algumas considerações sobre cinema e tempo nas periferias do capitalismo flexível

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    Algumas consideraes sobre cinema e tempo nas periferias do capitalismo flexvel

    Erly Vieira Jr1

    ResumoEste artigo prope algumas reflexes acerca das reconfiguraes espao-temporais operadas pelo cinemacontemporneo, a partir das noes de sociedade em rede (Castells), sociedade de controle (Deleuze)e de concepes temporais da Antiguidade Clssica (cronos, ain, kairs), aplicando-as no contexto dasperiferias do capitalismo flexvel, a partir das experincias urbanas em metrpoles fora do eixo Europa-Amrica do Norte, em especial nos filmes dos diretores Abbas Kiarostami (Ir), Hou Hsiao-Hsien(Taiwan) e Wong Kar-Wai (Hong Kong).Palavras-chaves: sociedade em rede, sociedade de controle, reconfigurao espao-temporal.

    AbstractThis article proposes some reflections concerning the space-time reconfigurations in contemporarycinema, based on notions like network society (Castells), Society of control (Deleuze) and AncientGreece time conceptions (cronos, aion, kairos), updating to the flexible capitalism in peripheralmetropolitan contexts (beyond Europe-North America), in the works of filmmakers like AbbasKiarostami (Iran), Hou Hsiao-Hsien (Taiwan) e Wong Kar-Wai (Hong Kong).Keywords: network society, society of control, space-time reconfigurations.

    Desde os primeiros estgios da consolidao de uma linguagem cinematogrfica,

    diz-se que o cinema constri temporalidades narrativas prprias. Seja com a imagem

    indireta do tempo (Deleuze: 1985) obtida na montagem de planos do cinema clssico,

    ou com a imagem-tempo direta presente em determinadas correntes do cinema

    moderno e contemporneo, so incontveis os exemplos de relaes espao-temporais

    estabelecidas atravs da experincia cinematogrfica de se contar (ou no) uma estria.

    Alguns autores, em trabalhos publicados nas duas ltimas dcadas, propem pensar a

    sociedade ocidental contempornea sob uma gama de conceitos bastante diversos entre

    si (sociedade em rede, sociedade de controle, ps-modernidade, globalizao,

    sociedade de consumo), mas que possuem em comum o pressuposto de uma

    reconfigurao das noes de espao e tempo baseada nas transformaes

    proporcionadas pelas novas tecnologias da informao e comunicao. Com isso, tem

    ganhado fora a idia de que os meios audiovisuais, essas mquinas de produzir (e, porque no, de resistir ou reafirmar) imaginrio, traduzem, atravs de suas linguagens, as

    novas relaes temporais deste incio do sculo XXI, com suas compresses de espao e

    1 Mestre em Comunicao, Imagem e Informao pela Universidade Federal Fluminense. Professor doscursos de Comunicao Social da FAESA e da Faculdade Novo Milnio (Vila Velha, Esprito Santo).Professor substituto do Departamento de Comunicao Social/Ufes. Roteirista e diretor dos curta-metragens Macabia (16 mm, 2000), Pour Elise (35 mm, 2004), Saudosa (35 mm, 2005) e Grinalda

    (Mini DV, 2006).

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    tempo e conseqente rompimento de uma noo linear de cronologia que havia sido

    hegemnica no perodo que vai da ascenso da modernidade at meados do sculo XX.

    Partindo do arsenal terico de intelectuais oriundos de diversas correntes e

    ismos (num rol que incluiria autores to distintos entre si como, por exemplo, Manuel

    Castells, Gilles Deleuze, Michael Hardt/Antonio Negri, Zygmunt Bauman, DavidHarvey, Fredric Jameson, Stuart Hall, entre outros), verificamos existir um certo

    pensamento, na teoria cinematogrfica contempornea, de que alguns filmes, calcados

    em narrativas fragmentrias, no-lineares, marcadas pela simultaneidade e pela

    multiplicidade, e por vezes aproximadas a linguagens como as do videoclipe e dos

    videogames, refletiriam a reconfigurao espao-temporal que estaria presente no

    cotidiano dos habitantes desta virada/incio de sculo. Uma rpida lista incluiria

    trabalhos independentes e at mesmo alguns ttulos produzidos dentro dos grandesestdios (o que aponta uma certa aceitao desse tipo de narrativa dentro das formas

    hegemnicas de produo audiovisual): falo de filmes como Assassinos por natureza,

    Pulp fiction, Corra, Lola, corra, a trilogiaMatrix, 21 gramas, Rquiem por um sonho,

    Smoking/ No Smoking, O chamado, alm de filmes de diretores familiarizados com o

    universo dos videoclipes, como Spike Jonze (Quero ser John Malkovich, Adaptao) e

    Michel Gondry (Brilho eterno de uma mente sem lembranas), e at mesmo das

    narrativas de mltiplas tramas paralelas como Magnlia e Felicidade, das

    rememoraes do passado em Tempestade de gelo (e as reconfiguraes da memria no

    filme de Michel Gondry) e dos hipotticosflash-forwards deEfeito borboleta.

    A questo que tais filmes refletem a experincia de indivduos posicionados no

    centro da sociedade de consumo, em pases cuja maioria da populao participante

    ativa do processo de trocas informacionais e econmicas da contemporaneidade

    (Estados Unidos, Europa, Japo). Esses filmes refletem (e problematizam) uma relao

    espao-temporal existente nas regies do planeta que vivenciam intensamente uma

    modernidade lquida (Bauman, 2001), um mundo em que os indivduos, considerados

    consumidores plenos dentro do processo de globalizao, vivem sob uma relao direta

    com o tempo.

    E quanto s sociedades situadas nas periferias, em especial as economias

    emergentes? Como as experincias temporais desta virada de sculo esto sendo

    problematizadas pela produo audiovisual nesses pases? Uma vez que processos

    econmicos e scio-culturais diversos entre si permitem vivenciar diferentes

    reconfiguraes de espao e tempo, o objetivo deste artigo esboar uma primeira

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    reflexo acerca das diversas possibilidades de traduo das novas relaes temporais no

    cinema, em especial nas economias emergentes. Para isso, recorreremos anlise de

    filmes de trs diretores: o iraniano Abbas Kiarostami; o taiwans Hou Hsiao-Hsien e, de

    Hong Kong, Wong Kar-Wai. Antes de mergulharmos nos trabalhos desses cineastas,

    contudo, cabe aqui uma reviso acerca da concepo de compresso-espao temporalnas sociedades contemporneas, e seus desdobramentos na prpria linguagem

    cinematogrfica.

    Reconfigurando espao e tempo

    Em seu Post-scriptum sobre as sociedades de controle, publicado em maio de

    1990, Gilles Deleuze apresenta uma viso da contemporaneidade marcada pela

    substituio da sociedade disciplinar moderna (concebida por Foucault) por uma

    sociedade em que o controle ao ar livre, permanente e altamente reterritorializvel,

    passou a dar a tnica das relaes de poder sobre os indivduos. Segundo Sibilia (2002),

    esse seria o momento da transio de um status de produtor-disciplinado para o de

    consumidor-controlado, de modo que as noes de massa e indivduo seriam

    substitudas pela de consumidor. Na passagem do mundo analgico para o digital, os

    muros das fbricas dariam lugar s tecnologias de conexo permanentes, ligando o

    funcionrio empresa; em lugar do confinamento disciplinar, o controle operaria

    atravs do endividamento perptuo atravs de trocas flutuantes, num contexto em que

    o carto de crdito, interconectando o consumidor nos bancos de dados conectados em

    rede (2002:37) e o preenchimento de perfis nos bancos de dados em troca de servios

    seriam mais importantes que o prprio documento de identidade.

    Nesse contexto dominado por novas tecnologias da informao, as

    reconfiguraes entre tempo e espao passam a fazer parte de nossas vidas, uma vez que

    tomamos contato com diversas relaes temporais (mltiplas e simultneas, inclusive),

    proporcionadas pelos diferentes graus de insero dessas tecnologias em nosso

    cotidiano. Mrcio Tavares DAmaral, em uma conferncia apresentada em 2000 e

    publicada no livro Tempo dos tempos2 define bem essa experincia, a partir de uma

    definio (propositalmente redundante) do tempo contemporneo:

    2 DOCTORS, Mrcio (org). Tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. O livro rene os textos de

    um ciclo de conferncias sobre o tempo promovido pela Fundao Eva Klabin Rapaport, no segundosemestre de 2000.

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    Este novo tempo volumoso, espesso, denso, rugoso. O tempocontemporneo o da ecloso das novas tecno-logias que mudam os corpos,que aceleram os ritmos, que criam mundos na ordem do virtual, queembaralham real e virtual, que desrealizam o real, tiram-lhe a consistnciaque antes era o tapete sob os nossos ps, e com isso puxam o tapete e nosderrubam, a ns, que nos considervamos bons sujeitos. (DAmaral,2003:16).

    Para DAmaral, a prpria acelerao tecnolgica faz o futuro liberar-se da

    causalidade linear e tornar-se o maior valor: O que verdadeiramente vale ainda no

    veio, mas j est chegando. O que vale est sempre em anncio. (2003:20). O presente

    real seria determinado por uma ordem virtual, como a das bolsas de valores, que

    produzem efeitos de presente a partir de sues prognsticos, suas possibilidades de

    futuro. O futuro, segundo DAmaral, estaria se antecipando ao presente, estourando a

    cronologia e fazendo repensar o estatuto do passado na contemporaneidade, j no mais

    considerado aquela estrutura real e causal que determina o presente a se encaminhar

    para o futuro (2003:23), e sim algo que produzido interminavelmente pelo bloco

    futuro-presente e que existe virtualmente para legitimar uma determinada estrutura de

    poder e de relaes entre presente e futuro, agenciados pela tecnologia num bloco

    circular e indecidvel.

    Neste mesmo volume, um artigo do fsico Luiz Alberto Oliveira reconhece a

    acelerao como um atributo prprio de nossa poca, consistindo numa operao

    temporal: a intensificao de ritmos culturais, individuais e mesmo orgnicos,encarnada na crescente interpolao de interfaces sucessivas de integrao (geratrizes de

    novas relaes e conexes) entre a interioridade e a exterioridade dos agentes sociais

    indivduos, comunidades, massas (2003: 65). Oliveira nos lembra ainda que os gregos

    tinham trs divindades para a temporalidade: Ain (a eterna presena, a perenidade

    imvel), Cronos (o deus da consecutividade das pocas) e Kairs (deus das

    encruzilhadas, bifurcaes, do momento oportuno que pode ser aproveitado e decidir

    o futuro dentre as possibilidades mltiplas), para lanar uma reflexo: Talvez a nossapoca esteja testemunhando o deslocamento do foco da pesquisa sobre a temporalidade,

    de Cronos para Ain e Kairs (2003: 66).

    A possibilidade de se pensar o mundo contemporneo a partir de uma libertao

    do capital em relao ao tempo, facilitada pelas novas tecnologias da informao, um

    dos aspectos fundamentais da sociedade em rede concebida por Manuel Castells, que

    interconecta as noes de espao de fluxo e tempo intemporal como

    reconfiguraesdas idias de espao e tempo. Para Castells, o espao de fluxos define-

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    se como a organizao das prticas sociais de tempo compartilhado que funcionam por

    meio de fluxos (2002:501). Estes seriam as seqncias intencionais, repetitivas e

    programveis de intercmbio e interao entre posies fisicamente desarticuladas,

    mantidas por atores sociais nas estruturas econmicas, poltica e simblica da

    sociedade.(2002:501). Tal concepo espacial substituiria a idia de lugar, marcadapor uma rigidez territorial e identitria no mais adequada ao contexto do Capitalismo

    Flexvel.

    Castells concebe o espao de fluxos a partir de uma tripla natureza que articula

    uma base material dos processos (microeletrnica, telecomunicaes, processamento

    computacional, sistemas de transmisso e transporte em alta velocidade com base em

    tecnologias da informao), seus respectivos ns/centros de comunicao e uma

    organizao espacial das elites gerenciais dominantes, que definem as articulaes desseespao atravs das funes direcionais que essas elites (comunidades simbolicamente

    segregadas dotadas de um estilo de vida cada vez mais homogneo, transcendendo

    fronteiras culturais de todas as sociedades) exercem.

    Ao articular a base material dos processos, a distribuio espacial da informao

    e seu gerenciamento pelas elites, Castells detecta a existncia de um novo sistema

    temporal ligado ao desenvolvimento das tecnologias de comunicao a fragmentao

    do tempo linear na sociedade em rede:

    a mistura de tempos para criar um universo eterno que no se expandesozinho, mas que se mantm por si s, no cclico, mas aleatrio, norecursivo mas incursos: tempo intemporal, utilizando a tecnologia para fugirdos contextos de sua existncia e para apropriar, de maneira seletiva,qualquer valor que cada contexto possa oferecer ao presente eterno(2002:526).

    Para Castells, comprimir o tempo at o limite equivaleria a fazer com que a

    seqncia temporal e o prprio tempo desaparecessem, abrindo espao para uma cultura

    onde coexistissem, simultaneamente, o eterno e o efmero, num universo detemporalidade no-diferenciada de expresses culturais. O tempo eterno/efmero da

    nova cultura, adaptado lgica do capitalismo flexvel e dinmica da sociedade em

    rede, possibilitaria uma articulao entre sonhos individuais e representaes coletivas

    num panorama mental atemporal, atravs de uma srie de procedimentos citados por

    Castells: transaes de capital realizadas em fraes de segundos, empresas com

    jornadas de trabalho flexveis, tempo varivel de servio, indeterminao do ciclo de

    vida, busca da eternidade por intermdio da negao da morte e culto juventude,

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    guerras instantneas e cultura do tempo virtual, num amlgama de experincias

    temporais simultneas bastante diversas entre si.

    Da o conceito de tempo intemporal, pertencente ao espao de fluxo,

    contraposto idia de uma seqncia de eventos socialmente determinada (a

    cronologia), to obsoleta quanto a noo de lugar qual est atrelada: O espaomodela o tempo em nossa sociedade, assim invertendo uma tendncia histrica: fluxos

    induzem tempo intemporal, lugares esto presos ao tempo (Castells, 2002: 557).

    Nem mais o fluxo linear irreversvel capitaneado pela noo de progresso, nem o

    eterno presente do tempo circular mtico: pode-se dizer que estamos vivenciando a

    emergncia de um universo temporal indiferenciado que, segundo Pecchinenda (2002:

    222), depende dos impulsos e das necessidades dos fruidores, e a eles volta

    intimamente ligado s decises dos produtores tecno-econmicos desta culturavirtualizada emergente. Podemos dizer que esta a cultura do instantneo, do

    imediato, da simultaneidade de presentes perenes, em que a prpria condio do

    passado como causa do presente e do futuro comea a ser posta em questo.

    Para Harvey (1992), os usos e significados do tempo mudaram, com base no

    fenmeno que ele denomina compresso do espao-tempo, diretamente decorrente da

    acelerao tecnolgica e que traz como resultado um incremento da circulao de

    mercadorias e informaes. Instantaneidade, descartabilidade, imediatismo, bombardeio

    de estmulos, volatilidade passam a ser caractersticas do processo de produo e

    consumo de imagens que comprime tempo e espao. Aqui, cabe citarDeleuze acerca

    das sociedades de controle que, apesar de pertencer a uma corrente terica diversa,

    muito se aproxima desse panorama traado por Harvey: O controle de curto prazo e

    de rotao rpida, mas tambm contnuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de

    longa durao, infinita e descontnua (Deleuze, 1992: 224).

    Assim sendo, poderamos perceber na sociedade contempornea, com sua

    inquietude e volatilidade de comportamento dos consumidores, uma cultura do

    esquecimento mais que do aprendizado, j que a cada momento surgem diversos novos

    estmulos e experincias a serem consumidos (a clnica que apaga determinadas

    memrias dos pacientes, em Brilho eterno de uma mente sem lembranas uma

    metfora bastante precisa disso). Zygmunt Bauman enxerga a sociedade de consumo em

    que vivemos como uma sociedade desejante, que no se satisfaz com o objeto, mas sim

    com a possibilidade de desejar mais e mais: o consumidor, sempre vido por novas

    atraes e enfastiado com as j obtidas, uma pessoa em movimento e fadada a se

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    movimentar sempre (1999: 93). Com isso, as identidades culturais so

    permanentemente reconfiguradas e, por isso mesmo, tornam-se bastante hbridas,

    cruzando referncias locais e transnacionais, exemplificadas no consumo de

    determinados estilos de vida por jovens de diversos pases, porm pertencentes s

    mesmas tribos (como os agasalhos Adidas e a msica hip hop, to presentes tanto naperiferia nova-iorquina quanto paulistana, cantonesa ou parisiense, vide os trajes dos

    jovens descendentes de rabes nos protestos de 2005 na Frana).

    Contudo, Bauman aponta as diferenas entre a globalizao numa diviso que

    ele estabelece entre um primeiro e um segundo mundo, um vivendo no tempo, o

    outro no espao:

    O encolhimento do espao abole o fluxo do tempo. Os habitantes do

    Primeiro Mundo vivem num presente perptuo, passando por uma srie deepisdios higienicamente isolados do seu passado e tambm do seu futuro.Essas pessoas esto constantemente ocupadas e sempre sem tempo, poiscada momento no extensivo experincia idntica a ter o tempo todotomado. As pessoas ilhadas no mundo oposto so esmagadas pela carga deuma abundncia de tempo redundante e intil, que no tm como preencher.No tempo delas, nada acontece. Elas no controlam o tempo mastambm no so controladas por ele(1999:96).

    Pensadores latino-americanos apontam possibilidades para o estudo da

    experincia do consumo nos pases em desenvolvimento. Martin-Barbero (2003) fala da

    natureza assimtrica do processo de comunicao, mediatizado pelos contextos onde ele estabelecido. Com isso, a mediao vista por ele como possibilidade de se instaurar

    um fluxo permanente de sentidos, com novas experincias culturais e estticas, dentro

    do processo de desterritorializaes e relocalizaes. A cultura popular de massa, para

    Barbero, seria um espao de entrecruzamento, de mestiagem, e ele cita inclusive a

    telenovela como exemplo desse processo em larga escala. Partindo dessa premissa,

    acredito ser possvel pensarmos no s a telenovela, mas o prprio cinema desses pases

    como espao de discusso e problematizao sobre as experincias espao-temporais

    advindas de uma cultura de consumidores que, com seus diferentes graus de

    acumulao de recursos, exercem seus status de maneiras diferentes das dos habitantes

    do Primeiro Mundo.

    Sobre cinema e tempo(s)

    O cinema surge num momento de acelerao da vida cotidiana, no contexto da

    modernidade na virada do sculo XIX para o XX, poca de ascenso das metrpoles e

    de tecnologias de comunicao e transporte que encurtavam distncias e espaos de

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    tempo. Esse contexto de acelerao marcado pelo que Simmel chamava de uma

    intensificao da estimulao nervosa, que desembocaria numa crescente valorizao

    do instante, abrindo espao para a presentificao que assistimos nas sociedades

    ocidentais contemporneas.

    Podemos dizer que a montagem cinematogrfica, j a partir das primeirasdcadas do sculo XX, praticava uma espcie de compresso espao-temporal: a prpria

    definio de Erwin Panofsky, de que o cinema conduziria a uma organizao temporal

    do espao, reflete bastante essa condio. Na narrativa clssica, a tcnica

    cinematogrfica era colocada a servio da fbula: Bordwell define o estilo clssico pelo

    uso de um nmero limitado de dispositivos tcnicos especficos organizados em um

    paradigma estvel, que estimularia o espectador a construir um tempo e um espao de

    ao da fbula que seja coerente e consistente (2005: 292).A partir do ps-guerra, contudo, uma certa produo cinematogrfica passa a se

    caracterizar mais como uma arte do tempo do que uma arte do movimento (para

    utilizar os termos propostos por Marie Claire Ropars-Wuilleumier na dcada de 70):

    aqui, o tempo passa a ser personagem central de uma nova forma de fazer cinema,

    exigindo uma utilizao totalmente nova dos recursos da linguagem audiovisual.

    Deleuze desenvolve essa idia em seus dois volumes sobre o cinema publicados na

    primeira metade da dcada de 80: aproximando o cinema clssico de uma imagem-

    movimento, em que a montagem assumiria o papel primordial de constituir uma

    imagem indireta do tempo a partir dos agenciamentos entre os planos, permitindo obter,

    nesse processo, a imagem do todo; e situando o cinema moderno (as novas narrativas

    que surgem a partir do ps-guerra) no terreno da imagem-tempo, em que a montagem

    ocorreria dentro do prprio plano (como nos sucessivos reenquadramentos e

    temporalidades presentes dentro de um plano-seqncia), assumindo a imagem como

    inseparvel do antes e do depois que lhes so prprios (1990: 52). Sai de cena o par

    relao sensrio-motora/ imagem indireta do tempo, substitudo por uma relao no-

    localizvel entre situao tica e sonora pura/ imagem-tempo direta (1990: 55). O

    falso raccord, por exemplo, seria um exemplo disso, ao permitir saltos espaciais e

    temporais que romperiam a transparncia de uma narrativa considerada realista.

    A ascenso das tecnologias digitais nos meios audiovisuais introduz na narrativa

    cinematogrfica a possibilidade da manipulao instantnea da imagem, transformada

    em arquivos digitais nos quais podem ser adicionadas ou removidas informaes

    sonoras, visuais e textuais. Ela tambm possibilita a popularizao de um tipo de

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    cinema dominado pela narrativa no-linear. Esse tipo de cinema no seria propriamente

    uma novidade: Dancyger (2002) lembra que a no-linearidade j estava presente no

    cinema desde pelo menos Un chien andalou, atravs do sentido imprevisvel da imagem

    instaurado pelo surrealismo, passando ainda pelo trabalho de diretores da Nouvelle

    Vague francesa, como Godard e Resnais (tanto no uso de travellings para indicar asbifurcaes temporais em O ano passado em Marienbad, ou no uso do jump cute do

    excesso de planos gerais e abertos, alternados, para minar a relao entre pblico e

    protagonista nos filmes de Godard). A diferena que esse cinema no-linear

    contemporneo estaria no s presente num cinema mais experimental, mas tambm,

    em uma razovel medida, dentro da produo hegemnica dos grandes estdios

    hollywoodianos.

    Dancyger ainda fala de uma certa influncia da MTV na montagemcinematogrfica, a partir da fragmentao presente na linguagem do videoclipe, um dos

    produtos prediletos dos jovens consumidores da sociedade em rede proposta por

    Castells. Esta influncia tambm seria marcada pela adoo de certos procedimentos

    muito comuns ao videoclipe, como o dilogo intertextual com outras formas de

    produo simblica na cultura de consumo (fico cientfica, filme de terror, histrias

    em quadrinhos, videogames, tecnologias digitais diversas), e a obliterao do espao e

    do tempo em prol desse intertexto, fazendo prevalecer a sensao decorrente sobre a

    trama: Esse pblico no se importa com a fragmentao nem com o ritmo ou a

    brevidade da experincia. Para ele, o sentimento uma experincia audiovisual

    desejvel (Dancyger, 2002: 195).

    Dancyger enumera algumas escolhas de montagem que ajudam a obliterar tempo

    e espao no videoclipe (e, por extenso, nos filmes influenciados por sua esttica),

    optando por sua descontinuidade, como a abundncia de close-ups e de teleobjetivas ou

    grandes angulares que retirem o mximo possvel do contexto visual, enfatizando o

    primeiro plano sobre o fundo, alm do uso de cores e luzes que distanciem a imagem de

    um certo realismo, do jump cute um corte excessivamente ritmado dos planos. Outros

    procedimentos surgidos da esttica videogrfica apontados por Phillipe Dubois (2004)

    tambm podem ser encontrados com facilidade no cinema deste incio de sculo,

    sobretudo no trabalho de diretores como Peter Greenaway. So eles: a sobreimpresso

    (e mltiplas camadas), os jogos de janelas e a incrustrao (ou chroma key),

    reconfigurando as noes de plano (inclusive em termos de espao off, substitudo por

    uma tendncia de imagem totalizante e por uma imagem em que a espessura de suas

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    camadas sobrepostas importa mais que a profundidade de campo) e da montagem

    que d lugar ao que Dubois chama de mixagem de imagens, marcada pela

    simultaneidade, multiplicidade e metamorfose, caractersticas tambm apontadas por

    Arlindo Machado (1997) como presentes nas formas expressivas da

    contemporaneidade.Machado (1997: 240-241) ainda ressalta que essas novas imagens estariam

    migrando o tempo todo de um meio para outro, de uma natureza para outra (pictrica,

    fotoqumica, eletrnica, digital), a ponto de se caracterizarem como imagens migrantes,

    figuras em trnsito permanente. Essa caracterstica de mobilidade incessante nos

    remete aos habitantes do primeiro mundo definido por Bauman, o mundo da

    modernidade lquida irrestritamente estabelecida. De fato, os filmes citados, marcados

    pela no-linearidade narrativa, pela influncia de uma linguagem MTV e pelautilizao de alguns dos procedimentos da esttica videogrfica so, em sua maioria,

    produzidos em pases onde as transformaes tecnolgicas ocorrem em sua plenitude,

    graas a um estgio de desenvolvimento econmico que permite que seus habitantes

    possam ser consumidores plenos. E nas periferias do Capitalismo Flexvel, como o

    cinema traduz essa experincia espao-temporal?

    Sabemos que as transformaes espao-temporais presentes nos contextos da

    sociedade em rede, sociedades de controle e modernidade lquida, ocorrem sob

    diversos graus nas diferentes comunidades (nacionais ou transnacionais), por conta de

    uma srie de fatores scio-econmicos e culturais, de modo que no d pra pensar numa

    nica experincia espao-temporal vivenciada pelos habitantes dos pases em

    desenvolvimento, mas sim em experincias hbridas, situadas em diversos estgios de

    um processo de transio para um horizonte ideal (e talvez utpico) do exerccio pleno

    do status de sociedade de consumo (tal qual verificado no primeiro mundo

    atualmente). As particularidades regionais configuram essas experincias hbridas, em

    que estruturas da modernidade slida (e, em alguns casos, pr-modernas) coexistem

    com situaes de mobilidade constante e interconectividade permanente. Uma figura

    emblemtica dessa situao seria o personagem Satlite (cujo nome, no filme,

    pronuncia-se como no ingls, satelit), de Tartarugas podem voar (do cineasta

    iraniano Bahman Ghobadi), que exerce trs funes simultneas: instala antenas

    parablicas em vilarejos da fronteira Ir-Iraque, comanda um grupo de crianas (em sua

    maioria rfs) que trabalham para ele recolhendo minas terrestres para revenda, e serve

    de intrprete (orculo) das notcias transmitidas no idioma ingls (que ele desconhece)

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    pelos canais de tev, baseando-as nas vises premonitrias de um de seus jovens

    funcionrios.

    Partindo dessa instaurao de um certo hibridismo, proponho aqui nos determos

    sobre trs exemplos de cinematografias realizadas em pases emergentes no panorama

    capitalista contemporneo (Abbas Kiarostami, no Ir; Hou Hsiao Hsien, em Taiwan; eWong Kar-wai, em Hong Kong), pensando tais exemplos como algumas dentre as

    vrias possibilidades de reconfiguraes espao-temporais no cinema deste incio de

    sculo. Acredito que no sejam as nicas possveis, de modo que esta primeira anlise

    no esgota o tema, apontando uma srie de caminhos possveis para uma futura

    pesquisa, de alcance bem mais amplo.

    Nos filmes de Abbas Kiarostami h uma certa preferncia por planos-seqncia,

    de modo que os poucos cortes e as repetidas pausas e silncios numa nica seqnciainstauram uma certa relao de cumplicidade com o espectador, intensificada por uma

    estratgia de mant-lo subinformado (Bernardet, 2004) acerca da ao que se desenrola

    na tela, em compasso de espera: decorrem 24 minutos desde o incio de O gosto de

    cereja at que seja revelado o motivo do passeio de carro do protagonista Badii e de

    suas abordagens aos homens na beira da estrada; 32 minutos at ser mostrada a

    fotografia do menino pelo qual o personagem do diretor em Vida e nada mais procura

    na regio do terremoto e que o motivou a sair da capital logo aps a tragdia; 55

    minutos at sabermos o motivo que levou a equipe de filmagem de O vento nos levar

    at o vilarejo (o quase extinto ritual de enterro dos mortos praticado por aquela

    comunidade). Essa relao temporal da espera acentuada pelo predomnio do fora do

    campo e do no-dito, deixando a cargo do espectador a funo de completar o que a

    imagem apenas sugere e no nos deixa ver (a senhora moribunda, por exemplo).

    Uma leitura apressada poderia estabelecer paralelos entre os tempos mortos

    (onde aparentemente nada acontece) e planos-seqncia nos filmes de Kiarostami com o

    Neo-realismo Italiano. Tal aproximao, questionada pelo prprio cineasta, que no se

    considera influenciado pela escola italiana do ps-guerra3, soa totalmente inconsistente

    se levarmos em considerao que a aparente simplicidade narrativa de seus filmes,

    apesar de induzir o espectador desavisado a acreditar num mero desenrolar da

    3 Em entrevistas, Kiarostami deixa transparecer uma certa preferncia pelos filmes de Robert Bresson e

    Fellini, sempre deixando claro que, em sua juventude, os filmes neo-realistas no costumavam serexibidos no Ir, cuja programao das salas de cinema era dominada pela produo hollywoodiana.

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    realidade como ela sob seus olhos, esconde um intrincado jogo de artifcios na

    construo de cada obra.

    Essa mise-en-scne do artifcio vale-se da camuflagem de determinados

    elementos essenciais para a compreenso da narrativa sob a forma de elementos

    aparentemente aleatrios, como a cena de Onde fica a casa de meu amigo? em queprotagonista e espectador so levados a acreditar que o garoto que segura o volume de

    madeira o amigo procurado no ttulo do filme. O gigantesco objeto de madeira

    oculta o rapaz do campo de viso do protagonista (que coincide com o do espectador),

    deixando que se vejam apenas as calas que ele veste, iguais s do personagem

    procurado. Num dado momento, o rapaz no mais ocultado pelo objeto, e percebemos

    se tratar de outra pessoa. O espectador, depois de tanta espera, descobre-se ludibriado

    por um artifcio to sutilmente camuflado que o convence de que tal cena carrega umagenerosa dose de acaso. Aqui, a fabricao do real efetuada por uma construo

    espacial a partir de objetos pessoais, elenco, cenrio, figurinos coletados nas

    vizinhanas (como em Atravs das oliveiras), o que, a princpio, conferiria cena um

    tom de realidade e de verdade.

    Ishagpour fala sobre essa falsa impresso de realismo, ao lembrar que, em

    Kiarostami, a parte do real que se revela exatamente seu aspecto ilusrio,

    reforando assim o poder do cinema como mundo do falso por excelncia, do

    fingimento e da aparncia (...) uma vez que pode se parecer realidade a ponto de

    enganar de se passar por real (2004, 107). Uma impostura como a da falha do

    microfone (e os dilogos perplexos da equipe de filmagem) na cena em que Sabzian

    encontra o verdadeiro Makhmalbaf, ao final de Close up, tambm se enquadra nessa

    afirmao.

    Bernardet destaca, ainda no campo dos artifcios, uma preferncia pela

    serialidade (repeties com pequenas variaes) nos filmes de Kiarostami: os blocos em

    que a narrativa de Dez dividida, os telefonemas de O vento nos levar, a srie de

    variaes sobre uma criana perambulando nas ruas de um vilarejo em Onde fica a casa

    de meu amigo?, as cenas repetidas na simulao de uma filmagem em Atravs das

    oliveiras. Tais repeties conferem a todos esses filmes uma estrutura circular (ou

    melhor, em espiral, por conta das pequenas variaes multiplicando significados),

    acentuada pelas perambulaes e circunvolues dos protagonistas, como aponta

    Bernardet, ao dizer que O vento nos levar mais um filme de espera que de busca

    (2004: 79): o conjunto de aes desencadeado pelo toque do celular (ligar o carro, subir

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    at o cemitrio, atender a chamada, retornar ao vilarejo) repete-se quatro vezes, com

    significados diferentes no decorrer do filme.

    Subinformando o espectador, exaltando o artifcio, trabalhando com uma

    temporalidade espiral, Kiarostami traz o que Laura Mulvey diria ser um princpio de

    incerteza, uma certa indeterminao entre documentrio e fico, pondo em dvida ostatus da imagem, do espao e do prprio tempo, aproximando-se a uma concepo bem

    assemelhada ao Kairs grego.

    J Hou Hsiao Hsien, em seu Millenium Mambo, trabalha com uma outra

    temporalidade (que nos remete ao ain grego) para contar uma estria ambientada na

    vida noturna da frentica Taiwan deste incio do sculo. Ao construir uma narrativa

    bastante fragmentada em torno do cotidiano da protagonista, uma dessas jovens que

    passam suas noites no universo da cultura techno das metrpoles do sudeste asitico, emmeio a boates, drogas qumicas, muita msica eletrnica e algum envolvimento com o

    submundo, o cineasta apresenta um encadeamento de sucessivos presentes

    eternos/efmeros quase independentes entre si, de modo a dar ao espectador a impresso

    de jamais poder afirmar com exatido quanto tempo se passou entre uma cena e outra

    (minutos, horas, dias), ou mesmo a ordem cronolgica desses acontecimentos.

    Hsien promove uma interessante traduo dos elementos da techno music na

    estrutura do prprio filme: reproduzindo um certo estado de transe, a repetio contnua

    de situaes (e dos prprios temas musicais da trilha sonora), numa espcie de ostinato

    narrativo com ligeiras modificaes de elementos (como a variao de timbres sobre

    uma mesma base promovida pela msica eletrnica). A iluminao do apartamento dos

    protagonistas, que remete s luzes de boates, o uso saturado das cores e de texturas

    visuais, lembrando em muito a visualidade dos filmes de Wong Kar-wai, tambm

    intensificam essa reproduo sinestsica da e-music. Hsien ainda acrescenta um

    elemento novo: o uso do plano-seqncia em enquadramentos muito fechados (closes,

    big closes e planos-detalhe), com sutis movimentos que reenquadram os ambientes

    saturados de luzes e cores pontualmente dispostas, dando a impresso de uma mudana

    total no tom da cena, bifurcando seu tempo e espao ao reapresentar uma parcela

    mnima do ambiente que passa a ocupar toda a tela como se fosse um cenrio totalmente

    novo, inebriando os sentidos e fazendo-nos esquecer aos poucos da imagem anterior de

    outra parcela deste mesmo espao fsico.

    Ao fragmentar o espao e o tempo, transformando a cronologia numa sucesso

    de vrios presentes a se esgotarem, Hou Hsiao Hsien d a seus personagens essa

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    liberdade de se movimentar sem precisar de um passado, como diz Ruy Gardnier, em

    crtica publicada na revista eletrnica Contracampo, poca da exibio do filme no

    Brasil.4

    Em alguns de seus outros filmes, Hsien desdobra essa reconfigurao espao-

    temporal brilhantemente resumida na letra da msica utilizada no filme Three Times:No past, no future. Just a hungry present. Caf Lumire, rodado em parte no Japo,

    mas com uma personagem taiwanesa, parte do registro do cotidiano, das pequenas

    perambulaes de seus personagens em constante movimento (da a metfora do trem e

    das estaes), de seus subempregos, da escala microscpica em que se manifestam os

    acontecimentos corriqueiros, registrados sob a luz natural (tambm sujeita a sutis

    variaes advindas de sua condio fsica), para estruturar uma histria totalmente

    desfiada. Os protagonistas de Caf Lumire, em meio ao rudo urbano, coletam cadaqual seus prprios fragmentos: os sons de trens que Hajime registra quase que

    diariamente em seu gravador, as pequenas memrias do compositor taiwans que se

    exilara dcadas atrs no Japo (motivo da pesquisa de Yoko). J no episdio de Three

    times ambientado em 2005, a saturao de tecnologias de comunicao e

    reprodutibilidade, ao mesmo tempo em que mantm os personagens conectados,

    praticamente extingue o contato interpessoal.

    Ainda que trabalhe com um contexto de presentificao, Hsien vez por outra

    lana um curioso olhar para o passado: Three Times embebido de nostalgia e

    memria, com dois de seus episdios situados no passado; Caf Lumire homenageia

    um cinema de meados do sculo XX, ao dialogar com o estilo do cineasta japons

    Yasujiro Ozu; Millennium mambo, lanado em 2001, abre com uma cmera lenta,

    incomum, e um offque situa a trama num pretrito, assumindo tratar-se do conjunto das

    memrias de uma narradora-protagonista que conta o episdio dez anos depois de seu

    acontecimento. como se o passado fosse um arquivo de informaes anteriores, um

    backup de fatos ocorridos, disposio do presente, a memria assumindo uma funo

    equivalente ao disco rgido de um computador.

    tambm sobre a gide da memria e da nostalgia de uma Hong Kong que j

    no existe mais que o cineasta Wong Kar-Wai vai ambientar uma parcela significativa

    de sua cinematografia recente, em especial seus ltimos dois longas-metragens, os

    filmesAmor flor da pele e 2046.

    4

    Publicado na edio dedicada cobertura do Festival do Rio 2001, disponvel no endereohttp://www.contracampo.com.br.

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    Alguns elementos utilizados nestes filmes j se configuravam antes como

    constantes na obra do cineasta, como o desenvolvimento no-linear da narrativa, a

    repetio de situaes sob pequenas variaes (na presena de duplos, como as

    semelhanas entre as duas tramas deAmores expressos), o uso da msica pop na trilha

    sonora, numa espcie de leitmotiv, conduzindo circularmente o ritmo narrativo (queser retomado no Yumejis theme, em Amor flor da pele, e na introduo de

    Perfdia, em 2046) e a explorao de elementos visuais (enquadramentos, cor,

    iluminao, texturas, embaamentos, nvoas e fumaas) que instauram uma forte

    artificialidade e estetizao da imagem, aproximando-se de uma linguagem utilizada

    pela publicidade e, principalmente, pelo videoclipe.

    Mas nestes dois filmes que Kar-wai potencializa tais recursos para contar uma

    estria de amor que nunca se concretiza. Kar-wai nos convida a repensar o espao e otempo: o romance dos protagonistas que no avana ecoa nos temas musicais da trilha

    sonora, que tambm do a impresso de algo emperrado (o ostinato prestes a explodir,

    embora nunca o faa, no uso repetido das introdues dos temas musicais), que ecoa na

    sensualidade dos movimentos (de personagens e de cmera) de cenas como a que a

    protagonista Su Li-Zhen passa pelo beco chuvoso para comprar macarro...

    Essa condio narrativa reforada pela concepo espacial da (ento nascente)

    metrpole, representada no filme de forma fragmentada, como numa memria afetiva

    (tal qual pginas de um dirio ntimo) em ambientes internos de dimenses exguas nos

    quais se desenrolam as cenas que nos so apresentadas. Apesar de Hong Kong, na

    dcada de 60, estar numa situao de superpopulao, sendo comum o aluguel de cada

    quarto de apartamento para famlias inteiras residirem (da o mote dos protagonistas se

    conhecerem ao se instalarem num mesmo andar do prdio), esse sentido de

    superpovoamento mais implcito que explcito (Dancyger, 2002), como na confuso

    de vozes e personagens que aparecem nas cenas iniciais do filme (em especial a da

    mudana para os quartos). Em termos de ambientes exteriores aos quartos, nos dado a

    ver no mais que um beco, um corredor, um pedao de escritrio ou de um restaurante

    na Hong Kong do filme. At os cnjuges dos protagonistas, que mantm um caso

    extraconjugal (cuja descoberta aproxima o mocinho e a mocinha trados) no so

    enquadrados por inteiro jamais, apenas em planos-detalhe ou de costas para a cmera

    (afinal, so elementos suprfluos para a narrativa). Com isso, Kar-wai apresenta um

    universo em que nada se conclui, que faz a comunicao perder o sentido, como a

    mensagem de soluos gravada por um personagem em outro de seus filmes, Felizes

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    juntos, que incompreendida por outro personagem, ao escutar o contedo da fita em

    plena Terra do Fogo, extremo sul do mundo civilizado.

    Kar-wai, ao recortar o espao, constri uma temporalidade do desejo: fumaa,

    non, pote de sopa, movimento dos personagens, em velocidade normal ou em slow

    motion, tudo aponta para um encontro ertico (Dancyger, 2002) que no se concretizaem sua plenitude, que se esvazia: da sua recusa em apresentar o clmax dos eventos no

    sentido do cinema clssico, como concluso natural dos acontecimentos apresentados.

    Kar-wai constri um outro tipo de clmax narrativo, pautado pela inconcluso e pelo

    reconhecimento da incomunicabilidade e da impossibilidade de plenitude do desejo.

    Uma outra questo espao-temporal tambm se faz presente em seus filmes. A

    obsesso com o nmero 2046 a toda hora nos faz lembrar a data em que Hong Kong

    dever, irremediavelmente, ser parte da China novamente (a reincorporao em 2002,de certa forma, foi parcial). Como uma espcie de morte anunciada de uma identidade

    cultural, o fantasma de 2046 est presente na simbologia do exlio, to cara aos filmes

    do autor (bem como na nostalgia de uma Hong Kong de sua infncia que j no existe

    mais). O exlio apresenta a condenao ao no-lugar fsico da modernidade lquida,

    que ecoa na metfora do no-lugar do amor, dos casais sem finais felizes, da busca

    infrutfera de se resgatar uma grande paixo ou de se entender o sentido dessa

    experincia (como no filme 2046). Kar-wai concebe um lugar do qual no se quer

    voltar, o tal 2046 que d nome a seu filme, onde as pessoas, de certa forma, so

    felizes. Mas um lugar hipottico, tanto que s existe na trama de fico cientfica que

    seu personagem est escrevendo. O exlio a nica soluo para um recomeo cada vez

    mais infrutfero, pois se comea cada nova experincia sabendo-se que ela ter seu fim

    (bem como Hong Kong, cidade-estado j condenada extino, primeiro poltica,

    futuramente cultural). Como na situao vivida pelo casal de rapazes em Felizes juntos,

    imigrantes exilados numa terra (Argentina, terra do passional tango) cujo idioma no

    dominam, tentando um novo comeo para o amor (cujo idioma tambm lhes de difcil

    entendimento), do outro lado do mundo, situado no extremo oposto geogrfico de sua

    terra natal, literalmente de cabea para baixo (no toa, a nica cena de Hong Kong

    exibida enquanto o protagonista est em Buenos Aires apresentada de ponta-cabea).

    Uma ltima questo lanada nessa rpida visita ao universo de Wong Kar-wai,

    ao nos depararmos com algumas narrativas concebidas neste incio de sculo, mas

    ambientadas dcadas atrs: de que formas os habitantes das metrpoles contemporneas

    (centrais ou perifricas) olham para seu passado? Como eles estabelecem essa relao

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    de memria? Ser que podemos pensar no flashbackcomo um procedimento menor,

    como diz Deleuze, por apresentar um antigo presente, e no o passado em sua dimenso

    virtual? Ou podemos conceb-lo, se utilizarmos construes temporais mais prximas

    do ain ou do kairs gregos, como se fosse um outro presente simultaneamente

    coexistente, reapresentado pela memria? Nesse rompimento da noo de tempocronolgico tal qual fora apresentada pela modernidade slida, como poderemos

    repensar o estatuto do flashback (e por extenso, do flash-forward) no cinema

    contemporneo? De que formas ele se apresentar nessas novas possibilidades de se

    contar histrias, que refletem nossas novas relaes espao-temporais (num processo

    ainda em seus estgios iniciais, visto que podero surgir novas tecnologias que

    reconfiguraro boa parte de nossa realidade num espao bem curto de tempo)? Creio

    que essas e outras questes ainda iro ocupar durante um bom tempo o pensamentoterico sobre o cinema e as narrativas audiovisuais em geral.

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