venho

atuando como palestrante, consultor e empreendendo para sobreviver.

Mas não tenho nenhuma ilusão de que meus empreendimentos me darão

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uma vida extremamente confortável e sem preocupações financeiras, com

sobra de tempo para fazer outras coisas folgadamente. Mesmo porque,

que coisas seriam estas? O que faria com mais tempo livre (se todo meu

tempo já é livre, muito mais livre do que o do Gerdau ou o do André

Esteves)? E o que faria com mais recursos? Compraria um castelo? Um

barco? Um carro de luxo? Viajaria? Tiraria férias de um ano? Fumaria

charutos e jogaria golfe? Prá quê?

Sim, para quê tudo isso se eu não pudesse ser a pessoa que me tornei?

Gosto muito dessa pessoa desobediente que sou para trocá-la por

qualquer outra. Para ser esta pessoa que sou, emprego 90% do meu

tempo em atividades que não dão retorno financeiro: pesquiso sobre

redes e democracia, experimento configurar novos ambientes favoráveis

às redes distribuídas e à democracia como modo-de-vida, escrevo textos

que não vendem, faço netweaving gratuitamente, converso sem parar -

inclusive no Facebook - com qualquer um que queira realmente conversar

comigo e tento desconstituir hierarquia e autocracia, obcecadamente,

todos os dias e em todos os lugares em que elas se reproduzem (nas

escolas, nas corporações, nos partidos, nas empresas piramidais e

inclusive nos governos). Convenhamos, tudo isso não é muito compatível

com querer ficar rico.

Na juventude, estranhava muito esse pessoal que quer ficar rico. Na

minha época de universidade havia uns caras assim, mas o espírito do

tempo era outro e eles eram malvistos nos meios que eu frequentava.

Depois não tive mais problemas com isso. Quem quer ficar rico, que tente

ficar. O problema é o custo: como só alguns ficam, o caminho para a

riqueza almejada implica autocondicionamento para competição, luta

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incessante e, não raro, impiedade. É difícil ficar muito rico sem expropriar

algum sobrevalor produzido por trabalho alheio, sem infligir

deliberadamente sofrimentos a outros seres humanos e - agora vem o

fundamental - sem erigir (ou trabalhar para manter e reproduzir)

organizações hierárquicas (basta ver como percorreram tal caminho os

empresários de sucesso que citei neste texto e... milhares de outros). No

Brasil, em particular, é muito difícil acumular uma grande fortuna sem

ajuda do Estado ou sem receber algum tipo de favorecimento político (o

que, na prática, é também um roubo de dinheiro do contribuinte). Quem

não acredita nisso deve estudar a história de nossas grandes fortunas.

De qualquer modo, o custo mais importante desse esforço para ficar rico é

um custo de alma. Você tem que vender uma parte da sua alma

(obedecendo a alguém ou mandando em alguém: é a mesma coisa). Para

ter mais liberdade no futuro - liberdade fornecida supostamente pelo

dinheiro - você tem que restringir sua liberdade no presente. Não pode

ficar fazendo coisas de graça a torto e a direito. Não pode ficar brincando,

se dedicando ao que não dá resultado, pelo simples prazer de fazer e se

comprazer na convivência com seus amigos (ou seja, não pode mais ser

criança). Não pode ficar criando coisas que nunca vão ter valor

econômico. Não pode gastar tempo desenvolvendo projetos ou

construindo protótipos de produtos que não vendem. Para ter sucesso,

você tem que ter claro o seu objetivo e se concentrar nele. Os outros são

importantes na medida em que podem ajudá-lo a alcançar seu objetivo; se

não podem, que se danem: cada qual cuide de si. Quando você começa a

pensar e a se comportar assim, uma parte da sua alma já morreu. Porque

sua alma é o outro em você.

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Tudo que acontece, acontece em ambientes pré-configurados. A questão

é saber se vamos manter a configuração já existente, própria do mundo

hierárquico, ou se vamos reconfigurá-la.

Este livro é sobre isto. Todos os textos reunidos aqui foram publicados no

Facebook durante o ano de 2015.

Tomara que eles possam ajudar alguém que queira se aventurar em

empreendimentos em rede.

Campos do Jordão, 24 de dezembro de 2015

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ÍNDICE

Embarcar Hakim Bey na Nabocodonozor

Reinstalar o sistema

Resistir à tentação de formar um grupo

Um papo que não enche barriga

A fronteira final

Uma dificuldade que é uma potencialidade

O desafio básico

Os custos invisíveis

Viver da rede

Determinante é como vive o sujeito

Por que temos que ficar sempre vendendo alguma coisa

Reconfigurar o ambiente

Uma síntese

Notas e referências

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EMBARCAR HAKIM BEY NA NABUCODONOZOR

Uma parte considerável das conversas que mantive com os amigos e

amigas que empreendem comigo em rede foi sobre nosso projeto de

montar um cluster de inteligência colaborativa. Decidimos configurar um

ambiente em rede para ser uma espécie de usina de empreendimentos

inovadores. Descobrimos que isso é mais fácil de pensar e projetar do que

de fazer e que, para fazer isso realmente, seria necessário embarcar

Hakim Bey na Nabucodonozor. Explico.

Todo aglomerado de pessoas configurado segundo um padrão de rede

distribuída é capaz de ensejar algum tipo de swarm-intelligence

tipicamente humana (coletiva e colaborativa). Por que isso não acontece

com tanta frequência ou não é tão facilmente observável por nós? Por que

não realizamos nossas atividades em clusters de inteligência colaborativa?

Bem, em primeiro lugar, porque os aglomerados funcionais aos quais nos

conectamos não têm, em geral, uma topologia com altos graus de

distribuição. Coletivos de trabalho-empreendimento (empresas e grupos

de empreendedores, organizações da sociedade civil), estudo-investigação

(escolas, universidades, centros de pesquisa) e devoção (igrejas e outros

grupos identitários que se congraçam para realizar determinadas práticas

de conexão com realidades transcendentes), além, é claro, dos coletivos

parentais (famílias), são centralizados. Ora, quanto mais centralizada for a

rede, menos chances haverá de nela ocorrerem os fenômenos interativos

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que estão implicados na emergência da inteligência coletiva, em especial

os múltiplos laços de retroalimentação de reforço ou feedback positivo, as

reverberações, o looping de progressão - não recursivo, o clustering

espontâneo, o swarming, o cloning e o crunching. A presença de campos

hierárquicos está sempre associada à déficits de empowerfulness. Dizendo

de outro modo: a produção artificial de escassez requerida pelo mando e

pelo comando-e-controle verticaliza o tecido social restringindo ou

condicionando fortemente as fluições. E as livres-fluições são uma espécie

de corrente circulatória do organismo coletivo capaz de inteligir e de

congruir tempestivamente, alostaticamente (quer dizer, de aprender).

Em segundo lugar por razões ambientais. Tentativas de formação de

clusters de inteligência colaborativa em ambientes adversos, com fluições

deformadas por centros com alta gravitatem, acabam não sendo bem-

sucedidas porque as perturbações no campo não permitem o tempo

necessário de interações para que um organismo social adquira uma

dinâmica própria capaz de se reproduzir (que é mais ou menos o que

chamamos de vida social ou convivência). Quando não há um "tempo de

interação" suficiente para que as pessoas possam viver a sua convivência,

não se forma nada; ou melhor, o que, mesmo assim, consegue se formar

rapidamente se desfaz também rapidamente, antes que recorra, volte

sobre si mesmo e adquira as características de um sistema estável. O nível

de complexidade necessário para que essa qualidade do campo que

chamei de empowerfulness se faça presente, exige funcionamento

repetido, comportamento iterado e isso não se consegue com equilíbrio,

por certo, mas é próprio de sistemas afastados do estado de equilíbrio,

porém estáveis.

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Por isso essas coisas não costumam acontecer nos templos, nos palácios,

nas grandes organizações que replicam a Torre de Babel

(metaforicamente falando; mas para além da metáfora da Torre de Babel -

cuja interpretação mais óbvia é que as pessoas erigindo uma construção

vertical não se entendem por deficit de conversação - há um padrão que

se replica em grandes corporações, grandes organizações e, inclusive,

grandes edificações (onde o fluxo é necessariamente condicionado). Todas

essas coagulações de fluxos acabam exercendo uma gravitatem tão alta

que capturam as iniciativas que são intentadas no seu interior e, o que é

mais surpreendente, também na sua sombra.

Para usar uma imagem quase-poética, "na sombra do templo" não podem

florescer iniciativas altamente distribuídas, com pessoas altamente

conectadas e com dinâmicas altamente interativas. Nas grandes cidades

da civilização patriarcal, derivas da cidade-Estado-Templo que constituiu -

para usar uma boa expressão do matemático Ralph Abraham - "o

precedente sumeriano", vivemos, de certo modo, sempre dentro ou à

sombra de templos. O que quer que façamos é fortemente influenciado

por poderosas correntes que impedem o desenvolvimento de organismos

sociais que não repliquem o mesmo padrão dominante. É por isso que

quando organizamos qualquer iniciativa queremos logo centralizá-la,

escolhendo um presidente, um coordenador e um estamento gerencial e é

por isso que quando fundamos um grupo queremos logo definir suas

fronteiras identitárias antes da interação (estabelecendo regras, explícitas

ou tácitas, de pertencimento e fidelidade) e exigimos que as pessoas

deixem de ser o que são para assumir um nós organizacional ("vestindo e

suando a camisa"). E impedem porque não permitem o tempo-de-fazer

necessário para que esses organismos alcancem estabilidade. Novamente,

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a hierarquia mata os embriões antes que eles se desenvolvam a ponto de

ganhar relativa autonomia.

Então vamos ver o que acontece. Pessoas se aproximam de pessoas para

desenvolver uma atividade conjunta com o firme propósito de colaborar

em rede distribuída. Ótimo. Mas aí, por algum motivo, as coisas não saem

bem como o planejado. Mesmo que as zonas autônomas temporárias

(aquelas TAZ imaginadas por Hakim Bey) sejam temporárias e todos

saibam disso (que serão sempre bolhas), o problema não é que elas

durem pouco e sim que elas não duram o suficiente (não só em termos de

tempo cronológico, mas em tempo-de-fazer) para ser autônomas. Não há

nada contra o temporário e sim contra o não-autônomo. Não pode existir

nenhum organismo social abaixo de certo grau de autonomia e não pode

ser alcançado esse grau de autonomia sem alguma estabilidade; e não

pode haver estabilidade se o ambiente estiver muito atravessado por

fluxos desorganizadores (não de uma ordem pregressa e top down e sim

da ordem emergente mesmo). Se não houver um tempo-de-fazer (que

não segue o tempo cronológico, mas é capaz de moldá-lo, contraí-lo ou

expandi-lo) suficiente, então a fenomenologia da interação implicada na

inteligência coletiva não se manifestará em qualquer cluster (mesmo que

seus membros tenham os mais firmes e legítimos propósitos

colaborativos).

São tantas coisas que... não dá! As pessoas são levadas pelas correntezas

(geradas por diferença de potencial de acumulação e fluição, quer dizer,

na verdade, geradas por escassez artificial). E aí não perduram numa

iniciativa para gerar uma nova Entidade social (a palavra, assim com

maiúscula, foi um achado de Jane Jacobs (1961) em Morte e Vida das

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Grandes Cidades). De sorte que - para que tal não aconteça - é preciso

embarcar Bey na Nabucodonozor.

É mais ou menos como querer criar uma praça (um ambiente de

convivência regido pela dinâmica do commons) onde as pessoas apenas

trafegam, correndo esbaforidas de um lado para outro, descendo do

ônibus para pegar o metrô e vice-versa. Se as pessoas não pararem, não

sentarem para admirar a paisagem, não conversarem umas com as outras

recorrentemente, não se formará a praça. Porque a praça comum (uma

realidade social, não geográfica) não é o acidente físico ou o equipamento

construído, não é o logradouro dito público e sim um redemoinho no

espaço-tempo dos fluxos, uma região onde o campo tem uma assinatura

particular-comum.

Então, é isso que acontece em boa parte das iniciativas, quer pela primeira

razão, quer pela segunda. A primeira razão (óbvia) é a centralização da

própria iniciativa quando sabemos que só redes podem aprender, só redes

podem ser inteligentes. A segunda razão é a perturbação do campo onde

a iniciativa, mesmo distribuída, está sendo ensaiada. Nesse segundo caso

temos, sim, bolhas, mas que espocam mais rapidamente do que seria

necessário e não chegam a ser Small-Bangs criativos (sim, porque

criatividade é inteligência coletiva, mesmo quando se refrata em

indivíduos). Ou seja, no segundo caso não temos as famosas TAZ

(Temporary Autonomous Zone) do Bey, mas apenas TZ (porque não é que

não sejam temporárias e sim que não chegaram a ser autônomas). Eis o

ponto.

Agora cabe a cada um avaliar por que suas iniciativas em campos

deformados, seja dentro ou mesmo na sombra de centros com alta

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gravitatem (família monogâmica, escola, universidade, igreja, quartel,

corporação, partido, empresa-hierárquica, organizações estatais e

assemelhadas) dissipam tanta energia para se manter ou geram tanta

entropia. Claro que você pode continuar tentando alcançar bons

resultados, achando que os animais serão melhorados pelo adestramento

que recebem no circo (como observou acidamente Nietzsche se referindo

à escola). Claro que você pode justificar tudo dizendo que se não se

adaptar a esses centros não terá como sobreviver para fazer coisas mais

bacanas e inovadoras. Pode até continuar criticando essas instituições-

armadilhas de fluxos para salvá-las delas mesmas (o que lhe exige, porém,

o pagamento de um tributo em tempo-de-fazer e, às vezes, uma atitude

genuflexória ainda que dissimulada).

Nada disso é um conselho para que você se retire para Zion ou para

alguma comunidade alternativa que finja que o que acontece fora dela

não é com ela. Não. É um convite para que você não seja um fornecedor

de energia para a Matrix. Você pode continuar embarcado na

Nabucodonozor, viajando pelos interworlds e entrando nos mundos

hierárquicos, até para ganhar a vida e tentar, de qualquer jeito, fazer

coisas interessantes. Mas tendo clareza das dificuldades de obter

resultados criativos em ambientes reprodutivos.

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REINSTALAR O SISTEMA

Tenho dito aos meus amigos que para ver as coisas de outro modo, mais

compatível com uma sociedade em rede, é necessário reinstalar o sistema

(a expressão faz lembrar a música Admirável Chip Novo da Pitty, mas o

sentido, no caso, é um pouco diferente).

A questão de como fazer as coisas de modo distribuído e, mesmo assim,

não perecer numa sociedade ainda dominada por estruturas

centralizadas, não tem uma resposta pronta. As pessoas pensam: mas se a

cultura ainda reconhece e valoriza o que é centralizado, ao insistir em

fazer diferente não corremos sério risco de fracassar? A questão é real. O

problema é que ela inibe as tentativas de fazer diferente. Não

experimentamos o novo porque concluímos, em geral antes de

experimentar, que ele tem poucas chances de dar certo. Há sete anos

venho travando discussões com pessoas que dizem que não é possível

organizar as coisas em rede "no mundo real". E tenho constatado que as

pessoas que dizem que é impossível organizar iniciativas, lucrativas ou não

lucrativas, de modo mais distribuído do que centralizado, jamais tentaram

fazer qualquer coisa em rede.

O exemplo mais comum é o daquelas pessoas que dizem que são

obrigadas a organizar uma empresa ou entidade de modo tradicional em

virtude das determinações legais. Elas dizem isso porque não lhes ocorreu

que podemos organizar facilmente uma constelação de empreendimentos

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ou iniciativas ativados por pessoas que têm, cada qual, sua própria

empresa e que o que eles chamam de empresa ou entidade pode ser

apenas o branding guarda-chuva sob o qual todos os empreendimentos

ou iniciativas em rede ficarão abrigados. É tão simples. É tão óbvio. Mas

tal ideia simplesmente não surge. Porque o sistema mental-social não foi

reinstalado.

Em princípio tudo que é feito de forma mais centralizada do que

distribuída pode ser feito de modo de modo mais distribuído do que

centralizado. Isso não vale, por certo, para qualquer época, mas pode

valer para a época em que vivemos (justamente esta época de mudanças

tão vertiginosas que configuram uma mudança de época). Há riscos, sem

dúvida! Mas o risco é inerente à aventura de inovar. Toda enterprise tem

mais chances de não achar do que de achar o caminho marítimo para as

Índias. Às vezes não acha mesmo, erra e... acaba descobrindo o Brasil.

Como não há fórmula, nem receita, o maior desafio é pensar diferente

para encontrar modos diferentes de fazer as coisas. Uma das pistas para

isso é deixar de pensar no mercado como conjunto de consumidores

(indivíduos) que se comportam estatisticamente de uma determinada

maneira e começar a pensar no campo (social), nas deformações do

campo e na assinatura do campo.

Por exemplo, todo mundo sabe que introduzir uma deformação no campo

gerando artificialmente escassez dá bons resultados para vender um

produto ou um serviço. Tem menos a ver com a qualidade do produto ou

serviço do que com a forma como ele é apresentado. É na forma que as

pessoas reconhecem a assinatura do campo e então valorizam o que está

sendo oferecido e pagam pela oferta.

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Isso acontece porque os organismos sociais se sintonizam pela linguagem

(lato sensu, incluindo palavras e imagens), por um linguagear específico

(compreendendo modos, jeitos, trejeitos, protocolos) e, em suma, por um

modo de interagir. Tudo isso é assinatura de campo (ou revela uma

assinatura de campo). Na sociedade hierárquica, o que é apresentado

como escasso, raro, inédito e não poderá ser conseguido de outra forma,

deve valer mais. Compre agora ou você perderá a chance. Oferta especial

válida somente até o fim do estoque. Pague hoje ou não terá o desconto

de X%. Se você ligar agora ("Ligue Djá", hehe) ganhará uma recompensa

(ao comprar este magnifico liquidificador você levará de graça mais três

copos plásticos adicionais). No entanto...

Ainda que tudo isso seja uma evidência, suficientemente testada, não está

provado que outras assinaturas de campo não serão reconhecidas. Em

mundos sociais altamente conectados, as pessoas se comportam também

de modo diferente do esperado. As estatísticas que apoiam as estratégias

de marketing não conseguem captar comportamento emergente. Do

contrário poderiam prever o que seria capaz de atingir o tipping point e

vender exponencialmente (e elas nunca conseguem fazer isso,

felizmente). E como as pesquisas computam inputs de indivíduos, também

não dão conta da rápida clusterização que caracteriza o tecido social de

mundos de alta interatividade (as pessoas se agrupam e desagrupam em

torno de temas, estilos, modas, preferências e necessidades reais ou

imaginárias, numa velocidade jamais vista em nenhuma época da

história).

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RESISTIR À TENTAÇÃO DE FORMAR UM GRUPO

Se queremos fazer em rede as coisas que fazemos para ganhar a vida, isso

implica, em primeiro lugar, resistir à tentação de organizar (ou pertencer

a) um grupo. Em 2011 escrevi um texto sobre isso: Resista à tentação de

pertencer a um grupo (1).

Dizer isto, porém, é mais fácil do que fazer (no caso, não-fazer). Porque se

começamos a nos comportar como um grupo (mesmo chamando-o de

rede), então é sinal de que não conseguimos resistir à tentação de

pertencer a um grupo.

Isso tem implicações nos negócios que estamos fazendo. Não é o grupo

que define os empreendimentos que fazemos, mas o contrário. Cada

empreendimento gera uma clusterização diferente e deve ser regido por

normas diferentes. Não há uma organização pairando acima de todos os

empreendimentos em que entramos. Cada coisa que fazemos é um

mundo social diferente que se configura, gera uma pessoalidade fractal

diferente e, portanto, deve ser regido por um acordo de convivência

diferente. O que nos dá identidade não é uma marca ou um nome

proprietário pré-existente e sim, de partida, uma sintonia fina e, depois,

uma sinergia própria que é característica de uma trajetória particular de

adaptações (se tal sinergia acontecer, pois não se pode saber se ocorrerá

antes da interação).

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Ao não fazer um grupo estamos fazendo algo muito mais importante - e

arriscado - do que um grupo. Estamos mantendo a abertura para que a

organização emergente se forme em outro mundo (no espaço-tempo dos

fluxos, vamos chamar assim por ora), estamos impedindo que ela se

coagule no mundo do produzir. Mas isso só é possível se a sintonia de

partida já estiver dada (sem necessidade de explicação: se tiver que

explicar por quê, convencer, ganhar pessoas, já dançou! A pessoa que vem

é a pessoa certa, o que também pode ser entendido pela metáfora dos

sensates, da série recente dos Wachowskis: Sense8). Estão entendendo

realmente por que o primeiro passo - como dizia Krishnamurti - é o único

passo?

Para tanto, não precisamos concordar sobre qualquer conteúdo.

Empreendimentos em rede não são uma religião, uma sociedade ou

fraternidade, um grupo filosófico, político ou seja lá o quê. Um cluster de

inteligência cooperativa é uma ecologia de diferenças coligadas. Um

ecossistema que só pode existir com base no fato de que não aglutina

homogeneidades. O relevante aqui é o padrão que conecta.

A primeira implicação prática desse modo de fazer em rede é que não

podemos ter garantia de nada. Quem quer garantia, que arrume um

emprego. A garantia é sempre e somente a confiança. A confiança enseja

a aposta. Tudo é aposta. Ao dar um passo colocamos em ação forças que

não dependem mais apenas de nós.

Em termos práticos isso significa que vamos sempre negociar - os que

estão envolvidos em uma atividade - os termos em que se dará tal

atividade. Quem vai fazer o quê? Quanto cada um vai receber (ou não vai

receber) pelo que fez?

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Mas as situações são sempre diferentes. Um mesmo fazer pode ter

valores diferentes: por exemplo, se for feito por uma pessoa que contribui

para a manutenção das estruturas físicas ou virtuais que são utilizadas

pelo empreendimento é diferente de se for feito por uma pessoa que não

contribui.

Empreendimentos em rede não podem ser baseados em divisão fixa da

receita líquida pelos que contribuem para o empreendimento. Cada caso é

um caso, ainda que se possa ter uma base geral para um mesmo tipo de

fazer ou para um mesmo conjunto de fazeres.

A divisão equitativa dos resultados é uma fórmula que não se aplica à

maioria dos casos. Ela tende a inviabilizar a sobrevivência dos

empreendedores: mais gente empreendendo significa menos receita para

quem empreende.

Em suma, empreender em rede não é fazer uma nova empresa e sim criar

um ambiente favorável ao surgimento de muitas enterprises sinérgicas e

sintonizadas com um determinado conjunto de temas que levou pessoas a

desejarem fazer certas coisas juntas.

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UM PAPO QUE NÃO ENCHE BARRIGA

Tudo que for feito em rede mais distribuída do que centralizada será uma

bolha na sociedade hierárquica. A bolha é fugaz, mas tem que durar algum

tempo para ser capaz de gerar outras bolhas antes de desaparecer. Só

então você pode ir navegando de bolha em bolha. Mas se você desiste

muito depressa, volta para a Matrix. E o que é pior: às vezes sem sentir.

"Vamos mesmo arrumar um emprego mais fixo, que esse papo de rede

não enche a barriga de ninguém". Está certo, sob um ponto de vista. A

servidão voluntária pode dar a sensação de tranquilidade para os que

pensam: "Afinal, ainda não estou preparado para ficar inventando,

inventando e remando contra a maré. Agora, pelo menos, não é o meu

momento. Quero um pouco de sossego para acordar tarde, saborear com

calma meu café da manhã lendo o meu jornal preferido, passear na praça

com meus filhos, conversar despreocupadamente com as pessoas, abrir e

fechar as abas quando quero. Para tanto, não posso viver no desespero de

não ter meu dinheirinho garantido todo final de mês. Gosto até de falar de

redes e de experimentá-las. Depois do expediente".

O sistema funciona basicamente assim. Você pensa em fazer isso ou

aquilo diferente. Mas aí vê que não tem dinheiro. E se não fizer isso ou

aquilo (qualquer coisa diferente) não ganha dinheiro, porque não tem

acesso a mais fluxos (de relacionamentos em geral, compreendendo todos

os tipos de recursos: inclusive dinheiro). Então você não faz e continua

apenas mantendo o metabolismo basal de sua vida. Mas para que você

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consiga suportar sua própria impotência, você se autoengana. E vai fazer

coisas legais, que não demandam muitos recursos. Essas coisas, porem,

não mudam a sua vida, porque em geral elas são feitas depois do

expediente. Você será sempre basicamente o expediente. Não poderá

realizar muitas ideias criativas. E o que é pior: não terá muitas ideias

criativas, porque as ideias também dependem dos fluxos de novos

relacionamentos.

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A FRONTEIRA FINAL

Depois de alguns anos fazendo reuniões para conversar sobre redes

percebi que não saiam coisas concretas que vários fizessem juntos. Com

raríssimas exceções, cada qual continuava no seu quadrado quando o

assunto era, por exemplo, trabalhar ou empreender, enfim, ganhar a vida.

Todos adoravam compartilhar nas horas vagas (vagas no sentido de não

estarem ocupadas com o ganha-pão). Percebi que havia alguma coisa

errada aí.

Recentemente, em uma conversa coletiva por e-mail entre a galera que

está empreendendo no Laboratório da Escola-de-Redes, o Fernando

Baptista, disse o seguinte:

"Muita gente curte iniciativas em rede, mas poucas se dedicam a somar

dedicações com os outros: parece que a vontade está lá, mas é difícil partir

para o trabalho (é como se houvesse um bloqueio dessa emoção específica

que faz com que pessoas trabalhem juntas em algo). Não acho que este

bloqueio tenha a ver com um cálculo instrumental de retorno sobre

dedicação empreendida... acho que tem mais a ver com certo imobilismo

artificialmente criado, um programa implantado para bloquear emoções

que não sejam compatíveis com assinaturas de campo muito específicas

(aquelas "únicas" maneiras de trabalhar que efetivamente ‘dão certo’)".

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Eu concordo com essa avaliação. É um programa mesmo. É claro que não

se pode desprogramar as pessoas à força ou de fora para dentro.

Empreender em rede parece ser a fronteira final que separa mundos

centralizados de mundos distribuídos. Fazer uma ou outra coisa

diletantemente em rede, tudo bem. Ir prá praça, tudo bem. Promover

saraus de poesia, tudo bem. E tudo isso é muito legal mesmo. Mas quando

o assunto envolve a sobrevivência, aí a coisa complica. Estou investigando

por quê, mas não posso achar outra resposta senão aquela que já dei no

livro Hierarquia (2): a Matrix existe. Ela deixa até você brincar de redinha,

mas não lhe deixa sair da máquina de produção e reprodução da vida

(quer dizer, de um modo-de-vida determinado) facilmente.

Para sair da Matrix, tem que desprogramar: é óbvio! Mas quando você faz

empreendimentos em rede, não pode exigir das pessoas que estão

empreendendo com você que façam qualquer coisa contra os seus

desejos. É claro que se você acreditou em uma pessoa que disse que iria

fazer alguma coisa com você, você contou com isso e essa pessoa desistiu

no meio do caminho (às vezes sem dar explicação razoável), isso é chato,

mas nada tem a ver com a rede e sim com outras coisas - como palavra,

compromisso, caráter e outras características consideradas individuais -

que não são variáveis relevantes para explicar o comportamento coletivo

(quer dizer, da rede). Quando isso acontece, porém, é quase certo que

deve haver algum problema na configuração do ambiente. E é possível

perceber uma assinatura de campo estranha, que em geral reflete

algumas funções (ou disfunções) de sinergia.

Por não perceber isso (que é preciso reconfigurar o ambiente), muitos

empreendedores fazem empresas hierárquicas: porque concluem que não

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há outro jeito de obter o concurso continuado de várias pessoas em um

mesmo projeto. Eles pensam que só há uma maneira de manter a atenção

de muitas pessoas em um mesmo rumo, protegida dos ventos que sopram

de través, por um tempo suficiente para o empreendimento vicejar e essa

maneira é: condicionando ou disciplinando fluxos a partir de uma razão e

de um clima organizacional que dá aos colaboradores a segurança do

pertencimento e do acolhimento. Não é nem o dinheiro o fundamental

para tanto e sim a entidade que se forma, o cimento que une as suas

partes, às vezes os hormônios ou feromônios secretados pelo organismo...

Depois de milênios de cultura hierárquica, não se poderia esperar outra

coisa mesmo: as pessoas "precisam" disso (mais ou menos como um

viciado "precisa" da droga). Por isso também é tão difícil empreender em

rede.

Uma pessoa deve fazer o que deseja. Na ética netweaver não deve haver

cobrança ou outro tipo de constrangimento. É claro que ao fazer o que

deseja a pessoa vai construindo sua trajetória (que é mais ou menos o que

chamavam de destino) de acordo com seu caráter (e caráter é apenas

outra palavra para destino, ou seja, uma característica que também se

constrói: é a história fenotípica de suas adaptações sucessivas, sobretudo

os caminhos tomados diante das bifurcações, que leva alguém para um

destino ou outro). Todo destino é uma espécie de órbita. Quanto menos

livre, mais orbita uma pessoa. Se ela trapaceia, se autoengana chamando

de desejo o que faz por programação ou por obrigação (quer dizer, por

não ter coragem de se desprogramar ou de romper com uma obrigação), é

sinal de que está orbitando.

25

Em geral as pessoas orbitam - et pour cause - em torno de centros com

alta gravitatem (sejam pessoas ou instituições). Orbitam por medo de

ficar vagando no espaço-tempo dos fluxos, ao léu... Este é o medo da

liberdade (e a liberdade é a coisa mais terrível que há: não ter uma

referência, não ter alguém que lhe confirme, que lhe diga que está tudo

certo, que é assim mesmo).

26

UMA DIFICULDADE QUE É UMA POTENCIALIDADE

Os teóricos das redes e da democracia (não os novos teóricos da

autocracia disfarçados de teóricos da democracia que infestam as

universidades) são assim uma espécie de novos sofistas. Eles andam pelas

praças e pelos becos, conversam com quem os procura, conseguem falar e

ser ouvidos por muita gente, mas não conseguem manter pessoas

aglomeradas nos mesmos clusters por muito tempo. Seria contraditório,

pois em sociedades hierárquicas estruturas mais distribuídas do que

centralizadas são fugazes, são bolhas que duram apenas um tempo (aliás,

cada vez menor).

Você só consegue manter pessoas em um mesmo cluster se as fronteiras

tiverem alguma opacidade ou se as membranas selecionarem fluxos.

Jogadas no vento que sopra onde quer e que ninguém sabe de antemão

de onde vem ou para onde vai, as pessoas tendem a seguir fluxos

diferentes e as linhas de vida se separam. Só fica no mesmo lugar quem

não pode sair, quem depende de uma dinâmica particular e tem que se

sujeitar a uma estrutura hierárquica para sobreviver (do contrário, as

pessoas abandonariam as empresas em que trabalham) ou quem aceitou

que seu caminho para o futuro fosse pavimentado por uma crença (do

contrario sumiriam os fiéis de qualquer religião).

Essa é a dificuldade de manter organizações em rede que sejam

reconhecidas como organizações por organizações hierárquicas. Por isso a

27

rede não é um tipo de organização e sim um padrão. Essa dificuldade,

entretanto, é uma potencialidade para criar novos mundos.

28

O DESAFIO BÁSICO

Empreender em rede em um mundo hierárquico não é mais fácil e sim

muito mais difícil do que empreender hierarquicamente. A não ser que

mudemos a maneira de pensar.

Deixando de lado as narrativas legitimatórias de qualquer projeto bacana,

de qualquer ideia daora, de qualquer sonho fantástico, penso que talvez

seja preciso partir - nua e cruamente - da seguinte constatação: em um

campo hierárquico tudo conspira contra a distribuição. Pronto! Não

assumir isso dificulta a compreensão dos enormes desafios que estão

colocados diante de nós.

O desafio básico - sobre o qual venho falando em livros, artigos, vídeos e

programas os mais variados há mais de cinco anos - é sempre o mesmo:

não propriamente como viver em rede, mas sim como viver da rede?

Não vale ter sua fonte de sustentação e sobrevivência fornecida por

empreendimentos hierárquicos (ou pela renda financeira advinda de

negócios hierárquicos) e, nas horas vagas, ensaiar empreendimentos em

rede. Pois a questão aqui é como uma rede de pessoas pode se manter,

sobreviver ao menos, com empreendimentos em rede. Fazer o

proselitismo das redes enquanto se tem como pagar o aluguel, o

supermercado, a padaria, o plano de saúde, a farmácia e as dívidas com

dinheiro advindo das estruturas próprias do mundo hierárquico é mais

29

fácil. É como vender cosméticos da Natura depois do expediente para

complementar a renda.

E aí é o seguinte. Se você não vive numa comunidade de subsistência e

tem contas a pagar no final do mês, se não mora com a mamãe e o papai,

se não é sustentado por alguém (cônjuge, parentes ou terceiros), se não

tem um patrocinador (mecenas), se não tem emprego e salário fixo e nem

vive de renda, então - estando em uma sociedade mercantil - tem que

vender alguma coisa para sobreviver. Não há alternativa.

Para vender produtos ou serviços e viver disso você tem que colocar no

mercado vários produtos ou serviços. Não pode ficar esperando que vai

achar o produto espetacular ou o serviço mágico que vai bombar. Se você

faz isso em rede, várias pessoas têm que estar dedicadas a inventar,

prototipar, testar, produzir ou formatar e vender várias coisas ao mesmo

tempo. E, além disso, essas pessoas têm que viver disso. É difícil,

extremamente difícil. Porque as pessoas não estão acostumadas a fazer

várias coisas ao mesmo tempo. Os seres humanos somos, todos, multi-

tarefas, mas fomos programados para fazer cada coisa de uma vez (para

sair bem-feito tem que ser assim: é o que diz a gestão da reprodução no

mundo hierárquico).

Para um empreendedor individual, vá-lá! Mas para muitos que vão viver

das mesmas ofertas de produtos ou serviços, não dá. Neste caso, fazer

uma coisa de cada vez é o caminho certo para o precipício (e não no bom

sentido, daquele abismo que temos que pular mesmo se quisermos viver

em rede, mas no sentido de despencar na geena dos caídos, onde a

salvação será voltar ao passado e ser novamente recrutado para o

exército dos clones a serviço de alguma organização hierárquica).

30

Muitas pessoas raramente conseguirão sobreviver de um

empreendimento único, sobretudo de um produto único ou de um serviço

único. Para tanto, o preço de venda do produto ou serviço deveria ser

muito alto ou as vendas deveriam ser muito numerosas. Em ambos os

casos isso exige altos investimentos iniciais, infraestrutura robusta,

marketing intenso e um número grande de pessoas dedicadas a tarefas

específicas.

Com uma rede pequena (e toda rede voluntariamente articulada, na

prática, acaba ficando pequena, porque a interação recorrente clusteriza),

não há alternativa. A não ser que se comece a contratar doidamente

outras pessoas (como prestadores de serviços) ou a incorporar novas

pessoas (como parceiros) para fazer tudo que uma pequena equipe não

consegue fazer. No primeiro caso, o risco é altíssimo de o

empreendimento em rede acabar virando uma empresa hierárquica. Nos

dois casos teremos diminuição de receita per capita (mais contratados e

mais parceiros significam um denominador maior para dividir os

resultados). O que não resolve o problema de fazer do empreendimento a

atividade de sustentação das pessoas envolvidas.

É por esta razão (entre outras) que as pessoas fazem empresas

hierárquicas em vez de articular redes de empreendedores. Em rede - elas

pensam e com razão (considerando a forma como pensam) - não dá para

todo mundo ganhar o suficiente.

O problema parece insolúvel nas condições atuais: quer dizer, em mundos

em que os graus de separação não caírem para algo próximo de 3 ou

menos. A não ser que paremos de pensar hierarquicamente.

31

Quando fazemos um grupo proprietário para empreender em rede, já

estamos quase fadados a não empreender em rede. O grupo, a

clusterização que emerge da interação recorrente entre algumas pessoas

em detrimento de outras, já limita a força dos laços fracos, justamente

aqueles que podem ensejar a emergência dos fenômenos de rede.

Quando tudo vira laço forte, a maravilhosa incidência dos inputs

inesperados, advindas da interação fortuita, com o outro imprevisível, fica

diminuída. Há uma seleção negativa que reforça os de dentro em relação

aos de fora. Essa seleção é dita negativa porque é anti-adaptativa. Cria

fronteiras opacas em vez de membranas. Dificulta a alostase. Torna

qualquer empreendimento uma espécie assim de banco de germoplasmas

in vitro. Protegidos do fluxo, os grupos tendem a reproduzir passado: não

é outra a razão pela qual as organizações fechadas têm tanta dificuldade

de inovar...

Penso que a solução para isso não pode ser outra senão a seguinte: 1)

cada produto ou serviço é um empreendimento; e 2) cada

empreendimento é um grupo. Não há um grupo. Há muitos grupos. Com

muitos atalhos. Os atalhos são as pessoas. As mesmas pessoas devem

participar de muitos grupos com outras pessoas (e não apenas com as

mesmas pessoas, do contrário seria o mesmo grupo fazendo muitas

coisas).

Um mesmo grupo fazendo muitas coisas é forçado a racionalizar seus

investimentos, criando estruturas capazes de atender às várias demandas.

É o lógico. É o que parece a coisa correta a ser feita. É o que permite

planejar o que será feito amanhã (e não ficar desesperado improvisando a

cada momento, puxando gambiarras, tendo retrabalho et coetera). Mas...

32

Se caímos na tentação de montar infraestruturas, fábricas, lojas,

escritórios, sistemas, sites e equipes unificados para vários produtos ou

serviços em nome da eficiência (e de maiores ganhos futuros), então

vamos ter que arcar com os problemas próprios das iniciativas

centralizadas (justamente aqueles que exigem alto capital inicial) e que

são, basicamente (embora raramente sejam monetizados e assim

declarados): custos de transação, custos de sobre-esforço para alcançar

sinergias que não surgem espontaneamente (porque não deixamos) e

custos provenientes dos atritos de gestão. Esses três custos básicos são

capazes de inviabilizar qualquer iniciativa, a não ser que tenhamos como

pagá-los "por fora" (a partir da acumulação centralizada de recursos,

advindos dos investimentos dos owners, ou tendo que sacrificar o

presente em nome de um futuro de maiores ganhos... mas aí a iniciativa

não será mais em rede: os owners continuarão sendo owners, tipo assim

"cada um no seu quadrado").

É simples de entender: se centralizou significa que não distribuiu! Não vale

apenas para a gestão de pessoas. Vale para qualquer tipo de recurso.

Organizar uma empresa em rede pode reduzir três custos invisíveis (em

geral não computados nos balanços) que consomem boa parte dos

recursos de qualquer organização: custos de transação, custos de atrito de

gestão e custos de sinergia. Em geral, porém, para que isso aconteça é

preciso partir de um conceito de empresa múltipla (como constelação de

empreendimentos autônomos coligados) e não insistir no velho conceito

de uma mesma estrutura administrativo-produtiva que tenta controlar

vários empreendimentos. Como as pessoas que tentam fazer empresas

em rede não abrem mão do controle ou, pelo menos, de alguma

33

coordenação de todas as iniciativas antes que elas se sinergizem, os custos

de sinergia crescem ao ponto de anular os ganhos com a redução dos

custos de transação e dos custos de atrito de gestão. E aí concluem que

não dá certo. Elas não veem que a empresa em rede é um ambiente

favorável ao surgimento de várias enterprises sinérgicas (depois que essas

aventuras acontecem e se houver tempo suficiente para que elas possam

interagir entre si), mas não uma empresa no sentido tradicional do termo

(unitária), quer dizer, uma estrutura de poder para dizer o que vai ser feito

e o que não vai ex ante.

34

OS CUSTOS INVISÍVEIS

Empreendimentos hierárquicos têm altos custos, sobretudo custos

invisíveis. Chamei de custos invisíveis àqueles custos que em geral não

aparecem nos balanços, inclusive porque raramente são monetizados e,

muitas vezes, nem se imagina que eles existam. Esses custos invisíveis são,

basicamente, de três tipos: custos de transação, custos de sinergia e

custos de atritos de gestão.

1 - Custos de transação. Sobre os custos de transação já se sabe alguma

coisa, desde que Ronald Coase (1937) classificou esses custos em três

principais categorias:

a) custos de busca de informação: os custos incorridos para verificar se o

produto já existe em determinado mercado, para verificar qual o menor

preço oferecido no mercado ou para verificar a utilidade e a

funcionalidade do produto;

b) custos de barganha: os custos de se estabelecer, com o comprador, um

acordo que seja o mais justo possível; e

c) custos de policiamento: os custos incorridos ao garantir que o

comprador cumpra o acordo da transação e de tomar as providências

adequadas caso haja uma ruptura do acordo por parte deste (3).

35

Mas é claro que existem outros custos de transação que não cabem bem

nessas velhas categorias, como os custos de transação interna decorrentes

de descumprimento ou desfuncionalidade dos contratos de trabalho.

Ademais, é preciso ver que quando Coase escreveu o célebre The nature

of the firm (há 78 anos) o ambiente era radicalmente diferente: em 1937 a

expectativa média de vida das empresas era de 75 anos e hoje é de menos

de 15 anos (4) e não se sabia direito (na verdade ainda não se sabe) qual a

relação entre os custos de transação e a sustentabilidade de uma

empresa. Apenas um exemplo para ilustrar a ampliação do conceito de

custo de transação: a empresa não adota uma plataforma de rede (uma

ferramenta virtual, funcionando em tempo-real ou sem-distância) para a

gestão - e a execução - do trabalho remoto por temer que o empregado

entre na justiça exigindo pagamento de horas-extra com base na alegação

de que trabalhou virtualmente em casa depois do expediente e ao não

fazer isso desaproveita a imensa potencialidade do seu capital humano. A

redução das possibilidades de aproveitar o capital humano da empresa

diante das restrições (reais ou imaginárias) da legislação trabalhista,

também é custo de transação. Observa-se que os custos de transação

interna aumentam quando há custos de sinergia e custos de atrito de

gestão.

2 - Custos de sinergia. Sobre os custos de sinergia, sabe-se muito pouco.

Esses custos estão relacionados ao sobre-esforço que se faz para alcançar

sinergias que não surgem espontaneamente, em geral porque o padrão de

organização e os modos de funcionamento da empresa não deixam.

Caixinhas fechadas, departamentos que não se comunicam, pessoas que

não conversam, excesso de competição interna, verdadeiros feudos

conformados por vice-presidentes, diretores e gerentes - tudo isso

36

dificulta a sinergia. E quando a sinergia é baixa, várias pessoas,

departamentos ou aéreas acabam fazendo a mesma coisa, contratam

consultores diferentes para projetos que têm o mesmo objetivo ou

objetivos congruentes, não compartilham as avaliações sobre os

resultados positivos e negativos de suas iniciativas et coetera. Tudo que

dificulta a sinergia espontânea é custo de sinergia:

=> Estamos falando da falta de conexão banda larga de qualidade

acessível em toda empresa.

=> Estamos falando de dispositivos móveis de conexão e de programas de

mensagens instantâneas (como o Whatsapp) e das mídias sociais (como o

Facebook) que não são liberados (e, quando são, não são usados para a

interação (dos empregados entre si e da empresa com o público).

=> Estamos falando da falta de espaços livres e de ambientes

compartilháveis (e de espaços de não-trabalho nos locais de trabalho; e,

ainda, da escala e da feição não-humanas dos ambientes físicos) dentro da

empresa.

=> Estamos falando do excesso de reuniões presenciais de alinhamento e

da falta de plataformas de rede para todo o fluxo de gestão.

=> Estamos falando da não-adoção de processos de rede voltados à

inovação, como o crowdsourcing, a open innovation, a interactive co-

creation.

=> Estamos falando da falta de estímulos e incentivos ao

empreendedorismo (interno e externo) dos colaboradores.

37

=> E estamos falando da não adoção do trabalho por projeto (em que os

trabalhadores são também empreendedores associados em comunidades

de projeto).

Os óbices à sinergia que deveria brotar espontaneamente das relações

entre as pessoas empregadas na empresa e seus stakeholders externos

são sumidouros de recursos que, se fossem monetizados, calculados e

incluídos no balanço de uma empresa, escandalizariam os seus donos ou

acionistas e deixariam o conselho de administração e o CEO em sérias

dificuldades. Mas os custos de sinergia são também, em parte, custos de

atrito de gestão.

3 - Custos de atrito de gestão. Sobre os custos de atrito de gestão - os

maiores de todos os custos invisíveis - já se tem, de fato, a desconfiança

de que eles existem, mas em geral as pessoas evitam olhar para o

problema, preferindo achar que esses custos são inerentes à qualquer

organização: um preço inevitável a pagar (e que deve ser pago sem

reclamação). Esses custos são decorrentes do modelo de gestão baseado

em comando-e-controle. Eles são custos altíssimos para manter um

padrão de organização hierárquico regido por modos de regulação

autocráticos (para verticalizar o tecido social da empresa é necessária uma

operação constante e um gasto intensivo em energia não-produtiva).

O padrão de organização mais centralizado do que distribuído obriga os

fluxos (de informações, objetos e pessoas) a passar por caminhos únicos,

pré-traçados, não raro dando voltas e mais voltas: quanto maior o

percurso, obviamente, maior o atrito. Mais energia dissipada: que não

produz luz, só calor! A falta de múltiplos caminhos (quer dizer, de redes

internas à empresa e ao seu ecossistema ou a pouca "vascularização do

38

organismo") aumenta incrivelmente o atrito de gestão e o seu respectivo

custo:

=> Estamos falando daquele memorando que desce para o segundo andar,

sobe para o quinto andar e vai parar no terceiro andar antes que a ação

que deveria ser executada se realize.

=> Estamos falando dos colaboradores que só podem entrar por um lugar

determinado e sair por outro lugar também determinado, tendo que

passar por cancelas, catracas, portões eletrônicos.

=> Estamos falando dos computadores, infectados pela TI e pela

Segurança da Informação com programas maliciosos, que caem de 5 em 5

minutos e obrigam o usuário a digitar novamente login e senha e que dão

um aviso que serão desativados 5 minutos antes do final do expediente.

=> Estamos falando do aprisionamento de corpos (a proibição do trabalho

remoto: a exigência de presença física, indistintamente, de todos os

colaboradores, para atividades que não requerem presença física) em um

mundo que já abandou o feudalismo há vários séculos.

=> Estamos falando dos controles feitoriais (empregados que não

produzem encarregados de vigiar e punir os que produzem), em um

mundo em que o escravismo como modo de produção já foi abolido há

mais de um século.

=> Estamos falando da organização vertical ou da organização dita

"matricial", que aliena os trabalhadores (que, a rigor, não sabem bem o

que estão fazendo) e, novamente, da não adoção do trabalho por projeto.

39

=> Estamos falando da falta de democracia na empresa - isto mesmo:

democracia! Em um mundo que já abandonou há mais de um século a

monarquia (absolutista), as empresas ainda são, em boa parte,

monárquicas.

Estamos falando, enfim, de todos os mecanismos e procedimentos que

são adotados para compensar ou "corrigir" (como se isso fosse possível) a

falta de confiança (ou o baixíssimo capital social interno da empresa e do

seu ecossistema) e esses mecanismos e procedimentos que aumentam o

atrito de gestão, não raro também impedem a emergência espontânea da

sinergia e, diretamente ou indiretamente, oneram a gestão (aparecendo

também, portanto, como custos de sinergia e custos de transação).

Sim, é preciso cortar os custos. Mas se fôssemos monetizar e somar os

custos de transação, os custos de sinergia e os custos de atrito de gestão,

veríamos que eles são tão grandes, mas tão absurdamente grandes, que

deveriam ser os primeiros a ser cortados. Cortar pessoal pode ser

necessário, mas demissões capazes de ter um impacto significativo (de 10

a 20% dos funcionários, quando isso é possível) não representam uma

economia tão grande quanto reduzir uma pequena parte dos custos

invisíveis. E - o que é pior - não é uma solução que alcança a raiz do

problema.

Porque mesmo com pessoal reduzido, os custos invisíveis continuarão.

Aliás, em geral, eles até tendem a aumentar. Pois menos gente fazendo as

mesmas coisas:

a) estressa todo mundo, instaura o pânico para bater metas, gera

desavenças entre dirigentes e subordinados, aumenta a competição entre

40

subordinados (que querem mostrar serviço para não ser demitidos na

próxima leva), acarreta um declínio do capital social interno da empresa

(quer dizer, derrui a confiança) aumentando os custos de transação;

b) reduz o tempo livre dos colaboradores para se relacionar e para criar,

diminuindo a interatividade e, consequentemente, a inovatividade da

empresa e aumentando os custos de sinergia; e

c) obriga a mais comando e mais controle e esse superavit de ordem top

down aumenta inevitavelmente os custos de atrito de gestão.

Investigadores da nova ciência das redes que vêm aplicando processos de

rede em empresas estão chegando à conclusão de que é necessário, para

as empresas que querem durar mais, tomar a decisão de começar a cortar

os custos invisíveis. E que é possível fazer isso, sobretudo em momentos

de crise como o que estamos vivendo (quando as empresas ficam

tentadas a adotar a solução que parece mais fácil e mais garantida: cortar

pessoal). Isso, é claro, exige uma transformação mais profunda. Mas não

há outro jeito. Empresas que querem durar mais (e atravessar as crises)

têm que ser empresas capazes de se transformar mais.

Empreendimentos empresariais terão tanta dificuldade de fazer isso

quanto mais sua estrutura for hierárquica e seus modos de regulação

forem autocráticos. Uma das vantagens (se se puder falar assim) de

empreendimentos em rede é a redução drástica dos custos de transação,

dos custos de sinergia e dos custos decorrentes dos atritos de gestão.

41

VIVER DA REDE

Se Albert Einstein (antes de virar pop star por ter aparecido

exaustivamente na mídia broadcasting) tentasse ganhar a vida assim

como eu ganho, produzindo intelectualmente e tentando vender produtos

e serviços decorrentes de suas investigações, é absolutamente certo que

iria à falência. Por isso não só ele, mas quase todos os que trabalham na

produção de conhecimento novo, desbravando fronteiras em qualquer

área de investigação, são empregados e têm salário (e outras garantias). O

mesmo valeria para Dewey, Arendt, Foucault, Barabási ou Watts... e

milhares de outros. Em geral são funcionários de alguma universidade. Ou

são financiados por outra instituição hierárquica qualquer. Não têm que

se preocupar muito com o que vão comer amanhã, como vão pagar o

aluguel e como sobreviverão quando suas forças se esgotarem.

Por outro lado, os que vivem por conta própria, da venda de seus

produtos e serviços, vendem mais do mesmo. Vendem o que os

compradores querem ouvir (e os compradores só querem ouvir o que

conhecem, o que acham que funciona porque deu certo em algum lugar).

Dizendo de outro modo: inovações dificilmente vendem até virar

reprodução. Não me venham com esse papo do marketing de que as

pessoas compram o que (acham que) é útil para elas, o que vai resolver o

seu problema. No que tange a produtos de conhecimento, em geral, não

compram. Pessoas e organizações compram somente o que acham que

42

podem comprar sem mudar a sua vida, seus padrões de relacionamento e

sua forma de se organizar. Então, se você diz: "Olha, isso vai mudar o

modo como você convive"; ou, "Veja, esse programa vai alterar a

estrutura e a dinâmica da organização que você usa para ganhar a vida",

então elas preferem não arriscar.

Os malucos que insistem em investigar, descobrir, inventar e, ao mesmo

tempo ganhar a vida sem a proteção, o patrocínio ou o financiamento de

uma organização hierárquica, têm que viver navegando nos esgotos da

Matrix, sempre procurando, com sua Nabuconozor, alguma brecha no

sistema. É uma vida de aventuras (e desventuras) em que nunca há

garantia de estabilidade. Jeanne Marie Gagnebin nos conta que depois de

renunciar à sua carreira acadêmica, Walter Benjamin assume, a partir de

1925, "essa existência de "freier Schiriftsteller” (“escritor livre”) na qual a

liberdade tem geralmente por preço a pobreza, às vezes a miséria". Vale a

pena? Não sei dizer. Depende do que cada um sente e deseja. Eu já não

poderia viver de outro modo.

43

DETERMINANTE É COMO VIVE O SUJEITO

Quando as pessoas conversam sobre redes - viver em rede, viver da rede -

é necessário prestar atenção às diferenças de perspectivas.

Sem fazer qualquer juízo de valor, vejamos alguns exemplos de

perspectivas diferentes:

1 - A perspectiva de quem não tem emprego é completamente diferente

da perspectiva de quem tem a segurança de um salário (mesmo pequeno)

no final do mês, férias, décimo-terceiro e outros benefícios (como plano

de saúde e, às vezes, aposentadoria especial).

2 - A perspectiva de quem não tem renda (ações, capital investido,

propriedades produtivas ou potencialmente produtivas, poupança e

outros ativos que sirvam como garantias reais para tomar crédito) é

completamente diferente da perspectiva de quem tem algum tipo de

renda (e sabe que pode se dedicar a uma enterprise que não vão lhe faltar

condições de sobrevivência no curto ou no médio prazos).

3 - A perspectiva de quem tem que viver somente dos seus próprios

empreendimentos (e é obrigado a vender continuamente produtos ou

serviços para pagar suas contas diárias, semanais e mensais) é

completamente diferente da perspectiva de quem é sustentado por

alguém (ou, pelo menos, conta com a ajuda de alguém - cônjuge, pai, mãe

44

ou outros parentes ou benfeitores - para as despesas do dia-a-dia ou para

dar aquele apoio num momento de necessidade).

4 - A perspectiva de quem observa, investiga, gera explicações, escreve e

publica por conta própria e/ou com seus amigos é completamente

diferente da perspectiva de quem está abrigado em uma instituição que

financia, apoia, fornece condições materiais, remunera o ócio criativo e

ainda valida de modo diferencial a produção intelectual de seus membros.

Em suma:

5 - A perspectiva de quem não pertence a um grupo (família, entidade ou

instituição) e depende da volatilidade dos laços fracos para realizar

qualquer iniciativa conjunta é completamente diferente da perspectiva de

quem pertence a uma organização proprietária e fechada e pode contar

com o apoio de laços fortes de identidade, que selecionam os "de dentro"

de modo diferenciado em relação aos "de fora".

Os discursos, as preferências intelectuais, os incômodos com a sua

situação atual, não mudam a perspectiva do sujeito. Não é determinante o

que ele pensa, deseja ou como gostaria de viver e sim como ele vive.

45

POR QUE TEMOS QUE FICAR SEMPRE VENDENDO

ALGUMA COISA

As alternativas são simples numa sociedade mercantil: a) ou você é

sustentado por alguém, recebe algum tipo de renda ou financiamento,

ganha um salário; ou, b) tem que vender alguma coisa para sobreviver. Em

geral os que ganham salários são pagos por alguém que recebe algum tipo

de renda ou financiamento, arranca compulsoriamente dinheiro das

pessoas via impostos ou vende alguma coisa.

Os que recebem salários de organizações que vivem de impostos

costumam achar que sua fonte de renda é mais nobre do que se

vendessem produtos ou serviços. Acadêmicos, por exemplo, têm certa

alergia ao mercado: acham meio indigno sair por aí vendendo qualquer

coisa. Mas eles só podem fazer isso porque, no final do mês, está

garantido que terão como pagar o aluguel e o supermercado, a padaria e a

farmácia, a escola dos filhos e o dentista e o psicanalista Quem não tem

tal garantia tem que se virar vendendo alguma coisa. Do contrário vai

parar embaixo da ponte (se não tiver o papai e a mamãe para acolhê-lo).

Os que recebem salário em geral não estão contentes com seu emprego.

Mas preferem viver reclamando do tipo de trabalho que fazem do que

empreender por conta própria e ter que vender alguma coisa. Gostariam

de ser financiados para fazer o que realmente desejam. Mas quem poderá

financiá-los sem receber algum tipo de renda, sem arrancar

46

compulsoriamente dinheiro das pessoas via impostos ou sem vender

alguma coisa? Por outro lado, ao ter a garantia do salário fornecido por

um emprego em que estão descontentes, as pessoas perdem importantes

parcelas de sua liberdade que é a fonte de toda criatividade. Ao não

poderem se jogar no fluxo criativo (porque sua agenda fica, em grande

parte, controlada por seus empregadores) essas pessoas ficam menos

alegres e menos felizes. Ademais, ao criar menos, elas ficam diminuídas de

humanidade.

Estão entendendo por que eu e vários amigos temos que ficar sempre

vendendo alguma coisa? É porque não somos sustentados por ninguém,

não recebemos qualquer tipo de renda ou financiamento e não ganhamos

salário.

Platão, desonestamente, acusava Protágoras (e os sofistas em geral) de

vender seus conhecimentos para os jovens atenienses (na verdade eles

vendiam seu tempo, na forma de cursos livres, sobretudo de retórica

prática: uma habilidade exigida para interagir na Ecclesia, a instância

participativa da Polis, quer dizer, da comunidade política democrática

nascente). Os sofistas - que, como se vê, não por acaso, participaram

decisivamente da primeira invenção da democracia - precisavam (e

queriam) fazer isso para sobreviver. Platão não precisava: era um

aristocrata (e um autocrata, um inimigo da democracia). Hoje os que se

sustentam com o salário da universidade (e toda academia é platônica)

também não acham de bom tom que pessoas como eu e alguns amigos

vivam vendendo cursos e programas de aprendizagem. Nas alfândegas

ideológicas em que se transformaram certas áreas da universidade,

campeia certo preconceito contra o empreendedorismo e o livre-mercado

47

(que confundem, tolamente, com capitalismo, quando o capitalismo - não

o dos livros que escrevem, mas o realmente existente - é justamente o

contrário). Quem tem proventos garantidos por uma instituição

hierárquica (quer dizer, sacerdotal: e todo sacerdócio é professoral, é uma

burocracia do ensinamento) não precisa fazer isso. Mas nós, os sofistas, os

livre-discentes de hoje, precisamos (e queremos, na medida em que não

queremos ser sustentados por organizações hierárquicas). Então devo

dizer, à Platão e seus descendentes, que sinto muito. Vamos continuar

vendendo.

48

RECONFIGURAR O AMBIENTE

Como eu sei com quem devo interagir para promover iniciativas

conjuntas? Sintonia! Se tiver que explicar muito, convencer, insistir...

babau! Como eu sei se está dando certo o que fazemos juntos? Sinergia!

Se espontaneamente as coisas fluem, as habilidades e competências se

complementam sem sobre-esforço adicional de planejar, administrar e

cobrar... legal!

Sintonia e sinergia. Um empreendimento em rede só surge quando

trajetórias de vida (ou histórias fenotípicas) de três ou mais pessoas se

cruzam por sintonia. A sinergia pode ensejar que essas pessoas continuem

fazendo coisas juntas. Se a sintonia desaparece as linhas de vida se

afastam. E não há muito jeito de reverter isso. Mas se a sinergia apresenta

disfunções, há, sim, o que fazer: reconfigurar o ambiente.

Reconfigurar o ambiente. Tem a ver com os fluxos. E com os caminhos.

Mudanças nos ambientes físicos e virtuais têm reflexos nos caminhos e

nos fluxos. Mas o fundamental são as pessoas. Só um fluxo entrante de

novas pessoas pode alterar completamente a configuração do ambiente.

Interação sempre entre as mesmas pessoas gera circularidades

cristalizadoras que produzem escassez e, mais cedo ou mais tarde, "nós"

organizacionais que opacam, ossificam ou hierarquizam as iniciativas.

Quando coagula, tem que dissolver (Solve & Coagula), do contrário as

bolhas ficam quebradiças. Mas o outro-imprevisível é o solvente (Solve).

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Pessoas. As pessoas são os caminhos. Tudo que não for pessoa é entidade

abstrata. Os projetos devem estar mais identificados com as pessoas que

os promovem do que com qualquer marca designativa de uma entidade

abstrata. As pessoas se aproximam umas das outras a ponto de iniciarem

um projeto conjunto por sintonia. A configuração do campo que formam é

função da sinergia.

Aumentar os graus de distribuição. Os ambientes físicos e virtuais devem

ser distribuídos. Vários espaços, várias plataformas, várias mídias. Cada

pessoa pode ter seus próprios espaços, suas plataformas, suas mídias. Os

projetos estarão onde estiverem (física ou virtualmente) as pessoas

(interagindo). Várias vizinhanças colaborativas podem ser constituídas e

desconstituídas.

Impermanência. Acompanhar a vida nômade das coisas. Nada deve ser

pensado para durar para sempre. Tudo dá certo enquanto dura (e só dura

enquanto houver sinergia). Pode-se reconfigurar os ambientes, mas nem

sempre se deve espichar a duração do que terminou. São bolhas.

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UMA SÍNTESE

1 - Cada projeto, um empreendimento.

1.1 - Um projeto vira um empreendimento coletivo por sintonia (sem

necessidade de muito convencimento e de recrutamento: entra quem

deseja, quem achou legal).

2 - Cada empreendimento, uma comunidade de projeto autônoma.

2.1 - Comunidades de projeto autônomas fazem sua própria curadoria e se

administram a si mesmas por sinergia (a maximização da sinergia

compensa os custos de transação e os custos dos atritos de gestão).

3 - Comunidades de projeto podem se articular em rede com outras

comunidades de projeto a partir de desejos congruentes, visões,

propósitos e agendas compartilhados.

3.1 - Comunidades de projeto conectadas em rede podem "se abrigar" sob

um mesmo branding, se houver sinergia entre elas. Isto é o que podemos

chamar de empresa em rede: a empresa como ambiente favorável à

enterprising, baseada na aventura de empreender e não na estrutura de

poder.

3. 2 - Comunidades de projeto em rede que adotam um mesmo branding,

não podem criar uma única estrutura obrigatória (seja física ou virtual)

para todos os projetos, que seja operada centralizadamente por alguns.

Neste caso ocorrerá, inexoravelmente, produção de escassez e a rede,

51

mais cedo ou mais tarde, se hierarquizará (com alguns tendo poderes

regulatórios aumentativos em relação aos demais).

3. 3 - Se queremos fazer empreendimentos em rede, os meios devem ser

múltiplos e distribuídos (vários meios: várias sedes, várias lojas, várias

plataformas). Cada comunidade de projeto adotará os meios que

conseguir operar sem depender de instâncias ou atores externos.

3. 3. 1 - Não pode haver uma comunidade de projeto cujo projeto seja

administrar todas as comunidades de projeto conectadas sob o mesmo

branding. Este projeto não será válido se a rede for mais distribuída do

que centralizada.

Em suma:

A rede só existe enquanto as pessoas estão interagindo. Além da sintonia

geral que ensejou a formação da rede, a continuidade das iniciativas

dependerá da sinergia alcançada em cada comunidade de projeto e entre

as diferentes comunidades de projeto. Dentro do escopo estabelecido,

qualquer pessoa pode propor um novo empreendimento, pode entrar em

um empreendimento já existente (se for aceita pela comunidade de

projeto respectiva) e pode sair quando quiser (ela prestará contas

unicamente às comunidades de projeto a que se conectou).

Várias redes são assim acionadas. Cada parceiro é um nodo da rede. Todo

nodo da rede vira um possível ponto de transações e de criação, produção

e consumo, evocando uma nova economia em rede distribuída. Lembra

um pouco, como disse o Fernando Baptista, a dinâmica do Bitcoin e do

Ethereum, em que cada pessoa que disponibiliza parte de seu computador

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para armazenar/processar as transações recebe moedas em troca,

possibilitando assim a coisa funcionar de maneira completamente

distribuída (sem necessidade de um servidor ou de capacidade de

processamento instalada).

A rede que promove tudo isso não pode ser uma organização proprietária,

uma empresa, uma cooperativa, uma ONG ou assemelhadas e sim uma

constelação de empreendimentos sinérgicos tocados voluntariamente por

pessoas que se sintonizam e desejam fazer coisas juntas (lucrativas e não-

lucrativas) em rede.

É da própria natureza de rede distribuída de pessoas ter vários meios,

várias plataformas, vários serviços. Não há vantagem em sistemas

integrados de vez que a integração pode ser feita por cada comunidade de

projeto que toca um empreendimento. Quem precisa de planejamento e

integração (para não gerar sobretrabalho) são organizações centralizadas.

Pois havendo distribuição, desconstitui-se o conceito de sobretrabalho (de

vez que não recai sobre os mesmos as mesmas funções repetitivas).

De novo: muitos meios, muitos caminhos, muitas possibilidades de

serviços associados: este é o único ponto do qual não podemos abrir mão

se queremos, de fato, empreender em rede.

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UM PROBLEMA NÃO RESOLVIDO

Empreender em rede é legal e coisa e tal, mas consome o nosso tempo e

as nossas energias. E às vezes não temos esse tempo.

Posso dar o meu depoimento pessoal.

Com a trilogia Fluzz (2011), Small Bangs (2012) e Hierarquia (2012), criei

um problema para continuar escrevendo: o que dizer, de mim, além?

Escaparam, talvez, o A Terceira Invenção da Democracia (2013) e o

inconcluso, até agora, A livre-aprendizagem na sociedade-em-rede (2015).

Mas o que escapou apenas desdobrou ou desenvolveu: aplicou, não

fundou. Para refundar precisaria pular de novo no abismo: investigar as

relações entre alma e rede, além-do-último-Hillman. Uma parte de mim já

está lá. Outra parte é puxada diariamente para aplicar, vender, sobreviver.

Esse esgarçamento é phodda, mas se fosse sustentado por alguma

organização hierárquica, aí é que não pularia mesmo. Ninguém ganha

impunemente um salário. A segurança de um dinheirinho certo no final do

mês para pagar as contas tem um preço: você tem que pagá-lo com um

pedaço da sua alma (em outras palavras, tem que depositar - ou congelar -

parte da sua liberdade para criar). Se não fizer isso, ficará devendo ao

sistema. Fico devendo. Fuck the system.

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NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) FRANCO, Augusto (2011): Resista à tentação de pertencer a um grupo.

(2) FRANCO, Augusto (2012): Hierarquia: explorações na Matrix realmente

existente.

(3) Cf. COASE, Ronald (1937). The Nature of the Firm. Economica, New

Series, Vol. 4, No. 16. (Nov., 1937), pp. 386-405. London: London School of

Economics and Political Science, 1933. Disp. in http://goo.gl/Ruzb1F

(4) Cf. Resultados do levantamento de 2011 sobre expectativa média de

vida das empresas na base das 500 Standard & Poors.