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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA ALEXANDRE DE JESUS DOS PRAZERES PÓS-HUMANISMO ENQUANTO UMA VERSÃO SECULARIZADA DA ENSOMATOSE GNÓSTICA: CORPO E MODERNIDADE TÉCNICA ABORDADOS ATRAVÉS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO São Cristóvão - SE 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

ALEXANDRE DE JESUS DOS PRAZERES

PÓS-HUMANISMO ENQUANTO UMA VERSÃO SECULARIZADA DA

ENSOMATOSE GNÓSTICA: CORPO E MODERNIDADE TÉCNICA ABORDADOS

ATRAVÉS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

São Cristóvão - SE

2019

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ALEXANDRE DE JESUS DOS PRAZERES

PÓS-HUMANISMO ENQUANTO UMA VERSÃO SECULARIZADA DA

ENSOMATOSE GNÓSTICA: CORPO E MODERNIDADE TÉCNICA ABORDADOS

ATRAVÉS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

Tese apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Sociologia da Universidade

Federal de Sergipe – UFS como requisito para

a obtenção do título de doutor em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Franz Josef Brüseke

São Cristóvão - SE

2019

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ALEXANDRE DE JESUS DOS PRAZERES

PÓS-HUMANISMO ENQUANTO UMA VERSÃO SECULARIZADA DA

ENSOMATOSE GNÓSTICA: CORPO E MODERNIDADE TÉCNICA ABORDADOS

ATRAVÉS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

Tese apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Sociologia da Universidade

Federal de Sergipe – UFS como requisito para

a obtenção do título de doutor em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Franz Josef Brüseke

Comissão Examinadora

Prof. Dr. Franz Josef Brüseke – Orientador

Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe – UFS

Prof. Dr. Antony Peter Mueller – Examinador Interno

Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe – UFS

Prof. Dr. Rogério Proença Leite – Examinador Interno

Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe – UFS

Prof. Dr. José Rodorval Ramalho – Examinador Externo

Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe –

UFS

Prof. Dr. Carlos Eduardo Sell – Examinador Externo

Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina –

UFSC

São Cristóvão – SE, 03 de junho de 2019

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AGRADECIMENTOS

A Deus por ter me concedido as condições para trilhar esta jornada acadêmica num dos

momentos mais críticos da minha vida em termos pessoais. “Tu és digno, Senhor e Deus

nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as coisas tu criastes, sim, por causa

da tua vontade vieram a existir e foram criadas” (Apocalipse 4,11).

À minha esposa, a professora Lívia Torres Nascimento de Jesus, por todo o apoio,

compreensão e paciência durante o tempo em que estive imerso nas atividades de pesquisa,

sem poder lhe devotar a dedicação merecida.

Ao meu orientador, o prof. Dr. Franz Josef Brüseke que foi para mim exemplo de erudição e

intelectualidade, agradeço por sua gentileza e por todo estímulo recebido.

Ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe e a todos

os professores de quem pude aprender através das aulas e atividades acadêmicas.

À Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe – FAPITEC

pela bolsa de estudos que me proporcionou as condições para dedicar tempo a esta pesquisa.

Aos colegas de turma e do PPGS-UFS pelo companheirismo, pelas boas conversas, sugestões

e críticas.

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RESUMO

Esta pesquisa realizada no campo da Sociologia, de modo mais específico da Sociologia do

Conhecimento e da Técnica, tem como objetivo investigar a presença de uma inconsciência

religiosa na consciência secularizada da sociedade moderna. Esta inconsciência religiosa se

manifesta por meio de concepções teológicas laicizadas em fenômenos modernos que, em si,

não são explicitamente religiosos, pois trazem as noções religiosas de forma implícita e de

modo que os envolvidos nos fenômenos não raramente se recusam a admitir a presença destas

noções em seu modo de pensar. Para exemplificar a tese sustentada, a pesquisa escolheu o

trans ou pós-humanismo como um fenômeno moderno (que tem alimentado o seu imaginário

dos avanços oriundos da ciência e da técnica modernas) com noções análogas as concepções

religiosas de uma escatologia gnóstica. Assim, o texto da pesquisa foi elaborado de forma que

no primeiro capítulo expôs de onde emerge o pensamento pós-humanista, apresentou um

quadro mais geral, expondo a Modernidade Técnica como base existencial deste

conhecimento. Por sua vez, no segundo capítulo, abordaram-se os conceitos de secularização

e de legitimidade aplicados a Modernidade sob um prisma filosófico. No terceiro capítulo, o

conceito de secularização foi retomado enquanto problema da Sociologia, uma vez que o

capítulo dois se ocupou com questões filosóficas em torno deste conceito. Consequentemente,

no quarto capítulo, será explorada a relação analógica entre pós-humanismo e gnosticismo.

Este capítulo, ao expor os elementos que caracterizam o pensamento gnóstico e a sua

importante influência na formação das ideias no Ocidente, aproxima o leitor dos conceitos

teológicos que foram secularizados na Modernidade, ao mesmo tempo, que possibilita maior

aproximação do exemplo, em análise, nesta pesquisa, o pensamento pós-humano. Este último

descrito como análogo a gnose e repleto de desdobramentos que descrevem uma lógica

escatológica gnóstica.

Palavras-chave: Modernidade Técnica. Pós-humanismo. Sociologia do Conhecimento.

Secularização. Inconsciência religiosa.

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ABSTRACT

This research carried out in the field of Sociology, more specifically the Sociology of

Knowledge and Technique, aims to investigate the presence in the secularized consciousness

of modern society of a religious unconsciousness. This religious unconsciousness manifests

itself through theological conceptions laicized in modern phenomena which, in themselves,

are not explicitly religious, bring the religious notions implicitly and in a way that those

involved in phenomena do not often refuse to admit the presence of these notions in his way

of thinking. To exemplify the sustained thesis, the research chose trans or post-humanism as a

modern phenomenon (which fed its imaginary of advances from science and modern

technique) with analogous notions the religious conceptions of a Gnostic eschatology. Thus,

the text of the research was elaborated in a way that in the first chapter expounded from where

emerges the post-humanist thought, presented a more general picture, exposing Technical

Modernity as existential basis of this knowledge. On the other hand, in the second chapter, the

concepts of secularization and legitimacy applied to Modernity were approached from a

philosophical point of view. In the third chapter, the concept of secularization was retaken as

a sociology problem, since chapter two dealt with philosophical questions about this concept.

Consequently, in the fourth chapter, the analogical relationship between posthumanism and

gnosticism will be explored. This chapter, by exposing the elements that characterize Gnostic

thought and its important influence in the formation of ideas in the West, brings the reader

closer to the theological concepts that have been secularized in Modernity, at the same time

that allows a closer approximation of the example, in this research, post-human thought. The

latter is described as analogous to gnosis and full of unfoldings that describe a Gnostic

eschatological logic.

Keywords: Technical Modernity. Post-humanism. Sociology of Knowledge. Secularization.

Religious unconsciousness.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 09

1 CORPO E PÓS-HUMANISMO: A MODERNIDADE TÉCNICA COMO BASE

EXISTENCIAL DO PENSAMENTO PÓS-HUMANISTA ........................................

27

1.1 O corpo como construção social?................................................................................ 29

1.1.1 Concepção moderna de corpo................................................................................... 35

1.1.1.1 Corpo como fator de individuação......................................................................... 41

1.1.1.2 O corpo anatomizado............................................................................................. 43

1.1.1.3 O corpo midiático.................................................................................................. 48

1.1.1.4 O corpo rascunho................................................................................................... 51

1.2 Pós-humanismo: a aposta numa era pós-biológica...................................................... 53

1.3 A essência da Modernidade: o caráter técnico............................................................. 58

1.3.1 O debate sobre a Modernidade................................................................................. 63

1.3.2 Modernidade técnica................................................................................................. 68

1.4 Conclusão..................................................................................................................... 71

2 MODERNIDADE E SECULARIZAÇÃO: QUESTÕES FILOSÓFICAS.............. 75

2.1 Semântica da secularização......................................................................................... 76

2.2 Modernidade: permanência de categorias teológicas secularizadas............................ 83

2.2.1 A transposição de conceitos teológicos para o plano político-jurídico.................... 83

2.2.2 A secularização da teologia cristã da história........................................................... 90

2.2.3 A Modernidade como essencialmente gnóstica........................................................ 98

2.3 A controvérsia entre a secularização e a legitimidade da Modernidade...................... 117

2.4 Conclusão..................................................................................................................... 120

3 MODERNIDADE E SECULARIZAÇÃO: QUESTÕES SOCIOLÓGICAS........ 124

3.1 Secularização enquanto tema sociológico contemporâneo.......................................... 125

3.2 Sociologia do Conhecimento, secularização da consciência e inconsciência

religiosa..............................................................................................................................

137

3.3 Inconsciência, ideologia e utopia................................................................................. 145

3.4 Ascese intramundana e secularização.......................................................................... 152

3.5 Conclusão..................................................................................................................... 156

4 O IMAGINÁRIO PÓS-HUMANISTA: O ESCHATON TECNOGNÓSTICO..... 158

4.1 O problema da aniquilação escatológica do mundo.................................................... 158

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4.2 O Trans-humanismo e sua relação analógica com a escatologia gnóstica.................. 163

4.3 Gnose e pensamento ocidental..................................................................................... 173

4.4 A superação da condição corpórea: uma “era do espírito”.......................................... 186

4.5 A singularidade: auto-redenção pelo conhecimento.................................................... 194

4.6 Conclusão..................................................................................................................... 198

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 199

REFERÊNCIAS............................................................................................................... 213

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INTRODUÇÃO

A edição de abril de 2017 da revista National Geographic trouxe na capa o título O

próximo humano e logo abaixo a descrição: “a era dos ciborgues chegou: como a tecnologia

projeta uma nova geração de pessoas”. A imagem da capa estampa a gravura de rostos em

posição frontal, porém enfileirados de forma crescente, fazendo com que o primeiro rosto da

fila apareça em tamanho maior e represente o estágio atual do processo evolutivo, trata-se do

rosto de um cyborg (cybernetic organism), um rosto humano com um tipo de prótese

metálica, cibernética, cobrindo parte da face direita, contornando o olho. Um organismo meio

humano e meio máquina parece ser o que sugere a imagem da capa como próximo passo da

evolução humana, porém desta feita não uma evolução realizada por um processo de seleção

natural e fatores genéticos, mas uma evolução operada sob o controle dos próprios seres

humanos através da tecnologia. Atrás deste cyborg, há mais três rostos formando a fila, dois

rostos humanos, e o terceiro, encerrando a fila, a sombra de um hominídeo, com traços

semelhantes ao de um gorila.

A matéria de capa, assinada por D. T. Max, tem como título Mais que humano e

começa com a seguinte epígrafe: “Como todas as outras espécies, somos o resultado de

milhões de anos de evolução. Agora, porém, estamos assumindo o comando desse processo”

(MAX, 2017, p.32). A matéria descreve, através de alguns exemplos, como a evolução

tradicional continua. Os seres humanos se dispersaram por todo o planeta e sob demandas

impostas pelas circunstâncias tiveram a sua composição genética alterada. Assim, discuti se a

evolução deixou de ser apenas o lento processo da seleção natural propagando os genes

desejáveis, e passou a incluir tudo o que a humanidade pode fazer para ampliar a sua

capacidade biológica natural e a dos instrumentos que fabrica – uma conjunção de genes,

cultura e tecnologia.

Problematizando com base numa declaração contida no livro A origem das espécies,

escrito por Charles Darwin (de que “a seleção natural é uma potência sempre de prontidão

para atuar, e é incomensuravelmente superior aos débeis esforços do homem, tal como se dá

com as obras da Natureza em relação às da Arte”), Max (2017, p.41) levanta a questão sobre a

validade hoje desta afirmação de Darwin, publicada em 1859, e prossegue propondo a

seguinte pergunta:

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A evolução biológica pode ser implacável e, na verdade, até mais habilidosa

que a evolução genética que os seres humanos conseguem promover com

cruzamentos em plantas e animais, mas o quão importante ela é, de fato, se

comparada com as adaptações que podemos conceber com a ajuda do nosso

cérebro?

Em resposta, Max (2017, p.41) apresenta a seguinte declaração:

No mundo atual, o principal motor do êxito reprodutivo – e, portanto, das

mudanças evolutivas – é a cultura, e a prima armada, a tecnologia. Isso

ocorre porque a evolução não tem como acompanhar a velocidade e a

variedade da vida moderna. A despeito de tudo o que a evolução conseguiu

realizar no passado recente, veja a precariedade com que nos adaptamos às

telas dos computadores, aos pacotes de salgadinhos de milho e aos

ambientes despojados de agentes patogênicos. Por que os nossos relógios

internos são tão rigorosos? Por que o nosso apêndice aparentemente inútil, e

que no passado talvez nos tenha ajudado a digerir gramíneas, não passou, em

vez disso, a facilitar o metabolismo dos açúcares? Se a genética humana

fosse uma empresa de tecnologia, ela teria falido quando surgiu a energia a

vapor. O seu plano de negócios depende de uma característica que surge por

acaso e depois se propaga por reprodução sexual.

Isso funciona muito bem em camundongos, que podem gerar uma prole nova

em apenas três semanas, mas os seres humanos estão presos a um ritmo bem

mais lento, produzindo uma nova geração apenas a cada 25 ou 35 anos.

Nessa toada, milênios podem se passar até que uma característica desejável

se dissemine por toda uma população. Dado os poucos flexíveis protocolos

da evolução genética, não admira que ela tenha sido superada pela

tecnologia.

A concepção de que o próximo passo para evolução do homem será realizado pelo

próprio homem por meio do controle possibilitado pelo conhecimento científico e pelo

desenvolvimento tecnológico se harmoniza com o pensamento trans ou pós-humanista. Isto se

fundamenta na noção de que agora a humanidade possui a capacidade de construir

tecnicamente o caminho rumo seu futuro como espécie, projetar-se e executar o projeto

através da eliminação do que considera indesejável ou sinal de fraqueza, limitação, não

precisando mais entregar-se ao acaso da seleção natural. Para que isto seja possível, a

tecnologia desempenha um papel extremamente importante, como o poder de realizar

transformações, operar “milagres”, revolucionar o mundo, alterar a ordem das coisas. A

tecnologia, deste modo, permite uma intervenção na ordem natural, possibilita a crença que

impulsiona a ação rumo ao anseio de moldar artificialmente o mundo.

A noção de criaturas artificiais construídas pelo homem à sua imagem tem sido

abordada por um conjunto de narrativas, que recorrem a diversas linguagens, tanto à

linguagem da literatura, da religião ou da arte, quanto à linguagem das ciências e das técnicas.

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Mudam-se os tempos e os costumes vigentes, porém é certo encontrar uma preocupação

comum, capturar o humano, imitando-o; a preocupação de representar o humano através de

algum dispositivo artificial, moldado, segundo a época, pelo mito, pela técnica, pela arte, pela

literatura, pela ciência. Desta forma, a repetição destas narrativas revela uma representação do

homem que o define enquanto ser criado. Ao discorrer sobre a condição do homem enquanto

criatura, tais narrativas expõem igualmente o anseio deste por se afirmar como criador à

semelhança da divindade que o trouxe a existência. Este anseio, primeiramente, representado

pelas narrativas míticas (egípcias, gregas e através da narrativa bíblica da criação do homem à

imagem de Deus) continua sendo manifesto em narrativas como a da estátua de Galateia e a

do Golem do período talmúdico na alta antiguidade; ressurgindo no século XVIII através da

ideia de construir autómatos androides; reaparecendo na literatura como a criatura do Dr.

Frankenstein, ou como Pinóquio; e mais recentemente através dos robôs da ficção científica,

ou ainda dos computadores como imitação artificial da inteligência humana (BRETON,

1997).

Conforme Philippe Breton (1997, p.19):

Máquina concreta e funcional no domínio do cálculo digital, o computador

electrónico é, igualmente, o suporte de uma família de projectos que têm em

comum a vontade de construir um equivalente artificial do cérebro humano

ou, o que vem a dar no mesmo no espírito dos seus promotores, de simular o

funcionamento da inteligência humana no exterior do cérebro humano. O

computador apresenta-se, deste ponto de vista, como a primeira etapa para

um objetivo muito mais ambicioso: uma réplica artificial do homem

inteligente.

Com o nascimento formal da Inteligência Artificial como uma nova disciplina distinta

na área de informática, fortalece-se o entendimento de que num futuro breve as máquinas

poderiam pensar, aprender e criar, e mais ainda, que o campo da suas possibilidades seria

conduzido a um alargamento de tal magnitude que as máquinas estariam aptas a tratar uma

gama de problemas até então somente apreendidos pelo espírito humano.

O computador instala-se, assim, potencialmente, como uma criatura

inteligente, suscetível, a curto prazo, de substituir o homem nas suas funções

mais essenciais, e capaz de ser dotada, nesta perspectiva, de uma

“consciência artificial” (BRETON, 1997, p.21).

Do anseio por moldar seres à sua própria imagem, em discursos como o dos pós-

humanistas, o homem parece encantar-se tanto pela a ideia que faz dos seres que almeja poder

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trazer a existência que planeja se fundir as suas criaturas, crendo poder criar algo não somente

semelhante a si mesmo, mas superior. Anseia poder desvendar o mecanismo da inteligência e

os meandros da vida, o homem projeta transcender-se, superar o que compreende ser

limitador, fraqueza, maldição, a sua carne representativa da sua conditio humana.

Desde os óculos de grau até as modernas próteses biônicas, passando por dispositivos

como o marca-passo, os implantes dentários e os órgãos desenvolvidos em laboratório, o

homem experimenta essa ligação com o artificial, com o não-biológico que se incorpora ao

seu organismo, ampliando capacidades ou reestabelecendo aptidões perdidas. Esses avanços

levam a pensar que se vivencia hoje uma transição rumo ao pós-humano, uma etapa posterior

à existência humana tal como pensada até então, graças aos progressos tecnológicos.

Stéphane Rémy Malysse (2000, p.273) demonstra que a ficção científica sempre

esteve muito interessada nas consequências que as novas tecnologias poderiam ter sobre o

corpo; do cinema à literatura, muitos foram os romancistas que entenderam que, no “futuro”,

o homem iria querer mudar sua condição corporal e que a noção de corpo se constitui como

uma grande musa da imaginação futurista. Por exemplo, do doutor Frankenstein aos trabalhos

do doutor Moreau, e de Blade Runner a Matrix, o uso do corpo humano como um material

biológico disponível coloca sempre em cena personagens cuja evidência “humana” é rompida

e cujo estatuto antropológico suscita o medo. Em Matrix, a carne é considerada como uma

doença, a condição corporal vista como epidemia e os corpos humanos são fabricados e

controlados industrialmente pelos próprios robôs, que inverteram os papéis e demonstraram a

superioridade dos materiais eletrônicos sobre as matérias vivas, da eternidade sobre a morte.

Esse poder de “dar a vida” que têm os robôs no filme parece muito com os poderes que

querem adquirir os geneticistas e os engenheiros da Inteligência Artificial do final do século

XX. As criaturas moldadas por Moreau na sua ilha de experimentação genética eram híbridas,

hoje, a clonagem de animais (e a ciência de reprodução do “idêntico” ultrapassa

tecnologicamente a das misturas) já foi realizada várias vezes (o primeiro caso foi de uma

ovelha e do seu clone Dolly).

Por sua vez, através de uma leitura antropológica da literatura de ficção científica

contemporânea, Le Breton (apud MALYSSE, 2000, p.273) coloca em evidência a velocidade

das transformações nas representações e nos usos sociais e medicinais do corpo humano.

Tradicionalmente inspirada pelas últimas descobertas científicas e as suas possíveis

perspectivas futuras, a ficção científica de hoje está sendo, paradoxalmente, cada vez mais

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“realista”. A aceleração das descobertas nas biociências e os avanços tecnológicos produzem

um “efeito de real” que ultrapassa muitas vezes o próprio desafio “futurístico” da ficção

científica: descrever um futuro radicalmente diferente do presente, uma ficção do tempo no

mundo.

Francis Fukuyama (1992), no livro O fim da história e o último homem, declara que,

tendo as principais alternativas à democracia liberal se exaurido, a história tal como conhecida

até então havia chegado ao fim. Dez anos mais tarde, ele reviu esta declaração: a história

ainda não chegou ao fim, porque a humanidade ainda não alcançou o fim da ciência, e que os

maiores avanços ainda por vir se darão nas ciências da vida.

Em o Nosso futuro pós-humano, Fukuyama (2003, p.21) estabelece a discussão de que

“a ameaça mais relevante suscitada pela biotecnologia contemporânea é a possibilidade de ela

vir a alterar a natureza humana e, desse modo, transferir-nos para um estágio ‘pós-humano’ da

história.”

Fukuyama compreende que a biotecnologia, no estágio atual, não possui poderes de

tamanha magnitude, alterar a natureza humana, mas possui potencial para isto. Por este

motivo, ele levanta a questão sobre o que fazer em resposta à biotecnologia, que no futuro

combinará grandes benefícios potenciais com ameaças que são tanto físicas quanto espirituais

e sutis. E apresenta como resposta óbvia, segundo seu entendimento, o dever de usar o poder

do Estado para regulá-la, e se essa regulação se provar além da capacidade do Estado-nação,

deverá ser feita em bases internacionais (FUKUYAMA, 2003, p.23).

Em Nosso futuro pós-humano, de forma realista e até mesmo distópica, Fukuyama

aponta tendências futuras dos conhecimentos de biotecnologia e tenta antecipar prováveis

consequências de uma revolução biotecnológica para a compreensão de natureza humana,

para a ética e para política. Ele apresenta os caminhos plausíveis para o futuro e extrai

algumas consequências de primeira ordem, desde as de curto prazo, porém prováveis, até as

mais distantes e incertas. Tais caminhos plausíveis são esboçados em quatro estágios: o

crescente conhecimento sobre o cérebro e as fontes do comportamento humano; a

neurofarmacologia e a manipulação das emoções e comportamento; o prolongamento da vida;

e, por fim, a engenharia genética.

O adjetivo “distópico” aqui visa diferenciar a abordagem feita por Fukuyama sobre as

consequências de uma revolução biotecnológica da abordagem efetuada pelos trans ou pós-

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humanistas sobre este mesmo assunto. Enquanto Fukuyama está estudando um fenômeno da

sociedade moderna como este se apresenta, os trans ou pós-humanista se inspiram neste

mesmo fenômeno para elaborar um utopismo com características religiosas sobre o futuro,

uma espécie de escatologia biotecnológica que prevê a próxima etapa da evolução dos seres

humanos, a passagem da condição humana à condição pós-humana. O cumprimento desta

“profecia” é proclamado e aguardado ansiosamente como a chegada de um novo e

aperfeiçoado mundo.

O livro de Fukuyama está distribuído em três partes, com seis capítulos na primeira,

três na segunda e três na terceira parte, num total de doze capítulos. Na primeira parte,

intitulada de “sendas para o futuro”, há um enfoque sobre os avanços e descobertas em vários

campos relacionados tais como a neurociência cognitiva, a genética populacional, a genética

do comportamento, a psicologia, a antropologia, a biologia evolucionária e a

neurofarmacologia. Áreas de avanço científico com implicações políticas potenciais, porque

ampliam conhecimentos da fonte do comportamento humano, o cérebro, e, por consequência,

a capacidade de manipulá-lo.

Por sua vez, ao tratar sobre a neurofarmacologia e a manipulação das emoções e

comportamento (capítulo três), revela: “No futuro, praticamente tudo o que a imaginação

popular imagina que a engenharia genética realizará terá muito mais chance de ser realizado

mais cedo através da neurofarmacologia” (FUKUYAMA, 2003, p.64). Drogas com

tendências políticas poderosas, associadas ao desejo das pessoas comuns de medicalizar tanto

quanto possível o seu comportamento e, com isso, reduzir sua responsabilidade pelos próprios

atos, ou que objetivam fazer com que as pessoas se sintam bem, ou ainda, drogas associadas a

um profundo conhecimento da química do cérebro e a capacidade de manipulá-la como fonte

de controle do comportamento das pessoas.

Sobre o prolongamento da vida, Fukuyama (2003, p.69) acrescenta: “O terceiro

caminho pelo qual a biotecnologia contemporânea afetará a política é o do prolongamento da

vida e o das mudanças demográficas e sociais que dele resultarão.” Mudanças associadas à

linha divisória entre países do Primeiro e do Terceiro Mundos, “com a Europa, o Japão e

partes da América do Norte tendo uma idade mediana de perto de sessenta anos e seus

vizinhos menos desenvolvidos tendo idades medianas em torno dos vinte e poucos anos”

(FUKUYAMA, 2003, p.74); mudanças associadas ao peso do componente feminino no

mundo desenvolvido no tocante as populações com idade para votar; e efeitos ligados ao

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manejo interno das hierarquias sociais, isto associado fato de pessoas que deveriam já está

aposentadas continuarem ocupando posições na hierarquia social. Esses elementos tendem a

criar uma situação na qual “o mundo poderá realmente, nessa altura, estar dividido entre um

Norte cujo tom político é ditado por mulheres idosas e um Sul dirigido [...] por homens jovens

irados com excesso de poder” (FUKUYAMA, 2003, p.75).

Já no tocante a engenharia genética, Fukuyama (2003, p.84) afirma que a engenharia

genética é a mais revolucionária de todas as biotecnologias, mas por enquanto tem tido

avanços significativos somente na biotecnologia agrícola para produzir organismos

geneticamente modificados, e acrescenta:

A próxima linha de avanço é obviamente a aplicação dessa tecnologia a

seres humanos. A engenharia genética humana suscita da maneira mais

direta a perspectiva de um novo tipo de eugenia, com todas as implicações

morais que essa palavra carrega, e em última análise a possibilidade da

modificação da natureza humana.

Na segunda parte do livro, “Sendo humano”, Fukuyama trata das questões filosóficas

suscitadas pela capacidade de manipular a natureza humana, fazendo uma defesa da

centralidade da natureza humana para a compreensão do certo e do errado, as implicações

morais. Ele expõe o modo de se desenvolver um conceito de dignidade humana que não

dependa de pressupostos religiosos acerca das origens do homem.

Fukuyama (2003, p.99) reconhece que há três categorias de objeções possíveis a

manipulação de seres humanos: (1) as que se baseiam na religião; (2) as que se baseiam em

considerações utilitárias; e (3) as que se baseiam em princípios filosóficos.

A religião fornece as razões mais claras para objeções à engenharia genética de seres

humanos, oferecendo grande número de objeções a uma variedade de novas tecnologias. Na

tradição compartilhada por Judeus, Cristãos e Muçulmanos, o ser humano foi criado à

imagem de Deus, isto, principalmente para os cristãos, possui implicações para dignidade

humana. Para estes, há uma clara distinção entre criação humana e não humana: só os seres

humanos possuem capacidade de escolha moral, livre-arbítrio e fé, uma capacidade que lhes

confere um status moral mais elevado que o resto da criação animal, e uma posição especial

no mundo. “Deus age através da natureza para produzir esses resultados, e por isso uma

violação das normas naturais, como ter filhos através do sexo e da família, é também uma

violação da vontade de Deus” (FUKUYAMA, 2003, p.99).

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Já os danos de cunho utilitário são, em geral, mais amplamente reconhecidos, estando

ligados seja a custos econômicos ou a custos claramente identificáveis para o bem-estar físico.

Fukuyama (2003, p.110) expõe as limitações dos argumentos utilitários nos termos seguintes:

Os pontos positivos e negativos que os utilitários somam em seus livros-

razões de custo-benefício são todos relativamente tangíveis e diretos,

geralmente redutíveis a algum dano físico facilmente identificável ao corpo.

Os utilitários raramente levam em conta benefícios e danos mais sutis que

podem ser facilmente medidos, ou que são feitos à alma em vez de ao corpo.

Em termos de objeções de cunho filosófico, Fukuyama (2003, p.111-112)

problematiza da seguinte forma:

E o que é essa essência humana que poderíamos estar em perigo de perder?

Para uma pessoa religiosa, ela poderia ter a ver com o dom ou centelha

divina com que todos os seres humanos nasceram. De uma perspectiva

secular, teria a ver com a natureza humana: as características típicas da

espécie partilhadas por todos os seres humanos como seres humanos. É isso,

em última análise, que está em jogo na revolução bio-técnica. [...]

O que está em jogo em última análise com a biotecnologia não é apenas um

cálculo utilitário de custo-benefício relativo a futuras tecnologias médicas,

mas a própria fundamentação do senso moral humano, que tem sido uma

constante desde quando houve seres humanos.

Fukuyama propõe a natureza humana como fundamento para o senso moral humano,

apoiando-se na tradição filosófica pré-kantiana que funda os direitos e a moralidade na

natureza. Ele faz uma defesa de direitos humanos, no sentido de direitos oriundos do conceito

de natureza humana, em contraposição ao conceito de interesses humanos de viés utilitário.

Sobre isto (FUKUYAMA, 2003, p.120) declara:

Direitos suplantam interesses porque são dotados de maior significação

moral. Interesses são fungíveis e podem ser trocados por outros no mercado;

direitos, embora raramente absolutos, são menos flexíveis porque é difícil

atribuir-lhes valor econômico.

O autor reconhece que direitos são derivados em princípio de três fontes possíveis:

direitos divinos, direitos naturais e direitos positivos contemporâneos, fundados na lei e nos

costumes sociais. Em outras palavras, direitos podem emanar de Deus, da Natureza e do

próprio Homem (FUKUYAMA, 2003, p.121).

O problema que gravita em torno de como fundamentar uma moral e, principalmente,

uma moral que lide com as questões suscitadas pela técnica moderna é como derivar do “ser”

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um “dever”. Problema proposto por David Hume no Tratado da natureza humana e isto é

reconhecido por Fukuyama, que tenta contornar o problema da seguinte forma:

No máximo, o que a famosa passagem do Tratado disse é que não se podiam

deduzir regras morais de fatos empíricos de uma maneira logicamente a

priori. Mas como praticamente todos os filósofos sérios na tradição

ocidental desde Platão e Aristóteles, Hume acreditava que o “deve” e o “é”

eram conectados por conceitos como “querer, necessitar, desejar, prazer,

felicidade, saúde” – pelas metas e fins que seres humanos estabeleceram

para si mesmos.

E, por sua vez, na terceira parte, “Que fazer”, a parte mais prática, sustenta que a

preocupação com algumas consequências de longo prazo da biotecnologia deve levar a

tomada de atitudes a respeito, estabelecendo uma estrutura reguladora para distinguir usos

legítimos e ilegítimos dela. Todavia ele mesmo reconhece: “A evolução da tecnologia é tão

rápida que precisamos avançar rapidamente para uma análise muito mais concreta de que

tipos de instituição seriam requeridas para lidar com ela” (FUKUYAMA, 2003, p.30).

Diante deste cenário, esta pesquisa põe em destaque as concepções oriundas do

imaginário trans ou pós-humano, orientando-se pela hipótese de que este possui ideias que

ocultam noções religiosas, isto apesar de serem concepções inspiradas nos avanços da técnica

e da ciência modernas. E mesmo que não intencionem explicitar noções religiosas sobre o ser

humano e o mundo, essas ideias conservam elementos de uma lógica ou forma de pensar

típicas da religião, uma lógica religiosa implícita. Deste modo, faz parte do interesse desta

pesquisa compreender o utopismo característico do movimento trans ou pós-humanista e a

relação que estabelece com sua base existencial histórico-sociológica.

Deste modo, o que está sendo proposto aqui é que o pensamento pós-humanista se

constitui numa versão secularizada que reproduz concepções da realidade típicas do

gnosticismo1. Gnosticismo vem de gnosis, em grego “conhecimento”. A gnosis,

conhecimento redentor ensinado pelos gnósticos, consiste na revelação de uma “história

secreta”, pelo menos para os não-iniciados: a origem e a criação do mundo, a origem do mal,

1 Foram assim designadas algumas correntes filosóficas que se difundiram nos primeiros séculos depois de

Cristo no Oriente e no Ocidente. A literatura que produziram era rica e variada, mas perdeu-se, à exceção de

poucos textos conservados em traduções coptas, chegando até nós apenas através dos trechos mencionados e, ao

mesmo tempo, refutados pelos Padres Apologistas. O Gnosticismo é uma primeira tentativa de filosofia cristã,

feita sem rigor sistemático, com a mistura de elementos cristãos míticos, neoplatônicos e orientais. Em geral,

para os gnósticos o conhecimento era condição para a salvação, donde esse nome, que foi adotado pela primeira

vez pelos Ofitas ou Sociedade da Serpente, que mais tarde se dividiram em numerosas seitas (ABBAGNANO,

2007, p.485).

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o drama do redentor divino descido à Terra para salvar os homens, e a vitória final do deus

transcendente, vitória que se traduz por uma conclusão da história e pela destruição do

mundo. Tal “história secreta” pode ser compreendida como um “mito total”, um relato da

origem do mundo até o presente (ELIADE, 2011, p.324).

O gnosticismo pode ser conhecido através de versões diferentes, dependendo dos

diversos grupos gnósticos e das doutrinas ensinadas pelos seus respectivos líderes: Simão, o

Mágico, Marcião, Menandro, Cerinto, Valentino e Mani; trata-se, em síntese, do esforço por

criar uma religião universal (ELIADE, 2011, p.326-329).

Mircea Eliade (2011, p.324) expõe segundo o modelo de Valentino que:

O gnóstico ensina que seu verdadeiro ser (isto é, seu ser espiritual) é de

origem e natureza divinas, ainda que atualmente, se encontre preso num

corpo; ensina também que ele habitava uma região transcendental, mas foi

depois projetado neste baixo mundo, que ele avança célere para a salvação e

acabará por ser libertado de sua prisão carnal; descobre, enfim, que,

enquanto seu nascimento equivalia a uma queda na matéria, seu

“renascimento” será de ordem puramente espiritual. Guardemos as ideias

fundamentais: o dualismo espírito/matéria, divino

(transcendente)/antidivino; o mito da queda da alma (= espírito, parcela

divina), ou seja, a encarnação num corpo (assimilado a uma prisão); e a

certeza da libertação (a “salvação”) obtida graças à gnose.

Para se fazer justiça a este movimento religioso que teve grande influência sobre o

Cristianismo, Judaísmo e até mesmo sobre o Islã, é necessário mencionar que o chamar de

“gnosticismo” é até mesmo anacrônico, pois trata-se de uma designação atribuída ao

movimento por pesquisadores modernos, conforme esclarece Julio Cesar Chaves (2015, p.15-

16), ao tratar sobre os textos gnósticos que compõem a Biblioteca Copta de Nag Hammadi:

O tema geral do presente volume é a biblioteca de Nag Hammadi; como

geralmente a biblioteca em questão é associada ao chamado “gnosticismo” –

rótulo moderno que tem englobado uma série de religiosidades marginais, e

muitas vezes pouco conhecidas, da antiguidade – optou-se por tratar

igualmente da dita “religião gnóstica” em alguns dos artigos. Seguindo a

tendência geral da pesquisa contemporânea, no entanto, os ensaios

demonstram que termos como “gnosticismo” e “gnóstico” podem muitas

vezes ser anacrônicos, não fazendo jus ao complexo contexto do cristianismo

primitivo.

Talvez neste ponto alguém se pergunte: como uma série de religiosidades marginais da

antiguidade se relaciona com um movimento moderno como o pós-humanismo? É claro que o

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gnosticismo foi um movimento religioso que teve presença marcante nos primeiros três

séculos da era cristã, porém reaparecendo com forte influência sobre os movimentos

religiosos que atingiram a Europa nos séculos XII e XIII, os chamados “séculos heréticos”

(FALBEL, 2012). Estes “séculos heréticos” são representativos da influência do gnosticismo

medieval sobre a cultura ocidental até a contemporaneidade.

As experiências gnósticas determinam uma estrutura da realidade política

que é sui generis. O gnosticismo medieval está ligado ao gnosticismo

contemporâneo por uma linha de transformação gradual. E, na verdade, a

transformação é tão gradual que seria difícil decidir se os fenômenos

contemporâneos devem ser classificados como cristãos, já que derivam

claramente das heresias cristãs da Idade Média, ou se os fenômenos

medievais devem ser classificados como anticristãos, por serem claramente a

origem do anticristianismo moderno. O melhor é deixar de lado tais questões

e reconhecer a essência da modernidade como o crescimento do gnosticismo

(VOEGELIN, 1982, p.96).

Por hora, basta esta afirmação de Eric Voegelin, “a essência da modernidade como o

crescimento do gnosticismo”, porém o esclarecimento sobre isto será dado quando este

assunto for retomado aqui no segundo capítulo, onde será dado tratamento mais detalhado aos

aspectos teóricos que envolvem o problema do advento da Modernidade. Algo que consiste

em discutir se a Modernidade deve ser compreendida, em termos de legitimidade ou de

secularização.

Como legitimidade, conforme propõe Hans Blumenberg, a Modernidade apresenta-se

como uma novidade inquestionável em todas as suas manifestações e não devedora em nada

ao período histórico anterior. Neste sentido, a Modernidade é concebida, em outras palavras,

pela aparição histórica do vazio de sentido provocado pelo esgotamento da capacidade

explicativa do antigo sistema teológico. Esse vazio solicita imperiosamente a consciência a

ocupá-lo com um conteúdo novo, cuja novidade manifesta-se exatamente no distanciamento

do antigo conteúdo teológico, na instauração de uma nova estrutura do mundo.

Por sua vez, a compreensão da Modernidade, em relação ao fenômeno de

secularização/dessacralização, possui três interpretações que ganharam notoriedade entre os

estudiosos das formas de avaliação do novo na Modernidade e que dão primazia à tradição

teológica e julgam descobrir na novidade moderna a permanência de categorias teológicas

transformadas com relação ao seu sentido original.

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A primeira destas interpretações pode ser classificada como “a leitura política” e foi

proposta pelo jurista e filósofo político alemão, Carl Schmitt (1888 – 1985), sobretudo no

livro Teologia Política, no qual declara: “Todos os conceitos centrais da moderna teoria do

Estado são conceitos teológicos secularizados” (SCHMITT, 2009, p.37). Nesta obra, escrita

em 1922, Schmitt desenvolve uma analogia entre a noção política de soberania e a noção

teológica de poder absoluto de Deus, tocando na legitimidade2 da Modernidade e na discussão

sobre o processo de secularização. Uma vez que se compreendam conceitos como

“secularização” ou “descristianização” como relativos ao “sagrado” ou ao “cristão” por eles

negado. O problema apresentado por Schmitt é originariamente de natureza teológica. “O

núcleo resistente da modernidade está, pois, como já antecipara Hobbes, no problema do

poder absoluto ou quase divino reivindicado pelo Estado moderno” (VAZ, 2012, p.20).

Conforme percebido por Schmitt, a ruptura acontece aqui ao se substituir a legitimação

transcendente ou trans-histórica do poder pela sua legitimação histórica ou imanente (o poder

outrora legitimado por Deus, agora é legitimado pelo Estado). Schmitt percebe, no Estado

moderno, a imanentização, na esfera do poder, da onipotência transcendente do Deus cristão.

“A leitura política da modernidade [...] descobre assim no mundo moderno a construção de

uma nova esfera do divino, homóloga à antiga esfera sacral, mas cujo centro é agora a

essência absolutizada do político na figura do Estado onipotente” (VAZ, 2012, p.20).

A segunda interpretação pode ser denominada de “a leitura historicista” e recebeu a

sua expressão mais conhecida de Karl Löwith (1897 – 1973). No livro O sentido da história,

Löwith (1991) interpreta o advento da Modernidade como transposição secularizada da

concepção bíblico-cristã da história. Ele expõe o modo como a concepção judaico-cristã está

subjacente nas modernas concepções de história. Segundo ele, a ideia de progresso, presente

nas teorias filosóficas sobre a história moderna, nasce da esperança bíblica no eschaton, isto é,

no cumprimento das promessas divinas.

Nessa transposição, o desígnio divino e a “economia” da história da salvação

são reescritos nas categorias da ideologia do progresso e inscritos na

historicidade profana na qual a razão emancipada toma o lugar da profecia.

A filosofia da história recolhe e transforma a herança da teologia da história

e torna-se a expressão intelectual mais adequada da essência da

modernidade, a saber: o reino do homem como realização efetiva do reino do

Espírito anunciado pela profecia. O novo na modernidade é, portanto,

2 Legitimidade da Modernidade deve ser compreendida aqui no sentido proposto por Hans Blumenberg (1920-

1996), sobretudo no livro A legitimidade dos tempos modernos. A posição defendida por Blumenberg será

apresentada mais adiante como oposta a de Carl Schmitt e a de outros autores que defendem a laicização de

conceitos teológicos na Modernidade.

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tributário do antigo. Aquela que parece ser a iniciativa teórica mais original

da modernidade continua, assim, presa ao cosmos teológico medieval. Tal

situação levou Karl Löwith, nos seus últimos escritos, a remontar ao cosmos

natural dos gregos e à sua perfeita auto-suficiência como alternativa ao

antropocentrismo moderno (VAZ, 2012, p.21).

A terceira interpretação, denominada de “a leitura teológico-metafísica”, é elaborada

pelo historiador e filósofo Eric Voegelin (1901 – 1985). A concepção de Voegelin é exposta

em sua grande obra em 5 volumes, Ordem e história, e sua crítica da Modernidade é

apresentada principalmente no livro A nova ciência política (1982) e no quinto volume

inacabado e publicado postumamente de Ordem e história sob o título Em busca da ordem

(2010).

A leitura axiológica da modernidade proposta por Voegelin guiou-se por

uma categoria cuja primeira aparição histórica no mundo antigo permite

entender melhor, por meio de um procedimento analógico, a natureza da

modernidade: a categoria de gnose. A essência da gnose é a mensagem da

salvação pelo conhecimento (gnosis) como iniciativa própria do ser humano.

Na gnose antiga, o homem apodera-se do divino e desvenda por suas

próprias forças o mistério da sua transcendência. A gnose moderna diviniza

o gnóstico no círculo da imanência mundana e lhe confere a tarefa de

implantar o reino do Espírito (Voegelin evoca igualmente a profecia de

Joaquim de Fiore) como reino do mundo. Tal tarefa cumpre-se nos campos

da filosofia, da ética, da política, da vida social. Ela dá origem ao perfil dos

indivíduos típicos da modernidade: o intelectual, o político, o capitalista e o

trabalhador (VAZ, 2012, p.22).

Até aqui foi abordada uma descrição do objeto de pesquisa e dos problemas a ele

vinculados, bem como a explicitação da hipótese de que apesar do objeto de pesquisa se

constituir num fenômeno moderno possui vínculos com fenômenos oriundos de períodos

históricos anteriores na forma de uma versão secularizada destes fenômenos. Deve-se

acrescentar ainda que o trans ou pós-humanismo atua como insight que ilustra um fenômeno

moderno mais amplo, a presença inconsciente de noções religiosas em fenômenos modernos

que são claramente seculares e que não são reconhecidos em si mesmos como sendo

orientados por concepções religiosas implícitas. A escolha do trans-humanismo para ilustrar

este fenômeno se justifica pelo forte vínculo com a noção de técnica moderna e a

compreensão, devido ao seu caráter contingente, de que a técnica revela uma abertura no

tocante ao que possivelmente a humanidade poderá realizar no futuro.

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Assim, no tocante a explicitar o problema que norteia esta pesquisa, pode-se elaborá-lo

da seguinte maneira: o que tem conduzido os pós-humanistas – na Modernidade, com um

discurso definido como secular, imanente, ancorado na racionalidade própria do

conhecimento científico – a construir o seu discurso repleto de elementos que representam um

modelo de pensamento religioso, utópico e transcendente?

E a partir disto, a seguinte hipótese foi formulada: diversas formas de pensamento na

Modernidade se constituem em versões secularizadas de modos de pensamento claramente

religiosos. E isto se deve ao fato de que tais versões secularizadas ocultam uma inconsciência

religiosa.

Os trans-humanistas acreditam que a ciência e a tecnologia irão redimir a humanidade.

Porém, o trans-humanismo preserva relações com um nível de pensamento extremamente

especializado e devido a isto não possui grande influência sobre as pessoas no cotidiano da

sociedade. Neste sentido, a influência desta forma de pensamento pode ser testemunhada em

pessoas que preservam relações mais próximas com os ambientes científicos e tecnológicos.

Isto serve como exemplo que demonstram a contribuição da ciência moderna para construção

de um imaginário futurista e revelador de fortes traços escatológicos.

A expressão que aparece no título desta pesquisa, “pós-humanismo enquanto uma

versão laicizada da ensomatose gnóstica”, deve ser entendida em termos analógicos. Assume-

se aqui que há uma possibilidade de analogia entre pós-humanismo e gnose. Isto se

fundamenta na compreensão de que analogia é um processo de identificação de significados

semelhantes entre dois objetos, um fonte e outro alvo. As analogias possuem imperfeições no

processo de comparação, não são idênticas e nem tão pouco possuem relação causal. Os

objetos comparados não precisam ser exatamente iguais para que preservem semelhança entre

si. Todavia para que não reste dúvidas no tocante a tese defendida aqui, o pós-humanismo

desempenha o papel de argumento que exemplifica o que está sendo defendido, o pensamento

moderno no que se refere a sua consciência secularizada traz consigo uma inconsciência

religiosa.

Dito isto, agora surge à necessidade de expor o método de pesquisa e de que forma

esta pesquisa está relacionada com a Sociologia. Devido ao seu caráter teórico, esta pesquisa,

em termos de coleta de dados, consiste numa pesquisa bibliográfica elaborada com base em

material já publicado sobre o problema proposto (tais como livros e revistas, teses,

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dissertações, artigos em anais de eventos científicos, bem como material disponível na

internet nos sites de entidades que divulgam as ideias do movimento pós-humanista).

Sobre o enquadramento da pesquisa na área de Sociologia, como a pesquisa aborda o

pensamento pós-humanista, em sua relação com a ciência e técnica modernas, bem como o

modo de compreender o mundo e o ser humano como passíveis de intervenção e

aperfeiçoamento técnicos, entendendo que na essência desta forma de pensamento se oculta

uma lógica religiosa, que não pode ser percebida de imediato por estar implícita,

manifestando-se numa versão secularizada. Esta abordagem do objeto – tendo como enfoque

o fato de que o modo de conceber a realidade se fundamenta numa base histórica e social – é

algo que se vincula estreitamente com a abordagem da Sociologia do Conhecimento

(Wissenssoziologie). Pois em todos os enfoques desta se sustenta “a tese de que o pensamento

tem uma base existencial, tal que ele não é determinado de modo imanente, e um ou outro de

seus aspectos podem ser derivados de fatores extracognitivos” (MERTON, 2013, p.118) e que

como “teoria, procura analisar as relações entre conhecimento e existência; bem como

pesquisa histórico-sociológica, busca a origem das formas que essas relações têm assumido no

desenvolvimento intelectual da humanidade” (MANNHEIM, 1952, p.245).

A sociologia do conhecimento é, por um lado, uma teoria, e por outro um

método de pesquisa histórico-sociológico. Como teoria, pode assumir duas

formas. Em primeiro lugar, é uma investigação puramente empírica,

mediante a descrição e a análise estrutural, das maneiras pelas quais as

relações sociais influenciam, na realidade, o pensamento. Pode passar, em

segundo lugar, a uma indagação epistemológica sobre a significação dessas

relações para o problema da validade. Importa notar que esses dois tipos de

indagação não estão necessariamente ligados entre si e que podemos aceitar

os resultados empíricos sem sermos levados às conclusões epistemológicas.

[...] De acordo com esta classificação e deixando de lado, tanto quanto

possível, as inferências epistemológicas, apresentaremos a sociologia do

conhecimento como uma teoria da determinação social ou existencial do

pensamento real (MANNHEIM, 1952, p.247).

O termo “sociologia do conhecimento” (wissenssoziologie) foi forjado por Max

Scheler na década de 20 na Alemanha, ele elaborou a formulação básica da Sociologia do

Conhecimento num ensaio intitulado Probleme einer Soziologie des Wissens, originalmente

publicado em 1924 (BERGER; LUCKMANN, 2014, p.14). Como a maior parte das

investigações nesse campo concernem aos fatores socioculturais que influenciam o

desenvolvimento de crenças e opiniões, mais do que o conhecimento positivo, o termo

wissens (conhecimento) deve ser interpretado de modo muito amplo, como referido às ideias e

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ao pensamento social em geral e não nas ciências físicas, exceto quando expressamente

indicado (MERTON, 2013, p.95). Ou seja:

O termo ‘conhecimento’ precisa ser interpretado de forma bastante ampla, já

que os estudos nessa área lidam, virtualmente, com a gama total de produtos

culturais (ideias, ideologias, crenças jurídicas e éticas, filosofia, ciência,

tecnologia) (MERTON, 2013, p.109).

Embora Scheler tenha cunhado o termo “sociologia do conhecimento”

(wissenssoziologie), o seu interesse por esta disciplina e pelas questões sociológicas em geral

foi um episódio em sua carreira filosófica. Este tinha o objetivo de estabelecer uma

antropologia filosófica que transcendesse a relatividade dos pontos de vistas específicos

histórica e socialmente localizados. Assim, a Sociologia do Conhecimento serviria como

instrumento para alcançar este propósito, contribuindo para esclarecer e afastar as

dificuldades levantadas pelo relativismo, de modo que a verdadeira tarefa filosófica pudesse ir

adiante. Deste modo, Scheler subordina a Sociologia do Conhecimento a seus propósitos

filosóficos específicos (BERGER; LUCKMANN, 2014, p.19).

A tarefa de contribuir para formulação da Sociologia do Conhecimento que marcou a

sua transposição estreitamente sociológica coube a outro precursor desta disciplina, o também

alemão Karl Mannheim, que publica em 1929 o livro Ideologie und Utopie. Mannheim

(1929/1952) expõe que a tese principal da Sociologia do Conhecimento é a que afirma a

existência de modos de pensamento incapazes de ser adequadamente compreendidos

enquanto permanecerem obscuras as suas origens sociais. Assim, a Sociologia do

Conhecimento procura compreender o pensamento dentro da moldura concreta de uma

situação histórico-social, de que o pensamento individualmente diferenciado emerge

gradualmente. Deste modo, não são os homens, em geral, que pensam, nem mesmo os

indivíduos isolados, mas os homens dentro de certos grupos que elaboram um estilo peculiar

de pensamento graças a uma série interminável de reações a certas situações típicas,

características de sua posição comum. Para Mannheim, o reconhecimento de que o

pensamento é histórico e socialmente condicionado é difícil enquanto este fato permanece

inconsciente. Devido a isto uma das conquistas fundamentais da Sociologia do Conhecimento

é haver percebido que o processo pelo qual os motivos coletivos inconscientes se tornam

conscientes não pode operar em qualquer época, mas só em uma situação muito especial

sociologicamente determinável. Do ponto de vista sociológico, a mudança decisiva só ocorre

quando chega ao estágio de desenvolvimento histórico em que as camadas previamente

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isoladas começam a se comunicar entre si, estabelecendo certa circulação social. Alcança-se a

fase mais significativa dessa comunicação quando as formas de pensamento e experiência, até

então desenvolvidas independentemente, penetram numa mesma consciência, levando o

espírito a descobrir a incompatibilidade das concepções antagônicas do mundo.

Diante do exposto, esta pesquisa será desenvolvida aqui, em primeiro lugar, através da

apresentação da base existencial com a qual se relaciona o pensamento pós-humano, o

ambiente histórico-social gerado pelo que se compreende como Modernidade Técnica. Esta

discussão será desenvolvida no primeiro capítulo. Em segundo lugar, conforme já citado

acima, proceder-se-á o tratamento mais detalhado dos aspectos teóricos que envolvem o

problema do advento da Modernidade e de modo mais específico do conceito de

secularização. Algo que consiste em discutir se a Modernidade deve ser compreendida, em

termos de legitimidade ou de secularização. Assim, esclarecendo de que forma se dá a

influência de pensar oriundo da gnose sobre a Modernidade e mais especificamente sobre o

pensamento pós-humanista. Isto será realizado no segundo capítulo que versará sobre os

aspectos filosóficos do conceito de secularização. Em terceiro lugar, para cumprir o papel de

expor, os aspectos sociológicos do conceito de secularização, o terceiro capítulo tratará sobre

as questões relacionadas com a secularização enquanto problema sociológico. E, por fim, em

quarto lugar, a tarefa de expor aspectos do pensamento pós-humanista que o caracterizam

como um eschaton tecnognóstico será concretizada no quarto capítulo.

Em fim, em termos de estrutura e exposição das ideias, o texto está organizado de

acordo com uma lógica que parte de questões gerais até alcançar questões mais particulares

relacionadas ao objeto. O primeiro capítulo, ao expor a base existencial de onde emerge o

pensamento pós-humanista, lidará com um quadro mais geral. Por sua vez, o segundo

capítulo, ao discorrer sobre os conceitos de secularização e de legitimidade aplicados ao modo

como a Modernidade se relaciona com o período anterior, lidando com uma dialética entre

continuidade e descontinuidade, na busca de compreender como isto ocorre, se em termos de

uma ruptura radical, fazendo emergir algo totalmente novo (legitimado pela sua própria

vigência histórica como desvalorização do antigo, tido como obsoleto), ou em termos de uma

ruptura ocorrida no interior do universo simbólico antigo-medieval que atingiu sua estrutura

teológica, traduzindo-se em completa inversão da direção das linhas mestras que orientavam

para a transcendência a ordem dos símbolos, assim, nesse movimento de inversão o novo

permanece em dependência estrutural do antigo, e sua novidade é fortemente relativizada. No

terceiro capítulo, será abordado o conceito de secularização enquanto problema da Sociologia,

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uma vez que o capítulo dois se ocupou com questões filosóficas em torno deste conceito.

Consequentemente, no quarto capítulo, será explorada a relação analógica entre pós-

humanismo e gnosticismo. Este capítulo, ao expor os elementos que caracterizam o

pensamento gnóstico e a sua importante influência na formação das ideias no Ocidente,

aproxima o leitor dos conceitos teológicos que foram secularizados na Modernidade, ao

mesmo tempo, que possibilita maior aproximação do exemplo, em análise, nesta pesquisa, o

pensamento pós-humano. Este último descrito como análogo a gnose e repleto de

desdobramentos que descrevem uma lógica escatológica gnóstica.

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CAPÍTULO 1

CORPO E PÓS-HUMANISMO: A MODERNIDADE TÉCNICA COMO BASE

EXISTENCIAL DO PENSAMENTO PÓS-HUMANISTA

Um ponto central de acordo em todos os enfoques da Sociologia do Conhecimento é a

tese de que o pensamento tem uma base existencial. É devido a isto que Karl Mannheim

(1952, p.2) afirma: “A tese principal da sociologia do conhecimento é a que afirma a

existência de modos de pensamento incapazes de ser adequadamente compreendidos

enquanto permanecerem obscuras as suas origens sociais”. Algo semelhante foi afirmado por

Robert Merton (2013, p.115): “A sociologia do conhecimento surgiu com a hipótese

sinalizadora de que mesmo as verdades deveriam ser consideradas socialmente explicáveis,

deveriam ser relacionadas à sociedade histórica na qual emergiram”.

Mannheim (1952), discorrendo sobre o conceito sociológico de pensamento, enumera

duas características do método da Sociologia do Conhecimento: primeira, esta não parte do

indivíduo isolado e de seu pensamento, pelo contrário, “a sociologia do conhecimento procura

compreender o pensamento dentro da moldura concreta de uma situação histórico-social, de

que o pensamento individualmente diferenciado emerge mui gradualmente”; e segunda,

“evitar separar os modos de pensamento concretamente existentes do contexto de ação

coletiva através da qual, pela primeira vez, descobrimos intelectualmente o mundo”. Esta

última característica toca na relação entre pensamento e ação coletiva, sobre isto, Mannheim

(1952, p.3-4) afirma:

Os componentes de um grupo não se limitam a coexistir fisicamente como

unidades distintas. Não abordam o mundo objetivo nos níveis abstratos de

um espírito contemplativo em si, nem o fazem exclusivamente como seres

solitários. Pelo contrário, cooperam e competem em grupos diversamente

organizados e, assim fazendo, ora pensam em comum, ora antagonicamente.

Os indivíduos reunidos em grupo forcejam, segundo o caráter e a posição

dos grupos a que pertencem, por modificar o mundo circundante da natureza

e da sociedade, ou procuram perpetuá-lo em uma dada condição. É a direção

dessa vontade de mudar ou de conservar, dessa atividade coletiva, em suma,

que fornece o fio orientador ligado ao aparecimento de seus problemas, seus

conceitos e suas formas de pensamento. De acordo com o contexto particular

da atividade coletiva de que participam, os homens propendem a ver

diferentemente o mundo que os rodeia. Do mesmo modo que a pura análise

lógica separou o pensamento individual de sua situação dentro de um grupo,

também separou o pensamento da ação. E fê-lo baseando-se na suposição

tácita de que essas conexões inerentes e sempre existentes na realidade, entre

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o pensamento, de um lado, e do outro o grupo e a atividade, ou eram

insignificantes para o pensamento “correto” ou destacáveis dessas

fundações, sem que daí resultasse qualquer dificuldade. Mas o ignorar uma

coisa não a elimina; nem pode pessoa alguma, que não se tenha consagrado

de corpo e alma à observação exata da riqueza de formas sob que os homens

efetivamente pensam, decidir a priori se esta segregação da situação social e

do contexto de atividade é sempre realizável. Nem tampouco pode-se

afirmar imediatamente que uma dicotomia tão completa seja desejável,

precisamente no interesse do conhecimento objetivo dos fatos.

Para Mannheim (1952), motivações e pressuposições inconscientes oriundas do

contexto social geram modos de pensamento. E não foi acidental o fato de que somente no

contexto moderno o inconsciente – que sempre motivou o pensamento e a atividade – tenha

gradualmente sido elevado ao nível de consciência, tornando-se acessível ao controle

intelectual.

De nada nos valeria reconhecer a importância do inconsciente para o nosso

problema, se não reconhecêssemos igualmente que foi uma situação social

específica que nos impeliu a refletir sobre as raízes sociais de nosso

conhecimento. Uma das conquistas fundamentais da sociologia do

conhecimento é haver percebido que o processo pelo qual os motivos

coletivos inconscientes se tornam conscientes não pode operar em qualquer

época, mas só em uma situação muito especial, sociologicamente

determinável (MANNHEIM, 1952, p.5).

Deste modo, para Mannheim (1952, p.6), “a multiplicidade de modos de pensar não

pode constituir um problema em épocas em que a estabilidade social sustenta e garante a

unidade interna de uma concepção do mundo.” Nesta perspectiva da multiplicidade de modos

de pensar, é que a Modernidade torna-se importante para trazer a consciência de que os

homens pensam dentro de certos grupos, a partir de situações sociais específicas.

Do ponto de vista sociológico, o fato decisivo dos tempos modernos, em

oposição à situação medieval, é que esse monopólio da interpretação

eclesiástica do mundo, exercido pela casta sacerdotal, deixou de existir e, em

lugar de uma casta fechada e completamente organizada de intelectuais,

surgiu uma camada de intelectuais livres. Seu principal característico é o de

ser recrutada, em proporções crescentes, em camadas sociais e situações de

vida sujeitas a variações incessantes, e o de seus modos de pensar não mais

estarem sujeitos ao controle de uma organização tipo casta. Devido à

ausência de uma organização social própria, os intelectuais permitiram que

todas as modalidades de pensamento e de experiência entrassem em

competição aberta no mundo mais amplo das demais camadas

(MANNHEIM, 1952 p.10-11).

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Max Scheler (apud MERTON, 2013, p.121-122), tratando sobre a base existencial,

estabelece uma distinção entre a sociologia cultural e o que chama de sociologia dos fatores

reais (realsoziologie). Segundo ele, os dados culturais são ‘ideais”, no domínio das ideias e

dos valores; os “fatores reais” são orientados para mudanças efetivas na realidade da natureza

ou da sociedade, assim os primeiros são definidos por objetivos ou intenções ideais, os

últimos derivam de uma estrutura de impulso. Em outras palavras, as ideias, enquanto tal, não

têm inicialmente efetividade social, as ideias quanto mais puras maior a sua impotência. Pois

estas não se tornam efetivas em desenvolvimentos culturais a não ser que se liguem, de certo

modo, a interesses, impulsos, emoções ou tendências coletivas e sua incorporação em

estruturas institucionais. Ou seja, se as ideias não estiverem baseadas no desenvolvimento

iminente de fatores reais, elas estão condenadas a se tornarem utopias estéreis.

Assim, a busca por compreender o pensamento dentro de uma moldura concreta de

uma situação histórico-social ganha relevância. Tendo isto em mente, este capítulo busca

consumar o propósito de expor elementos que esclarecem a situação histórico-social na qual

floresce o imaginário pós-humano, isto através da apresentação de onde está localizada a base

existencial das produções mentais deste pensamento específico. Porém o capítulo faz uma

apresentação panorâmica, ampla, do contexto histórico-social, destacando elementos

associados ao modo de conceber o corpo e consequentemente o ser humano em contexto

moderno que ajudarão a elucidar o entendimento sobre a situação na qual emerge o modo de

pensar pós-humano.

1.1 O corpo como construção social?

Inicialmente, depara-se com a necessidade de se definir em qual sentido o corpo está

sendo objeto de reflexão aqui. Em outros termos, sem negar a realidade do corpo em sua

dimensão biológica, definir qual representação ou qual conceito de corpo socialmente

construído está sendo alvo de análise.

Antes de esclarecer qual concepção de corpo social ou culturalmente construída será

abordada, está posta outra necessidade. A necessidade de explicitar que ao fazer referência a

questões que envolvem construção ou desconstrução no âmbito das Ciências Sociais não

esquecer o livro de Peter Berger e Thomas Luckmann, A construção social da realidade,

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escrito na década de sessenta. Neste texto, os autores afirmam “que a realidade é construída

socialmente e que a sociologia do conhecimento deve analisar o processo em que este fato

ocorre” (2014, p.11). No mesmo contexto desta afirmação, relacionando os termos

“realidade” e “conhecimento”, os autores declaram:

Para nossa finalidade será suficiente definir “realidade” como uma qualidade

pertencente a fenômenos que reconhecemos terem um ser independente de

nossa própria volição (não podemos “desejar que não existam”), e definir

“conhecimento” como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem

características específicas. É neste sentido (declaradamente simplista) que

estes termos têm importância tanto para o homem da rua quanto para o

filósofo. O homem da rua habita um mundo que é “real” para ele, embora

em graus diferentes, e “conhece”, com graus variáveis de certeza, que este

mundo possui tais ou quais características (BERGER; LUCKMANN, 2014,

p.11).

Assim, Berger e Luckmann compreendem que a relação entre “realidade” e

“conhecimento” se relaciona com a forma como a realidade é compreendida pelo sujeito, em

sociedade. E há uma multiplicidade de compreensões da realidade nas sociedades humanas,

sendo também necessário não ignorar o fato da relatividade social presente nesta relação. Esta

relatividade conecta-se ao entendimento de que indivíduos de diferentes sociedades ou épocas

diferentes concebem a realidade de formas diferentes. Isto faz com que sejam consideradas

relações específicas da “realidade” e do “conhecimento” a partir de contextos sociais

específicos.

Em outras palavras, uma “sociologia conhecimento” terá de tratar não

somente da multiplicidade empírica do “conhecimento” nas sociedades

humanas, mas também dos processos pelos quais qualquer corpo de

“conhecimento” chega a ser socialmente estabelecido como “realidade”.

Nosso ponto de vista, por conseguinte, é que a sociologia do conhecimento

deve ocupar-se com tudo aquilo que passa por “conhecimento” em uma

sociedade, independentemente da validade ou invalidade última (por

quaisquer critérios) desse “conhecimento”. E na medida em que todo

“conhecimento” humano desenvolve-se, transmite-se e mantém-se em

situações sociais, a sociologia do conhecimento deve procurar compreender

o processo pelo qual isto se realiza, de tal maneira que uma “realidade”

admitida como certa solidifica-se para o homem da rua. Em outras palavras,

defendemos o ponto de vista que a sociologia do conhecimento diz respeito

à analise da construção social da realidade (BERGER; LUCKMANN,

2014, p.13-14).

Apesar de afirmarem que a realidade é socialmente construída, Berger e Luckmann

não devem ser incluídos entre os construtivistas radicais, tão comuns atualmente. Pois a

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própria estrutura do livro revela que os autores possuem uma posição equilibrada no tocante a

esta questão da “construção da realidade”. Este equilíbrio está claramente demonstrado,

quando estes, não deixando de mencionar a “a sociedade como realidade subjetiva” (terceira

parte do livro), discorrem também sobre “a sociedade como realidade objetiva” (segunda

parte do livro). Neste sentido, fundamentados em avaliações numa perspectiva biológica

segundo a antropologia filosófica (tomam como referência no debate Helmuth Plessner,

Arnold Gehlen e Max Scheler, impotantes autores da antropologia filosófica alemã desde a

década de 20). Assim os autores marcam o seu distanciamento de qualquer tipo de

“construtivismo radical”. Em outros termos, Berger e Luckmann reconhecem que os seres

humanos, diferenciando-se dos animais, não vivem em mundos fechados com estruturas

predeterminadas pelo equipamento biológico como é o caso das diversas espécies animais.

Pelo contrário, os seres humanos se relacionam com o seu ambiente pela “abertura para o

mundo”, cujas implicações antropológicas do termo “abertura para o mundo” foram

desenvolvidas por Plessner e Gehlen. Neste contexto, Berger e Luckmann (2014, p.70),

importando de Gehlen o conceito de “constantes antropológicas”, afirmam:

A humanização é variável em sentido sociocultural. Em outras palavras, não

existe natureza humana no sentido de um substrato biologicamente fixo, que

determine a variabilidade das formações socioculturais. Há somente a

natureza humana, no sentido de constantes antropológicas (por exemplo,

abertura para o mundo e plasticidade da estrutura dos instintos) que delimita

e permite as formações socioculturais do homem. Mas a forma específica em

que esta humanização se molda é determinada por essas formações

socioculturais, sendo relativa às suas numerosas variações. Embora seja

possível dizer que o homem tem uma natureza, é mais significativo dizer que

o homem constrói sua própria natureza, ou, mais simplesmente, que o

homem se produz a si mesmo.

Berger e Luckmann, ao longo do texto, esclarecem o que compreendem por

“construção social da realidade” ao expor o homem nos seus limites biológicos e sociais.

Assim esclarecem que nesses limites variações são possíveis no decorrer da história e deste

modo distinguem épocas e culturas.

Os seres humanos não vivem em mundos fechados com estruturas predeterminadas

pelo equipamento biológico, mas produzem-se a si mesmos, algo já citado acima, porém os

autores esclarecem:

A autoprodução do homem é sempre necessariamente um empreendimento

social. Os homens em conjunto produzem um ambiente humano, com a

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totalidade de suas formações socioculturais e psicológicas. Nenhuma dessas

formações pode ser entendida como produto da constituição biológica do

homem, a qual, conforme indicamos, fornece somente os limites externos da

atividade produtiva humana. Assim como é impossível que o homem isolado

se desenvolva como homem no isolamento, igualmente é impossível que o

homem isolado produza um ambiente humano. O ser humano solitário é um

ser no nível animal (que, está claro, o homem partilha com outros animais).

Logo que observamos fenômenos especificamente humanos entramos no

reino social. A humanidade específica do homem e sua socialidade estão

inextrincavelmente entrelaçadas. O Homo sapiens é sempre, e na mesma

medida, homo socius (BERGER; LUCKMANN, 2014, p.72-73).

“Os homens em conjunto produzem um ambiente humano”, as formações

socioculturais não podem ser compreendidas “como produto da constituição biológica do

homem”, porém esta constituição biológica fornece “os limites externos da atividade

produtiva humana”. No contexto desta discussão, Berger e Luckmann (2014, p.73-74)

acrescentam:

Empiricamente a existência humana decorre em um contexto de ordem,

direção e estabilidade. Surge, então, a seguinte questão: de que deriva a

estabilidade da ordem humana empiricamente existente? A resposta pode ser

dada em dois níveis. É possível indicar primeiramente o fato evidente de que

uma dada ordem social precede qualquer desenvolvimento individual

orgânico. Isto é, a ordem social apropria-se previamente sempre da abertura

para o mundo, embora esta seja intrínseca à constituição biológica do

homem. É possível dizer que a abertura para o mundo, biologicamente

intrínseca, da existência humana é sempre, e na verdade deve ser,

transformada pela ordem social em um relativo fechamento ao mundo.

Embora este enclausuramento nunca possa aproximar-se do fechamento da

existência animal, quando mais não seja por causa de seu caráter

humanamente produzido e por conseguinte “artificial”, é capaz, contudo, na

maioria das vezes, de assegurar a direção e a estabilidade para maior parte da

conduta humana.

Berger e Luckmann deixam claramente explícito que a ordem social é produto humano

e resultante da abertura para o mundo que é intrínseca à constituição biológica. A ordem

social é produzida pelo homem no curso de sua contínua exteriorização e não é dada

biologicamente.

Embora os produtos sociais da exteriorização humana tenham um caráter sui

generis, por oposição a seu contexto orgânico e ambiental, é importante

acentuar que a exteriorização enquanto tal é uma necessidade antropológica.

O ser humano é impossível em uma esfera fechada de interioridade

quiescente. O ser humano tem de estar continuamente se exteriorizando na

atividade. Esta necessidade antropológica funda-se no equipamento

biológico do homem. A inerente instabilidade do organismo humano obriga

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o homem a fornecer a si mesmo um ambiente estável para sua conduta. O

próprio homem tem de especializar e dirigir seus impulsos. Estes fatos

biológicos servem de premissas necessárias para a produção da ordem social.

Em outras palavras, embora nenhuma ordem social existente possa ser

derivada de dados biológicos, a necessidade da ordem social enquanto tal

provém do equipamento biológico do homem (BERGER; LUCKMANN,

2014, p.74-75).

Neste contexto, afirmar que o corpo é algo socialmente construído é uma atitude que

requer cautela. Pois com este gesto invade-se o terreno movediço do debate entre a natureza e

a cultura (LÉVI-STRAUSS, 2011). Quando isto é realizado, lida-se com os riscos envolvidos

de realizar a tentativa de determinação dos limites entre uma e outra, o problema da passagem

de uma para outra. Reconhece-se isto no fato de que o homem é um ser biológico, ao mesmo

tempo que é um indivíduo social.

É que a cultura não pode ser considerada nem simplesmente justaposta nem

simplesmente superposta à vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em

outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova

ordem (LÉVI-STRAUSS, 2011, p.40).

O corpo é um fenômeno biológico, mas também submetido ao crivo do imaginário

social. Desta forma, não é incomum que existam várias abordagens antropológicas e

sociológicas sobre o corpo, e que se pense o corpo como uma construção social e cultural, e

não somente como um dado natural. Neste sentido, as Ciências Humanas desnaturalizam o

que é visto como dado pela natureza — seja isso uma regra de comportamento e de

classificação social, seja a própria noção de corpo — e mostram as dimensões sociais e

simbólicas desses fenômenos. Esse ponto de partida é importante na medida em que muitas

vezes o “corpo” é tomado, mesmo por estudiosos e pesquisadores no campo das Ciências

Humanas, como o reduto da natureza em um ser humano genérico, obedecendo a instintos e

necessidades biológicas, e não também como produto e produtor de regras e valores culturais.

A literatura antropológica e sociológica tem mostrado como esse é apenas um dos

“paradigmas fundamentais” das representações sobre o corpo, mas não é o único.

Há tantas concepções de corpos quanto diferentes sociedades existem e quanto mais

complexa for uma determinada sociedade tanto mais noções de corpo haverá nela, uma vez

que é no reservatório do imaginário social, denominado corpo, que estão inseridas todas as

representações que identificam o indivíduo e sua relação com a sociedade. O corpo, matéria

simbólica e ao mesmo tempo objeto concreto carregado de práticas e discursos sociais,

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engendra constantes transformações culturais, merecendo, portanto, seu lugar próprio de

estudo, não através de um enfoque que até então foi oferecido à sua análise, pois este consistia

simplesmente em limitá-lo a um papel secundário na investigação sociológica.

Conforme David Le Breton (2010), o percurso trilhado, no tocante a reflexão sobre a

corporeidade no ambiente das Ciências Sociais, pode ser exposto através de três momentos

fortes que descrevem três maneiras de encarar o tema e que ainda hoje persistem na

Sociologia.

O primeiro momento é o de uma “sociologia implícita do corpo” que, embora não

negligencie a profundidade carnal do homem, não se detém verdadeiramente nela. Esta

formulação caracteriza, sobretudo, o início das Ciências Sociais. Como exemplo disto, há

numerosas pesquisas sociais que apontam a miséria física das classes trabalhadoras, a

insalubridade e a exiguidade das moradias, a vulnerabilidade às doenças, o recurso ao álcool,

à prostituição frequentemente inevitável das mulheres, o aspecto miserável dos trabalhadores,

a terrível condição das crianças obrigadas a trabalhar desde muito novas. Como exemplos

deste tipo de pesquisas, há o quadro da classe trabalhadora elaborado por Engels em A

situação da classe laboriosa na Inglaterra (1845) ou a análise da condição corporal do

homem no trabalho feita por Marx em O capital (1867). Estes trabalhos possuem objetivos

mais urgentes do que o de pensar o corpo de maneira metódica, no entanto contém a primeira

condição para a abordagem sociológica do corpo. Corpo que não foi pensado somente do

ponto de vista biológico, mas como uma forma moldada pela interação social. Nestas

pesquisas, a corporeidade não é objeto de estudo à parte, está implícita nos indicadores

ligados aos problemas de saúde pública ou de relações específicas do trabalho.

O segundo momento é o de uma “sociologia pontilhada” que proporciona sólidos

elementos de análise relativos ao corpo, mas não sistematiza a reunião dos mesmos. No artigo

As técnicas corporais (1936), Marcel Mauss, através da comparação entre culturas diferentes,

mostra como as “técnicas corporais” (os modos de caminhar, dormir, nadar, parir, sentar,

comer) variam de uma cultura para outra. Ele sugere que essas técnicas podem ser abordadas

como um “fato social total”, um fenômeno que engloba diferentes dimensões da experiência

social e individual (incluindo o psicológico e o social, além do biológico). Esses atos serão

descritos a partir do conceito de habitus, definido por Mauss como produto da “razão prática”

coletiva e individual, variando socialmente e historicamente. Depois de expor formas

diferentes de classificar os atos e as posturas corporais (sexo, idade, rendimento, transmissão

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das técnicas, os diversos momentos da história pessoal, etc.), Mauss conclui discutindo a forte

“causa sociológica” para esses atos comandados pelo social e cujas técnicas teriam como

objetivo o controle do corpo (inibindo os movimentos desordenados). As técnicas corporais

— segundo Mauss, as maneiras como os seres humanos sabem servir-se de seus corpos —

fazem parte das representações coletivas, são formas pelas quais a vida social se inscreve e se

utiliza desse “mais natural instrumento” de que dispõe o ser humano, o seu corpo.

E o terceiro momento é o da “sociologia do corpo” que se inclina mais diretamente

sobre o corpo, estabelece as lógicas sociais e culturais que sobre ele se propagam. Neste

momento, evidencia-se a designação de que o corpo traduz de imediato um fato do imaginário

social. De uma sociedade para outra, a caracterização da relação do homem com o corpo são

dados culturais com variabilidade imensa. Múltiplas abordagens etnográficas têm descrito

concepções variadas da pessoa e do corpo. Em diversas sociedades, a noção de corpo não é

delimitada pelo corpo físico ou biológico, estendendo-se para além deste. Assim como em

muitas cosmologias específicas, o corpo pode sofrer todo tipo de metamorfose, deslocamentos

de tempo e de espaço, que as concepções científicas modernas não admitiriam. Há ainda uma

vasta discussão sobre a simbólica do corpo, suas partes, o interior e o exterior, os fluídos

corporais, que se articulam com diferentes representações do puro e do impuro, das

obrigações e interdições, e que demarcam diferentes concepções do corpo na cultura.

Deste modo, deve-se concluir que o corpo não é somente um fenômeno biológico

como exposto pelo saber biomédico, pelos estudos anatômicos e fisiológicos, mas também

uma construção simbólica, cultural, fato comprovado pelas diferentes concepções de corpo

que podem ser encontradas, quando se estuda o corpo sob um enfoque cultural, observando-se

o modo como cada cultura constrói as suas representações sociais do corpo, o modo como

este é simbolizado, os significados que adquire para cada indivíduo e sociedade.

1.1.1 Concepção moderna de corpo

As transformações que produziram a moderna concepção de corpo devem ser

consideradas, sem ignorar, como o corpo era concebido no período medieval, o modo como

esta noção de corpo alimentou imaginários, contribuiu para formação da sociedade medieval.

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Assim, salientam Le Goff e Truong (2010, p.35) que, na Idade Média, o corpo é o lugar de um

paradoxo: “Por um lado, o cristianismo não cessa de reprimi-lo. ‘O corpo é a abominável

roupa da alma’, diz o papa Gregório, o Grande. Por outro, ele é glorificado, sobretudo por

meio do corpo padecente de Cristo, sacralizado na Igreja, corpo místico de Cristo.” Este

paradoxo se fortalece cada vez mais na proporção que o pecado original é transformado, na

Idade Média, em pecado sexual, isto na mesma proporção que se compreende que Cristo se

encarnou, fez-se homem para redimir os homens de seus pecados.

O corpo, porém, que é contido pela ideologia anticorporal do Cristianismo

institucionalizado, nas práticas populares, resiste à sua repressão. Isto faz com que a vida

cotidiana dos homens da Idade Média oscile entre a Quaresma e o Carnaval. “De um lado, o

magro, do outro, o gordo. De um lado, o jejum e a abstinência, do outro, banquetes e gula”

(LE GOFF; TRUONG, 2010, p.35).

A abstinência e o jejum dão o ritmo, portanto, do “homem medieval”. O

domínio do corpo é acompanhado do domínio do tempo, que, como o

espaço, é uma categoria fundamental da sociedade hierarquizada da Idade

Média [...] Nas representações sociais, a Terça-Feira Gorda é o dia de

carnaval pois precede a Quarta-Feira de Cinzas, que inaugura o período de

jejum. O Carnaval chega a ser personificado e se torna um personagem

popular, assim como seu contrário, a “velha Quaresma” e seu cortejo de

penitentes (LE GOFF; TRUONG, 2010, p. 58).

Em meio a este paradoxo entre a recusa do corpo e a encarnação, o corpo se revestiu,

na Idade Média, de simbolismo espiritual e de significado social, ocupando um lugar

relevante no imaginário das pessoas, tendo implicações para o modo como a sociedade se

organizava. Por exemplo, “as três ordens que compõem a sociedade tripartite medieval,

oratores (aqueles que rezam), bellatores (aqueles que combatem) e laboratores (aqueles que

trabalham), são em parte definidas por sua relação com o corpo” (LE GOFF; TRUONG,

2010, p.35).

Esta tensão entre o corpo glorificado e o corpo reprimido expande também o seu

simbolismo para o significado do trabalho manual na Idade Média, que oscila entre o castigo

e a criação, simultaneamente desprezado e valorizado. Como testemunho disto, a história

linguística da Idade Média apresenta duas palavras para o trabalho, opus e labor. Opus (a

obra) é o trabalho criador, o vocábulo que define o trabalho divino, o ato de criar o mundo e o

homem à sua imagem. Desse termo derivará operari (criar uma obra), operarius (aquele que

cria). Por sua vez, labor (a pena), o labor, o trabalho laborioso que se situa do lado do erro e

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da penitência. Assim, os ofícios na Idade Média não escapam a esse duplo movimento de

valorização e desvalorização (LE GOFF; TRUONG, 2010, p.64-65).

Além desta tensão entre o corpo glorificado e o corpo reprimido, há tensão entre o alto

e o baixo, a cabeça e o ventre. “Corrigindo a tradição filosófica antiga, a Idade Média

repousa, na realidade, mais sobre a oposição entre o alto e o baixo, o interior e o exterior, do

que sobre a divisão entre a esquerda e a direita” (LE GOFF; TRUONG, 2010, p.75). O corpo

é separado entre as partes nobres (a cabeça, o coração) e ignóbeis (o ventre, as mãos, o sexo).

A cabeça está do lado do espírito; o ventre, do lado da carne (LE GOFF; TRUONG, 2010,

p.76).

No tocante ao simbolismo espiritual do corpo, compreenda-se a relação dialética entre

o corpo e a alma, pois não foi a Idade Média que operou a separação radical entre corpo e

alma, mas a razão clássica do século XVII. No período medieval, a forma como a relação

corpo-alma foi concebida oscilava entre o pensamento de Platão sobre a alma preexistir ao

corpo – algo que irá alimentar em ascetas cristãos como Orígenes certo desprezo pelo corpo –,

e o pensamento de Aristóteles, segundo o qual a alma é a forma do corpo (hilomorfismo).

Etienne Gilson e Philotheus Boehmer (2009, p.469) discorrendo sobre o pensamento de

Tomás de Aquino a respeito desta questão, explica: “A alma é uma forma espiritual

essencialmente apta a se unir a um corpo; ou, mais precisamente: é um princípio racional que

necessita de um corpo para exercer suas operações próprias”.

Esta maneira de compreender a relação corpo-alma terá implicações para o campo da

saúde, o modo como se compreende as enfermidades que afetam o corpo, o papel

desempenhado pela alma nestas situações.

Mas para o homem da Idade Média, tanto nas civilizações cristãs quanto no

mundo islâmico, não era possível separar os acontecimentos corporais de sua

significação espiritual. Concebia-se a relação entre a alma e o corpo de uma

maneira tão estreita e imbricada que a doença era necessariamente uma

entidade psicossomática (LE GOFF; TRUONG, 2010, p.108).

Por isto que a medicina medieval não ignorava esta dinâmica espiritual que envolvia o

corpo. “Na Idade Média, o corpo em si não existe. Ele é sempre penetrado pela alma. Ora, sua

saúde é predominante. Assim, a medicina é antes de tudo uma medicina da alma, que passa

pelo corpo sem jamais reduzir-se a ele” (LE GOFF; TRUONG, 2010, p.116).

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A hipótese é esclarecedora, pois permite compreender esse duplo movimento

de exaltação e distanciamento da medicina científica. A partir do momento

em que é preciso cuidar do corpo tendo em vista a salvação, o recurso ao

milagre se mostra fértil. Primado do corpo, mas primado da alma a ser salva

do pecado. Assim, “se a Idade Média contribuiu muito pouco para a

elaboração do modelo médico da doença, ela valorizou seu sofrimento.

Ligando a etiologia da doença ao pecado, fez da doença uma via de

redenção”.

Será preciso aguardar um novo contexto ideológico para que a medicina

entre em um processo científico determinante para o corpo dos homens, com

o risco de subtrair-lhe sua dimensão espiritual e simbólica: o século XVII

(LE GOFF; TRUONG, 2010, p.117).

Esta concepção do corpo (na qual alma e corpo estão dialeticamente relacionados,

onde não se ignora a influência de uma esfera transcendente sobre a realidade imanente, onde

matéria e espírito se influenciam mutuamente) o encara como uma entidade em conexão com

o cosmo, afetando-o e sendo afetado por ele. Le Breton (2011, p.50-51) extrai alguns

exemplos do livro Les évangilles des quenouilles (um apanhado de saberes tradicionais de

mulheres, publicado em 1480, em Bruges, no qual se encontra um repertório organizado de

crenças sobre a doença, a vida cotidiana, a educação das crianças, os remédios, o corpo

humano) que ilustram a forma como se compreendia o homem envolto num tecido holista no

qual tudo está em inter-relação, onde um gesto qualquer, consciente ou de forma inadvertida,

afeta o cosmo e desencadeia forças, causalidades singulares. Eis alguns exemplos: “se alguém

urina entre duas casas ou contra o sol, adquire o mal dos olhos chamado leurieul”; “quando os

cachorros uivam, devemos tapar os ouvidos, porque eles trazem más notícias. Em

compensação, devemos ouvir o cavalo quando ele bufa ou relincha”; “Quando uma criança é

recém-nascida, se for um menino, é preciso leva-lo ao pai e pôr-lhe os pés contra o seu peito,

então jamais a criança terá má morte”.

Estas noções sobreviveram até os dias atuais, em meio à cultura popular, sob o estigma

de superstição. Quem nunca ouviu que se uma mulher menstruada manusear a massa de um

bolo esta não irá crescer, quando levada ao forno? Que o cabelo deve ser cortado na lua cheia

para que cresça rápido e bonito? Que quando o assassino de alguém vai ao funeral do

assassinado, o corpo da vítima começa a sangrar para denunciar a presença de quem a

assassinou?

Isto pode ser descrito através de conceito de grotesco aplicado a literatura, apresentado

por Mikhail Bakhtin (2010, p.270), em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento,

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na qual “as fronteiras entre o corpo e o mundo apagam-se, assiste-se a uma fusão do mundo

exterior e das coisas”.

Desta identificação do corpo com o mundo, fortalece-se, na Idade Média, o tema do

“homem-microcosmo”, expandindo-se na filosofia do século XII, no seio da escola de

Chartres com o tratado de Bernard Silvestre De mundi universitate sive megacosmus et

microcosmos [Sobre o universo do mundo ou megacosmo e microcosmo]. Daí resulta a

formação de metáforas corporais que concebem a sociedade de forma organicista, utilizando

ao mesmo tempo partes do corpo e o seu funcionamento para descrever a sociedade.

Acreditava-se na correspondência entre a carne do homem e a carne do mundo. O

homem estava identificado ontologicamente com o corpo, sendo este o pivô do seu

enraizamento no mundo. O corpo não é uma cisão, algo que separa o homem de si mesmo,

dos outros e do universo.

Por sua vez, no tocante a Modernidade, desde o início até aos dias atuais, no cenário

ocidental, várias concepções sobre o corpo foram se constituindo, resultando numa verdadeira

polissemia corporal. Essas concepções são tributadas a três esferas sociais e culturais: o

acentuado individualismo (em que os vínculos entre as pessoas são relaxados, e a oposição

entre vida privada e vida pública é valorizada); a emergência de um saber racional positivo e

laico sobre a natureza (resultando no estudo do corpo como realidade em si mesma,

dissociada do ser humano); e o recuo das tradições populares e locais, dando, aos poucos,

lugar à medicina (instituída como o saber oficial sobre o corpo).

Na sociedade ocidental da atualidade, predomina o divórcio entre dois conjuntos de

representações do corpo: um relacionado aos saberes populares e o outro tributado à cultura

erudita, principalmente de natureza biomédica. O saber biomédico é visto como representação

oficial do corpo humano na atualidade.

Le Breton (2011, p.71) expõe que o índice fundamental da mudança de mentalidade,

que torna o indivíduo autônomo, fazendo do seu corpo o elemento que o individualiza, é a

constituição do saber anatômico na Itália do Quattrocento, essencialmente, nas universidades

de Pádua, Veneza e Florença. Isto marca uma mutação antropológica proeminente, pois com

as primeiras dissecações oficiais de corpos humanos, no início do século XV, seguida da

banalização relativa dessa prática na Europa dos séculos XVI-XVII, acontece um dos

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momentos-chave do individualismo ocidental. A distinção feita entre o corpo e a pessoa

humana traduz simultaneamente uma mutação ontológica decisiva.

Antes das descobertas e das experiências dos primeiros anatomistas, segundo Le

Breton (2011, p.72), o corpo não era concebido como um elemento singular separado do

sujeito, o ser humano era indissociável de seu corpo, pois ainda não estava submetido à ideia

de ter um corpo. Durante o período da Idade Média, as dissecações de corpos humanos,

embora não sejam proibidas, foram retardadas devido ao respeito pelo corpo (LE GOFF,

2010, 119). Porém as primeiras dissecações de corpos humanos, praticadas pelos anatomistas

para fins de formação e conhecimento, são o testemunho de uma considerável mudança na

história das mentalidades ocidentais. Com os anatomistas, o corpo deixa de ser visto como

uma presença humana, sendo dissociado do ser humano para ser estudado por si mesmo,

sendo visto como um conjunto de tecidos e órgãos.

Neste contexto, o avanço do individualismo ocidental irá pouco a pouco formar uma

mentalidade, segundo um modo dualista, estabelecendo uma cisão entre o homem e o seu

corpo, não em uma perspectiva diretamente religiosa, mas no plano profano. O

desenvolvimento do individualismo estabelece as condições para uma individualização

através do corpo.

Então, efetivamente, o corpo será a propriedade do homem, e não mais sua

essência. No plano das representações, uma teoria do corpo como objeto

independente do homem, conquanto estando ligado a ele, e encontrando nele

seus próprios recursos (especificidade do vocabulário anatômico e

fisiológico), adquirirá então uma importância social crescente. Mas nas

coletividades humanas de tipo tradicional, holista, reina uma espécie de

identidade de substância entre o homem e o mundo, uma conivência sem

defeitos, na qual os mesmos componentes intervém. Não mais do que o

homem dessas sociedades é não discernível de seu corpo; o mundo não é

discernível do homem. É o individualismo e a cultura erudita que

introduzem a separação (LE BRETON, 2011, p.44).

Esta concepção de corpo amparada por um saber biomédico, que representa o saber

científico, e o consequente individualismo moderno, reforça o entendimento do corpo como

fator de individuação. E ao mesmo tempo institui a cisão, transforma o corpo no elemento que

separa o sujeito de si mesmo, dos outros a sua volta e do mundo. Este saber biomédico

também contribui para que o corpo seja transformado em objeto distinto do sujeito e alvo de

manipulação.

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1.1.1.1 Corpo como fator de individuação

Durkheim (2008), em As formas elementares da vida religiosa, ao discorrer sobre a

noção de alma, apresenta-a como um protótipo a partir do qual foi construída a ideia de seres

espirituais presente no pensamento religioso em geral. Para Durkheim (2008, p.323), o que há

de objetivo na noção de alma são as tramas que constituem a vida interior das pessoas, sendo

estas de duas espécies diferentes e irredutíveis uma à outra: umas estão em relação com o

mundo exterior e material; as outras com um mundo ideal ao qual se atribui uma

superioridade moral sobre o primeiro. Desta forma, segundo ele, o homem é constituído de

dois seres que se orientam em sentidos divergentes e quase contrários, e dos quais um exerce

sobre o outro verdadeira preeminência. Assim, segundo ele, tal é o sentido profundo da

antítese que todos os povos conceberam mais ou menos claramente entre o corpo e alma,

entre o ser sensível e o ser espiritual que coexistem no homem.

Em conformidade com Durkheim, para tornar essa dualidade inteligível absolutamente

não é necessário imaginar, sob o nome de alma uma substância misteriosa e irrepresentável

que se oporia ao corpo. Para ele, o erro está sobre a forma de símbolo empregado, não na

realidade do fato simbolizado. “É sempre verdade que a nossa natureza é dupla; existe

realmente em nós uma parcela da divindade porque há em nós uma parcela daqueles grandes

ideais que são alma da coletividade” (DURKHEIM, 2008, p.324). Isto porque, para Durkheim

(2008, p.324), “A alma individual não é senão uma porção da alma coletiva do grupo; é a

força anônima que está na base do culto, mas encarnada em indivíduo cuja personalidade

assume; é o mana individualizado.”

Deste entendimento de que a alma individual surge dos grandes ideais que forma a

alma coletiva compreende-se a origem da crença de que a alma sobrevive ao corpo. No

sentido de que a crença na imortalidade das almas dos indivíduos é a maneira que o homem

encontrou, para explicar a si mesmo, um fato de que não pode deixar de chamar a sua atenção:

a perpetuidade da vida do grupo.

Os indivíduos morrem; mas o clã sobrevive. As forças que constituem a sua

vida devem, portanto, ter a mesma perpetuidade. Ora, essas forças são as

almas que animam os corpos individuais; porque é nelas e por elas que o

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grupo se realiza. Por essa razão, é necessário que elas perdurem. É até

necessário que, perdurando, elas permaneçam idênticas a si mesmas; porque,

como o clã conserva sempre a sua fisionomia característica, a substância

espiritual da qual é feito deve ser concebida como qualitativamente

invariável. Já que se tem sempre o mesmo clã como o mesmo princípio

totêmico, é preciso que as almas sejam as mesmas, as quais não são senão o

princípio totêmico fragmentado e particularizado. [...] E essa crença, apesar

de seu caráter simbólico, não deixa de ter verdade objetiva. Porque se o

grupo não é imortal no sentido absoluto da palavra, é verdade, no entanto,

que subsiste aos indivíduos e que renasce e se reencarna em cada nova

geração (DURKHEIM, 2008, p.329).

O exposto até aqui contextualiza a afirmação feita por Durkheim de que o corpo

desempenha o papel de um fator de individuação. De modo mais preciso ainda, esta afirmação

ocorreu no contexto da discussão de que a ideia de alma foi durante muito tempo e, em parte,

ainda continua sendo a forma popular da noção de personalidade. Assim, a origem da ideia de

alma deve ajudar a entender como a ideia de personalidade se constitui.

Ressalta, do que precede, que a noção de pessoa é o produto de dois fatores.

Um é essencialmente impessoal: trata-se do princípio espiritual que serve de

alma à coletividade. É ele, com efeito, que constitui a própria substância das

almas individuais. Ora, ele não é apanágio de ninguém em particular: faz

parte do patrimônio coletivo; nele e por ele comungam todas as

consciências. Mas, por outro lado, para que haja personalidades distintas, é

necessário que intervenha outro fator que fragmente esse princípio e que o

diferencie; em outras palavras, é necessário um fator de individuação. É o

corpo que desempenha esse papel. Como os corpos são distintos um dos

outros, como ocupam pontos diferentes do tempo e do espaço, cada um deles

constitui um meio especial onde as representações coletivas vêm se retratar e

se colorir diferentemente. Resulta daí que, se todas as consciências

engajadas nesses corpos estão voltadas para o mesmo mundo, isto é, o

mundo de idéias e de sentimentos que constituem a unidade moral do grupo,

nem todas o vêem pelo mesmo ângulo; cada uma o exprime à sua maneira

(DURKHEIM, 2008, p.330-331).

Esses dois fatores, um impessoal e coletivo e outro individualizador, o primeiro

fornecendo a matéria-prima da ideia de alma. Assim não é de espantar-se com a atribuição de

papel dada ao elemento impessoal na gênese da noção de personalidade. Desta maneira,

compreende-se que o que faz do homem uma pessoa é aquilo que o confunde com os outros

homens.

Durkheim (2008, p.332) declara que os elementos que servem para formar a ideia de

alma e aqueles que entram na representação do corpo provêm de duas fontes diferentes e

independentes uma da outra. Uns são constituídos das impressões e das imagens que partem

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de todos os pontos do organismo; outros consistem em ideias e em sentimentos que derivam

da sociedade e que a exprimem.

A noção de corpo como fator de individuação exposta por Durkheim está centrada

numa organicidade, segundo ele, “há realmente uma parte de nós mesmos que não está sob a

dependência imediata do fator orgânico; tudo aquilo que em nós representa a sociedade”

(DURKHEIM, 2008, p.332). Em razão disto, ele resume a questão da seguinte forma: “o

único meio que temos para nos libertar das forças físicas é opor-lhes as forças coletiva”

(DURKHEIM, 2008, p.333). Isto se assemelha com a moderna representação do corpo,

centrada no saber biomédico, mas mesmo que se reconheça a realidade concreta deste corpo

orgânico, deve-se considerar que tanto a alma quanto o corpo podem ser produto de

representação coletiva. Neste sentido, a moderna representação do corpo o representa

coletivamente através do seu papel de individualização. Esta representação do corpo moderno

está amparada por ideias e pensamentos coletivos que reforçam a individualização, o

isolamento do grupo, e quando se particulariza no indivíduo, torna-se expressão individual da

alma coletiva do grupo. Assim de nada adianta opor as forças físicas as forças coletivas, pois

na atualidade uma é derivada da outra.

Na Modernidade, o individualismo crescente constitui-se na alma coletiva do grupo.

Isto se individualiza através da noção de corpo como cisão, o elemento que separa o indivíduo

de si mesmo, do cosmo e dos outros.

1.1.1.2 O corpo anatomizado

Já foi exposto acima que, na Modernidade, as concepções de corpo que foram se

constituindo são tributadas a três esferas sociais e culturais: o acentuado individualismo (em

que os vínculos entre as pessoas são relaxados, e a oposição entre vida privada e vida pública

é valorizada); a emergência de um saber racional positivo e laico sobre a natureza (resultando

no estudo do corpo como realidade em si mesma, dissociada do ser humano); e o recuo das

tradições populares e locais, dando, aos poucos, lugar à medicina (instituída como o saber

oficial sobre o corpo).

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Até aqui houve uma referência ao acentuado individualismo moderno, agora serão

feitas referências à emergência de um saber racional positivo e laico, que ao estudar o corpo

como realidade em si, dissociando-o do ser humano, de forma reificada, produziu o recuo das

concepções populares acerca do corpo, fazendo que estas concepções fossem substituídas por

um saber biomédico, oficial, sobre o corpo. Para que isto tenha se tornado efetivo, foi de suma

importância o crescente interesse por dissecações de cadáveres nos estudos de anatomia no

fim da Idade Média. “Isto não se fazia desde o século III a.C, quando dissecações humanas –

as únicas que o mundo antigo conheceu – foram feitas em Alexandria. Seguiu-se um período

muito longo de uns quinze séculos sem dissecações” (MANDRESSI, 2012, p.411).

Sobre este longo período sem dissecações difundiu-se a opinião de que isto teria

ocorrido devido a uma proibição por parte da Igreja Católica. Porém não há documentos que

atestem isto, o único documento que poderia ser citado em apoio a esta alegação é a decretal

Detestande feritatis, emitida pelo Papa Bonifácio VIII, em 1299. Entretanto, esta decretal

expunha a oposição do pontífice ao esquartejamento dos cadáveres. A decretal pretendia

colocar um fim no costume de desmembrar os corpos dos defuntos para tornar mais fácil o

transporte até o local da sepultura, quando distante do local da morte. Desta forma não se

tratava de proibir dissecações anatômicas, que começavam a ser praticadas nesta época

(MANDRESSI, 2012, p.411-412).

Sobre esta questão da suposta proibição, Le Goff e Truong (2010, p.119-120)

asseguram:

A dissecação médica não era proibida. Mesmo Galeno, o mestre dos médicos

medievais, praticava a dissecação de animais. Assim, em Bolonha, em

Salerno, em Montpellier, em Paris, a dissecação tornou-se uma prática

pública e didática. O saber livresco predomina, entretanto. A abertura dos

corpos era frequentemente destinada a confirmar Galeno. Como resume

justamente Danielle Jacquart, “o corpo era ‘lido’ antes de ser visto”.

O predomínio do saber livresco, mencionado por Le Goff e Truong, associado à

prática da dissecação apenas com o objetivo de confirmar Galeno, possui uma estreita relação

com a depreciação por parte dos médicos no tocante a atividade realizada por cirurgiões na

Idade Média. A atividade dos cirurgiões consistia numa prática manual, no manuseio da carne

de outrem, algo não estimado por médicos universitários. Associada a “artes mecânicas”, “as

dissecações anatômicas, que também implicavam no recurso ao uso da mão e à incisão do

corpo, poderiam ter sido objeto de reticências análogas”, segundo Rafael Mandressi (2012,

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p.414), que explica ainda que a divisão das tarefas que caracterizam a organização das

dissecações públicas até o século XVI mostra, efetivamente, que elas eram regidas por uma

hierarquia. O professor comandava o seu desenrolar, lia e comentava os escritos das

autoridades do alto de sua cátedra, sendo secundado por um demonstrator, que fazia os

assistentes ver o que o mestre explicava, enquanto a preparação do cadáver era em geral

confiada a um cirurgião barbeiro. Mesmo assim, não dá para concluir que o descrédito das

“artes mecânicas” estivesse na origem de uma impossibilidade qualquer de praticar

dissecações.

Uma vez que a busca por impedimentos que retardaram por mais de um milênio a

prática das dissecações humanas se revela infrutífera, Mandressi (2012, p.415) julga

conveniente deslocar o ponto de vista sobre esta questão. Em vez de procurar saber por que

não houve dissecações até a Idade Média tardia, seria melhor perguntar por que razão se

começou a recorrer a ela nesta época?

Com efeito, não somos obrigados a postular que a falta de dissecações seja

necessariamente devida a um impedimento. Isto equivale no fundo, a

considerar a dissecação como um meio “natural” de chegar ao conhecimento

do corpo. Ora, escrutar cadáveres com ajuda do escalpelo não é

necessariamente uma evidência fora de um tempo e de um espaço que viram

este ato tornar-se a chave das operações de desnudar “verdades” do corpo.

Temos o direito de presumir que a outros tempos correspondem outras

evidências, e que, se durante longos séculos as dissecações não foram

praticadas, é principalmente porque elas não foram julgadas necessárias.

Podemos, portanto, considerar o acesso às dissecações como uma invenção,

uma resposta que, em um determinado momento, apareceu como adequada

ou vantajosa diante da exigência de obter ou perfazer um novo conhecimento

sobre o corpo (MANDRESSI, 2012, p.415).

Uma vez que se compreendam as dissecações como uma invenção, ou uma reposta

que surgiu num determinado momento para satisfazer a exigência de um novo conhecimento

sobre o corpo, entende-se igualmente que isto possui como ponto de partida a recepção da

medicina greco-árabe no Ocidente medieval. Isto se fez por meio de uma vasta tarefa de

tradução. Segundo Mandressi (2012, p.415-416), como fruto desta vasta tarefa de tradução de

obras médicas greco-árabe, primeiramente no sul da Itália, onde, na segunda metade do século

XI, Constantino, o Africano, traduziu, no mosteiro do Monte Cassino, muitos textos médicos

árabes para o latim. Dois deles devem ser particularmente lembrados: o Isagogo, uma

introdução à medicina de Galeno composta por Hunain Ibn Ishaq (falecido em 877), e o Liber

pantegni, uma obra enciclopédica do médico de origem persa Haly Abbas (século X). Uma

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segunda etapa importante teve lugar em Toledo, no século XII. As contribuições

fundamentais no domínio da medicina datam do período marcado pela presença, naquela

cidade, de Gerardo Cremona, que chegou lá depois de 1145 e traduziu, aparentemente como

chefe de uma equipe, dezenas de obras. Dentre as obras médicas, pode-se citar Liber de

medicina ad Almansorem, de Rhazès (falecido por volta de 930), a Cirurgia de Albucasis

(falecido em 1013), o comentário de Ibn Ridwan (século XI) à Arte médica de Galeno,

adaptações árabes de tratados galênicos e, sobretudo, o Cânon da medicina de Avicena.

As traduções do árabe tiveram um papel de primeira importância na

evolução do saber médico na Europa latina. Elas contribuíram

decisivamente, de modo particular na impregnação galênica da medicina

medieval europeia. Isto se fez, em primeiro tempo, por intermédio de um

galenismo arabatizado, mas de imediato se quis aceder diretamente aos

textos autênticos de Galeno. O corpus galênico greco-latino começou então a

se constituir. Por volta de 1185, Burgúndio de Pisa fez versões greco-latinas

de tratados como Do método terapêutico, Das compexões ou Dos lugares

afetados. Essas traduções sucederam, em particular, as de Niccolò da

Reggio, médico da corte angevina de Nápoles que traduziu, em 1317, Da

utilidade das partes do corpo [De usu partium], trazendo a primeira

recuperação direta de uma exposição essencial da anatomofisiologia galênica

(MANDRESSI, 2012, p.416).

Sob influência deste conjunto de obras, do fim do século XI ao começo do século

XIV, a posição dos conhecimentos anatômicos ganhou em clareza e em precisão. Além disto,

os tratados de cirurgia elaborados no Ocidente a partir da segunda metade do século XIII, que

têm como fonte obras árabe-latinas, insistem na importância dos conhecimentos anatômicos.

O recurso à dissecação aparece quando a maioria dos escritos médicos que

podiam exercer uma influência neste sentido só estavam disponíveis em

versões árabe-latinas. Foram Haly Abbas, Rhazés, Avicena e, mais tarde,

Averróis que fizeram da anatomia algo que devia ser conhecido, ou mais

bem conhecido do que antes. Uma vez colocada essa exigência, num

determinado momento foi adotada, para satisfazê-la, a modalidade de abrir

corpos humanos, o que essas mesmas fontes não preconizavam

expressamente.

Mas, para esta modalidade, incentivava-se a apelar para a experiência. À

base do que se podia ler em Averróis ou Avicena, a constituição do saber

anatômico está associada a um procedimento fundado na observação. Neste

quadro, o recurso ao veredicto dos sentidos torna-se o método adequado para

resolver os casos de opiniões discordantes das autoridades, para verificar de

visu o que é dito nos textos, ou ainda, conforme o caso, para corrigir as

autoridades e não somente para desempatá-las (MANDRESSI, 2012, p.417).

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O procedimento de abrir cadáveres era realizado para fins variados: para o transporte

dos restos mortais com o objetivo de sepultá-los na terra natal do defunto; para fins de

embalsamento; para exames post-mortem com o intuito de estabelecer a causa da morte.

Práticas que se distinguiam uma das outras por sua intencionalidade, seja ritual ou judiciária,

a depender do caso. Neste contexto, segundo Mandressi (2012, p.418), estas práticas têm em

comum a época de sua introdução, entre os séculos XII e XIII, sendo que as dissecações só

aparecem por volta do fim deste período, isto é, depois de outras práticas que comportam a

abertura do cadáver humano. Este aparecimento tardio pode ser significativo, se interpretado

como a irrupção de uma intencionalidade específica de exploração do corpo, num contexto

em que práticas fundadas na abertura de cadáveres forneciam um dispositivo técnico do qual

era possível apropriar-se. O apelo ao uso de dissecações surgiu, quando a abertura de

cadáveres foi estimulada pela curiosidade anatômica.

Ora, se as técnicas de busca de uma verdade no interior do corpo morto, e o

próprio fato de entregar-se a uma busca deste tipo, foram adotadas em

contato com práticas que as exploram, é preciso ainda que se tenham tido

boas razões para fazê-lo. Essas razões não podem provir a não ser do estado

do saber anatômico, no seio do qual são firmadas demandas epistemológicas

face às quais a autópsia cadavérica podia representar uma oferta apropriada.

Isto se opera no fim de um processo subtendido pela introdução dos textos

médicos mencionados. Assiste-se primeiramente, por meio das obras árabe-

latinas, à promoção da anatomia à primeira classe dos componentes do saber

médico e, em seguida, à atribuição, também em grande parte sob a influência

desses textos, de uma função decisiva às constatações sensoriais entre as

fontes do conhecimento anatômico. Assim são fixados, a seu respeito, um

novo estatuto e novas orientações que, na virada dos séculos XIII e XIV,

assumem práticas que consistem em manipular, abrir e escrutar o interior dos

corpos (MANDRESSI, 2012, p.418-419).

Em 1543, é publicado em Basileia o De humani corporis fabrica de Andreas Vesalius

(1514 – 1564 d.C), médico belga considerado o pai da anatomia moderna. Um enorme tratado

de anatomia de 700 páginas. O surgimento do De humani corporis fabrica, no mesmo ano em

que Nicolau Copérnico (1473 – 1543 d.C) publica De revolutionibus, é sintoma de um

processo de mudança nos modos de conceber o mundo e o homem no Ocidente. O próprio

Vesalius discorre longamente em seu tratado sobre os obstáculos mentais que precisam ser

superados para que o corpo seja considerado como virtualmente distinto do homem. As

observações de Vesalius sobre anatomia humana encontram suas fontes neste olhar

distanciado, que esquece metodologicamente o homem para considerar somente o corpo.

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Na proporção em que o corpo humano é manipulado, retalhado, esquadrinhado por

meio de dissecações públicas em teatros de demonstrações, sob o olhar de diversos

expectadores, opera-se uma mudança nas mentalidades das pessoas no Ocidente. O corpo

começa a ser esvaziado da presença humana, é posto em suspenção, dissociado do homem, é

coisificado, passando a ser estudado por si mesmo, como uma realidade autônoma. A

anatomia humana apoia-se num olhar distanciado, que metodologicamente se esquece do

homem para considerar somente o corpo, este analisado como uma máquina, parte por parte,

componente por componente. O corpo absorve traços de uma entidade mecânica composta de

peças e suscetível de ser desmontada. É a fragmentação do corpo que está no centro do

projeto anatômico, pois a anatomia não trata do corpo inteiro e contínuo, mas dividido em

partes e membros. O mecanicismo fragmenta, faz das partes do corpo engrenagens de um

dispositivo que fez da máquina a principal metáfora do corpo humano.

1.1.1.3 O corpo midiático

Experimenta-se a nudez dos corpos através dos meios de comunicação da atualidade

(nas revistas, nos cartazes, nos outdoors, na internet, na televisão), e também por meio de

diversas manifestações artísticas contemporâneas. Esta nudez jaz documentada pela

fotografia, bem como por telas pintadas; pode ser vista nas performances teatrais, bem como

em telenovelas e no cinema.

Diante desta exposição do corpo nu, chega-se apressadamente a conclusão que hoje as

pessoas estão vivendo numa época de valorização do corpo. Uma vez que este não está mais

escondido por tecidos, mas exposto de diversas formas e ângulos.

Todavia, esta conclusão deve considerar a pergunta sobre qual corpo está sendo

valorizado e consequentemente exposto com tamanha amplitude? A questão carrega em si a

necessidade de considerar o corpo como ideal, uma construção segundo os padrões estéticos

estabelecidos pela sociedade contemporânea. Não se trata de qualquer corpo, mas de certo

tipo de corpo, aquele que atenda as exigências ideais, que cumpra os parâmetros estéticos.

É inegável que o corpo está cada vez mais em cena e exposto no espetáculo

midiático da sociedade atual, porém analisar o sentido que o discurso sobre o

corpo adquire na sociedade contemporânea requer, cada vez mais, atenção

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no que se refere às interpelações sobre a saúde, a estética e o consumo. A

relação entre a produção de imagens corporais pela mídia e a construção de

uma autoimagem, por parte dos sujeitos, é imediata. Nenhuma outra

sociedade na história produziu e disseminou tal volume de imagens do corpo

humano através da mídia como a atual.

Por isto, também é inegável que a atual busca por modelar o próprio corpo

seja marcada por diversas técnicas corporais legitimadas pela sociedade e

esteja localizada dentro de um movimento social mais amplo, que vem se

acirrando no contexto da modernidade.

Sem falar que a ideia de corpo como sinônimo do culto à boa forma física,

como uma vitrine ambulante (continuadamente reformulada e copiada, a um

só tempo produto e objeto de compra e venda), como instrumento de

produção e reprodução de sentidos, é constituída a partir da exposição de

imagens que circulam na mídia.

É preciso, ainda, atentar para mais um detalhe, o corpo exposto pela mídia e

cultuado pelas pessoas na atualidade não é o corpo real de indivíduos

comuns vistos cotidianamente, mas um corpo idealizado, esbelto, bronzeado,

atlético, sem odores, saudável, jovem e etc (PRAZERES, 2014, p.102-103).

Le Breton (2011) oferece uma pista de quais padrões estéticos o corpo ideal tão

propagado pelos meios midiáticos manifesta. Pois na vida cotidiana através de uma rede de

ritualidades se efetua o apagamento dos traços mais orgânicos do corpo, as evidências da sua

presença no mundo. Há uma etiqueta corporal que guia orienta como o corpo deve se postar,

conduzir-se no cotidiano e nas interações com outros corpos. Esta etiqueta necessita ser

seguida sem questionamentos.

Toda conduta que escape à sua definição social é ameaçada pela

inconveniência. Ela pode suscitar a vergonha daquele que toma consciência

de ter rompido um quadro estabelecido, e o mal-estar daquele que é

confrontado a esse afastamento: um mau cheiro, um hálito demasiadamente

forte, uma atitude desconjuntada, um ruído incontrolado, uma gargalhada

etc., voltando brutalmente a atenção para um corpo que deve permanecer

discreto, sempre presente, mas no sentimento de sua ausência. O embaraço

que faz irrupção e parasita a interação pode, entretanto, ser ritualmente

apagado por uma falsa indiferença, ou melhor ainda, pelo humor, sempre

disponível para simbolizar as situações escabrosas e dissipar a vergonha ou a

reticência. O corpo não deve testemunhar qualquer aspereza suscetível de

realcá-lo (LE BRETON, 2011, p.200-201).

O corpo é exposto, porém, esta exposição deve ocorrer sob a influência dos rituais,

não convém expor o corpo fora do quadro de ritualidades que pontuam o escoamento da vida

social, os padrões de conduta corporal aceitáveis. As interações sociais ocorrem sob a égide

do apagamento ritualizado das manifestações corporais. O corpo é revelador da condição

humana, não podendo ser totalmente afastado, todavia, tende-se cotidianamente a fortalecer

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um dualismo entre o sujeito e corpo, tornando o corpo objeto, e estabelecendo o rompimento

da aliança ontológica entre o humano e o corpo.

O corpo exposto pela mídia manifesta um avanço audacioso ao abordar temas

corporais referentes à vida privada e associados à vergonha quando expostos ao público,

porém isto é realizado se utilizando do artifício do humor para que os propósitos publicitários

não sejam prejudicados. O humor cria as condições para que sejam discutidos os assuntos

sobre os quais se mantêm silêncio no cotidiano.

Nenhuma sensibilidade é escandalizada graças ao estilo humorístico cuja

função social consiste em autorizar a abordagem de temas proibidos de

serem ditos, como verdades que não poderíamos exprimir de frente. O

humor, na publicidade como na vida, torna aceitáveis imagens ou palavras

subtraídas do íntimo que indisporiam se tivessem sido formulados de outra

maneira. Mas a necessidade desse desvio para proteger o objeto, ou a

conduta, assim desvelado mostra bem que o corpo permanece impregnado de

sentido e de valores, lugar simbólico que publicidade tenta expurgar. Ela fala

significativamente de “tabus” ou de “preconceitos” quando evoca os atos

íntimos mantidos habitualmente na discrição. Mas, finalmente, sob a

aparência de uma afirmação de valores corporais, de uma exposição do

íntimo em toda descontração, a publicidade apaga sutilmente aquilo que

emana do orgânica, a “libertação” do corpo se faz sob a égide da higiene, de

um distanciamento da “animalidade” do homem: seus odores, suas

secreções, sua idade, sua fadiga, seus proscritos. Da mesma forma, a

progressão social do esporte ou dança moderna impõe um modelo de

juventude, de vitalidade, de sedução, ou de saúde. O corpo liberado da

publicidade é limpo, liso, claro, jovem, sedutor, sadio, esportivo. Não é o

corpo da vida cotidiana (LE BRETON, 2011, p.208-209).

As pessoas comuns com as quais se depara no dia-a-dia nem sempre manifestam o

ideal de corpo liso, jovem, modelado por exercícios físicos na academia. Estes padrões são

movidos pela mesma dinâmica dos rituais de apagamento corporal do cotidiano. O corpo ideal

é desprovido de maus odores e suores, sua pele deve ter a cor e a tonicidade correta, os

músculos devem ser rígidos e modelados, em toda a sua aparência, o corpo deve demonstrar

saúde. Assim, o corpo liberado e exposto como ideal, na verdade, representa o afastamento do

corpo em relação à pessoa, o sujeito.

Segundo Le Breton (2011, p.211), um artifício da Modernidade faz passar por

libertação dos corpos aquilo que não passa de elogio do corpo jovem, sadio, esbelto,

higiênico. A boa forma, a saúde, impõem-se como preocupação e induzem outro tipo de

relação consigo mesmo. Os valores cardeais da Modernidade e levados adiante pela

publicidade são os da saúde, da juventude, da flexibilidade, da higiene. Tudo isto serve como

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explicação para sucesso atual das práticas que colocam o corpo em evidência, bem como o

sucesso da cirurgia estética ou reparadora, sem deixar de mencionar os tratamentos de

emagrecimento e o sucesso da indústria de produtos cosméticos. O corpo midiático é o

manifestação de se entende como ideal, o corpo submetido ao apagamento de todos as suas

características que causam vergonha.

1.1.1.4 O corpo rascunho

O modo como o discurso da tecnociência contemporânea se refere ao corpo o coloca

numa posição ontologicamente distinta do sujeito, cada vez mais tratado como matéria-prima

ou como um objeto sobre o qual se debruça com o intuito de o melhorar. Neste sentido, não é

entendido como identidade do sujeito, pois quando o corpo é coisificado dilui a identidade

pessoal. “O corpo é normalmente colocado como um alter ego consagrado ao rancor dos

cientistas”, afirma Le Breton (2003, p.15) e acrescenta: “Subtraído do homem que encarna à

maneira de um objeto, esvaziado de seu caráter simbólico, o corpo também é esvaziado de

qualquer valor”.

Assim, o corpo é encarado como um rascunho a ser corrigido, e representa no humano

a parte ruim e decadente, símbolo de fraqueza, carne fraca e submissa as intempéries do

tempo, que sangra e adoece, por fim, morre. Por isto, Le Breton expõe que para certas

correntes da tecnociência, devido à corporeidade que lembra a fragilidade, a espécie humana

jaz maculada. “A reconstrução do corpo humano, e até sua eliminação, seu desaparecimento,

é o empreendimento ao qual se dedicam esses novos engenheiros do biológico” (LE

BRETON, 2003, p.16). Isto porque, acrescenta Le Breton (2003, p.17):

Visão moderna e laicizada da ensomatose (a queda no corpo das antigas

tradições gnósticas), a carne do homem encarna sua parte maldita que

inúmeros domínios da tecnociência pretendem por sorte remodelar,

‘imaterializar’, transformar em mecanismos controláveis para livrar o

homem do incômodo fardo no qual amadurecem a fragilidade e a morte.

Diante desse despeito de ser constituído de carne, o corpo é dissociado do

homem que ele encarna e considerado com um em si. Consagrado aos

inúmeros cortes para escapar de sua precariedade, de seus limites, para

controlar essa parcela inapreensível, atingir uma pureza técnica. Tentação

demiúrgica de corrigi-lo, de modificá-lo, por não se conseguir torná-lo uma

máquina impecável.

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A tecnociência tem colaborado com a construção de um imaginário no tocante ao

futuro da espécie humana, que pretende levar as últimas consequências o caráter técnico e

artificial da condição humana. Desde as antropologias filosóficas do início do século vinte,

em especial Gehlen e Plessner, que se tem afirmado que “o homem é artificial por natureza”.

O que, em outros termos, significa que o homem compensa as suas deficiências naturais

através da criação e do uso de artefatos técnicos que atuam com aperfeiçoamento ou

extensões de seu corpo. A própria maneira do homem intervir sobre as situações que surgem

em seu caminho possui um caráter técnico. O seu modo de pensar e buscar soluções para as

intempéries, os problemas ou os obstáculos que se colocam diante dele se constitui num

pensar técnico.

Todavia, para além de ferramentas ou artefatos tecnológicos criados para agilizar o

trabalho e obter melhores resultados no mais curto período de tempo, o homem tem

submetido a si mesmo como objeto da técnica, neste caso, o seu corpo. Isto porque este, ao

revelar as suas deficiências, tornar-se um obstáculo a ser superado. A fraqueza, debilidade e

finitude presente no corpo o humano não podem ser aceitas como um impedimento para a

realização do futuro que o homem moderno tem imaginado para si.

A cada nova descoberta científica e diante dos avanços e dos triunfos proporcionados

pelo domínio de novas tecnologias, o homem sente crescer em si a convicção de que pode

realizar cada vez mais. E não basta a sua intervenção no mundo, nas coisas que estão situadas

fora de si, o manuseio e a modelagem dos materiais disponíveis, ofertados pela natureza.

Construir cidades, grandes obras de engenharia, máquinas para o transporte de equipamentos

pesados ou para locomoção de pessoas para distâncias cada vez maiores e em curto tempo. O

domínio do mundo exterior não basta se não for possível viver para desfrutar das próprias

realizações e colocar vislumbrando novos futuros. Além do mais, tudo isto alimenta a

sensação de que há mais a ser explorado, de que tudo é possível para a engenhosidade

humana. Então se o corpo não atende ao que se deseja dele, será compreendido como algo que

está à mão para ser modelado segundo a vontade. O corpo como algo que literalmente pode

ser construído segundo o desejo de cada pessoa. Le Breton (2012, p.18) afirma:

Nem o corpo, nem o gênero, nem a orientação sexual são essências, mas

construções sociais por certo personalizadas e, portanto, revogáveis. Eles são

o resultado de uma decisão própria e de uma prática cosmética adaptada. As

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representações e os valores afetam o corpo visando reproduzir um código ao

insistirem nas diferenças, notadamente masculino/feminino, a fim de

naturalizá-las e legitimar as modalidades do vínculo social. Hoje, a

individualização do sentido, e, portanto, a liquefação do sentimento de si,

leva a uma transformação dos velhos quadros de pensamentos a esse

respeito. A queer é uma tentativa de desnaturalização, e principalmente de

desculturação do gênero. Feminidade e masculinidade tornam-se objeto de

uma produção permanente por um uso apropriado de sinais.

Há uma revolta contra os limites, devem-se ultrapassar as fronteiras, seguir em busca

de novas conquistas. O biologicamente constituído não precisa ser aceito como um fato que

não pode ser alterado. Isto ficou evidenciado na citação anterior no que se refere ao gênero e a

orientação sexual. O corpo transexual é um bom exemplo do que o domínio técnico pode

realizar no tocante ao que outrora se compreendeu como biologicamente definido.

O corpo transexual é um artefato tecnológico, uma construção cirúrgica e

hormonal, uma criação plástica. Seu sexo de eleição é o resultado da decisão

do próprio transexual, e não de um destino anatômico; ele vive a partir de

uma vontade deliberada de provocação ou de jogo. O transexual suprime os

aspectos excessivamente significativos de sua antiga corporeidade para fazer

afluir os sinais inequívocos de sua nova aparência. Vontade de conjugar a

separação, de não fazer mais sexo (do latim secare: cortar), nem um corpo

nem um destino, mas uma decisão, e, sobretudo, vontade de afastar-se, a fim

de inventar-se e colocar-se por si mesmo no mundo. O transexual é um

símbolo do sentimento de que o corpo é uma forma a transformar (LE

BRETON, 2012, p,20-21).

A tecnociência moderna reforça a noção de que o corpo é um rascunho, algo que não

precisa ser aceito como é, pois na verdade não é, apenas está. E não necessariamente precisa

continuar no estado no qual se encontra, uma vez que se tenha os recursos científicos

disponíveis para transformá-lo.

1.2 Pós-humanismo: a aposta numa era pós-biológica

Os adeptos do imaginário pós-humano tomam, como ponto de partida ou como fonte

de sua inspiração, Nietzsche por sua famosa doutrina do der Übermensch.

E Zaratustra falou assim ao povo: Eu vos anuncio o Super-homem. O

homem é superável. Que fizestes para o superar? Até agora todos os seres

têm apresentado alguma coisa superior a si mesmos; e vós, quereis o refluxo

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desse grande fluxo, preferis tornar ao animal, em vez de superar o homem?

(NIETZSCHE, 2006, p.25).

Nietzsche referia-se, não a transformação tecnológica, mas ao homem assumir o seu

crescimento pessoal e o refinamento cultural que possibilitaria a superação do

enfraquecimento da vida provocado pela sua condição de “escravo moral” do Cristianismo.

Neste sentido, Nietzsche expõe a necessidade de aperfeiçoamento do que a de se superar a

espécie humana: é esse o sentido mais evidente de suas menções ao supra-humano. Mas é

exatamente neste incentivo à superação, dado por Nietzsche, que os pós-humanista encontram

inspiração, o impulso no sentido da humanidade transformar tecnicamente a si própria e a sua

natureza.

Segundo Erick Felinto e Lucia Santaella (2012, p.26-27), o termo “pós-humano” foi

mencionado pela primeira vez pelo intelectual norte americano de ascendência egípcia Ihab

Hassan em um ensaio publicado em 1977. E que, entre os estudiosos, há certa convergência

em se localizar a gênese do pós-humano na série de dez conferências Macy em Nova York

entre 1946 e 1953. As conferências tinham natureza interdisciplinar e reuniram cientistas

notáveis.

A intenção dos estudiosos era lançar as bases de uma ciência geral do funcionamento

da mente, que resultou no nascimento da cibernética, da teoria dos sistemas e, pouca mais

tarde, da ciência cognitiva. Embora prioritariamente ligada ao nome de Norbert Wiener, autor

de Cibernética ou controle e comunicação no animal e na máquina (1948), a cibernética

brotou do convívio entre Wiener com o fisiologista Arturo Rosenblueth, com o engenheiro

Julian Bigelow e com Warren Weaver e Claude Shannon, autores da “Teoria matemática da

informação” (1949), além de John von Neumann, criador dos computadores digitais, do

neuropsiquiatra Warren McCulloch e do matemático Walter Pitts, todos participantes das

conferências Macy.

O que a cibernética propôs foi uma teoria unificada da máquina e do vivente, sendo

uma ciência das analogias entre máquinas e organismos. Isto lançou as sementes do pós-

humano, porque a analogia proposta entre o funcionamento do orgânico e da máquina

arrancou o humano do privilégio de sua irredutibilidade, surgindo uma nova forma de pensar

o humano como um sistema de processamento de informações que apresenta similaridades

com qualquer máquina dotada de certa inteligência.

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Francisco Rüdiger (2007, p.7) reconhecesse que desse credo ou entendimento

originador do movimento pós-humanista provém, por sua vez, a hipótese de singularidade, de

uma situação totalmente nova e eventualmente catastrófica para a humanidade que estaria em

vias de ocorrer devido ao progresso científico-maquinístico.

A hipótese de singularidade, como exposto pelos pós-humanistas, fundamenta-se na

concepção de que os conhecimentos sobre Inteligência Artificial produzirá mudanças radicais

num período relativamente curto. Estes conhecimentos possibilitariam a criação de uma

máquina ultra-inteligente que superaria todas as atividades intelectuais de qualquer ser

humano por mais inteligente que seja. Esta máquina ultra-inteligente poderia projetar

máquinas ainda melhores, isto produziria uma “explosão de inteligência” de tal maneira que a

inteligência humana seria deixada para trás (BOSTROM, 2005, p.9).

Em 1993, Vernor Vinge (1993, p.1-2) desenvolveu o conceito de singularidade com

mais detalhes no paper Technological Singularity. No qual, respondendo a questão sobre o

que é singularidade, afirma que a aceleração do progresso tecnológico será a característica

central deste século e que a humanidade estaria próxima de uma mudança da vida humana na

Terra. A causa precisa desta mudança seria a iminente criação pela tecnologia de entidades

com maior inteligência do que a humana. Segundo ele, a ciência pode alcançar este avanço

por diversos meios, dentre os quais, ele enumera os seguintes: 1. O desenvolvimento de

computadores super-humanamente inteligentes; 2. Grandes redes de computadores e seus

usuários associados podem surgir como entidades super-humanamente inteligentes; 3.

Interfaces do tipo computador/ser humano podem tornar-se tão íntimas que os usuários podem

razoavelmente ser considerados super-humanamente inteligentes; e 4. A ciência biológica

pode fornecer meios para melhorar o intelecto natural do ser humano. Vinge também afirma

que as três primeiras possibilidades dependem de melhoramentos nos hardaware dos

computadores.

E como, segundo ele, nas últimas décadas, o progresso no desenvolvimento de

hardware computacional tem seguido uma curva surpreendentemente constante. Baseado

nesta tendência, ele acreditava que a criação de uma inteligência superior à humana ocorreria

nos próximos trinta anos. Como tal previsão fora feita em 1993, uma década depois, ele

afirmou: “Agora em 2003, eu ainda penso que esta declaração de intervalo de tempo é

razoável” (VINGE, 2003, p.3).

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Traçando uma cronologia do movimento pós-humanista, pode-se considerar os

seguintes momentos: o aparecimento na década de 60 de pesquisas sobre cibernética,

conforme apresentado acima; e a partir de 1980, a organização de grupos simpatizantes da

ideia do pós-humano.

Em 1988, surgiu o primeiro número da Revista Extropy publicada por Max More e

Tom Morrow. E em 1992, eles fundaram o Extropy Institute. Segundo Bostrom (2005, p.14),

o termo extropy foi cunhado para ser o oposto de entropia. E o instituto serviu de catalisador

que reuniu vários grupos com ideias futurísticas. O instituto também realizou uma série de

conferências, mas talvez a mais importante foi a lista de discussão Extropianos, um fórum de

discussão online onde novas ideias foram partilhadas e debatidas.

Max More escreveu a primeira definição de transhumanismo em seu sentido

moderno e criou a sua própria marca distinta de transhumanismo,

“extropianismo”, que enfatizou os princípios de “expansão sem limites”,

“auto-transformação”, “otimismo dinâmico”, “tecnologia inteligente” e

“ordem espontânea (BOSTROM, 2005, p.15).

A lista de conferências e de discussão do Instituto Extropy serviu como um lugar de

encontro para algumas pessoas que se interessavam em discutir ideias futuristas. Uma enorme

quantidade de discussão sobre trans-humanismo tem ocorrido em várias listas de e-mail nos

últimos anos. A qualidade dessas postagens tem sido variada. No entanto, no seu melhor,

estas conversas online tem explorado ideias sobre as implicações de futuras tecnologias que,

em alguns aspectos, podem ser consideradas avançadas. A internet desempenhou um papel

importante na incubação do trans-humanismo por ter facilitado essa troca de ideias entre as

pessoas que compartilham de ideais trans-humanistas.

No inicio de 1998, foi fundada a World Transhumanist Association por Nick Bostrom

e David Pearce. Esta associação serviu para fornecer uma base organizacional geral para

todos os grupos e interessados em trans-humanismo. O objetivo também foi o de desenvolver

uma forma mais madura e academicamente respeitável de trans-humanismo. Os dois

fundadores são os responsáveis pela elaboração da Transhumanist Declaration e da

Transhumanist FAQ. A declaração foi concebida como uma declaração concisa de consenso

sobre os princípios básicos do trans-humanismo. Por sua vez, o FAQ também é um

documento que possui quase um consenso entre os trans-humanistas, porém sendo mais

ambicioso no seu âmbito filosófico na medida em que desenvolveu um número de temas que

antes eram, no máximo, implícito no movimento.

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No movimento trans-humanista, é comum fazer uma distinção entre pós e trans-

humanismo, neste sentido trans-humanismo seria uma fase intermediária na qual os

indivíduos compartilham de interesses sobre ramificações, promessas e potenciais perigos das

tecnologias. Encontra-se uma explicação sobre esta distinção na resposta apresentada na

Transhumanist FAQ (2003, p.4) para questão “o que é trans-humanismo?:

O movimento intelectual e cultural que afirma a possibilidade e o desejo de

fundamentalmente melhorar a condição humana através da ampliação da

razão, especialmente através do desenvolvimento de tecnologias amplamente

disponíveis para eliminar o envelhecimento e aumentar consideravelmente

as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas do ser humano.

Segundo Rüdiger (2007, p.12), a associação já congregava em 2006 cerca de 15

entidades, possuindo quase quatro mil sócios de uns cem países, e se propõe a servir de

plataforma organizacional para os grupos interessados em promover o pós-humanismo.

Existem seções em doze países e seus quadros incluem pesquisadores de várias empresas e

sociedades científicas, tais como a Alcor life, O Foresight Institute, o Singularity, The Society

of Neuronal Prostethic, etc.

A expressão “pós-humanismo” ou “pós-humano” tem sido empregada no contexto

deste debate de formas variadas. Primeiro, é utilizada para descrever o fim do período de

desenvolvimento social conhecido como “humanismo”, neste sentido, assume o significado

de “depois do humanismo”. Segundo, refere-se também ao fato de que a visão tradicional do

que se constitui um ser humano está passando por profunda transformação. Isto ocorre de

forma tamanha que não seria possível pensar o ser humano como costumeiramente tem sido

feito. E terceiro, a expressão se refere à convergência geral entre o biológico e o tecnológico

até o ponto em que se tornam cada vez mais indistinguíveis. Assim pós-humano é um termo

utilizado com sentido similar a pós-biológico, uma vez que o humano, enquanto categoria,

passa a ser compreendido como um subconjunto de uma fase bio-tecnológica cada vez mais

virulenta (PEPPERELL, 2003, p. iv).

Os termos “pós-humano” e “pós-humanismo”, por enquanto, são termos

excessivamente sofisticados e acadêmicos para circular por outras instâncias menos reflexivas

da sociedade, não sendo percebido nenhum impacto aparente dessas noções no plano da vida

cotidiana ou nas mídias através das quais as pessoas constroem o seu imaginário social, pois

as representações do pós-humano encontram expressão significativa e explícita apenas no

âmbito da internet e contextos tecnológicos e científicos mais especializados, porém conceitos

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pós-humanos tem chegado ao público em geral, sendo manifestos de forma muito esparsa e

indireta no domínio da ficção cinematográfica massiva em filmes como Matrix (1999) ou

Inteligência Artificial (2001).

Junto com o aparecimento das tecnologias digitais de informação e comunicação, um

novo e interessante campo de pesquisa se abriu. Nesse contexto, encontra-se a cibercultura, o

campo mais avançado em termos de estudos de representações tecnológicas. No campo da

cibercultura, há uma série de subculturas com suas particularidades, todas elas contribuindo

para a elaboração de um imaginário cujo fundamento é ciência e tecnologia. O pós-humano se

constitui um desses imaginários.

O discurso pós-humano trata a respeito de seres humanos corrigidos/aperfeiçoados

devido aos avanços do conhecimento científico e do consequente surgimento de tecnologias

avançadas. Lucia Santaella (2010, p.42) afirma que a primeira e mais óbvia compreensão que

se costuma ter do pós-humano está ligada às imagens de corpos híbridos, misturas de

humanos e máquinas, ambientes povoados de ciborgues como, há anos, vem aparecendo nos

filmes de Hollywood, inspirados em ficções científicas batizadas de ciberpunk. Dessas ficções

foram derivadas visões de que a evolução tecnológica conduzirá a humanidade à vida eterna

da mente por meio da substituição das fragilidades do corpo mortal por potentes aparelhos de

silício. A internet está repleta de sites que, com o batismo de trans-humano e trans-

humanismo, prometem que a imortalidade está batendo à porta. Ligadas a esse imaginário

estão também ideias que, embora unidas na suposição de que pós-humano significa a

emergência de outra espécie, distinta da atual espécie humana, caminham em duas direções:

de um lado, aqueles que creem que as duas espécies, humana e pós-humana, conviverão no

futuro, de outro lado, a crença de que o pós-humano engenheirado substituirá o humano.

1.3 A essência da Modernidade: o caráter técnico

A Modernidade, alvo de discussão aqui, é o período compreendido pela teoria social

de então como influenciado pelo Iluminismo. Momento no qual o homem passa a se

reconhecer como um ser autônomo, autossuficiente, e a se mover pela crença de que, por

meio da razão, pode atuar sobre a natureza e a sociedade. Neste sentido, Modernidade

também se caracteriza como episódio da história intelectual do Ocidente, um terreno de

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urdidura das ideias que vão anunciando a emergência de novos padrões e paradigmas da vida,

compreendendo o domínio da vida pensada, o domínio das ideias propostas, discutidas,

confrontadas na esfera do universo simbólico que, a partir da Grécia, adquire no mundo

ocidental seu contorno e seu movimento próprios denominado mundo intelectual.

Como tivemos ocasião de explicar em outro lugar, a modernidade só se

constitui como estrutura de um universo simbólico quando a Razão, no seu

uso teórico explícito ou formalizado (logos demonstrativo), emerge

definitivamente como instância reguladora do sistema simbólico da

sociedade, fenômeno que teve lugar originariamente na Grécia do século VI

a.C. (VAZ, 2012, p.13).

O mundo intelectual não evolui solitário no espaço simbólico, mas forma sistema e

interage com outras esferas: da organização social, das estruturas de poder, das condutas, das

crenças e, por fim, na consciência comum.

A refração das ideias elaboradas no mundo intelectual da Modernidade, interagindo

com outras esferas, atuou como óculos através dos quais o mundo passou a ser visto e

interpretado. As ideias do mundo intelectual moderno formaram o fundamento

epistemológico da realidade, estabelecendo novas regras e princípios metodológicos para se

interpretar os acontecimentos do mundo, uma virada hermenêutica sobre como entender os

fenômenos, olhados agora a partir de um novo prisma, o da razão.

Habermas (2000, p.3-4), citando Max Weber, afirma que para este ainda era evidente a

relação interna, e não a meramente contingente, entre a Modernidade e aquilo que designou

como racionalismo ocidental, pois ele descreveu como “racional” o processo de

desencantamento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do mundo, criou

uma cultura profana, mas acrescentando o que Max Weber descreveu do ponto de vista da

racionalização não foi apenas a profanação da cultura ocidental, mas, sobretudo, o

desenvolvimento das sociedades modernas. As novas estruturas sociais são caracterizadas

pela diferenciação daqueles dois sistemas, funcionalmente interligados, que se cristalizaram

em torno dos núcleos organizadores da empresa capitalista e do aparelho burocrático do

Estado. Weber entende esse processo como a institucionalização de uma ação econômica e

administrativa racional com respeito a fins. À medida que o cotidiano foi tornado por esta

racionalização cultural e social, dissolveram-se também as formas de vida tradicionais.

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Neste sentido, esta reviravolta hermenêutica, inspirada pelas ideias oriundas do mundo

intelectual moderno, provoca uma reviravolta no mundo real: a passagem de uma economia

feudal para uma economia capitalista moderna, do rural para o urbano; sociedade industrial e

de classes; o surgimento do Estado moderno; significativo avanço científico; otimismo em

torno do progresso gerado pela ciência e tecnologia.

Mas as questões suscitadas pelos acontecimentos do século XX despertaram a

necessidade de um olhar crítico sobre a Modernidade, tarefa realizado no primeiro momento,

após a Segunda Guerra, pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, cujos principais

representantes são Adorno (1903-1969), Marcuse (1898-1979), Horkheimer (1895-1973) e

Benjamin (1892-1940). Não obstante as diferenças de pensamento desses filósofos, um tema

perpassa a obra de todos eles: a crítica radical à sociedade industrial moderna.

Após problemas apontados pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, o debate atual a

respeito da Modernidade na teoria social, no que concerne ao seu âmago, gravita em torno de

conceitos relacionados à “pós-modernidade” ou à “segunda modernidade”, esta última como

uma tentativa de resposta as questões levantadas pelos teóricos da “pós-modernidade”. O que

há em comum entre estas duas formas de compreender a Modernidade é o modo como

discutem a questão: qual é o âmago da Modernidade? Pois teóricos que se situam numa ou

noutra posição tendem a reconhecer a racionalidade como âmago da Modernidade.

Tanto os defensores de uma “pós-modernidade” quanto os de uma “segunda

modernidade” estão reagindo ao que foi apontado na tradição filosófica ocidental como

indicações de que a promessa de Kant (1985), de que a razão levaria o homem à maioridade,

tinha um lado “regressivo” que precisava ser levado em conta.

A Modernidade como projeto que buscava desencantar o mundo, o conhecimento

acerca deste, e a organização social para libertar os seres humanos de seus grilhões, saudando

a criatividade humana, a descoberta científica e a busca da excelência individual em nome do

progresso humano, abundante de doutrinas de igualdade, liberdade, fé na inteligência humana

e razão universal, repleto de extravagante expectativa de que as artes e as ciências iriam

promover não somente o controle das forças naturais como também a compreensão do mundo

e do eu, o progresso moral, a justiça das instituições e até a felicidade dos seres humanos.

Os acontecimentos do século XX (duas guerras mundiais, ameaças de aniquilação

nuclear, campos de concentração, a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stálin) geram o

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ambiente no qual florescerá a suspeita de que o projeto da Modernidade estava fadado a

voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num sistema de

opressão universal em nome da libertação da humanidade, com a consequente alegação de

que a lógica que se oculta por trás da racionalidade iluminista é uma lógica da dominação e da

opressão.

Sobre temor provocado pelo o que a humanidade poderá vir a causar a si mesma,

devido aos poderes que libertou e sobre os quais pode não ter controle, o filósofo Hans Jonas

(2006, p.65) destaca:

Agora trememos na nudez de um niilismo no qual o maior dos poderes se

une ao maior dos vazios; a maior das capacidades, ao menor dos saberes

sobre para que utilizar tal capacidade. Trata-se de saber se, sem restabelecer

a categoria do sagrado, destruída de cabo a rabo pelo Aufklärung

[Iluminismo] científico, é possível ter uma ética que possa controlar os

poderes extremos que hoje possuímos e que nos vemos obrigados a seguir

conquistando e exercendo.

Além dos problemas apontados pela Teoria Crítica, outros começam a ser observados

nas últimas décadas do século XX. Dentre estes, certa ruptura no interior da Modernidade, a

qual se destaca dos contornos da sociedade industrial clássica e assume uma nova forma,

denominada “sociedade industrial de risco”, conforme destaca Beck (2010, p.12).

Beck (2010, p.12-13), por meio de uma analogia histórica desta ruptura, expõe que do

mesmo modo como no século XIX a modernização dissolveu a “esclerosada sociedade agrária

estamental” e, ao depurá-la, extraiu a imagem estrutural da sociedade industrial, na atualidade

a modernização dissolve os contornos da sociedade industrial e, na continuidade da

modernidade, surge outra configuração social.

Os limites dessa analogia apontam simultaneamente para as peculiaridades

dessa perspectiva. No século XIX, a modernização se consumou contra o

pano de fundo de seu contrário: um mundo tradicional e uma natureza que

cabia conhecer e controlar. Hoje, na virada do século XXI, a modernização

consumiu e perdeu seu contrário, encontrando-se afinal a si mesma em meio

a premissas e princípios funcionais socioindustriais. A modernização no

horizonte empírico da pré-modernidade é suplantada pelas situações

problemáticas da modernização autorreferencial. Se no século XIX foram os

privilégios estamentais e as imagens religiosas do mundo que passaram por

um desencantamento, hoje é o entendimento científico e tecnológico da

sociedade industrial clássica que passa pelo mesmo processo – as formas de

vida e de trabalho na família nuclear e na profissão, os papéis-modelo de

homens e mulheres etc. A modernização nos trilhos da sociedade industrial,

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que não estava prevista em qualquer dos manuais teóricos ou livros de

receitas políticas do século XIX. É essa iminente oposição entre

modernidade e sociedade industrial (em todas as suas variantes) que

atualmente nos confunde em nosso sistema de coordenadas, a nós que

estávamos até a medula acostumados a conceber a sociedade nas categorias

da sociedade industrial (BECK, 2011, p.13).

Beck trata do mundo moderno em dois momentos: primeira modernidade (industrial),

caracterizada por uma sociedade estatal e nacional, estruturas coletivas, pleno emprego,

rápida industrialização; e segunda modernidade ou modernidade reflexiva. A denominação

“reflexiva” decorre do fato de que as premissas, as contradições, os desacertos da fase

anterior, devem ser refletidos e projetados na busca da construção de uma nova sociedade

com linhas de coerência e de continuidade. O processo de modernização torna-se “reflexivo”

por converter a si mesmo em tema e problema.

De modo semelhante, ao discorrer sobre “emancipação”, Bauman (2001) argumenta

que um processo de liquefação dos poderes ocasionou a passagem do “sistema” para a

“sociedade”, da “política” para as “políticas da vida”, descendo do nível “macro” para o

“micro” do convívio social, tornando a fase atual da modernidade numa versão

individualizada e privatizada da modernidade na qual o peso da trama dos padrões e a

responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos.

Bauman demonstra como a teoria crítica clássica formulada por Adorno e Horkheimer

foi gerada pela experiência de outra modernidade, obcecada pela ordem e pelo controle social,

com normas institucionalizadas e regras habituais, atribuição de deveres e desempenho

supervisionado, a “modernidade sólida”. Esta teoria crítica objetivava a liberdade daqueles

que viviam sob o domínio dos controladores da produção. Tal teoria crítica é vista como

ultrapassada devido às diferenças entre a sociedade alvo de sua crítica e a sociedade de hoje.

“Ela parece ‘pesada’ (contra a ‘leve’ modernidade contemporânea); melhor ainda, ‘sólida’ (e

não ‘fluida’, ‘líquida’ ou ‘liquefeita’); condensada (contra difusa ou ‘capilar’); e, finalmente,

‘sistêmica’ (por oposição a ‘em forma de rede’)” (BAUMAN, 2001, p.33).

Esta modernidade pesada/sólida/condensada/sistêmica da “teoria crítica” era

impregnada por totalitarismo, homogeneizadora, por isso, o objetivo da “teoria crítica” era a

defesa da autonomia, da liberdade de escolha e da autoafirmação humanas. Já a sociedade

moderna atual deu forma à individualidade de tal modo que se tornou numa sociedade na qual

as pessoas conquistaram uma autonomia de jure, mas não uma autonomia de facto; sociedade

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na qual interesses individuais suplantam os coletivos, onde não há espaço para a política com

P maiúsculo, mas somente para a “política vida” do indivíduo; lugar das falsas ilusões do

consumismo exorcizador.

Diante do exposto, propõe-se aqui buscar e apontar uma alternativa para o

entendimento das questões levantadas no debate sobre a Modernidade na teoria social que

ainda gira em torno da oposição entre os teóricos da “pós-modernidade” ou da “segunda-

modernidade” e problematizar a respeito da essência da Modernidade.

1.3.1 O debate sobre a Modernidade

O projeto da Modernidade que equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos

pensadores iluministas para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais, e a

arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas. A ideia era usar o acúmulo de

conhecimento gerado em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária.

O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da

arbitrariedade das calamidades naturais. Ou seja, o desenvolvimento de formas racionais de

organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das

irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem

como do lado sombrio da nossa própria condição humana.

Neste sentido, a racionalização tem sido um conceito fundamental para se entender

todo o desenvolvimento social e o progresso técnico das sociedades, bem como o projeto de

modernidade. Max Weber demonstrou como o progresso da civilização no Ocidente foi

regido por uma redução à lógica da vida social, explicou que a modernidade não só se deriva

da diferenciação da economia capitalista e do Estado, mas também de uma reordenação

racional da cultura e da sociedade. O conceito weberiano de racionalização, todavia, recorre a

duas tendências do desenvolvimento histórico: A primeira delas é a tendência dos processos

sociais e históricos em tornarem-se cada vez mais confiantes no cálculo e no conhecimento

técnico de modo a obter controle sobre o mundo natural e social. A segunda se refere à

tendência da ação humana em libertá-la de sua dependência do pensamento mágico como

forma de compreender o mundo, estabelecendo uma confiança contraposta àquilo que é

imediatamente dado na realidade empírica. Assim, a racionalização constituiu-se como um

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processo dependente das estratégias de ação social e dos ajustes dos meios e fins da ação na

consecução dos objetivos (WEBER, 2012).

Weber (2003), ao refletir sobre o produto da moderna civilização europeia, indaga a

respeito de que combinações de circunstâncias podem ser atribuídas ao fato de na civilização

ocidental, terem surgido fenômenos culturais que apresentam uma linha de desenvolvimento

de significado e valor universais. E como resposta a sua indagação apresenta exemplos de

fenômenos presentes na civilização ocidental, bem como em outras civilizações, porém cujo

diferencial está no nível de racionalidade que permeia esses fenômenos. Tais como o pleno

desenvolvimento da teologia sistemática creditada ao Cristianismo sob a influência helenista,

enquanto havia apenas fragmentos no islamismo e em algumas poucas seitas hindus; na

astronomia, reconhece que embora presente na Babilônia faltavam as bases matemáticas

recebidas primeiramente dos gregos, bem como as provas racionais na geometria, outro

produto do intelecto grego, também criador da mecânica e da física; a total ausência de

fundamentos biológicos e, particularmente, bioquímicos na medicina de outros povos, mas

presente na ocidental; o mesmo pode ser dito sobre a música ocidental (com harmonia

racional, a formação do tom básico sobre três tríades com o terceiro harmônico; orquestra,

com seu núcleo de quarteto de cordas; e etc.), a arquitetura (o uso racional da abóbada gótica

como meio de distribuição de cargas), meios para impressão de literatura, universidades e

academias com uma busca racional, sistemática e especializada da ciência por parte de

pessoal treinado e especializado; um Estado com uma constituição racionalmente redigida,

leis racionalmente ordenada e uma administração coordenada por regras racionais; isto dentre

outros exemplos apresentados por Weber como fenômenos do ocidente que o distinguiam de

sociedades de outras partes do mundo.

Jürgen Habermas (2000, p.3-4) identifica no conteúdo desta indagação o problema que

permeia toda investigação científica da obra de Weber:

Na célebre introdução à coletânea dos seus ensaios sobre sociologia da

religião, Max Weber desenvolve aquele “problema da história universal” ao

qual dedicou toda a obra científica de sua vida, a saber, por que fora da

Europa “nem o desenvolvimento cientifico, nem o artístico, nem o politico,

nem o econômico seguem a mesma via de racionalização que é própria do

Ocidente”. Para Max Weber ainda era evidente a relação interna, e não a

meramente contingente, entre a modernidade e aquilo que designou como

racionalismo ocidental. Descreveu como “racional” aquele processo de

desencantarnento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas

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do mundo, criou uma cultura profana. As ciências empíricas modernas, as

artes tornadas autônomas e as teorias morais e jurídicas fundamentadas em

princípios formaram esferas culturais de valor que possibilitaram processos

de aprendizado de problemas teóricos, estéticos ou prático-morais, segundo

suas respectivas legalidades internas.

É inegável que a racionalidade é um dos principais elementos que caracterizam a

modernidade, pois esta coloca à frente, em todos os seus domínios, a racionalidade. No plano

das relações sociais, isto significa que os indivíduos deveriam, em princípio, manter seu status

social em função apenas de sua própria competência, adquirida pela educação e a formação e

não como herança ou por atributos pessoais. No âmbito da explicação do mundo e dos

fenômenos naturais, sociais ou psíquicos, a racionalidade moderna exige que todas as

afirmações explicativas respondam a critérios precisos do pensamento científico (HERVIEU-

LÉGER, 2008, p.31).

Porém no século XX, a humanidade testemunhou duas guerras mundiais, campos de

concentração e esquadrões da morte, a ameaça de aniquilação nuclear e sua experiência de

Hiroshima e Nagasaki, fazendo com que certamente o otimismo presente no projeto da

Modernidade fosse posto por terra. Isto ocasionou a suspeita de que o projeto do Iluminismo

estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num

sistema de opressão universal em nome da libertação da humanidade. Foi essa a atrevida tese

apresentada por Horkheimer e Adorno em A dialética do esclarecimento (1985), livro

originalmente publicado em 1947.

A modernidade marcada pelo processo de racionalização e consequente

desencantamento do mundo, em termos weberianos, também ver-se obrigada a lidar com

irracionalidades, com corrosões em suas bases epistemológicas. Os problemas relacionados à

Modernidade, acima mencionados, irão culminar na “disputa sobre a modernidade”. Assim,

de um lado estarão aqueles teóricos que partem da premissa de que a sociedade atual já se

situa para além do horizonte moderno. Do outro, aqueles que sustentam que ainda é cedo para

dizer que nos despedimos da modernidade.

No âmbito de diferentes leituras sobre o estatuto da vida social no mundo

contemporâneo, em 1979, o filósofo Jean-François Lyotard publicou a obra La condition

postmoderne, um esforço de situar o conhecimento cientifico na chamada condição “pós-

moderna”. Onde destaca que uma das marcas registradas da pós-modernidade, enquanto

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condição da cultura, está na rejeição as metanarrativas ou aos “grandes relatos”. Seguindo esta

mesma tendência, David Harvey escreve o livro Condição pós-moderna, originalmente

publicado em inglês em 1989 com o título The Condition of Postmodernity: An Enquily into

the Origins of Cultural Change, se constitui numa investigação histórica sobre a natureza do

pós-modernismo, “não tanto como um conjunto de ideias quanto como uma condição

histórica que requeria elucidação [...], um levantamento das ideias dominantes e, como o pós-

modernismo mostra ser um campo minado de noções conflitantes” (HARVEY, 2008, p.9).

Zygmunt Bauman, no livro Modernidade líquida, desenvolve a sua argumentação,

apropriando-se da metáfora da fluidez, característica de líquidos e gases. A metáfora da

“liquidez” ou “fluidez” é tomada pelo autor como adequadas para captar a presente fase da

modernidade. Desta forma, o autor compreende a modernidade a partir de duas fases distintas:

uma fase sólida, pesada, associada ao início do processo de modernização, mudança da

economia feudal para a capitalista; e a fase atual, caracterizada por “liquidez” e “leveza”,

momento no qual a modernidade derreteu os sólidos, fazendo deste evento o seu traço

permanente.

Bauman (1999), em sua tentativa de realizar uma “sociologia da pós-modernidade”,

apresenta como eixo de sua reflexão as categorias de “ordem” e “ambivalência”. A

Modernidade se caracteriza pela tentativa de eliminar a ambivalência através da “ordem”. Se

a Modernidade é a tentativa de superação da ambivalência, a pós-modernidade, ao contrário,

significa conviver com ela. A consciência pós-moderna significa a aceitação da incerteza e da

contingência da própria Modernidade.

As reflexões de Foucault e Bauman, embora diferentes, revelam o elemento

fundamental da abordagem pós-moderna. Tanto num quanto noutro, o projeto de

racionalização da Modernidade é denunciado como tendo produzido o seu contrário. Para

Foucault, a análise da razão nos revela uma sociedade do cárcere, permeada pelo poder e a

disciplina. Já em Bauman, a pós-modernidade é a aceitação da ambivalência da Modernidade.

Em ambos, porém, a proposta de Kant na qual a razão iluminista é apontada como a

maioridade do homem é desmascarada. A razão não trouxe emancipação, progresso ou a

maioridade, trouxe uma nova prisão e a eliminação do outro.

Os já citados, Adorno e Horkheimer (1985) e, mais tarde, Marcuse (1982) fazem uma

crítica radical à racionalidade científica, que, entendida como neutra em relação a valores,

afastou do exame da razão, como subjetivas e irracionais, todas as questões sociais que não

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podiam ser resolvidas na perspectiva da relação meio-fins, e que fugiam do âmbito das

questões relativas à economia e à eficácia dos meios. Para esses autores, a ciência e a técnica,

ao visarem o domínio da natureza e a sua submissão ao homem, já trazem em si o germe da

dominação. Abstraindo de toda a discussão em torno da questão de valores, esse tipo de

racionalidade traz em seu bojo uma forma de dominação política que não lhe é imposta de

fora, mas habita o seu interior, e já está presente no processo de sua própria construção.

Jürgen Habermas, porém, no texto Modernidade, um projeto inacabado – texto de um

discurso proferido em setembro de 1980, quando recebeu o Prêmio Adorno (Habermas, 2000,

p.1) – propõe a retomada crítica dos ideais modernos, que não devem ser abandonados ou

tratados como uma causa perdida, mas ser tratado como um projeto cujos erros devem ser

corrigidos.

Habermas (2000) desenvolverá estes argumentos de um modo mais consistente nas

doze lições que fazem parte do texto O discurso filosófico da modernidade no qual faz uma

crítica aos autores pós-modernos que ao elaborarem um discurso racional para criticar a

própria razão caem em contradição, criando o que Habermas considera aporias

intransponíveis e, em última instância, na queda em direção ao “irracionalismo”.

Habermas busca superar as oposições que atravessam a cultura contemporânea:

“modernidade versus pós-modernidade, racionalismo versus relativismo, universalismo

versus contextualismo, subjetivismo versus objetivismo, humanismo versus ‘morte do

homem’, etc.” (MCCARTHY, 1995, p.10).

Habermas (1987) irá propor o que entende ser uma crítica correta à Modernidade com

uma alternativa as teorias pós-modernas em Teoria da ação comunicativa para salvar a razão

da crítica efetuada pelos autores pós-modernos, estabelece uma nova forma de compreensão

da própria razão. Assim busca superar o conceito de racionalidade instrumental, ampliando o

conceito de razão, para o de uma razão que contém em si as possibilidades de reconciliação

consigo mesma: a razão comunicativa. Deste modo, surge então sua célebre distinção entre a

“racionalidade instrumental” e a “racionalidade comunicativa”. Enquanto no primeiro

modelo, a racionalidade está voltada para o sucesso de seus empreendimentos, o segundo

modelo tem como objetivo o entendimento mútuo entre os participantes. Assim sendo, o

objetivo da racionalidade instrumental é o ganho e o da racionalidade comunicativa é o

entendimento. Ao dividir a racionalidade entre instrumental e comunicativa, Habermas

acredita poder levar adiante o projeto da Modernidade. Não se trata de abandonar o projeto

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iluminista da Modernidade, deixando para trás o seu núcleo central que é a razão. Mas de

denunciar os excessos de um dos lados desta razão, a racionalidade instrumental, e resgatar o

potencial emancipador da racionalidade comunicativa. Desta forma, Habermas propõe uma

“segunda Modernidade”.

1.3.2 Modernidade técnica

Nos textos de Franz Josef Brüseke (2002), o conceito de Modernidade Técnica é, pela

primeira vez, proposto na literatura acadêmica brasileira para evidenciar o caráter técnico da

Modernidade como o seu essencial. O conceito destaca a emergência desta Modernidade para

evocar, por um lado, seu advento processual e histórico, e, por outro, seu alto grau de

instabilidade e imprevisibilidade.

Para Brüseke (2002, p.136), liberdade, igualdade, emancipação do homem da sua

menoridade por meio do uso da razão, progresso social e econômico, superação da fome e das

doenças, paz ao invés da guerra, e também em versão mais recente: individualidade,

autenticidade e autorrealização, reconhecimento da diferença, comunicação, participação, é

um belo catálogo de promessas da modernidade européia que tem a sua versão comunista,

também européia, enfatizando a igualdade em detrimento da liberdade, a satisfação das

necessidades básicas em detrimento das necessidades culturais e espirituais, vangloriando a

verdade absoluta em detrimento da relatividade individual e, assim, coroando as promessas

modernas com uma escatologia histórica.

O nacional-socialismo alemão, outro projeto da modernidade pouco

identificado pelos teóricos como tal, completa a tríade modernizante no

século XX, composto pelo paradigma comunista, nacional-socialista e

democrático ou, para simplificar ainda mais, pelo modelo russo, alemão e

americano. Hoje já estamos à caminho de esquecer que estes modelos eram

altamente competitivos entre si e que era difícil prever que o modelo

americano venceria a disputa. O projeto nacional-socialista era deficiente em

sua autolegitimação política, era um modelo excludente a tal ponto que

somente uma única população tinha chance de ser atendida por ele: os

próprios alemães. Este modelo, no entanto, carregava elementos de

legitimação coletivistas, comunitários e socialistas, que acabaram criando

simpatias também em movimentos políticos fora da própria Alemanha. Além

do fascismo italiano e espanhol, também o populismo latino-americano

carrega traços de ser um “sócio” menor e tímido deste projeto (BRÜSEKE,

2002, p.136).

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Os três tipos ideais da Modernidade técnica (modelos alemão, russo e americano)

apresentam a técnica moderna como o elemento comum entre si. Estes tipos são relevantes

para nortear o debate recente sobre a Modernidade, uma vez que, são os intentos de

dominação do projeto nacional-socialista e o fracasso da utopia comunista que ocasionam,

após a Segunda Guerra, as críticas de tom negativo à Modernidade. Estas críticas provocaram

a emergência dos conceitos de “pós-modernidade” como resposta para a situação do Ocidente

do pós-guerra até os dias atuais e o aparecimento de uma teoria sobre uma “segunda

Modernidade” como tentativa de correção dos fracassos do projeto moderno original. Mas a

Modernidade que está sendo problematizada nestes dois conceitos é a Modernidade como

concebida pelos Iluministas, e esta de acordo com Brüseke é uma Modernidade européia e

não universal. E que no âmago da Modernidade está a técnica, uma vez que, ciência, técnica e

empresa capitalista formaram a tríade que fizeram eclodir a Revolução Industrial,

distinguindo os tempos modernos dos tempos anteriores.

Se procurarmos compreender a modernidade como algo essencialmente

técnico, evitaremos uma discussão sem parâmetros sobre os ideais

iluministas, em que uma boa idéia se opõe a outra. Difícil, embora não

impossível, é contestar os paradigmas da modernidade com sua razão

centrada no sujeito, sua racionalidade e cientificidade, seu clamor pela

igualdade, liberdade e justiça, seu humanismo e sua moralidade universal,

sua valorização do direito, da ordem e do progresso da humanidade

(BRÜSEKE, 2002, p.138).

A teoria da Modernidade técnica é uma retomada da leitura do pensamento de Martin

Heidegger com consequente aplicação à discussão sociológica sobre a Modernidade. Não se

trata de algo já concluído, mas de uma teoria em elaboração. Segundo Brüseke (2001, p.58):

[...] uma nova leitura coloca a teoria da técnica de Heidegger do lado, ou

melhor dito, na tradição das grandes reflexões sobre a causa movens da

sociedade moderna, em especial da tradição da mais-valia relativa de Karl

Marx e da teoria do racionalismo ocidental de Max Weber, com a sua

racionalização crescente (2001, p.58).

Ao discutir o texto A questão da técnica, publicado por Heidegger em 1958 para tratar

a essência da técnica que em nível mais profundo é “desocultamento”, Brüseke (2001, p.62)

afirma:

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Definir a técnica como uma maneira de desocultamento significa entender a

essência da técnica como a verdade do relacionamento do homem com o

mundo. A técnica não é mais algo exterior e exclusivamente instrumental,

mas a maneira como o homem apropria-se e aproxima da natureza (...). Na

história das diversas populações, culturalmente distintas, encontramos

diferentes modos de desocultamento. Estes, por sua vez, são, na sua

diversidade, somente possíveis porque o Ser permite diferentes maneiras de

desocultamento, em um certo sentido, podemos dizer que o Ser mostra-se

sempre de um ângulo diferente, no processo do seu desocultamento.

Além disto, Brüseke destaca que na Modernidade a técnica (que possuía um caráter

finalístico, em definição, um meio para alcançar fins determinados pelo homem) perde o seu

caráter finalístico, tornando-se um meio aberto, fazendo com que a Modernidade transcenda a

racionalidade de fins, que não deixa de existir, para fazer surgir meios que posteriormente

buscam os seus fins. A técnica adquire um caráter contingente, ampliando o horizonte das

possibilidades do mundo do homem, “de maneira que a frase ‘Algo é assim, mas também

poderia ser diferente’ parece expressar a essência da modernidade” (BRÜSEKE, 2010, p.9).

A transformação da técnica em técnica moderna se dá com esta perda do

caráter finalístico da técnica, ou melhor, com a prevalência da técnica como

um meio aberto. Assim, entramos no mundo do imprevisível, onde a

trajetória linear está sendo substituída pelos “saltos quânticos”, onde algo é

necessariamente assim, mas também poderia ser diferente. A técnica

moderna é altamente contingente e contamina, com essa contingência, toda a

sociedade moderna (BRÜSEKE, 2002, p.139).

A técnica, ao ser incluída na percepção da contingência, é revelada como produto de

escolhas ocasionais, impulsionadas por hábitos culturais, interesses econômicos ou

irracionalidades de qualquer espécie.

Assim, para alguns, as leis da história garantem o sentido social da técnica e

do seu desdobramento, mesmo se for negativo. Os progressistas modernistas

encontram aqui solo firme, como igualmente os catastrofistas e críticos

negativos, que prognosticam a inevitabilidade e a necessidade da

autodestruição da sociedade moderna, através da técnica desenvolvida no

seu bojo (2002, p.139).

Em suma, segundo Brüseke (2002, p.140), a técnica moderna deixou, há muito, de ser

simplesmente um meio, a humanidade pensa tecnicamente e desoculta o mundo tecnicamente,

supondo que este mundo se deixa reduzir àquilo que é denominado matéria; supondo também

um mundo objeto que esteja à espera de que o homem descubra os seus mecanismos internos,

para desmontá-lo e recompô-lo ao seu gosto.

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1.4 Conclusão

Umberto Galimberti (2006, p.17) levanta a questão “o que será do homem num

universo de meios que não têm em vista outra coisa senão o aperfeiçoamento e a

potencialização da própria instrumentalização?” O homem num universo de meios é o homem

num universo de possibilidades, no qual as coisas são como são, mas podem ser diferentes,

um universo de contingência, um futuro aberto. Após o fracasso das grandes utopias, é a

técnica moderna que mantém o horizonte aberto para as utopias futuras. A técnica moderna

por seu caráter contingente possibilita à humanidade desocultar o mundo.

Entre as categorias que costumamos usar para nos orientarmos no mundo, a

única que nos põe à altura do cenário aberto pela técnica é a categoria do

absoluto. “Absoluto” significa livre de qualquer vínculo (solutus ab),

portanto, de todo horizonte de fins, de qualquer produção de sentido, de todo

limite e condicionamento (GALIMBERTI, 2006, p.15-16).

O entendimento de que a humanidade está situada no horizonte de uma Modernidade

técnica oferece condições teóricas tanto para se compreender a Modernidade na sua origem

quanto para lidar com os temas que ocasionaram o surgimento das teorias da “pós-

modernidade” e da “segunda modernidade”, pois como núcleo central estas teorias trazem

uma crítica à razão. O que a teoria da Modernidade Técnica tem a mostrar é que as

possibilidades positivas e negativas da Modernidade são determinadas pelo caráter

contingente da técnica. É ela que fornece as oportunidades e os riscos da Modernidade.

Os espantosos surtos irracionalizantes no século XX somente aproximam-se

de uma compreensão analítica quando começamos a entender que a

modernidade é na sua raiz técnica. A técnica, por sua vez, contribui em

função de seu caráter contingente para uma destituição da predominância da

racionalidade de fins, tão característica da fase histórica na qual surgiu o

capitalismo, por uma racionalidade contingente. Essa racionalidade

desoculta científica e tecnicamente o Ser, sem dispor de um fim que daria

direção ou identificaria limites. Sem direção e limites a modernidade técnica

desenvolve-se racionalmente, sem que haja uma proteção contra oscilações

irracionalizantes que castigam cada vez mais seu percurso (BRÜSEKE,

2002, p.141).

Neste sentido, Galimberti (2006, p.12-13) acrescenta:

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Se a técnica se torna esse horizonte último a partir do qual se desvelam todos

os campos da experiência, se não é mais a experiência que, reiterada,

comanda o procedimento técnico, mas é a técnica que se coloca como

condição a decidir o modo de se fazer a experiência, então assistimos a uma

reviravolta pela qual o sujeito da história não é mais o homem, e sim a

técnica, que, emancipando-se da condição de mero “instrumento”, dispõe da

natureza como um fundo e do homem como um funcionário seu. Isso

comporta uma revisão radical dos tradicionais modos de entender a razão, a

verdade, a ideologia, a política, a ética, a natureza, a religião e a própria

história.

A técnica como fornecedora das oportunidades e dos riscos da modernidade, porém

não somente os riscos que provêm do culto das forças do real, como alerta Beck, mas

também os riscos do culto das forças do bem e do culto das forças originárias (LOPARIC,

1994). Em meio a este alerta, Brüseke (2002, p.141) acrescenta:

As grandes catástrofes do século XX, o século mais sangrento na história da

humanidade, estão intimamente ligadas tanto com a sobrevalorização das

forças do bem como das forças originárias. A primeira e a segunda guerra

mundiais tiraram toda a sua força da modernidade técnica das sociedades

contemporâneas, e sua mobilização totalitária ganhou força tanto de ideais

nobres como de necessidades arcaicas. O nacional-socialismo, com a sua

relação pré-lógica com o solo e o sangue, seu culto à comunidade dos

soldados, dos camponeses e dos operários é o maior exemplo disso. Mas

também o culto das forças do bem fez as suas vítimas. A cumplicidade

intelectual de grandes cientistas do Ocidente e do Oriente com o regime

soviético – nos anos de 1920, 1930 e 1940, tão inescrupuloso quanto seu

adversário nacional-socialista – explica-se pela adesão à sua autolegitimação

classista-universalizante. Esta, por sua vez, consistiu basicamente no

argumento que a causa nobre, a libertação dos operários e dos camponeses

das restrições historicamente impostas, justificava temporariamente a

injustiça, a desigualdade e a ditadura (Courtois, 1997).

Ao pensar o modo como a técnica possibilita a revisão de cenários históricos e desloca

o homem da posição de sujeito da história para a de funcionário da técnica, Galimberti (2006,

p.14) expõe a forma como a técnica comporta uma revisão radical dos modos tradicionais de

entender a ética:

A ética, como forma de agir em vista de fins, sente a sua impotência no

mundo da técnica, regulado pelo fazer como pura produção de resultados,

em que efeitos se adicionam de tal modo que os resultados finais não se

remetem mais às intenções dos agentes iniciais. Isso significa que não é mais

a ética que escolhe os fins e encarrega a técnica de encontrar os meios, mas é

a técnica que, assumindo como fins os resultados dos seus procedimentos,

condiciona a ética, obrigando-a a tomar posição sobre uma realidade, não

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mais natural e sim artificial, que a técnica não cessa de construir e tornar

possível, qualquer que seja a posição assumida pela ética.

A Modernidade, entendida como essencialmente técnica, faz compreender melhor os

fenômenos contingentes e irracionais gerados em seu seio. Isto provoca um esvaziamento de

tal magnitude que torna a técnica imune à ética, fazendo com que se adapte a todos os três

tipos ideais apresentados (o alemão, o russo e o americano).

Diante destas questões até agora suscitadas, percebe-se que o problema perene da

condição humana é a contingência, o fato que algo é necessariamente como é, mas, também

poderia ser diferente. Muito antes do surgimento da Modernidade Técnica que colocou a

mudança, a inovação, a construção e a destruição, no centro da dinâmica social, o homem

percebeu essa conditio sine qua non da sua existência.

Por meio da técnica, a humanidade intervém na natureza ansiosa por prever e controlar

o devir, o movimento, e assim perpetuar-se. Por sua vez, a contingência inerente à técnica

moderna amplia as possibilidades, fortalecendo a crença de que tudo é possível de ser

realizado tecnicamente, até mesmo o anseio por perpetuar-se. A técnica, deste modo, adquire

significado religioso, alimentando a crença de que poderia conceder as possibilidades para

redenção dos seres humanos, que no caso dos pós-humanistas de modo similar aos gnósticos,

consiste na libertação da condição corpórea. Assim, a técnica concederia as condições para

que se realize o triunfo final da humanidade, limitada por sua condição orgânica, biológica. A

técnica possibilitaria a consumação escatológica, a inauguração de uma nova era pós-

biológica, “novos céus e uma nova terra, as coisas velhas passaram, eis que tudo se fez novo”.

Uma era livre de doenças, na qual os paralíticos voltarão a andar, cegos a enxergar e os mudos

a falar; uma era onde não há choro ou luto, porque a morte não existirá; uma era na qual as

deficiências serão eliminadas e a humanidade experimentará a emergência de todas as suas

potencialidades.

Este tom escatológico e apocalíptico está sendo utilizado de forma intencional como

alerta para o modo como a existência, em meio a um contexto tecnológico, é alimentada por

um imaginário religioso. Religioso, porém, em sua versão dessacralizada, pois não serão

poderes divinos que operarão tais transformações, mas a própria humanidade através do

conhecimento (gnosis) técnico-científico. A noção de corporeidade, corpo como construção

social, parece se impor ao ponto de subordinar totalmente o corpo biológico, negando sua

relevância, sua realidade enquanto fenômeno da natureza. Neste sentido, há uma posição

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extremada que através da ênfase sobre o culturalmente construído restringe o papel biológico

na formação de noções sobre o corpo. Desta noção de corpo culturalmente construído, através

das possibilidades geradas pela técnica, passa-se a concretização de corpo tecnicamente

construído, não somente como forma de conceber o corpo, mas pelo fortalecimento da crença

de que o que até então era apenas um conteúdo de consciência, uma idealização, pode tornar-

se algo real. O imaginado pode ser materializado, construído de fato tecnicamente.

Há o apagamento pelas normas de etiqueta de elementos que identificam a

corporeidade: odores do suor, flatulências, arroto, roncos estomacais, escarros, secreções

nasais, dentre outros. Além destes, são considerados embaraços, para moderna representação

do corpo, elementos que denunciam fragilidade e limitação: velhice, doenças, deformidades e

deficiências físicas, por exemplo. Há também como resultado de uma idealização do corpo, o

repúdio ao que não se enquadra no ideal de corpo jovem, malhado na academia, bronzeado.

Neste sentido, as intervenções técnico-cirúrgicas visam aperfeiçoar, adaptar aos padrões

estéticos, corrigir, melhorar o rascunho corporal. Assim as tecnologias geram possibilidades

ou a ilusão de que tudo é possível. Uma vez que a contingência está fortemente atrelada à

técnica moderna. Ao criar possibilidades reais de se moldar o corpo ao desejo, alimenta-se a

crença de que o ser humano pode projetar-se e executar o projeto de “auto-melhoramento”,

transmutar o que não lhe agrada. Ao gerar a ilusão de infinitas possibilidades, alimenta

imaginários sobre o futuro dos seres humanos e a completa eliminação do que se julgue

limitador da auto-transcendência humana. Dentre estes limitadores o corpo e a própria

condição humana. Eis um eschaton gnóstico, a consumação da história e a próxima etapa no

processo evolutivo possibilitados pelo conhecimento (gnosis).

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CAPÍTULO 2

MODERNIDADE E SECULARIZAÇÃO: QUESTÕES FILOSÓFICAS

Já no início do século XX Georg Simmel (apud MARRAMAO, 1997, p.105) observou

que “Moderno” e “moda” possuem uma ligação não apenas terminológica, mas uma ligação

intrínseca, pois ambos os termos descendem do advérbio latino modo, cujo significado é

“agora mesmo”, “há pouco”, “acabou de acontecer”. E, como consequência, Simmel destaca

que a modernidade é antes de qualquer coisa a época na qual a circulação das mercadorias e

das ideias, bem como a crescente mobilidade social, ao universalizarem-se a todos os círculos

da vida social, focalizam o valor do novo, criam as condições para a identificação do valor

com a novidade como tal.

Considerando a forma como esta inconfundível proximidade entre moderno e

novidade, não raramente, servem como um paradigma hermenêutico, quando a modernidade

está sendo objeto de investigação. Assim, não é sem razão que Henrique Vaz (2012, p.18)

declara:

Já mencionamos a forma desse paradigma, a saber: uma dialética entre

continuidade e descontinuidade, que acompanha, aliás, toda a evolução da

razão ocidental: continuidade e descontinuidade entre mito e razão

filosófica no mundo antigo, entre fé e razão clássica na Idade Média, entre

fé e razão moderna no mundo pós-medieval. No uso desse paradigma,

trata-se de definir a linha de ruptura que separa a emergência do realmente

novo e o progressivo esmaecimento do antigo. Na última das modernidades

– a que estamos vivendo –, a interpretação da ruptura nos interpela

particularmente, pois nela é a interpretação da nossa própria existência

histórica que está em jogo.

Ora, o paradigma da ruptura só é pensável na pressuposição de uma

continuidade que se rompe. Essa pressuposição nos impõe pensar o novo

como negação dialética do antigo que lhe dá origem. No acontecer

histórico não há, evidentemente, nenhuma emergência do absolutamente

novo. A continuidade do tempo subjaz a todas as mudanças. O paradigma

ruptura deve ser inicialmente formulado segundo os termos da relação que

continua a unir o antigo e o novo no desenrolar histórico da sua separação.

Como pode ser observado, Vaz destaca que compreender o processo de ruptura entre o

antigo e o novo na modernidade constitui-se extremamente relevante para o entendimento

desta dialética entre continuidade e descontinuidade no desenvolvimento da razão ocidental.

Isto levando em conta que a modernidade ocidental é comumente interpretada a partir da

ruptura com a Idade Média latina. Uma evidência desta interpretação jaz na origem da

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expressão Idade Média (media aetas), elaborada pelos humanistas do Renascimento já

contendo um juízo de valor, referindo-se ao hiato de civilização que é necessário saltar para se

alcançar a civilização antiga da qual os humanistas se consideravam herdeiros. Além disto,

não esquecendo que a Idade Média latina é reconhecida como realização de uma civilização

cristã. Deste modo, Vaz (2012, p.19) constata:

A ruptura presente na formação da modernidade passa a ser entendida, desta

sorte, como ruptura com uma determinada figura histórica do cristianismo,

ruptura esta que avançará no século XVIII para formas de ruptura radical

com toda a tradição cristã. Tal processo foi antes designado com o termo

hoje raro de “secularização”. É justamente na interpretação dos vínculos

históricos que ligam o mundo moderno ao mundo cristão medieval que são

propostos diversos paradigmas e, neles, as categorias de uma axiologia da

modernidade.

Isto exposto, neste capítulo, pretende-se examinar a modernidade em sua relação com

o fenômeno da secularização. E isto sem desconsiderar a genealogia do conceito de

secularização, bem como o debate filosófico que percebe na novidade moderna a permanência

de categorias teológicas transformadas com relação ao seu sentido original. E assim, numa

forma secularizada, essas categorias teológicas continuam a exercer influência sobre o mundo

social e as experiências da existência humana que são formadoras do modo de conceber a

realidade, a auto-interpretação da sociedade.

2.1 Semântica da secularização

A palavra latina saeculum (em termos lexicais, segundo Ernesto Faria expõe no

verbete correspondente a esta palavra em seu Dicionário latino-português) pode assumir os

seguintes significados:

I – Sent. Próprio: 1) Geração, gerações (geralmente no pl) (Lucr. 1,21). Daí:

2) Duração de uma geração, século, espaço de cem anos (Hor. O. 4, 6, 42) II

– Sent. Figurado: 3) Longo período de duração indeterminada, longa duração

(Cíc. Rep. 2, 20). 4) O século, o tempo em que se vive, tempo, idade, época

(Cíc. Div. 1, 36). 5) Espírito do século, costumes (Tác. Germ. 19).

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Em termos, porém, de sua gênese e extensão semântica, bem como no tocante a sua

relação com o termo “secularização” e com a Modernidade, saeculum é uma expressão que,

ao longo dos últimos séculos, ampliou a sua extensão semântica: primeiramente ao campo

político-jurídico, depois ao campo da filosofia e teologia da história, enfim ao campo ético e

da sociologia. De acordo com Giacomo Marramao (1997, p.15-16):

Através destes deslocamentos e ampliações de significado, ela ascendeu

gradualmente ao status de categoria genealógica capaz de sintetizar ou

expressar unitariamente o desenvolvimento histórico da sociedade ocidental

moderna, a partir de suas raízes (judaico-) cristãs.

Ao mesmo tempo, justamente em consequência de tal ampliação a conceito

de filosofia da história – aplicável, em razão de sua generalidade, tanto à

política quanto às “ciências do espírito”, tanto à teologia quanto à história da

cultura e à filosofia – “secularização” tornou-se hoje um termo um tanto

difuso quanto indeterminado e controverso. [...].

Interpretada ora em termos de descristianização (ou seja, de ruptura e

profanação modernas dos princípios da Christianitas), ora em termos de

dessacralização (cujo núcleo essencial, ao invés, estaria já presente desde as

origens na mensagem cristã de salvação), a categoria de secularização foi

capaz de fornecer munição argumentativa à crítica cristã quanto à anticristã

da civilização.

Marramao (1997) identifica (na gênese do conceito de secularização, principalmente

no que se refere a sua derivação de sentido tanto do direito canônico quanto do direito estatal)

que este conceito recebe seu significado essencial da oposição entre poder temporal e poder

espiritual, cujo pano de fundo histórico-cultural desta antítese compreende-se à luz da

doutrina agostiniana das duas cidades, a Cidade Terrena e a Cidade Celeste.

No que se refere a esta relação derivativa de sentidos, destaca-se que do ponto de vista

histórico conceitual o termo secularização possui um núcleo institucional na saecularisatio do

Codex Juris Canonici, isto no tocante a seu vínculo de sentido com o direito canônico; bem

como, no que toca a derivação de sentido do direito estatal, o termo está associado ao

emprego da expressão séculariser utilizada por Longueville, delegado francês durante as

negociações para a Paz de Westphalia, em Münster, maio de 1646, para assinalar a passagem

de propriedades religiosas para mãos seculares. Sobre isto, Marramao (1995, p.58-59), no

livro Poder e secularização, em nota de final de capítulo, esclarece:

O termo “secularizar” foi usado provavelmente pela primeira vez em

Münster, no curso das tratativas para a paz de Westfalia, pelo delegado

francês Longuiville: cf. J. G. von Meiern, Acta Pacis Westphaliensis publica,

oder Wesphäl: Friedens-Hanlungen und Geschichte, Hannover, 1734, v.II,

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p.637. Inicialmente o conceito de saecularisatio tem, todavia, um valor

neutro: não indica somente um ato de expropriação e de espólio, mas

também atos de “secularização” levados a cabo voluntariamente pela própria

instituição eclesiástica, como, por exemplo, a fundação de universidades ou

a supressão de conventos objetivando promover os estudos acadêmicos, em

geral de orientação teológica (cf. E. Hegel, “Fürstenberg und die

theologische Fakultät Münster”, in Westfalen, v.XXXIX, 1961, n.1,2, p.53

ss.), ou ainda o artigo do Codex Juris Canonici que contempla a

possibilidade de retorno da comunidade monástica ao “mundo” (cf. W. M.

Plöchl, Geschichte des Kirchenrechts, Wien-München, 1959, v.III, p.542;

onde se sublinha o uso tardio de saecularisatio, o qual remontaria ao fim do

século XVIII).

O emprego da expressão saecularisatio está documentado já a partir dos últimos

decênios do século XVI nas disputas canônicas francesas com o significado de passagem de

um religioso “regular” ao estado “secular”, ou, de modo mais geral, de “redução à vida laica”

de quem recebeu ordens religiosas ou vive segundo regra de um convento. Isto demonstrando

que, desde os primórdios, o termo secularização está marcado pela antítese regular/secular,

que em si, ainda que virtualmente, já contém “a metamorfose moderna dos pares paulinos

celeste/terreno, contemplativo/ativo, espiritual/mundano” (MARRAMAO, 1997, p.17-18).

Disto, observa-se a primeira flexão semântica do termo, que consiste na sua extensão

ao campo político-jurídico. Isto ocasionou o entendimento de secularização como o processo

de afirmação de uma jurisdição secular, laica e estatal, sobre amplos setores da vida social que

estiveram até então sob o domínio da instituição eclesiástica.

Neste sentido, poderíamos afirmar que a Paz de Westphalia não somente põe

fim à Guerra dos Trinta Anos, como também conclui simbolicamente o

inteiro ciclo histórico de aliança estável entre poder político e religião cristã

que, por obra do imperador romano Constantino, havia-se inaugurado com o

Edito de Milão de 313 (MARRAMAO, 1997, p.19).

Para Santo Agostinho (A Cidade de Deus, 3, L.XIX, XVII), a Cidade Celeste é

constituída pela “parte que peregrina nesta vida mortal, e vive da fé”, enquanto que Cidade

Terrena “não vive em conformidade com a fé”; a “Cidade Celeste, enquanto peregrina na

Terra, recruta cidadãos de todos os povos e constitui uma sociedade peregrina de todas as

línguas”. Assim, a Cidade Celeste coexiste no mundo com a Cidade Terrena, porém como

peregrina e orientada por um princípio transcendente, uma vez que se reconhece como a

“comunidade que em perfeita ordem e harmonia goza de Deus e da mútua companhia em

Deus”; orienta-se por uma escatologia que reconhece as coisas do mundo como transitórias e

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de menor valor quando comparadas com as realidades celestes, assim vive no meio da Cidade

Terrena “a sua como que cativa vida de peregrinação, mas já com a promessa de redenção e

com o dom espiritual como que em garantia, ela não hesita em obedecer às leis da Cidade

Terrestre”, “para tudo o que lhe respeita, a concórdia das duas Cidades se mantenha”; a

Cidade Celeste “conserva e favorece tudo o que de diverso nos diversos países tende para o

mesmo e único fim – a paz terrena – contanto que tudo isso não impeça a religião que nos

ensina a adorar o único e supremo Deus verdadeiro”; a Cidade Celeste orienta-se por uma

expectativa escatológica por uma redenção que transcende este mundo, cujo princípio é

espiritual e eterno.

Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus

— a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si — a celeste.

Aquela glorifica-se em si própria — esta no Senhor;

aquela solicita dos homens a glória — a maior glória desta consiste em ter

Deus como testemunha da sua consciência;

aquela na sua glória levanta a cabeça — esta diz ao seu Deus:

Tu és a minha glória, tu levantas a minha cabeça;

aquela nos seus príncipes ou nas nações que subjuga, e dominada pela

paixão de dominar — nesta servem mutuamente na caridade: os chefes

dirigindo, os súbditos obedecendo;

aquela ama a sua própria força nos seus potentados — esta diz ao seu Deus:

Amar-te-ei, Senhor, minha fortaleza;

por isso, naquela, os sábios vivem com o ao homem apraz ao procurarem os

bens do corpo, ou da alma, ou dos dois: e os que puderam conhecer a Deus

não o glorificaram como Deus, nem lhe prestaram graças, mas perderam-se

nos seus vãos pensamentos e obscureceram o seu coração insensato.

Gabaram-se de serem sábios,

(isto é, exaltando-se na sua sabedoria sob o império do orgulho)

tomaram-se loucos — e substituíram a glória de Deus incorruptível por

imagens representando o homem corruptível, aves, quadrúpedes e serpentes,

(porque à adoração de tais ídolos conduziram os povos ou nisso os seguiram)

e veneraram e prestaram culto a criaturas em vez de ao Criador que é

bendito para sempre,

— mas nesta só há um a sabedoria no homem: a piedade que presta ao

verdadeiro Deus o culto que lhe é devido e que espera, com o recom pensa

na sociedade dos santos (tanto dos homens com o dos anjos),

que Deus seja tudo em todos (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, 2, L.XIV,

XXVIII).

Este pano de fundo histórico-conceitual, estabelecido através do “arquétipo teológico-

político do milenar confronto entre poder temporal e poder espiritual” (MARRAMAO, 1997,

p.20), estruturou a cultura do Ocidente medieval, estendendo a sua influência também sobre a

gênese do processo jurídico-político moderno.

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O cenário que se abre na metade do século XVII, a partir do momento em

que a Paz de Westphalia põe fim no continente europeu, à longa e

sanguinosa época das guerras civis confessionais, parece inverter

definitivamente a lógica daquele processo, destruindo o ideal universalista

da respublica christiana fundado no plurissecular conúbio entre Céu e Terra,

autoritas pontifícia e potestas imperial. A Igreja perde o seu papel de

custódia essencial do poder político, enquanto este último se vê livre das

responsabilidades inerentes diretamente à esfera religiosa (MARRAMAO,

1997, p.20-21).

Além disto, como consequência deste processo, no plano histórico, ocorre um

fenômeno de intercâmbio simbólico:

O conflito entre os dois poderes não dá lugar a uma diferenciação, mas antes

a um jogo de espelhos no qual um tende a assumir as prerrogativas do outro:

a Igreja se “estataliza” (assumindo um caráter de centralização e

racionalização burocrática), enquanto o Estado se “eclesiasticiza”

(desenvolvendo características sacrais e ritualizando os próprios

procedimentos) (MARRAMAO, 1997, p.22-23).

Ainda como consequência desta extensão semântica do termo secularização, este

transpôs os limites de conceito “juscanônico e juspublicista para transformar-se em categoria

geral indissoluvelmente coligada com o novo conceito de tempo histórico” (MARRAMAO,

1997, p.23), indo além da acepção político-jurídica até uma acepção metafórica que diz

respeito diretamente à dimensão filosófica.

O desdobramento da interioridade numa perspectiva antropocêntrica

representa portanto o indicador da decisão de assumir a “interrupção” dando-

lhe uma conotação positiva (com a adoção consciente das relativas margens

de risco), transferindo do diálogo Deus-homem para a relação criatividade

humana-natureza o eixo da tensão. Mas a criatividade é a capacidade de

produzir formas, artifícios para direcionar ou contrastar os eventos: sejam

esses naturais ou humanos (também as ações humanas se apresentam à

consciência “no balanço” do Renascimento como “natureza”). Nasce aqui o

mitologema moderno do homo faber. Não obstante a ênfase naturalizante da

sua nomenclatura, ele na realidade representa justamente aquele elogio das

formas, do artifício, que tem sua máxima expressão inovativa – e, num certo

sentido, a sua cifra – no conceito renascentista de política. A política não é

um produto espontâneo, mas inventivo: construção altamente improvável,

possível somente àquela virtude “extraordinária” capaz de prever-controlar

as “coisas”. A “política da Renascença” exibe aqui seus peculiares traços de

cientificidade e autonomia: caracteres incontestavelmente novos, que não

tem precedente nem na Antiguidade nem no Medievo. Todavia, não basta

enunciá-los: é preciso circunscrevê-lo e “predicá-los”. A política é:

científica, na medida em que diante dela a civitas humana se configura com

a mesma dimensão de contingência de um fenômeno natural, como um

sistema de forças e de eventos tipologicamente ordenáveis e delimitáveis em

conformidade às leis; autônoma, na medida em que é virtualmente conforme

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a um ideal de coerência interna e de autonomia lógica do discurso

(MARRAMAO, 1995, p.89-90).

Na Modernidade, conforme Marramao (1995), o homo faber, indo além da sua

faculdade de produzir artefatos, compreende-se capaz de conduzir os rumos da própria

história. Inicialmente, concebendo-se capaz de intervir na “natureza”, por enquanto através de

uma reestruturação prospectiva do seu espaço, ainda em visão fundamentalmente sincrônica e

não através de racionalização futurológica do tempo. Assim, sobre o reconhecimento teórico-

prático da fratura entre desígnio providencial e vicissitudes terrenas, o homem não reage mais

com sofrimento e desorientação diante das adversidades terrenas, mas as toma como um dado

para seu projeto de como intervir no mundo. Ou seja, a virtú é preferível a ter que aguardar

pela fortuna, ou ainda através da virtú se pode desafiar a fortuna.

A apoliticidade natural, neste sentido, seria a condição do homem que permanece

passivo diante dos acontecimentos, assistindo a sua repetição circular, em movimento

perpétuo; é na politicidade artificial que o homem se reconhece como capaz de agir com foco

no futuro, numa linearidade. Para Marramao (1995), esta politicidade do sujeito ocidental é

representativa da secularização do conceito cristão agostiniano de interioridade,

compreendida agora em termos ego cogito, centralidade do sujeito que pensa.

O homo faber como um fabricante da história orientada para o futuro, tendo como

foco a noção de progresso, que, por sua vez, consiste na versão secularizada da doutrina cristã

da providência, cuja perspectiva histórica é futurológica e linear. Esta noção consiste no

entendimento que Deus dispõe e dirige os rumos da história, cujo fundamento é a crença de

que Deus determina os eventos futuros e a consumação da história, em termos de uma

parousía, vinda ou retorno de Cristo no fim dos tempos, inaugurando novos céus e nova terra.

Esta noção, porém, ainda está vinculada a um conceito de secularização como versão

terrena ou mundana de elementos da doutrina cristã que sempre estiveram relacionados com a

eternidade e com a transcendência. Como tentativa de superar os pares agostinianos de

eternidade e século, além e mundo, impõe-se à secularização a categoria unitária de “história

universal” na qual a ideia de eschaton como um ponto terminal do curso do mundo que

irrompe desde a eternidade é absorvida por um conceito absoluto e processual de História.

Assim, o espiritual, o transcendente, o eterno, o sacro, são mundanizados; o além e o aquém

estão inclusos na razão, substância como força infinita que marcha na história universal; o

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espiritual é mundanizado/secularizado através do conceito de história universal (HEGEL,

2008).

Deus, o governante supremo da história, cede lugar para um processo universal

conduzido por desígnios da racionalidade que jaz no que se compreende pela categoria

“história universal”. Mesmo assim esta categoria, através de seu vínculo com a noção de

razão que conduz os seus processos, continua atrelada a premissa de que os acontecimentos e

sucessões históricos se unificam e dirigem na direção de um sentido ou objetivo final. E ao se

pensar em sentido/objetivo final ou último, considere-se que se lida com o foco numa meta

final que transcende os acontecimentos, algo além de qualquer sentido ou valor que os

acontecimentos históricos possuam em si mesmos. A história pensada desta forma, tendo um

horizonte temporal orientado para uma meta final, continua atrelada a noção transcendente de

futuro escatológico, uma história que possui um ponto de partida, um “alfa” e um fim (telos),

objetivo, finalidade, um “ômega”.

O futuro é o “verdadeiro” foco da história, desde que a verdade resida na

base religiosa do Ocidente cristão, cuja existência histórica é, na verdade,

determinada por uma motivação escatológica, de Isaías a Marx, de Santo

Agostinho a Hegel, e de Joaquim a Schelling. O significado desta visão de

um fim derradeiro, como simultaneamente finis e telos, é o facto de

constituir um esquema de ordem e sentido progressivos, um esquema que

tem sido capaz de vencer o medo antigo no fado e na fortuna. O eschaton

não só delimita o processo da história através de um fim, como o articula e

preenche também com um objectivo definido. A influência do pensamento

escatológico sobre a consciência histórica do Ocidente situa-se ao nível da

conquista do fluxo do tempo histórico, que se desgasta e devora as suas

próprias criações a menos que seja definido por um fim derradeiro.

Comparável à bussola que nos orienta no espaço, e assim nos permite

conquistá-lo, a bússola escatológica orienta no tempo indicando o Reino de

Deus como objectivo e fim derradeiro (LÖWITH, 1991, p.30-31).

As mitologias das culturas tradicionais fundamentam-se na crença de que o cosmo se

degrada e, em razão disto, necessita ser renovado/recriado periodicamente, deste modo, o

mito cosmogônico serve como modelo exemplar para esta renovação do cosmo (ELIADE,

2011). Por sua vez, a perspectiva judaico-cristã da história está impulsionada para o futuro,

isto devido ao seu vínculo com o profetismo vetero-testamentário que tem no profeta um

visionário e proclamador de eventos revelados por Deus e que estão por vir, tal premissa fez

com que o futuro e não um retorno à cosmogonia se tornasse o conteúdo principal da

experiência histórica do Ocidente cristão. Nesta experiência, não se vislumbra um retorno a

uma época mitológica dourada, nutre-se da esperança pela criação de “um novo céu e de uma

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nova terra”, em outros termos, tal existência histórica é constituída por um futuro

escatológico.

2.2 Modernidade: permanência de categorias teológicas secularizadas

A dialética que acompanha a evolução do pensamento ocidental se traduz entre

continuidade e descontinuidade, seja entre mito e razão filosófica no mundo antigo, entre fé e

razão clássica na Idade Média, entre fé e razão moderna no mundo pós-medieval. E ao

considerar este último processo dialético, comumente se interpreta a Modernidade ocidental a

partir de uma ruptura com a civilização cristã que avançará no século XVIII para formas ainda

mais radicais (VAZ, 2012). Tal processo tem sido designado pelo termo “secularização”,

examinado com mais detalhes no tópico anterior.

Conforme observado na análise semântico-genética do termo “secularização”, este

pressupõe um vínculo com conceitos teológicos através de um progressivo “historicizar-se” e

“mundanizar-se” destes conceitos que outrora apontavam para uma noção pós-histórica,

atemporal e transcendente.

2.2.1 A transposição de conceitos teológicos para o plano político-jurídico

“Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”, com esta frase Carl Schmitt

inicia o primeiro capítulo do seu livro Teologia política, publicado em 1922, no qual assume

uma analogia entre a noção política de soberania e a noção teológica de poder absoluto de

Deus. Em sua abordagem do tema, evidencia-se o pressuposto que reconhece a relevância do

conceito de secularização para o entendimento da Modernidade no Ocidente, algo que Schmitt

(2009, p.11) explicita já na apresentação da Teologia política:

O grande problema dos distintos níveis do processo de secularização – do

teológico passando pelo metafísico para chegar ao moral e ao econômico –

eu discuti isto em minha palestra sobre “a época das neutralizações e

despolitizações”, pronunciada em outubro de 1929 em Barcelona. Entre os

teólogos protestantes, Heinrich Forsthoff e Friedrich Gogarten mostraram

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em particular que sem o conceito de secularização não é possível em geral

compreender os últimos séculos da nossa história.

Schmitt aborda o conceito de soberania como um conceito limite, um conceito da

esfera mais extrema. E, exatamente por isto, expõe que a definição de soberania não pode se

conectar a situação normal, mas a situação limite. Por semelhante modo, o “estado de

exceção”, enquanto conceito geral da doutrina do Estado, não é um decreto fruto de uma

necessidade qualquer e nem tão pouco um estado de sítio, algo que esteja submetido à norma

jurídica.

Uma razão sistemática lógico-jurídica faz do estado de exceção, em sentido

eminente, a definição de soberania. Pois a decisão sobre a exceção é decisão

em sentido eminente. Com efeito, uma norma geral, representada, por

exemplo, em um princípio jurídico válido normal, nunca pode captar uma

exceção absoluta nem, portanto, fundamentar a decisão na qual está dado um

caso excepcional autêntico (SCHMITT, 2009, p.13).

Soberania, declara Schmitt, “é o poder supremo e originário de mandar”, algo claro o

suficiente para que esteja fora de discussão, porém o que precisa ser discutido é a sua

aplicação concreta numa situação na qual o interesse público ou do Estado, ou até mesmo a

ordem e a própria existência do Estado estejam sendo ameaçadas. Isto se relaciona com um

caso excepcional, que não está previsto na ordem jurídica vigente, que, na melhor das

hipóteses, pode ser qualificado como caso de extrema necessidade, de perigo para existência

do Estado, mas não sendo possível rigorosamente determinar a sua natureza, ou quando irá

acontecer. Tal excepcionalidade traz a tona o problema do sujeito ou o problema mesmo da

soberania, não ter como prever com clareza quando o caso é de necessidade extrema e está

preste a dominar a situação, criando a necessidade de conceder poder ilimitado a alguém para

decidir. Claro que não se trata de alguém com competências no sentido que isto possui dentro

do sistema do Estado de direito, pois o “moderno Estado de direito tende a eliminar o

soberano neste sentido” (SCHMITT, 2009, p.14).

O Estado de direito através de regulamentações e mediante a divisão de competências

e de controle recíproco procura adiar o máximo possível o problema da soberania, porém tais

medidas não eliminam o problema da soberania em si, consegue-se apenas adiar ou relegar o

problema para o segundo plano. O Estado de direito, deste modo, lida com o que é normal e

por consequência conhecido, porém diante do caso extremo, extraordinário, não saberá o que

fazer. O Estado de exceção requer o poder para lidar com uma situação anormal e que

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extrapola o ordinário, uma situação na qual o caos se estabeleceu e a norma não pode ser

aplicada ao caos, pois “a norma exige um meio homogêneo”. Isto requer a ação de alguém

que detenha o poder de decidir e estabelecer a ordem novamente.

Porque toda ordem descansa sobre uma decisão, e também o conceito de

ordem jurídica, que irrefletidamente é utilizado como coisa evidente, abriga

em seu peito o antagonismo dos dois elementos díspares do jurídico.

Também a ordem jurídica, como toda a ordem, descansa em uma decisão,

não em uma norma (SCHMITT, 2009, p.16).

A moderna ideia de Estado substitui o poder pessoal de reis, príncipes, imperadores ou

qualquer soberano por um império das normas jurídicas, assim a identidade do Estado se

confunde com a ordem jurídica. Em outras palavras, o conceito de Estado como um fenômeno

de poder é determinado pela condição de que se reconheça que este poder somente se revela

no direito e somente pode afirmar sua validade através da promulgação de uma norma

jurídica. “Considerado juridicamente, o Estado é idêntico a sua Constituição, ou seja, à norma

fundamental unitária” (SCHMITT, 2009, p.23). Assim, o Estado de Direito contrapõe a

autoridade pessoal à validade objetiva de uma norma jurídica.

As mais variadas teorias sobre o conceito de soberania – Krabbe, Preuss e

Kelsen – reclamam uma objetividade desta linhagem, concordando todas em

que do conceito de Estado tem que desaparecer todo elemento pessoal. Entre

personalidade e mandato há, a seus olhos, um nexo evidente. Segundo

Kelsen, a ideia de um direito pessoal a dar ordens (mandatos) é o erro

característico da doutrina da soberania do Estado; qualifica de “subjetivista”

a teoria da primazia da ordem jurídica estatal, e uma negação da ideia de

direito, porque põe o subjetivismo do mandato no lugar da norma

objetivamente válida. A antítese do pessoal e do impessoal se associa em

Krabbe a antítese do concreto e do geral, do individual e do universal,

podendo se ampliar para a antítese de autoridade e preceito jurídico,

autoridade e qualidade e, em sua formulação filosófica geral, a contraposição

entre pessoa e ideia. Está dentro da tradição do Estado de direito contrapor

desta forma ao mandato pessoal a validez objetiva de uma norma abstrata

(SCHMITT, 2009, p.30-31).

O Estado de Direito por meio de controle recíproco e regulamentações se orienta por

jurisprudência que, por vez, guia-se por problemas e negócios cotidianos, enquanto “o

conceito de soberania necessita de interesse prático”. Por consequência, o Estado de direito,

em seu conceito, só conhece o normal, tudo o que escapa a isto é considerado perturbação.

Schmitt (2009, p.17) explica:

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Frente ao caso extremo se encontra sem saber o que fazer. Porque nem toda

faculdade extraordinária, nem qualquer medida de polícia ou um decreto de

necessidade são, em si mesmos, um estado excepcional. É necessário que a

faculdade seja ilimitada em princípio; a suspensão total da ordem legal em

vigor é necessária. Quando isso acontece, é evidente que, enquanto o Estado

subsiste, o direito passa para o segundo plano. Como o estado excepcional é

sempre algo diferente da anarquia e do caos, no sentido legal sempre existe

uma ordem, embora essa ordem não seja legal. A existência do Estado deixa

neste ponto credenciada sua superioridade sobre a validade da norma

jurídica. A decisão é liberada de todos os obstáculos regulatórios e se torna

absoluta por si só. Diante de um caso excepcional, o Estado suspende o

direito em virtude do direito à própria preservação, os dois elementos que

compõem o conceito de ordem jurídica confrontam-se e revelam sua

independência conceitual. Se em casos normais o elemento autônomo da

decisão pode ser reduzido a um mínimo, é a norma que no caso excepcional

que é aniquilada. No entanto, porque ambos os elementos – a norma e a

decisão – permanecem dentro do quadro legal.

“Racionalismo consequente seria dizer que a exceção nada prova e que só o normal

pode ser objeto de interesse científico”, o que leva Schmitt (2009, p.19) a afirmar: “a exceção

perturba a unidade e a ordem do esquema racionalista”. Isto ocorre pelo fato da teoria de

Estado positivista ser capaz de conceber como uma norma, uma ordem ou como um centro de

imputação se estabelecem. Entretanto, argumenta Schmitt (2009, p.19), se debate com a

dificuldade relacionada à concepção de “como uma unidade sistemática e uma ordem podem

se suspender em um caso concreto, e ainda assim o problema ser legal e permanecerá assim

enquanto o estado excepcional difere do caos jurídico e da anarquia”. No mesmo trecho,

Schmitt expõe ainda: “a tendência do Estado de Direito de regular tanto quanto possível o

estado de exceção não é outra coisa se não a tentativa de circunscrever precisamente os casos

em que o direito suspende a si mesmo”, e introduz a questão, “onde a lei toma essa força e

como é logicamente possível que uma norma tenha validade, exceto em um caso específico

que ela própria não pode prever de fato?” Questão de certa forma já respondida ao longo do

mesmo parágrafo, quando Schmitt argumentou que “os racionalistas não deveriam perder de

vista que a mesma ordem jurídica pode prever o caso excepcional e ‘suspender a si mesma’”.

Enquanto os racionalistas afirmam que a exceção nada prova, Schmitt se opõe a isto

frontalmente, declarando que uma filosofia que não foge da vida concreta e não bate em

retirada diante do excepcional e do caso extremo, pelo contrário, pondo em ambos todo o seu

empenho e seu maior estudo, considera a exceção mais importante aos seus olhos que a regra.

“A exceção é mais interessante que o caso normal. O normal nada prova; a exceção, tudo; não

somente confirma a regra, mas que esta vive daquela. Na exceção, a força da vida efetiva faz

cair a crosta de uma mecânica estagnada em repetição” (SCHMITT, 2009, p.20).

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Schmitt (2009, p.37) constata, “todos os conceitos centrais da moderna teoria de

Estado são conceitos teológicos secularizados”, e no que se refere ao conceito de Estado de

exceção, este “tem na jurisprudência significado análogo ao de milagre na teologia”. A

analogia se dá pelo fato de que, em sentido teológico, o milagre se constitui numa violação ou

suspenção das leis naturais, consistindo num ato de providência divina, uma intervenção

direta de Deus na ordem do mundo, que extrapola os acontecimentos ordinários, comuns,

normais, sendo, desta forma, em sua essência, um acontecimento excepcional de cunho

extraordinário. Schmitt (2009, p.37), porém, recorda que o Estado de Direito se afirmou:

[...] com uma teologia e uma metafísica que baniram do mundo o milagre e

não admitem a violação com caráter excepcional das leis naturais implícita

no conceito de milagre e produzido por intervenção direta, como tão pouco

admitem a intervenção direta do soberano na ordem jurídica vigente.

Em meio á consideração de que para sociologia do conceito de soberania é necessário

ver com clareza o problema da sociologia dos conceitos jurídicos, levando em conta que até

este ponto está sublinhada a analogia entre conceitos teológicos e jurídicos, Schmitt (2009,

p.41-42) destaca que:

Seria erro grave crer que isto implica na oposição entre uma filosofia

espiritualista da história a outra materialista. A máxima formulada por Max

Weber em sua crítica a filosofia do direito de Stammler, que toda filosofia

radicalmente materialista da história pode ser posta em oposição a outra

filosofia espiritualista da história tão radical como aquela, poderia ser

ilustrada brilhantemente com o exemplo da teologia política da Restauração.

Os escritores contrarrevolucionários explicavam as mudanças políticas

através da maneira de conceber o mundo e atribuíam a Revolução francesa a

filosofia da Ilustração. Frente a eles, em antítese evidente, os revolucionários

radicais atribuíam as mudanças do pensamento às condições políticas e

sociais. Por volta dos anos vinte do século XIX, havia se estendido

amplamente por todo o Ocidente europeu, especialmente na França, o dogma

de que as mudanças religiosas, artísticas e literárias possuem íntima conexão

com a alteração das condições políticas e sociais. A filosofia marxista da

história radicou este nexo no plano econômico e o fundamentou

sistematicamente até o ponto de buscar também a chave das mudanças

políticas e sociais em um centro de imputação restrito ao econômico.

De forma distinta a este tipo de oposição entre materialismo e espiritualismo no

tocante a filosofia da história, Schmitt apresenta a sua abordagem da sociologia de conceitos.

E, em meio à discussão sobre uma sociologia do conceito de soberania, conclui que “a

metafísica é a expressão mais intensa e mais clara de uma época”. Como percurso

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argumentativo até este desfeche, Schmitt (2009, p.43-44) acrescenta que sua forma de

abordagem ao conceito de soberania:

Obriga a ir além da conceitualidade jurídica, atenta somente aos interesses

práticos imediatos da vida jurídica, e explorar a última estrutura radical

sistemática e comparar essa estrutura conceitual com a articulação conceitual

da estrutura social de uma época determinada. Não nos importa saber se o

que essa conceitualidade radical tem de ideal é reflexo de uma realidade

sociológica ou se, pelo contrário, a realidade social se explica como

consequência de uma maneira de pensar e, por conseguinte, de uma

determinada maneira de agir. É mais sobre manifestar duas identidades

espirituais, mas também substanciais. Declarar, por exemplo, que a

monarquia do século XVII era o substrato real que se “reflexava” no

conceito cartesiano de Deus, não é sociologia do conceito de soberania. Sim,

pertence, em vez disso, à sociologia da soberania daquela época mostrar que

a existência histórica e política da monarquia correspondia ao estado de

consciência da humanidade ocidental naquele momento, e que a

configuração jurídica da realidade histórico-política sabia como encontrar

um conceito cuja estrutura se harmonizava com a estrutura dos conceitos

metafísicos. Por isto teve a monarquia na consciência daquela época a

mesma evidência que havia de ter a democracia na época posterior.

Pressupõe, portanto, esta classe de sociologia dos conceitos jurídicos, a

conceitualidade radical, isto é, uma consequência levada até o plano

metafísico e teológico. A imagem metafísica que de seu mundo é forjada

numa época determinada tem a mesma estrutura que a forma da organização

política que essa época tem como evidente. A comprovação desta identidade

constitui a sociologia do conceito de soberania.

Em termos desta correspondência entre a existência histórica e política de uma época e

a estrutura de conceitos metafísicos, Schmitt (2009, p.47) afirma que “o conceito de Deus dos

séculos XVII e XVIII supõe a transcendência de Deus frente ao mundo, tanto como a sua

filosofia pertence à transcendência do soberano frente ao Estado”. Aqui se manifesta o

conceito cartesiano de Deus, ancorado numa concepção deísta de divindade na qual Deus

desempenhou o papel de criador da máquina, pondo-a em funcionamento através de leis

naturais que não podem ser violadas ou alteradas. Deste modo, nos séculos XVII e XVIII, há

ainda uma noção personalista de Estado, pois este é o soberano, aquele que detém o poder de

mando, porém, correspondendo à imagem deísta de Deus, um soberano limitado a decidir

segundo as leis que estabeleceu. Estas leis, embora estabelecidas pelo Estado como expressão

pessoal de Deus e de sua soberania, segundo a noção metafísica presente na consciência das

pessoas da época, orientava-se pelo princípio de que “a validade geral de um princípio

jurídico se identifica com a lei natural válida sem exceções”.

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O princípio metafísico de que Deus somente se manifesta por atos gerais de

sua vontade, não em particulares, domina a metafísica de Leibniz e de

Malebranche. Rousseau identifica a volonté générale com a vontade do

soberano; porém, ao mesmo tempo, determina-se quantitativamente o

conceito do geral, incluso no que se refere ao sujeito, ou seja, o povo se

converte em soberano. Desaparece, deste modo, o elemento decisionista e

personalista que antes alentava o conceito de soberania. A vontade do povo é

sempre boa, “le peuple est toujours vertueux” [o povo sempre é virtuoso]

(SCHMITT, 2009, p.46).

Expondo as consequências deste processo imanentista para a metafísica política e para

a teologia política, Schmitt (2009, p.47) constata:

No século XIX, as representações da imanência dominam cada vez com

maior difusão. Todas as identidades que reaparecem na doutrina política e

jurídico-política do século XIX descansam sobre estas representações da

imanência: a tese democrática da identidade de governantes e governados, a

teoria orgânica do Estado e sua identidade de Estado e soberania, a doutrina

do Estado de direito de Krabbe e sua identidade de soberania e ordem

jurídica e, por último, a teoria de Kelsen sobre a identidade do Estado e a

ordem jurídica.

Assim, como consequência, tanto o conceito teísta quanto o conceito deísta de Deus se

tornam incompreensíveis para a metafísica política, pois o poder deixa emanar de uma esfera

transcendente para emanar de uma imanente, “a voz do povo é a voz de Deus”. Assim, a

norma jurídica – fundamentada não numa metafísica de leis naturais, mas no direito positivo –

busca harmonizar a vontade e os costumes do povo através de preceitos jurídicos.

“A unidade que um povo representa não tem caráter decisionista; é uma unidade

orgânica; e com a consciência nacional brota a noção de Estado como todo orgânico”

(SCHMITT, 2009, p.46). Este todo orgânico é análogo à noção de divindade que deixando de

ser pessoal se confunde com a sua criação, fazendo com que esta seja divinizada. A criação

divinizada passa a desfrutar de todos os atributos que inerentes à divindade, neste caso, a

vontade desta divindade que se confunde nas suas criaturas necessita ser satisfeita. Toda a

norma jurídica se resumirá no esforço de harmonizar ou oferecer respostas às questões

oriundas do povo. Conforme já dito, a vontade do povo é boa. Então, Schmitt (2009, p.47)

conclui “a grande linha deste processo fez, sem dúvida, que a grande massa culta perdesse

toda noção de transcendência e mirasse como evidente ora um panteísmo mais ou menos

claro, fundado na imanência, ora na indiferença positivista frente à metafísica em geral”.

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2.2.2 A secularização da teologia cristã da história

Em 1953, Friedrich Gogarten publica o livro Destino e esperança da época moderna

cujo subtítulo é a secularização como tema da teologia. E confronta-se com a crise que, a

partir do Iluminismo, atingiu o Cristianismo, que até então se constituía o fundamento

incontestável do mundo ocidental (GIBELLINI, 2002). A crise institui o contraste que diz

respeito, sobre tudo, à autonomia de que desfruta o homem moderno tanto diante da natureza

quanto diante da história. Até que ponto o contraste entre Cristianismo e mundo moderno é

inconciliável? Questiona Gogarten.

É significativo, (MARRAMAO, 1997, p.77), que também em 1953, surgia, na

Alemanha, a obra de Karl Löwith, História universal e evento salvífico, dedicado a discorrer

sobre os pressupostos teológicos da filosofia da história. Este texto havia sido publicado há

alguns anos antes numa edição em inglês com o título Meaning in History (O sentido da

história), ampliando, assim, a controvérsia sobre secularização no século XX. Desta, feita,

porém, tratava-se não de um teólogo e sim de um analista filosófico da “consciência

histórica”.

Löwith estudou filosofia com Husserl e Heidegger. Alemão, nascido em Munique,

protestante, porém descendente de judeus. Em 1934, ver-se forçado a deixar a Alemanha

devido ao regime político do Partido Nacional Socialista, indo para Itália. Em 1936, fixou

residência no Japão, lecionando na Tohoku University, mas devido à aliança entre o Terceiro

Reich e o Japão, muda-se mais uma vez em 1941 para os Estado Unidos da América. De 1941

a 1952, leciona no Hartford Theological Seminary e na New School for Social Research. Em

1952, retorna a Alemanha para lecionar Filosofia em Heidelberg, permanecendo neste posto

até seu falecimento em 26 de maio de 1973.

Em sua análise filosófica da “consciência histórica” do Ocidente, Löwith (1991)

considera o conceito de “filosofia da história”. Este conceito foi empregado pela primeira vez

por Voltaire para fazer distinção da interpretação teológica da histórica no Ensaio sobre os

costumes e o espírito das nações. Desde modo, operando a mudança no sentido de não

predominar na história a vontade de Deus e a providência, mas a vontade humana e a sua

razão. Por sua vez, Löwith o emprega com o significado de uma interpretação sistemática da

história universal segundo o princípio de que os acontecimentos e sucessões históricos se

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unificam e dirigem para um sentido final. Segundo Löwith, considerada nesta acepção, a

filosofia da história está na total dependência da teologia da história, em particular do

conceito teológico da história como uma história de realização e salvação. Discordando da

crença dogmática no valor da história enquanto tal e de que o pensamento histórico

propriamente dito começa apenas na época moderna, com o século XVIII, Löwith (1991,

p.16) expõe que “o esboço que se segue procura demonstrar que a filosofia da história se

inicia com a fé hebraica e cristã numa realização e termina com a secularização do seu

esquema escatológico”.

Conceber a história de acordo com um princípio de que os acontecimentos e sucessões

históricos se dirigem para um sentido final, só se justifica a partir de um objetivo

transcendente que ultrapasse os acontecimentos em si.

Acontecimentos isolados desta natureza não têm qualquer sentido, nem são

uma mera sucessão de acontecimentos. Arriscar uma afirmação sobre o

sentido dos acontecimentos históricos só é possível quando surge o seu telos.

Quando as consequências de um movimento histórico foram reveladas,

reflectimos sobre o seu aspecto inicial a fim de determinarmos o sentido de

todo o acontecimento, apesar de específico – “todo” através de um ponto de

partida definido e um ponto final de chegada. Se refletirmos sobre todo o

curso da história, imaginando o seu começo e prevendo o seu fim, pensamos

no seu sentido em termos de objetivo básico. A afirmação de que a história

tem um sentido fundamental implica um objetivo ou meta finais que

transcendem os acontecimentos reais (LÖWITH, 1991, p.19).

A apresentação histórica desenvolvida por Löwith segue uma sequência invertida,

regressando a sucessão histórica das interpretações da história, começando na era moderna e

remontando ao seu começo. Ele justifica tal procedimento através de três motivos: didáticos,

metódicos e substanciais.

Por motivo didático, justifica que leitor moderno (que acabara de “despertar do sonho

secular do progresso que substituiu a fé na providência” pela fé na razão humana) está alheio

a interpretação teológica das fases iniciais.

Donde se conclui pelo oportunismo didáctico de começar por aquilo que é

mais familiar ao espírito moderno antes de abordar o pensamento

desconhecido de gerações anteriores. É mais fácil compreender a crença

inicial da providência através da análise crítica das implicações teológicas da

crença ainda existente no progresso do que através de uma análise da

providência (LÖWITH, 1991, p.16).

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Já no que se refere aos motivos metódicos, Löwith (1991, p.16) argumenta que a

“forma adequada de abordar a história e as suas interpretações é necessariamente regressiva

pela mesma razão que a história progride, deixando para trás as bases históricas de

elaborações mais recentes e contemporâneas”.

A consciência histórica não pode deixar de começar por si mesma, não

obstante ter por objetivo o pensamento de outras épocas e de outros homens,

diferentes dos nossos e de nós próprios. A história tem muitas vezes de ser

reencontrada e redescoberta pelas gerações vivas. Compreendemos – ou não

– os autores antigos, mas sempre à luz do pensamento contemporâneo, lendo

o livro da história de trás para frente da última à primeira página. Esta

inversão do modo convencional de apresentar a história é actualmente

aplicada por aqueles que percorrem o caminho de épocas passadas até aos

tempos modernos, sem estarem conscientes das suas motivações

contemporâneas (LÖWITH, 1991, p.16).

E os motivos substanciais justificam-se pelo entendimento de que se vive mais ou

menos no fim da linha moderna. O próprio regresso metódico das modernas interpretações

seculares da história do seu antigo esquema religioso encontra, com alguma relevância, sua

justificação nisto. Substancialmente, pretende-se entender o mundo, descobrir o seu sentido

fundamental.

É muito pouca a sua consistência, pelo que não proporciona a esperança de

um apoio. Temos aprendido a esperar sem esperança, “pois ter esperança

seria esperar a coisa errada”. Daí que seja salutar a lembrança do que nestes

tempos de expectativa foi esquecido e a recuperação das fontes genuínas dos

nossos resultados sofisticados. É possível fazê-lo mas não através de um

salto imaginário, quer para os primórdios do Cristianismo (Kierkegaard)

quer para o paganismo clássico (Nietzsche), mas apenas através da redução

analítica do composto moderno nos seus elementos iniciais. No entanto, o

elemento predominante, a partir do qual poderia surgir mesmo uma

interpretação da história, é a experiência básica do mal e do sofrimento, e da

procura da felicidade por parte do homem. A interpretação da história é, em

última análise, uma tentativa de compreender o sentido da história enquanto

sentido do sofrimento por acção histórica. O sentido cristão da história, em

particular, consistente no facto extremamente paradoxal de a cruz, este sinal

da mais profundo ignomínia, poder conquistar o mundo dos conquistadores,

opondo-se-lhe. Na nossa época, as cruzes têm sido suportadas em silêncio

por milhões de pessoas; e se há algo que justifique pensar-se que o sentido

da história da história tem de ser entendido na acepção cristã, será este

sofrimento desmedido. No mundo ocidental, o problema do sofrimento tem

sido perspectivado de duas maneiras diferentes: pelo mito de Prometeu e

pela fé em Cristo – o primeiro um rebelde, o segundo um servo. Nem a

Antiguidade nem o Cristianismo acalentavam a moderna ilusão de que a

história pode ser concebida como a evolução progressiva que resolve o

problema do mal por via da eliminação (LÖWITH, 1991, p.16-17).

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Löwith explicita que há perguntas que conservam o seu significado, porque não

podem ser silenciadas por nenhuma resposta. Constitui privilégio da teologia e da filosofia,

em contraste com as ciências, fazer perguntas que não podem ser respondidas só com base no

conhecimento empírico. Todas as questões fundamentais relativas às primeiras e às últimas

coisas são desta natureza. Segundo ele, tais questões dão significado a uma investigação

fundamental, pois não se procuraria o sentido da história se o mesmo estivesse presente nos

acontecimentos históricos, sendo exatamente a ausência de sentido nos acontecimentos

propriamente ditos que motiva a sua procura. “Inversamente, é apenas no seio de um

horizonte pré-estabelecido de sentido fundamental, por mais oculto que esteja, que a história

atual parece não ter o menor sentido” (LÖWITH, 1991, p.17).

“Para os judeus e os cristãos, no entanto, a história era principalmente uma história de

salvação e, como tal, a preocupação exclusiva dos profetas, pregadores e mestres” (LÖWITH,

1991, p.18). Sim, principalmente para o Cristianismo, uma história da salvação com Cristo

ocupando uma centralidade, uma vez que o sentido é estabelecido a partir da estrutura

subjacente no antes e depois de Cristo, bem como na expectativa futura por sua segunda vinda

para consumar a história. Desta forma, transparece o esquema básico de realização e

expectativa futura. Tal esquema pode ser notado na forma como os autores do Novo

Testamento interpretaram as profecias do Antigo Testamento. Para estes autores, tais

profecias pré-anunciavam o nascimento de Cristo e se realizaram em sua manifestação

histórica, quando o filho de Deus encarnou-se, viveu, morreu e ressuscitou dentre os homens,

“vindo, porém, a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido

sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de

filhos” (Gálatas 4,4-5).

Löwith (1991, p.184-185) faz uma citação do teólogo Oscar Cullman que sintetiza

bem isto:

O homem estava destinado a dominar o resto da criação. Caiu, e esta queda

no pecado fez que toda criação ficasse sob a maldição de Deus (Gen. 3:17;

Rom. 8:20). Da humanidade pecadora Deus escolheu um grupo, o povo de

Israel, para a salvação do mundo. Porém, no seio deste povo, tem lugar uma

certa redução para uma comunidade ainda mais pequena que deve cumprir o

desígnio de Deus – o “resto de Israel”, o qehal Jahwe. Este resto é mais uma

vez comprimido e reduzido a um homem que, sozinho, é capaz de assumir a

função de Israel. Ele é o “servo de Jahve” em II Isaías, o “Filho do Homem”

em Daniel, que representa o “povo de santos” (Dan. 7:13 segs.). Esta única

pessoa identifica-se na história com o Filho de Deus, Cristo, que através do

sacrifício da sua morte pelos outros realiza o objetivo pelo qual Deus

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escolhera o povo de Israel. Assim, a história da salvação até Cristo

desenvolveu-se como uma redução progressiva: a humanidade (Adão) – o

povo de Israel – o resto de Israel – o Único, Cristo (o segundo Adão). Deste

modo chegou, com efeito, a história da salvação ao seu centro, mas não

percorreu ainda o seu curso completo. Torna-se agora necessário, por assim

dizer, inverter o processo, designadamente, passar do Único para os Muitos,

mas de tal forma que os Muitos representam o Único. O caminho leva agora

de Cristo àqueles que acreditam nele, que sabem que serão salvos pela sua fé

no sacrifício da morte d’Ele. Deste modo, o caminho conduz à Igreja, que é

o corpo do Único; ela deve agora realizar em nome da humanidade a tarefa

do “resto”, do “povo de santos”. Por conseguinte, aplica-se-lhe também o

título daquele “resto” (qehal Jahve) que é equivalente hebraico de ekklesia,

“Igreja”. Assim, a história da salvação percorre o seu curso em dois

movimentos. O primeiro vai dos Muitos para o Único. É esta a Velha

Aliança. O outro vai do Único para os Muitos. É esta a Nova Aliança.

Precisamente no meio encontra-se o factum decisivo, a morte de Cristo.

O nascimento e a crucificação de Cristo cumprem o esquema de realização ou

cumprimento de profecias do Antigo Testamento, porém sua ressurreição traz consigo a

promessa de que voltaria no futuro, conforme exposto no Credo Apostólico: “ressurgiu dos

mortos ao terceiro dia; está assentado à mão direita de Deus Pai Todo-poderoso, de onde há

de vir para julgar os vivos e os mortos”.

Para um crente, o aspecto redentor da história não é um aspecto da história

secular, mas a luz transcendente que brilha na escuridão da difícil história do

homem, e a história de Cristo “um centro importante à beira da vida

aparentemente sem sentido”. Percorrer a linha da história da salvação

significa renunciar às grandes vias de acontecimentos gerais, gloriosos e

espectaculares ou comuns e miseráveis. É um caminho estreito de renúncia

decidida, que dá orientação e significado aos acontecimentos – pelo menos a

alguns deles – por entre as muitas encruzilhadas de acontecimentos profanos.

Visto na perspectiva da história do mundo, Jesus Cristo é o fundador de uma

nova seita; visto pelos olhos da fé, ele é o Kyrios Christus e, por

consequência, o Senhor da história. Enquanto os senhores da história do

mundo são Alexandres e Césares, Napoleões e Hitlers, Jesus Cristo é o

senhor do Reino de Deus e consequentemente da história secular, apenas na

medida em que a história do mundo esconde um sentido redentor. As

histórias particulares do mundo estão apenas indirectamente relacionadas

com a história restrita, mas universal, da salvação e são em si

iincomensuráveis com ela. Meramente como base e instrumentos empíricos

na relação de Deus com o homem, os impérios e as pessoas históricos

mundiais são arrastadas para órbita da perspectiva bíblica da história nos

Antigo e Novo Testamentos.

Subjacente às figuras e acontecimentos visíveis, as forças misteriosas

trabalham invisivelmente como archontes ou agentes primários (Rom. 13:1;

I Cor. 2:8). A partir de Cristo estas forças passaram a estar dominadas e

enfraquecidas, mas encontram-se ainda poderosamente vivas. Sem se dar

por isso, a história mudou consideralmente; à vista, é ainda a mesma, pois o

Reino de Deus já chegou, e no entanto, como um eschaton, ainda para vir.

Esta ambiguidade é essencial a toda a história depois de Cristo: o tempo

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encontra-se já preenchido, só que ainda não consumado. Os tempos cristãos

entre a ressurreição de Cristo e o seu reaparecimento são definitivamente os

últimos (I João 2:18; Mat. 12:28); mas, enquanto, são os penúltimos tempos

antes da conclusão do presente, apesar de oculto, Reino de Cristo, no Reino

visível de Deus para lá dos tempos históricos. Em virtude desta profunda

ambiguidade da realização histórica em que tudo é “já” o que “ainda não” é,

o crente cristão vive numa tensão radical entre presente e futuro (LÖWITH,

1991, p.188-189).

Em termos cristãos, a história é compreendida como os “últimos dias”, o intervalo de

tempo entre a encarnação (realização) e a segunda vinda de Cristo (expectativa futura), os

cristãos são peregrinos neste mundo, enquanto aguardam a consumação de todas as coisas.

Tal intervalo temporal é compreendido enquanto história da salvação por tratar-se de um

tempo de manifestação da misericórdia divina num mundo mergulhado em pecado cujas

pessoas necessitam ser reconciliadas com o seu Criador. A Cidade de Deus está presente no

mundo somente enquanto reinado de Cristo nos corações daqueles que creram e foram

reconciliados com Deus. “A Cidade de Deus não é um ideal que pudesse tornar-se real na

história, como a terceira época de Joaquim, e a Igreja, na sua existência terrena, é apenas uma

significação representativa da cidade verdadeira trans-histórica” (LÖWITH, 1991, p.166).

Para o crente, a história não é um domínio independente do esforço e do

progresso humanos, mas um domínio de pecado e morte e, por conseguinte,

necessitado de redenção. De acordo com esta perspectiva, o processo

histórico como tal não poderia ser encarado como de extrema importância. A

crença na relevância absoluta da história enquanto tal, que fez aumentar as

tiragens das obras de Spengler e Toynbee, é o resultado da emancipação da

consciência histórica moderna a partir da fundação e da limitação pela

cosmologia clássica e pela teologia cristã. Ambas limitaram a experiência da

história e evitaram que atingissem dimensões indefinidas.

Foi em particular a ruptura na tradição no final do século XVIII que deu

origem ao carácter revolucionário da história moderna e do nosso

pensamento histórico moderno. A revolução política em França e a

revolução industrial em Inglaterra e os seus efeitos universais sobre todo o

mundo civilizado realçaram a moderna sensação de viver numa época em

que as mudanças históricas são da maior importância. A filosofia da história

mostrou-se uma questão mais fundamental do que anteriormente, porque a

própria história se tornou mais radical. Não só as invocações da ciência

natural ganharam maior velocidade e alargaram o âmbito dos movimentos e

mudanças sócio-históricos, como tornaram a natureza um elemento

altamente controlável na aventura histórica do homem. Através de uma

ciência natural estamos agora, como nunca antes estivemos, “a fazer” a

história e, no entanto, somos dominados por ela porque a história se libertou

dos seus limites antigos e cristãos (LÖWITH, 1991, p.195).

Este processo de transformações na forma de conceber os acontecimentos históricos

no Ocidente que culminarão com a ruptura na tradição no final do século XVIII foi analisado

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por Löwith desde trabalhos escritos por pensadores modernos, nos quais a ruptura está

claramente manifesta, até a perspectiva cristã, conforme exposta acima. Em Santo Agostinho,

principalmente na Cidade de Deus, encontra-se um desenvolvimento da teologia cristã da

história nos dois níveis opostos da história sagrada e profana, que se encontram algumas

vezes, porém em princípio estão separadas. Por sua vez, Bossuet retoma a afirmação da

teologia da história de Santo Agostinho, mas com maior ênfase na independência relativa da

história sagrada. Já Voltaire e, de forma não intencional, Vico separam a história secular da

história sagrada, subordinando a história da religião à da civilização. Hegel transformou a

teologia da história em filosofia da história, mundanizando o princípio cristão da providência,

concebido como razão universal condutora da história. Comte transformou a providência em

progresso, cuja principal mudança consiste em destituir Deus e em fazer dos homens os

realizadores da história. Marx constrói uma escatologia na qual a consumação da história é a

realização de uma comunidade comunista, um Reino de Deus, sem Deus e na terra.

O futuro é o “verdadeiro” foco da história, desde que a verdade resida na

base religiosa do Ocidente cristão, cuja consciência histórica é, na verdade,

determinada por uma motivação escatológica, de Isaías a Marx, de Santo

Agostinho a Hegel, e de Joaquim a Schelling. O significado desta visão de

um fim derradeiro, como simultaneamente finis e telos, é o facto de

constituir um esquema de ordem e sentido progressivos, um esquema que

tem sido capaz de vencer o medo antigo no fado e na fortuna. O eschaton

não só delimita o processo da história através de um fim, como o articula e

preenche também com um objetivo definido. A influência do pensamento

escatológico sobre a consciência histórica do Ocidente situa-se ao nível da

conquista do fluxo histórico, que se desgasta e devora as suas próprias

criações a menos que seja definido por um fim derradeiro. Comparável à

bússola escatológica que nos orienta no espaço, e assim nos permite

conquista-lo, a bússola escatológica orienta no tempo indicando o Reino de

Deus como objetivo e fim derradeiros (LÖWITH, 1991, p.30-31).

Löwith constata que, na transformação do plano providencial em plano progressivo,

“os atributos teológicos são tolhidos à dimensão da transcendência para serem radicalmente

mundanizados e transferidos à dinâmica histórica imanente” (MARRAMAO, 1997, p.78).

Este processo opera mutações no modo de lidar com certos fenômenos na sociedade, pois

estes fenômenos, embora seculares, seguem seu curso através de uma lógica religiosa

implícita, fazendo com que sejam ao mesmo tempo religiosos e irreligiosos.

As comunidades dos tempos modernos não são nem religiosamente pagãs

nem cristãs; são manifestamente seculares, isto é, secularizadas, e apenas,

por derivação, são ainda cristãs. As velhas igrejas das cidades modernas

deixaram de ser os enormes centro de vida comunal, passando a estranhas

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ilhas mergulhadas em centros de comércio. No nosso mundo moderno é tudo

mais ou menos cristão e, simultaneamente, anticristão: o primeiro, se

avaliado pelos parâmetros da Antiguidade Clássica, o segundo se avaliado

pelos parâmetros do verdadeiro Cristianismo. O mundo moderno tem tanto

de cristão como de anticristão porque resulta de um longo processo de

secularização. Comparado com o mundo pagão antes de Cristo, que era em

todos os aspectos religioso e supersticioso e por conseguinte um objecto

adequado da apologética cristã, o nosso mundo moderno é profano e

irreligioso e, no entanto, depende do credo cristão do qual se emancipou. A

ambição de ser “criativo” e a luta por uma realização futura reflectem a fé na

criação e na consumação, mesmo quando estas são consideradas mitos

irrelevantes (LÖWITH, 1991, p.201).

A providência se refere ao governo e a manifestação na história dos desígnios de um

Deus transcendente, cujo plano está relacionado a objetivos gerais que afetam toda a

humanidade, produzindo o consequente desfecho da história. Este plano está oculto, é

misterioso, até que seja revelado através dos eventos históricos, porém de tal forma que cada

ação individual ou acontecimento particular contribuem para a consumação dos desígnios

divinos em sua totalidade.

Por sua vez, as escatologias seculares estão relacionadas muito mais a generalidades

do que a indivíduos ou a acontecimentos particulares. Nestas escatologias, toda evolução

humana ou avanço histórico estão associados à universalidade da história e acentuadas à

expensa do caráter finito e pessoal da vida humana. Em sua perspectiva secular, estas adotam

apenas o elemento universal da interpretação cristã da história, eliminando a preocupação

cristã com o destino eterno da pessoa, visto que o esquema cristão da história da salvação se

refere à salvação individual, uma vez que “a humanidade não pode ser salva porque não existe

a não ser nos homens e mulheres individualmente” (LÖWITH, 1991, p.93). As escatologias

seculares, ao adotarem apenas a universalidade da interpretação cristã da história,

negligenciam destinos individuais e diluem a individualidade numa coletividade que existe

para alcançar um objetivo universal. Conservou-se a noção da história enquanto orientada

para o futuro, uma perspectiva teleológica, porém como uma substituição por versões

secularizadas, seja pela moderna doutrina do progresso, tendo o homem como criador de um

futuro para a humanidade; seja através da versão socialista da luta de classes, na qual “o povo

eleito”, o proletariado, alcançará a vitória final, enquanto seu destino histórico; ou seja, em

versões tecnológicas nas quais a humanidade operará a sua própria evolução, sem ter que

depender da seleção natural, através de ciência e técnica.

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2.2.3 A Modernidade como essencialmente gnóstica

Eric Voegelin (1982) põe em relevo a necessidade de “reconhecer a essência da

modernidade como o crescimento do gnosticismo”. Este foi um dos tópicos principais

abordados durante as seis conferências sobre “A verdade e a representação” que proferiu no

inverno de 1951 na Universidade de Chicago. Estas conferências foram publicadas em 1952

pela mesma universidade com o título The New Science of Politics. O livro foi publicado no

Brasil pela editora da Universidade de Brasília em 1982 como A nova ciência da política.

De certa forma esta obra resume alguns temas importantes que estarão presentes ao

longo de sua vasta pesquisa sobre teoria política e cumpre a função de texto inaugural da

terceira fase no tocante ao desenvolvimento do pensamento de Voegelin (FEDERICI, 2011,

p.66).

A primeira fase se refere à publicação dos seus cinco primeiros livros antes de emigrar

para os Estados Unidos, sua fuga do nazismo e a experiência do totalitarismo na Europa que

lhe tinham fornecido o contexto imediato para as suas primeiras obras: On the form of the

american mind [Da forma da mente americana], Race and State [Raça e Estado], The history

of the race idea [A história da ideia de raça], The authoritarian State [O Estado autoritário] e

The political religions [As religiões políticas]. Deste modo, a entrada de Voegelin no que se

pode considerar uma segunda e nova fase de sua erudição corresponde à sua emigração para

os Estados Unidos e sua obra acerca da História das ideias políticas.

Nas Reflexões autobiográficas, Voegelin expõe como surgiu o projeto de escrever a

História das ideias políticas após ter encontrado em Harvard o prof. Fritz Morstein-Marx,

então editor de uma série de manuais publicada pela McGraw-Hill e como foi incumbido de

escrever um manual de tamanho médio (algo entre 200 e 250 páginas) para referida série.

O objetivo comercial era produzir um texto que competisse com o manual

padrão de teoria política ao tempo: History of Political Theory [História da

Teoria Política] (1937), de George H. Sabine e a obra de três volumes de

William A. Dunning. Voegelin trabalhou nesse projeto que depois veio a se

transformar nos múltiplos volumes de História das Ideias Políticas, de 1939

a 1954 (FEDERICI, 2011, p.61-62).

Voegelin (2007, p.102) explica que ao longo da sua pesquisa algumas descobertas o

fizeram mudar os rumos que havia traçado para o desenvolvimento do seu texto: “O modelo

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de um desenvolvimento linear das ideias políticas, de um suposto constitucionalismo

medieval e culminando no esplêndido constitucionalismo da era moderna, sucumbiu.” A

razão disto foi apresentada por ele nos seguintes termos:

Essas descobertas fizeram romper o modelo anterior e conferiram novos

rumos à investigação. Minha História das ideias políticas já estava escrita

até o século XIX. Cheguei a concluir extensos capítulos sobre Schelling,

Bakunin, Marx e Nietzsche. Enquanto preparava o capítulo sobre Schelling,

ocorreu-me que a concepção de uma história das ideias era uma deformação

ideológica da realidade. Não haveria ideias se antes não houvesse símbolos

de experiências imediatas. Ademais, era impossível tratar por “ideias”

fenômenos como um ritual de coroação egípcio ou a recitação do Enuma

Elish nas celebrações do Ano Novo sumério. Eu ainda não tinha condições

de entender realmente de onde viera o conceito de ideias e o que ele

significava. Muito posteriormente descobri que a origem mais provável são

os koinai ennoai dos estoicos. Essas opiniões comuns, ou autoevidentes,

serviram de ponto de partida para a crítica de Locke no primeiro capítulo de

seu Ensaio sobre o entendimento humano [1690]; ele protestou contra elas a

fim de recuperar as experiências em que as ideias tem sua origem

(VOEGELIN, 2007, p.102-103).

Com descoberta de que “não haveria ideias se antes não houvesse símbolos de

experiência imediata”, inicia-se a terceira fase da obra de Voegelin. E esta descoberta

coincide com o período de preparação das Preleções Walgreen que posteriormente seriam

publicadas como A nova ciência da política.

As Walgreen Lectures que proferi na Universidade de Chicago em 1951

propiciaram uma ruptura dessa situação. Fui forçado a formular, de maneira

resumida, algumas das ideias que haviam começado a se cristalizar.

Concentrei-me no problema da representação e na relação entre

representação e a verdadeira existência pessoal e social. Era óbvio, por

exemplo, que o governo da União Soviética não estava no poder em virtude

de eleições representativas no sentido ocidental; isso no entanto não impedia

que fosse representativo do povo, mas em virtude de quê? Na época, chamei

isso o problema da representação existencial. Descobri que a representação

existencial sempre é o núcleo central do governo bem sucedido,

independentemente dos procedimentos formais que alçam o governo

existencialmente representativo à sua posição. Em uma sociedade

comparativamente mais primitiva, onde o grosso da população é incapaz de

debater racionalmente e organizar partidos políticos que determinem quais as

questões de interesse público, um governo deitará suas bases sobre forças

tradicionais ou revolucionárias sem o recurso à instituição eleitoral. A

tolerância, pela população, de um governo nesses moldes dependerá de seu

maior ou menor sucesso na consecução dos objetivos que orientam a

instituição de qualquer governo: a garantia da paz interna, a defesa do reino,

a administração da justiça e o cuidado com o bem-estar da população. Se o

governo desempenha de forma moderadamente satisfatória essas funções, os

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procedimentos que lhe permitem chegar ao poder são de importância

secundária (VOEGELIN, 2007, p.104).

Segundo Michael Federici (2011), Voegelin esteve nos Estados Unidos de 1938 a

1958. Durante esse período, escreveu os volumes de História das ideias políticas, A nova

ciência da política, e os três volumes de Order and history [Ordem e história]. Em 1944 se

tornou cidadão americano e lecionou por dezesseis anos na Universidade do Estado da

Lousiana, depois de breves estadas em Harvard, Bennington College, e na Universidade do

Alabama. Ele se mudou para Munique em 1958, depois de aceitar um cargo na Universidade

de Munique como professor e diretor do Instituto de Ciência Política. Sua preleção de

investidura foi publicada como Science, politics and gnosticism [Ciência, política e

gnosticismo]. Em 1969, Voegelin retornou aos Estados Unidos para um cargo na Instituição

Hoover da Universidade de Stanford, ocupou este cargo até 1974, o mesmo ano que se

publicou o quarto volume de Order and history, The ecumenic age [A era ecumênica].

Voegelin escreveu vinte um livros e mais de cem artigos. Faleceu em 19 de janeiro de 1985

enquanto escrevia o quinto volume de Order and history, In search of order [Em busca da

ordem] que devido ao seu falecimento foi publicado menor do que o planejado.

Em A nova ciência da política, Voegelin revela a mudança radical de eixo no seu

método de pesquisa. Por meio da tomada de consciência de que é necessário compreender os

símbolos da experiência imediata que antecedem as ideias, Voegelin se orienta pela noção de

que “a existência do homem na sociedade política é a existência histórica; e a teoria política,

desde que penetre no terreno dos princípios, deve ser, ao mesmo tempo, uma teoria da

história” (VOEGELIN, 1982, p.17). O reconhecimento da historicidade das sociedades

políticas está em relação próxima com o entendimento de que “qualquer investigação sobre a

representação, desde que suas implicações teóricas sejam consistentemente desdobradas,

tornar-se-á, na verdade, uma filosofia da história” (VOEGELIN, 1982, p.17).

Aceitar a historicidade da sociedade política conduz a Ciência Política pela noção de

que por natureza é uma ciência do homem em sua existência histórica. E este homem em

existência histórica não espera pela ciência para que esta lhe explique sua própria vida, a

ciência ao abordar a realidade social encontra um campo já ocupado pelo que Voegelin chama

de auto-interpretação da sociedade.

A sociedade é iluminada por um complexo simbolismo, com vários graus de

compactação e diferenciação – desde o rito, passando pelo mito, até a teoria

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– e esse simbolismo a ilumina com um significado na medida em que os

símbolos tornem transparentes ao mistério da existência humana a estrutura

interna desse pequeno mundo, as relações entre seus membros e grupos de

membros, assim como sua existência como um todo. A auto-interpretação da

sociedade através dos símbolos é parte integrante da realidade social, e pode-

se mesmo dizer que é uma parte essencial dela, porque através desta

simbolização os membros da sociedade a vivenciam como algo mais que um

acidente ou uma conveniência; vivenciam-na como pertencendo a sua

essência humana. Inversamente, os símbolos exprimem a experiência de que

o homem é inteiramente homem em virtude de sua participação em um todo

que transcende a sua existência particular, em virtude de sua participação no

xynon, o comum, na expressão de Heráclito, o primeiro pensador ocidental

que desenvolveu este conceito. E, em consequência, toda sociedade humana

compreende a si mesma através de uma variedade de símbolos, alguns deles

símbolos linguísticos altamente diferenciados, independentes da ciência

política; tal auto-compreensão precede historicamente de alguns milênios o

surgimento da ciência política, do episteme politique, no sentido aristotélico.

Assim, ao se iniciar, a ciência política não parte de uma tabula rasa na qual

pudesse escrever seus conceitos; começa inevitavelmente a partir do rico

conjunto de auto-interpretações da sociedade e prossegue através do

esclarecimento crítico dos símbolos sociais preexistentes (VOEGELIN,

1982, p.33).

Voegelin, ao reconhecer o fato de que a sociedade se auto-interpreta através de

símbolos da sua própria experiência, faz isto reconhecendo que a sociedade política pode ser

caracterizada como um cosmion, um pequeno mundo.

Tal cosmion tem um reino interior de significado, mas esse reino existe

tangivelmente no mundo exterior, em seres humanos dotados de corpos e

que participam fisicamente da exterioridade orgânica e inorgânica do

mundo. A sociedade política pode dissolver-se não apenas pela

desintegração das crenças que fazem dela uma unidade atuante na história,

mas também pode ser destruída pela dispersão de seus membros de tal

maneira que a comunicação entre eles se torne fisicamente impossível ou,

mais radicalmente, por sua eliminação física; pode, igualmente, sofrer danos

sérios, destruição parcial da tradição ou paralisia prolongada mediante o

extermínio ou opressão de membros ativos que constituem as minorias

políticas e intelectuais que dirigem a sociedade (VOEGELIN, 1982, p.35-

36).

Deste modo, Voegelin está atentando para a necessidade de distinguir os conceitos

teóricos ou símbolos da linguagem da Ciência Política dos “símbolos da linguagem

produzidos como parte integrante do mundo social em seu progresso de auto-iluminação”. Há

uma relação entre ambos na proporção em que os conceitos teóricos da Ciência Política se

desenvolvem a partir do processo de esclarecimento crítico dos símbolos do mundo social. A

respeito disto, Voegelin (1982, p.34) acrescenta:

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No transcurso desse processo, alguns dos símbolos que ocorrem na realidade

serão abandonados por não se prestarem à utilização científica, enquanto

novos símbolos se desenvolverão dentro da própria teoria para descrição

crítica adequada dos símbolos que fazem parte da própria realidade. Se, por

exemplo, o teórico descrever a ideia marxista do reino da liberdade, a ser

estabelecido pela revolução comunista, como hipóstase imanentista de um

símbolo escatológico cristão, o símbolo “reino da liberdade” é parte da

realidade; é parte de um movimento secular do qual o movimento marxista é

uma subdivisão, enquanto que termos como “imanentista”, “hipóstase” e

“escatologia” são conceitos da ciência política.

Por sua vez no tocante ao que Voegelin denominou de representação existencial, deve-

se considerar que a garantia da representatividade de uma sociedade política está

fundamentada na sua articulação política. Esta, por sua vez, efetiva-se com o propósito de

atender a uma necessidade existencial da sociedade. Em outros termos, a sociedade existe

como resultado de sua articulação e a pressão das circunstâncias cria o estímulo para

articulação. Neste estímulo jaz o vínculo com os processos históricos, pois são necessidades

reais (defesa do reino, aplicação da justiça, garantia de segurança e prosperidade para os

súditos e etc) que fazem com que a sociedade se articule com o objetivo de produzir um

representante que aja por ela. Nesta perspectiva, sobre o propósito de atuação das sociedades

políticas, Voegelin (1982, p.39) escreve:

Para serem capazes de atuar, as sociedades políticas devem ter uma estrutura

interna que possibilite a alguns dos seus membros – o governante, o

governo, o príncipe, o soberano, o magistrado, etc., de acordo com a

terminologia da época – obter obediência natural a suas ordens e essas

ordens devem servir às necessidades existenciais da sociedade, tais como a

defesa do reino e a aplicação da justiça – se se permite uma classificação

medieval dos propósitos. Essas sociedades, organizadas internamente para

atuar, não são entes permanentes e estáticos, e sim crescem historicamente; o

processo pelo qual os seres humanos se incorporam numa sociedade capaz

de atuar será denominado a articulação da sociedade. Em consequência da

articulação política, há seres humanos, os governantes, que podem atuar em

nome da sociedade, homens cujos atos não são atribuídos às suas próprias

pessoas mas à sociedade como um todo – o que resulta, por exemplo, em que

a emissão de uma norma geral que regule uma área da vida humana não será

vista pelos membros da sociedade como um exercício de filosofia moral,

mas sim como o estabelecimento de uma norma de cumprimento obrigatório.

Uma pessoa representa a sociedade quando seus atos são percebidos dessa

maneira.

Através da exposição de exemplos históricos, Voegelin demonstra que nem sempre

esta representação abrangeu cada indivíduo da sociedade como um todo. Em termos

históricos, não foi sempre que a articulação da sociedade ocorreu até o nível do indivíduo

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como unidade representável. Este tipo particular de articulação não ocorre em toda parte,

existe apenas nas sociedades ocidentais, não sendo uma qualidade da natureza humana, e,

desta forma, não podendo ser separada de certas condições históricas que só se deram no

Ocidente.

Na atualidade, a articulação fruto da “pressão do simbolismo democrático é a última

fase de uma série de complicações terminológicas que começam nos meados da Idade Média,

com a incipiente articulação das sociedades políticas ocidentais.” Sobre isto, pode-se ler:

A Magna Carta, por exemplo, se refere ao Parlamento como o “commune

consilium regni nostri”, o “conselho comum de nosso reino”. Examinemos

esta fórmula. Ela designa o Parlamento como o conselho do reino e não

necessariamente do povo, visto que o reino, em si, é uma possessão do rei. A

fórmula é característica de uma época para qual convergem dois períodos de

articulação social. Numa primeira fase, o rei é o único representante do reino

e o sentido deste monopólio da representação está preservado no pronome

possessivo acoplado ao símbolo “reino”. Numa segunda fase, as comunas do

reino – condados, burgos, cidades – começam a articular-se até que se

tornaram capazes de atuar como representantes delas mesmas; os próprios

barões deixaram de ser senhores feudais isolados e se associaram no

baronagium, uma comuna capaz de atuar, como se vê na forma securitatis

da Magna Carta. Não é necessário assinalar os detalhes desse processo

complicado; o ponto de interesse teórico é que, quando os representantes das

comunas articuladas se encontram no conselho, formam comunas de uma

ordem superior, e assim sucessivamente até o Parlamento de duas casas, que

se vê a si mesmo como o conselho representante de uma sociedade ainda

maior, o reino como um todo. Com a progressiva articulação da sociedade,

desenvolve-se, assim, uma representação composta peculiar, juntamente com

um simbolismo que expressa sua estrutura hierárquica interna (VOEGELIN,

1982, p.40).

Até onde foi descrito, o símbolo “povo” ainda não é utilizado com referência a um

nível de articulação e representação, lembrando que a articulação é o que garante a

representação que, por sua vez, objetiva garantir ao representante as condições de atuar em

nome da sociedade. Ainda com referência ao exemplo histórico proposto por Voegelin, nos

séculos que se seguiram a Magna Carta, a principal representação permaneceu com o rei. Na

articulação da sociedade, novos participantes da representação foram incluídos dentro da

representação monárquica. De modo que não só o reino pertencia ao rei, também os prelados,

os magnatas e as cidades lhe pertenciam. Porém no tocante aos indivíduos comuns, membros

da sociedade, são simplesmente habitantes ou cidadãos do reino.

A fusão dessa hierarquia representativa em um único representante, o rei no

Parlamento, tomou um tempo considerável; o fato de que esse processo de

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fusão estava ocorrendo só se tornou teoricamente tangível séculos depois,

numa famosa passagem do discurso de Henrique VIII ao Parlamento a

propósito do caso Ferrers. Nessa ocasião, em 1543, o rei disse: “Somos

informados por juízes de que em tempo algum nos elevamos mais em nossa

condição real do que quando o Parlamento está reunido, ocasião em que, nós

como cabeça e vós como membros, nos entrelaçamos e nos articulamos

formando um só corpo político, de tal maneira que qualquer ofensa ou

ataque (durante esse tempo) dirigido contra o mais inferior dos membros da

Casa deve ser julgado como se fosse contra a nossa pessoa e contra toda a

Corte do Parlamento”. A diferença de nível entre o rei o Parlamento ainda é

preservada, mas já pode ser simbolizada através da relação entre a cabeça e

os membros de um corpo; o representante composto transforma-se em “um

só corpo político”; a condição real se engrandece com sua participação na

representação parlamentar e o Parlamento se engrandece com sua

participação na majestade da representação real (VOEGELIN, 1982, p.40).

Sobre o processo histórico no qual se alcança o limite da representação expressa pelo

simbolismo do povo, Voegelin (1982, p.41) declara:

A direção que os símbolos se deslocam deve ter-se tornado clara com esta

passagem: quando a articulação se expande por toda a sociedade, também o

representante se expandirá até que alcance o limite determinado pela

articulação política total da sociedade, até o último indivíduo, e pelo fato

correspondente de que a sociedade se torna o representante de si mesma.

Simbolicamente, esse limite é alcançado na magistral descrição do governo

feito por Lincoln – “do povo, pelo povo, para o povo”. O símbolo “povo”

nesta fórmula significa sucessivamente a sociedade política articulada, seu

representante e a comunidade afetada pelos atos do representante. A fusão

inigualável do simbolismo democrático com o conteúdo teórico é o segredo

do efeito dessa fórmula.

O tipo de representação da sociedade política articulada por seus representantes foi

denominado por Voegelin como “representação existencial” devido ao seu processo de

desenvolvimento histórico, por ter fundamento em pressões histórico-existenciais ou sociais

que conduzem a sociedade a se articular. Deste modo o representante é constituído para atuar

com o fim de resolver os problemas relacionados com estas pressões sociais. Segundo

Voegelin, a questão existencial sempre é o núcleo central do governo bem sucedido,

independentemente dos procedimentos formais que alçam o governo existencialmente representativo à

sua posição. Conforme já demonstrado, originariamente, a forma como a articulação da sociedade

política ocorreu com o objetivo de constituir um representante nem sempre se amparou num modelo

democrático de representação de cada indivíduo de uma sociedade. Voegelin apresentou exemplos

históricos nos quais em sociedades comparativamente mais primitivas, onde grande parte da

população é incapaz de debater racionalmente e organizar partidos políticos que determinem quais as

questões de interesse público, um governo deitará suas bases sobre forças tradicionais ou

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revolucionárias sem o recurso à instituição eleitoral. A tolerância, pela população, de um governo

nesses moldes dependerá de seu maior ou menor sucesso na consecução dos objetivos existenciais que

orientam a instituição de qualquer governo. Se o governo desempenha de forma moderadamente

satisfatória essas funções, os procedimentos que lhe permitem chegar ao poder são de importância

secundária.

Além da “representação existencial” há uma segunda relação na qual a própria

sociedade se torna representante de algo que está além dela, uma realidade transcendente, algo

que foi denominado como “representação transcendental”. Isto, conforme já exposto,

independentemente da interpretação da sociedade realizada por uma Ciência Política, a

sociedade realiza a sua própria auto-interpretação. Isto ocorre porque a sociedade é um

cosmion, um pequeno mundo, um conjunto global de significados, um mundo interiormente

iluminado por sua própria auto-interpretação. E este pequeno mundo de significados, segundo

Voegelin, deve ser precisamente o objeto a ser explorado pela Ciência Política, e o método de

começar pelos símbolos da realidade é o que visa assegurar a apreensão do objeto e esclarecer

teoricamente os símbolos da realidade. Tal procedimento visa evitar um conflito de verdades,

uma verdade representada pelo teórico em contraposição à outra verdade representada pela

sociedade. Uma vez que “os símbolos pelos quais a sociedade interpreta o significado de sua

existência são formulados como verdades”, de acordo com Voegelin (1982, p.49), “se o

teórico faz uma interpretação diferente, ele chega a uma verdade diferente com respeito ao

significado da existência humana em sociedade”.

Na verdade, essa relação pode ser encontrada desde que teve início o registro

da história das principais sociedades políticas que ultrapassaram o nível

tribal. Todos os impérios antigos, tanto do Oriente Próximo quanto os do

Extremo Oriente, viam-se como representantes de uma ordem transcendente,

a ordem do cosmos; e alguns deles chegaram a perceber essa ordem como

uma “verdade”. Quando se recorre às mais antigas fontes chinesas do Shû

King, ou às inscrições egípcias, babilônias, assírias ou persas, verifica-se que

a ordem do império é invariavelmente interpreta como a representação da

ordem cósmica na sociedade humana. O império é análogo ao cosmos, um

pequeno mundo que reflete a ordem do mundo maior e envolvente. O ato de

governar passa a ser a tarefa de assegurar a harmonia entre a ordem da

sociedade e a ordem cósmica; o território do império é uma representação

analógica do mundo com todos os seus quadrantes; as grandes cerimônias do

império representam o ritmo do cosmos; os festivais e os sacrifícios são uma

liturgia cósmica, uma participação simbólica do cosmion no cosmos; e a

pessoa do governante representa a sociedade, porque ele representa na terra

o poder transcendente que mantém a ordem cósmica. A palavra cosmion,

pequeno mundo, usada neste sentido, reflete a dupla significação da situação,

referindo-se ao mesmo tempo à sociedade e seu território e à representação

da ordem cósmica (VOEGELIN, 1982, p.50).

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Neste sentido, a sociedade – representante de uma verdade transcendental, um

pequeno mundo que reflete a ordem do mundo maior – não existe automaticamente, mas é

fundada e necessita ser preservada e defendida. A ordem da sociedade análoga ao cosmo é

uma verdade que necessitada ser constantemente defendida, quando os governantes falham

em realizar esta tarefa a ordem pode ser ameaçada por revoluções internas ou derrotas

externas. Os governantes são representantes existenciais da sociedade e devido a isto se

tornam seus chefes ativos na representação da verdade e em sua defesa. O governo obtido

pelo “consenso do corpo de cidadãos pressupõe a articulação dos cidadãos individualmente

considerados até o ponto em que eles se possam tornar participantes ativos na representação

da verdade através do peitho, a persuasão” (VOEGELIN, 1982, p.63).

Os que estão do lado da ordem da sociedade representam a verdade, enquanto os seus

inimigos representam a desordem e a mentira. Assim seja o confronto interno ocasionado por

processos revolucionários, ou seja, a ameaça oriunda de inimigos externos serão sempre

confrontos entre verdades. Voegelin identifica esta relação não como mera curiosidade do

passado, mas como exemplo de uma estrutura política que pode ocorrer em qualquer época,

especialmente na atualidade.

O auto-entendimento de uma sociedade como representante da ordem

cósmica tem início no período dos impérios cosmológicos, no sentido

técnico, mas não está limitado a esse período. A representação cosmológica

sobrevive, não só nos símbolos imperiais da Idade Média ocidental ou em

sua presença continua na China até o século XX; seu princípio também pode

ser reconhecido em contextos em que a verdade a ser representada é

simbolizada de uma maneira inteiramente diferente. Na dialética marxista,

por exemplo, a verdade da ordem cósmica é substituída pela verdade da

ordem imanente da história. E, no entanto, o movimento comunista é

representante desta verdade simbolizada de modo diferente no mesmo

sentido em que um Khan mongol era o representante da verdade contida na

Ordem de Deus; e a consciência desta representação leva às mesmas

construções políticas e jurídicas encontradas nos outros exemplos de

representação imperial da verdade. Sua ordem está em harmonia com a

verdade da história; seu objetivo é o estabelecimento do reino da liberdade e

da paz; seus oponentes opõem-se a verdade histórica e serão, por fim,

derrotados; ninguém pode empreender uma guerra legítima contra a União

Soviética porque passa a ser um representante da inverdade histórica, ou,

usando a linguagem contemporânea, um agressor; e as vítimas não são

conquistadas, mas libertadas de seus opressores e, em consequência, da

inverdade de sua existência (VOEGELIN, 1982, p.53).

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Em termos de como a “verdade transcendental” tem sido representada no Ocidente,

durante o Império Romano o confronto de verdades foi travado entre Cristianismo e

paganismo. Este confronto de verdades terminou com a vitória do Cristianismo. Outrora, o

Império Romano, sob a influência da religião pagã, era tido como divino, assim como os seus

imperadores também foram divinizados, semelhantemente o mundo e o tempo também eram

considerados divinos. O Cristianismo refutou a noção clássica de tempo como ciclo eterno,

cujo padrão visível é a revolução cíclica dos corpos celestes, bem como a noção de que o

cosmo é eterno e de que a natureza é divina. O Cristianismo, desta forma, desdivinizou o

mundo com base no entendimento judaico-cristão de que o cosmo é criação de Deus e

completamente distinto dele, não compartilhando de sua divindade. Porém, para Voegelin, na

Modernidade se estabelece um processo de redivinização, mas em que consiste este processo?

Sobre quais fundamentos está edificado?

Assim, entender-se-á por desdivinização o processo histórico pelo qual a

cultura do politeísmo morreu de atrofia experiencial e a existência humana

na sociedade foi reordenada mediante a experiência do destino do homem,

pela graça de Deus que transcende o mundo, rumo à vida eterna numa visão

beatífica. Por redivinização, contudo, não se entenderá uma revivescência da

cultura politeísta no sentido greco-romano. A caracterização dos

movimentos políticos de nossos dias como pagãos, a qual goza de certa

popularidade, é enganosa, pois sacrifica a natureza historicamente singular

dos movimentos modernos em favor de uma semelhança superficial. A

redivinização moderna, ao contrário, tem suas raízes no próprio

Cristianismo, a partir de componentes que foram suprimidos como heréticos

pela igreja universal (VOEGELIN, 1982, p.85).

A redivinização moderna “tem suas raízes no próprio Cristianismo, a partir de

componentes que foram suprimidos como heréticos”, afirma Voegelin, que, por sua vez,

compreende que a tensão surgiu da origem histórica do Cristianismo como movimento

messiânico judaico. Nas primeiras comunidades cristãs, havia uma oscilação entre a

expectativa escatológica do retorno de Cristo, a parousia, e a compreensão da igreja como o

apocalipse3 de Cristo na história. Porém esta expectativa escatológica da vinda de Cristo antes

do fim daquela primeira geração de cristãos, algo que, segundo a crença das primeiras

comunidades cristãs, implementaria o reino de Deus na história. Todavia, uma vez que tal

expectativa não se confirmou, a crença cristã evoluiu da escatologia do reino na história em

direção à escatologia da perfeição trans-histórica.

3 A palavra “apocalipse” tem sua origem no grego cujo significado é “manifestação”, “revelação” ou

“desvelamento”. Um termo com profundo sentido escatológico nos textos do Novo Testamento grego e bem

como na literatura apocalíptica tanto judaica quanto cristã.

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Não obstante, a expectativa de uma ocorrência iminente do reino foi

repetidamente atiçada pelo sofrimento resultante das perseguições; e a mais

grandiosa expressão do sentimento escatológico, a Revelação de S. João, foi

incluída no cânone malgrado as dúvidas que inspirou quanto a sua

compatibilidade com a ideia da igreja. A inclusão teve consequências

fatídicas, pois, com a Revelação, foi aceito o anúncio revolucionário do

milênio em que Cristo reinaria com seus santos nesta terra. Mais ainda, a

inclusão não apenas sancionou a permanente efetividade, dentro do

Cristianismo, da vasta literatura apocalíptica judaica, mas também suscitou a

questão imediata de como o milênio podia ser conciliado com a ideia e a

existência da igreja. Se o Cristianismo consistia em desejar ardentemente

uma libertação das coisas do mundo, se os cristãos viviam na expectativa do

fim da história não-redimida, se o destino dos cristãos só podia ser realizado

pelo reino, no sentido do Capítulo 20 da Revelação, a igreja ficava reduzida

a uma comunidade efêmera de homens à espera do grande acontecimento, na

esperança de que ocorresse no transcurso de suas vidas. A nível teórico, o

problema só podeia ser resolvido mediante o tour de force interpretativo

empreendido por Santo Agostinho no Civitas Dei. Nessa obra, Santo

Agostinho rejeitou incisivamente a crença literal no milênio como “fábulas

ridículas”, declarando corajosamente que o reino dos mil anos era o reinado

de Cristo na sua igreja na época presente, a qual duraria até o Juízo Final e o

advento do reino eterno no além (VOEGELIN, 1982, p.85-86).

Fica evidente o protagonismo de Santo Agostinho na elaboração de uma teologia que

tornou possível a evolução da crença cristã da escatologia do reino na história em direção à

escatologia da perfeição trans-histórica, transferindo a expectativa futura da segunda vinda de

Cristo e o estabelecimento do reino de Deus para além da história. A interpretação de

Agostinho de que era inadmissível a esperança revolucionária numa Segunda Vinda que

transfiguraria a estrutura da história na terra permaneceu válida até o fim da Idade Média.

Deste modo, Agostinho direcionou a expectativa escatológica de um reino na história para um

reino cuja consumação só se daria após a história, impossibilitando teoricamente a elaboração

de uma teologia política ancorada na noção escatológica de reino de Deus.

O verbo se tornara matéria em Cristo; a graça da redenção fora concedida ao

homem; não haveria qualquer divinização da sociedade além da presença

espiritual de Cristo em sua igreja. O milenismo judaico foi excluído

juntamente com o politeísmo, assim como o monoteísmo judaico fora

excluído lado a lado com o monoteísmo metafísico pagão. Isso deixava a

igreja como organização espiritual universal dos santos e pecadores que

professavam a fé em Cristo, como representante da civitas Dei na história,

como o clarão da eternidade no tempo. Paralelamente, fazia da organização

de poder da sociedade uma representação temporal do homem, no sentido

específico de uma representação daquela parte da natureza humana que

desaparecerá com a transfiguração do tempo em eternidade. A sociedade

cristã unificada articulava-se nas ordens temporal e espiritual. Em sua

articulação temporal, aceitava a conditio humana sem fantasias sobre o

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milênio, ao mesmo tempo em que valorizava a existência natural mediante a

representação do destino espiritual através da igreja (VOGELIN, 1982,

p.86).

Agostinho elaborou uma teologia da história que possibilitou que a sociedade cristã

ocidental se articulasse nas ordens espiritual e temporal, tendo o papa e o imperador como

representantes supremos tanto em sentido existencial quanto transcendental. A teologia da

história elaborada por Santo Agostinho na Cidade de Deus consiste numa noção

transcendental da história que inclui tanto os acontecimentos na esfera angelical quanto o

descanso eterno. E somente esta história transcendental, que também abrange a peregrinação

terrena da igreja, move-se rumo à realização escatológica. Por sua vez, para Agostinho, a

história profana não tem igual direção, pois consiste na espera do fim, sua atual forma é a de

uma época em estágio terminal.

Todavia, conforme Voegelin, o problema moderno da representação “tem suas raízes

no próprio Cristianismo, a partir de componentes que foram suprimidos como heréticos”.

Assim, no Ocidente a partir de sua sociedade com seu sistema consagrado de símbolos, o

problema da representação moderna ganha força através da ressurgência da escatologia do

reino na história. Segundo Voegelin (1982, p.87), o “movimento tinha uma longa pré-história

social e intelectual, mas o desejo de redivinizar a sociedade produziu um simbolismo próprio,

bem definido, somente por volta do século XII.” Ele identifica a primeira expressão mais

abrangente desta ideia na pessoa e obra de Joaquim de Fiore.

Joaquim rompeu com a concepção agostiniana da sociedade cristã ao aplicar

o símbolo da Trindade ao curso da história. Em sua especulação, a história

da humanidade teve três períodos, correspondentes às três pessoas da

Trindade. O primeiro foi a era do Pai; com o surgimento de Cristo teve início

a era do Filho. Mas esta não será a última, devendo a ela seguir-se a era do

Espírito. As três eras foram caracterizadas como incrementos inteligíveis de

realização espiritual. Na primeira era desdobrou-se a vida do leigo; a

segunda suscitou a vida de contemplação ativa do sacerdote; a terceira traria

a vida espiritual perfeita do monge. Ademais, as eras possuíam estruturas

internas comparáveis e duração passível de ser calculada. Da comparação

entre as estruturas, concluía-se que cada era tinha início com uma trindade

de figuras proeminentes, isto é, dois precursores seguidos pelo líder da

própria era; e, dos cálculos sobre a duração, inferia-se que a era do Filho

terminaria no ano 1260. O líder da primeira era foi Abraão; o da segunda,

Cristo; e predizia Joaquim que, por volta de 1260, apareceria o Dux e

Babylone, o líder da terceira era (VOEGELIN, 1982, p.87).

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Voegelin declara que Joaquim de Fiore através de sua escatologia trinitária criou o

conjunto de símbolos que preside até a atualidade a auto-interpretação da sociedade política

moderna. Voegelin (1982, p.87-88) enumera e exemplifica esse conjunto de símbolos.

O primeiro desses símbolos é a concepção da história como uma sequência

de três eras, das quais a última é claramente o Terceiro Reino final. É

possível reconhecer como variações desse símbolo a divisão da história em

antiga, medieval e moderna; a teoria de Turgot e de Comte acerca da

sequência das fases teológicas, metafísica e científica; a dialética hegeliana

dos três estágios de liberdade e realização espiritual auto-reflexiva; a

dialética marxista dos três estágios do comunismo primitivo, sociedade de

classes e comunismo final; e, por último, o símbolo nacional-socialista do

Terceiro Reino – embora este seja um caso especial, a exigir maior atenção.

O segundo símbolo é o referente ao líder. Este símbolo teve eficácia

imediata no movimento dos religiosos franciscanos que viram em S.

Francisco a concretização da profecia de Joaquim, cuja eficácia foi ainda

reforçada pela especulação de Dante acerca do Dux da nova era espiritual.

Posteriormente, o símbolo pode ser encontrado nas figuras paracléticas, os

homines spirituales e os homines novi do fim da Idade Média, do

Renascimento e da Reforma; pode ser vislumbrado como componente do

príncipe de Maquiavel; e, no período de secularização, surgiu nos super-

homens de Condorcet, Comte e Marx, até que veio dominar o panorama

contemporâneo através dos líderes paracléticos dos novos reinos. O terceiro

símbolo, às vezes combinado ao segundo, é o do profeta da nova era. A fim

de emprestar validade e convicção à ideia do Terceiro Reino final, é

necessário presumir que o curso da história, como um todo inteligível e

significativo, seja acessível ao conhecimento humano, quer através de uma

revelação direta, quer através de uma gnose especulativa. Por conseguinte, o

profeta gnóstico ou, nos estágios posteriores da secularização, o intelectual

gnóstico torna-se um acessório da civilização moderna. O próprio Joaquim é

o primeiro exemplar dessa espécie. O quarto símbolo é o da irmandade de

pessoas autônomas. A terceira era de Joaquim, devido à nova descida do

espírito, transformará os homens em membros de novo reino sem a

mediação sacramental da graça. Nessa era, a igreja deixará de existir porque

os dons carismáticos necessários à vida perfeita chegarão aos homens sem a

administração dos sacramentos. Embora Joaquim concebesse a nova era

concretamente como uma ordem de monges, a ideia da comunidade dos

espiritualmente perfeitos, que podem viver em conjunto sem qualquer sem

qualquer autoridade institucional, foi formulada como uma questão de

princípio. A ideia prestava-se a variações infinitas. Ela pode ser encontrada,

em graus diferentes de pureza, nas seitas medievais e renascentistas, assim

como nas igrejas puritanas dos santos; em sua forma secularizada, tornou-se

um componente formidável do credo democrático contemporâneo; e

constitui o núcleo dinâmico dos misticismo marxiano acerca do reino da

liberdade e do gradual desaparecimento do estado.

Esta nova escatologia proposta por Joaquim de Fiore deslocou para a história

elementos cuja consumação, em termos agostinianos, só se daria numa realidade trans-

histórica e transcendente, afetando, desta forma, decisivamente a estrutura política moderna.

Na especulação de Joaquim de Fiore, foi utilizado o que estava disponível na ocasião, o

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significado da história transcendental conforme proposto por Agostinho, porém dando-lhe um

curso imanente que não constava na concepção agostiniana. Esta foi, segundo Voegelin, a

primeira tentativa ocidental de imanentização, guardando ainda a conexão com o

Cristianismo.

A nova era de Joaquim traria maior realização dentro da história, mas isso

não seria devido a uma erupção imanente, e sim viria através de uma nova

irrupção do espírito. A ideia de uma realização radicalmente imanente

cresceu de forma vagarosa, num longo processo que, grosso modo, pode ser

caracterizado como uma transição “do humanismo ao iluminismo”; somente

no século XVIII, com a ideia de progresso, o aumento do significado na

história tornou-se um fenômeno completamente intramundano, sem

irrupções transcendentais. Chamaremos de “secularização” essa segunda

fase da imanentização (VOEGELIN, 1982, p.92).

Voeglin realizou o exame histórico deste crescimento vagaroso da “ideia de uma

realização radicalmente imanente” no volume quatro da História das ideias políticas, no qual

aborda a Renascença e a Reforma. Ele faz isto, ao analisar as tensões entre instituição e

movimento, realizando uma distinção entre dois planos da civilização ocidental, um mais

elevado e um inferior:

O plano elevado vamos caracterizá-lo de uma maneira preliminar como o

das instituições públicas; o plano inferior, como o dos movimentos que estão

em permanente revolta contra as instituições estabelecidas. Desde o começo

do século XI, a história espiritual e intelectual da civilização ocidental foi

ordenada em ambos os planos; além disso, boa parte dessa história é a

história da interação entre instituições públicas e os movimentos de revolta

(VOEGELIN, 2014, p.156).

Ainda no contexto das tensões entre instituição e movimento, Voegelin (2014, p.157)

pondera sobre como esta tensão assume traços específicos não encontrados da mesma maneira

em outras civilizações:

O leitor se lembrará de nossa discussão do apolitismo helênico. Nessa

ocasião observamos que a tensão entre as instituições da pólis e os

sentimentos dos grupos apolíticos seriam recorrentes de uma forma mais

radical numa civilização cristã, porque a ideia cristã da pessoa em

proximidade com Deus se mostraria o irritador permanente contra as

instituições. A ideia da pessoa cristã funcionaria como um agente de revolta

contra a institucionalização das relações entre a alma e Deus e como um

agente de regeneração das instituições.

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Como resultado deste princípio, para Voegelin, as revoluções tanto religiosas quanto

políticas ocorrem devido a incapacidade da instituição resolver os problemas levantados por

grupos de insatisfeitos. Estes, sentindo-se deixados de fora, podem formar comunidades e se

organizar para a ação política. Quando isto ocorre, a situação está madura para uma

revolução. A capacidade de lidar com movimentos de espirituais insatisfeitos dentro da

instituição cristã, evitando o colapso, denomina-se reforma:

A resposta a um movimento espiritual a partir da base não depende de um

colapso; pode ser a reforma da instituição. A categoria da reforma, então,

torna-se uma ideia que distingue a civilização medieval e moderna da

helênica. De fato os cinco séculos de 1000 a 1500 são caracterizados pela

digestão de movimentos espirituais radicais através de uma série de reformas

menores assim como pela supressão social, algumas vezes sangrenta, das

escórias indigestas desses movimentos (VOEGELIN, 2014, p.159)

Voegelin descreve o modo como as queixas legítimas de um movimento espiritual, o

seu apelo à reforma, podem ser acompanhadas de hostilidade aos valores civilizacionais,

ressentimentos contra os valores intelectuais e estéticos da classe mais alta, “o clamor por

reforma espiritual é tipicamente unido às exigências de uma ‘queima de livros’, de uma

supressão da cultura literária e artística” (2014, p.159).

Essas misturas anticivilizacionais são duplamente perigosas para as

instituições. São um perigo por seu ataque imediato aos valores

civilizacionais; e são ainda um perigo pior porque essa mistura empresta

legitimidade à resistência institucional contra os movimentos; os elementos

anticivilizacionais em movimentos tornam-se desculpas para os grupos

reinantes não satisfazerem queixas legítimas, e a vitória momentânea da

instituição pode tornar-se, em consequência, a causa de insurreições ainda

piores no futuro” (VOEGELIN, 2014, p.159-160).

Neste sentido, quando a instituição falha na realização da reforma, reforçará o

ressentimento contra os valores civilizacionais na instituição, fazendo com que o

ressentimento vire-se contra os próprios valores espirituais.

O processo que começou com movimentos de reforma espiritual pode

terminar com movimentos contra o espírito. Esse tem sido, de fato, o curso

dos movimentos na civilização ocidental: o curso começa com movimentos

do tipo albigense; termina com movimentos do tipo comunista e nacional-

socialista. O desenvolvimento não tem paralelo na história. A civilização

cristã ocidental tem uma vulnerabilidade peculiar e mostra problemas

peculiares de declínio: enquanto na civilização greco-romana a tensão do

declínio era causada por movimentos que representavam um avanço do

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espírito, na civilização cristã ocidental a tensão do declínio é causada por

movimentos que são espiritualmente regressivos (VOEGELIN, 2014, p.160).

No tocante a uma periodização do movimento, tendo como critério a capacidade de

absorção das instituições no tocante as iniciativas desencadeadas pelos movimentos. Até

1300, a Igreja era ainda capaz de lutar contra os problemas – exemplo disto, foi a absorção

dos movimentos religiosos populares do começo do século XIII por meio das novas ordens

mendicantes. Depois 1300, o quadro muda – o grande movimento místico do século XIV,

representado por figuras como Eckhart, não foi absorvido, mas tratado como heresia; os

movimentos da pré-reforma foram vencidos pela violência, como o caso do movimento

hussita. O período de 1300 a 1500 pode ser caracterizado como de capacidade de absorção

decrescente. De 1500 a 1700 – o período dos séculos protestantes – é marcado por

movimentos que se tornaram poderosos o suficiente para despedaçar as instituições,

resultando na criação de igrejas rivais cismáticas. O último período dos movimentos começa

em 1700, sobre este período Voegelin (2014, p.163) declara:

No entanto, podemos distinguir entre o internacionalismo religioso dos

séculos XVI e XVII como um arrebol da tarde do universalismo cristão e o

novo internacionalismo do tipo positivista e comunista que se desenvolveu

fora da tradição cristã e mesmo contra ela. Ademais, essa consideração

apresenta a segunda característica dos movimentos nesse período: seu caráter

secularista anticristão. Aqui, afinal, aconteceu o que avultava como um

perigo mesmo no caráter anticivilizacional anterior dos movimentos: o

clamor pela reforma espiritual que seguiu desatendida, ou foi

insuficientemente resolvida pelas instituições, transformou-se gradualmente

num clamor pela destruição completa dessas instituições porque o próprio

espírito que está vivendo nelas é a causa dos males. O clamor de reforma

transformou-se num ataque ao espírito.

Por meio deste exame, Voegelin apresenta as experiências históricas que ocasionaram

mudanças no cenário religioso e cultural do Ocidente desde o século XI até o XVIII. Assim,

pode-se entender melhor como ocorreu o crescimento vagaroso da “ideia de uma realização

radicalmente imanente”, desde a primeira tentativa de imanentização ocidental com Joaquim

de Fiore até a sua segundo fase, caracterizada como “uma transição do ‘humanismo ao

iluminismo”, fase de imanentização chamada por Voegelin de “secularização”.

Segundo Voegelin, a imanentização de Joaquim de Fiore suscitou um problema

teórico que não ocorria na antiguidade clássica, nem tão pouco no cristianismo ortodoxo, o

problema do eidos da história. No pensamento helênico, o problema da essência da história e

da essência na política estava associado pelo ritmo de crescimento e decadência cósmicos.

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Assim a polis tinha um eidos, porém, como a realização deste é presidida pelo ritmo de

crescimento e decadência, a essência na realidade política se constituía o mistério da

existência, e não um eidos adicional. Porém a mensagem soteriológica cristã rompeu com este

ritmo de existência pagã.

O homem e a humanidade agora tem sua realização, mas ela está além da

natureza. Mais uma vez, nesse caso, não há um eidos da história, porque a

sobrenatureza escatológica não é uma natureza no sentido filosófico e

imanente. Portanto, o problema do eidos na história só se põe quando a

realização transcendental cristã é imanentizada. Contudo, tal hipótese

imanentista do eschaton é uma falácia teórica. As coisas não são coisas, nem

possuem essência em virtude de uma declaração arbitrária. O curso da

história como um todo não é objeto da experiência; a história não possui um

eidos, e isso porque seu curso se estende ao futuro desconhecido. Assim, o

significado da história é uma ilusão; e esse eidos ilusório é criado ao se tratar

um símbolo de fé como se fosse uma proposição relativa a um objeto da

experiência imanente (VOEGELIN, 1982, p.92).

“A tentativa de construir um eidos da história conduzirá a imanentização falaciosa do

eschaton cristão”, afirma Voegelin, e os pormenores disto conduz a percepção de que o

simbolismo cristão do destino sobrenatural possui por si próprio uma estrutura teórica

preservada até mesmo nas variantes da imanentização.

O avanço do peregrino, a santificação da vida, constitui um movimento rumo

a um telos, uma meta; e essa meta, a visão beatífica, é um estado de

perfeição. Daí, no simbolismo cristão, podem-se distinguir o movimento,

como seu componente teleológico, e um estado de valor máximo, como seu

componente axiológico. Os dois componentes ressurgem nas variantes da

imanentização, podendo, por conseguinte, ser classificados como variantes

que, em seu simbolismo, acentuam seja o componente teleológico, seja o

componente axiológico, ou ainda combinam ambos. No primeiro caso,

quando a ênfase recai fortemente sobre o movimento, sem que haja clareza

acerca da perfeição final, o resultado será a interpretação progressista da

história. O objetivo não precisa ser esclarecido porque os pensadores

progressistas, homens como Diderot ou D’Alembert, presumem a seleção de

fatores desejáveis como padrão e interpretam o progresso como um aumento

qualitativo e quantitativo do bem presente – o “maior e melhor” do slogan

simplificador. Essa é uma atitude conservadora, a qual se pode tornar

reacionária a menos que o padrão original seja ajustado à situação histórica

em fluxo. No segundo caso, quando a ênfase é posta incisivamente sobre o

estado de perfeição, sem nitidez acerca dos meios necessários para sua

realização, o resultado será o utopismo. Ele pode tomar a forma de um

mundo de sonho axiológico, tal como na utopia de More, quando o pensador

ainda se mantém consciente de que o sonho é irrealizável e das razões

porque o é; ou, como fruto de um crescente analfabetismo teórico, pode

assumir a forma de vários idealismos sociais, tais como a abolição da guerra,

da distribuição desigual da propriedade, do medo e da necessidade. E,

finalmente, a imanentização pode-se estender à totalidade do símbolo

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cristão. O resultado será então o misticismo ativo de um estado de perfeição,

a ser atingido através da transfiguração revolucionária da natureza do

homem, tal como, por exemplo, no marxismo (VOEGELIN, 1982, 93).

Conforme Voegelin afirmou, “a tentativa de construir um eidos da história conduzirá à

imanentização falaciosa do eschaton cristão”. Deste modo, na compreensão de que houve

uma imanentização falaciosa, jaz a desconcertante questão sobre que tipo de homem se deixa

enganar por ela, uma vez que a falácia parece bastante óbvia. Disto, pode-se ingenuamente

tentar explicar sete séculos de história intelectual em termos de ignorância ou de

desonestidade. Isto quando se parte da presunção de que os pensadores que empreenderam a

tentativa não puderam discerni-la por falta de conhecimento. Ou se a discerniram, optaram

por manter silêncio por algum motivo malévolo. Voegelin, porém, compreende que a

explicação pode ser encontrada no que tais pensadores conseguiram através da sua construção

falaciosa.

Eles obtiveram uma certeza sobre o significado da história, e seu próprio

lugar na história, que de outro modo jamais teriam. Ora, existe sempre uma

demanda pelas certezas, a fim de vencer as incertezas e seu séquito de

ansiedades. A questão seria: que incerteza específica era tão perturbadora

que se fazia mister superá-la mediante o recurso duvidoso à imanentização

falaciosa? Não é preciso ir longe para encontrar a resposta. A incerteza é a

própria essência do Cristianismo. A sensação de segurança num “mundo

repleto de deuses” desaparece com os próprios deuses; quando o mundo é

desdivinizado, as comunicações com o Deus que transcende o mundo ficam

reduzidas ao tênue vínculo da fé, no sentido dado em Hebreus 11:1, como a

substância daquilo que se espera e a demonstração do que não se vê.

Ontologicamente, a substância das coisas desejadas só pode ser encontrada

na própria fé; e, epistemologicamente, a única prova das coisas invisíveis

está também na própria fé. O vínculo é verdadeiramente tênue, e pode ser

rompido com facilidade. A vida da alma aberta a Deus, a espera, os períodos

de aridez e enfado, culpa e desespero, desamparo e esperança quando já não

há esperança, o frêmito silencioso do amor e da graça, o tremor diante de

uma certeza que, se conquistada, é perda – a própria leveza desse tecido

pode-se constituir num manto por demais pesado para os homens que

anseiam por uma experiência maciçamente possessiva. O risco de um

colapso da fé em grau socialmente significativo aumenta na medida em que

o Cristianismo se converte em êxito temporal, isto é, cresce quando o

Cristianismo penetra inteiramente numa área civilizacional, com o apoio de

pressões institucionais, e, ao mesmo tempo, sofre um processo interno de

espiritualização, de realização mais plena de sua essência. Quanto mais

pessoas são atraídas para órbita cristã, de moto próprio ou sob pressão, maior

será o número daqueles que não possuem a força espiritual exigida para a

heroica aventura da alma que é o Cristianismo. A probabilidade da perda de

fé aumenta também na medida em que o progresso civilizacional da

educação, da alfabetização e do debate intelectual faz com que toda a

seriedade do Cristianismo seja compreendida por um número crescente de

pessoas. Esses dois processos caracterizaram o apogeu da Idade Média. Os

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pormenores históricos não vêm ao caso; basta mencionar o crescimento das

sociedades urbanas, com sua intensa cultura espiritual, como centros

primários a partir dos quais o perigo irradiou a toda a sociedade ocidental

(VOEGELIN, 1982, p.94).

A massificação do problema da perda da fé no sentido cristão dependerá do conteúdo

do meio civilizacional no qual as pessoas estarão inseridas. E, em meio a esta crise de fé, a

busca por certeza e por evitar cair num vazio de sentido, conduzirá as pessoas a recorrer a

uma cultura menos diferenciada de experiência espiritual. Como recorrer ao politeísmo greco-

romano, na civilização do século XII, foi impossibilitado devido à influência cristã.

A queda só podia ser evitada por alternativas experienciais, suficientemente

próximas à experiência da fé para que apenas um olhar muito penetrante

pudesse distinguir a diferença, mas dela afastadas o bastante para aliviar a

incerteza da fé em sentido estrito. Tais experiências alternativas estavam

disponíveis na gnose que acompanha o Cristianismo desde suas mais

remotas origens (VOEGELIN, 1982, p.94-95).

Voegelin descreve a tentativa de imanentizar o significado da existência como um

esforço para obter o domínio sobre o conhecimento da transcendência maior do que o

propiciado pela cognitio fidei (a cognição da fé), segundo ele, as experiências gnósticas

oferecem esse maior domínio na medida em que se constituem uma expansão da alma até o

ponto em que Deus é trazido para dentro da existência do homem.

Tal expansão envolverá as diferentes faculdades humanas, razão pela qual é

possível distinguir diversas variedades gnósticas de acordo com a faculdade

que predomina no esforço de obter esse maior controle sobre Deus. A gnose

pode ser primacialmente intelectual e assumir a forma de uma penetração

especulativa nos mistérios da criação e da existência, como o foram, por

exemplo, as gnoses contemplativas de Hegel ou Schelling. Ou pode ser

basicamente emocional, tomando a forma de uma presença da substância

divina na alma humana, como, por exemplo, nos líderes sectários

paracléticos. Pode ser ainda principalmente volitiva, tomando a forma de

uma redenção ativista do homem e da sociedade, tal como representada por

ativistas revolucionários como Comte, Marx ou Hitler. Essas experiências

gnósticas, em toda a sua variedade, constituem o núcleo da redivinização da

sociedade, pois os homens que recorrem a essas experiências divinizam-se

ao substituir a fé, no sentido cristão, por formas mais concretas de

participação na essência divina (VOGELIN, 1982, p.95).

Conforme o Voegelin já havia constatado, a redivinização moderna não poderia

ocorrer nos moldes do paganismo greco-romano, pois este desapareceu como cultura viva na

sociedade. Em outros termos, “a cultura do politeísmo morreu de atrofia experiencial e a

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existência humana na sociedade foi reordenada mediante a experiência do destino do homem,

pela graça de Deus que transcende o mundo, rumo à vida eterna numa visão beatífica.” O

diagnóstico voegeliano apontou que a redivinização moderna, ao contrário, possui suas raízes

no próprio Cristianismo em componentes heréticos suprimidos. Dentre estes componentes, a

gnose acompanha o Cristianismo desde as suas origens, constituindo-se numa cultura

religiosa viva que esteve na base dos movimentos religiosos que abalaram a Europa desde o

século XII até a Reforma. Um elemento apontado por Voegelin que interessa a esta pesquisa é

que o avanço da ciência a partir do século XVIII. Como parte deste compartilhamento da

essência divina, a ciência, novo instrumento de cognição, viria se tornar o veículo simbólico

da verdade gnóstica. Para Voegelin, o cientificismo é um dos poderosos movimentos

gnósticos na sociedade ocidental, manifestando-se na forma de um orgulho imanentista na

ciência tão forte que até mesmo os ramos especiais da ciência deixam sedimentos tangíveis

nas variantes de salvação através da física, da economia, da sociologia, da biologia e da

psicologia.

2.3 A controvérsia entre a secularização e a legitimidade da Modernidade

Resguardadas as particularidades do conteúdo teórico destes três autores (Löwith,

Schmitt e Voegelin) expostos, há um ponto central no qual são concordantes, há na

Modernidade a permanência de conceitos teológicos secularizados. Em outros termos, os

conceitos embora sejam apresentados de forma secularizada preservam uma identidade

substancial.

Embora isto já tenha sido afirmado por teólogos (Troeltsch e Gogarten), o primeiro

filósofo a escrever uma análise reconhecendo este fenômeno foi Karl Löwith. E como forma

de estabelecer um debate com texto de Löwith, Hans Blumenberg publicou em 1966 Die

Legitimität der Neuzeit (A legitimidade dos tempos modernos).

Blumenberg (1983) foi o primeiro a apresentar uma crítica à categoria de

secularização conforme apresentada por Löwith. A teoria de Löwith compreende a ideia de

“progresso inevitável” presente nas obras de autores Iluministas como resultado da

secularização da escatologia cristã, trazendo para o centro da discussão filosófica a questão da

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legitimidade e ilegitimidade da Idade Moderna. Por sua vez, Blumenberg defende a

legitimidade e a originalidade próprias da Modernidade.

Como escopo do debate sobre legitimidade e ilegitimidade da Idade Moderna está o

intento moderno a uma originalidade, pois, uma vez que a Modernidade seja caracterizada

como o novo, esta é posta na posição de ter que justificar a sua própria legitimidade.

Ao se pensar como uma nova época, a idade moderna “criou” as outras

épocas históricas das quais ela difere. Sua própria identidade é dada, por

assim dizer, em comparação ao que veio antes dela. No século XVIII, a

concepção dos philosophes de um progresso inevitável contribuiu para a já

controvertida pretensão da modernidade de começar a partir do nada

(SOUZA, 1995, p.302).

Robert M. Wallace (1983, p.xvi-xvii), tradutor da edição estadunidense (The

Legitimacy of the Modern Age), escreveu que a crítica de Blumenberg se fundamenta em dois

principais elementos. Como primeiro elemento, Blumemberg aponta que o futuro que a ideia

de progresso moderno antecipa é concebido como o produto de um processo imanente de

desenvolvimento ao invés de uma intervenção transcendente comparável à vinda do Messias,

o fim do mundo, ou o Juízo Final. E se o elemento comum é uma suposta esperança, a atitude

cristã para com os eventos finais tem sido muito mais caracterizada pelo medo do que pela

esperança. Segundo Blumenberg, a maior parte da era cristã se caracteriza por desencorajar

precisamente o tipo de esforço construtivo voltado para o futuro, algo que está implícito no

progresso – de modo que a transformação de um no outro é muito difícil de imaginar. O

segundo elemento proposto por Blumenberg é que devem ser consideradas alternativas para a

origem da ideia de progresso, e não simplesmente a reduzir a uma projeção ingênua de um

período otimista na história da Europa, como faz Löwith. Blumenberg descreve a ideia de

progresso como decorrente de duas formas primárias de experiências formativas: a superação

do status fixo e autoritário de ciência aristotélica pela ideia de uma ciência cooperativa, em

longo prazo produzindo um progresso científico guiado pelo método; e a superação (no

mundo literário e do domínio estético) da ideia de arte e literatura antigas como modelos

permanentemente válidos de perfeição em favor da ideia de que as artes são o espírito criativo

de suas épocas particulares e, nesse sentido, como capaz de novamente alcançar validade

igual à das criações dos antigos. Estes dois desenvolvimentos paralelos, os quais ocorrem

principalmente no curso do século XVII, são seguidos por um processo no qual a ideia se

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estende a outras formas (tecnologia, sociedade) e sendo generalizada como a ideia de

progresso em toda a linha.

Segundo José Carlos de Souza (1995), central no projeto de Blumenberg é a

concepção da “afirmação-do-eu” (self-assertion) como um programa existencial do qual a

modernidade deriva a sua própria legitimidade. Porém Blumenberg reconhece que a guinada

para o “eu” não surgiu do nada, ela está situada dentro de um contexto mais amplo que inclui

o que veio antes dela, em especial o Cristianismo Medieval. Através da “tese de reocupação”

(reoccupation thesis), Blumenberg demonstra que a relação de continuidade entre a Idade

Moderna e a Idade Média deve ser compreendida em termos de funções e não de substância.

Ou seja, a Idade Moderna tentou responder a um conjunto de questões que o Cristianismo

havia formulado, crendo já possuir as respostas.

De acordo com Blumenberg, ao introduzir o conceito de uma creatio ex

nihilo, o Cristianismo foi capaz de fazer uma reivindicação no que

concerne o sentido da totalidade do mundo e da história. Após a guinada

moderna os pensadores modernos se sentiram ainda obrigados a responder

as questões que não eram propriamente modernas mas medievais, e que

diziam respeito a totalidade da história, fazendo uso dos meios limitados

que a razão oferece. Desse modo, as idéias modernas legítimas se viram

forçadas a reocupar as posições deixadas pelo Cristianismo Medieval

(SOUZA, 1995, p.303).

Para Blumenberg, continua Souza (1995, p.303-304), se faz necessário que a Idade

Moderna se livre da ideia de que exista um cânone de grandes questões que acompanham a

curiosidade humana inalteradamente. Segundo Blumenberg, nem sempre as questões

precedem as respostas. Muitas vezes as respostas já estão dadas antes mesmo da formulação

de suas respectivas questões. A Idade Moderna herdou do Cristianismo Medieval uma série

de questionamentos radicais que este se havia colocado na certeza de já possuir respostas para

eles. A Idade Moderna se sentiu obrigada a responder a estas questões. Desta forma,

concepções modernas legítimas como a de um progresso possível, por exemplo, se tornaram a

concepção do progresso inevitável do século XVIII. A concepção de um progresso inevitável

tenta, no entender de Blumenberg, reocupar a posição deixada pelo Cristianismo de ter que

dar uma resposta ao que tange a totalidade da história, seu sentido e destinação última. No

que diz respeito à secularização especificamente, Blumenberg introduz o conceito de

“secularização pela escatologia” ao invés de “secularização da escatologia”.

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Blumenberg admite a continuidade entre Idade Média e Idade Moderna, porém esta

não é o resultado da secularização de algo originalmente cristão. Ele reconhece uma

continuidade de problemas em vez de soluções, de perguntas e não de respostas. No meio

deste processo, está “auto-afirmação humana” na qual o “progresso” contribuiu como um

modo de execução. A atividade humana de inquirir realizou mudanças no pensamento

tradicional do Ocidente, tomando ideias anteriormente fixas e herdadas e, após as submeter a

questionamentos, conferindo-lhes novo significado. Isto fica bastante evidente na parte II do

livro, “absolutismo teológico e auto-afirmação humana”. Bem como nas partes III e IV, no

que se refere à Idade Moderna não ser resultado de uma transformação de conceitos

originários do Cristianismo, porém isto significa que tenha a sua existência de forma

espontânea, como se procedesse de um vazio histórico.

Blumenberg contestou a capacidade da secularização para explicar a complexidade da

época moderna. Ele contrapôs à secularização a categoria de legitimidade e esta estaria

estabelecida no que, em sua interpretação, é a legítima metáfora da Modernidade, a

“revolução copernicana”. Por sua vez, compreendida como capacidade do sujeito se tornar

senhor do próprio destino e, como consequência, se auto-afirmar. Deste modo, a relação entre

os conceitos próprios da Modernidade e os conceitos teológicos da época anterior, no

entendimento de Blumenberg, não deve ser compreendida como transformação, mas como

dissolução dos conceitos teológicos.

2.4 Conclusão

O debate filosófico no tocante a relação de continuidade ou de descontinuidade entre

Idade Média e Idade Moderna se debruçou sobre o processo de secularização e a necessidade

da Idade Moderna apresentar justificativas a respeito da sua pretensão a uma originalidade.

Pois, uma vez que a Modernidade seja caracterizada como o novo, esta é posta na posição de

ter que justificar a sua própria legitimidade.

No escopo dos que defendem o fenômeno secularização como crucial para o

entendimento das categorias mais significativas da novidade moderna (a história, a ética, a

política e a ciência), há uma concordância de que nesta novidade moderna permanecem

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presentes elementos teológicos tradicionais, porém retirados do campo da transcendência e

submergidos na imanência histórica.

Voegelin descreveu este processo como redivinização do mundo, não nos moldes do

paganismo greco-romano, mas a partir de elementos cristãos heréticos que outrora foram

reprimidos, dentre estes, o mais significativo foi o gnosticismo. Löwith, por sua vez, em sua

análise do pensamento histórico moderno, concluiu que a consciência histórica moderna se

iniciou com o pensamento hebraico e cristão, principalmente no que se refere a sua

perspectiva escatológica em direção a uma realização futura, e esta perspectiva foi

transformada num processo contínuo de ação humana e desenvolvimentos seculares. E, por

sua vez, Schmitt afirma que a imagem metafísica que de seu mundo se forja uma determinada

época tem a mesma estrutura que forma a organização política que essa época tem por

evidente. E como a Idade Moderna redivinizou o mundo, Schmitt identifica que, em termos

político-teológicos, o Estado Democrático de Direito reproduz uma imagem metafísica de

mundo panteísta. Neste aspecto, Schmitt difere de Voegelin com respeito ao entendimento de

redivinização moderna, pois para Schmitt isto ocorre nos moldes do paganismo.

Como contraposição a esta leitura, há os que, semelhantemente a Blumenberg,

concebem o moderno em termos de autofundação e originalidade própria. E no tocante a

relação da novidade moderna com o antigo, o universo simbólico medieval, esta se dá em

termos de condições históricas de possibilidade de surgimento do novo. Blumenberg, em

oposição a Löwith, propõe ao invés da noção “secularização da escatologia” a noção de

“secularização pela escatologia”, neste sentido, o que é próprio da Modernidade e os

conceitos teológicos da época anterior, não devem ser compreendidos como transformação,

mas como dissolução dos conceitos teológicos. Assim a continuidade entre Idade Média e

Idade Moderna ocorre no tocante à permanência de problemas e de questões a serem

solucionados. A Modernidade não é o resultado da secularização de algo originalmente

cristão. Com isto, opera-se uma afirmação absoluta da novidade que é promovida como

legitimada pela sua própria vigência histórica.

Por sua vez, o conceito de legitimidade proposto por Blumenberg apresenta o mesmo

fenômeno denotado pelo termo secularização, porém de um ponto de vista imanente, tendo o

sujeito no centro deste processo. Isto foi bem identificado por Marramao (1995, p.30-31),

quando aponta que a legitimidade é uma categoria jurídica, e a extensão metafórica de seu uso

gera problemas não menos delicados do que aqueles aos quais dá lugar o conceito de

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secularização, isto porque a ideia de autolegitimação moderna não faz mais do que transferir à

subjetividade do indivíduo os tradicionais atributos teológico-políticos da soberania. Isto fica

evidente quando se relembra o exposto por Schmitt sobre este ponto, “soberano é quem

decide sobre o estado de exceção”. Assim, Blumenberg, ao relacionar a legitimidade moderna

com a “auto-afirmação humana”, faz deste sujeito moderno o soberano no sentido analisado

por Schmitt com todas as suas implicações político-teológicas. E a ideia da Modernidade

como processo não tanto transformativo, quanto mais dissolutivo das hipóstases teológico-

metafísicas não é absolutamente estranha à tese da secularização, mas, ao contrário,

representa uma sua variante interna.

Até aqui, buscou-se compreender numa perspectiva filosófica o conceito de

secularização e suas implicações para Modernidade. Para os objetivos desta pesquisa, a

secularização, em termos teóricos, é um conceito elucidativo, principalmente no que se refere

ao modo como descreve a transferência de elementos da transcendência para a imanência

histórica. Neste sentido, tanto análises que focalizam o caráter revolucionário do pensamento

histórico moderno quanto às análises que apontam para divinização seja do mundo como um

todo ou do sujeito moderno em particular.

No tocante ao caráter revolucionário do pensamento histórico moderno, conforme

demonstrado por Löwith, a ruptura da tradição que se realizou no final do século XVIII, em

aliança com acontecimentos históricos importantes como a Revolução Francesa e a Revolução

Industrial na Inglaterra e os seus efeitos universais sobre o Ocidente realçaram a moderna

sensação de se viver numa época na qual as mudanças históricas ganham importância; além

disto, não somente as inovações da ciência ganharam maior velocidade, fortalecendo o

otimismo humano no tocante as mudanças sócio-históricas, como tornaram a natureza um

elemento controlável, dando a humanidade a função de condutores ou criadores da história.

Ou seja, a humanidade diante dos acontecimentos não mais se via obrigada, em termos

maquiavélicos, a aguardar passivamente pela fortuna, mas sob, a força de sua própria virtú,

antecipar e resolver problemas, desde modo, projetando o futuro.

Já no tocante ao sujeito moderno, enquanto alguém que se compreende com poderes

para fazer a história, assume funções outrora atribuídas às divindades. No caso dos poderes

para fazer a história, estes são compreendidos como fornecidos pelo conhecimento técnico e

científico. E como a história enquanto secularização do eschaton se projeta para o futuro, isto

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é um campo fértil para o florescimento de utopismos de toda sorte e dentre estes os

tecnológicos como o trans-humanismo.

É o futuro que passa a ser vislumbrado pela humanidade, isto é ainda uma

reminiscência religiosa, herança da tradição profética do judaísmo bíblico

veterotestamentário. Os profetas eram visionários do futuro, assim como os intelectuais

modernos, tomados por sua hybris, apostam em suas ideias como uma nova percepção da

realidade e descoberta de como realizar o anseio por um mundo melhor. Ideias e domínio

técnico como instrumentos políticos para revolucionar o mundo. Desta feita, uma revolução

biotecnológica, a crença no poder de transmutar a condição humana por meio do

conhecimento tecno-científico, uma evolução que não se ampara no curso da natureza, mas é

realizada sob a égide da cultura humana, redenção através do conhecimento (gnosis).

CAPÍTULO 3

MODERNIDADE E SECULARIZAÇÃO: QUESTÕES SOCIOLÓGICAS

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De certa forma este capítulo é uma continuidade do anterior, servindo-lhe de

complementação. No anterior, abordou-se o conceito de secularização na perspectiva do

debate filosófico relacionado à sua gênese, seu desenvolvimento teórico e suas implicações

para Modernidade. Já, neste capítulo, dar-se-á atenção ao exame de questões relacionadas à

secularização enquanto tema sociológico.

Neste sentido, a discussão é iniciada por meio de uma exposição sobre as principais

análises sociológicas contemporâneas sobre o conceito de secularização. Tomando como

referência a década sessenta como período do surgimento das teorias clássicas da

secularização, a exposição prossegue através da análise de textos contemporâneos que podem

ser agrupados em dois grupos. O primeiro grupo reúne teorias que podem ser denominadas de

adeptas da secularização, enquanto o segundo reúne teorias adversárias da secularização.

Feito isto, a atenção se volta para tópicos pertinentes ao tema desta pesquisa, a

permanência de noções religiosas ou teológicas em formas laicizadas em fenômenos

modernos que não são explicitamente religiosas. Em meio a isto, o conceito de secularização

é vital devido ao modo como descreve a transferência de elementos da transcendência para a

imanência histórica. Algo já anteriormente explicado e novamente aqui.

É primordial para compreensão deste tema a relação entre as ideias e as

transformações na sociedade, ou as transformações na sociedade e as ideias, ou seja, a relação

dialética entre o pensamento/consciência e a sociedade. E isto é uma questão pertinente para a

Sociologia do Conhecimento.

Então, isto esclarecido, a reflexão se volta para assuntos como “secularização da

consciência”, expressão utilizada por Peter Berger, e “inconsciência religiosa” expressão

elaborada neste texto como esforço de explicar o fenômeno de permanência de noções

religiosas inconscientes (exatamente por terem sido transferidas para uma esfera imanente e

secular) que persistem em influenciar o pensamento e as ações de grupos na sociedade

moderna. Com este mesmo escopo, serão examinadas ainda questões relacionadas ao par

“ideologia” e “utopia” e, por fim, o conceito weberiano de “ascese intramundana”.

3.1 Secularização enquanto tema sociológico contemporâneo

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Com intuito de apresentar um panorama do que tem sido abordado nas últimas

décadas sobre secularização enquanto tema sociológico, recorrer-se-á aqui com frequência ao

artigo do sociólogo português José Pereira Coutinho (2018), O debate actual da

secularização. Pois no artigo o autor realizou um excelente trabalho de revisão de literatura,

organizando em grupos homogêneos os vários contributos produzidos nas últimas décadas,

uns mais teóricos e outros mais empíricos com destaques para os mais relevantes. Além disto,

para tornar a organização mais consistente, os contributos foram classificados por filiação

sociológica ou filosófica.

A década de sessenta foi marcada pelo surgimento das teorias clássicas da

secularização, principalmente de Peter Berger e Thomas Luckmannn. Berger (1969/1985,

p.119), no Dossel sagrado, arriscava, para fins de teoria sociológica, uma definição de

secularização como “o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à

dominação das instituições e símbolos religiosos”. E por sua vez, Luckmann, no livro The

invisible religion, lida com a tese da secularização como transposição de crenças e modelos da

esfera religiosa à secular. Tese que desde Troeltsch e do debate sobre a Ética protestante de

Weber é transmitida à concepção da “religião invisível”.

Coutinho (2018), tomando como referência a forma como atualmente as teorias se

relacionam com as teorias clássicas da secularização, entende que estas se dividem em dois

grupos principais: o primeiro grupo reúne teorias que podem ser denominadas de adeptas da

secularização, enquanto o segundo reúne teorias adversárias da secularização. Por sua vez, os

adeptos se afiguram como aprofundamentos e ajustamentos das teorias clássicas à realidade

contemporânea, defendendo principalmente a religiosidade individual; já os adversários

apresentam concepções diferentes das teorias clássicas da secularização, advogando a

permanência da religiosidade institucional. Devido a isto, estes dois grupos poderiam ser

denominados também de teorias da religiosidade individual versus teorias da religiosidade

institucional, ou ainda teorias da privatização versus teorias da pluralização, ou teorias da

autonomia versus teorias da pertença.

Com relação ao grupo de teorias adeptas da secularização, incluem-se ainda dois

subgrupos: as teorias pós-clássicas, que continuam as teorias clássicas; e as teorias da

individualização. Embora com abrangências distintas, elas partilham o foco na privatização,

concentrando-se na religiosidade individual, desconexa das ligações institucionais. Como

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representativos de teorias pós-clássicas, Coutinho (2018) concentra-se especialmente no

exame de textos de autores como Olivier Tschannen, Karel Dobbelaere, Mark Chaves e Steve

Bruce.

De Olivier Tschannen, Coutinho (2018, p.329-330) examina principalmente dois

textos: o artigo The secularization paradigm, este publicado em 1991; e o artigo La genèse de

l’approche moderne de la sécularisation, publicado em 1992. Tschannen sintetiza os clássicos

em dois pressupostos: primeiro, as raízes da secularização encontram-se na própria religião

(raízes religiosas); e segundo, a imanência da religião à condição humana leva-a a nunca

desaparecer (permanência). Além destes dois pressupostos, faz referência a três conceitos:

diferenciação, em que a religião emerge diferenciada de outros domínios sociais;

racionalização, em que deste processo de diferenciação as instituições não religiosas

trabalham com base em critérios racionalmente relacionados com as funções sociais

específicas fora do controle religioso; e mundanização, em que a religião atravessada pela

racionalização perde alguma da sua especificidade, tornando-se mais profana, mais deste

mundo.

Por sua vez, no tocante Karel Dobbelaere, Coutinho (2018, p.330) expõe que este – no

artigo Towards an integrated perspective of the processes related to the descriptive concept of

secularization, publicado em 1999, conjugando a sua análise tridimensional (nível macro,

meso e micro), usada em 1981 no artigo Trend report: Secularization: a multi-dimensional

concept, com o paradigma de Tschannen (1991) – apresenta o paradigma da secularização em

três níveis. No nível societal, domina o processo de laicização, no qual, com a diferenciação

institucional, a religião é uma instituição como as outras perdendo o seu papel preponderante,

transpondo-se as funções antes exercidas pela religião para a sociedade. No nível meso,

domina o processo de mudança religiosa, havendo pluralização, derivada da diferenciação

segmentária do subsistema religioso, que gerou mercado religioso, no qual as várias

denominações competem pelas almas, levando à relativização dos conteúdos religiosos e,

assim, à crise de credibilidade religiosa (muitas denominações atuais perderam a noção de

transcendência, preocupando-se, principalmente, com a resolução dos problemas pessoais,

tornando-se mundanas). No nível micro, ou individual domina o processo de envolvimento

religioso, que se refere à influência das normas religiosas sobre as atitudes e os

comportamentos individuais, havendo declínio religioso. Sobre este último nível, Coutinho

(2018, p.331) acrescenta:

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A privatização provocou a individualização, na qual os indivíduos, ao

escolherem a sua comunidade de amor, experimentam a alegria da pertença;

a perda da autoridade da Igreja, a pluralização e a individualização levaram à

bricolage religiosa, não sendo aceite o menu das igrejas, mas antes

construída individualmente “religião à carta”, misturando doutrinas e

desenvolvendo crenças heterodoxas e vários graus de crença e descrença;

com a diminuição da crença num Deus pessoal, os rituais cristãos são

abandonados, uma vez que se baseiam nesta premissa, diminuindo a

participação na igreja.

Com referência ao exame das contribuições oferecidas por Mark Chaves, Coutinho

(2018, p.332) explica que a proposição de Dobbelaere (1981) foi reformulada por Chaves em

1994 no artigo Secularization as declining religious authority. Neste texto, Chaves afirmou

que a secularização é melhor compreendida não como declínio da religião, mas como o

alcance decrescente da autoridade religiosa. O declínio da autoridade religiosa pode ser

compreendido, segundo Chaves, em três níveis: no nível societal, a incapacidade crescente

das elites religiosas em exercer autoridade sobre outras esferas institucionais; no nível

organizacional, o declínio do controle da autoridade religiosa sobre os recursos

organizacionais na esfera religiosa; no nível individual, o decréscimo do controle religioso nas

ações individuais.

E por fim, Coutinho (2018, p.332) examina o contributo dado por Steve Bruce para as

teorias pós-clássicas da secularização. Bruce desenvolve os seus contributos, sobretudo, em

dois livros: em 1996, publicou o livro Religion in the modern world: from cathedral to cults;

e em 2002, God is dead: secularization in the West. Bruce descreve a evolução religiosa no

mundo ocidental desde a Reforma, considerando que as formas organizacionais dominantes

foram se alterando: a igreja no período medieval, a seita na Era Moderna, a denominação no

século XX e o culto no século XXI.

Conforme já mencionado acima no âmbito das teorias adeptas da secularização há as

teorias pós-clássicas, que continuam as teorias clássicas (descritas nos textos dos autores

mencionados acima); e as teorias da individualização. No que se refere a estas, Coutinho

(2018, p.333) escreve:

Como vimos em cima, sendo as teorias da individualização sucessoras das

teorias clássicas, as suas raízes encontram-se tanto no positivismo francês

como no idealismo alemão. Estas teorias partilham o foco no nível micro,

com a centralidade do indivíduo em detrimento das instituições religiosas

(religiosidade como estado interior em Simmel, misticismo como

experiência individual em Troeltsch, religião como experiência individual

em James) e a bricolage religiosa, desenvolvida por Luckmann, no

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seguimento sobretudo de Durkheim e no âmbito da quarta forma social de

religião (religião invisível). Durkheim enquadra-se na escola positivista

francesa, enquanto os outros surgem da escola idealista alemã, mesmo

James, já que o seu pragmatismo entronca no transcendentalismo de

Emerson, por sua vez herdeiro do idealismo alemão. Do lado americano

apresenta-se Ronald Inglehart (1934) e Wade Roof (1939); do lado inglês

afiguram-se Grace Davie (1946) e Paul Heelas (1946); por último, do lado

francês surge Danièle Hervieu-Léger (1947).

No grupo das teorias adversárias da secularização, Coutinho (2018, p.338) identifica

três subgrupos: “o modelo econômico e as teorias do regresso, e as teorias histórico-culturais,

que foram ganhando maior peso nos últimos anos, na senda das múltiplas modernidades”. O

modelo econômico centra-se nos níveis micro e meso, as teorias do regresso nos três níveis e

as teorias histórico-culturais nos níveis meso e macro. Estas teorias partilham o foco na

religiosidade institucional à revelia das teorias clássicas da secularização, assentando sobre

tudo na questão da pluralização, especialmente no modelo econômico e nas teorias histórico-

culturais.

O que Coutinho (2018) denomina de modelo econômico entre as teorias adversárias da

secularização foi proposto pelos sociólogos norte-americanos, Rodney Stark (professor de

Sociologia e Religião Comparada na Universidade de Washington) e William Sims

Bainbridge (diretor do Programa de Sociologia da National Science Foundation) no livro que

publicaram em conjunto sob o título A theory of religion. Coutinho (2018, p.339) identifica

que:

A genealogia deste modelo radica no empirismo britânico, nomeadamente

no liberalismo de Adam Smith e no utilitarismo de John Stuart Mill, matriz

da teoria da escolha racional. A escola francesa também influenciou este

modelo, através do liberalismo de Tocqueville e do funcionalismo de

Durkheim, este através de Parsons, o qual foi ainda marcado pelo

marginalismo austríaco.

Esta combinação entre teoria econômica liberal e utilitarismo fica evidente no capítulo

dois do livro no qual os autores desenvolvem os elementos conceituais da sua teoria. A

afirmação seguinte ilustra bem esta combinação:

A religião não apareceu pela primeira vez em uma catedral ou em sociedades

culturalmente avançadas. Há evidências claras de que os humanos já

possuíam religião na pré-história, que ela se desenvolveu pela primeira vez

quando as pessoas andavam em pequenos bandos em busca de subsistência,

da mesma maneira que os outros animais. Se a religião já existia quando as

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sociedades humanas ainda eram bandos de vinte a cinquenta membros, e

quando sua tecnologia consistia em não mais que galhos e pedras afiadas,

então os aspectos fundamentais da religião devem ser necessidades e

atividades humanas muito básicas (STARK; BAINBRIDGE, 2008, p.35).

Em sua reflexão, com arcabouço de teoria econômica liberal e utilitarismo, os autores,

em meio ao que denominaram “teoria neclear: comprometimento religioso”, desenvolvem

uma teoria da ação humana através da exposição de axiomas, proposições e definições numa

lógica microeconômico-utilitarista que considera o agir humano motivado pela busca do que

percebe ser recompensas, porém considerando como as obter pelo menor custo possível.

O conceito de compensador é a chave para teoria da religião que

apresentaremos a seguir. Quando os seres humanos não conseguem obter

recompensas intensamente desejadas com facilidade e rapidez, eles

persistem em seus esforços e podem, com frequência, aceitar explicações

que ofereçam apenas compensadores. Estes são substitutos intangíveis para

recompensa desejada, tendo o caráter de dívidas, cujo valor deve ser aceito

pela fé (2008, p.48).

Deste modo, Stark e Bainbridge delineiam uma grande generalização na análise da

ciência social sobre as funções da religião, contemplando nesta generalização a teoria de

Malinowski sobre a magia como uma tentativa de dar às pessoas um senso de controle

compensatório sobre eventos perigosos ou vitais, considera também as reflexões de Marx

sobre a falsa consciência e o ópio do povo, bem como a análise de Durkheim sobre as

religiões primitivas, além das conjecturas de Freud acerca da religião como ilusão, sem

esquecer Weber e a sua teoria sobre igrejas e seitas.

Na perspectiva do modelo econômico, a religião atua oferecendo compensadores para

recompensas desejadas e que não podem ser obtidas nesta vida. Para algumas recompensas

como oferecer sentido último para a vida, à morte ou ao sofrimento, somente a religião

consegue produzir compensadores credíveis, pois se baseiam no sobrenatural, ao contrário do

oferecido pelo racionalismo científico. Desta forma, resume Coutinho (2018, p.339), a

secularização é vista como processo limitado de curto prazo, pela procura permanente de

sentido e de imortalidade, sendo o ambiente competitivo das sociedades modernas pluralistas

mais religioso do que a “idade da fé” pré-industrial, onde haveria apatia generalizada.

Sobre as teorias do regresso ou retorno do sagrado, Coutinho (2018, p.342) explica

que não se apresentam como conjunto coerente de teorias, mas como apanhado de contributos

díspares de vários sociólogos. Ele destaca que também que estes autores partilham a fé

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religiosa e a sua vivência nos EUA, o que pode ter relativamente influenciado a sua visão

otimista sobre o futuro da religião. Destes autores destacam-se Daniel Bell (1919-2011),

judeu, norte-americano; Andrew Greeley (1928-2013), sacerdote católico, norte-americano;

Peter Berger (1929-2017), protestante, austríaco, vivendo nos EUA desde os anos 1940; Jose

Casanova (1951), católico, espanhol, vivendo nos EUA desde os anos 1980. É destacado

também que, nestas teorias, denota-se influência não só de Weber, tanto na necessidade de

permanência da religião pela busca do sentido (Bell, Greeley), como pela existência da

pluralização (Berger), mas também de Durkheim no recuo da privatização da religião na

esfera pública (Casanova).

Sobre os adeptos da teoria do regresso do sagrado, merece atenção a mudança de

posicionamento de Peter Berger no tocante a secularização, uma vez que ele é um dos

proponentes da teoria clássica sobre a secularização, posicionamento propagado no já

mencionado Dossel sagrado (publicado originalmente inglês em 1969), também no Rumor de

anjos (da década 60), bem como em O imperativo herético (publicado em 1979). A mudança

de posicionamento no que se refere à sua teoria clássica da secularização ocorreu em razão de

constatações empíricas. Isto aconteceu por volta de 1999, conforme ele mesmo manifesta,

quando se deu conta da evidência de que os dados empíricos contradiziam a teoria. Berger

(2008, p.1) compreende que o erro pode ser descrito como uma confusão de categorias, pois

está claro para ele que “a modernidade não é necessariamente secularizante; é

necessariamente pluralizante. A Modernidade é caracterizada por uma crescente pluralidade,

dentro da mesma sociedade, de diferentes crenças, valores e visões de mundo”.

Esta, porém, parece ter sido sempre a sua posição, pois sempre realçou a importância

da pluralização. Uma vez que já em Rumor de anjos Berger (1969/2018, p.77) afirma:

O indivíduo moderno existe numa pluralidade de mundos migrando de um

lado a outro entre estruturas de plausibilidade rivais e muitas vezes

contraditórias, cada uma sendo enfraquecida pelo simples fato de sua

coexistência involuntária com outras estruturas de plausibilidade.

Há uma grande diferença a destacar na forma como Berger compreendeu o papel

desempenhado pela pluralização moderna em seus primeiros textos. Nesta fase, Berger

(1969/2018, p.77) afirmou: “É a pluralização, ao invés de uma misteriosa queda intelectual da

graça, que considero a mais importante causa da decrescente plausibilidade das tradições

religiosas”. Ou seja, antes compreendia que o papel da pluralização moderna era provocar a

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“decrescente plausibilidade das tradições religiosas”, passando a entender depois que, além

disto, a pluralização possibilita a coexistência de diversas estruturas de plausibilidade,

constituindo-se um desafio para todas as tradições religiosas e não necessariamente o seu

declínio total e consequente desaparecimento. De qualquer forma, existência de uma religião

em meio a um ambiente religiosamente plural faz com esta tenha os seus pressupostos e a sua

plausibilidade desafiados. E indivíduos expostos a este nível de pluralidade tendem a

questionar a autoridade e o caráter absoluto das doutrinas religiosas propagadas. Isto cria as

condições para que se perceba o relativismo das tradições religiosas, bem como a sua natureza

antropológica.

Sobre as constatações empíricas que fizeram Berger (2008, p.1-2) repensar a sua teoria

da secularização, através de observações globais, notou que há duas explosões religiosas

particularmente relevantes na atualidade – o ressurgimento do islamismo e o protestantismo

evangélico pentecostal. Observou que movimentos islâmicos apaixonados estão em ascensão

em todo o mundo muçulmano, desde o Oceano Atlântico até o Mar da China, e nos

muçulmanos da diáspora no Ocidente. E no caso da ascensão evangélico-pentecostal, esta tem

sido menos notada pelos intelectuais, pela mídia e pelo público em geral. Segundo Berger,

isto talvez, em parte, porque em nenhum lugar está associada à violência e em parte porque

desafia mais diretamente as suposições de opinião da elite estabelecida. No entanto, o

pentecostalismo se espalhou mais rapidamente e em uma área geográfica maior do que o

ressurgimento do Islã. Além disto, o crescimento islâmico ocorreu principalmente em

populações que já eram mulçumanas – uma revitalização em vez de uma conversão. Em

contraste o protestantismo evangélico tem sido penetrante em partes do mundo nas quais esta

forma de religião era até então desconhecida. E isso foi feito por meio de conversões em

massa. Isto tem feito do pentecostalismo o segmento mais numeroso e dinâmico atualmente.

Em certo sentido, Berger não abandona o conceito de secularização, apenas o submete

a uma revisão sob a luz de novos dados. Constata que o secularismo se encontra atualmente

num contexto global de religiosidade dinâmica, o que significa que enfrenta sérios desafios.

Com base nisto, Berger (2008, p.2-3) distingui três versões do secularismo: há a versão

moderada, tipificada pela visão tradicional americana da separação entre igreja e estado;

depois, há a versão mais radical, tipificada pela francesa laïcité em que a religião é ligada à

esfera privada e protegida pela liberdade de religião legalmente imposta; e existe também,

como no caso soviético, um secularismo que privatiza a religião e procura a reprimir, neste

caso, seus adeptos podem ser tão fanáticos quanto qualquer religioso fundamentalista.

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Na primeira versão de secularismo, o termo pode se referir a aceitação das

consequências para a religião da diferenciação institucional que é uma característica crucial

da modernidade, atividades sociais que foram realizadas em sociedades pré-modernas dentro

de um contexto institucional unificado estão agora dispersas entre várias instituições. O

segundo tipo de secularismo é caracterizado precisamente por uma postura antirreligiosa, pelo

menos no que diz respeito ao papel público da religião, pois a compreensão francesa do

Estado se originou da postura anticristã do Iluminismo continental e foi politicamente

estabelecido pela Revolução Francesa. Esse segundo tipo de secularismo, com a religião

considerada uma questão estritamente privada, pode ser relativamente benigno, como na

França contemporânea onde símbolos ou ações religiosos são rigorosamente proibidos na vida

política, mas a religião privatizada é protegida por lei. Por sua vez, o terceiro tipo de

secularismo é tudo menos benigno, como na prática da União Soviética e outros regimes

comunistas. Mas o que caracteriza as versões benigna e malévola da laïcité é que a religião é

despejada da vida pública e confinada ao espaço privado. Todos esses tipos de secularismo

estão sendo vigorosamente desafiados. Mesmo a versão moderada do secularismo,

institucionalizada em uma separação entre igreja e Estado no estilo americano, está sendo

desafiada pelos movimentos religiosos contemporâneos que rejeitam diferenciação entre

instituições religiosas e o resto da sociedade, restando como alternativa o domínio da religião

sobre cada esfera da vida humana.

Sobre as teorias histórico-culturais, Coutinho (2018, p.345) destaca os seguintes

autores: apresenta-se primeiro David Martin, herdeiro intelectual das ideias de Weber, pela

sua obra pioneira desde os anos 1960, The religious and the secular; em seguida, aparecem

Philip Gorski e Charles Taylor (1931, ambos seguidores de Martin. Coutinho explica que este

conjunto de teorias descende da linha germânica subjetivista, hermenêutica ou compreensiva,

na qual o sentido da ação tem de ser olhado na perspectiva individual, neste caso nacional ou

regional, e não na perspectiva coletiva, condicionada pela narrativa hegemônica da

modernização única, o que conduz ao domínio das histórias particulares e do sentido ou

caminho que a modernização tomou em cada estado ou região. Nesta linha enquadra-se a

concepção de múltiplas modernidades de Eisenstadt (1923-2010) correspondentes a múltiplas

secularizações, pelo cumprimento diverso do programa da modernidade. Assim, o hiper-

relativismo e o hiper-individualismo da sociedade atual conduziram inevitavelmente as

ciências sociais para a contextualização das teorizações e das análises empíricas, tornando

paulatinamente desajustados quaisquer estudos generalistas.

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Sobre Martin, Coutinho (2018, p.346) expõe que este desenvolve a sua teoria da

secularização assentada no processo de diferenciação social descrito por Parsons, para quem

esta não era tomada como declínio, mas antes como oportunidade para a religião alcançar

melhor a sua função, nomeadamente através do pluralismo religioso. Focado no cristianismo,

Martin analisa o processo de diferenciação social através de três filtros históricos, cruciais

para conduzir a secularização em direções singulares, destacando-se o tipo de cristianismo e a

região onde se implanta (protestantismo ou catolicismo; Europa ou América) e o tipo de

regulação religiosa (pluralismo ou monopólio), havendo ainda a questão centro/periferia,

associada ao nacionalismo religioso. Este autor trouxe duas alterações à discussão sobre a

secularização: na primeira, de caráter hermenêutico, em vez de mostrar como a modernidade

levou à secularização de forma universal e única, evidenciou a pluralidade de secularizações

em diferentes países e culturas (Martin considera que, apesar de os grandes processos

históricos (racionalização) terem alguma verdade neles, não podem ser tomados de forma

linear, mas antes escrutinados à luz da história particular de cada país ou região, dando origem

a secularizações singulares); na segunda, de caráter dialético, que suporta a anterior, em vez

de olhar para a história composta de ganhos e perdas irreversíveis, trouxe a noção de que a

história se vai construindo, com avanços e recuos, podendo os ganhos atuais terem perdas

futuras e vice-versa.

Charles Taylor (2010), discorrendo sobre o que significa dize que se vive numa era

secular, propõe três sentidos para esclarecer em que consiste a secularidade da era atual. O

primeiro sentido está relacionado ao fato de que na atualidade há um esvaziamento da religião

das esferas sociais, pois estas se tornaram autônomas. Neste sentido, Taylor (2010, p.14)

acrescenta:

Assim, um entendimento da secularidade dá-se em termos de espaço

públicos. Estes foram supostamente esvaziados de Deus ou de qualquer

referência a uma realidade derradeira. Ou, visto por outro ângulo, como

atuamos em várias esferas de atividade – econômica, política, cultural,

educacional, profissional, recreador – as normas e os princípios que

seguimos, as deliberações nas quais nos envolvemos geralmente não nos

reportam a Deus ou a quaisquer crenças religiosas; as considerações a partir

das quais atuamos são internas à “racionalidade” de cada esfera – o ganho

máximo na economia, o maior benefício ao maior número de pessoas na área

política e assim sucessivamente. Isso contrasta de modo surpreendente com

períodos anteriores, quando a fé cristã fazia prescrições autoritárias,

geralmente pelas vozes do clero, que não podiam ser facilmente ignoradas

em nenhuma dessas áreas, como a proibição da usura ou a obrigação de

impor a ortodoxia.

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Ainda sobre este primeiro sentido para secularidade da era atual, Taylor (2010, p.13-

14) resume:

A religião, ou a sua ausência, consiste em grande medida numa questão

privada. A sociedade política é vista como uma sociedade de crentes (de

todas as nuances) e não crentes igualmente.

Dito de outro modo: em nossas sociedades “seculares”, as pessoas podem

engajar-se totalmente na política sem jamais encontrar Deus, ou seja, sem

jamais chegar ao ponto de evidenciar de modo forçoso e inequívoco a

importância crucial do Deus de Abraão para toda essa empreitada.

A ocorrência do esvaziamento da religião das esferas sociais autônomas não gera

incompatibilidade para os membros da sociedade que se devotam a algum tipo de credo

religioso. Em outros termos, a vasta maioria das pessoas ainda acredita em Deus e pratica sua

religião fervorosamente, todavia preserva uma distinção entre suas crenças religiosas privadas

e as suas atuações nos ambientes públicos secularizados.

Assim, Taylor (2010, p.15) acrescenta sobre os segundo e terceiro sentidos para

secularidade da era atual:

Nesse segundo sentido, a secularidade consiste no abandono de convicções e

práticas religiosas, em pessoas se afastando de Deus e não mais

frequentando a igreja. Nesse sentido, os países da Europa ocidental

tornaram-se majoritariamente seculares – até mesmo aqueles que mantêm

vestígios de referência a Deus no espaço público.

Acredito, contudo, que um exame desta era como secular seja pertinente em

um terceiro sentido, intimamente relacionado ao segundo e não desvinculado

do primeiro. Este enfocaria as condições da fé. A mudança para secularidade

nesse sentido consiste, entre outras coisas, na passagem de uma sociedade

em que a fé em Deus é inquestionável e, de fato, não problemática, para uma

na qual a fé é entendida como uma opção entre outras e, em geral, não a

mais fácil de ser abraçada.

Desta maneira, Taylor, no livro Uma era secular, empenha-se em investigar a

sociedade como secular neste terceiro sentido, busca compreender como ocorreu esta

metamorfose.

A mudança que quero definir e traçar é aquela que nos leva de uma

sociedade na qual era praticamente impossível não acreditar em Deus para

uma na qual a fé, até mesmo para o crente mais devoto, representa apenas

uma possibilidade humana entre outras (TAYLOR, 2010, p.15).

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É compreensível que a secularização não seja entendida como um processo igualitário,

seguindo os mesmos rumos em todas as partes do mundo. Constitui-se algo razoável também

o alerta apresentado pelas teorias histórico-culturais sobre considerar as histórias particulares,

as características culturais próprias de cada região do mundo, pois isto pode conduzir a

percepção de múltiplas formas de secularização. É igualmente razoável o proposto por Peter

Berger, após ter revisto a sua teoria da secularização, de que a Modernidade é

necessariamente pluralizante e, deste modo, proporciona um ambiente desafiador para todas

as tradições religiosas e não obrigatoriamente o seu declínio total e consequente

desaparecimento. Todavia, este entendimento guarda uma proximidade com um conceito

restrito de religião, esta sendo compreendida apenas em suas manifestações explícitas e

institucionais, deste modo, deixando de reconhecer que mesmo em fenômenos seculares

persistem um modo de pensar e de agir tipicamente religiosos.

Desta maneira, para os interesses desta pesquisa não há quaisquer dificuldades em

aceitar a noção de que a Modernidade não é secularizadora no sentido de indispensavelmente

provocar a morte do sobrenatural ou o desaparecimento da religião, e sim necessariamente

pluralizante, fazendo surgir nos mesmos contextos sociais uma pluralidade de estruturas de

plausibilidade, uma multiplicidade de visões de mundo.

Ao se assumir, porém, tal aceitação, não se toma como obrigatório o abandono da

noção de secularização como um elemento importante para compreender certos mecanismos

operando nas sociedades modernas. Apenas se reconhece que a secularização não ocorre

igualmente em toda parte, ou que há certas questões sobre ela a serem melhores

compreendidas e necessitando de respostas ou esclarecimentos.

Diante disto, para os propósitos desta pesquisa se assume o conceito de secularização

em seu sentido mais básico que se relaciona com a ideia de transferência de noções religiosas

da esfera sagrada para a esfera secular ou mundana. E isto tanto pode ocorrer no sentido de

esvaziamento da religião das esferas sociais, quando estas esferas se tornam autônomas ou

orientadas por propósitos deste mundo, quanto como a mundanização de conceitos religiosos

que continuam operando na esfera secular sem perder contato com seu fundamento

transcendente, isto geralmente ocorrendo sem a consciência dos envolvidos no processo.

Em outros termos, interessa aqui o conceito de secularização para além das relações

dos atores sociais com a religião institucional ou para além do modo como esta perde o seu

domínio sobre os indivíduos ou instituições na sociedade que outrora estavam sob seu

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controle. Neste sentido, conforme Knoblauch (2014, p.14), a religião institucional é

compreendida como a religião conduzida por uma instituição altamente especializada cujos

representantes, clérigos ou sacerdotes, possuem um conhecimento especializado sobre o

cosmo sagrado só acessível aos não especialistas em versões popularizadas. Este tipo modelo

de religião (no Ocidente, apesar de seu alto grau de especialização e da delimitação

excludente em uma área institucional específica) legitimava toda a ordem social. Exemplo

deste tipo de religião são os conflitos que se acumulam desde a Idade Média entre a igreja e o

imperador, a igreja e a ciência, a economia e a política como expressões da crescente exclusão

dessas outras áreas institucionais, cada vez mais autônomas. Nesta perspectiva, não só o

conhecimento dos especialistas religiosos já quase não é acessível aos leigos, mas a própria

estrutura social é secularizada.

A forma institucionalmente especializada da religião é apenas uma entre

muitas formas sociais da religião. Medir a religião a partir do modelo dessa

forma especial equipara-se a um tipo de etnocentrismo. Se, nas sociedades

não diferenciadas, cada pessoa tem acesso quase completo ao cosmo

sagrado, com a crescente diferenciação institucional esse cosmo se torna,

cada vez mais, algo laico. Para a religiosidade individual isso tem

consequências de longo alcance. O “modelo oficial” de religião, inscrito nas

instituições especializadas, agora só tem validade no interior dos próprios

limites; em outros lugares, seu significado é meramente retórico. A igreja

passa a ser uma instituição entre muitas, sem que sua interpretação da

realidade assuma primazia. Sistemas interpretativos laicos de origem

política, econômica ou mesmo “científica” cada vez mais assumem esse

lugar. Eles são expressão da perda, pela igreja, do “monopólio da

interpretação” (KNOBLAUCH, 2014, p.15).

Interessa, todavia, aqui, o conceito de secularização que se guia pelo entendimento que

mesmo uma sociedade que se orienta por uma consciência secular pode estar sob influência

de uma inconsciência religiosa. Ou seja, mesmo que a consciência secular tenha se tornado

predominante e a consciência religiosa tenha sido reduzida a esfera privada, em nível

inconsciente, noções religiosas continuam exercendo influência sobre a consciência secular.

Isto está implícito no próprio conceito de secularização, ou seja, a transposição de noções

outrora religiosas e transcendentes para um campo secular e imanente, uma mundanização

destas noções, ou, nos termos de Voegelin, imanentização.

3.2 Sociologia do Conhecimento, secularização da consciência e inconsciência religiosa

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Já foi explicitado no primeiro capítulo, no tocante a Sociologia do Conhecimento, que

a sua tese principal, de acordo com Mannheim (1952), afirma a existência de pensamentos

incapazes de ser adequadamente compreendidos enquanto permanecerem obscuras as suas

origens sociais. Desta maneira, a Sociologia do Conhecimento, em seu método, não parte, à

maneira dos filósofos, do indivíduo isolado e de seu modo de pensar para o pensamento

abstrato em si. Ao contrário disto, declara Mannheim (1952, p.3):

A sociologia do conhecimento procura compreender o pensamento dentro da

moldura concreta de uma situação histórico-social, de que o pensamento

individualmente diferenciado emerge mui gradualmente. Assim, não são os

homens em geral que pensam, nem mesmo os indivíduos isolados, mas os

homens dentro de certos grupos que elaboraram um estilo peculiar de

pensamento graças a uma série interminável de reações a certas situações

típicas, características de sua posição comum.

Esta noção de conhecimento apreendida nos termos da Sociologia do Conhecimento

deve ser concebida de modo mais amplo possível. Com referência a isto, em 1937,

aproximadamente duas décadas após o surgimento da Sociologia do Conhecimento como uma

nova disciplina acadêmica, Robert K. Merton (2013, p.95) escreveu:

Como a maior parte das investigações nesse campo concernem aos fatores

socioculturais que influenciam o desenvolvimento de crenças e opiniões,

mais do que o conhecimento positivo, o termo “Wissen” (conhecimento)

deve ser interpretado de modo muito amplo, como referido às ideias e ao

pensamento social em geral e não às ciências físicas, exceto quando

expressamente indicado. Dito de modo sumário, a sociologia do

conhecimento concerne primariamente à “dependência do conhecimento em

relação à posição social” e, em um nível excessivo e estéril, às implicações

epistemológicas de tal dependência.

Quando Merton faz referência à “dependência do conhecimento em relação à posição

social”, ele o faz em relação ao pertencimento existencial do conhecimento, ponto retomado

em texto de 1945 no qual declara:

Um ponto central de acordo em todos os enfoques da sociologia do

conhecimento é a tese de que o pensamento tem uma base existencial, tal

que ele não é determinado de modo imanente, e um ou outro de seus

aspectos podem ser derivados de fatores extracognitivos (MERTON, 2013,

p.118).

O conhecimento ou as produções mentais de determinados grupos sociais possuem

uma base existencial, uma relação com situações históricas e sociais concretas, assim,

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segundo Merton (2013, p.116-117), quando se busca onde está localizada a base existencial

de certas produções mentais, considera-se bases sociais (posição social, classe, geração, papel

ocupacional, modo de produção, estruturas grupais – universidade, burocracia, academias,

seitas, partidos políticos –, situação histórica, interesses, sociedade, filiação étnica,

mobilidade social, estrutura de poder, processos sociais – competição, conflito e etc); e bases

culturais (valores, éthos, clima de opinião, Volksgeist, Zeitgeist, tipo de cultura, mentalidade

cultural). Assim, podem ser analisadas sociologicamente produções mentais relacionadas às

esferas de crenças morais, ideologia, ideias, as categorias de pensamento, filosofia, crenças

religiosas, normas sociais, ciência positiva, tecnologia, etc. Bem como interessa também a

forma como produções mentais se relacionam com sua base existencial: relações causais ou

funcionais (determinação, causa, correspondência, condição necessária, condicionamento,

interdependência funcional, interação, dependência); relações simbólicas ou orgânicas ou

significativas (consistência, harmonia, coerência, unidade, congruência, compatibilidade e

antônimos; expressão, realização, expressão simbólica, identidades estruturais, conexão

interna, analogias estilísticas, integração entre lógica e sentido, identidade lógico-

significativa).

Sustenta-se que o Seinsverbundenheit (pertencimento existencial) do

pensamento está demonstrado quando se pode mostrar que, em certos

domínios, o conhecimento não se desenvolve de acordo com leis imanentes

de crescimento (baseadas na observação e na lógica), mas que, em certas

conjunturas, fatores extrateóricos de vários tipos, usualmente nomeados

Seinsfaktoren (fatores de existência), determinam a aparência, a forma e, em

certos casos, inclusive o conteúdo e a estrutura lógica desse conhecimento

(MERTON, 2013, p.96).

Até aqui está claro que a Sociologia do Conhecimento se ocupa com a relação entre o

pensamento humano e as condições sociais sob as quais este pensamento ocorre. Em

concomitância com isto, na discussão alvo do interesse desta pesquisa, o conceito de

estruturas de plausibilidade explicado sob o prisma da Sociologia do Conhecimento ganha

relevância.

Uma das proposições fundamentais da sociologia do conhecimento é que a

plausibilidade, no sentido daquilo que as pessoas realmente acham digno de

fé, das ideias sobre a realidade depende do suporte social que estas ideias

recebem. Dito mais simplesmente, nós conseguimos nossas noções sobre o

mundo originalmente de outros seres humanos, e estas noções continuam

sendo plausíveis, para nós em grandíssima parte, porque os outros continuam

a afirmá-las. Há algumas exceções – noções que derivamos direta e

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instantaneamente de nossa própria experiência dos sentidos –, mas mesmo

estas podem ser integradas em visões significativas da realidade somente por

força de processos sociais. Claro que é possível ir contra o consenso social

que nos cerca, mas há pressões fortes (que se manifestam como pressões

psicológicas dentro de nossa própria consciência) para nos conformarmos às

visões e crenças de nossos semelhantes. É na conversa, no sentido mais

vasto do termo, que construímos e fazemos prosseguir nossa visão sobre o

mundo (BERGER, 1969/2018, p.64).

As definições sociais da realidade, as relações sociais que aceitam e contribuem para o

estabelecimento de tais definições sem as questionar, assim como as legitimações e os

mecanismos de controle social que as sustentam, são fatores que auxiliam a concepção do que

seja estrutura de plausibilidade.

Assim toda concepção do mundo, qualquer que seja seu caráter ou conteúdo,

pode ser analisada em termos de sua estrutura de plausibilidade, porque é só

quando o indivíduo permanece nesta estrutura que a concepção do mundo

em questão permanecerá plausível a ele. A força desta plausibilidade, indo

de certezas inquestionáveis através de firmes probabilidades a meras

opiniões, dependerá diretamente da força da estrutura que a sustenta

(BERGER, 1969/2018, p.66).

Isto no que se refere às afirmações religiosas acerca da realidade, Berger (1969/2018,

p.66-67) acrescenta que uma vez que estas, por sua própria natureza, não encontram apoio na

experiência dos sentidos humanos, por este motivo, dependem inteiramente do apoio social.

Estas afirmações dependem de uma estrutura de plausibilidade, ou seja, depende de seres

humanos que aceitem como inquestionáveis a definição da realidade expressa em tais

afirmações, bem como de uma rede conversacional através da qual estes seres humanos

mantêm a realidade em questão funcionando, assim como dependem de práticas e rituais

terapêuticos e as legitimações que os acompanham. E uma vez que uma estrutura de

plausibilidade adequada deixe de existir não há como sustentar a plausibilidade de tais

afirmações religiosas acerca do mundo.

E foi exatamente o que o desafio do moderno pensamento científico fez. Uma série de

disciplinas científicas desafiou a plausibilidade das afirmações religiosas. Desafio iniciado

pelas ciências físicas com seu questionamento da cosmologia da Idade Média que

paulatinamente tornou a “hipótese religiosa” cada vez mais desnecessária para explicar a

realidade. O desafio foi ainda mais agravado com a revolução na biologia ocorrida durante o

século XIX. Acrescentem-se ainda os desafios das ciências humanas, dentre estes o da

psicologia. Estes três conjuntos de desafios se enquadram no que Freud (1856-1839)

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denominou como três feridas narcísicas sofridas pelo homem nos tempos modernos: a

primeira, a cosmológica – ocorrida quando Copérnico (1473-1543) aniquilou a cosmovisão

geocêntrica e a substituiu pela heliocêntrica, expulsou o ser humano do centro do universo e o

jogou à periferia; a segunda, a biológica – decorrente da descoberta de Charles Darwin (1809-

1882) de que as espécies têm sua origem num longo processo evolutivo, o ser humano,

portanto, seria o produto não de um ato criador, mas de uma evolução natural; e a terceira, a

psicanalítica – mostrando que o “eu” não é dono nem mesmo dentro da própria casa, age

impulsionado por instintos e desejos que fogem a seu controle, esta humilhação atinge o

homem no centro da sua personalidade. A pesquisa científica desencantou o mundo,

desmistificou o ser humano, destruiu os mitos que lhe asseguravam lugar privilegiado no

universo, reduziu a existência humana à trivialidade.

Berger (1969/2018) destaca que os desafios das ciências humanas foram mais críticos

e mais perigosos à essência das afirmações religiosas sobre a realidade. Neste contexto, a

sociologia seria a mais recente disciplina científica a desafiar a estrutura de plausibilidade das

afirmações religiosas, havendo dois importantes predecessores da sociologia, a história e a

psicologia. A psicologia depois de Freud sugeriu que a religião era uma gigantesca projeção

de necessidades e desejos humanos. Todavia, o estudo da história, especialmente como se

desenvolveu no século XIX, foi quem primeiro ameaçou minar as afirmações religiosas nas

suas próprias bases. “Dito de modo simples, o estudo da história levou a uma perspectiva na

qual até mesmo os mais sacrossantos elementos da tradição religiosa acabaram por ser vistos

como produtos humanos” (BERGER, 1969/2018, p.60).

Berger explica que uma vez que isto tenha acontecido todo o mistério em torno das

crenças religiosas se torna cientificamente apreensível, praticamente repetível e aplicável ao

geral. O mágico desaparece quando os mecanismos da gênese da plausibilidade se tornam

transparentes.

A comunidade de fé é agora compreensível como uma entidade construída –

foi construída numa história humana específica, por seres humanos.

Inversamente, pode ser desmantelada ou reconstruída pelo uso dos mesmos

mecanismos. Na verdade, a um fundador hipotético de uma religião poder-

se-ia dar um esquema sociológico para a fabricação da necessária estrutura

de plausibilidade – e este esquema conteria essencialmente os mesmos

elementos básicos que entraram na montagem da comunidade católica de fé.

A fórmula, uma vez transformada numa afirmação de autoridade única,

impõe-se como uma regra geral. Aplica-se a católicos, protestantes, budistas

de Theravada, comunistas, vegetarianos e crentes em discos voadores. Em

outras palavras, o mundo do teólogo tornou-se um mundo entre muitos –

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uma generalização do problema da relatividade que vai consideravelmente

além das dimensões do problema como foi anteriormente colocado pelo

estudo da história. Para colocar a questão em termos simples: a história põe

o problema da relatividade como um fato, a sociologia do conhecimento

como uma necessidade de nossa condição (BERGER, 1969/2018, p.69).

Em meio a esta discussão sobre plausibilidade e a “crise de credibilidade” na religião

como uma das formas mais evidentes do efeito da secularização, bem como o amplo colapso

da plausibilidade das definições religiosas tradicionais da realidade que isto acarretou, Berger

aborda a manifestação da secularização em nível de consciência (secularização subjetiva) com

seu correlato em nível socioestrutural (secularização objetiva).

Subjetivamente, o homem comum não costuma ser muito seguro acerca de

assuntos religiosos. Objetivamente, ele é assediado por uma vasta gama de

tentativas de definição da realidade, religiosas ou não, que competem por

obter sua adesão ou, pelo menos, sua atenção, embora nenhuma delas possa

obrigá-lo a tanto. Em outras palavras, o fenômeno do “pluralismo” é um

correlato socioestrutural de secularização da consciência (BERGER,

1969/1985, p.139).

Este colapso de plausibilidade que a religião sofreu, em nível de estrutura social,

estaria relacionado, segundo Berger, ao fenômeno do pluralismo, também com

desdobramentos sobre a consciência e a ideação. Berger salienta que a natureza da relação

entre religião e sociedade é dialética. Por este motivo, tanto os enfoques doutrinários quer do

idealismo, quer do materialismo, ficam impossibilitados. Pois é possível demonstrar, em

exemplos concretos, como ideias religiosas levaram a mudanças empiricamente observáveis

na estrutura social. Bem como, em outros exemplos, é demonstrável como mudanças sociais

empiricamente observáveis tiveram consequências em nível de consciência religiosa. Para

ilustrar este argumento, Berger (1969/1985, p.140-141) expõe:

Uma coisa bem diferente é o poder que a religião tem de “retroagir” sobre a

infra-estrutura em situações históricas específicas. Sobre isso, pode-se dizer

que esse poder varia muito em diferentes situações. Assim, a religião pode

aparecer como uma força formativa numa situação e como uma formação

dependente na situação que se seguiu historicamente. Pode-se descrever essa

mudança como uma “reversão” na “direção” da eficácia causal entre a

religião e suas respectivas infra-estruturas. O fenômeno que estamos

considerando aqui diz respeito ao caso em questão. Os desenvolvimentos

religiosos originados da tradição bíblica podem ser vistos como fatores

causais na formação do mundo moderno secularizado. Uma vez formado,

porém, esse mundo precisamente impede que a religião continue como força

formativa. Diríamos que é aqui que reside a grande ironia histórica na

relação entre a religião e a secularização, ironia essa que exprimiríamos de

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maneira mais plástica dizendo que, historicamente, o cristianismo cavou sua

própria sepultura.

Em outras palavras, dialeticamente, ideias religiosas originadas da tradição bíblica

contribuíram no Ocidente para formação do mundo secularizado, produzindo mudanças

empiricamente observáveis na estrutura social (secularização objetiva), principalmente

possibilitando o surgimento de um “pluralismo” de estruturas de plausibilidades concorrentes,

mergulhando o indivíduo moderno numa pluralidade de mundos, migrando de um lado para

outro entre estruturas de plausibilidades rivais e diversas vezes contraditórias. A secularização

observada na estrutura social se correlaciona com processos dentro da mente humana, isto é, a

secularização da consciência. Neste sentido, secularização da consciência, em termos

subjetivos, se contrapõe a consciência religiosa.

A menção à consciência, seja ela secularizada ou religiosa, não esquecendo também o

conceito de inconsciência, traz para a discussão uma premissa fundamental da psicanálise,

enquanto divisão do psíquico na perspectiva freudiana. Esta premissa torna possível à

psicanálise compreender os processos patológicos da vida mental. Em Freud (1996), o

conceito do inconsciente designa o estado dos conteúdos reprimidos, esquecidos ou

recalcados. Assim sendo, para Freud, o inconsciente é de natureza exclusivamente pessoal.

Freud (1996, p.28) afirma ter obtido o conceito de inconsciente a partir da teoria da

repressão. “O reprimido é, para nós, o protótipo do inconsciente”, declara Freud. Todavia, ele

percebe a existência de dois tipos de inconsciente: “um que é latente, mas capaz de tornar-se

consciente, e outro que é reprimido e não é, em si próprio e sem mais trabalho, capaz de

tornar-se consciente”. Assim, para efeitos de terminologia e descrição, Freud (1996, p.29)

explica:

Ao latente, que é inconsciente apenas descritivamente, não no sentido

dinâmico, chamamos de pré-consciente; restringimos o termo inconsciente

ao reprimido dinamicamente inconsciente, de maneira que temos agora três

termos, consciente (Cs.), pré-consciente (Pcs.) e inconsciente (Ics.), cujo

sentido não é mais puramente descritivo.

Além disto, há em cada indivíduo uma organização coerente de processos mentais que

Freud chamou de ego. Do ego procedem também as repressões através das quais são

excluídas certas tendências da mente. Todavia, há algo sobre o ego que conduz Freud (1996,

p.31) a declarar: “Deparamo-nos com algo no próprio ego que é também inconsciente, que se

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comporta exatamente como o reprimido – isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio

ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser tornado consciente”. Além

da correção que obrigou Freud a distinguir o inconsciente do pré-consciente há uma segunda

correção oriunda, segundo Freud (1996, p.31-32), da compreensão interna da estrutura da

mente:

Reconhecemos que o Ics. não coincide com o reprimido; é ainda verdade que

tudo o que é reprimido é Ics., mas nem tudo o que é Ics. é reprimido.

Também uma parte do ego – e sabem os Céus que parte tão importante –

pode ser Ics., indubitavelmente é Ics. E esse Ics. que pertence ao ego não é

latente como o Pcs., pois, se fosse, não poderia ser ativado sem tornar-se Cs.,

e o processo de torna-lo consciente não encontraria tão grandes dificuldades.

Quando nos vemos assim confrontados pela necessidade de postular um

terceiro Ics., que não é reprimido, temos de admitir que a característica de

ser inconsciente começa a perder significação para nós. Torna-se uma

qualidade que pode ter muitos significados, uma qualidade da qual não

podemos fazer, como esperaríamos, a base de conclusões inevitáveis e de

longo alcance. Não obstante, devemos cuidar para não ignorarmos esta

característica, pois a propriedade de ser consciente ou não constitui, em

última análise, o nosso único farol na treva da psicologia profunda.

Por sua vez, Jung vai além das concepções de Freud acerca do inconsciente. Jung

(2008, p.13) resume o ponto de vista freudiano segundo o qual os conteúdos do inconsciente

se reduzem às tendências infantis reprimidas. Nesta perspectiva, a repressão é um processo

que se inicia na primeira infância sob a influência moral do ambiente, perdurando através de

toda a vida e por meio da análise, as repressões são abolidas e os desejos reprimidos

conscientizados. Jung salienta ainda que de acordo com essa teoria, o inconsciente contém

apenas as partes da personalidade que poderiam ser conscientes se a educação não as tivesse

reprimido. Todavia, Jung afirma que mesmo considerando que, sob um determinado ponto de

vista, as tendências infantis do inconsciente fossem preponderantes, seria incorreto definir ou

avaliar o inconsciente somente nestes termos. Segundo ele, o inconsciente possui, além deste,

outro aspecto, incluindo não apenas conteúdos reprimidos, mas todo o material psíquico que

subjaz ao limiar da consciência. Assim, Jung compreende ser impossível explicar pelo

princípio da repressão a natureza subliminal de todo este material, pois segundo ele, se assim

o fosse, a remoção das repressões proporcionaria ao indivíduo uma memória fenomenal, à

qual nada escaparia. Deste modo, Jung conclui que além do material reprimido, o

inconsciente contém todos aqueles componentes psíquicos subliminais, inclusive as

percepções subliminais dos sentidos.

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Outro elemento na teoria junguiana que a faz avançar em relação à teoria de Freud

sobre o inconsciente é a sua constatação de que na camada mais profunda do inconsciente

jazem adormecidas as imagens humanas universais e originárias, imagens denominadas por

Jung de arquétipos. Essa constatação realizada por Jung significa mais um passo à frente na

sua teoria, a saber: a caracterização de duas camadas no inconsciente. A distinção do

inconsciente pessoal do inconsciente impessoal. Este último sendo chamado por Jung de

inconsciente coletivo, por ser desligado do inconsciente pessoal e por ser totalmente

universal. Na teoria junguiana, o inconsciente coletivo representa a parte objetiva do

psiquismo, uma vez que o inconsciente pessoal representa a parte subjetiva.

Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente

pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre

uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou

aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que

chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo “coletivo” pelo fato de

o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é,

contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de

comportamento, os quais são ‘cum grano salis’ os mesmos em toda parte e

em todos os indivíduos. Em outras palavras, são idênticos em todos os seres

humanos, constituindo portanto um substrato psíquico comum de natureza

psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo (JUNG, 2000, p.15).

Em termos do caráter universal dos conteúdos do inconsciente coletivo, os arquétipos,

Jung afirma se tratar de tipos arcaicos ou primordiais, imagens universais existentes desde os

tempos mais remotos. Um exemplo disto, de acordo com Jung, são as representações coletivas

que designam as figuras simbólicas da cosmovisão primitiva, algo aplicável aos conteúdos

inconscientes.

Os ensinamentos tribais primitivos tratam de arquétipos de um modo

peculiar. Na realidade, eles não são mais conteúdos do inconsciente, pois já

se transformaram em fórmulas conscientes, transmitidas segundo a tradição,

geralmente sob a forma de ensinamentos esotéricos. Estes são uma expressão

típica para a transmissão de conteúdos coletivos, originariamente provindos

do inconsciente (JUNG, 2000, p.16).

Outra forma de expressão dos arquétipos está relacionada ao mito, um elemento

extremamente importante para a linguagem religiosa. Para Jung (2000, p.17), o significado do

termo “arquétipo” fica mais claro quando se relaciona com o mito, o ensinamento esotérico e

o conto de fada. Jung compreende que os mitos são, antes de mais nada, manifestações da

essência da alma, porém isto foi negado de modo absoluto durante muito tempo. O que fez

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com que os estudiosos da mitologia se contentassem em recorrer a ideias solares, lunares,

meteorológicas, vegetais, para fundamentar o mito.

Todos os acontecimentos mítologizados da natureza, tais como o verão e o

inverno, as fases da lua, as estações chuvosas, etc, não são de modo algum

alegorias destas, experiências objetivas, mas sim, expressões simbólicas do

drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue

apreender através de projeção – isto é, espelhadas nos fenômenos da

natureza. A projeção é tão radical que foram necessários vários milênios de

civilização para desligá-la de algum modo de seu objeto exterior. [...]

O homem primitivo é de uma tal subjetividade que é de admirar-se o fato de

não termos relacionado antes os mitos com os acontecimentos anímicos. Seu

conhecimento da natureza é essencialmente a linguagem e as vestes externas

do processo anímico inconsciente. Mais precisamente pelo fato desse

processo ser inconsciente é que o homem pensou em tudo, menos na alma,

para explicar o mito. Ele simplesmente ignorava que a alma contém todas as

imagens das quais surgiram os mitos, e que nosso inconsciente é um sujeito

atuante e padecente, cujo drama o homem primitivo encontra

analogicamente em todos os fenômenos grandes e pequenos da natureza

(JUNG, 2000, p.18).

É inegável que na Modernidade as pessoas foram postas numa posição na qual se

sentiram forçadas a ter que lidar não mais com um contexto social no qual uma religião

universal apresentava uma interpretação objetiva do mundo, mas com uma realidade na qual

múltiplas estruturas de plausibilidade passaram a coexistir e concorrer umas com as outras.

Este processo foi iniciado no Ocidente pela própria tradição judaico-cristã, que contrastando

radicalmente com noção pagã de deificação da natureza, operou a desdivinização da natureza

e consequente desencantamento do mundo já a partir da tradição bíblica. Esta visão bíblica do

mundo favoreceu, desde o século XVI, o desenvolvimento da ciência moderna e da sua

correspondente concepção do mundo. O modelo do mundo como um organismo foi

gradualmente sendo substituído até que uma concepção mecanicista do mundo assumisse o

lugar (HOOYKAAS, 1988). Disto até que a concepção racionalista e naturalista do mundo

desalojasse a concepção religiosa foi somente uma questão de tempo. No período do

absolutismo esclarecido, enfraqueceu-se a Igreja através de processos tomados de empréstimo

à própria Igreja, com fim de substituir uma interpretação objetiva do mundo, outrora garantida

pela Igreja, por outra garantida pelo Estado. Ainda no próprio âmago da tradição cristã

ocidental:

Nos primórdios dos tempos modernos, o movimento protestante colocou em

lugar da salvação revelada e sustentada pela instituição objetiva da Igreja, a

noção de certeza subjetiva da salvação. Admitia-se, à luz dessa doutrina, que

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cada indivíduo devia decidir, segundo sua consciência subjetiva, se sua

conduta era agradável a Deus e conduzia à salvação. Assim, o protestantismo

tornou subjetivo um critério até então objetivo, numa transposição paralela à

da moderna epistemologia quando recuou de uma ordem de existência

objetivamente garantida para o sujeito individual. Não era grande a distância

entre a doutrina da certeza subjetiva da salvação e o ponto de vista

psicológico em que a observação do processo psíquico, transformada em

verdadeira curiosidade, tornou-se gradualmente mais importante do que o

apego aos critérios de salvação que os homens haviam até então procurado

descobrir dentro das próprias almas (MANNHEIM, 1952, p.31).

Todavia, do mesmo modo que ideias religiosas contribuíram para secularizar as

estruturas sociais e consequentemente consumar a secularização da consciência dos sujeitos, o

próprio fenômeno de secularização pode ocultar, ou em termos freudiano, reprimir ou recalcar

uma inconsciência religiosa que é inerente às origens religiosas deste fenômeno. Ou melhor

ainda, em termos junguiano, a consciência secularizada pode em certas circunstâncias

continuar atuando a partir de noções do inconsciente coletivo, uma vez que as narrativas

mitológicas que originaram tais noções religiosas procedem de processo anímico

inconsciente. A secularização apenas transpôs estas noções, outrora relacionadas com

imagens primordiais e transcendentes, para a imanência histórica, tornando inconsciente o

elemento religioso que lhe é próprio. O que não impede que noções religiosas inconscientes

continuem motivando e guiando certos processos e concepções de mundo na Modernidade.

Isto ocorre mesmo quando esses processos se compreendem totalmente desvinculados de

concepções religiosas, sendo explicitamente laicos.

3.3 Inconsciência, ideologia e utopia

Karl Mannheim publicou na década de trinta o livro Ideologia e utopia como uma

introdução à Sociologia do Conhecimento. Neste texto, ele realiza um exame do pensamento

humano em seu modus operandi na vida política como um instrumento motivador da ação

coletiva, o pensamento conforme os termos da Sociologia do Conhecimento, situado dentro

da moldura concreta de uma situação histórico-social. De conformidade com as bases

epistemológicas da Sociologia do Conhecimento, realiza-se um procedimento diferente do

realizado por filósofos que examinam o pensamento através de uma análise lógica, partindo

do indivíduo isolado e de seu pensamento até alcançar o “pensamento em si” em termos

abstratos. Pois segundo Mannheim (1952, p.3-4):

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De acordo com o contexto particular da atividade coletiva de que participam,

os homens propendem a ver diferentemente o mundo que os rodeia. Do

mesmo modo que a pura análise lógica separou o pensamento individual de

sua situação dentro de um grupo, também separou o pensamento da ação. E

fê-lo baseando-se na suposição tácita de que essas conexões inerentes e

sempre existentes na realidade, entre o pensamento, de um lado, e do outro o

grupo e a atividade, ou eram insignificantes para o pensamento “correto” ou

destacáveis dessas fundações, sem que daí resultasse qualquer dificuldade.

Desta forma, Mannheim se propõe a identificar e isolar para análise vários tipos de

pensamento e os relacionar aos grupos nos quais surgiram. Isto porque ele se preocupa com o

surgimento de um método analítico que sirva para demonstrar os diversos tipos de

pensamento (para que se possa sustentar que um determinado tipo de pensamento é feudal,

burguês ou proletário, liberal, socialista ou conservador), isto aliado a um critério que forneça

um modo de controlar a demonstração. Assim, destaca a necessidade de elaborar hipóteses

que possam ser utilizadas como base de estudos indutivos. Dentre os seus objetivos de

pesquisa, destacam-se, primeiro, “refinar a análise do significado na esfera do pensamento,

que termos grosseiramente indiferenciados sejam gradualmente suplantados por

caracterizações mais exatas e pormenorizadas dos vários estilos de pensamento”; e segundo,

“aperfeiçoar a técnica de reconstrução da história social até que ao invés de perceber fatos

dispersos e isolados, possamos observar a estrutura social no seu todo, isto é, a trama de

forças em interação de que se originaram os vários modos de observar e pensar as realidades”.

De acordo com os critérios expostos, o conceito de “ideologia” é entendido como

produto do conflito político. Isto porque Mannheim concebe a discussão política como

possuidora de um caráter fundamentalmente diverso da discussão acadêmica, uma vez que

não busca somente ter razão, mas também demolir a base da existência social e intelectual do

adversário.

A discussão política penetra, por isso, mais profundamente nos alicerces

existenciais do pensamento do que a discussão que pensa somente em função

de alguns poucos “pontos de vista” selecionados, considerando apenas a

“significação teórica” de um argumento. O conflito político que é, desde o

começo, uma forma racionalizada de luta pelo predomínio social, ataca o

status social do adversário, seu prestígio público e sua confiança em si

próprio. É difícil decidir nesse caso se a sublimação ou substituição das

armas mais antigas do conflito, o uso direto da força e opressão, constitui de

fato um melhoramento fundamental na vida humana. É certo que,

exteriormente, é mais difícil suportar a opressão física, mas o desígnio de

aniquilamento psíquico que a substituiu em muitos casos é, talvez, ainda

mais intolerável. Não é pois de estranhar que, particularmente, nesta esfera, a

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refutação teórica se tenha transformado gradualmente num ataque muito

mais fundamental a toda situação de vida do adversário, e que com a

destruição de suas teorias se espere solapar-lhe a posição social

(MANNHEIM, 1952, p.35).

Mannheim apresenta o conceito de “ideologia” relacionado ao conflito político porque

“foi nas contendas políticas que os homens perceberam, pela primeira vez, as motivações

coletivas inconscientes que sempre orientaram o pensamento”. Segundo ele, a discussão

política é algo mais do que uma argumentação teórica, “é o arrancar dos disfarces, o

desmascaramento daqueles motivos inconscientes que ligam a existência grupal a suas

aspirações culturais e seus argumentos teóricos”.

O conceito de “ideologia” reflete uma das descobertas que surgiram do

conflito político, a saber, que os grupos dominantes podem estar tão ligados,

em seu pensamento, aos interesses decorrentes de uma situação que se

tornam simplesmente incapazes de perceber certos fatos que lhes solapariam

o senso de domínio. A palavra “ideologia” implica o conceito de que, em

certas situações, o inconsciente coletivo de determinados grupos obscurece o

verdadeiro estado da sociedade, tanto para esses grupos como para os demais

e que, por isso mesmo, a estabiliza (MANNHEIM, 1952, p.36).

Por meio da análise de sentido do termo “ideologia”, considerando os vários

significados cambiantes nele misturados até atingir uma definição mais precisa das variações

de sentido do conceito que, de certo modo, prepara, segundo Mannheim, o caminho para uma

análise sociológica e histórica do termo. Análise que revelará que, de um modo geral, existem

dois significados distintos e separáveis do termo “ideologia”, o particular e o total.

Em sentido particular, “ideologia” enquanto conceito faz sua análise das ideias num

nível puramente psicológico, pois o termo é utilizado para denotar que as ideias e

representações avançadas de um oponente são consideradas com ceticismo e vistas como

disfarces mais ou menos conscientes da natureza real de uma situação, cujo verdadeiro

reconhecimento contrariaria os interesses do oponente. Assim, Mannheim afirma que neste

sentido “ideologia” é concebida como deformações que abrangem uma vasta gama de

variações – das mentiras conscientes aos disfarces semiconscientes e mesmo inconscientes.

Por sua vez, em sentido total, “ideologia” opera num nível noológico, uma vez que a

referência não é a casos isolados de conteúdo de pensamento, mas a sistemas de pensamento

fundamentalmente divergentes e a modos de experiência e interpretação profundamente

diversos. Neste sentido, refere-se à ideologia de uma época, de um grupo histórico-social

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concreto, ou seja, consideram-se as características e a estrutura total do espírito dessa época

ou desse grupo. Enquanto em sentido particular, presume-se que certos interesses sejam a

causa de determinada ideologia, compreendida como mentira ou ilusão. Já em sentido total,

pressupõe-se que existe uma correspondência entre dada situação social e dada perspectiva.

Neste caso, conforme Mannheim, conquanto seja necessária uma análise de constelações de

interesse, ela visará, não estabelecer conexões causais, mas caracterizar a situação total. Em

outros termos, a psicologia do interesse tende a ser substituída por uma análise da

correspondência entre a situação a estudar e as formas de conhecimento.

Segue-se daí que o indivíduo só pode ser considerado portador de uma

ideologia enquanto tratarmos daquela concepção de ideologia que, por

definição, dirige-se mais a conteúdos destacados do que à estrutura total do

pensamento, desmascarando falsas maneiras de pensar e denunciando

mentiras. Mas, desde que se usa a concepção total de ideologia, procuramos

reconstruir a perspectiva inteira de um grupo social, e nem os indivíduos

concretos, nem sua soma abstrata podem legitimamente ser considerados

portadores desse sistema de pensamento ideológico como um todo. O objeto

da análise, nesse nível, é a reconstrução da base sistemática teórica

subjacente aos juízos do indivíduo. As análises das ideologias, nessa acepção

particular, que tornam o conteúdo do pensamento individual em grande parte

dependente dos interesses do sujeito, nunca poderão realizar essa

reconstrução básica da perspectiva inteira de um grupo social. Na melhor das

hipóteses, revelarão os aspectos psicológicos coletivos da ideologia ou

imprimirão algum progresso à psicologia das massas, tratando, ou das

diferentes condutas dos indivíduos na multidão, ou dos resultados da

integração multitudinária das experiências psíquicas de muitos indivíduos. E,

conquanto o aspecto coletivo-psicológico possa muitas vezes aproximar-se

dos problemas da análise ideológica total, jamais dará a solução exata de

suas questões. Uma coisa é saber até que ponto minhas atitudes e juízos são

influenciados e afetados pela coexistência com outros seres humanos, bem

outra saber quais as consequências teóricas de meu modo de pensamento que

são idênticas às de meus companheiros de grupo ou de camada social

(MANNHEIM, 1952, p.54-55).

O segundo conceito apresentado por Mannheim para compor o par básico com o de

“ideologia” é o conceito de “utopia”. E segundo Mannheim (1952, p.179), “um estado mental

é utópico quando é incongruente com o estado dentro do qual ocorre”, em outras palavras,

utópicas são “as orientações que transcendam a realidade e que, ao serem postas em prática,

tendam a destruir, parcial ou completamente, a ordem de coisas existentes em determinada

época”.

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A distinção entre os estados mentais utópico e ideológico é realizada por Mannheim

ao limitar o significado de “utopia” ao tipo de orientação que transcende a realidade e que, ao

mesmo tempo, rompe os laços da ordem existente.

É possível voltar-se alguém para objetos alheios à realidade, que

transcendem a existência real – e, mesmo assim, continuar a perceber e

manter a ordem de coisas existentes. No decorrer da história, o homem

ocupou-se mais amiúde com objetos que transcendiam o âmbito de sua

existência do que com os que lhe eram imanentes, e, a despeito disso, as

formas reais e concretas da vida social foram assentadas em estados mentais

“ideológicos”, incongruentes com a realidade. Semelhante orientação

incongruente vinha a ser utópica quando, além do mais, tendia a romper os

limites da ordem existente (MANNHEIM, 1952, p.179).

Como pode ser observado, a distinção entre “utopia” e “ideologia” não está somente

no se orientar por ideias que transcendem a ordem existente, é possível assim proceder sem

que com isto a “ideologia” funcione como “utopia”, pois as “ideologias” podem ser

adequadas a determinados estágios da existência, enquanto se integrarem harmoniosa e

organicamente na concepção do mundo característica deste período, afirma Mannheim. As

“ideologias” atuam utopicamente quando oferecem possibilidades revolucionárias. De acordo

com Mannheim (1952, p.180): “Só no momento em que certos grupos sociais incorporaram

essas imagens desiderativas na sua conduta real, tencionando pô-las em prática, essas

ideologia se transformaram em utopias”.

A mentalidade utópica se concentra de tal forma em declarar que terminada ordem é

má e em razão disto deve ser destruída e transformada numa nova ordem supostamente

melhor que acaba por perder a capacidade de compreender acertadamente uma situação real

na sociedade. Isto ocorre, segundo Mannheim, em razão do pensamento utópico se empenhar

tanto em demonstrar que as ideias do adversário político são errôneas que, sem ter

consciência, percebe apenas aqueles elementos da situação que tendem a negar as ideias do

adversário e a afirmar as suas.

Esta não percepção da situação real por parte da mentalidade utópica de certo modo

remete ao que foi amplamente discutido no capítulo anterior sobre o processo de

“imanentização” ou de “secularização” conforme exposto por Voegelin.

Retomando o conteúdo abordado no capítulo anterior, segundo Voegelin, neste

processo de imanentização há o problema do eidos da história. E “a tentativa de construir um

eidos da história conduzirá a imanentização falaciosa do eschaton cristão”. Isto conforme é

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resumido por Voegelin (1982, p.93), pode ser observado no avanço do cristão que peregrina

neste mundo, na sua busca por santificação da vida, ações que se constituem num movimento

rumo a um telos, uma meta. E essa meta, a visão beatífica, é um estado de perfeição. Daí, no

simbolismo cristão, podem-se distinguir o movimento, como seu componente teleológico, e

um estado de valor máximo, como seu componente axiológico. Os dois componentes

ressurgem nas variantes da imanentização, podendo, por conseguinte, ser classificados como

variantes que, em seu simbolismo, acentuam seja o componente teleológico, seja o

componente axiológico, ou ainda combinam ambos. No primeiro caso, quando a ênfase recai

fortemente sobre o movimento, sem que haja clareza acerca da perfeição final, o resultado

será a interpretação progressista da história. O objetivo não precisa ser esclarecido porque os

pensadores progressistas, homens como Diderot ou D’Alembert, presumem a seleção de

fatores desejáveis como padrão e interpretam o progresso como um aumento qualitativo e

quantitativo do bem presente – o “maior e melhor” do slogan simplificador. Essa é uma

atitude conservadora, a qual se pode tornar reacionária a menos que o padrão original seja

ajustado à situação histórica em fluxo. No segundo caso, quando a ênfase é posta

incisivamente sobre o estado de perfeição, sem nitidez acerca dos meios necessários para sua

realização, o resultado será o utopismo. Ele pode tomar a forma de um mundo de sonho

axiológico, tal como na utopia de More, quando o pensador ainda se mantém consciente de

que o sonho é irrealizável e das razões porque o é; ou, como fruto de um crescente

analfabetismo teórico, pode assumir a forma de vários idealismos sociais, tais como a

abolição da guerra, da distribuição desigual da propriedade, do medo e da necessidade. E,

finalmente, a imanentização pode-se estender à totalidade do símbolo cristão. O resultado será

então o misticismo ativo de um estado de perfeição, a ser atingido através da transfiguração

revolucionária da natureza do homem, tal como, por exemplo, no marxismo.

Esta discussão se aplicada a modos de pensar do tipo representado pelo pós-

humanismo serve para identificação dos dois movimentos. O movimento teleológico pode ser

observado na crença de que o próximo estágio na evolução da espécie humana será operado

pela cultura e não pela natureza, enquanto fenômeno biológico, exposto de outra maneira, a

humanidade progredirá através do conhecimento científico até um telos, um estado que

transcenderá a condição humana atual como uma condição beatífica ou de perfeição. Por sua

vez, o movimento axiológico, que enfatiza este estado de perfeição mesmo sem a nitidez

acerca dos meios necessários para sua realização. Algo que o caracteriza como utopismo, uma

vez que, perde o contato com o que é real e se concentra apenas em afirmar a imperfeição da

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ordem atual e a necessidade de que mesma venha a ser superada. Ao mesmo tempo, que tal

noção oculta ou mantém inconsciente o elemento ideológico transcendente que seja deseja por

em prática como ideal realizável de uma ordem perfeita.

3.4 Ascese intramundana e secularização

A “ascese secular” foi um tema explorado por Weber em suas pesquisas sobre a

gênese da Modernidade, tomado em sua relação com o “protestantismo ascético”, vertente do

protestantismo evidentemente relacionada, segundo as pesquisas de Weber, com traços

decisivos da Modernidade.

Dificilmente, em qualquer narrativa da gênese da Modernidade, a reforma

luterana não ocupa um lugar central: trata-se de verdadeiro topos das

ciências sociais. No dizer de Hans Joas, a correlação entre os dois

fenômenos pode ser tomada até como “metanarrativa da modernização

protestante” no interior da qual ele divisa nada menos que seis modelos com

diferentes correlações de fenômenos: 1) a Jellineck tese (protestantismo e

direitos humanos), 2) a Hintze tese (protestantismo e Estado burocrático), 3)

a Troeltsch tese (protestantismo e individualismo religioso), 4) a Merton tese

(protestantismo e ciência moderna), 5) a Dewey tese (protestantismo e

democracia) e, naturalmente, 6) a Weber tese (protestantismo e capitalismo)

(SELL, 2013, p.216).

Segundo Sell (2013, p.217), embora o tema do protestantismo ocupe um lugar

destacado na pesquisa de Weber, ele não representa um fim em si mesmo, mas somente uma

variável explicativa. O interesse de Weber pelo protestantismo ascético, embora vital, é

determinado em função de dois temas que o transcendem e que representam o centro de sua

pesquisa: o capitalismo e o racionalismo.

Logo no parágrafo inicial da introdução de A ética protestante e o espírito do

capitalismo, Weber (2003, p.23) revela o que está no centro dos interesses da sua pesquisa

sobre religião e economia:

Ao estudarmos qualquer problema da história universal, o produto da

moderna civilização européia estará sujeito à indagação sobre a que

combinações de circunstâncias se pode atribuir o fato de na civilização

ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como

queremos crer, apresentam uma linha de desenvolvimento de significado e

valor universais.

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Com isto em foco, Sell (2013, p.7) explica que Weber, tendo em vista esse insight,

após seu estudo seminal sobre a relação entre o ethos do protestantismo ascético e a moderna

concepção de vida profissional (realizado entre 1904 e 1905), amplia as suas pesquisas na

direção de uma investigação comparativa entre as religiões mundiais. Sell (2013, p.12)

destaca também que Weber aponta para análise dos caminhos e especificidades que a

racionalização adquiriu ao longo de um processo histórico amplo e diferenciado que ocorre,

primordialmente, no interior das grandes religiões mundiais. Isto consiste numa

racionalização como processo cultural que atravessa diferentes civilizações. E ampliando esta

discussão, Sell (2013, p.12-13) acrescenta:

Trata-se, portanto, de dois planos de análise, que podemos denominar de

“societário” e “cultural”. Pela via societária, Weber busca descrever como

emerge, no contexto da Modernidade, a institucionalização de padrões de

ação racionais específicos que constituem esferas de valor e ordens sociais

movidas por sua legalidade própria (mercado, Estado, arquitetura, arte,

guerra etc.). Quanto à racionalização em seu sentido cultural, uma nova

gama de distinções da maior importância precisa ser percebida. Weber

menciona que “se trata novamente de identificar a peculiaridade específica e

explicar a gênese do racionalismo ocidental e, no interior deste, do

racionalismo moderno”. A sentença aponta aqui para duas tarefas que

envolvem duas problemáticas distintas: a primeira é a determinação da

especificidade (problemática comparativo-tipológica) e a segunda é a

identificação da gênese (problemática sócio-histórica) dos processos de

racionalização cultural. Pelo primeiro, ele adota uma perspectiva sincrônica

(cultural-comparativa) que desemboca na caracterização da especificidade

do racionalismo na sua versão ocidental, enquanto pela perspectiva

diacrônica (genético-cultural) ele estabelece o processo de gênese histórica

do racionalismo moderno.

Há ainda alguns pontos importantes esclarecidos por Sell (2013) no tocante ao escopo

da pesquisa weberiana. Dentre estes, a importância de se compreender que Weber não

percebia o racionalismo como exclusividade ocidental, o que, segundo ele, ocorria eram

diferentes processos de racionalização que podiam ser verificados, nos mais diversos graus e

direções, em distintas configurações sociais e culturais e, justamente, através da comparação

com outros processos civilizacionais é que Weber extrai as peculiaridades do racionalismo

ocidental. E, além deste ponto, há as categorias weberianas de “racionalidade” e

“racionalização” como representativas de “um fio condutor privilegiado, uma chave analítica

destacada para reconstrução do argumento que estrutura a Sociologia weberiana”. A

“racionalização” não é um tema secundário, mas representa o problema nuclear da Sociologia

weberiana. Em síntese, estas categorias se vinculam a vasta investigação histórico-empírica de

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Weber, que o levou a se aprofundar nas grandes religiões do mundo, não como um esforço de

compreensão destas civilizações enquanto tais, mas como instrumento comparativo para

entender o caráter próprio do mundo ocidental e moderno. Assim, destaca Sell (2013, p.9),

“que uma teoria (abstrata) da racionalidade e (empírica) da racionalização é, em última

instância, subsídio (típico-social) construído por Weber tendo em vista entender as formas de

vida racionais que permeiam o mundo em que vivemos”.

E de forma específica no tocante à relação entre protestantismo ascético e economia

capitalista, salienta Sell (2013, p.228), Weber longe de afirmar que a Reforma isoladamente

produziu o “espírito capitalista” ou o “capitalismo inteiro” (enquanto sistema econômico), ao

contrário, pois claramente distinguia entre “forma” (ou sistema) e “espírito” (ou conduta) do

capitalismo. Isto de tal modo que o fator a ser explicado em sua pesquisa tinha a ver apenas

com o “espírito” (ou conduta) capitalista e, ainda assim, não como conjunto ou totalidade,

mas apenas um dos elementos formadores do “espírito capitalista”, a ética ou ethos

profissional, que, em seu entendimento, vinculava-se a “ascese intramudana” de alguns

grupos protestantes, classificados por Weber como ascéticos, porém representando um desvio

do ascetismo no sentido do monasticismo católico, cujo sentido sempre foi extramundano.

Weber identificou em grupos protestantes (puritanos, batistas, quakers e etc) que

possuíam a crença numa vocação divina para atuar no mundo para glória de Deus, bem como

a necessidade de buscar a “certeza da salvação”, um tipo de ascese secular. Esta ascese

possuía o efeito prático de disciplinar a vida deste indivíduo de tal modo a fazê-los

desempenhar as suas atividades com zelo e empenho ao ponto de não desperdiçar tempo e

com o entendimento de que o trabalho que estava sendo realizado tinha significado religioso

semelhante ao realizado por clérigos em contexto eclesiástico.

Weber (2003, p.117) examina “a ligação entre as ideias religiosas fundamentais do

protestantismo ascético e suas máximas sobre a conduta econômica cotidiana”. Para efeito dos

interesses desta pesquisa em particular sobre noções religiosas, que em sua forma

secularizada, continuam influenciando o pensamento e as ações das pessoas na Modernidade,

isto é importante. E a importância jaz principalmente, quando Weber afirma que um elemento

constitutivo do “espírito capitalista”, “a ética profissional” especificamente burguesa, bem

como o traço “ascético” que lhe é inerente, possui vínculos com um ethos protestante ascético

(uma noção religiosa), conservando sua influência sobre a conduta do trabalho até que o

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capitalismo atual pudesse a dispensar. Como ilustração para o que está sendo dito, leia-se uma

citação de A ética protestante e o espírito do capitalismo:

A ênfase da significação ascética de uma vocação fixa forneceu uma

justificativa ética para moderna divisão do trabalho em especialidades. De

modo semelhante, a interpretação providencial da obtenção do lucro

justificou as atividades dos homens de negócios” (WEBER, 2003, p.123).

Aqui Weber aponta o vínculo entre a “significação ascética de uma vocação fixa” e a

“moderna divisão do trabalho em especialidades”, e ainda “a interpretação providencial da

obtenção do lucro” e “as atividades dos homens de negócios”, tais noções religiosas

produziram uma conduta, uma ética profissional, desejável ao moderno sistema econômico

capitalista. Inicialmente, uma conduta religiosamente motivada, “promover a glória de Deus”,

“cumprir neste mundo a vocação designada por Deus”, porém uma vez que tal motivação

produz a conduta de vida metódica compatível, constituindo-se um dos elementos formadores

do “espírito capitalista”, cai no esquecimento, ou, em termos psicanalíticos, torna-se

inconsciente.

Em outros termos, noções religiosas serviram como motivação consciente para certo

modo de agir no mundo do trabalho, porém mesmo com o seu desaparecimento continua

exercendo de forma mecânica a sua influência sobre a conduta desejável no mundo do

trabalho do moderno sistema capitalista. Isto descreve o que foi exposto no capítulo anterior

como secularização ou mundanização de conceitos teológicos, sua transferência de uma esfera

transcendente para uma imanente. Se a ascese cristã medieval se caracterizava pela

contemplação como vislumbre ou antecipação de realidades que transcendem o mundo, então

a ascese protestante moderna ao valorizar o trabalho (em sentido secular, tarefas cotidianas,

atividades profissionais) como cumprimento de uma vocação (um chamado divino para o

indivíduo que deveria ser atendido no mundo) é um vislumbre da presença divina no mundo,

o divino imerso na imanência histórica, uma “ascese secular”.

3.5 Conclusão

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Algo que deve ser destacado neste momento é que na análise filosófica apresentada no

capítulo três desta pesquisa fica evidente o potencial elucidativo do conceito de secularização

para se compreender a passagem da escatologia para história, principalmente porque o

conceito de secularização descreve a transferência de elementos da transcendência para a

imanência histórica. Uma vez que esta transferência está consumada. Na análise sociológica,

constatam-se as transformações operadas tanto na consciência quanto nas ações dos

indivíduos que compõem a sociedade.

As teorias sociológicas clássicas sobre a secularização perceberam este fenômeno em

termos de abalos na estrutura de plausibilidade erguida sobre um fundamento religioso. Isto

no que se refere ao papel das narrativas religiosas no tocante a explicar e fornecer sentido a

realidade. Este abalo na estrutura religiosa de plausibilidade ocasionou o surgimento de uma

vasta gama de tentativas de definição da realidade, religiosas ou não, que são concorrentes em

busca de obter a adesão dos indivíduos na sociedade ou no mínimo sua atenção. Tal fenômeno

de pluralismo se deu em nível socioestrutural. E Berger percebeu o impacto do abalo

provocado por ele sobre a consciência do sujeito moderno e o descreveu como uma

“secularização da consciência”.

Uma “consciência secularizada”, em termos psicanalíticos, pode ser o elemento

repressor e mantém a “inconsciência religiosa” imperceptível. A expressão “inconsciência

religiosa” foi elaborada neste texto como tentativa de explicar o fenômeno de permanência de

noções religiosas inconscientes (exatamente por terem sido transferidas para uma esfera

imanente e secular) que persistem em influenciar o pensamento e as ações de grupos na

sociedade moderna.

“Como o homem é uma criatura que vive primordialmente na história e na sociedade,

a ‘existência’ que lhe constitui o ambiente nunca é ‘existência em si’, mas sempre uma forma

histórica concreta de existência social” (MANNHEIM, 1952, p.180). E como a história não

pode ser humanamente experimentada em sua totalidade, é parcialmente conhecida. A história

enquanto orientação para o futuro, para um telos, alimentando-se de conteúdos ideológicas, é

real somente na consciência daqueles que compartilham das mesmas convicções ideológicas.

E quando se perder a capacidade de perceber o que é estritamente ideológico em

contraposição à realidade concreta (a ordem histórica e socialmente estabelecida em

determinada época, que não existe apenas na imaginação de certos indivíduos ou grupos) se

caminha por um horizonte utópico. Isto principalmente quando o conteúdo ideológico opera

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num movimento axiológico, que enfatiza um estado de perfeição futura mesmo sem a nitidez

acerca dos meios necessários para sua realização.

Sob influência de um estado de consciência utópico, os grupos na sociedade acreditam

possuir o poder de transpor para a história ideias que transcendem o estado de realidade

existente. Pois a utopia se orienta para um horizonte futuro, em razão disto, inexistente na

realidade, existindo somente enquanto ideologia, um conteúdo de consciência no qual se

acredita como realizável. Todavia, devido à incongruência entre a utopia e a realidade, se for

posta em prática resultará na destruição parcial ou total da ordem das coisas existentes em

determinada época. É natureza da consciência utópica a perspectiva revolucionária, pois

propõe a destruição ou transformação da ordem real existente para que ceda lugar a um

“estado de perfeição futura”.

Está claro que até este momento que o interesse da pesquisa sociológica sobre o

fenômeno da secularização voltou a sua atenção para a relação entre as religiões e a sociedade

secularizada. Isto fica evidente tanto nas teorias clássicas quanto no mais recente

posicionamento assumido por Berger em favor do retorno do sagrado. Nas teorias clássicas,

esta relação se apresenta enquanto domínio da secularização sobre os espaços na sociedade

outrora dominados pelas religiões, dentre estes o domínio da consciência. Na teoria do retorno

do sagrado, esta relação se manifesta enquanto esforço por parte dos religiosos para

reconquistar os domínios perdidos.

Todavia, nesta pesquisa, a relação entre religiões e sociedade secularizada deixa de ser

o interesse principal, pois este cede lugar à sociedade secularizada, porém inconscientemente

agindo motivada por noções religiosas que foram transpostas para o domínio secular.

CAPÍTULO 4

O IMAGINÁRIO PÓS-HUMANISTA: O ESCHATON TECNOGNÓSTICO

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Neste capítulo, buscar-se-á o objetivo de demonstrar a relação analógica entre o

imaginário pós-humanista (com sua fonte inspiradora, a tecnociência contemporânea) e os

elementos constitutivos de uma escatologia gnóstica.

Considerando isto, o capítulo será iniciado com uma exposição sobre o problema da

aniquilação escatológica do mundo. Isto ajudará ao leitor deste texto a identificar quais são os

elementos tipificadores de um pensamento claramente escatológico. Na sequência, será dada

maior atenção ao modo como, nesta pesquisa, foi estabelecida a relação entre gnosticismo e

pós-humanismo, ou seja, não como uma relação causal, mas como uma relação analógica.

Todavia, mesmo não tendo que demonstrar nenhum tipo de relação causal, reconhece-se a

significativa influência dos diversos gnosticismos sobre o pensamento ocidental, algo que será

apontado no tópico seguinte. E, por fim, serão evidenciados os elementos que ganham maior

relevo no imaginário pós-humanista e, assim, ilustram melhor a sua relação análogo com uma

lógica gnóstica.

4.1 O problema da aniquilação escatológica do mundo

Durkheim (2008, p.37), em As formas elementares de vida religiosa, afirmou que os

primeiros sistemas de representações que o ser humano produziu do mundo e de si mesmo são

de origem religiosa, concluindo que não há religião que não seja, ao mesmo tempo, a

cosmologia e a especulação sobre o divino. “Se a filosofia e as ciências nasceram da religião é

porque a própria religião, no princípio, fazia as vezes de ciência e de filosofia”.

Isto evidencia que as religiões historicamente realizaram o papel de primeiras

intérpretes de fenômenos que na Modernidade serão objeto de estudos das variadas ciências.

Assim é possível falar sobre a religião como um tipo de conhecimento ou forma de interpretar

a realidade histórica, social, econômica, biológica, existencial e etc. E que em determinadas

épocas e lugares reinaram como única forma de se saber a respeito destes vários fenômenos.

Entendida desta maneira, pode-se concluir que a religião e a ciência moderna não são

necessariamente adversárias, apenas utilizam conceitos e abordagens diferentes acerca dos

mesmos fenômenos. Como ambas são tentativas de explicar a realidade, constituem-se

diferentes formas de interpretações desta. E, deste modo, utilizam a linguagem, porém através

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de símbolos que fazem com pareçam que estão falando uma língua estrangeira uma para

outra, e para que possam se compreender, necessitam ser mutuamente traduzidas.

A religião interpreta a realidade através da linguagem dos mitos. Espere um pouco!

Mitos?! Como assim? Mito não é algo semelhante às fábulas infantis? Um conjunto de relatos

fantasiosos, fictícios?

É claro que isto necessita ser melhor explicado para que os conceitos sejam mais

precisos e claros, evitando-se assim entendimentos equivocados. Quando se afirma que a

linguagem religiosa se fundamenta em mitos, não é com o significado atribuído aos mitos

pelas pessoas no cotidiano, como se estes fossem estórias ou fábulas.

Este equívoco é compreensível, pois, durante muito tempo até em meios eruditos, esta

foi a maneira de se estudar os mitos, ou seja, como se fossem fábulas, invenção, ficção.

Todavia, Mircea Eliade oferece uma perspectiva melhor sobre este assunto no livro Mito e

realidade. Nele, desenvolve uma relevante discussão sobre o mecanismo, a função, a

evolução do mito e a forma como este se conecta as perguntas que o ser humano faz acerca do

significado do mundo e da sua existência. Bem como a compreensão das formas de

linguagem, expressão e comunicação humanas são dependentes essencialmente do mito.

Eliade começa narrando que para que o mito fosse estudado de forma a não perder de

vista a sua importância ocorreu uma mudança significativa, a partir do século XIX, no modo

como os eruditos ocidentais concebiam o mito. Este deixou de ser concebido como fábula ou

invenção para ser aceito tal qual era compreendido pelas sociedades antigas. Nestas

sociedades, o mito é uma “história verdadeira” e extremamente preciosa por seu caráter

sagrado, exemplar e significativo. Assim, Eliade (2011, p.11) oferece a sua definição de mito

nos seguintes termos:

A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser

a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um

acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do

“princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos

Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total,

o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um

comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de

uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O

mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou

plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são

conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos

“primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e

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desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas

obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes

dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa

irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que

é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o

homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.

Bem, uma vez esclarecido em qual sentido o mito deve ser compreendido, fica mais

fácil aceitar o quão importante é a função que os mitos desempenham enquanto explicações

do mundo. Além disto, como, ao mesmo tempo, sofrem influências e variações quando a

realidade do mundo muda, em outros termos, afetam a realidade e são afetados por ela.

Os mitos narram uma história sagrada ocorrida em tempos primordiais, preservando

estreita relação com as origens do cosmo, a atividade criadora, a cosmogonia. Todavia,

quando os mitos são narrados através dos rituais religiosos, eles atualizam o que ocorreu nos

primórdios. Uma das formas pelas quais os mitos continuam exercendo a sua influência nas

diversas culturas através da história é por meio dos mitos de cataclismos cósmicos, as

escatologias.

“A imersão total da Terra nas Águas ou sua destruição pelo fogo, seguida pela

emersão de uma Terra virgem, simbolizam a regressão ao Caos e à cosmogonia”, afirma

Eliade (2011, p.54). O fim de um mundo decrépito que cede lugar ao novo mundo parece ser

algo distante das culturas modernas, todavia, segundo Eliade, isto é uma representação em

escala macrocósmica e com uma intensidade dramática excepcional do sistema mítico-ritual

da festa do Ano Novo. Eliade (2011, p.47) explica que “a interdependência entre o Cosmo e o

Tempo cósmico (o Tempo ‘circular’) foi sentida com tal vivacidade, que em muitas línguas o

termo que designa o ‘Mundo’ é igualmente empregado para significar o ‘Ano’”.

O “Mundo”, portanto, é sempre o mundo que se conhece e no qual se vive;

ele difere de um tipo de cultura para outro; existe, por conseguinte, um

número considerável de “Mundos”. Mas o que importa à nossa pesquisa é o

fato de, malgrado a diferença das estruturas sócio-econômicas e a variedade

dos contextos culturais, os povos arcaicos pensarem que o Mundo deve ser

anualmente renovado e que essa renovação se produz obedecendo a um

modelo: a cosmogonia ou um mito de origem, que desempenha o papel de

um mito cosmogônico (ELIADE, 2011, p.44).

A humanidade em todas as épocas e lugares tem lidado de alguma forma com a noção

de renovo do mundo, pois tal noção se vincula aos mitos cosmogônicos que recordam aos

homens como o mundo foi criado e tudo o que ocorreu posteriormente. Os mitos de origem,

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embora relatem o que já ocorreu, também guardam vínculos com o futuro, pois são

igualmente projetados num futuro atemporal, principalmente no que se refere à projeção da

sua ideia da perfeição do princípio. Assim, os mitos de fim do mundo desempenham um

importante papel na história da humanidade.

A cosmogonia é o modelo exemplar de todos os tipos de “atos”: não só

porque o Cosmo é o arquétipo ideal de toda situação criadora e de toda

criação – mas também porque o Cosmo é uma obra divina, sendo, portanto,

santificado em sua própria estrutura. Por extensão, tudo o que é perfeito,

“pleno”, harmonioso, fértil, em suma: tudo o que é “cosmicizado”, tudo o

que se assemelha a um cosmo, é sagrado. Fazer bem alguma, trabalhar,

construir, criar, estruturar, dar forma, in-formar, formar – tudo isso equivale

a trazer algo à existência, dar-lhe “vida” e, em última instância, fazê-la

assemelhar-se ao organismo harmonioso por excelência, o Cosmo. Ora, o

Cosmo, repetimos, é a obra exemplar dos Deuses, é a sua obra prima

(ELIADE, 2011, p.35).

Os homens inspirados num ideal de perfeição (o mundo perfeito dos primórdios

projetado como ideal paradisíaco de um mundo futuro) proclamam a destruição do mundo

existente, o fim da ordem contemporânea, pois esta deve ser extinta para que uma nova ordem

possa ocupar o seu lugar. Todavia, a destruição da ordem vigente não faz surgir

imediatamente uma nova ordem, ao contrário instaura o caos, pois o cosmos sempre deve ser

criado, é o produto do trabalho dos deuses.

Eric Voegelin (2014, p.357) alerta: “A ordem não é um estado de coisas eterno, mas

uma transição do caos para o cosmo no tempo. Uma vez criada, a ordem requer atenção à sua

precária existência ou voltará ao caos”. No centro desta discussão está o drama da transição

do caos para o cosmos, símbolos cuja importância não foi perdida ao longo da história, isto

foi muito bem colocado por Voegelin (2014, p.358):

A renovação ritual da ordem, um dos elementos simbólicos desenvolvidos

dentro das civilizações cosmológicas, por exemplo, percorre a história da

humanidade desde o festival de Ano Novo babilônico, passando pela

renovação da berith por Josias e pela renovação sacramental do sacrifício de

Cristo, até o retornar ai principii de Maquiavel, porque a queda da ordem do

ser e o retorno a ela são um problema fundamental da existência humana.

A conexão entre cosmologia e escatologia foi percebida por A. J. Wensinck (apud

VOEGELIN, 2014, p.361), abordada em seu artigo The semitic new year and the origin of

eschatology, e expressa através de fórmulas como a escatologia é “uma cosmogonia do

futuro”. Todavia apesar de Wensinck ter percebido esta conexão, não respondeu a questão de

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por que alguém iria “aplicar a cosmologia ao futuro” e, desse modo, produzir a escatologia.

Quem deu resposta a isto foi o biblista Mowinckel, dando um passo a mais e explicando que o

reino de Deus, originalmente uma presença cultual a ser renovada a cada ano, tornou-se, por

fim, o reino escatológico de Deus no final dos tempos. A análise desta conexão foi o principal

tema de seu Psalmenstudien II, cujo subtítulo é “o Festival de Entronização de Yahweh e a

origem da escatologia”. Mowinckel resumiu os resultados de sua pesquisa em duas teses: (1)

o conteúdo da escatologia deriva do Festival de Entronização cultual; e (2) a escatologia

desenvolveu-se movendo para um futuro indeterminado o que, originalmente, eram as

consequências imediatas, realizadas no curso do ano, da entronização anual de Yahweh.

Este processo se tornou relevante para o Ocidente porque é através dele que o ritual

anual de entronização de Yahweh (por meio principalmente de tradições egípcias que se

tornaram a principal fonte da aspiração imperial da dinastia davídica que criaram um

amálgama de símbolos javistas e cosmológicos) se transformou no ritual de coroação de reis

da dinastia davídica, que no dia da subida ao trono eram adotados por Yahweh como seus

filhos. Assim, “Yahweh não é mais o deus de Israel, mas o governante divino do mundo, que

estabelece a ordem entre a humanidade por meio de seu filho, o rei da casa de Davi”

(VOEGELIN, 2014, p.364). E o modo como isto evolui para noções messiânicas se resume da

seguinte forma:

Assim como o império dravídico havia surgido de Israel e ganhado vida

própria, do império davídico havia surgido o símbolo do Ungido do Senhor,

do Messias de Yahweh, com uma vida própria. As desbotadas lembranças do

apogeu mundano podiam ser preenchidas com a nova substância das

esperanças escatológicas de um rei salvador espiritual que libertaria Israel

para sempre das tribulações impostas por seus inimigos. Na verdade, como

observou corretamente Martin Buber, essa ainda era a grande queda da

existência como Povo Escolhido no presente histórico sob seu Deus, porém,

sem dúvida, foi também um passo a mais no sentido de uma humanidade no

presente histórico sob Cristo (VOEGELIN, 2014, p.367).

Este acontecimento se reveste de especial relevância para o Ocidente porque é nesta

noção que pode ser encontrada a fonte das escatologias históricas e políticas. Eliade (2011,

p.43) identificou nisto o que mais tarde se tornou a expectativa da renovação cósmica, a

salvação do mundo, através do aparecimento de um certo tipo de Rei, Herói ou Salvador, ou

mesmo de chefe político. Deste modo, embora, sob um aspecto fortemente secularizado, o

mundo moderno ainda conserva a esperança escatológica de uma renovação universal, seja

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mediante a vitória de uma classe social ou mesmo de um partido ou de uma personalidade

política.

4.2 O Trans-humanismo e sua relação analógica com a escatologia gnóstica

A noção de escatologia como cosmogonia aplicada ao futuro e por sua vez vinculada à

esperança escatológica de uma renovação universal contribui para o entendimento desta

tendência no Ocidente que se manifesta por um anseio revolucionário proclamador da

destruição da ordem vigente para que ofereça lugar a uma nova ordem. Em outras palavras,

isto está intimamente relacionado com uma inconsciência religiosa.

Assim, como expresso acima por Eliade, sob um aspecto fortemente secularizado, o

mundo moderno ainda conserva a esperança escatológica de uma renovação universal. O que

claramente pode ser observado no exemplo escolhido por esta pesquisa para ilustrar este

fenômeno, o trans ou pós-humanismo. Pois, em resumo, compreende-se que o pós-

humanismo é a ideia de que a humanidade pode ser transformada, transcendida ou eliminada

pelos avanços tecnológicos.

No primeiro capítulo, já foi realizada uma apresentação de alguns elementos que estão

associados ao movimento trans-humanista. Todavia, quando se fizer necessário serão

acrescentadas mais informações ao longo deste capítulo. O movimento trans-humanista

começa a se constituir a partir dos temores surgidos no início do século XX no tocante ao

futuro da humanidade. Temores relacionados com as guerras mundiais, os riscos da

contaminação nuclear ou poluição ambiental. Em meio a este cenário, fortalecem-se a

preocupação com o destino da humanidade e o anúncio sobre o virtual fim desta era humana.

Concepções futuristas começam a prever o eventual abandono da condição humana nos

próximos séculos, isto acompanhado por uma recusa em aceitar as limitações tradicionais que

definiam a condição humana, tais como as enfermidades, o envelhecimento e a morte.

O panorama contemporâneo sobre o trans-humanismo é iniciado, quando em 1988

Max More e Tom Bell começaram, com alguns exemplares da Extropian Magazine, o

embrião do The Extropian Institute fundado em 1991. O recém fundado Instituto Extropiano

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conseguiu agregar a si nomes de prestígio como os de Hans Moravec, Marvin Minsky e Eric

Drexler.

O Instituto Extropiano acabou cedendo lugar a um agrupamento trans-humanista mais

representativo e consistente, a World Transhumanistic Association. Esta associação foi

fundada em 1998 por Nick Bostrom e David Pearce e, em 2008, congregava cerca de 15

entidades, possuindo quase quatro mil sócios de uns cem países, passando a se constituir na

plataforma organizacional para grupos interessados em promover o trans-humanismo. A

World Transhumanistic Association incluiu em seus quadros pesquisadores de várias

empresas e sociedades científicas como a Arcor Life, o Foresight Institute, o Singularity, The

Society of Neuronal Prostethic, e etc.

A Humanity+4 (atualmente a principal entidade representativa do movimento trans-

humanista, cujo nome substituiu o da World Transhumanist Association) apresenta como sua

missão a defesa do uso da tecnologia para expandir as capacidades humanas, expondo, em

outras palavras, o desejo de que as pessoas sejam aperfeiçoadas. Isto melhor explicado na

declaração de missão da entidade, significa, nas palavras de Natasha Vita-More (diretora

executiva da Humanity+), que tecnologias que intervêm na fisiologia humana para curar

doenças e reparar lesões se aceleraram a um ponto no qual elas também podem aumentar o

desempenho humano fora dos domínios do que é considerado “normal” para humanos. Essas

tecnologias são chamadas de emergentes e especulativas e incluem nanotecnologia,

nanomedicina, biotecnologia, engenharia genética, clonagem de células-tronco e transgênese,

para mencionar alguns exemplos. Outras tecnologias que podem ampliar e expandir as

capacidades humanas fora da fisiologia incluem a inteligência artificial, inteligência geral

artificial, robótica e integração cérebro-computador, que formam o domínio da biônica, e

podem ser usadas para desenvolver próteses corporais completas. No tocante a expansão das

capacidades humanas, Vita-More afirma que esta noção se refere aos esforços de conduzir o

humano para além do que é considerado normal. Em outros termos, ela compreende que o

aprimoramento humano, tanto terapêutico quanto seletivo, desafia o status normal e visa

expandir as capacidades humanas que aumentam as funções fisiológicas humanas e estendem

a vida útil máxima. Dispositivos externos, como smartphones, relógios inteligentes, monitores

portáteis, óculos do Google, etc., estão expandindo as capacidades humanas. No campo da

tecnologia médica, o implante coclear e os olhos biônicos romperam o teto de vidro no

4 Informações sobre esta entidade e sua missão podem ser encontradas em seu site na internet,

https://humanityplus.org.

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determinismo biológico. A medicina regenerativa, terapias com células-tronco, próteses

inteligentes, engenharia genética, nanomedicina, criônica, nootrópica, neurofarmacologia, já

fizeram isso.

A Humanity+ em sua FAQ Transhumanist5 apresenta a distinção entre trans-

humanismo e pós-humanismo de modo que “trans-humano” se refere a uma transição

intermediária entre o humano e um possível futuro pós-humano, significa “humano

transicional”, uma transição do humano para o pós-humano. Por sua vez, “pós-humano” são

os futuros seres cujas capacidades básicas excedem tão radicalmente as dos humanos atuais,

que não são mais inequivocamente humanos pelos padrões atuais.

De imediato fica evidente a expectativa do fim de uma era e o início de uma nova cuja

realização se dará através dos esforços dos próprios seres humanos no sentido de transcender

da condição humana atual para uma condição pós-humana. Esforçar-se para que esta

expectativa se realize faz do indivíduo um trans-humanista, alguém que crer na promessa de

que as tecnologias permitirão superar as limitações humanas fundamentais. Assim, acredita-se

que o uso dos meios tecnológicos permitirão ir além do que é concebido como “humano”.

A meta ou o telos é atingir a condição pós-humano. Mesmo não havendo clareza no

tocante ao que em termos reais isto significa, o imaginário trans-humanista sobre este

acontecimento constantemente propaga a superação da atual condição biológica. Esta

superação é imaginada indo desde a fusão entre o organismo e a máquina; passando pelo

redesenho do organismo humano através do uso da nanotecnologia avançada ou seu

aprimoramento radical por meio de alguma combinação de tecnologias como engenharia

genética, psicofarmacologia, terapias antienvelhecimento, interfaces neurais, ferramentas

avançadas de gerenciamento de informações, drogas para melhorar a memória, e técnicas

cognitivas; até, em sentido radical, abandonar completamente os corpos e viver como padrões

de informação em vastas redes de computadores super-rápidas, onde as mentes podem ser não

apenas mais poderosas que as dos seres humanos, mas também podem empregar diferentes

arquiteturas cognitivas ou incluir novas modalidades sensoriais que possibilitem maior

5 A FAQ Transhumanist pode ser encontrada na página da Humanity+,

https://humanityplus.org/philosophy/transhumanist-faq/, segundo a entidade, foi concebida como uma tentativa

de desenvolver uma articulação consensual de base ampla sobre os fundamentos do transumanismo

responsável. O objetivo era um texto que pudesse servir tanto como um guia para aqueles novos no campo e

como um trabalho de referência para os participantes mais experientes.

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participação em suas configurações de realidade virtual, as mentes pós-humanas podem ser

capazes de compartilhar memórias e experiências diretamente, aumentando muito a

eficiência, a qualidade e os modos pelos quais os pós-humanos poderiam se comunicar uns

com os outros.

Diante do exposto, o que está sendo defendido ao longo desta pesquisa é que o

movimento trans-humanista preserva em seu modo de pensar e agir no tocante a realização de

um futuro pós-humano uma relação analógica com uma escatologia gnóstica.

Ao afirmar a existência desta relação analógica, esta pesquisa não se obriga a ter que

demonstrar qualquer relação causal entre gnosticismo e trans-humanismo. Ao invés disto

intenta demonstrar a semelhança entre gnose e trans-humanismo, procedimento inerente à

analogia. Pois, segundo Nicola Abbagnano (2007, p.55), o termo analogia possui dois

sentidos fundamentais: o primeiro, “o sentido próprio e restrito, extraído do uso matemático

(equivalente à proporção) de igualdade de relações”; o segundo, “o sentido de extensão

provável do conhecimento mediante o uso de semelhanças genéricas que se podem aduzir

entre situações diversas”. Deste modo, dois elementos podem não ser idênticos nem

diferentes, mas análogos, ou seja, de algum modo se assemelham e se correspondem, sem ter

o mesmo significado. Abbagnano (2007, p.56) oferece um exemplo extraído da teologia de

Tomás de Aquino, que ao discorrer sobre os significados do ser de Deus e do ser das criaturas,

demonstra a analogia existente entre estes significados:

S. Tomás distingue, com mais precisão, o ser das criaturas, separável da sua

essência e, portanto, criado, do ser de Deus, idêntico à essência e, portanto,

necessário. Esses dois significados do ser não são unívocos, isto é, idênticos,

nem equívocos, isto é, simplesmente diferentes; são análogos, ou seja,

semelhantes, mas de proporções diversas. Só Deus tem o ser por essência; as

criaturas o têm por particiação; elas, enquanto são, são semelhantes a Deus,

que é o primeiro princípio universal do ser, mas Deus não é semelhante a

elas: esta relação é a analogia.

O raciocínio está exemplificado através de um argumento de teor teológico, todavia

ajuda a compreender a lógica inerente ao raciocínio por analogia. Esta mesma forma de

raciocinar pode ser aplicada a relação entre trans-humanismo e gnosticismos. Desde modo,

fica claro que os significados de trans-humanismo e gnose não são “unívocos”, idênticos;

porém nem tão pouco são “equívocos” ou diferentes; contudo é possível afirmar a semelhança

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entre eles, declarando que são “análogos”. Assim, a analogia desempenha a função de uma

prova teorética, em sentido kantiano6.

Realizados estes esclarecimentos, é o momento de efetuar uma apresentação dos

elementos que constituem o pensamento gnóstico. Inicialmente, neste tópico, será realizada

uma exposição da tipologia do pensamento gnóstico, principalmente a sua cosmologia e os

consequentes desdobramentos desta em sua escatologia, uma vez que já ficou claro que a

escatologia é a cosmologia projetada no futuro. Depois, ao longo de tópicos seguintes neste

capítulo, quando o argumento exigir, serão apresentados exemplos complementares de

elementos que constituem o pensamento gnóstico.

Como o gnosticismo é um fenômeno com uma multiplicidade (o que evidencia

diferenças entre um sistema de pensamento gnóstico e outro) surge à necessidade de traçar um

esquema que represente em justa completude e sem ambiguidade os principais elementos na

maioria dos sistemas de pensamento gnóstico. Este esquema ou tipologia é um constructo

ideal que cobre o que é mais representativo e identificador da mente gnóstica. Neste sentido,

Hans Jonas realizou esta tarefa de forma primorosa e, por este motivo, será utilizada aqui a

sua tipologia do pensamento gnóstico.

Um ponto de partida natural é o próprio termo “gnosis”. Seu significado

literal, “conhecimento”, é em nosso contexto especificado como

conhecimento secreto, revelado, e salvífico. Isso significa que é um

conhecimento de mistérios, que ele não se dá de maneira natural, e que sua

posse altera decisivamente a condição do conhecedor. Além disso, ele é,

entretanto, especificado por um conteúdo teórico particular, o mundo-objeto

desse conhecimento, e esse mundo-objeto inclui, significativamente, o papel

do próprio conhecimento dentro desse esquema: o “quê” do conhecimento

contém a explicação de sua própria origem, comunicação, e efeito prometido

(JONAS, 2017, p.408).

A palavra “gnosticismo” tem servido como um título coletivo para uma multiplicidade

de doutrinas religiosas que surgiram dentro e no em torno do cristianismo durante os

primeiros séculos do aparecimento das primeiras comunidades cristãs. O termo, conforme já

citado, é derivado da palavra grega que significa conhecimento, porém como um meio para se

obter a salvação. Todavia, como explicitado por Jonas (2003), somente os membros de um

6 Isto no tocante ao apresentado por Kant na Crítica da faculdade do juízo (§90): “Ora todos os

argumentos teóricos são suficientes, quer: 1) para demonstrações através de inferências da razão estritamente

lógicas, ou, onde isso não acontece, 2) para inferências segundo a analogia, ou se tal ainda não for o caso, ainda

3) para a opinião verossímil, ou finalmente, no mínimo 4) para a admissão de um simples princípio de

explicação, como hipótese”.

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conjunto de grupos pouco numerosos se denominavam “gnósticos” ou “os conhecedores”. De

imediato, deve-se ficar claro que o “conhecimento” alusivo aos gnóstico possui um

significado marcadamente religioso ou sobrenatural, referindo-se a objetos que, indo além dos

objetos da razão, são objetos de fé.

Gnosis significava fundamentalmente conhecimento de Deus, e do que

temos dito sobre a transcendência radical da divindade se deduz que o

“conhecimento de Deus” é o conhecimento de algo por natureza

incognoscível e, portanto, se trata de uma condição que não é natural. Seus

objetos incluem tudo o que pertence ao reino divino do ser, a ordem e a

história dos mundos superiores, e o que se deriva disto: a salvação do

homem. Com objetos desta classe, o conhecimento como ato mental é muito

diferente da cognição racional da filosofia (JONAS, 2003, p.68).

É em textos patrísticos como o de Irineu que “gnosis” se torna um termo empregado

para se referir a todos os grupos religiosos que compartilhavam com este termo a sua ênfase e

certas características. “Neste sentido, podemos falar de escolas, seitas e cultos gnósticos; de

escritos e ensinamentos gnósticos; de mitos e de especulações gnósticos, e inclusive de uma

religião gnóstica” (JONAS, 2003, p.66). De modo geral, estes grupos religiosos, como, por

exemplo, a gnose valentiniana, não se reconheciam distintos dos cristãos e estavam totalmente

envolvidos na vida da igreja e se referindo a si mesmos como cristãos devotos. Esta distinção

somente começa a ganhar corpo:

Com a preocupação aumentada por uma diferenciação clara entre cristãos

ortodoxos e heréticos do século IV em diante, contudo, os cristãos

valentinianos acabaram sendo sujeitos a uma série de editos e ataques, e

posteriormente no século IV uma multidão enfurecida de agitadores cristãos

incendiou uma capela valentiniana nas margens do rio Eufrates. Não

obstante, o cristianismo místico de Valentino e dos seus seguidores causou

um impacto sobre a igreja e sobre o mundo durante esses primeiros séculos e

depois, e os valentinianos produziram uma das mais belas literaturas místicas

cristãs de todas as épocas da história da igreja (MEYER, 2007, p.116).

“Esse amplo alicerce metafísico e teológico-cosmológico do poder salvífico do

‘conhecimento’, assinalado pela aparição do termo em ambos os lados do sistema, seja do

lado do sujeito ou do lado do objeto”, como assinala Hans Jonas (2017, p.408-409), “é a

primeira característica distintiva da especulação gnóstica”.

Jonas (2017, p.409) enumera alguns temas importantes que se relacionam com o

gnosticismo. O primeiro, uma “gênese transcendental” que narra à história espiritual da

criação em termos de uma história de mundos superiores e, em última instância da própria

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divindade. O segundo, o desfecho dessa gênese transcendental, algo que atua como uma

estrutura de poder que determina a condição real do homem. O terceiro tema, preparado pelos

dois primeiros, “é o homem – sua natureza, e seu lugar em ambos, naquela história passada e

neste sistema presente, sua origem no ‘além’, em conexão com o drama divino pré-cósmico,

sua condição composta e afundada aqui; sua verdadeira destinação”. E por fim, o quarto, uma

doutrina da salvação individual e universal, “as últimas coisas respondendo às primeiras, a

reversão da queda, e o retorno de todas as coisas a Deus”. Em, outros termos, esses temas são

classificáveis como um sistema religioso com uma teologia, cosmologia, antropologia e

escatologia.

A característica fundamental da teologia gnóstica é o dualismo radical que há entre o

mundo e Deus e por consequência entre o homem e o mundo. A divindade é absolutamente

transmundana, e sua natureza é distinta da natureza do universo, pois este nem foi criado e

nem é governado por ela, uma vez que o universo é a antítese da natureza divina. O mundo,

no pensamento gnóstico, é exposto como obra de poderes inferiores, os arcontes

(governantes).

O mesmo Deus transcendente se oculta de todas as criaturas e não pode ser

conhecido por meio de conceitos naturais. Seu conhecimento requer uma

revelação e uma iluminação sobrenaturais, por isto nem mesmo pode ser

expresso, salvo se for através de termos negativos (JONAS, 2003, p.76).

A transcendência da divindade é evidente no pensamento gnóstico, todavia, a

combinação paradoxal de transcendência com falibilidade parcial, segundo Jonas (2017,

p.415), uma das características da teologia gnóstica que explica sua rapidez ou necessidade de

fazer uso de formas de mito politeísta e as colocar a serviço de uma concepção

preponderantemente monoteísta. Jonas (2017, p.414-415) exemplifica esta característica no

trecho seguinte:

Não obstante, o Absoluto não está sozinho, mas está cercado por uma aura

de expressões eternas e gradativas de sua infinitude, de aspectos parciais de

sua perfeição, hipostasiadas em seres quase pessoais com nomes altamente

abstratos e formando, no todo, a hierarquia do reino divino (o Pleroma). O

progresso, ou emanação, dessa multiplicidade interna a partir do fundamento

primevo, uma espécie de autodiferenciação do Absoluto, é descrito, às vezes,

em termos de uma dialética espiritual sutil, e mais frequentemente em

termos bastante naturalista, por exemplo, sexuais. Entre as entidades

fortemente mitológicas que disso decorrem, algumas, mais concretas, se

destacam com papéis definidos na evolução posterior do drama

transcendental: o “Homem” enquanto um princípio eterno, pré-cósmico (às

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vezes identificado até com o próprio Ser Primeiro); “Sofia”, geralmente a

“mais jovem” dos éons; e “Cristo” ou alguma ação similar restauradora e

salvífica. Uma especulação desse tipo sobre o Pleroma é a marca de sistemas

avançados, mas algum grau de multiplicidade nos estratos superiores do ser

é um requisito para toda metafísica gnóstica, na medida em que fornece a

condição para a passividade divina e fracasso, do qual o movimento rumo à

criação e à alienação depende.

Assim, consequentemente, a cosmologia gnóstica enfatiza o mundo como inferior e

resultado da ignorância e do delírio demiúrgico, como resultado, esta ignorância foi

incorporada ao mundo. Esta carência de conhecimento infligida pelo mundo é ativamente

preservada por seus poderes, sendo esta a característica da existência do homem no mundo,

deste modo, a restauração do conhecimento é o veículo da salvação. “Portanto, a história da

criação – uma história do eu divino [divine self] – é emanacionista; e, como o movimento é

inevitavelmente descensional, é uma história de evolução às avessas” (JONAS, 2017, p.410).

O mito gnóstico típico, como nós vimos, começa com uma doutrina da

transcendência divina em sua pureza original; depois, ele delineia a gênese

do mundo a partir da ruptura primordial desse estado abençoado, uma perda

da integridade divina, que leva à emergência de poderes inferiores que se

tornam os criadores e senhores deste mundo; depois, como um episódio

crucial nesse drama, o mito reconta a criação e o destino inicial do homem,

no qual o conflito posterior vem a se concentrar; o tema final, de fato o tema

implícito do início ao fim, é a salvação do homem, que é mais do que a

salvação do homem, na medida em que envolve a superação e eventual

dissolução do sistema cósmico e é, pois, instrumento de reintegração para a

própria divindade debilitada, ou, ainda, para autossalvação de Deus (JONAS,

2017, p.413).

O estado primordial pré-cósmico é representado como um estado de unidade e

transcendência absoluta. Então, a primeira parte deste drama narrado pelos gnósticos se inicia

com a desintegração desta unidade ou plenitude (pleroma). Jonas identifica neste início o

movimento de decadência que rompe com a autocontenção deste estado pré-cósmico e da

própria divindade, este evento é crido como ocasionado por forças das trevas desde fora (o

que, por implicação, pode-se deduzir a existência de um dualismo preexistente) ou por uma

crise interna e transgressão no próprio reino divino que fornece a causa para um dualismo

evolutivo. Neste caso, uma evolução às avessas, visto que para o pensamento gnóstico o

surgimento do cosmo manifesta a decadência, sendo concebido em termos depreciativos. A

diversidade e a multiplicidade do sistema cósmico representam a separação entre Deus e o

homem e a desintegração da unidade divina. Assim, adquire valor positivo o que é “estranho”

ou “estrangeiro” a este mundo, pois estranho é o que nasce em outro lugar e não pertence a

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este mundo. E para os que estão dominados pela ignorância deste mundo isto não é

compreensível.

Deste modo, a cosmologia reflete a teologia gnóstica. Então, como o que está

relacionado ao cosmo representa divisão, decadência e afastamento do que é divino, toda a

iniciativa para despertar da ignorância os que estão nas trevas deste mundo, é compreendida

como uma natureza estranha que vem habitar uma terra estrangeira. É comum, por exemplo, o

conceito de “Deus estranho” de Marcião, ou, simplesmente, “o Estranho”, “o Outro”, “o

Desconhecido”, “o Sem Nome”, “o Oculto”; “o Pai Desconhecido” que aparece em muitos

escritos gnósticos cristãos. O homólogo filosófico disto está representado pelo conceito de

“transcendência absoluta” do pensamento neoplatônico.

A transcendência da deidade suprema é enfatizada ao máximo em toda a

teologia gnóstica. Topologicamente, a deidade é transmundana, e habita em

seu próprio reino, inteiramente fora do universo físico, a uma distância

imensurável da abóbada terrestre do homem; ontologicamente, ela é

acósmica, ou mesmo anticósmica: em relação a “este mundo” e o que quer

que pertença a ele, ela é essencialmente “outro” [other] ou “alheio” [alien]

(Marcião), a “alheia Vida” [alien life] (Mandeus), também chamado de

“profundeza” ou “abismo” (Valentinianos), mesmo de “não-ser” (Basílides);

epistemologicamente, por causa de sua transcendência e da diferença

[otherness] de seu ser, e já que a natureza não a revela, nem aponta para ela,

ela é naturalmente desconhecida (naturaliter ignotus), inefável, desafia a

predicação, está além da compreensão, e é estritamente incognoscível.

Alguns atributos positivos e metáforas se aplicam a ele: Luz, Vida, Espírito,

Pai, o Bem – mas não Criador, Senhor, Juiz (JONAS, 2017, p.414).

Desta forma, a cosmologia gnóstica se apresenta como algo a ser depreciado,

manifestação de uma imperfeita, cega e má ordem. O universo é o domínio de forças

inferiores (os arcontes) e manifesta (não somente em termos espaciais, mas também através

de uma ativa força maléfica) a separação entre o homem e Deus. Conforme, já mencionado,

este universo não é produto da criação divina, mas obra de forças inferiores, mencionadas na

literatura gnóstica como “arcontes” e, em alguns casos, a criação do mundo é obra reservada

ao líder dos “arcontes”, que recebe o nome de “demiurgo” (o artífice do mundo, mencionado

no Timeu de Platão). Jonas (2017, p.416) declara que:

Esta figura de um criador imperfeito, cego ou mau é um símbolo gnóstico de

primeira ordem. Em sua concepção geral, ela reflete o desprezo gnóstico

pelo mundo; em sua descrição concreta, ela geralmente é uma caricatura

claramente reconhecível do Deus do Antigo Testamento [...].

A versão valentiniana, a mais sutil de todas, apresenta o Demiurgo como

tentando, em vão, imitar a ordem perfeita do Pleroma com sua ordem física,

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e a eternidade do Pleroma com o substituto falsificado do tempo – portanto,

adicionado à imitação burlesca do Criador bíblico aquela do Demiurgo

platônico.

Em meio a este universo decadente, obra de um criador imperfeito, uma cópia

imperfeita de arquétipos ideais, está o homem. Embora a doutrina platônica de arquétipos

ideais sirva de inspiração aos gnósticos, esta adquire um sentido diferente para estes. A

doutrina platônica das formas atribuía à cópia uma medida de validade, pois junto com sua

imperfeição necessária, sua semelhança ao original se constituía em quota de perfeição,

justificando a sua existência. No gnosticismo, todavia, segundo Jonas , a ideia principal se

converte naquela da imitação ilícita (falsificação).

Portanto, quando os arcontes dizem: “Venham, façamos o homem à imagem

do que vimos”, o relato bíblico e a sabedoria platônica são pervertidos ao

mesmo tempo, e o resultante caráter de imago Dei do homem criado, longe

de ser uma justa honra metafísica, assume um sentido dúbio, se não sinistro.

O motivo para decisão dos arcontes é a simples inveja e ambição, ou a

decisão mais deliberada de aprisionar a substância divina no mundo inferior

deles pela isca de um receptáculo aparentemente agradável que se tornará

seu elo mais seguro (JONAS, 2017, p.417).

Assim, tanto o ser humano quanto o próprio cosmo em sua atual condição representam

um estado caído, um estado inferior, refletem a imagem do seu criador, são cópias ou

falsificações de arquétipos perfeitos, trevas ao invés de luz, multiplicidade ao invés de

unidade, separação ao invés de aproximação, matéria ao invés de espírito, cegueira e

ignorância ao invés da visão e do conhecimento, parcialidade ao invés de completude. Isto

tudo faz da condição humana débil e carente de redenção.

Deste modo, em termos escatológicos, a restauração final se relaciona a este drama

divino total, um processo de restauração da própria totalidade de Deus. Uma vez que a

substância divina, em tempos pré-cósmicos, foi dissolvida e fragmentada. Este acontecimento

fez com que a divindade se encontrasse imersa no destino do mundo. É com o propósito de

restaurar ou reunificar todas as coisas que um mensageiro ou salvador intervém na história

cósmica. Como os eventos que deram origem a atual situação humana são pré-cósmicos, a

missão deste salvador transcendente começa antes mesmo da criação do mundo e segue

paralela a sua história. Este salvador vem ao mundo para trazer o conhecimento do caminho

para que o espírito, a centelha divina no homem, seja liberta deste mundo.

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Visto que este conhecimento se encontra oculto ao homem pelo fato deste se encontrar

imerso em ignorância, o que se constitui a essência da existência mundana. E como Deus é

transcendente e desconhecido no mundo, não pode ser descoberto a partir deste, o que torna

necessária uma revelação. Esta revelação altera a situação humana em seu aspecto mais

decisivo, o da ignorância, e, desta maneira, em si mesma forma parte da salvação. Conforme

já mencionado, esta redenção corre paralela à história humana. O conhecimento é, além de

instrumento, a meta da salvação, pois neste conhecimento esta implícita a obtenção do

conhecido pelo espírito no ser humano, fazendo com que o homem seja transformado de

matéria e alma em espírito através da união com a Realidade Suprema. Deste modo, a

escatologia gnóstica proclama o triunfo final deste conhecimento que avança ao longo da

história e que se consumará por meio da reunificação de todas as coisas à divindade.

4.3 Gnose e pensamento ocidental

Em relação aos primórdios da formação do pensamento no Ocidente, Hans Jonas, em

sua tese doutoral, Gnosis und spätantiker geist (A gnosis e o espírito da antiguidade tardia)

insiste no ponto de que um orientalismo sob influência do pensamento helenista ocidental,

converteu-se numa cultura pronunciadamente religiosa. O Oriente sob domínio grego revela a

sua reação e renasce vitorioso (isto em termos intelectuais e não políticos) numa espécie de

contra-ataque espiritual.

Jonas (2003) sustenta a sua afirmação após considerar que o feito histórico perseguido

e realizado por Alexandre Magno (356–336 a.C.) foi a união entre Oriente e Ocidente.

Compreendendo Ocidente como o mundo grego que girava em torno do Egeu e Oriente, a

área das antigas civilizações orientais que se estendia do Egito as fronteiras da Índia.

Esta união iniciada por Alexandre foi precedida por um período preparatório para

ambas as partes. Tanto o Oriente quanto o Ocidente haviam alcançado o máximo nível de

unificação em seus próprios reinos, especialmente em termos políticos. Oriente havia sido

unificado sob o governo persa e o mundo grego sob a hegemonia macedônica. A cultura

grega, às vésperas das conquistas de Alexandre, estava num momento no qual os ideais

morais ou políticos e até mesmo a ideia de conhecimento se associavam a condições sociais

muito concretas que possibilitaram algo que outrora não fora uma realidade prática. Isto é,

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uma aplicação destes ideais aos homens em geral. Uma vez que o próprio conceito de homem

em geral não existia enquanto uma realidade prática. O heleno, do modo como havia sido

concebido, era uma noção aplicada somente para os gregos nascidos livres ou para os

cidadãos que gozavam de plenos direitos. Desta forma, escravos e bárbaros não eram

considerados helenos. A reflexão filosófica e o desenvolvimento da civilização urbana que

havia sido produzida no século precedente a Alexandre conduziram à aparição e à formulação

explícita de uma noção mais ampla de homem.

Em uma palavra, na época de Alexandre a ideia de cultura helênica havia

alcançado um ponto no qual era possível dizer que uma pessoa era helena

não por nascimento e sim por educação, de forma que um bárbaro podia se

converter em um verdadeiro heleno. A entronização da razão como o

elemento constitutivo mais elevado do homem havia levado ao

descobrimento do homem como tal, e ao mesmo tempo à concepção do

helênico como uma cultura geral (JONAS, 2003, p.40).

No tocante as fases históricas da cultura grega, Jonas expõe: 1) anterior a Alexandre, a

fase clássica como cultura nacional; 2) posterior a Alexandre, o helenismo como cultura

cosmopolita secular; 3) helenismo tardio como cultura religiosa pagã; e 4) bizantinismo como

cultura grega cristã. A transição da primeira a segunda fase é explicada fundamentalmente

como um desenvolvimento autônomo grego. Na segunda fase, o espírito grego estava

representado pelas grandes escolas rivais da filosofia, a Academia, os epicureus, e sobretudo

os estoicos, enquanto que, simultaneamente, a antítese greco-oriental continuava seu avanço.

Desde modo, Jonas (2003, p.45) explica:

A transição desta para a terceira fase, a virada para religião da civilização

antiga em seu conjunto e o espírito grego que ela comportava, foi obra de

forças profundamente anti-gregas que, originárias do Oriente, entraram na

história como novos fatores. Entre a liderança da cultura secular helenística e

a posição defensiva final do último helenismo tardio que se havia voltado

para religião, estendem-se três séculos de movimentos espirituais

revolucionários que exerceram sua influência nesta transformação, e entre os

quais o movimento gnóstico ocupa um lugar proeminente.

Dos últimos anos da Antiguidade até o universalismo nunca desafiado dos primeiros

séculos helenísticos se sucede uma época de nova diferenciação baseada principalmente em

assuntos espirituais e não somente de forma secundária em assuntos de caráter nacional. Isto

conduziria a fragmentação da antiga unidade em grupos exclusivos. Segundo Jonas (2003,

p.44):

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Nestas novas circunstâncias, o termo “heleno”, utilizado como contrassenha

num mundo totalmente helenizado, faz referência a uma causa assediada por

seus oponentes cristãos e gnósticos, os quais sem dúvida não deixam de

fazer parte do mundo grego enquanto linguagem e literatura. Neste terreno

comum, o helenismo se converteu quase num sinônimo de conservadorismo

e se cristalizou numa definível doutrina na qual toda a tradição da

Antiguidade pagã, tanto religiosa quanto filosófica, se viu sistematizada pela

última vez. Seus seguidores e oponentes estavam repartidos de forma que o

campo de batalha se estendia por todo o mundo civilizado. Não obstante, a

maré ascendente da religião havia absorvido o mesmo pensamento grego

transformando seu próprio caráter: tanto por autodefesa do cristianismo

como por necessidade interna, a cultura secular helenística se converteu

numa cultura de caráter pronunciadamente religioso e pagão. Isto significa

que na época do surgimento da religião mundial, o helenismo mesmo se

converteu em um credo religioso.

O modelo de colonização intentado por Alexandre se orientou desde o princípio como

parte de seu programa político por uma simbiose totalmente nova e que para alcançar uma

clara helenização do Oriente requeria certa reciprocidade. O mundo grego em combinação

Oriente e Ocidente havia se convertido numa civilização mundial graças as conquista de

Alexandre. Todavia, além das condições prévias existentes na cultura grega há outras no lado

oriental as quais explicam o papel do Oriente nesta combinação. Como bem destaca Jonas, o

grande Oriente, formado por antigas e orgulhosas civilizações, não era simplesmente uma

matéria inerte a qual a cultura grega viria a modelar, pois não se deve desconsiderar o fato de

que forças nativas orientais continuaram se expressando sob as novas condições do

helenismo.

Em termos das condições que antecedem a conquista de Alexandre, Oriente havia sido

unificado durante o Império Persa por meio da força, porém esta unidade era política. No que

se refere à cultura, o Oriente estava longe de ser uma unidade como no caso do mundo grego.

Apesar disto, segundo Jonas (2003, p.46), “a exceção do caso do Egito, podemos distinguir no

Oriente pré-helenístico certas tendências universalistas, os começos de um sincretismo

espiritual que pode ser tomado como contrapeso do giro cosmopolita grego”.

Antes mesmo dos persas, os assírios e babilônios haviam transformado antigos centros

de civilização oriental em lugares nos quais a apatia política convivia com um estancamento

cultural. Às margens do Eufrates e do Nilo, onde também haviam centros de poder político

antes da época persa, todo o movimento intelectual havia sido detido e somente restava a

inércia de um conjunto de tradições. Esta situação foi em grande parte gerada pela prática da

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Assíria e da Babilônia de trasladar povos inteiros conquistados de um lugar para outro,

principalmente a sua classe social e culturalmente dirigente. Isto destruía as forças de

crescimento cultural nestas regiões conquistadas, sendo também uma das razões que explicam

o torpor dos antigos centros mencionados. Todavia, Jonas chama a atenção para o fato de que

este estado de coisas possuía aspectos positivos para o papel que o Oriente iria desempenhar

na era helenística.

Não é somente que a passividade predominante ou a ausência de forças de

resistência consciente facilitassem a assimilação. Eles impediram a fusão em

uma síntese mais ampla e possibilitaram a entrada desses elementos em um

tronco comum. O desenraizamento e a transferência de populações inteiras

tiveram dois efeitos especialmente significativos. Por um lado, favoreceu a

separação dos conteúdos culturais da sua terra de origem, sua abstração e

adaptação a formas suscetíveis de ser transmitidas e, consequentemente, sua

conversão em elementos válidos para um intercâmbio de ideias cosmopolita,

como exigido pelo helenismo. Por outro lado, favoreceu um sincretismo pré-

helenístico, uma fusão de deuses e cultos de diferentes origens e às vezes

extraordinariamente distantes um do outro, o que novamente antecipa uma

característica importante do desenvolvimento helenístico posterior (JONAS,

2003, p.48-49).

Esta situação ocasionou a transformação das culturas locais em ideologias, um

exemplo emblemático deste fenômeno é o caso da afirmação universal do monoteísmo pelo

judaísmo, que uma vez liberto de suas limitações palestinas fortaleceu o culto a Iahweh,

processo que havia sido iniciado pelos profetas hebreus, mas que somente se consumou no

exílio babilônico. O exílio obrigou os judeus a desenvolver este aspecto de sua religião cuja

validade transcendia as condições particulares palestinas e a opor o credo assim obtido aos

princípios religiosos do mundo no qual estavam habitando.

Outro exemplo deste fenômeno é o da antiga religião babilônica que, depois do

domínio persa, deixou de ser um culto estatal, ligado a um centro político. A religião

babilônica, como parte das instituições da monarquia, havia desfrutado de um status oficial

definido. Segundo Jonas, esta relação da religião babilônica com o poder secular havia, ao

mesmo tempo, apoiado e limitado o seu papel naquela sociedade. Todavia, tanto o apoio

quanto à limitação desapareceram com a perda da sua condição de religião de estado. E o

modo como esta religião se libertou de sua função política produziu um desenraizamento. A

sua condição de rebaixamento e impotência política vivida durante o Império persa a forçou a

se apoiar, daquele momento em diante, em seu conteúdo espiritual. “Desconectada das

instituições do sistema de poder local e desfrutando do prestígio, voltou a depender de suas

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qualidades teológicas próprias”, de acordo Jonas (2003, p.50), “formuladas como tais, se

quisessem manter seu status contra outros sistemas religiosos igualmente vigentes e que

também competiam pelo espírito dos homens”.

De modo análogo, a antiga religião persa do mazdeísmo se separou também de sua

origem iraniana. Levada por todo o Império persa a algo parecido com uma situação

cosmopolita. E depois da queda do Império persa, não somente perdeu o apoio com que havia

contado, como também passou a estar sob o domínio estrangeiro e partir de então

compartilhar com outros credos, em países fora da Pérsia, as mesmas condições e vantagens

da diáspora. Jonas informa que, uma vez mais, da tradição nacional menos definida se extraiu

um inequívoco princípio metafísico que se desenvolveu até se converter num sistema de

significação intelectual geral: o sistema do dualismo teológico.

Podemos pensar que se produziram processos similares em todo o Oriente,

processos pelos quais as crenças originalmente nacionais e locais se

adaptaram para converter-se em elementos de um intercâmbio internacional

de ideias. Estes processos conduziam a dogmatização, no sentido de que se

extraía um princípio do corpo da tradição e se desenvolvia até se transformar

numa doutrina coerente. A influência grega, que possuía estímulos e

ferramentas lógicas, fez amadurecer este processo em todos os lugares; se

bem, como temos intentado demonstrar, no Oriente já haviam iniciado

alguns destes às vésperas do helenismo. Os três que temos mencionado

foram escolhidos com uma intenção particular: o monoteísmo judaico, a

astrologia babilônica e o dualismo iraniano foram, talvez, as três forças

espirituais mais importantes com as quais o Oriente contribuiu para

configuração do helenismo, e cuja influência marcou de forma crescente e

determinante seu curso posterior (JONAS, 2003, p.51).

Assim, uma vez que estes processos estão amadurecidos, pode-se observar a situação

melhor. O Oriente permaneceu em silêncio durante vários séculos, conservando o seu

pensamento num estado latente. E desta observação, Jonas deriva uma divisão da época

helenista em dois diferentes períodos: um período de evidente domínio grego e submersão

oriental, e um período de reação de um Oriente que renasce e por sua vez avança vitorioso,

não em termos políticos, num contra-ataque espiritual até o Ocidente e remodela a cultura

universal. Sob este prisma, “helenismo não serviu apenas para nomear a transformação da

pólis em cultura cosmopolita, e as transformações inerentes a este processo”, acrescenta Jonas

(2003, p.53), “mas também a mudança de caráter que ocorreu após a recepção das influências

orientais acrescentada a tudo isso”. A metamorfose do helenismo numa cultura religiosa

oriental se pôs em marcha.

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Até então, o pensamento do Oriente havia fugido do conceitual e havia se

expressado por imagens e símbolos, disfarçando mais que expondo seus

objetivos fundamentais em forma de mitos e ritos. Esta expressão havia

ficado confinada na rigidez de seus antiquíssimos símbolos, e foi libertada

de sua prisão pelo vivificante alento do pensamento grego, o qual deu novo

impulso e ferramentas adequadas a todas as tendências de abstração surgidas

anteriormente. No fundo, o pensamento oriental continuou sendo mitológico,

como evidenciou a sua nova aparição diante do mundo; enquanto isto, não

obstante, aprendeu a dar a suas ideias a forma de teorias e a utilizar não

somente imagens sensíveis, mas também conceitos racionais no momento de

as expor. Desta maneira, a formulação definitiva do dualismo, do fatalismo

astrológico e do monoteísmo transcendente chegou graças à conceitualidade

grega. Com a categoria de doutrinas metafísicas estes sistemas ganharam

aceitação geral e sua mensagem pôde se dirigir a totalidade. Desta forma, o

espírito grego libertou o pensamento oriental das ataduras de seu próprio

simbolismo e, graças a reflexão do logos, permitiu-lhe descobrir-se. Assim,

chegado o momento, o Oriente lançaria sua contraofensiva com as armas

adquiridas no arsenal grego (JONAS, 2003, p.56).

Jonas (2003, p.60) expõe que, em linhas gerais, os fenômenos nos quais o influxo

oriental se manifestou no mundo helenista, desde o início da era cristã em diante, são os

seguintes: a expansão do judaísmo helenístico, e em especial a filosofia judaico-alexandrina; a

expansão da astrologia babilônica e da magia, coincidente com o crescimento geral do

fatalismo no mundo ocidental; a expansão de distintos cultos de mistério no mundo greco-

romano, e sua evolução até a condição de religiões de mistérios espirituais; o surgimento do

cristianismo; o florescimento dos movimentos gnósticos e de seus grandes sistemas dentro e

fora do marco cristão; e a aparição das filosofias transcendentais do último período da

Antiguidade, que começam com o neopitagorismo e culminam com a escola neoplatônica.

Este período do helenismo, conclui Jonas, pode ser caracterizado como ocasião na

qual o sincretismo obteve sua maior eficácia, deixou de estar limitado a cultos específicos e

ao cuidado de seus sacerdotes para se introduzir em todo o pensamento da época e se mostrar

em todos os campos de expressão literária. Apesar de diferentes, todos estes fenômenos estão

relacionados entre si. Pois seus ensinamentos possuem importantes pontos em comum e até

mesmo em suas divergências compartilham um clima de pensamento comum. Isto ocorre de

forma que a literatura de cada um complementa a compreensão dos outros. Segundo Jonas

(2003, p.60), da predominância da substância espiritual resulta a recorrência de padrões de

expressão típicos, de imagens e fórmulas específicas, que estão presentes na literatura de todo

o grupo. Por exemplo, em Fílon de Alexandria se encontram elementos platônicos e estoicos

que saturam o centro medular do judaísmo; a linguagem das religiões de mistérios servirá de

incipiente terminologia do novo misticismo, além disto, estas religiões preservam uma estreita

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relação com um complexo de ideias astrais; por sua vez, o neoplatonismo se mostra aberto a

todo o conhecimento religioso popular pagão; o cristianismo, incluindo suas manifestações

ortodoxas, teve, desde o princípio, aspectos sincréticos, dentre os quais elementos

considerados heréticos como os sistemas gnósticos; e por fim, estes sistemas gnósticos se

constituem num compêndio de mitologias orientais, doutrinas astrológicas, teologia iraniana,

elementos da tradição judaica – bíblica, rabínica ou ocultista –, escatologia salvífica cristã,

termos e conceitos platônicos.

Não obstante, o sincretismo, a combinação de ideias e imagens, constitui um feito

formal que levanta a questão do conteúdo mental determinado pelo aspecto externo. E em

relação a isto, se há um elemento aglutinador em meio a um fenômeno formado por tantos

elementos, se existe, em que consiste? De que é feita a força que organiza a matéria

sincrética? Jonas formula estas questões e responde que apesar de seu exterior “sintético”, o

novo espírito não era um ecletismo desorientado, havia um princípio que o movia em

determinada direção. Sobre este princípio, Jonas (2003, p.61) declara:

Este princípio aparece em todos os lugares nos movimentos que vem do

Oriente, de forma mais sobressalente nesse grupo de movimentos espirituais

que se englobam sob o nome de “gnósticos”. Podemos, portanto, considerar

este último o representante mais radical e intransigente de um novo espírito

e, por meio da analogia, chamar consequentemente a esse princípio geral,

que em representações menos equivocadas se estende além da área da

literatura gnóstica propriamente dita, “princípio gnóstico”. Seja qual for a

utilidade da extensão do significado deste termo, é certo que o estudo deste

grupo particular é extraordinariamente interessante não somente em si

mesmo, mas também porque pode apontar, se não a chave de toda aquela

época, ao menos uma contribuição vital para sua compreensão.

Pessoalmente, Jonas estava inclinado a observar todas esta série de fenômenos nos

quais se manifesta o influxo oriental, por um lado, como um conjunto de refrações deste

princípio gnóstico, e por outro lado, como reações contra o mesmo princípio. Assim, podem-

se perceber no princípio gnóstico os seguintes elementos: uma visão claramente religiosa;

uma referência à salvação; um conceito transcendente de divindade; diversos dualismos (Deus

e mundo, espírito matéria, luz e trevas, etc).

Até aqui ficou evidente que o gnosticismo mantém fortes vínculos com a Antiguidade,

conforme demonstrado por Jonas, com o Helenismo, e também com as heterodoxias

doutrinárias que, sob o prisma da ortodoxia cristã, estiveram em oposição aos princípios da fé

oficialmente declarada pela Igreja.

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No tocante a história da Igreja Ocidental, o gnosticismo recebeu o estigma de heresia.

Esta é uma das razões de durante um tempo razoável somente se ter acesso a textos sobre os

gnósticos através do que foi escrito pelos autores eclesiásticos. Nos textos de história

eclesiástica, os gnósticos costumam ser agrupados entre as heresias que assolaram a Igreja

cristã da Antiguidade. As heresias deste período costumam ser classificadas como de cunho

teológico e filosófico, especulando racionalmente sobre os dogmas cristãos, especialmente os

que tratavam sobre a Trindade, a natureza divina e humana de Cristo e sobre a relação

existente entre ambas, além de questões relacionadas com a essência da divindade.

Observa-se na tipologia da gnose apresentada no tópico anterior que havia um estado

primordial ideal e deste a humanidade foi lançada nesta existência. De modo que o estado

presente é concebido como ruim, uma queda de uma condição superior para uma inferior, mas

havendo uma esperança no tocante a restauração, a possibilidade de retorno ao estado

primordial. O caminho a ser percorrido até a restauração do estado primordial somente pode

ser alcançado através do conhecimento. Este foi o ponto nevrálgico da polêmica entre os

cristãos gnósticos e os que declaravam a gnose como heresia. Hans-Josef Klauck (2011,

p.195) chama atenção para o principal ponto que levou os Padres da Igreja a serem unânimes

em declarar a gnose como heresia:

Até esse ponto, nada soa muito problemático. O caminho do ser humano

caído, na visão bíblico-cristã, também poderia, sem mais, ser resumido do

seguinte modo: paraíso, pecado original, redenção por Cristo, retorno ao céu

depois da morte, fim do mundo com a restauração da perfeição original. Mas

por que os Padres da Igreja são unânimes em nos apresentar a gnose como

heresia? Deve haver algo de especial nesse “conhecer”, que deu o nome a

todo o movimento. O conhecer tem categoria soteriológica, e num sentido

exclusivo. “Soteriológico” quer dizer: o saber e o conhecimento já salvam;

para a salvação basta esse saber, tudo o mais é acessório. Todavia, sem esse

saber não há salvação. “Exclusivo” significa: quem possui esse saber é salvo,

quem não possui está perdido. Isso, ao mesmo tempo, divide a humanidade

em dois grupos: gnósticos e não gnósticos. Portanto, o saber contém um

elemento pronunciadamente esotérico.

Todavia, o que parecia ser um assunto resolvido pela Igreja na Antiguidade reaparece

nas controvérsias religiosas dos séculos XII e XIII. Estes movimentos religiosos da Baixa

Idade Média se diferenciavam no que se refere aos movimentos da Antiguidade nas ênfases

doutrinárias. Enquanto os movimentos da Antiguidade se envolveram em questões

relacionadas à Trindade (a natureza divina e humana de Cristo e questões vinculadas a

substância divina), “o que caracteriza as heresias posteriores, isto é, as da Baixa Idade Média,

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é o seu cunho popular assentado sobre uma nova visão ética da instituição eclesiástica e do

cristianismo como religião vigente na sociedade ocidental” (FALBEL, 2012, p.13).

Todavia, no centro da crítica a instituição eclesiástica, estava a questão sobre a

presença do mal no mundo, se um Deus bom não pode desejar o mal, de igual forma não pode

criar as condições para que o mal se manifestasse; logo, ao lado de um princípio eternamente

bom, deveria existir um princípio eternamente mau. Segundo Maria Nazareth de Barros

(2007), estas preocupações permeavam o pensamento religioso na Europa por volta do 1000

d.C. E o pensamento dualista surgiu como uma resposta satisfatória a esse questionamento.

Por volta do ano 1000, o problema do Mal voltou a atormentar o homem. O

retorno das heresias tornou-se um fato europeu. O que hoje denominamos

catarismo apareceu na França, no século XI, possivelmente trazido da

Bulgária. O catarismo se instalou também na Catalunha, na Itália, na

Alemanha, na Inglaterra, mas foi no Sul da França que tomou forma de

religião, organizando-se como Igreja, como civilização original. Foi ainda no

Sul da França que ele contou com a conivência dos senhores feudais e

exerceu influência social e política sobre a região, modificando o

pensamento e os hábitos cotidianos dos sulistas (BARROS, 2007, p.9).

Para reprimir os movimentos religiosos deste período, uma sucessão de ações foram

realizadas. Segundo Falbel (2012), já no século XI, a Igreja começou a tomar medidas mais

enérgicas, em especial com relação aos cátaros que nessa época começavam a difundir

intensamente as suas doutrinas. Contudo, ainda hesitava em adotar providências extremas,

pois compreendia que isto destoava com a caridade apregoada pelo cristianismo. Falbel

(2012, p.15) aponta que:

O impulso para radicalização da atitude social contra os heréticos partiu de

baixo para cima, ou seja, do fanatismo popular que tomava corpo à medida

que se cristianizava a sociedade bárbaro-européia. Mesmo no ano 1045,

quando foram descobertos alguns heréticos em Châlons, as autoridades

eclesiásticas recorreram aos legisladores pois ainda não sabiam o que fazer

com eles. A ausência de uma legislação precisa fazia com os heréticos

fossem tratados ora com clemência, ora com excessivo rigor. Quando a

população de Colônia queimou certo número de cátaros em 1145, São

Bernardo de Clairvaux recriminou os atos da multidão, embora tivesse

aprovado o seu zelo religioso, argumentando que a fé devia ser defendida

pela persuasão e não pela violência.

Falbel (2012, p.16) acrescenta ainda que com o passar do tempo, a Igreja utilizou a

excomunhão como meio de induzir o poder secular a participar da perseguição e do combate à

heresia. “Nesse sentido, o Concílio de Verona de 1148 estabeleceu que os soberanos deveriam

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empenhar-se, ao lado da lei civil e canônica, para o seu extermínio, sob ameaça de

excomunhão”.

Em algumas regiões da Europa, os movimentos religiosos floresceram graças à

tolerância e a proteção recebida por parte da população e dos governantes destas regiões. Este

foi o caso do Sul da França em relação aos cátaros. Segundo Maria de Barros (2007, p.10):

O Sul da França, o Midi, sempre esteve aberto a novidades. Doutrinas de

caráter religioso, místico ou ético nasceram e se desenvolveram em seu

solo. A atração pelo novo pode ser explicada por sua situação geográfica e

por seu percurso histórico. O Midi foi um lugar de passagem de povos e

civilizações. O homem meridional conviveu com culturas diversificadas.

Aprendeu bem cedo a ser tolerante com os que discordavam de suas

verdades; a valorizar liberdade e independência; a respeitar novas ideias.

Desenvolveu o hábito de contestar, de romper com valores estabelecidos e

não se curvar à lei do mais forte. Com esta valoração da liberdade, acolheu

os cátaros, e, enquanto os senhores do Norte do país perseguiam hereges,

os expulsavam das cidades e os queimavam em praças públicas, os

senhores do Sul acolhiam-nos em seus domínios, deixavam que pregassem

a heresia, protegiam-nos. Era natural para os meridionais que cada um

escolhesse sua religião. Esta tolerância fazia com que respeitassem judeus

e hereges, concedendo-lhes as mesmas regalias dadas aos cristãos.

Desta forma, com o intuito de reduzir o acolhimento aos hereges, além da ameaça de

excomunhão, já mencionada, outras medidas contras os senhores seculares foram tomadas

pela Igreja. No tocante a isto, Falbel (2012, p.17) relata a seguinte situação:

O Quarto Concílio de Latrão, em 1215, decretou medidas contra os senhores

seculares caso protegessem heresias em seus territórios, ameaçando-os até

com a perda dos domínios. Já antes do Concílio e como consequência dele,

as autoridades laicas decretaram a pena de morte para evitar a disseminação

de heresias em seus territórios, a começar por Aragão em 1197, Lombardia

1224, França 1229, Roma 1230, Sicília 1231 e Alemanha 1232.

Assim, na proporção em que as heresias se difundiam e aumentavam a sua influência

sobre as camadas da população medieval crescia também a violência do braço secular. Falbel

(2012, p.16) descreve o progresso da repressão às heresias pelo braço secular:

Pedro de Aragão, em 1197, introduziu no Código Civil a condenação do

herético através da punição pelo fogo que, mais tarde, faria parte do arsenal

de armas para o seu combate. Frederico II, no estatuto 1220, incluiu a

perseguição aos heréticos, a seguir agregada ao direito público europeu. O

estatuto previa o confisco dos bens e a colocação dos acusados fora da lei, o

que equivalia à pena de morte. Em 1231, Frederico II inclui na Constituição

da Sicília a pena drástica da fogueira. Mas o Imperador Hohenstaufen não

foi o único a tomar tal atitude em relação aos heréticos daquele tempo, pois o

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doge de Veneza, em 1249, antes de ascender ao cargo, jurou queimar todos

os heréticos de sua região. A prática de mandar à fogueira os heréticos era

geral na época e não surgiu com a criação da lei positiva, baseada no

costume popular, e que acabou sendo incorporado pelos legisladores com o

decorrer do tempo.

Embora tais punições tenham sido justificadas pela Igreja, buscando-se apoio

exegético nas Escrituras Sagradas, podem ser identificados em todos esses elementos os

meios que prepararam o caminho para o surgimento futuro de uma instituição que tratasse

especificamente da identificação e da perseguição de hereges.

Assim, a Inquisição surgiu no cenário da história do século XIII para tornar-

se uma instituição de temor bem marcante. [...]

A Gregório IX devemos a organização do tribunal inquisitorial e, em 1229,

no Concílio de Toulouse, foi criado oficialmente o Tribunal do Santo Ofício

(FALBEL, 2012, p.17).

Os eventos que se desenvolveram nestes que foram chamados de “os séculos

heréticos” podem vir a ser considerados por alguns como acontecimentos sem grande

importância ou impacto sobre o pensamento no Ocidente. Todavia, as agitações religiosas

deste período foram de grande importância, pois se estenderam por toda a Europa, deixando a

sua influência na cultura e tendo desdobramentos em acontecimentos importantes para o

surgimento da Modernidade.

No tocante aos vínculos entre estes movimentos de cunho espiritualista, dentre eles o

dos cátaros ou albigenses, e a influência sobre acontecimentos modernos, Voegelin7 (2014,

p.160) afirmou: “O processo que começou com movimentos de reforma espiritual pode

terminar com movimentos contra o espírito. Esse tem sido, de fato, o curso dos movimentos

do tipo albigense; terminando com movimentos do tipo comunista e nacional-socialista”.

Voegelin (2014) chama a atenção para esta dinâmica da civilização ocidental ao

discorrer sobre as tensões entre instituições e movimentos. Ele reconhecia que o tema ainda

não havia recebido até aquele momento a dedicação que merecia, pois os interesses de

pesquisa se concentravam apenas no nível institucional desta dinâmica. No que se refere às

fases iniciais deste processo, Voegelin dá os créditos devidos à pesquisa realizada pelo

historiador Edward Gibbon, em Declínio e queda do Império Romano, principalmente ao

7 As ideias de Eric Voegelin a este respeito foram apresentadas no capítulo dois desta pesquisa. Principalmente

quando foram abordadas questões relacionadas com a tensão entre instituições e movimentos. Quem, porventura,

desejar ter acesso ao pensamento de Voegelin sobre o assunto, poderá encontrar esta discussão no capítulo três

do quarto volume da História das ideias políticas.

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apontar como os movimentos do final da Idade Média culminaram na Reforma do século

XVI.

Ele assinalou a linha de continuidade direta do movimento pauliciano do

século VII na Síria, passando da transplantação dos paulicianos para os

Balcãs, pela sua ramificação na seita bogomila e pelas migrações dos

paulicianos e bogomilos até à Itália, até o aparecimento dos cátaros no sul da

França no século XI. Cátaros, a linha continua pelos waldenses e

franciscanos até os movimentos sectários posteriores que se espalharam por

toda a Europa e chegaram a seu cume no movimento Lollard na Inglaterra e

no movimento hussita na Boêmia nos séculos XIV e XV. A Reforma do

século XVI é levada a efeito por um movimento amplo que se manifestou na

Guerra dos Camponeses assim como no movimento anabatista que se

espalhou da Holanda para a Suíça e da Alsácia para Morávia, com sua

continuação na vida sectária na Holanda, Inglaterra e América. No século

XVII, de novo, vemos o movimento puritano propriamente dito levado a

efeito por um movimento amplo com suas franjas nos Cavadores,

Buscadores e Oradores Exaltados. E no século XVIII, finalmente, podemos

observar a transição dos grupos deístas e unitários para clubes e movimentos

de iluminismo, utilitarismo e socialismo (VOEGELIN, 2014, p.164).

Tendo feito este relato de como este período foi relevante para as mudanças que

viriam a ocorrer no cenário europeu, conforme já mencionado, havia na essência destes

movimentos religiosos do fim da Idade Média um princípio dualista e este com evidente

inspiração gnóstica. Em muito destes movimentos, delineou-se um conceito de Igreja

destituído de toda materialidade, rejeição a estrutura eclesiástica, e favorável à noção de Igreja

espiritual. Assim como mais tarde se verá nas igrejas da Reforma, havia forte inspiração no

cristianismo primitivo e na reprodução de padrões bíblicos que imitasse a vida de Jesus e seus

apóstolos. Também eram perceptíveis os sinais das insatisfações das camadas populares em

relação ao clero, pois estes movimentos, com regularidade, apontavam os vícios do clero e

declaravam a necessidade da hierarquia eclesiástica ser humilde e adotar a pobreza, além de

rejeição ao uso de paramentos luxuosos e até mesmo à magnificência e ao luxo dos templos.

É bem representativa deste período a heresia dos cátaros, também conhecidos como

albigenses. Esta foi a heresia que conquistou o maior número de adeptos na baixa Idade

Média e que alcançou maior repercussão na época. Havia um evidente caráter dualista na

doutrina propagada pelos cátaros.

Dualismo, nesse sentido, significa a crença de que a bondade existe somente

no mundo espiritual do deus bom e que o mundo material é mau e foi criado

por um deus mau ou espírito chamado Satã. O Bem e o Mal possuem dois

criadores diferentes, e tal concepção está próxima das seitas gnósticas que

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também tinham as mesmas ideias e foram igualmente disseminadas no início

da Idade Média, nos Bálcãs e no Oriente Próximo, pelas seitas dos

paulicianos e bogomilos. Os cátaros relacionam-se com esses dois últimos,

que eram conhecidos no Ocidente como publicani (corrupção de paulicianos

e também um eco dos publicanos do Novo Testamento) ou bougres (isto é,

búlgaros, pois na Bulgária localizavam-se os bogomilos) e mais tarde como

cathari (cathari = puros) ou albigenses, da cidade de Albi, um dos centros de

influência herética no Sul da França (FALBEL, 2012, p.36-37).

Falbel, assim como Edward Gibbon citado por Voegelin, reconhece o vínculo entre os

cátaros e os paulicianos e bogomilos. Os bogomilos eram na verdade gnósticos maniqueus,

que apesar das perseguições sofridas, mantiveram-se estabelecidos em Constantinopla e nos

Balcãs sob este nome até exercerem a sua influência sobre estes movimentos religiosos dos

chamados “séculos heréticos”. Falbel (2012, p.41-42) resume a organização e a forma como

este dualismo ficava evidente no cotidiano das Igrejas cátaras:

Segundo o consenso geral, a matéria era má e o homem um alienado

habitando num mundo mau. O objetivo principal era que o homem deveria

restaurar este mundo para a comunhão com Deus. Acreditavam na redenção

dos espíritos, embora nem sempre na redenção universal. Acreditavam,

igualmente, na transmigração das almas do homem para o homem, e do

homem para a besta, pois os animais, segundo eles, também possuíam almas.

Tinham regras para jejuar e a carne era proibida. As relações sexuais eram

vedadas e tinham horror à procriação, pois implicava o aprisionamento de

seus espíritos ao mundo da carne. Acreditavam piamente no celibato e em

qualquer forma ascética de renúncia ao mundo, olhando favoravelmente o

suicídio.

Pelo extremo ascetismo, os cátaros eram, na verdade, uma igreja de eleitos.

Mas, sendo popular, distinguiam-se dois corpos de fiéis: os “Perfeitos” e os

“Crentes”. Os Perfeitos eram isolados das grandes massas dos Crentes por

uma elaborada cerimônia de iniciação, ou batismo espiritual, o

consolamentum.

Afora o consolamentum e a ordenação, os cátaros tinham dois outros

sacramentos: a penitência e a quebra do pão. Esta era uma espécie de

comunhão, pois não acreditavam na transubstanciação. Os Perfeitos

dedicavam-se à contemplação e esperava-se que mantivessem o mais

elevado nível moral, cabendo aos Crentes fornecer-lhes alimentos.

Os crentes não podiam aspirar ao alto nível dos Perfeitos. Por não

obedecerem inteiramente à proibição das relações sexuais, por exemplo, eles

provocavam aberrações nos relacionamentos, o que constituía motivo para

os católicos acusarem-nos de todos os tipos de vícios. Mas é possível que

estas acusações tenham sido exageradas.

As doutrinas cátaras da criação levaram a reescrever o relato bíblico e a

elaborar uma mitologia que o substituísse para negar a noção que a Bíblia

toda era sagrada. Viam o Velho Testamento com reserva, e o Novo

Testamento foi reinterpretado. A doutrina da reencarnação de Deus era

impossível aos cátaros, para os quais Jesus foi um anjo que veio para indicar

o caminho da salvação, mas não fornecê-lo em pessoa; logo, seus

sofrimentos e morte eram uma ilusão.

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Os medos deste período (as pestes, penúrias, revoltas, avanço turco, o Grande Cisma

da Cristandade e tudo o que ameaçasse e traumatizasse os participantes desta cultura cristã)

são canalizados para um princípio representativo do mal e para todos aqueles que fossem

vistos associados a este princípio.

Evidentemente, é Satã que conduz com fúria seu derradeiro grande combate

antes do fim do mundo. Nesse supremo ataque, ele utiliza todos os meios e

todas as camuflagens. É ele que faz os turcos avançarem; é ele que inspira os

cultos pagãos da América; é ele que habita o coração dos judeus; é ele que

perverte os heréticos; é ele que, graças às tentações femininas e a uma

sexualidade há muito tempo considerada culpada, procura desviar de seus

deveres os defensores da ordem; é ele que, por meio de feiticeiros e

sobretudo por intermédio de feiticeiras, perturba a vida cotidiana

enfeitiçando homens, animais e colheitas. Não há por que surpreender-se se

esses ataques se produzem ao mesmo tempo. Soou a hora da ofensiva

demoníaca generalizada, sendo evidente que o inimigo não está apenas nas

fronteiras, mas na praça, e que é preciso ser mais vigilante dentro do que

fora (DELUMEAU, 2009, p.586).

Deste modo, portanto, o princípio dualista que esteve presente exercendo a sua

influência sobre os movimentos religiosos e sobre a cultura europeia no final da Idade Média

revela a sua outra face nos defensores da ortodoxia. Estes compreendiam que o surgimento de

concepções divergentes da oficialmente estabelecida pela Igreja era obra de Satã. Satã é

tomado como o princípio representativo do mal e assim cumpre o papel de canalizar através

de si todos os temores deste período. “Assim, todo sagrado não oficial é considerado

demoníaco, e tudo o que é demoníaco é herético, não sendo o contrário menos verdadeiro:

toda heresia e todo herético são demoníacos” (DELUMEAU, 2009, p.592).

4.4 A superação da condição corpórea: uma “era do espírito”

A produção discursiva trans-humanista é abrangente e imprecisa, todavia, é possível

perceber em seu discurso duas perspectivas: (1) a da superação da condição humana; e (2) a

transformação biotecnológica ou biogenética desta condição humana. Estas perspectivas

foram apontadas por Hermínio Martins (2012) em seu livro Experimentum Humanum. O

título da obra reflete o objeto de atenção do autor, demonstrado através dos ensaios contidos

no livro, ou seja, o impacto das inovações tecnológicas sobre a condição humana. O

experimentum humanum, expressão utilizada pelo teólogo católico Karl Rahner, cujo o

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significado é o “experimento-sobre-o-homem, pelo próprio homem, sobre seu próprio ser ou

natureza”.

O trans ou pós-humanismo se constitui no esforço de através da contribuição das

diversas disciplinas do conhecimento científico superar a condição biológica humana por

meio da aplicação de tecnologias presentes e a surgir no futuro como resultado deste

conhecimento científico.

Tomando como referências ambas as perspectivas, isto implica em romper com

quaisquer limites impostos por noções como natureza, é não mais ter que esperar que algum

processo evolutivo ocorra por vias naturais, mas assumir o controle deste processo, sob a

crença de que a história pode ser projetada. Algo que, conforme foi discutido amplamente no

segundo capítulo, constitui-se numa laicização da escatologia. O que outrora esteve orientado

para um telos pós-histórico e realizável apenas transcendentalmente, agora foi transformado

na crença de que o controle da natureza operado pelo homem lhe concede o poder para

determinar tecnicamente os acontecimentos que garantirão o futuro da humanidade. Então,

não é preciso esperar que poderes misteriosos ou sobrenaturais, seja a providência divina ou o

acaso, conduzam a história. Os acontecimentos não precisam seguir cursos aleatoriamente,

mas devem ser previstos matematicamente e controlados. Pois a natureza deve ser dominada

pela engenhosidade da cultura humana. Não há motivos para aguardar passivamente pela

fortuna, mas sob, a força de sua própria virtú, os homens podem antecipar e resolver os

problemas que cruzarem o seu caminho e, desde modo, projetar o futuro que desejarem para

si.

A segunda perspectiva presente na produção discursiva trans-humanista, “a

transformação biotecnológica ou biogenética da condição humana”, é na verdade o meio para

se alcançar a meta final da condição pós-humana, o descarte da condição corpórea ou

biológica. Os trans-humanistas assumem o dualismo corpo-consciência, sendo o corpo o

túmulo da consciência, a parte perecível e limitadora. Algo que inicialmente pode ser

aprimorado (por engenharia genética, nanotecnologia, pela fusão simbiótica entre o orgânico e

a máquina) até que seja possível libertar completamente a consciência dos limites impostos

pela condição corpórea.

Trans-humanistas como Ray Kurzweil (2007) parecem acreditar que o que tornará

realizável a superação da condição humana é o crescimento da tecnologia computacional,

precisamente avanços no campo de inteligência artificial. Tais avanços possibilitarão

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solucionar problemas que até o momento não foram ou não podem ser solucionados, como

por exemplo, mudar a natureza da mortalidade conforme aguardo em um futuro pós-

biológico.

Enquanto este evento divisor de águas não se revela (algo que em termos

escatológicos se assemelha ao conceito de parousia, a manifestação, o momento aguardado

que mudará todas as coisas), busca-se o melhoramento da atual condição de vida corpórea

com o intuito de que esta seja prolongada ao máximo de tempo possível. Isto é compreensível

uma vez que a consciência está aprisionada nesta condição corpórea e a morte do corpo

implica a extinção da consciência.

Esta discussão toca, de certo modo, no complexo problema mente-corpo

(CHURCHLAND, 2004), como este problema está além dos objetivos desta pesquisa, será

apenas mencionado. Todavia, é importante saber que o debate acadêmico em torno deste

problema costuma ser dividido, de forma básica, do seguinte modo: de um lado, há as teorias

materialistas da mente, estas afirmam que o que costuma ser chamado de processos e estados

mentais são meramente estados sofisticados de um complexo sistema físico, o cérebro; de

outro lado, há as teorias dualistas da mente, que afirmam que os estados mentais não são

apenas estados de um sistema exclusivamente físico, mas se constituem uma espécie distinta

de fenômeno de natureza essencialmente não-física. Independente de como se posicione sobre

o problema ontológico da relação mente-corpo, em outros termos, mesmo que em sua

totalidade não se assuma uma posição materialista reducionista, identificando estados mentais

e estados físicos com o cérebro, a neurociência reconhece, em certo sentido, a ideia de que a

mente emerge do organismo como um todo, que o eu no corpo é um estado biológico. Como

pode ser observado na afirmação do neurocientista António Damásio (1996, p.256):

À primeira vista, a ideia de que a mente emerge do organismo como um todo

pode parecer contra-intuitiva. Ultimamente, o conceito de mente tem

passado do nenhures etéreo que ocupou no século XVII para sua morada

atual no ou em redor do cérebro – um certo rebaixamento, mas, mesmo

assim, um posto digno. Pode parecer exagero sugerir que a mente depende

das interações cérebro-corpo em termos de biologia evolutiva, ontogenia

(desenvolvimento individual) e funcionamento atual. Mas o leitor não deve

desanimar. O que estou sugerindo é que a mente surge da atividade nos

circuitos neurais, sem sombra de dúvida, mas muito desses circuitos são

configurados durante a evolução por requisitos funcionais do organismo.

Mesmo que não se tenha clara compreensão de como a consciência está vinculada ao

corpo, a matéria orgânica, é inegável esta realidade. Então, mesmo que o corpo seja visto

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pelos trans-humanistas como um fardo a ser carregado, a sua transformação biotecnológica ou

biogenética deve ser efetuada até que se possa substituí-lo por um abrigo melhor para

consciência ou por uma forma de existência superior.

O corpo é visto como um rascunho a ser aperfeiçoado ou fundido a máquina. O

destino do corpo, por enquanto, é se tornar híbrido, junção de compostos orgânicos e

mecânicos. Este evento será realizado pela robótica, com próteses mecatrônicas, avanços no

campo da nanotecnologia e da nanorobótica, fazendo emergir o que se convencionou chamar

de “ciborgue”. O corpo humano e sua constituição orgânica estão condenados à obsolência,

um objeto da era evolutiva e biológica, em razão disto, ultrapassado, pois a atual era é pós-

evolutiva. Esta era pós-evolutiva no atual estágio estaria amparada graças a este processo de

hibridização prometido pela tecnociência, pois este processo garantiria livrar o corpo humano

da finitude.

Kurzweil (2007) argumenta que a evolução segue um ritmo em aceleração exponencial

em relação ao tempo, de modo que grandes transformações operadas pelo mecanismo

evolutivo estão ocorrendo em intervalos de tempo cada vez mais curto. Neste processo, a

evolução criou algo extremamente importante, a genética com base no DNA, pois isto

orientaria e registraria o desenvolvimento evolucionário. O registro “escrito” de realização,

segundo Kurzweil, é uma exigência-chave para o processo evolucionário. Isto permitiu

transmitir material genético para as próximas gerações que originaria mudanças cada vez mais

complexas nas espécies. Então Kurzweil afirma que enquanto a evolução levou bilhões de

anos para projetar as primeiras células primitivas, acontecimentos relevantes começaram a

ocorrer em centenas de milhões de anos, uma distinta aceleração do ritmo. Com a extinção

dos dinossauros, os mamíferos herdaram a Terra. E com o surgimento dos primatas, as

mudanças passaram a ocorrer em dezenas de milhões de anos. Quando os humanoides

surgiram, este intervalo para o progresso evolutivo foi reduzido para milhões de anos. Os

humanoides (com cérebros maiores particularmente na área do córtex responsável pelo

pensamento racional, e distintos por caminharem em suas patas traseiras) tornaram-se os

responsáveis pela criação de tecnologias. Afirma Kurzweil (2007, p.33): “A história da

evolução desde aquela época agora se concentra numa variante da evolução patrocinada pelos

humanos: a tecnologia”.

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A tecnologia é a variante da evolução patrocinada pelos humanos que garantirá na

atualidade a aceleração das transformações da natureza, será uma continuação da evolução

por outros meios. Sobre isto, a conclusão de Kurzweil (2007, p.34) é a seguinte:

O “código genético” do processo evolucionário da tecnologia é o registro

mantido pela espécie que fabrica as ferramentas. Assim como o código

genético das primeiras formas de vida era simplesmente a composição

química dos organismos propriamente ditos, o registro escrito das primeiras

ferramentas consistia das próprias ferramentas. Mais tarde, os “genes” da

evolução tecnológica evoluíram para registros utilizando linguagem escrita,

e são, hoje, com frequência, armazenados em bancos de dados de

computadores. No fim das contas, a tecnologia propriamente dita criará nova

tecnologia.

Há muita coisa acontecendo na atualidade que contribui como alimento para estas

crenças, servem para reforçar todo este imaginário de progresso e para fortalecer o credo na

obtenção de poderes para realizar tudo o que se deseja. Os limites, se é que existem, ficam

cada vez mais distantes, o verbo da ocasião é transcender, ir sempre além, explorar as

possibilidades.

Assim, com poderes que antes só concerniam aos deuses ou às potências

naturais, os engenheiros da vida se propõem a reformular o mapa biológico

de cada indivíduo, alterando o código genético, mexendo em seu substrato

molecular e ajustando sua programação celular. Os dados estatísticos

mostram que a expectativa de vida não cessa de se estender: no início do

século XVIII, uma pessoa vivia em média quarenta anos, um século depois,

homens e mulheres ganharam mais uma década; atualmente, a expectativa

média mundial é de 75 anos, superando os oitenta em vários países. Quanto

ao futuro, os cientistas com afluências fáusticas são pródigos em proferir e

inspirar previsões grandiloquentes (SIBILIA, 2015, p.56).

Assim, provisoriamente se busca melhorar a atual condição de vida orgânica até que se

possa transcendê-la completamente. Por enquanto, realiza-se o esforço para tornar o corpo

humano imortal para que se adapte aos ditames de um propósito maior estabelecido não por

decreto divino, mas pelos próprios seres humanos que assumiram os rumos da história, que

almejam eles mesmos serem detentores de poderes divinos. Pois está evidente que o orgânico

não é mais prioridade, o tecnológico assumiu a sua posição prioritária, o orgânico é

transitório, perecível. E como fruto da natureza preexistente se tornou matéria-prima a ser

manipulada com vistas a alcançar propósitos superiores. Nas palavras de Pepperell (2003,

p.161):

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A era pós-humana, então, começa na sua totalidade quando já não achamos

necessário, ou possível, distinguir entre humanos e natureza. Isso não

significa que as categorias de humanos e da natureza, ou mesmo deuses,

deixarão de exercer influência sobre a conduta dos assuntos globais. Mas vai

marcar o tempo em que nos movemos verdadeiramente da condição humana

para a pós-humana da existência.

Retomando a analogia gnóstica, por hora, através da tecnociência são exibidas as

potencialidades demiúrgicas, busca-se a ampliação de tecnologias da imortalidade, seja sob o

suporte da inteligência artificial ou da engenharia genética, passando pela criogenia, ou cada

vez mais como se nota na atualidade, recorrendo-se ao uso de produtos farmacêuticos

antioxidantes e todos os tipos de dietas em conjunto com terapias corporais. Todavia sempre

almejando tecnologias superiores que possam conduzir a humanidade sempre avante. Das

potencialidades demiúrgicas contemporâneas emanam combinações do orgânico e do

inorgânico, do natural e do artificial. Porém como escreveu Paula Sibilia (2015, p.51):

A tecnociência contemporânea é um tipo de saber com forte inspiração

fáustica, pois algumas de suas vertentes almejam ultrapassar todas as

limitações ligadas à materialidade do corpo humano. Estas são entendidas

como rudes obstáculos orgânicos que restringem as potencialidades e as

ampliações de cada indivíduo, bem como da espécie em conjunto. Um

grande leque desses limites corresponde ao eixo temporal da existência; por

isso, a fim de romper essa barreira imposta pela temporalidade humana, que

é finita por definição, o arsenal tecnocientífico é colocado a serviço da

reconfiguração do que é vivo, em luta contra o envelhecimento e a morte.

Os trans-humanistas demiurgicamente enxergam nos instrumentos da tecnociência a

possibilidade de não somente prolongar a vida, mas até mesmo de criá-la. Segundo o que já

foi mencionado anteriormente, não há mais razões para aguardar pacientemente pela fortuna,

porque podem agir impulsionados por sua própria virtú. Nesta perspectiva, questões como a

vida e a morte não seriam mais concebidas como obras da natureza, ou, no caso da morte,

como uma fatalidade a respeito da qual não há o que ser feito. A vida e a morte perdem o seu

caráter sagrado, deixam de ser objeto da inviolável vontade divina e de estar além do alcance

dos que habitam a dimensão terrena.

Todavia, o objetivo que está sendo perseguido é alcançar uma forma de existência pós-

humana e pós-orgânica e para que este propósito seja atingido é necessário transcender a

condição biológica e corpórea atual dos seres humanos. Já no primeiro ponto da Declaração

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Trans-humanista8 está expressa a crença neste objetivo: “Nós vislumbramos a possibilidade

de ampliar o potencial humano superando o envelhecimento, as deficiências cognitivas, o

sofrimento involuntário e nosso confinamento ao planeta Terra”. Assim, os trans-humanistas

imaginam um futuro no qual poderão coexistir “futuros intelectos artificiais, formas de vida

modificadas ou outras inteligências às quais o avanço tecnológico e científico possam dar

origem”.

Acredita-se piamente que o avanço tecnológico dará origem a outras formas de vida

além das que são atualmente conhecidas, o próprio conceito de vida está em discussão,

principalmente no que se refere ao seu referencial orgânico e biológico. De acordo com trans-

humanistas como Pepperell (2003), até mesmo “máquinas complexas são uma forma

emergente de vida”. Anseia-se pela emergência de uma singularidade, uma inteligência

artificial que adquirirá consciência e ultrapassará a inteligência humana.

Mesmo que limitemos nossa discussão a computadores que não sejam

derivados diretamente de um cérebro humano particular, eles parecerão cada

vez mais ter suas próprias personalidades, evidenciando reações que só

podemos rotular como emoções e articulando seus próprios objetivos e

propósitos. Eles parecerão ter vontade própria. Afirmarão ter experiências

espirituais. E as pessoas – aquelas que ainda usam neurônios com base em

carbono – vão acreditar nelas (KURZWEIL, 2007, p.24).

Uma vez que máquinas complexas podem ser consideradas como formas de vida,

elimina-se a distinção entre o humano e a máquina. Andróides não serão mais máquinas que

imitam a constituição orgânica e psicológica humana, uma vez que adquiram consciência,

serão elevados ao mesmo status atribuído atualmente aos humanos. Neste imaginário,

consciências humanas poderão ser transferidas para os mesmos ambientes nos quais as

consciências artificiais habitarão, em outros termos, co-existirão como uma consciência

superior. Uma vez libertos das restrições impostas pela condição biológica, humanos e

consciências artificiais transcenderão. Kurzweil (2006), no livro The Singularity is Near,

descreve como a engenharia genética, a robótica, a tecnologia da informação e a

nanotecnologia unirão poderes para transformar e depois transcender a espécie humana.

8 A Declaração Trans-humanista pode ser encontrada em https://humanityplus.org/philosophy/transhumanist-

declaration/.

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Neste cenário, aguarda-se a chegada do momento no qual se poderá remover a mente

do cérebro humano e transferi-la para um dispositivo inorgânico ou para uma existência em

ambiente digital e cibernético nos quais todas as consciências estariam conectadas.

Embora, conforme já mencionado, a produção discursiva trans-humanista seja

abrangente e imprecisa, compreende-se que um pós-humano é um descendente humano que

foi aumentado a tal ponto que não seja mais humano. Os trans-humanistas anseiam se tornar

pós-humanos. Como pós-humanos, suas habilidades mentais e físicas superariam em muito as

de qualquer humano que não tenha sido aperfeiçoado. Um pós-humano seria mais inteligente

que qualquer gênio humano e seria capaz de lembrar-se das coisas muito mais facilmente.

Pós-humanos podem ser completamente sintéticos, híbridos orgânicos e maquínicos ou eles

poderiam ser o resultado de melhoramentos no ser humano biológico ou trans-humano.

Todavia, encontra-se entre os que propagam estas ideias a expectativa de que os pós-humanos

irão se livrar de seus corpos e viver como padrões de informação em grandes redes de

computadores super-rápidas.

As potencialidades demiúrgicas da tecnologia garantirão a sobrevivência do corpo até

o surgimento de uma tecnologia que possibilite descartá-lo completamente. Os trans-

humanistas possuem, deste modo, um triplo objetivo: preservar a humanidade em curto prazo;

aprimorá-la dramaticamente em um futuro próximo; para enfim superá-la completamente.

O primeiro e o segundo objetivos garantem lidar com o problema dos limites impostos

pelo tempo, porém o propósito almejado é a transcendência, ultrapassar não somente os

limites temporais, resolver o problema da morte e eliminar as fraquezas típicas da condição

corpórea, mas também os espaciais. Para que este último problema seja resolvido, acreditam

que devem transferir a consciência para uma forma de existir que não dependa da matéria (se

bem que cada vez mais, matéria é concebida como energia) e que a liberte dos limites

espaciais.

Hans Moravec (apud KRUEGER, 2005, p.77), em texto publicado em 1996, expôs sua

visão sobre a existência humana numa realidade virtual absoluta como o objetivo final da

evolução. Ou seja, a personalidade humana, a sua “mente”, deve ser digitalizada como uma

simulação perfeita e deve continuar a existir daí em diante como um ser imortal dentro do

armazenamento de dados de um computador. A existência no ciberespaço garantiria este

objetivo, acreditam. Além disto, seria a possibilidade de estabelecer a conexão de todas as

consciências, até mesmo as consciências das inteligências artificiais, que a esta altura do

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processo teriam superado a inteligência humana e seriam as realizadoras deste tão aguardo

acontecimento. O empenho por desvincular a existência humana da condição orgânica é o

propósito a ser buscado com afinco, a meta é transcender a atual condição biológica, este é o

importante evento escatológico.

4.5 A singularidade: auto-redenção pelo conhecimento

Em março de 1993, em simpósio patrocinado pela NASA Lewis Research Center e

pelo Ohio Aerospace Institute, Vernor Vinge apresentou um artigo cujo título era

Technological Singularity, no qual discorreu sobre o surgimento de uma “singularidade”. Esta

para Vinge seria o surgimento de um intelecto que superaria o humano e seria o responsável

pelas transformações que ocorreriam deste momento em diante. Este acontecimento estaria

relacionado ao amplo desenvolvimento da Inteligência Artificial. Atrelado a isto e como sua

preparação estaria o desenvolvimento de computadores com milhões de vezes o poder de

processamento do cérebro humano.

Sobre os desdobramentos destas ideias, Michael Zimmerman (2008) menciona que,

mesmo reconhecendo que o escrutínio público na atualidade tem focado principalmente em

pesquisa sobre células-tronco, clonagem e outros tipos de bioengenharia, os trans-humanistas

afirmam que tais conquistas empalidecerão em comparação com as consequências da

confluência entre engenharia, nanotecnologia, robótica e inteligência artificial. Recentemente

Ray Kurzweil e outros têm afirmado que a confluência da nanotecnologia, inteligência

artificial, robótica e engenharia genética em breve produzirão seres pós-humanos que

superarão a atual humanidade em muito em poder e inteligência. Do mesmo modo como os

buracos negros se constituem uma “singularidade” da qual nada pode escapar, os pós-

humanos se constituirão uma “singularidade”, cujos objetivos e capacidades estão além do

alcance dos humanos atuais. Os trans-humanistas nutrem a expectativa de que nas próximas

décadas, como as taxas de inovação nesses domínios tornam-se exponenciais e são

representadas quase verticalmente nos gráficos, surgirá uma “Singularidade”. Quando isto

acontecer, surgirão seres pós-humanos cujo poder e inteligência superarão os que os humanos

possuem até agora, isto de tal forma que os pós-humanos parecerão divinos.

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Vinge tomou o termo “singularidade” emprestado da astrofísica, que o utiliza para

descrever o horizonte de eventos em torno de um buraco negro, pois a atração gravitacional

em seu em torno é tão grande que nada, nem mesmo a luz, pode escapar. Não se pode saber

nada sobre o que ocorre depois que a força da gravidade toma conta. De modo similar, tanto

Vinge quanto Kurzweil utilizam o termo para se referir ao evento horizonte que surgirá uma

vez que surja a inteligência pós-humana que é muito maior do que qualquer coisa que os

humanos possam agora imaginar.

Kurzweil (2005), em The Singularity is Near, define a “singularidade” como a

inteligência não-biológica criada e que será um bilhão de vezes mais poderosa que toda

inteligência humana hoje. Para ele, em um quarto de século, a inteligência não-biológica

corresponderá à variedade e sutileza da inteligência humana. Emergirá por causa da

aceleração contínua das tecnologias baseadas em informações, bem como a capacidade das

máquinas compartilharem instantaneamente seus conhecimentos. Nanorobôs inteligentes

estarão profundamente integrados aos corpos humanos, seus cérebros e seu ambiente,

superando a poluição e a pobreza, proporcionando longevidade. Todavia, isto ainda será um

estágio precursor, a inteligência não-biológica terá acesso ao seu próprio design e será capaz

de melhorar a si mesma de forma crescente, implementando um ciclo de redesenho rápido.

Chegar-se-á a um ponto no qual o progresso técnico será tão rápido que a inteligência humana

não aprimorada não poderá segui-lo. Assemelhando-se ao que ocorre com a singularidade na

astrofísica, no tocante a dificuldade de enxergar além do evento no horizonte de um buraco

negro, também será difícil enxergar além do horizonte de eventos da Singularidade histórica.

Isto no sentido de imaginar, como tentativa de antecipação, as transformações que serão

realizadas através da intervenção deste tipo de inteligência na natureza. Todavia, Kurzweil

especula a respeito disto, refletindo que se com a atual limitação dos cérebros biológicos se

realizou grandes coisas, imagine o que a civilização futura, com sua inteligência multiplicada

trilhões de vezes, será capaz de pensar e fazer. Kurzweil (2005) emprega um discurso

escatológico ao declarar o destino final da Singularidade e do universo, que consistirá em

fazer com que a civilização humana se expanda, transformando toda a matéria e a energia

existente em uma matéria e energia sublimemente inteligentes e transcendentes. Isto de tal

forma que, em certo sentido, pode-se dizer que a Singularidade acabará por infundir o

universo com espírito.

No tocante ao discurso escatológico dos trans-humanistas, Michael Zimmerman

(2008) expõe que embora muitos trans-humanista sejam ateus declarados, Kurzweil insiste

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que a ideia de Deus necessita ser redefinida, não descartada, porque os descentes da

humanidade que se tornarem pós-humanos serão seres divinos capazes de reinventar todo o

universo. Em outros termos, Kurzweil propõe a revisão da concepção habitual de Deus para

acomodar a possibilidade de que os seres humanos estejam participando de um processo pelo

qual os seres pós-humanos alcançarão poderes equivalentes àqueles geralmente atribuídos a

Deus. Trata-se de um processo de auto-redenção e auto-divinização através do conhecimento.

Sobre este conhecimento redentor, Zimmerman (2008) expõe ainda que antes de

prosseguir, deve-se perguntar: O que, exatamente, significa “inteligência” nos termos trans-

humanistas? E prossegue, afirmando que os que postulam a existência de humanos altamente

aperfeiçoados não têm uma definição comum disso, embora falem de inteligência em termos

do poder computacional do cérebro, que está ligado à cognição humana. E que tal atividade

cognitiva é claramente valorizada entre os muitos cientistas e especialistas técnicos atraídos

por este processo de aprimoramento. Acredita-se, por sua vez, que liderando o apoio à

singularidade pós-humana, de acordo com a crescente visibilidade internacional do

movimento trans-humanista, surgirá uma onda de novas ciências e tecnologias para melhorar

o humano em suas habilidades e aptidões físicas e mentais, para melhorar aspectos

considerados indesejáveis e desnecessários da condição humana, como doença,

envelhecimento e morte. Este conhecimento redentor é uma clara descrição de como

engenharia genética, robótica, tecnologia da informação e nanotecnologia irão unir forças para

transformar e depois transcender a espécie humana.

Para os gnósticos clássicos, o conhecimento sobre a história pré-cósmica possuía

caráter salvífico, pois consistia num telos para existência por apontar o caminho para

libertação da atual condição caída, que era compreendida como decadente, o mundo material,

a presente existência era uma condição de ignorância e alienação. De forma análoga, os trans-

humanistas acreditam que um conhecimento superior dará a humanidade as possibilidades

para transcender. E da mesma maneira como o gnosticismo clássico a unificação (uma fez que

a queda criou multiplicidade, uma diáspora dos seres), os trans-humanistas aguardam o tempo

no qual todas consciências estarão interligadas.

Hermínio Martins (2012, p.23) cita a tendência de tecnólogos de conceber tecnofanias

ligadas ao discurso sobre tecnologias de informação:

Os tecnólogos de hoje têm a tendência de conceber tecnofanias nas quais a

dominação total da Natureza é ela mesma quase desmaterializada em saber

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absoluto e numa espécie de totum simul. Versões correntes de tecnofanias

ligadas ao discurso sobre as tecnologias da informação, nas quais a

“informação” se torna o conceito dominante do quadro categorial, sugerem

que a conversão total do não-informacional em informação é o momento da

consumação do progresso tecnológico.

Cada vez mais no mundo contemporâneo se percebe o modo como a tecnociência, em

sua busca por adquirir total domínio sobre a natureza, já ultrapassou as concepções

mecanicistas da realidade, tão comuns no início da Modernidade. A busca foi direcionada

para desvendar as informações que explicam os níveis mais abstratos e invisíveis do mundo e

para dominar os processos de reprodução e controle proporcionados por estas informações.

No prefácio escrito por Luís Furtado (1993, p.21) ao livro de Oswald Spengler, O homem e a

técnica, no qual é avaliada a responsabilidade da tecnociência no “declínio do Ocidente”,

encontramos uma menção a esta mudança:

Ao contrário da física clássica que se inspirava na realidade dimensional da

natureza organizando o espaço do homem em confiantes representações, o

caminho da física moderna tem sentido inverso. Parte de abstracções que

devem ser comprovadas nesta zona real, traduzindo possibilidades muito

concretas. Isto tem como consequência o declínio de toda atividade

representativa, e corresponde à descoberta da estrutura cada vez menos

sensível e cada vez mais transparente da matéria, nos limites já invisíveis do

próprio átomo. É sabido que este elemento postula e representa uma

inesgotável fonte de energia.

Em outras palavras, é na transparência da matéria e nos limites invisíveis do átomo,

nas estruturas moleculares, que se busca a informação, o texto codificado e inscrito no suporte

biológico. Persegue-se com afinco a compreensão profunda dos processos de surgimento da

informação sobre o mundo e sobre em que consiste a vida.

Na tecnociência de inspiração fáustica, a natureza é decomposta e recriada,

não mais de acordo com um regime mecânico-geométrico que permitia

ajustes analógicos sob o lema do progresso ou da evolução, mas de modos

bem mais radicais, inspirados no modelo informático-molecular (SIBILIA,

2015, p.86).

Uma vez que se tenha obtido o domínio pleno sobre o conhecimento que torna

possível a transformação do que tem sido compreendido como natureza. Um processo de

metamorfose que resultará numa nova natureza na qual o artificial predomina sobre o natural,

na qual a cultura assume o rumo dos acontecimentos que se seguirão. A engenhosidade do

pensamento humano se imporá como uma vontade divina transfigurando toda a realidade

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conhecida. A dúvida no tocante ao limite entre natureza e cultura não existirá, pois a cultura a

esta altura terá ultrapassado esta fronteira. E o que outrora foi concebido como natureza terá

sido absolvido e se tornado parte da cultura. O “penso, logo existo” será real em sentido

pleno, pois este critério psicológico para existência será levado até as últimas consequências,

uma vez que tudo o que for pensado poderá ser tecnologicamente criado, trazido à existência.

Esta é a crença que move as ações dos trans-humanistas, com um imaginário intensamente

inspirado nas projeções de progresso inerentes da tecnociêcnia contemporânea.

4.6 Conclusão

Chegando ao encerramento deste capítulo, perante o exposto, pode-se notar (mesmo

sem estabelecer relação causal entre a tecnociência contemporânea que serve de inspiração

fáustica para as ideias e o imaginário de trans-humanistas) uma relação analógica entre

gnosticismo e trans-humanismo.

Esta relação assume relevo especialmente em seu caráter claramente escatológico,

visto que os trans-humanistas ao se empenharem em benefício de um cada vez maior

desenvolvimento técnico e científico o fazem na esperança de que este estabeleça as

condições para que se atinja a meta de um futuro pós-humano, ou pós-biológico.

Esta expectativa futura de surgimento de uma nova era e consequentemente o fim da

anterior são elementos que tipificam as escatologias. Como discutido no início deste capítulo,

as escatologias são cosmogonias direcionadas para o futuro. Visto que as cosmogonias narram

os mitos sobre as origens do cosmo, semelhantemente as escatologias narram o fim do cosmo

para que um novo seja criado. Isto no que se refere ao imaginário trans-humanista é tipificado

como o fim da atual condição humano e biológica para oferecer lugar a uma condição pós-

humana.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pós-humanismo (enquanto movimento que visto genericamente ambiciona controlar

o mundo e transcender a condição humana) tende a ter curta duração, pois dificilmente

conseguirá exercer influência sobre o pensamento das massas. Todavia serve para ilustrar a

tese que está sendo defendida ao longo desta pesquisa, que a consciência secularizada do

homem moderno, em diversos exemplos, está sob influência de uma inconsciência religiosa.

Além disto, o pós-humanismo é, em certo sentido, uma exacerbação do reconhecimento de

que o humanismo ocidental fracassou em seu projeto humanizador do homo sapiens.

Assim, dentre tantos conceitos relevantes a esta a discussão há mais um a ser

esclarecido já de imediato, o conceito de “condição humana”. Esta necessidade de

esclarecimento se torna urgente pelo fato desta noção servir de fundamento para o que se

compreende por humano e tudo o que isto implica, tal como a noção de “direitos humanos” e

esta associada à dignidade inerente a todos os que sejam partícipes da “condição humana”.

A humanidade coexiste no mundo com outros seres, dentre estes, diversos seres vivos

reconhecidos como animais não humanos. Todavia fundamentado em quê tal distinção é

feita? O que torna os humanos o que são e distingue-os dos não humanos?

Enquanto os animais não humanos vivem em mundos fechados com estruturas

predeterminadas pelo equipamento biológico das diversas espécies animais, a relação do

humano com seu ambiente, em contraste, caracteriza-se pela abertura para o mundo

(GEHLEN, 1949/1957). Isto no sentido de que o humano não somente conseguiu estabelecer-

se na maior parte da superfície do planeta, mas também pelo fato de sua relação com o

ambiente circunstante ser muito imperfeitamente estruturada por sua constituição biológica.

Sem dúvida a constituição biológica do ser humano lhe permite as condições para que se

empenhe em diferentes atividades. Em outros termos, o processo de tornar-se humano realiza-

se através da correlação com o ambiente. O organismo humano manifesta uma imensa

plasticidade em suas respostas às forças ambientais que agem sobre ele. Isto é observável na

flexibilidade da constituição biológica humana ao ser submetida a uma multiplicidade de

determinações socioculturais. Porém isto não significa que não haja limitações

biologicamente determinadas para as relações entre o humano e o ambiente onde vive

(BERGER; LUCKMANN, 1966/2014).

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Em harmonia com o pensamento de Arnold Gehlen, Peter Berger e Thomas Luckmann

(1966/2014, p.70) afirmam:

A humanização é variável em sentido sociocultural. Em outras palavras, não

existe natureza humana no sentido de substrato biologicamente fixo, que

determine a variabilidade das formações socioculturais. Há somente a

natureza humana, no sentido de constantes antropológicas (por exemplo,

abertura para o mundo e plasticidade da estrutura dos instintos) que delimita

e permite as formações socioculturais do homem.

Gehlen, por meio da antropologia filosófica, busca rearticular a cultura ao substrato

biológico que lhe é subjacente, de forma a identificar os elementos definidores da conditio

humana, isto é, “constantes antropológicas” verificáveis em todas as sociedades ao longo de

todas as épocas da evolução da humanidade. E dentre estas “constantes antropológicas” se

deve considerar a plasticidade da estrutura dos instintos ou equipamento biológico humanos, a

abertura do humano para o mundo (algo que o torna um ser contingente, ou em termos

heideggarianos, um “ser-aí” (Dasein), um ser de possibilidades), mas que ao mesmo tempo

ordena o seu habitat e busca na ordem os limites para se proteger da ilusão de que a sua

abertura para o mundo lhe possibilita tudo.

Por sua vez, nos termos do existencialismo de Jean-Paul Sartre (2013), não se é

humano, torna-se humano, pois “a existência precede a essência” (p.23). Observe-se isto

explicado pelo próprio Sartre (2013, p.25):

Que significa, aqui, que a existência precede a essência? Significa que o

homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo, e se define em

seguida. Se o homem, na concepção do existencialismo, não é definível, é

porque ele não é, inicialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa

posteriormente, e será aquilo que ele se tornar. Assim, não há natureza

humana, pois não há um Deus para concebê-la. O homem é, não apenas

como é concebido, mas como ele se quer, e como se concebe a partir da

existência, como se quer a partir desse elã de existir, homem nada é além do

que ele se faz. Esse é o primeiro princípio do existencialismo.

O humanismo-existencialista de Sartre concebe o homem como um existente que

assume a incumbência de projetar a si mesmo, de definir a sua essência, o homem é “como se

concebe a partir da existência”. E se, por um lado, Sartre afirma que “não há natureza

humana, pois não há um Deus para concebê-la”, por outro lado, ao declarar o homem como

projetista de si mesmo, torna-o seu próprio deus, uma vez que “se concebe a partir da

existência”.

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Neste sentido, o existencialismo não escapa do mesmo princípio metafísico que

conduziu o humanismo renascentista. Este humanismo definiu o ser humano como “animal

racional”, e, ao interpretar o humano desta forma, acrescenta que este se diferencia dos

demais animais por ser complementado com algum acréscimo cultural e por adições

espirituais. Desta forma, o empenho do humanismo moderno se orientou pela tarefa de

construir racionalmente o ideal de humano e de civilização humana. Todavia, este projeto de

humanismo, em seu afã por construir a humanidade ideal, resultou na tomada de poder sobre

todos os seres e na natural cumplicidade de todos os possíveis horrores que podem ser

cometidos em nome do bem humano.

Isto foi afirmado pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk que (comentando a carta de

Heidegger sobre o humanismo, escrita no outono de 1946, logo após a Segunda Guerra)

salienta que Heidegger interpretou o mundo histórico da Europa como o teatro dos

humanismos militantes, e acrescenta:

Sob essa perspectiva, o humanismo se oferece como cúmplice natural de

todos os possíveis horrores que podem ser cometidos em nome do bem

humano. Mesmo na trágica titanomaquia da metade do século entre o

bolchevismo, o fascismo e o americanismo exibiram-se, na visão de

Heidegger, somente três variações dessa mesma força antropocêntrica e três

candidaturas a um domínio humanitariamente ornado do mundo – dentre as

quais o fascismo errou o passo ao exibir mais abertamente que seus

concorrentes seu desprezo por valores inibitórios pacíficos e educacionais.

De fato, o fascismo é a metafísica da desinibição – talvez mesmo uma forma

desinibida da metafísica. Na visão de Heidegger, o fascismo foi a síntese do

humanismo e do bestialismo; isto é, a paradoxal confluência de inibição e

desinibição (SLOTERDIJK, 2000, p.31).

Sloterdijk (2000) menciona “valores inibitórios pacíficos e educacionais” como

elementos que estiveram associados ao projeto humanista, isto porque ele entende que há algo

acerca do humanismo, tanto do moderno quanto o dos dias dos romanos, sem o qual a

tendência humanista não se deixa jamais compreender inteiramente, pois, segundo Sloterdijk

(2000, p.16), “o humanismo, como palavra e como assunto, sempre tem um ‘contra quê’, uma

vez que constitui o empenho para retirar o ser humano da barbárie”, e acrescenta (p.17): “O

tema latente do humanismo é, portanto, o desembrutecimento do ser humano, e sua tese

latente é: as boas leituras conduzem à domesticação”.

Sloterdijk (2000, p.10) identifica no humanismo moderno e burguês um humanismo

literário, que atua através de processo educacional para formar o “modelo de uma sociedade

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literária na qual os participantes descobrem, por meio de leituras canônicas, seu amor comum

por remetentes inspiradores”.

Pois o que são as nações modernas senão eficazes ficções de públicos

leitores que teriam se transformado, pelos mesmos escritos, em uma

associação concordante de amigos? O serviço militar obrigatório universal

para jovens do sexo masculino e a leitura obrigatória universal dos clássicos

para jovens de ambos os sexos caracterizam a época burguesa clássica, isto

é, aquela era da humanidade armada e dedicada à leitura, para a qual os

novos e velhos conservadores de hoje olham nostálgicos e ao mesmo tempo

impotentes, totalmente incapazes de dar conta, em termos da teoria dos

meios de comunicação, do sentido de um cânon de leitura – quem quiser

uma visão atual sobre isto pode verificar quão precários foram os resultados

obtidos em um debate nacional ocorrido recentemente na Alemanha sobre a

alegada necessidade de um novo cânon literário (SLOTERDIJK, 2000,

p.12).

Em sua reflexão sobre o fenômeno do humanismo, Sloterdijk (2000, p.16-17) lembra

que está no centro disto o questionamento sobre o futuro da humanidade e dos meios de

humanização, se há alguma esperança de dominar as tendências embrutecedoras entre os

homens. Ele percebe que no tocante a isto há como uma perturbadora importância o fato de

que o embrutecimento, hoje e sempre, costuma ocorrer exatamente quando há grande

desenvolvimento do poder, seja como rudeza imediatamente bélica e imperial, seja como

bestialização cotidiana das pessoas pelos entretenimentos desinibidores da mídia.

O fenômeno do humanismo hoje merece atenção antes de mais nada porque

nos recorda – embora de forma velada e tímida – que as pessoas na cultura

elitizada estão submetidas de forma constante e simultânea a dois poderes de

formação – vamos aqui denominá-los, para simplificar, influências

inibidoras e desinibidoras. Faz parte do credo do humanismo a convicção de

que os seres humanos são “animais influenciáveis” e de que é portanto

imperativo prover-lhes o tipo certo de influências. A etiqueta “humanismo”

recorda – de forma falsamente inofensiva – a contínua batalha pelo ser

humano que se produz como disputa entre tendências bestializadoras e

tendências domesticadoras (SLOTERDIJK, 2000, p.17).

Diante da constatação de que “o humanismo, como palavra e como assunto, sempre

tem um ‘contra quê’, uma vez que constitui o empenho para retirar o ser humano da barbárie”,

Sloterdijk (2000, p.18) afirma:

Só pode entender o humanismo antigo se o apreendermos também como

uma tomada de partido em um conflito de mídias – isto é, como a resistência

do livro contra o anfiteatro e como oposição da leitura filosófica

humanizadora, provedora de paciência e criadora de consciência, contra as

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sensações e embriaguez desumanizadoras e impacientemente arrebatadoras

dos estádios. O que os romanos cultos chamavam humanitas seria

impensável sem a exigência de abster-se da cultura de massas dos teatros da

crueldade. Se o próprio humanista se perder alguma vez em meio à multidão

vociferante, que seja tão somente para constatar que também ele é um ser

humano e pode, por isso, ser contagiado pela bestialização. Ele retorna do

teatro para casa, envergonhado por ter compartilhado involuntariamente as

contagiantes sensações, e está agora disposto a admitir que nada de humano

lhe é estranho. Mas o que se diz com isto é que a humanidade consiste em

escolher, para o desenvolvimento da própria natureza, as mídias

domesticadoras, e renunciar às desinibidoras. O sentido dessa escolha de

meios consiste em desabituar-se da própria bestialidade em potencial, e pôr

distância entre si e a escalada desumanizadora dos urros do teatro.

Por sua vez, Heidegger (1946/2009) desenvolve a sua reflexão sobre o humanismo em

uma carta dirigida primeiramente a Jean Beaufret, em Paris, posteriormente publicada e

traduzida por conta do autor. Heidegger, neste texto, retoma questões formuladas por Beaufret

e como tema de sua reposta escolhe a mais fundamental sobre o humanismo: “como restaurar

o significado da palavra humanismo? Heidegger, em sua resposta, considera a tarefa da

tradição humanística ou metafísica fracassada, principalmente quando se considera que a

catástrofe recente da Segunda Guerra revelou que o problema é o próprio ser humano e os

seus sistemas de auto-interpretação, os seus projetos de humanidade melhor.

Para Heidegger o humanismo antigo que exerceu influência sobre o renascentismo,

atrelado ao mundo romano e grego, criou uma tradição na qual concebe o humano como

“animal racional”, e aspira um ideal de humanidade em termos de oposição entre o homo

humanus e o homo barbarus, sendo que o homo humanus é o romano que exalta e enobrece a

virtus romana pela incorporação da paideia tomada dos gregos.

Os gregos são os gregos do Helenismo, cuja formação se fizera nas escolas

filosóficas. Ela se refere à eruditio et institucio in bonas artes. A paideia

assim entendida se traduz por humanitas. A romanitas propriamente dita do

homo romanus consiste nesta humanitas. É em Roma que encontramos o

primeiro humanismo. Em sua Essência, portanto, o humanismo permanece

um fenômeno especificamente romano, que nasce do encontro da

romanidade com a cultura do helenismo. A chamada Renascença dos séculos

XIV e XV na Itália é uma renascentia romanitatis. Porque o interessa é a

romanitas, trata-se da humanitas e, por conseguinte, da paideia grega. Mas o

grego aqui é sempre o grego em sua forma posterior e esta ainda assim, à

romana. Também o homo romanus da Renascença está numa oposição ao

homo barbarus. Todavia, o in-umano é agora o pretenso barbarismo da

escolástica gótica da Idade Média. Por isso, ao humanismo, entendido

historicamente, sempre pertence um stadium humanitatis que, num certo e

determinado modo, retoma a antiguidade e assim se torna cada vez um

reviver da Grécia (HEIDEGGER, 1946/2009, p.35-36).

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Ainda neste contexto de crise europeia durante e pós-guerra, os três principais

modelos de humanismo – cristianismo, marxismo e existencialismo – que se candidatam

como solução para crise apenas diferem entre si na superfície e em suas interpretações

apressadas sobre o ser humano. No entender de Heidegger, são responsáveis por obstruir o

pensamento sobre a essência do ser humano, atrasando o surgimento da genuína questão sobre

essa essência. Todas estas formas representativas do humanismo, segundo Heidegger

(1946/2009, p.28-29), distanciam-se do pensamento originário e, em razão disto, não pode ser

considerado pensamento, pois pensar de modo mais originário significa essencializar, é deixar

uma coisa vigorar em sua própria proveniência, isto é, deixar que ela seja.

O Cristianismo interpreta a humanidade do homem a partir da distinção da divindade,

o homem e a história da humanidade aparecem dentro da história da salvação, concebe-se o

homem como não sendo deste mundo, uma vez que o mundo é pensado enquanto apenas uma

passagem transitória para o além. E, deste modo, constitui-se num humanismo que determina

a humanidade do homem a partir de uma interpretação previamente estabelecida da natureza

do homem, da história, do mundo, do fundamento do mundo, em resumo, uma interpretação

estabelecida do Ser em sua totalidade. Por sua vez, o humanismo marxista não necessita de

um retorno à Antiguidade, pois exige que o homem humano seja reconhecido enquanto ser

social, o homem social é para Marx o “homem natural”. Na sociedade se assegura

equitativamente a “natureza” do homem, isto é, através da totalidade de suas “necessidades

naturais” (alimentação, vestuário, reprodução, subsistência econômica). Deste modo, para

Heidegger, a questão sobre a essência do ser humano esteve perdida em meio um princípio

metafísica no qual só se consegue pensar o humano através de uma interpretação determinada

e metafísica do Ser como actus e potentia, interpretação que se identifica com a distinção de

existentia e essentia.

Heidegger (1946/2009) realiza uma análise existencial-ontológica do humano que

reconduz o homem de volta a sua essência, pois a humanidade do homem reside em sua

essência. A essência do homem está na verdade do Ser ou de certo modo do Ser, o Ser-aí

(Dasein). O pensamento restitui a essência do homem ao Ser, “essa restituição consiste em

que, no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua

habitação mora o homem” (p.24), “a história do Ser carrega e determina toda condição e

situação humana” (p.26).

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O pensamento é ainda pensamento do Ser, enquanto ausculta o Ser.

Enquanto, auscultando, pertence ao Ser, o pensamento é de acordo com a

pro-veniência de sua Essência. O pensamento é, isso significa: o Ser se

apegou, num destino histórico, à sua essência” (HEIDEGGER, 1946/2009,

p.28-29).

O pensamento ausculta o Ser, e a essência do humano não está, segundo Heidegger,

em cuidar que o homem seja humano no sentido de ser transformado num animal que

raciocina, moldado segundo pensamento que elegeu um determinado estágio da humanidade e

um certo modelo de civilização como ideal de humanidade, pois a essência do homem reside

no Ser, em certo modo do Ser no qual os humanos se distinguem de todos os outros seres

vegetais e animais de forma essencial. “Auscultar o Ser”, há aqui algo místico, buscar a

essência do humano no que há de mais fundamental, permitir que o Ser se desoculte através

da linguagem, que manifeste as suas possibilidades, os modos para os quais o humano está

destinado historicamente a ser ou a se tornar.

Em sua resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, Sloterdijk (2000, p.33)

afirma existir uma história ignorada por Heidegger da saída dos seres humanos para clareira.

Isto se referindo afirmação de Heidegger no tocante a linguagem enquanto casa do Ser e ao

habitar nela o homem existe, à medida que compartilha a verdade do Ser, a clareira é o lugar

onde o Ser surge como aquilo que é. A saída dos seres humanos para a clareira é “uma

história social da tangibilidade do ser humano pela questão do ser e uma movimentação

histórica no escancaramento ontológico”.

Para Sloterdijk, a história real da clareira consiste de duas narrativas maiores que

convergem em uma perspectiva comum, segundo ele, a explicação de como animal sapiens se

tornou o homem sapiens. A primeira delas dá conta da hominização, narrando como nos

longos períodos da história pré-humana primitiva surgiu do mamífero vivíparo humano um

gênero de criaturas de nascimento prematuro que saíram para seus ambientes com um excesso

crescente de inacabamento animal.

Aqui se consuma a revolução antropogenética – a ruptura do nascimento

biológico, dando lugar ao ato de vir-ao-mundo. Dessa explosão, Heidegger –

em sua obstinada reserva contra toda antropologia, e em sua ânsia de

preservar o ponto de partida ontologicamente puro no Estar-aí (Dasein) e no

estar-no-mundo dos seres humanos – não toma nem de longe suficiente

conhecimento. Pois o fato de que o homem pôde tornar-se o ser que está no

mundo tem raízes na história da espécie, raízes que se deixam entrever pelos

conceitos profundos da precocidade do nascimento, da neotenia e da

imaturaidade animalesca crônica do ser humano. O ser humano poderia até

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mesmo ser definido como a criatura que fracassou em seu ser-animal

(Tiersein) e em permanecer-animal (Tierbleiben). Ao fracassar como animal,

esse ser indeterminado tomba para fora de seu ambiente e com isso ganha o

mundo no sentido ontológico. Esse vir-ao-mundo extático e essa “outorga”

para o ser estão posta desde o berço como heranças históricas da espécie. Se

homem está-no-mundo, é porque toma parte de um movimento que o traz ao

mundo e o abandona ao mundo (SLOTERDIJK, 2000, p.34).

Este movimento que trouxe o homem ao mundo foi complementado, segundo

Sloterdijk, ao mesmo tempo por outro movimento, a entrada naquilo que Heidegger

denominou “casa do ser”, assim por meio da linguagem é mostrado aos homens que o estar-

no-mundo pode ser ao mesmo tempo experimentado como estar-consigo-mesmo. Assim,

conforme Sloterdijk (2000, p.35), “a clareira é um acontecimento nas fronteiras entre as

histórias da natureza e da cultura, e o chegar-ao-mundo humano assume desde cedo os traços

de um chegar-à-linguagem”.

Estes movimentos podem ser resumidos da seguinte forma: no primeiro, o animal se

tornou homem ao estar-no-mundo, podendo ser denominado como hominização; no segundo,

o homem se tornou humano ao habitar “a casa do ser”, a linguagem, este foi um movimento

de humanização. Porém, segundo Sloterdijk (2000, p.35-36), a história da clareira vai além da

chegada dos seres humanos às casas das linguagens:

Pois assim que os seres humanos falantes começam a viver juntos em grupos

maiores e se ligam não só às casas da linguagem, mas também a casas

construídas, eles ingressam no campo de força do modo de vida sedentário.

Daí em diante, eles estão não apenas resguardados por sua linguagem, mas

também domesticados por suas habitações. Erguem-se na clareira – como

sua marca mais vistosa – as casas dos homens (com os templos de seus

deuses e os palácios de seus senhores).

A clareira como um lugar de habitações seguras, estabelecendo uma vida doméstica,

segundo Sloterdijk (2000, p.37-38), é apenas o aspecto mais inofensivo da humanização nas

casas. Pois a clareira “é ao mesmo tempo um campo de batalha e um lugar de decisão e

seleção”. Uma vez erguidas às habitações na clareira, “deve-se decidir no que se tornarão os

homens que as habitam; decide-se, de fato e por atos, que tipo de construtores de casas

chegarão ao comando”. E isto ocorre pelo fato da clareira ser o lugar onde se revela “por

quais posições os homens lutam, tão logo se destacam como seres construtores de cidades e

produtores de riquezas”.

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Deste diálogo entre Sartre, Heidegger e Sloterdijk percebemos que humano – seja ele

enquanto projetar a si mesmo (existencialismo) ou encontrar a sua essência auscultando o Ser

(existencialismo-ontológico) – não é concebido enquanto uma “natureza”, algo previamente

estabelecido, mas enquanto uma “condição ou situação humana” no mundo e, assim, aberta.

Por ser uma “condição humana” no mundo possui uma longa história, que se estende desde o

momento no qual os homens vieram habitar na “casa do ser”, posteriormente construindo

também as suas casas, vilarejos, cidades (civilizações), domesticando-se, até o estágio atual

da história da humanidade.

Isto posto, passemos a questão dos “direitos humanos” que se norteia pelo

reconhecimento da “dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus

direitos iguais e inalienáveis”. Tomada nestes termos fica evidente que aqui se oculta um

princípio religioso, a crença numa natureza humana previamente dada e em direitos enquanto

uma “lei natural” e universal que é análoga a algo como “a lei divina” ou “a vontade de

Deus”. A experiência histórica, porém, demonstra que o que se compreende atualmente como

direitos universais da humanidade nem sempre foi compreendido. Exemplo disto é o direito à

liberdade. Nem sempre a humanidade compreendeu que “todo ser humano tem direito à

liberdade”, pois durante séculos a humanidade considerou a escravidão algo legítimo, tal

mudança de concepção é historicamente recente.

Sloterdijk (2000), todavia, levanta uma tese que merece ser considerada. Trata-se da

“tese de que os homens são animais dos quais alguns dirigem a criação de seus semelhantes

enquanto os outros são criados – um pensamento que desde as reflexões de Platão sobre a

educação e o Estado faz parte do folclore pastoral dos europeus” (p.44-45). Isto implica no

fato que alguns poucos, elites culturais, assumirão papel ativo neste processo de domesticar

homens. Sobre isto, Sloterdijk acrescenta ainda, retomando a afirmação de Nietzsche que

havia citada outrora, “de que, dentre os homens nas pequenas casas, alguns poucos querem;

quanto à maioria, porém, outros querem por eles. Que outros queiram por eles significa que

eles existem apenas como objeto, e não como sujeito de seleção” (p.45).

As consequências disto, segundo Sloterdijk (2000, p.45), é que na atual era técnica e

antropotécnica, “os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleção,

ainda que não precisem ter se dirigido voluntariamente para o papel do selecionador”. Em tal

circunstância de desconforto no tocante ao poder de escolha, muitos buscarão o caminho da

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omissão, “e em breve será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o

poder de seleção que de fato se obteve”.

Mas tão logo poderes de conhecimento se desenvolvam positivamente em

um campo, as pessoas farão uma má figura se – como na época de uma

anterior incapacidade – quiserem deixar agir em seu lugar um poder mais

elevado, seja ele Deus, o acaso, ou os outros. Já que as meras recusas ou

abdicações costumam falhar devido a sua esterilidade, será provavelmente

importante no futuro, assumir de forma ativa o jogo e formular um código

das antropotécnicas. Um tal código também alteraria retroativamente o

significado do humanismo clássico – pois com ele ficaria explícito e

assentado que a humanitas não inclui só a amizade do ser humano pelo ser

humano; ele implica também – e de maneira crescentemente explícita – que

o homem representa o mais alto poder para o homem (SLOTERDIJK, 2000,

p.45-46).

O momento histórico no qual a humanidade se encontra é um período no qual

importantes decisões políticas sobre a espécie a humana deverão ser tomadas. E conforme já

frisado por Sloterdijk não é suficiente simplesmente transferir o ônus destas decisões para

algum poder mais elevado. Ao mesmo tempo, urge a necessidade de se assumir papel ativo na

formulação de “um código das antropotécnicas”, uma vez que está implícito na constatação de

“que o homem é o mais alto poder para o homem” a tarefa de formular tal código não caberá a

Deus, ao caso, ou aos outros, mas ao próprio homem. E isto independe do fato se a

humanidade detém ou não atualmente o poder para estabelecer uma era pós-biológica, poder

para não somente intervir na cultura, mas também na própria constituição orgânica, poder de

transcender o biológico.

Se o desenvolvimento a longo prazo também conduzirá a uma reforma

genética das características da espécie – se uma antropotecnologia futura

avançará até um planejamento explícito de características, se o gênero

humano poderá levar a cabo uma comutação do fatalismo do nascimento ao

nascimento opcional e à seleção pré-natal – nestas perguntas, ainda que de

maneira obscura e incerta, começa a abrir-se à nossa frente o horizonte

evolutivo.

Pertence à rubrica da humanitas que os homens devam enfrentar problemas

demasiado difíceis para eles, e que essa dificuldade não lhes possa servir de

pretexto para deixar esses problemas intocados (SLOTERDIJK, 2000, p.47).

Nesta discussão sobre a condição humana, lida-se com o entendimento fortemente

exposto em perspectivas antropológico-filosóficas como a apresentada por Gehlen

(1948/1957) em A alma da técnica, que concebe a existência humana numa estreita relação

com a técnica, na proporção que compreende o humano como um ser corporalmente

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deficiente e que por isto lança mão de técnicas compensatórias. Em outros termos, Gehlen, em

sua antropologia, segundo Brüseke (2014, p.13):

[...] situa o surgimento do homem no mundo das coisas, artefatos e utensílios

e interpreta seu desenvolvimento, como um ser técnico por natureza, carente

de instintos e fraco em relação à sua constituição orgânica (GEHLEN,

1949/1957). A técnica, supostamente “inumana”, está nesta antropologia nas

bases daquilo que denominamos como humano. Bem no espírito desta

compreensão antropológica do homem formulou Plessner (1928): “O

homem é artificial por natureza”.

Levando em consideração o que tem sido refletido por filósofos que se dedicaram a

uma filosofia da técnica, Brüseke (2014) conclui que estes resistem contra uma unificação do

seu pensamento, a filosofia não possui um conceito homogêneo da técnica. Dentre estes

filósofos nos quais se nota uma resistência contra uma unificação de pensamento estão Platão,

Aristóteles, Francis Bacon, René Descartes, Ernst Kapp, Dessauer e Heidegger.

Exemplificando o modo como não se dá esta unificação de pensamento, Brüseke destaca

como digno de observação que os filósofos da Antiguidade compreenderam a técnica mais

como um fazer do que como um artefato. “A techné dos antigos, em procedimentos

miméticos que encostam-se naquilo que é e paradigmaticamente presente no produzir artístico

tem, por assim dizer, uma conotação poética” (BRÜSEKE, 2014, p.10). Isto em contraposição

ao que é pensado no início dos tempos modernos, pois se observa que com pensadores como

Bacon e Descartes se depara com um conceito de técnica que encontrou mais tarde, na

filosofia da técnica de Heidegger, forte oposição.

Por sua vez, Brüseke lembra que uma filosofia da técnica em sentido restrito e

apresentando-se sob tal denominação existirá somente a partir da obra de Enst Kapp,

publicada em 1877 sob o título Linhas fundamentais de uma filosofia da técnica. Na mesma

direção de Brüseke, Hermínio Martins (2012) afirma que a ideia de que os artefatos técnicos

representam extensões do ser humano e do seu corpo tornou-se um lugar do pensamento

moderno, o que tem sido chamado de teoria prostética da tecnologia. Segundo Martins, esta

teoria aparece formulada numa variedade de textos, entre 1860 e 1870, sendo encontrada

também, em versões parciais, no marxismo clássico, nas popularizações da teoria

evolucionista de Darwin e na psicanálise freudiana, todavia a primeira exposição sistemática

desta perspectiva aparece no mencionado livro escrito por Kapp. Sobre este, Martins (2012,

p.15-16) acrescenta:

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Enquanto hegeliano, vê a história humana como a objetivação da essência

humana. Como hegeliano de esquerda, considera que esta objetivação deriva

não do espírito, mas do ser humano corporizado. Tal como Feuerbach tinha

visto na antropologia a chave para a teologia, Kapp vê-a como a chave para

o entendimento da história da tecnologia. Formulou, assim, uma teoria

antropológica da tecnologia. A locução central explicativa desta antropologia

da tecnologia é “projeção orgânica” (Organprojektion). Deste modo, as

ferramentas primitivas são facilmente vistas como projeções de partes do

corpo humano e sobretudo da mão humana, cuja versatilidade e

maleabilidade a entronizam como parte mais tecnogênica do corpo (por

exemplo, as mãos em concha teriam gerado a classe dos implementos

contentores e o punho cerrado seria análogo dos martelos e de muitas

espécies de armas). Os sentidos humanos da vista e do ouvido forneceriam

os modelos para instrumentos ópticos e acústicos, respectivamente.

Eventualmente, a estrutura interna do corpo humano facultaria o modelo

inconsciente de outros artefatos técnicos. Mesmo as invenções recentes do

tempo de Kapp são postas em correspondência analógica com as estruturas

interiores do corpo humano: os cabos do telégrafo elétrico são comparados

aos nervos e os caminho-de-ferro ao aparelho circulatório.

A filosofia da técnica de Kapp, em sua exposição da técnica como extensão do ser

humano e aperfeiçoamento da constituição orgânica e das habilidades humanas, segundo

Brüseke (2014, p.11), é filha da sua época, compartilhando da filosofia do progresso do

século XIX e estendo, como Marx, mas sem se referir a ele, a sua validade à co-evolução do

homem e dos artefatos, produzidos por ele.

Neste sentido, Kapp enunciou uma filosofia da técnica que apresenta esta enquanto

condição do desenvolvimento humano, incluindo a sua auto-consciência. Este caráter técnico

da condição humana, conforme já mencionado, será reafirmado posteriormente nas

antropologias filosóficas de Gehlen e Plessner. Tudo isto servindo como constatação de que

artificialidade e técnica se constituem parte da condição humana.

Seguindo esta linha de raciocínio, quando os trans-humanistas reconhecem na técnica

uma variante da evolução patrocinada pelos humanos, eles não estão equivocados. Todavia,

deixando-se encantar pelo caráter contingente da técnica moderna, acreditam não haver

limites para as suas realizações. Este é o motivo de ter sido apresentado nesta pesquisa, em

seu primeiro capítulo, o conceito de “modernidade técnica”, e ter reconhecido nesta a base

existencial para a formação do pensamento que se destaca em fenômenos como o trans-

humanismo. Isto significa que no tocante a uma Sociologia do conhecimento a modernidade

técnica oferece os determinantes históricos e sócio-culturais para o surgimento de

pensamentos como o trans-humanismo.

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Todavia, conforme está sendo sustentado ao longo desta pesquisa, esta base existencial

secular oculta inconscientemente uma lógica religiosa que no caso do trans-humanismo acaba

por se manifestar como uma escatologia gnóstica. Sobre esta relação analógica entre

gnosticismo e trans-humanismo, exposta mais extensivamente aqui no último capítulo,

Hermínio Martins (2012, p.17) explica:

As correntes e tendências recentes numa variedade de áreas tecnológicas,

bem como as prolépticas pretensões e profecias de destacados estudiosos em

campos tais como a genética, a engenharia biológica e a inteligência

artificial, sustentam a tese de que estamos enfrentando atualmente uma

síndrome cultural a que Victor Ferkiss (1980) chamou “gnosticismo

tecnológico” (mas que poderia igualmente chamar-se “gnosticismo técnico-

científico”, dada a interpenetração da investigação científica e da invenção

técnica. De fato, os defensores destes projetos têm sido trabalhadores

identificados primariamente como “cientistas” e não como “tecnólogos”).

A partir do citado acima, Hermínio Martins levanta um questionamento sobre a

aparente contradição entre gnosticismo e tecnologia. Na verdade, ocorre um paradoxo, para

utilizar um termo mais preciso. Isto porque é parte do gnosticismo o horror ao orgânico e a

repugnância pelo corpo, aversão pelo natural, e tecnologia implica manipulação do mundo

material, o que sugere que esta seja contra-gnóstica. Porém Martins (2012, p.18) objeta:

Todavia, pela expressão superficialmente paradoxal “gnosticismo

tecnológico” quer-se significar o casamento das realizações, projetos e

aspirações tecnológicas com os sonhos caracteristicamente gnósticos de se

transcender radicalmente a condição humana (e não simplesmente de a

melhorar e habilitar os seres humanos a triunfarem sobre forças naturais

hostis). Ultrapassar os parâmetros básicos da condição humana – a sua

finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade, limitação

existencial – aparece como uma motivação e até como uma das legitimações

da tecnociência contemporânea, pelo menos em algumas áreas.

Esta objeção está em concordância com o já exposto nesta pesquisa, que há tendências

gnosticizantes na tecnociência contemporânea, embora esta não possa ser imputada

diretamente a correntes de pensamento gnósticas designáveis. Isto mesmo admitindo a forte

influência do gnosticismo sobre o pensamento no Ocidente, o que faz com que Martins (2012,

p.20) declare: “A constelação cultural que presidiu ao crescimento da ciência moderna

nascente incluiu contribuições gnósticas”. Como exemplos de contribuições gnósticas a

ciência moderna nascente, Martins menciona que entre as influências que modelaram o

desenvolvimento da ciência matemática-experimental e das cosmologias que o acompanham

acham-se a alquimia (como berçário de práticas experimentais, mas também, em certa

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medida, das suas visões mais amplas, envolvendo o projeto de domesticação do tempo e a

aceleração dos processos naturais), a astrologia ou astro-biologia, o hermetismo, o

pitagorismo místico e os ensinamentos cabalísticos, bem como uma variedade de formas de

mágica natural ou espiritual.

E, por fim, mesmo reconhecendo que não é possível estabelecer relação causal entre a

tecnociência contemporânea e alguma corrente gnóstica, esta pesquisa compartilha da mesma

percepção que levou Martins (2012, p.21) a admitir: “Contudo, não deixa de ser curiosa a

circunstância que criou o que poderíamos chamar uma afinidade eletiva entre o espírito da

tecnociência moderna e o ethos deste gnosticismo mundano e imanentizado”.

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