alexandre de jesus dos prazeres · conceito de secularização foi retomado enquanto problema da...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
ALEXANDRE DE JESUS DOS PRAZERES
PÓS-HUMANISMO ENQUANTO UMA VERSÃO SECULARIZADA DA
ENSOMATOSE GNÓSTICA: CORPO E MODERNIDADE TÉCNICA ABORDADOS
ATRAVÉS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO
São Cristóvão - SE
2019
ALEXANDRE DE JESUS DOS PRAZERES
PÓS-HUMANISMO ENQUANTO UMA VERSÃO SECULARIZADA DA
ENSOMATOSE GNÓSTICA: CORPO E MODERNIDADE TÉCNICA ABORDADOS
ATRAVÉS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Universidade
Federal de Sergipe – UFS como requisito para
a obtenção do título de doutor em Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. Franz Josef Brüseke
São Cristóvão - SE
2019
ALEXANDRE DE JESUS DOS PRAZERES
PÓS-HUMANISMO ENQUANTO UMA VERSÃO SECULARIZADA DA
ENSOMATOSE GNÓSTICA: CORPO E MODERNIDADE TÉCNICA ABORDADOS
ATRAVÉS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Universidade
Federal de Sergipe – UFS como requisito para
a obtenção do título de doutor em Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. Franz Josef Brüseke
Comissão Examinadora
Prof. Dr. Franz Josef Brüseke – Orientador
Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe – UFS
Prof. Dr. Antony Peter Mueller – Examinador Interno
Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe – UFS
Prof. Dr. Rogério Proença Leite – Examinador Interno
Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe – UFS
Prof. Dr. José Rodorval Ramalho – Examinador Externo
Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe –
UFS
Prof. Dr. Carlos Eduardo Sell – Examinador Externo
Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina –
UFSC
São Cristóvão – SE, 03 de junho de 2019
AGRADECIMENTOS
A Deus por ter me concedido as condições para trilhar esta jornada acadêmica num dos
momentos mais críticos da minha vida em termos pessoais. “Tu és digno, Senhor e Deus
nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as coisas tu criastes, sim, por causa
da tua vontade vieram a existir e foram criadas” (Apocalipse 4,11).
À minha esposa, a professora Lívia Torres Nascimento de Jesus, por todo o apoio,
compreensão e paciência durante o tempo em que estive imerso nas atividades de pesquisa,
sem poder lhe devotar a dedicação merecida.
Ao meu orientador, o prof. Dr. Franz Josef Brüseke que foi para mim exemplo de erudição e
intelectualidade, agradeço por sua gentileza e por todo estímulo recebido.
Ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe e a todos
os professores de quem pude aprender através das aulas e atividades acadêmicas.
À Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe – FAPITEC
pela bolsa de estudos que me proporcionou as condições para dedicar tempo a esta pesquisa.
Aos colegas de turma e do PPGS-UFS pelo companheirismo, pelas boas conversas, sugestões
e críticas.
RESUMO
Esta pesquisa realizada no campo da Sociologia, de modo mais específico da Sociologia do
Conhecimento e da Técnica, tem como objetivo investigar a presença de uma inconsciência
religiosa na consciência secularizada da sociedade moderna. Esta inconsciência religiosa se
manifesta por meio de concepções teológicas laicizadas em fenômenos modernos que, em si,
não são explicitamente religiosos, pois trazem as noções religiosas de forma implícita e de
modo que os envolvidos nos fenômenos não raramente se recusam a admitir a presença destas
noções em seu modo de pensar. Para exemplificar a tese sustentada, a pesquisa escolheu o
trans ou pós-humanismo como um fenômeno moderno (que tem alimentado o seu imaginário
dos avanços oriundos da ciência e da técnica modernas) com noções análogas as concepções
religiosas de uma escatologia gnóstica. Assim, o texto da pesquisa foi elaborado de forma que
no primeiro capítulo expôs de onde emerge o pensamento pós-humanista, apresentou um
quadro mais geral, expondo a Modernidade Técnica como base existencial deste
conhecimento. Por sua vez, no segundo capítulo, abordaram-se os conceitos de secularização
e de legitimidade aplicados a Modernidade sob um prisma filosófico. No terceiro capítulo, o
conceito de secularização foi retomado enquanto problema da Sociologia, uma vez que o
capítulo dois se ocupou com questões filosóficas em torno deste conceito. Consequentemente,
no quarto capítulo, será explorada a relação analógica entre pós-humanismo e gnosticismo.
Este capítulo, ao expor os elementos que caracterizam o pensamento gnóstico e a sua
importante influência na formação das ideias no Ocidente, aproxima o leitor dos conceitos
teológicos que foram secularizados na Modernidade, ao mesmo tempo, que possibilita maior
aproximação do exemplo, em análise, nesta pesquisa, o pensamento pós-humano. Este último
descrito como análogo a gnose e repleto de desdobramentos que descrevem uma lógica
escatológica gnóstica.
Palavras-chave: Modernidade Técnica. Pós-humanismo. Sociologia do Conhecimento.
Secularização. Inconsciência religiosa.
ABSTRACT
This research carried out in the field of Sociology, more specifically the Sociology of
Knowledge and Technique, aims to investigate the presence in the secularized consciousness
of modern society of a religious unconsciousness. This religious unconsciousness manifests
itself through theological conceptions laicized in modern phenomena which, in themselves,
are not explicitly religious, bring the religious notions implicitly and in a way that those
involved in phenomena do not often refuse to admit the presence of these notions in his way
of thinking. To exemplify the sustained thesis, the research chose trans or post-humanism as a
modern phenomenon (which fed its imaginary of advances from science and modern
technique) with analogous notions the religious conceptions of a Gnostic eschatology. Thus,
the text of the research was elaborated in a way that in the first chapter expounded from where
emerges the post-humanist thought, presented a more general picture, exposing Technical
Modernity as existential basis of this knowledge. On the other hand, in the second chapter, the
concepts of secularization and legitimacy applied to Modernity were approached from a
philosophical point of view. In the third chapter, the concept of secularization was retaken as
a sociology problem, since chapter two dealt with philosophical questions about this concept.
Consequently, in the fourth chapter, the analogical relationship between posthumanism and
gnosticism will be explored. This chapter, by exposing the elements that characterize Gnostic
thought and its important influence in the formation of ideas in the West, brings the reader
closer to the theological concepts that have been secularized in Modernity, at the same time
that allows a closer approximation of the example, in this research, post-human thought. The
latter is described as analogous to gnosis and full of unfoldings that describe a Gnostic
eschatological logic.
Keywords: Technical Modernity. Post-humanism. Sociology of Knowledge. Secularization.
Religious unconsciousness.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................ 09
1 CORPO E PÓS-HUMANISMO: A MODERNIDADE TÉCNICA COMO BASE
EXISTENCIAL DO PENSAMENTO PÓS-HUMANISTA ........................................
27
1.1 O corpo como construção social?................................................................................ 29
1.1.1 Concepção moderna de corpo................................................................................... 35
1.1.1.1 Corpo como fator de individuação......................................................................... 41
1.1.1.2 O corpo anatomizado............................................................................................. 43
1.1.1.3 O corpo midiático.................................................................................................. 48
1.1.1.4 O corpo rascunho................................................................................................... 51
1.2 Pós-humanismo: a aposta numa era pós-biológica...................................................... 53
1.3 A essência da Modernidade: o caráter técnico............................................................. 58
1.3.1 O debate sobre a Modernidade................................................................................. 63
1.3.2 Modernidade técnica................................................................................................. 68
1.4 Conclusão..................................................................................................................... 71
2 MODERNIDADE E SECULARIZAÇÃO: QUESTÕES FILOSÓFICAS.............. 75
2.1 Semântica da secularização......................................................................................... 76
2.2 Modernidade: permanência de categorias teológicas secularizadas............................ 83
2.2.1 A transposição de conceitos teológicos para o plano político-jurídico.................... 83
2.2.2 A secularização da teologia cristã da história........................................................... 90
2.2.3 A Modernidade como essencialmente gnóstica........................................................ 98
2.3 A controvérsia entre a secularização e a legitimidade da Modernidade...................... 117
2.4 Conclusão..................................................................................................................... 120
3 MODERNIDADE E SECULARIZAÇÃO: QUESTÕES SOCIOLÓGICAS........ 124
3.1 Secularização enquanto tema sociológico contemporâneo.......................................... 125
3.2 Sociologia do Conhecimento, secularização da consciência e inconsciência
religiosa..............................................................................................................................
137
3.3 Inconsciência, ideologia e utopia................................................................................. 145
3.4 Ascese intramundana e secularização.......................................................................... 152
3.5 Conclusão..................................................................................................................... 156
4 O IMAGINÁRIO PÓS-HUMANISTA: O ESCHATON TECNOGNÓSTICO..... 158
4.1 O problema da aniquilação escatológica do mundo.................................................... 158
4.2 O Trans-humanismo e sua relação analógica com a escatologia gnóstica.................. 163
4.3 Gnose e pensamento ocidental..................................................................................... 173
4.4 A superação da condição corpórea: uma “era do espírito”.......................................... 186
4.5 A singularidade: auto-redenção pelo conhecimento.................................................... 194
4.6 Conclusão..................................................................................................................... 198
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 199
REFERÊNCIAS............................................................................................................... 213
INTRODUÇÃO
A edição de abril de 2017 da revista National Geographic trouxe na capa o título O
próximo humano e logo abaixo a descrição: “a era dos ciborgues chegou: como a tecnologia
projeta uma nova geração de pessoas”. A imagem da capa estampa a gravura de rostos em
posição frontal, porém enfileirados de forma crescente, fazendo com que o primeiro rosto da
fila apareça em tamanho maior e represente o estágio atual do processo evolutivo, trata-se do
rosto de um cyborg (cybernetic organism), um rosto humano com um tipo de prótese
metálica, cibernética, cobrindo parte da face direita, contornando o olho. Um organismo meio
humano e meio máquina parece ser o que sugere a imagem da capa como próximo passo da
evolução humana, porém desta feita não uma evolução realizada por um processo de seleção
natural e fatores genéticos, mas uma evolução operada sob o controle dos próprios seres
humanos através da tecnologia. Atrás deste cyborg, há mais três rostos formando a fila, dois
rostos humanos, e o terceiro, encerrando a fila, a sombra de um hominídeo, com traços
semelhantes ao de um gorila.
A matéria de capa, assinada por D. T. Max, tem como título Mais que humano e
começa com a seguinte epígrafe: “Como todas as outras espécies, somos o resultado de
milhões de anos de evolução. Agora, porém, estamos assumindo o comando desse processo”
(MAX, 2017, p.32). A matéria descreve, através de alguns exemplos, como a evolução
tradicional continua. Os seres humanos se dispersaram por todo o planeta e sob demandas
impostas pelas circunstâncias tiveram a sua composição genética alterada. Assim, discuti se a
evolução deixou de ser apenas o lento processo da seleção natural propagando os genes
desejáveis, e passou a incluir tudo o que a humanidade pode fazer para ampliar a sua
capacidade biológica natural e a dos instrumentos que fabrica – uma conjunção de genes,
cultura e tecnologia.
Problematizando com base numa declaração contida no livro A origem das espécies,
escrito por Charles Darwin (de que “a seleção natural é uma potência sempre de prontidão
para atuar, e é incomensuravelmente superior aos débeis esforços do homem, tal como se dá
com as obras da Natureza em relação às da Arte”), Max (2017, p.41) levanta a questão sobre a
validade hoje desta afirmação de Darwin, publicada em 1859, e prossegue propondo a
seguinte pergunta:
A evolução biológica pode ser implacável e, na verdade, até mais habilidosa
que a evolução genética que os seres humanos conseguem promover com
cruzamentos em plantas e animais, mas o quão importante ela é, de fato, se
comparada com as adaptações que podemos conceber com a ajuda do nosso
cérebro?
Em resposta, Max (2017, p.41) apresenta a seguinte declaração:
No mundo atual, o principal motor do êxito reprodutivo – e, portanto, das
mudanças evolutivas – é a cultura, e a prima armada, a tecnologia. Isso
ocorre porque a evolução não tem como acompanhar a velocidade e a
variedade da vida moderna. A despeito de tudo o que a evolução conseguiu
realizar no passado recente, veja a precariedade com que nos adaptamos às
telas dos computadores, aos pacotes de salgadinhos de milho e aos
ambientes despojados de agentes patogênicos. Por que os nossos relógios
internos são tão rigorosos? Por que o nosso apêndice aparentemente inútil, e
que no passado talvez nos tenha ajudado a digerir gramíneas, não passou, em
vez disso, a facilitar o metabolismo dos açúcares? Se a genética humana
fosse uma empresa de tecnologia, ela teria falido quando surgiu a energia a
vapor. O seu plano de negócios depende de uma característica que surge por
acaso e depois se propaga por reprodução sexual.
Isso funciona muito bem em camundongos, que podem gerar uma prole nova
em apenas três semanas, mas os seres humanos estão presos a um ritmo bem
mais lento, produzindo uma nova geração apenas a cada 25 ou 35 anos.
Nessa toada, milênios podem se passar até que uma característica desejável
se dissemine por toda uma população. Dado os poucos flexíveis protocolos
da evolução genética, não admira que ela tenha sido superada pela
tecnologia.
A concepção de que o próximo passo para evolução do homem será realizado pelo
próprio homem por meio do controle possibilitado pelo conhecimento científico e pelo
desenvolvimento tecnológico se harmoniza com o pensamento trans ou pós-humanista. Isto se
fundamenta na noção de que agora a humanidade possui a capacidade de construir
tecnicamente o caminho rumo seu futuro como espécie, projetar-se e executar o projeto
através da eliminação do que considera indesejável ou sinal de fraqueza, limitação, não
precisando mais entregar-se ao acaso da seleção natural. Para que isto seja possível, a
tecnologia desempenha um papel extremamente importante, como o poder de realizar
transformações, operar “milagres”, revolucionar o mundo, alterar a ordem das coisas. A
tecnologia, deste modo, permite uma intervenção na ordem natural, possibilita a crença que
impulsiona a ação rumo ao anseio de moldar artificialmente o mundo.
A noção de criaturas artificiais construídas pelo homem à sua imagem tem sido
abordada por um conjunto de narrativas, que recorrem a diversas linguagens, tanto à
linguagem da literatura, da religião ou da arte, quanto à linguagem das ciências e das técnicas.
Mudam-se os tempos e os costumes vigentes, porém é certo encontrar uma preocupação
comum, capturar o humano, imitando-o; a preocupação de representar o humano através de
algum dispositivo artificial, moldado, segundo a época, pelo mito, pela técnica, pela arte, pela
literatura, pela ciência. Desta forma, a repetição destas narrativas revela uma representação do
homem que o define enquanto ser criado. Ao discorrer sobre a condição do homem enquanto
criatura, tais narrativas expõem igualmente o anseio deste por se afirmar como criador à
semelhança da divindade que o trouxe a existência. Este anseio, primeiramente, representado
pelas narrativas míticas (egípcias, gregas e através da narrativa bíblica da criação do homem à
imagem de Deus) continua sendo manifesto em narrativas como a da estátua de Galateia e a
do Golem do período talmúdico na alta antiguidade; ressurgindo no século XVIII através da
ideia de construir autómatos androides; reaparecendo na literatura como a criatura do Dr.
Frankenstein, ou como Pinóquio; e mais recentemente através dos robôs da ficção científica,
ou ainda dos computadores como imitação artificial da inteligência humana (BRETON,
1997).
Conforme Philippe Breton (1997, p.19):
Máquina concreta e funcional no domínio do cálculo digital, o computador
electrónico é, igualmente, o suporte de uma família de projectos que têm em
comum a vontade de construir um equivalente artificial do cérebro humano
ou, o que vem a dar no mesmo no espírito dos seus promotores, de simular o
funcionamento da inteligência humana no exterior do cérebro humano. O
computador apresenta-se, deste ponto de vista, como a primeira etapa para
um objetivo muito mais ambicioso: uma réplica artificial do homem
inteligente.
Com o nascimento formal da Inteligência Artificial como uma nova disciplina distinta
na área de informática, fortalece-se o entendimento de que num futuro breve as máquinas
poderiam pensar, aprender e criar, e mais ainda, que o campo da suas possibilidades seria
conduzido a um alargamento de tal magnitude que as máquinas estariam aptas a tratar uma
gama de problemas até então somente apreendidos pelo espírito humano.
O computador instala-se, assim, potencialmente, como uma criatura
inteligente, suscetível, a curto prazo, de substituir o homem nas suas funções
mais essenciais, e capaz de ser dotada, nesta perspectiva, de uma
“consciência artificial” (BRETON, 1997, p.21).
Do anseio por moldar seres à sua própria imagem, em discursos como o dos pós-
humanistas, o homem parece encantar-se tanto pela a ideia que faz dos seres que almeja poder
trazer a existência que planeja se fundir as suas criaturas, crendo poder criar algo não somente
semelhante a si mesmo, mas superior. Anseia poder desvendar o mecanismo da inteligência e
os meandros da vida, o homem projeta transcender-se, superar o que compreende ser
limitador, fraqueza, maldição, a sua carne representativa da sua conditio humana.
Desde os óculos de grau até as modernas próteses biônicas, passando por dispositivos
como o marca-passo, os implantes dentários e os órgãos desenvolvidos em laboratório, o
homem experimenta essa ligação com o artificial, com o não-biológico que se incorpora ao
seu organismo, ampliando capacidades ou reestabelecendo aptidões perdidas. Esses avanços
levam a pensar que se vivencia hoje uma transição rumo ao pós-humano, uma etapa posterior
à existência humana tal como pensada até então, graças aos progressos tecnológicos.
Stéphane Rémy Malysse (2000, p.273) demonstra que a ficção científica sempre
esteve muito interessada nas consequências que as novas tecnologias poderiam ter sobre o
corpo; do cinema à literatura, muitos foram os romancistas que entenderam que, no “futuro”,
o homem iria querer mudar sua condição corporal e que a noção de corpo se constitui como
uma grande musa da imaginação futurista. Por exemplo, do doutor Frankenstein aos trabalhos
do doutor Moreau, e de Blade Runner a Matrix, o uso do corpo humano como um material
biológico disponível coloca sempre em cena personagens cuja evidência “humana” é rompida
e cujo estatuto antropológico suscita o medo. Em Matrix, a carne é considerada como uma
doença, a condição corporal vista como epidemia e os corpos humanos são fabricados e
controlados industrialmente pelos próprios robôs, que inverteram os papéis e demonstraram a
superioridade dos materiais eletrônicos sobre as matérias vivas, da eternidade sobre a morte.
Esse poder de “dar a vida” que têm os robôs no filme parece muito com os poderes que
querem adquirir os geneticistas e os engenheiros da Inteligência Artificial do final do século
XX. As criaturas moldadas por Moreau na sua ilha de experimentação genética eram híbridas,
hoje, a clonagem de animais (e a ciência de reprodução do “idêntico” ultrapassa
tecnologicamente a das misturas) já foi realizada várias vezes (o primeiro caso foi de uma
ovelha e do seu clone Dolly).
Por sua vez, através de uma leitura antropológica da literatura de ficção científica
contemporânea, Le Breton (apud MALYSSE, 2000, p.273) coloca em evidência a velocidade
das transformações nas representações e nos usos sociais e medicinais do corpo humano.
Tradicionalmente inspirada pelas últimas descobertas científicas e as suas possíveis
perspectivas futuras, a ficção científica de hoje está sendo, paradoxalmente, cada vez mais
“realista”. A aceleração das descobertas nas biociências e os avanços tecnológicos produzem
um “efeito de real” que ultrapassa muitas vezes o próprio desafio “futurístico” da ficção
científica: descrever um futuro radicalmente diferente do presente, uma ficção do tempo no
mundo.
Francis Fukuyama (1992), no livro O fim da história e o último homem, declara que,
tendo as principais alternativas à democracia liberal se exaurido, a história tal como conhecida
até então havia chegado ao fim. Dez anos mais tarde, ele reviu esta declaração: a história
ainda não chegou ao fim, porque a humanidade ainda não alcançou o fim da ciência, e que os
maiores avanços ainda por vir se darão nas ciências da vida.
Em o Nosso futuro pós-humano, Fukuyama (2003, p.21) estabelece a discussão de que
“a ameaça mais relevante suscitada pela biotecnologia contemporânea é a possibilidade de ela
vir a alterar a natureza humana e, desse modo, transferir-nos para um estágio ‘pós-humano’ da
história.”
Fukuyama compreende que a biotecnologia, no estágio atual, não possui poderes de
tamanha magnitude, alterar a natureza humana, mas possui potencial para isto. Por este
motivo, ele levanta a questão sobre o que fazer em resposta à biotecnologia, que no futuro
combinará grandes benefícios potenciais com ameaças que são tanto físicas quanto espirituais
e sutis. E apresenta como resposta óbvia, segundo seu entendimento, o dever de usar o poder
do Estado para regulá-la, e se essa regulação se provar além da capacidade do Estado-nação,
deverá ser feita em bases internacionais (FUKUYAMA, 2003, p.23).
Em Nosso futuro pós-humano, de forma realista e até mesmo distópica, Fukuyama
aponta tendências futuras dos conhecimentos de biotecnologia e tenta antecipar prováveis
consequências de uma revolução biotecnológica para a compreensão de natureza humana,
para a ética e para política. Ele apresenta os caminhos plausíveis para o futuro e extrai
algumas consequências de primeira ordem, desde as de curto prazo, porém prováveis, até as
mais distantes e incertas. Tais caminhos plausíveis são esboçados em quatro estágios: o
crescente conhecimento sobre o cérebro e as fontes do comportamento humano; a
neurofarmacologia e a manipulação das emoções e comportamento; o prolongamento da vida;
e, por fim, a engenharia genética.
O adjetivo “distópico” aqui visa diferenciar a abordagem feita por Fukuyama sobre as
consequências de uma revolução biotecnológica da abordagem efetuada pelos trans ou pós-
humanistas sobre este mesmo assunto. Enquanto Fukuyama está estudando um fenômeno da
sociedade moderna como este se apresenta, os trans ou pós-humanista se inspiram neste
mesmo fenômeno para elaborar um utopismo com características religiosas sobre o futuro,
uma espécie de escatologia biotecnológica que prevê a próxima etapa da evolução dos seres
humanos, a passagem da condição humana à condição pós-humana. O cumprimento desta
“profecia” é proclamado e aguardado ansiosamente como a chegada de um novo e
aperfeiçoado mundo.
O livro de Fukuyama está distribuído em três partes, com seis capítulos na primeira,
três na segunda e três na terceira parte, num total de doze capítulos. Na primeira parte,
intitulada de “sendas para o futuro”, há um enfoque sobre os avanços e descobertas em vários
campos relacionados tais como a neurociência cognitiva, a genética populacional, a genética
do comportamento, a psicologia, a antropologia, a biologia evolucionária e a
neurofarmacologia. Áreas de avanço científico com implicações políticas potenciais, porque
ampliam conhecimentos da fonte do comportamento humano, o cérebro, e, por consequência,
a capacidade de manipulá-lo.
Por sua vez, ao tratar sobre a neurofarmacologia e a manipulação das emoções e
comportamento (capítulo três), revela: “No futuro, praticamente tudo o que a imaginação
popular imagina que a engenharia genética realizará terá muito mais chance de ser realizado
mais cedo através da neurofarmacologia” (FUKUYAMA, 2003, p.64). Drogas com
tendências políticas poderosas, associadas ao desejo das pessoas comuns de medicalizar tanto
quanto possível o seu comportamento e, com isso, reduzir sua responsabilidade pelos próprios
atos, ou que objetivam fazer com que as pessoas se sintam bem, ou ainda, drogas associadas a
um profundo conhecimento da química do cérebro e a capacidade de manipulá-la como fonte
de controle do comportamento das pessoas.
Sobre o prolongamento da vida, Fukuyama (2003, p.69) acrescenta: “O terceiro
caminho pelo qual a biotecnologia contemporânea afetará a política é o do prolongamento da
vida e o das mudanças demográficas e sociais que dele resultarão.” Mudanças associadas à
linha divisória entre países do Primeiro e do Terceiro Mundos, “com a Europa, o Japão e
partes da América do Norte tendo uma idade mediana de perto de sessenta anos e seus
vizinhos menos desenvolvidos tendo idades medianas em torno dos vinte e poucos anos”
(FUKUYAMA, 2003, p.74); mudanças associadas ao peso do componente feminino no
mundo desenvolvido no tocante as populações com idade para votar; e efeitos ligados ao
manejo interno das hierarquias sociais, isto associado fato de pessoas que deveriam já está
aposentadas continuarem ocupando posições na hierarquia social. Esses elementos tendem a
criar uma situação na qual “o mundo poderá realmente, nessa altura, estar dividido entre um
Norte cujo tom político é ditado por mulheres idosas e um Sul dirigido [...] por homens jovens
irados com excesso de poder” (FUKUYAMA, 2003, p.75).
Já no tocante a engenharia genética, Fukuyama (2003, p.84) afirma que a engenharia
genética é a mais revolucionária de todas as biotecnologias, mas por enquanto tem tido
avanços significativos somente na biotecnologia agrícola para produzir organismos
geneticamente modificados, e acrescenta:
A próxima linha de avanço é obviamente a aplicação dessa tecnologia a
seres humanos. A engenharia genética humana suscita da maneira mais
direta a perspectiva de um novo tipo de eugenia, com todas as implicações
morais que essa palavra carrega, e em última análise a possibilidade da
modificação da natureza humana.
Na segunda parte do livro, “Sendo humano”, Fukuyama trata das questões filosóficas
suscitadas pela capacidade de manipular a natureza humana, fazendo uma defesa da
centralidade da natureza humana para a compreensão do certo e do errado, as implicações
morais. Ele expõe o modo de se desenvolver um conceito de dignidade humana que não
dependa de pressupostos religiosos acerca das origens do homem.
Fukuyama (2003, p.99) reconhece que há três categorias de objeções possíveis a
manipulação de seres humanos: (1) as que se baseiam na religião; (2) as que se baseiam em
considerações utilitárias; e (3) as que se baseiam em princípios filosóficos.
A religião fornece as razões mais claras para objeções à engenharia genética de seres
humanos, oferecendo grande número de objeções a uma variedade de novas tecnologias. Na
tradição compartilhada por Judeus, Cristãos e Muçulmanos, o ser humano foi criado à
imagem de Deus, isto, principalmente para os cristãos, possui implicações para dignidade
humana. Para estes, há uma clara distinção entre criação humana e não humana: só os seres
humanos possuem capacidade de escolha moral, livre-arbítrio e fé, uma capacidade que lhes
confere um status moral mais elevado que o resto da criação animal, e uma posição especial
no mundo. “Deus age através da natureza para produzir esses resultados, e por isso uma
violação das normas naturais, como ter filhos através do sexo e da família, é também uma
violação da vontade de Deus” (FUKUYAMA, 2003, p.99).
Já os danos de cunho utilitário são, em geral, mais amplamente reconhecidos, estando
ligados seja a custos econômicos ou a custos claramente identificáveis para o bem-estar físico.
Fukuyama (2003, p.110) expõe as limitações dos argumentos utilitários nos termos seguintes:
Os pontos positivos e negativos que os utilitários somam em seus livros-
razões de custo-benefício são todos relativamente tangíveis e diretos,
geralmente redutíveis a algum dano físico facilmente identificável ao corpo.
Os utilitários raramente levam em conta benefícios e danos mais sutis que
podem ser facilmente medidos, ou que são feitos à alma em vez de ao corpo.
Em termos de objeções de cunho filosófico, Fukuyama (2003, p.111-112)
problematiza da seguinte forma:
E o que é essa essência humana que poderíamos estar em perigo de perder?
Para uma pessoa religiosa, ela poderia ter a ver com o dom ou centelha
divina com que todos os seres humanos nasceram. De uma perspectiva
secular, teria a ver com a natureza humana: as características típicas da
espécie partilhadas por todos os seres humanos como seres humanos. É isso,
em última análise, que está em jogo na revolução bio-técnica. [...]
O que está em jogo em última análise com a biotecnologia não é apenas um
cálculo utilitário de custo-benefício relativo a futuras tecnologias médicas,
mas a própria fundamentação do senso moral humano, que tem sido uma
constante desde quando houve seres humanos.
Fukuyama propõe a natureza humana como fundamento para o senso moral humano,
apoiando-se na tradição filosófica pré-kantiana que funda os direitos e a moralidade na
natureza. Ele faz uma defesa de direitos humanos, no sentido de direitos oriundos do conceito
de natureza humana, em contraposição ao conceito de interesses humanos de viés utilitário.
Sobre isto (FUKUYAMA, 2003, p.120) declara:
Direitos suplantam interesses porque são dotados de maior significação
moral. Interesses são fungíveis e podem ser trocados por outros no mercado;
direitos, embora raramente absolutos, são menos flexíveis porque é difícil
atribuir-lhes valor econômico.
O autor reconhece que direitos são derivados em princípio de três fontes possíveis:
direitos divinos, direitos naturais e direitos positivos contemporâneos, fundados na lei e nos
costumes sociais. Em outras palavras, direitos podem emanar de Deus, da Natureza e do
próprio Homem (FUKUYAMA, 2003, p.121).
O problema que gravita em torno de como fundamentar uma moral e, principalmente,
uma moral que lide com as questões suscitadas pela técnica moderna é como derivar do “ser”
um “dever”. Problema proposto por David Hume no Tratado da natureza humana e isto é
reconhecido por Fukuyama, que tenta contornar o problema da seguinte forma:
No máximo, o que a famosa passagem do Tratado disse é que não se podiam
deduzir regras morais de fatos empíricos de uma maneira logicamente a
priori. Mas como praticamente todos os filósofos sérios na tradição
ocidental desde Platão e Aristóteles, Hume acreditava que o “deve” e o “é”
eram conectados por conceitos como “querer, necessitar, desejar, prazer,
felicidade, saúde” – pelas metas e fins que seres humanos estabeleceram
para si mesmos.
E, por sua vez, na terceira parte, “Que fazer”, a parte mais prática, sustenta que a
preocupação com algumas consequências de longo prazo da biotecnologia deve levar a
tomada de atitudes a respeito, estabelecendo uma estrutura reguladora para distinguir usos
legítimos e ilegítimos dela. Todavia ele mesmo reconhece: “A evolução da tecnologia é tão
rápida que precisamos avançar rapidamente para uma análise muito mais concreta de que
tipos de instituição seriam requeridas para lidar com ela” (FUKUYAMA, 2003, p.30).
Diante deste cenário, esta pesquisa põe em destaque as concepções oriundas do
imaginário trans ou pós-humano, orientando-se pela hipótese de que este possui ideias que
ocultam noções religiosas, isto apesar de serem concepções inspiradas nos avanços da técnica
e da ciência modernas. E mesmo que não intencionem explicitar noções religiosas sobre o ser
humano e o mundo, essas ideias conservam elementos de uma lógica ou forma de pensar
típicas da religião, uma lógica religiosa implícita. Deste modo, faz parte do interesse desta
pesquisa compreender o utopismo característico do movimento trans ou pós-humanista e a
relação que estabelece com sua base existencial histórico-sociológica.
Deste modo, o que está sendo proposto aqui é que o pensamento pós-humanista se
constitui numa versão secularizada que reproduz concepções da realidade típicas do
gnosticismo1. Gnosticismo vem de gnosis, em grego “conhecimento”. A gnosis,
conhecimento redentor ensinado pelos gnósticos, consiste na revelação de uma “história
secreta”, pelo menos para os não-iniciados: a origem e a criação do mundo, a origem do mal,
1 Foram assim designadas algumas correntes filosóficas que se difundiram nos primeiros séculos depois de
Cristo no Oriente e no Ocidente. A literatura que produziram era rica e variada, mas perdeu-se, à exceção de
poucos textos conservados em traduções coptas, chegando até nós apenas através dos trechos mencionados e, ao
mesmo tempo, refutados pelos Padres Apologistas. O Gnosticismo é uma primeira tentativa de filosofia cristã,
feita sem rigor sistemático, com a mistura de elementos cristãos míticos, neoplatônicos e orientais. Em geral,
para os gnósticos o conhecimento era condição para a salvação, donde esse nome, que foi adotado pela primeira
vez pelos Ofitas ou Sociedade da Serpente, que mais tarde se dividiram em numerosas seitas (ABBAGNANO,
2007, p.485).
o drama do redentor divino descido à Terra para salvar os homens, e a vitória final do deus
transcendente, vitória que se traduz por uma conclusão da história e pela destruição do
mundo. Tal “história secreta” pode ser compreendida como um “mito total”, um relato da
origem do mundo até o presente (ELIADE, 2011, p.324).
O gnosticismo pode ser conhecido através de versões diferentes, dependendo dos
diversos grupos gnósticos e das doutrinas ensinadas pelos seus respectivos líderes: Simão, o
Mágico, Marcião, Menandro, Cerinto, Valentino e Mani; trata-se, em síntese, do esforço por
criar uma religião universal (ELIADE, 2011, p.326-329).
Mircea Eliade (2011, p.324) expõe segundo o modelo de Valentino que:
O gnóstico ensina que seu verdadeiro ser (isto é, seu ser espiritual) é de
origem e natureza divinas, ainda que atualmente, se encontre preso num
corpo; ensina também que ele habitava uma região transcendental, mas foi
depois projetado neste baixo mundo, que ele avança célere para a salvação e
acabará por ser libertado de sua prisão carnal; descobre, enfim, que,
enquanto seu nascimento equivalia a uma queda na matéria, seu
“renascimento” será de ordem puramente espiritual. Guardemos as ideias
fundamentais: o dualismo espírito/matéria, divino
(transcendente)/antidivino; o mito da queda da alma (= espírito, parcela
divina), ou seja, a encarnação num corpo (assimilado a uma prisão); e a
certeza da libertação (a “salvação”) obtida graças à gnose.
Para se fazer justiça a este movimento religioso que teve grande influência sobre o
Cristianismo, Judaísmo e até mesmo sobre o Islã, é necessário mencionar que o chamar de
“gnosticismo” é até mesmo anacrônico, pois trata-se de uma designação atribuída ao
movimento por pesquisadores modernos, conforme esclarece Julio Cesar Chaves (2015, p.15-
16), ao tratar sobre os textos gnósticos que compõem a Biblioteca Copta de Nag Hammadi:
O tema geral do presente volume é a biblioteca de Nag Hammadi; como
geralmente a biblioteca em questão é associada ao chamado “gnosticismo” –
rótulo moderno que tem englobado uma série de religiosidades marginais, e
muitas vezes pouco conhecidas, da antiguidade – optou-se por tratar
igualmente da dita “religião gnóstica” em alguns dos artigos. Seguindo a
tendência geral da pesquisa contemporânea, no entanto, os ensaios
demonstram que termos como “gnosticismo” e “gnóstico” podem muitas
vezes ser anacrônicos, não fazendo jus ao complexo contexto do cristianismo
primitivo.
Talvez neste ponto alguém se pergunte: como uma série de religiosidades marginais da
antiguidade se relaciona com um movimento moderno como o pós-humanismo? É claro que o
gnosticismo foi um movimento religioso que teve presença marcante nos primeiros três
séculos da era cristã, porém reaparecendo com forte influência sobre os movimentos
religiosos que atingiram a Europa nos séculos XII e XIII, os chamados “séculos heréticos”
(FALBEL, 2012). Estes “séculos heréticos” são representativos da influência do gnosticismo
medieval sobre a cultura ocidental até a contemporaneidade.
As experiências gnósticas determinam uma estrutura da realidade política
que é sui generis. O gnosticismo medieval está ligado ao gnosticismo
contemporâneo por uma linha de transformação gradual. E, na verdade, a
transformação é tão gradual que seria difícil decidir se os fenômenos
contemporâneos devem ser classificados como cristãos, já que derivam
claramente das heresias cristãs da Idade Média, ou se os fenômenos
medievais devem ser classificados como anticristãos, por serem claramente a
origem do anticristianismo moderno. O melhor é deixar de lado tais questões
e reconhecer a essência da modernidade como o crescimento do gnosticismo
(VOEGELIN, 1982, p.96).
Por hora, basta esta afirmação de Eric Voegelin, “a essência da modernidade como o
crescimento do gnosticismo”, porém o esclarecimento sobre isto será dado quando este
assunto for retomado aqui no segundo capítulo, onde será dado tratamento mais detalhado aos
aspectos teóricos que envolvem o problema do advento da Modernidade. Algo que consiste
em discutir se a Modernidade deve ser compreendida, em termos de legitimidade ou de
secularização.
Como legitimidade, conforme propõe Hans Blumenberg, a Modernidade apresenta-se
como uma novidade inquestionável em todas as suas manifestações e não devedora em nada
ao período histórico anterior. Neste sentido, a Modernidade é concebida, em outras palavras,
pela aparição histórica do vazio de sentido provocado pelo esgotamento da capacidade
explicativa do antigo sistema teológico. Esse vazio solicita imperiosamente a consciência a
ocupá-lo com um conteúdo novo, cuja novidade manifesta-se exatamente no distanciamento
do antigo conteúdo teológico, na instauração de uma nova estrutura do mundo.
Por sua vez, a compreensão da Modernidade, em relação ao fenômeno de
secularização/dessacralização, possui três interpretações que ganharam notoriedade entre os
estudiosos das formas de avaliação do novo na Modernidade e que dão primazia à tradição
teológica e julgam descobrir na novidade moderna a permanência de categorias teológicas
transformadas com relação ao seu sentido original.
A primeira destas interpretações pode ser classificada como “a leitura política” e foi
proposta pelo jurista e filósofo político alemão, Carl Schmitt (1888 – 1985), sobretudo no
livro Teologia Política, no qual declara: “Todos os conceitos centrais da moderna teoria do
Estado são conceitos teológicos secularizados” (SCHMITT, 2009, p.37). Nesta obra, escrita
em 1922, Schmitt desenvolve uma analogia entre a noção política de soberania e a noção
teológica de poder absoluto de Deus, tocando na legitimidade2 da Modernidade e na discussão
sobre o processo de secularização. Uma vez que se compreendam conceitos como
“secularização” ou “descristianização” como relativos ao “sagrado” ou ao “cristão” por eles
negado. O problema apresentado por Schmitt é originariamente de natureza teológica. “O
núcleo resistente da modernidade está, pois, como já antecipara Hobbes, no problema do
poder absoluto ou quase divino reivindicado pelo Estado moderno” (VAZ, 2012, p.20).
Conforme percebido por Schmitt, a ruptura acontece aqui ao se substituir a legitimação
transcendente ou trans-histórica do poder pela sua legitimação histórica ou imanente (o poder
outrora legitimado por Deus, agora é legitimado pelo Estado). Schmitt percebe, no Estado
moderno, a imanentização, na esfera do poder, da onipotência transcendente do Deus cristão.
“A leitura política da modernidade [...] descobre assim no mundo moderno a construção de
uma nova esfera do divino, homóloga à antiga esfera sacral, mas cujo centro é agora a
essência absolutizada do político na figura do Estado onipotente” (VAZ, 2012, p.20).
A segunda interpretação pode ser denominada de “a leitura historicista” e recebeu a
sua expressão mais conhecida de Karl Löwith (1897 – 1973). No livro O sentido da história,
Löwith (1991) interpreta o advento da Modernidade como transposição secularizada da
concepção bíblico-cristã da história. Ele expõe o modo como a concepção judaico-cristã está
subjacente nas modernas concepções de história. Segundo ele, a ideia de progresso, presente
nas teorias filosóficas sobre a história moderna, nasce da esperança bíblica no eschaton, isto é,
no cumprimento das promessas divinas.
Nessa transposição, o desígnio divino e a “economia” da história da salvação
são reescritos nas categorias da ideologia do progresso e inscritos na
historicidade profana na qual a razão emancipada toma o lugar da profecia.
A filosofia da história recolhe e transforma a herança da teologia da história
e torna-se a expressão intelectual mais adequada da essência da
modernidade, a saber: o reino do homem como realização efetiva do reino do
Espírito anunciado pela profecia. O novo na modernidade é, portanto,
2 Legitimidade da Modernidade deve ser compreendida aqui no sentido proposto por Hans Blumenberg (1920-
1996), sobretudo no livro A legitimidade dos tempos modernos. A posição defendida por Blumenberg será
apresentada mais adiante como oposta a de Carl Schmitt e a de outros autores que defendem a laicização de
conceitos teológicos na Modernidade.
tributário do antigo. Aquela que parece ser a iniciativa teórica mais original
da modernidade continua, assim, presa ao cosmos teológico medieval. Tal
situação levou Karl Löwith, nos seus últimos escritos, a remontar ao cosmos
natural dos gregos e à sua perfeita auto-suficiência como alternativa ao
antropocentrismo moderno (VAZ, 2012, p.21).
A terceira interpretação, denominada de “a leitura teológico-metafísica”, é elaborada
pelo historiador e filósofo Eric Voegelin (1901 – 1985). A concepção de Voegelin é exposta
em sua grande obra em 5 volumes, Ordem e história, e sua crítica da Modernidade é
apresentada principalmente no livro A nova ciência política (1982) e no quinto volume
inacabado e publicado postumamente de Ordem e história sob o título Em busca da ordem
(2010).
A leitura axiológica da modernidade proposta por Voegelin guiou-se por
uma categoria cuja primeira aparição histórica no mundo antigo permite
entender melhor, por meio de um procedimento analógico, a natureza da
modernidade: a categoria de gnose. A essência da gnose é a mensagem da
salvação pelo conhecimento (gnosis) como iniciativa própria do ser humano.
Na gnose antiga, o homem apodera-se do divino e desvenda por suas
próprias forças o mistério da sua transcendência. A gnose moderna diviniza
o gnóstico no círculo da imanência mundana e lhe confere a tarefa de
implantar o reino do Espírito (Voegelin evoca igualmente a profecia de
Joaquim de Fiore) como reino do mundo. Tal tarefa cumpre-se nos campos
da filosofia, da ética, da política, da vida social. Ela dá origem ao perfil dos
indivíduos típicos da modernidade: o intelectual, o político, o capitalista e o
trabalhador (VAZ, 2012, p.22).
Até aqui foi abordada uma descrição do objeto de pesquisa e dos problemas a ele
vinculados, bem como a explicitação da hipótese de que apesar do objeto de pesquisa se
constituir num fenômeno moderno possui vínculos com fenômenos oriundos de períodos
históricos anteriores na forma de uma versão secularizada destes fenômenos. Deve-se
acrescentar ainda que o trans ou pós-humanismo atua como insight que ilustra um fenômeno
moderno mais amplo, a presença inconsciente de noções religiosas em fenômenos modernos
que são claramente seculares e que não são reconhecidos em si mesmos como sendo
orientados por concepções religiosas implícitas. A escolha do trans-humanismo para ilustrar
este fenômeno se justifica pelo forte vínculo com a noção de técnica moderna e a
compreensão, devido ao seu caráter contingente, de que a técnica revela uma abertura no
tocante ao que possivelmente a humanidade poderá realizar no futuro.
Assim, no tocante a explicitar o problema que norteia esta pesquisa, pode-se elaborá-lo
da seguinte maneira: o que tem conduzido os pós-humanistas – na Modernidade, com um
discurso definido como secular, imanente, ancorado na racionalidade própria do
conhecimento científico – a construir o seu discurso repleto de elementos que representam um
modelo de pensamento religioso, utópico e transcendente?
E a partir disto, a seguinte hipótese foi formulada: diversas formas de pensamento na
Modernidade se constituem em versões secularizadas de modos de pensamento claramente
religiosos. E isto se deve ao fato de que tais versões secularizadas ocultam uma inconsciência
religiosa.
Os trans-humanistas acreditam que a ciência e a tecnologia irão redimir a humanidade.
Porém, o trans-humanismo preserva relações com um nível de pensamento extremamente
especializado e devido a isto não possui grande influência sobre as pessoas no cotidiano da
sociedade. Neste sentido, a influência desta forma de pensamento pode ser testemunhada em
pessoas que preservam relações mais próximas com os ambientes científicos e tecnológicos.
Isto serve como exemplo que demonstram a contribuição da ciência moderna para construção
de um imaginário futurista e revelador de fortes traços escatológicos.
A expressão que aparece no título desta pesquisa, “pós-humanismo enquanto uma
versão laicizada da ensomatose gnóstica”, deve ser entendida em termos analógicos. Assume-
se aqui que há uma possibilidade de analogia entre pós-humanismo e gnose. Isto se
fundamenta na compreensão de que analogia é um processo de identificação de significados
semelhantes entre dois objetos, um fonte e outro alvo. As analogias possuem imperfeições no
processo de comparação, não são idênticas e nem tão pouco possuem relação causal. Os
objetos comparados não precisam ser exatamente iguais para que preservem semelhança entre
si. Todavia para que não reste dúvidas no tocante a tese defendida aqui, o pós-humanismo
desempenha o papel de argumento que exemplifica o que está sendo defendido, o pensamento
moderno no que se refere a sua consciência secularizada traz consigo uma inconsciência
religiosa.
Dito isto, agora surge à necessidade de expor o método de pesquisa e de que forma
esta pesquisa está relacionada com a Sociologia. Devido ao seu caráter teórico, esta pesquisa,
em termos de coleta de dados, consiste numa pesquisa bibliográfica elaborada com base em
material já publicado sobre o problema proposto (tais como livros e revistas, teses,
dissertações, artigos em anais de eventos científicos, bem como material disponível na
internet nos sites de entidades que divulgam as ideias do movimento pós-humanista).
Sobre o enquadramento da pesquisa na área de Sociologia, como a pesquisa aborda o
pensamento pós-humanista, em sua relação com a ciência e técnica modernas, bem como o
modo de compreender o mundo e o ser humano como passíveis de intervenção e
aperfeiçoamento técnicos, entendendo que na essência desta forma de pensamento se oculta
uma lógica religiosa, que não pode ser percebida de imediato por estar implícita,
manifestando-se numa versão secularizada. Esta abordagem do objeto – tendo como enfoque
o fato de que o modo de conceber a realidade se fundamenta numa base histórica e social – é
algo que se vincula estreitamente com a abordagem da Sociologia do Conhecimento
(Wissenssoziologie). Pois em todos os enfoques desta se sustenta “a tese de que o pensamento
tem uma base existencial, tal que ele não é determinado de modo imanente, e um ou outro de
seus aspectos podem ser derivados de fatores extracognitivos” (MERTON, 2013, p.118) e que
como “teoria, procura analisar as relações entre conhecimento e existência; bem como
pesquisa histórico-sociológica, busca a origem das formas que essas relações têm assumido no
desenvolvimento intelectual da humanidade” (MANNHEIM, 1952, p.245).
A sociologia do conhecimento é, por um lado, uma teoria, e por outro um
método de pesquisa histórico-sociológico. Como teoria, pode assumir duas
formas. Em primeiro lugar, é uma investigação puramente empírica,
mediante a descrição e a análise estrutural, das maneiras pelas quais as
relações sociais influenciam, na realidade, o pensamento. Pode passar, em
segundo lugar, a uma indagação epistemológica sobre a significação dessas
relações para o problema da validade. Importa notar que esses dois tipos de
indagação não estão necessariamente ligados entre si e que podemos aceitar
os resultados empíricos sem sermos levados às conclusões epistemológicas.
[...] De acordo com esta classificação e deixando de lado, tanto quanto
possível, as inferências epistemológicas, apresentaremos a sociologia do
conhecimento como uma teoria da determinação social ou existencial do
pensamento real (MANNHEIM, 1952, p.247).
O termo “sociologia do conhecimento” (wissenssoziologie) foi forjado por Max
Scheler na década de 20 na Alemanha, ele elaborou a formulação básica da Sociologia do
Conhecimento num ensaio intitulado Probleme einer Soziologie des Wissens, originalmente
publicado em 1924 (BERGER; LUCKMANN, 2014, p.14). Como a maior parte das
investigações nesse campo concernem aos fatores socioculturais que influenciam o
desenvolvimento de crenças e opiniões, mais do que o conhecimento positivo, o termo
wissens (conhecimento) deve ser interpretado de modo muito amplo, como referido às ideias e
ao pensamento social em geral e não nas ciências físicas, exceto quando expressamente
indicado (MERTON, 2013, p.95). Ou seja:
O termo ‘conhecimento’ precisa ser interpretado de forma bastante ampla, já
que os estudos nessa área lidam, virtualmente, com a gama total de produtos
culturais (ideias, ideologias, crenças jurídicas e éticas, filosofia, ciência,
tecnologia) (MERTON, 2013, p.109).
Embora Scheler tenha cunhado o termo “sociologia do conhecimento”
(wissenssoziologie), o seu interesse por esta disciplina e pelas questões sociológicas em geral
foi um episódio em sua carreira filosófica. Este tinha o objetivo de estabelecer uma
antropologia filosófica que transcendesse a relatividade dos pontos de vistas específicos
histórica e socialmente localizados. Assim, a Sociologia do Conhecimento serviria como
instrumento para alcançar este propósito, contribuindo para esclarecer e afastar as
dificuldades levantadas pelo relativismo, de modo que a verdadeira tarefa filosófica pudesse ir
adiante. Deste modo, Scheler subordina a Sociologia do Conhecimento a seus propósitos
filosóficos específicos (BERGER; LUCKMANN, 2014, p.19).
A tarefa de contribuir para formulação da Sociologia do Conhecimento que marcou a
sua transposição estreitamente sociológica coube a outro precursor desta disciplina, o também
alemão Karl Mannheim, que publica em 1929 o livro Ideologie und Utopie. Mannheim
(1929/1952) expõe que a tese principal da Sociologia do Conhecimento é a que afirma a
existência de modos de pensamento incapazes de ser adequadamente compreendidos
enquanto permanecerem obscuras as suas origens sociais. Assim, a Sociologia do
Conhecimento procura compreender o pensamento dentro da moldura concreta de uma
situação histórico-social, de que o pensamento individualmente diferenciado emerge
gradualmente. Deste modo, não são os homens, em geral, que pensam, nem mesmo os
indivíduos isolados, mas os homens dentro de certos grupos que elaboram um estilo peculiar
de pensamento graças a uma série interminável de reações a certas situações típicas,
características de sua posição comum. Para Mannheim, o reconhecimento de que o
pensamento é histórico e socialmente condicionado é difícil enquanto este fato permanece
inconsciente. Devido a isto uma das conquistas fundamentais da Sociologia do Conhecimento
é haver percebido que o processo pelo qual os motivos coletivos inconscientes se tornam
conscientes não pode operar em qualquer época, mas só em uma situação muito especial
sociologicamente determinável. Do ponto de vista sociológico, a mudança decisiva só ocorre
quando chega ao estágio de desenvolvimento histórico em que as camadas previamente
isoladas começam a se comunicar entre si, estabelecendo certa circulação social. Alcança-se a
fase mais significativa dessa comunicação quando as formas de pensamento e experiência, até
então desenvolvidas independentemente, penetram numa mesma consciência, levando o
espírito a descobrir a incompatibilidade das concepções antagônicas do mundo.
Diante do exposto, esta pesquisa será desenvolvida aqui, em primeiro lugar, através da
apresentação da base existencial com a qual se relaciona o pensamento pós-humano, o
ambiente histórico-social gerado pelo que se compreende como Modernidade Técnica. Esta
discussão será desenvolvida no primeiro capítulo. Em segundo lugar, conforme já citado
acima, proceder-se-á o tratamento mais detalhado dos aspectos teóricos que envolvem o
problema do advento da Modernidade e de modo mais específico do conceito de
secularização. Algo que consiste em discutir se a Modernidade deve ser compreendida, em
termos de legitimidade ou de secularização. Assim, esclarecendo de que forma se dá a
influência de pensar oriundo da gnose sobre a Modernidade e mais especificamente sobre o
pensamento pós-humanista. Isto será realizado no segundo capítulo que versará sobre os
aspectos filosóficos do conceito de secularização. Em terceiro lugar, para cumprir o papel de
expor, os aspectos sociológicos do conceito de secularização, o terceiro capítulo tratará sobre
as questões relacionadas com a secularização enquanto problema sociológico. E, por fim, em
quarto lugar, a tarefa de expor aspectos do pensamento pós-humanista que o caracterizam
como um eschaton tecnognóstico será concretizada no quarto capítulo.
Em fim, em termos de estrutura e exposição das ideias, o texto está organizado de
acordo com uma lógica que parte de questões gerais até alcançar questões mais particulares
relacionadas ao objeto. O primeiro capítulo, ao expor a base existencial de onde emerge o
pensamento pós-humanista, lidará com um quadro mais geral. Por sua vez, o segundo
capítulo, ao discorrer sobre os conceitos de secularização e de legitimidade aplicados ao modo
como a Modernidade se relaciona com o período anterior, lidando com uma dialética entre
continuidade e descontinuidade, na busca de compreender como isto ocorre, se em termos de
uma ruptura radical, fazendo emergir algo totalmente novo (legitimado pela sua própria
vigência histórica como desvalorização do antigo, tido como obsoleto), ou em termos de uma
ruptura ocorrida no interior do universo simbólico antigo-medieval que atingiu sua estrutura
teológica, traduzindo-se em completa inversão da direção das linhas mestras que orientavam
para a transcendência a ordem dos símbolos, assim, nesse movimento de inversão o novo
permanece em dependência estrutural do antigo, e sua novidade é fortemente relativizada. No
terceiro capítulo, será abordado o conceito de secularização enquanto problema da Sociologia,
uma vez que o capítulo dois se ocupou com questões filosóficas em torno deste conceito.
Consequentemente, no quarto capítulo, será explorada a relação analógica entre pós-
humanismo e gnosticismo. Este capítulo, ao expor os elementos que caracterizam o
pensamento gnóstico e a sua importante influência na formação das ideias no Ocidente,
aproxima o leitor dos conceitos teológicos que foram secularizados na Modernidade, ao
mesmo tempo, que possibilita maior aproximação do exemplo, em análise, nesta pesquisa, o
pensamento pós-humano. Este último descrito como análogo a gnose e repleto de
desdobramentos que descrevem uma lógica escatológica gnóstica.
CAPÍTULO 1
CORPO E PÓS-HUMANISMO: A MODERNIDADE TÉCNICA COMO BASE
EXISTENCIAL DO PENSAMENTO PÓS-HUMANISTA
Um ponto central de acordo em todos os enfoques da Sociologia do Conhecimento é a
tese de que o pensamento tem uma base existencial. É devido a isto que Karl Mannheim
(1952, p.2) afirma: “A tese principal da sociologia do conhecimento é a que afirma a
existência de modos de pensamento incapazes de ser adequadamente compreendidos
enquanto permanecerem obscuras as suas origens sociais”. Algo semelhante foi afirmado por
Robert Merton (2013, p.115): “A sociologia do conhecimento surgiu com a hipótese
sinalizadora de que mesmo as verdades deveriam ser consideradas socialmente explicáveis,
deveriam ser relacionadas à sociedade histórica na qual emergiram”.
Mannheim (1952), discorrendo sobre o conceito sociológico de pensamento, enumera
duas características do método da Sociologia do Conhecimento: primeira, esta não parte do
indivíduo isolado e de seu pensamento, pelo contrário, “a sociologia do conhecimento procura
compreender o pensamento dentro da moldura concreta de uma situação histórico-social, de
que o pensamento individualmente diferenciado emerge mui gradualmente”; e segunda,
“evitar separar os modos de pensamento concretamente existentes do contexto de ação
coletiva através da qual, pela primeira vez, descobrimos intelectualmente o mundo”. Esta
última característica toca na relação entre pensamento e ação coletiva, sobre isto, Mannheim
(1952, p.3-4) afirma:
Os componentes de um grupo não se limitam a coexistir fisicamente como
unidades distintas. Não abordam o mundo objetivo nos níveis abstratos de
um espírito contemplativo em si, nem o fazem exclusivamente como seres
solitários. Pelo contrário, cooperam e competem em grupos diversamente
organizados e, assim fazendo, ora pensam em comum, ora antagonicamente.
Os indivíduos reunidos em grupo forcejam, segundo o caráter e a posição
dos grupos a que pertencem, por modificar o mundo circundante da natureza
e da sociedade, ou procuram perpetuá-lo em uma dada condição. É a direção
dessa vontade de mudar ou de conservar, dessa atividade coletiva, em suma,
que fornece o fio orientador ligado ao aparecimento de seus problemas, seus
conceitos e suas formas de pensamento. De acordo com o contexto particular
da atividade coletiva de que participam, os homens propendem a ver
diferentemente o mundo que os rodeia. Do mesmo modo que a pura análise
lógica separou o pensamento individual de sua situação dentro de um grupo,
também separou o pensamento da ação. E fê-lo baseando-se na suposição
tácita de que essas conexões inerentes e sempre existentes na realidade, entre
o pensamento, de um lado, e do outro o grupo e a atividade, ou eram
insignificantes para o pensamento “correto” ou destacáveis dessas
fundações, sem que daí resultasse qualquer dificuldade. Mas o ignorar uma
coisa não a elimina; nem pode pessoa alguma, que não se tenha consagrado
de corpo e alma à observação exata da riqueza de formas sob que os homens
efetivamente pensam, decidir a priori se esta segregação da situação social e
do contexto de atividade é sempre realizável. Nem tampouco pode-se
afirmar imediatamente que uma dicotomia tão completa seja desejável,
precisamente no interesse do conhecimento objetivo dos fatos.
Para Mannheim (1952), motivações e pressuposições inconscientes oriundas do
contexto social geram modos de pensamento. E não foi acidental o fato de que somente no
contexto moderno o inconsciente – que sempre motivou o pensamento e a atividade – tenha
gradualmente sido elevado ao nível de consciência, tornando-se acessível ao controle
intelectual.
De nada nos valeria reconhecer a importância do inconsciente para o nosso
problema, se não reconhecêssemos igualmente que foi uma situação social
específica que nos impeliu a refletir sobre as raízes sociais de nosso
conhecimento. Uma das conquistas fundamentais da sociologia do
conhecimento é haver percebido que o processo pelo qual os motivos
coletivos inconscientes se tornam conscientes não pode operar em qualquer
época, mas só em uma situação muito especial, sociologicamente
determinável (MANNHEIM, 1952, p.5).
Deste modo, para Mannheim (1952, p.6), “a multiplicidade de modos de pensar não
pode constituir um problema em épocas em que a estabilidade social sustenta e garante a
unidade interna de uma concepção do mundo.” Nesta perspectiva da multiplicidade de modos
de pensar, é que a Modernidade torna-se importante para trazer a consciência de que os
homens pensam dentro de certos grupos, a partir de situações sociais específicas.
Do ponto de vista sociológico, o fato decisivo dos tempos modernos, em
oposição à situação medieval, é que esse monopólio da interpretação
eclesiástica do mundo, exercido pela casta sacerdotal, deixou de existir e, em
lugar de uma casta fechada e completamente organizada de intelectuais,
surgiu uma camada de intelectuais livres. Seu principal característico é o de
ser recrutada, em proporções crescentes, em camadas sociais e situações de
vida sujeitas a variações incessantes, e o de seus modos de pensar não mais
estarem sujeitos ao controle de uma organização tipo casta. Devido à
ausência de uma organização social própria, os intelectuais permitiram que
todas as modalidades de pensamento e de experiência entrassem em
competição aberta no mundo mais amplo das demais camadas
(MANNHEIM, 1952 p.10-11).
Max Scheler (apud MERTON, 2013, p.121-122), tratando sobre a base existencial,
estabelece uma distinção entre a sociologia cultural e o que chama de sociologia dos fatores
reais (realsoziologie). Segundo ele, os dados culturais são ‘ideais”, no domínio das ideias e
dos valores; os “fatores reais” são orientados para mudanças efetivas na realidade da natureza
ou da sociedade, assim os primeiros são definidos por objetivos ou intenções ideais, os
últimos derivam de uma estrutura de impulso. Em outras palavras, as ideias, enquanto tal, não
têm inicialmente efetividade social, as ideias quanto mais puras maior a sua impotência. Pois
estas não se tornam efetivas em desenvolvimentos culturais a não ser que se liguem, de certo
modo, a interesses, impulsos, emoções ou tendências coletivas e sua incorporação em
estruturas institucionais. Ou seja, se as ideias não estiverem baseadas no desenvolvimento
iminente de fatores reais, elas estão condenadas a se tornarem utopias estéreis.
Assim, a busca por compreender o pensamento dentro de uma moldura concreta de
uma situação histórico-social ganha relevância. Tendo isto em mente, este capítulo busca
consumar o propósito de expor elementos que esclarecem a situação histórico-social na qual
floresce o imaginário pós-humano, isto através da apresentação de onde está localizada a base
existencial das produções mentais deste pensamento específico. Porém o capítulo faz uma
apresentação panorâmica, ampla, do contexto histórico-social, destacando elementos
associados ao modo de conceber o corpo e consequentemente o ser humano em contexto
moderno que ajudarão a elucidar o entendimento sobre a situação na qual emerge o modo de
pensar pós-humano.
1.1 O corpo como construção social?
Inicialmente, depara-se com a necessidade de se definir em qual sentido o corpo está
sendo objeto de reflexão aqui. Em outros termos, sem negar a realidade do corpo em sua
dimensão biológica, definir qual representação ou qual conceito de corpo socialmente
construído está sendo alvo de análise.
Antes de esclarecer qual concepção de corpo social ou culturalmente construída será
abordada, está posta outra necessidade. A necessidade de explicitar que ao fazer referência a
questões que envolvem construção ou desconstrução no âmbito das Ciências Sociais não
esquecer o livro de Peter Berger e Thomas Luckmann, A construção social da realidade,
escrito na década de sessenta. Neste texto, os autores afirmam “que a realidade é construída
socialmente e que a sociologia do conhecimento deve analisar o processo em que este fato
ocorre” (2014, p.11). No mesmo contexto desta afirmação, relacionando os termos
“realidade” e “conhecimento”, os autores declaram:
Para nossa finalidade será suficiente definir “realidade” como uma qualidade
pertencente a fenômenos que reconhecemos terem um ser independente de
nossa própria volição (não podemos “desejar que não existam”), e definir
“conhecimento” como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem
características específicas. É neste sentido (declaradamente simplista) que
estes termos têm importância tanto para o homem da rua quanto para o
filósofo. O homem da rua habita um mundo que é “real” para ele, embora
em graus diferentes, e “conhece”, com graus variáveis de certeza, que este
mundo possui tais ou quais características (BERGER; LUCKMANN, 2014,
p.11).
Assim, Berger e Luckmann compreendem que a relação entre “realidade” e
“conhecimento” se relaciona com a forma como a realidade é compreendida pelo sujeito, em
sociedade. E há uma multiplicidade de compreensões da realidade nas sociedades humanas,
sendo também necessário não ignorar o fato da relatividade social presente nesta relação. Esta
relatividade conecta-se ao entendimento de que indivíduos de diferentes sociedades ou épocas
diferentes concebem a realidade de formas diferentes. Isto faz com que sejam consideradas
relações específicas da “realidade” e do “conhecimento” a partir de contextos sociais
específicos.
Em outras palavras, uma “sociologia conhecimento” terá de tratar não
somente da multiplicidade empírica do “conhecimento” nas sociedades
humanas, mas também dos processos pelos quais qualquer corpo de
“conhecimento” chega a ser socialmente estabelecido como “realidade”.
Nosso ponto de vista, por conseguinte, é que a sociologia do conhecimento
deve ocupar-se com tudo aquilo que passa por “conhecimento” em uma
sociedade, independentemente da validade ou invalidade última (por
quaisquer critérios) desse “conhecimento”. E na medida em que todo
“conhecimento” humano desenvolve-se, transmite-se e mantém-se em
situações sociais, a sociologia do conhecimento deve procurar compreender
o processo pelo qual isto se realiza, de tal maneira que uma “realidade”
admitida como certa solidifica-se para o homem da rua. Em outras palavras,
defendemos o ponto de vista que a sociologia do conhecimento diz respeito
à analise da construção social da realidade (BERGER; LUCKMANN,
2014, p.13-14).
Apesar de afirmarem que a realidade é socialmente construída, Berger e Luckmann
não devem ser incluídos entre os construtivistas radicais, tão comuns atualmente. Pois a
própria estrutura do livro revela que os autores possuem uma posição equilibrada no tocante a
esta questão da “construção da realidade”. Este equilíbrio está claramente demonstrado,
quando estes, não deixando de mencionar a “a sociedade como realidade subjetiva” (terceira
parte do livro), discorrem também sobre “a sociedade como realidade objetiva” (segunda
parte do livro). Neste sentido, fundamentados em avaliações numa perspectiva biológica
segundo a antropologia filosófica (tomam como referência no debate Helmuth Plessner,
Arnold Gehlen e Max Scheler, impotantes autores da antropologia filosófica alemã desde a
década de 20). Assim os autores marcam o seu distanciamento de qualquer tipo de
“construtivismo radical”. Em outros termos, Berger e Luckmann reconhecem que os seres
humanos, diferenciando-se dos animais, não vivem em mundos fechados com estruturas
predeterminadas pelo equipamento biológico como é o caso das diversas espécies animais.
Pelo contrário, os seres humanos se relacionam com o seu ambiente pela “abertura para o
mundo”, cujas implicações antropológicas do termo “abertura para o mundo” foram
desenvolvidas por Plessner e Gehlen. Neste contexto, Berger e Luckmann (2014, p.70),
importando de Gehlen o conceito de “constantes antropológicas”, afirmam:
A humanização é variável em sentido sociocultural. Em outras palavras, não
existe natureza humana no sentido de um substrato biologicamente fixo, que
determine a variabilidade das formações socioculturais. Há somente a
natureza humana, no sentido de constantes antropológicas (por exemplo,
abertura para o mundo e plasticidade da estrutura dos instintos) que delimita
e permite as formações socioculturais do homem. Mas a forma específica em
que esta humanização se molda é determinada por essas formações
socioculturais, sendo relativa às suas numerosas variações. Embora seja
possível dizer que o homem tem uma natureza, é mais significativo dizer que
o homem constrói sua própria natureza, ou, mais simplesmente, que o
homem se produz a si mesmo.
Berger e Luckmann, ao longo do texto, esclarecem o que compreendem por
“construção social da realidade” ao expor o homem nos seus limites biológicos e sociais.
Assim esclarecem que nesses limites variações são possíveis no decorrer da história e deste
modo distinguem épocas e culturas.
Os seres humanos não vivem em mundos fechados com estruturas predeterminadas
pelo equipamento biológico, mas produzem-se a si mesmos, algo já citado acima, porém os
autores esclarecem:
A autoprodução do homem é sempre necessariamente um empreendimento
social. Os homens em conjunto produzem um ambiente humano, com a
totalidade de suas formações socioculturais e psicológicas. Nenhuma dessas
formações pode ser entendida como produto da constituição biológica do
homem, a qual, conforme indicamos, fornece somente os limites externos da
atividade produtiva humana. Assim como é impossível que o homem isolado
se desenvolva como homem no isolamento, igualmente é impossível que o
homem isolado produza um ambiente humano. O ser humano solitário é um
ser no nível animal (que, está claro, o homem partilha com outros animais).
Logo que observamos fenômenos especificamente humanos entramos no
reino social. A humanidade específica do homem e sua socialidade estão
inextrincavelmente entrelaçadas. O Homo sapiens é sempre, e na mesma
medida, homo socius (BERGER; LUCKMANN, 2014, p.72-73).
“Os homens em conjunto produzem um ambiente humano”, as formações
socioculturais não podem ser compreendidas “como produto da constituição biológica do
homem”, porém esta constituição biológica fornece “os limites externos da atividade
produtiva humana”. No contexto desta discussão, Berger e Luckmann (2014, p.73-74)
acrescentam:
Empiricamente a existência humana decorre em um contexto de ordem,
direção e estabilidade. Surge, então, a seguinte questão: de que deriva a
estabilidade da ordem humana empiricamente existente? A resposta pode ser
dada em dois níveis. É possível indicar primeiramente o fato evidente de que
uma dada ordem social precede qualquer desenvolvimento individual
orgânico. Isto é, a ordem social apropria-se previamente sempre da abertura
para o mundo, embora esta seja intrínseca à constituição biológica do
homem. É possível dizer que a abertura para o mundo, biologicamente
intrínseca, da existência humana é sempre, e na verdade deve ser,
transformada pela ordem social em um relativo fechamento ao mundo.
Embora este enclausuramento nunca possa aproximar-se do fechamento da
existência animal, quando mais não seja por causa de seu caráter
humanamente produzido e por conseguinte “artificial”, é capaz, contudo, na
maioria das vezes, de assegurar a direção e a estabilidade para maior parte da
conduta humana.
Berger e Luckmann deixam claramente explícito que a ordem social é produto humano
e resultante da abertura para o mundo que é intrínseca à constituição biológica. A ordem
social é produzida pelo homem no curso de sua contínua exteriorização e não é dada
biologicamente.
Embora os produtos sociais da exteriorização humana tenham um caráter sui
generis, por oposição a seu contexto orgânico e ambiental, é importante
acentuar que a exteriorização enquanto tal é uma necessidade antropológica.
O ser humano é impossível em uma esfera fechada de interioridade
quiescente. O ser humano tem de estar continuamente se exteriorizando na
atividade. Esta necessidade antropológica funda-se no equipamento
biológico do homem. A inerente instabilidade do organismo humano obriga
o homem a fornecer a si mesmo um ambiente estável para sua conduta. O
próprio homem tem de especializar e dirigir seus impulsos. Estes fatos
biológicos servem de premissas necessárias para a produção da ordem social.
Em outras palavras, embora nenhuma ordem social existente possa ser
derivada de dados biológicos, a necessidade da ordem social enquanto tal
provém do equipamento biológico do homem (BERGER; LUCKMANN,
2014, p.74-75).
Neste contexto, afirmar que o corpo é algo socialmente construído é uma atitude que
requer cautela. Pois com este gesto invade-se o terreno movediço do debate entre a natureza e
a cultura (LÉVI-STRAUSS, 2011). Quando isto é realizado, lida-se com os riscos envolvidos
de realizar a tentativa de determinação dos limites entre uma e outra, o problema da passagem
de uma para outra. Reconhece-se isto no fato de que o homem é um ser biológico, ao mesmo
tempo que é um indivíduo social.
É que a cultura não pode ser considerada nem simplesmente justaposta nem
simplesmente superposta à vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em
outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova
ordem (LÉVI-STRAUSS, 2011, p.40).
O corpo é um fenômeno biológico, mas também submetido ao crivo do imaginário
social. Desta forma, não é incomum que existam várias abordagens antropológicas e
sociológicas sobre o corpo, e que se pense o corpo como uma construção social e cultural, e
não somente como um dado natural. Neste sentido, as Ciências Humanas desnaturalizam o
que é visto como dado pela natureza — seja isso uma regra de comportamento e de
classificação social, seja a própria noção de corpo — e mostram as dimensões sociais e
simbólicas desses fenômenos. Esse ponto de partida é importante na medida em que muitas
vezes o “corpo” é tomado, mesmo por estudiosos e pesquisadores no campo das Ciências
Humanas, como o reduto da natureza em um ser humano genérico, obedecendo a instintos e
necessidades biológicas, e não também como produto e produtor de regras e valores culturais.
A literatura antropológica e sociológica tem mostrado como esse é apenas um dos
“paradigmas fundamentais” das representações sobre o corpo, mas não é o único.
Há tantas concepções de corpos quanto diferentes sociedades existem e quanto mais
complexa for uma determinada sociedade tanto mais noções de corpo haverá nela, uma vez
que é no reservatório do imaginário social, denominado corpo, que estão inseridas todas as
representações que identificam o indivíduo e sua relação com a sociedade. O corpo, matéria
simbólica e ao mesmo tempo objeto concreto carregado de práticas e discursos sociais,
engendra constantes transformações culturais, merecendo, portanto, seu lugar próprio de
estudo, não através de um enfoque que até então foi oferecido à sua análise, pois este consistia
simplesmente em limitá-lo a um papel secundário na investigação sociológica.
Conforme David Le Breton (2010), o percurso trilhado, no tocante a reflexão sobre a
corporeidade no ambiente das Ciências Sociais, pode ser exposto através de três momentos
fortes que descrevem três maneiras de encarar o tema e que ainda hoje persistem na
Sociologia.
O primeiro momento é o de uma “sociologia implícita do corpo” que, embora não
negligencie a profundidade carnal do homem, não se detém verdadeiramente nela. Esta
formulação caracteriza, sobretudo, o início das Ciências Sociais. Como exemplo disto, há
numerosas pesquisas sociais que apontam a miséria física das classes trabalhadoras, a
insalubridade e a exiguidade das moradias, a vulnerabilidade às doenças, o recurso ao álcool,
à prostituição frequentemente inevitável das mulheres, o aspecto miserável dos trabalhadores,
a terrível condição das crianças obrigadas a trabalhar desde muito novas. Como exemplos
deste tipo de pesquisas, há o quadro da classe trabalhadora elaborado por Engels em A
situação da classe laboriosa na Inglaterra (1845) ou a análise da condição corporal do
homem no trabalho feita por Marx em O capital (1867). Estes trabalhos possuem objetivos
mais urgentes do que o de pensar o corpo de maneira metódica, no entanto contém a primeira
condição para a abordagem sociológica do corpo. Corpo que não foi pensado somente do
ponto de vista biológico, mas como uma forma moldada pela interação social. Nestas
pesquisas, a corporeidade não é objeto de estudo à parte, está implícita nos indicadores
ligados aos problemas de saúde pública ou de relações específicas do trabalho.
O segundo momento é o de uma “sociologia pontilhada” que proporciona sólidos
elementos de análise relativos ao corpo, mas não sistematiza a reunião dos mesmos. No artigo
As técnicas corporais (1936), Marcel Mauss, através da comparação entre culturas diferentes,
mostra como as “técnicas corporais” (os modos de caminhar, dormir, nadar, parir, sentar,
comer) variam de uma cultura para outra. Ele sugere que essas técnicas podem ser abordadas
como um “fato social total”, um fenômeno que engloba diferentes dimensões da experiência
social e individual (incluindo o psicológico e o social, além do biológico). Esses atos serão
descritos a partir do conceito de habitus, definido por Mauss como produto da “razão prática”
coletiva e individual, variando socialmente e historicamente. Depois de expor formas
diferentes de classificar os atos e as posturas corporais (sexo, idade, rendimento, transmissão
das técnicas, os diversos momentos da história pessoal, etc.), Mauss conclui discutindo a forte
“causa sociológica” para esses atos comandados pelo social e cujas técnicas teriam como
objetivo o controle do corpo (inibindo os movimentos desordenados). As técnicas corporais
— segundo Mauss, as maneiras como os seres humanos sabem servir-se de seus corpos —
fazem parte das representações coletivas, são formas pelas quais a vida social se inscreve e se
utiliza desse “mais natural instrumento” de que dispõe o ser humano, o seu corpo.
E o terceiro momento é o da “sociologia do corpo” que se inclina mais diretamente
sobre o corpo, estabelece as lógicas sociais e culturais que sobre ele se propagam. Neste
momento, evidencia-se a designação de que o corpo traduz de imediato um fato do imaginário
social. De uma sociedade para outra, a caracterização da relação do homem com o corpo são
dados culturais com variabilidade imensa. Múltiplas abordagens etnográficas têm descrito
concepções variadas da pessoa e do corpo. Em diversas sociedades, a noção de corpo não é
delimitada pelo corpo físico ou biológico, estendendo-se para além deste. Assim como em
muitas cosmologias específicas, o corpo pode sofrer todo tipo de metamorfose, deslocamentos
de tempo e de espaço, que as concepções científicas modernas não admitiriam. Há ainda uma
vasta discussão sobre a simbólica do corpo, suas partes, o interior e o exterior, os fluídos
corporais, que se articulam com diferentes representações do puro e do impuro, das
obrigações e interdições, e que demarcam diferentes concepções do corpo na cultura.
Deste modo, deve-se concluir que o corpo não é somente um fenômeno biológico
como exposto pelo saber biomédico, pelos estudos anatômicos e fisiológicos, mas também
uma construção simbólica, cultural, fato comprovado pelas diferentes concepções de corpo
que podem ser encontradas, quando se estuda o corpo sob um enfoque cultural, observando-se
o modo como cada cultura constrói as suas representações sociais do corpo, o modo como
este é simbolizado, os significados que adquire para cada indivíduo e sociedade.
1.1.1 Concepção moderna de corpo
As transformações que produziram a moderna concepção de corpo devem ser
consideradas, sem ignorar, como o corpo era concebido no período medieval, o modo como
esta noção de corpo alimentou imaginários, contribuiu para formação da sociedade medieval.
Assim, salientam Le Goff e Truong (2010, p.35) que, na Idade Média, o corpo é o lugar de um
paradoxo: “Por um lado, o cristianismo não cessa de reprimi-lo. ‘O corpo é a abominável
roupa da alma’, diz o papa Gregório, o Grande. Por outro, ele é glorificado, sobretudo por
meio do corpo padecente de Cristo, sacralizado na Igreja, corpo místico de Cristo.” Este
paradoxo se fortalece cada vez mais na proporção que o pecado original é transformado, na
Idade Média, em pecado sexual, isto na mesma proporção que se compreende que Cristo se
encarnou, fez-se homem para redimir os homens de seus pecados.
O corpo, porém, que é contido pela ideologia anticorporal do Cristianismo
institucionalizado, nas práticas populares, resiste à sua repressão. Isto faz com que a vida
cotidiana dos homens da Idade Média oscile entre a Quaresma e o Carnaval. “De um lado, o
magro, do outro, o gordo. De um lado, o jejum e a abstinência, do outro, banquetes e gula”
(LE GOFF; TRUONG, 2010, p.35).
A abstinência e o jejum dão o ritmo, portanto, do “homem medieval”. O
domínio do corpo é acompanhado do domínio do tempo, que, como o
espaço, é uma categoria fundamental da sociedade hierarquizada da Idade
Média [...] Nas representações sociais, a Terça-Feira Gorda é o dia de
carnaval pois precede a Quarta-Feira de Cinzas, que inaugura o período de
jejum. O Carnaval chega a ser personificado e se torna um personagem
popular, assim como seu contrário, a “velha Quaresma” e seu cortejo de
penitentes (LE GOFF; TRUONG, 2010, p. 58).
Em meio a este paradoxo entre a recusa do corpo e a encarnação, o corpo se revestiu,
na Idade Média, de simbolismo espiritual e de significado social, ocupando um lugar
relevante no imaginário das pessoas, tendo implicações para o modo como a sociedade se
organizava. Por exemplo, “as três ordens que compõem a sociedade tripartite medieval,
oratores (aqueles que rezam), bellatores (aqueles que combatem) e laboratores (aqueles que
trabalham), são em parte definidas por sua relação com o corpo” (LE GOFF; TRUONG,
2010, p.35).
Esta tensão entre o corpo glorificado e o corpo reprimido expande também o seu
simbolismo para o significado do trabalho manual na Idade Média, que oscila entre o castigo
e a criação, simultaneamente desprezado e valorizado. Como testemunho disto, a história
linguística da Idade Média apresenta duas palavras para o trabalho, opus e labor. Opus (a
obra) é o trabalho criador, o vocábulo que define o trabalho divino, o ato de criar o mundo e o
homem à sua imagem. Desse termo derivará operari (criar uma obra), operarius (aquele que
cria). Por sua vez, labor (a pena), o labor, o trabalho laborioso que se situa do lado do erro e
da penitência. Assim, os ofícios na Idade Média não escapam a esse duplo movimento de
valorização e desvalorização (LE GOFF; TRUONG, 2010, p.64-65).
Além desta tensão entre o corpo glorificado e o corpo reprimido, há tensão entre o alto
e o baixo, a cabeça e o ventre. “Corrigindo a tradição filosófica antiga, a Idade Média
repousa, na realidade, mais sobre a oposição entre o alto e o baixo, o interior e o exterior, do
que sobre a divisão entre a esquerda e a direita” (LE GOFF; TRUONG, 2010, p.75). O corpo
é separado entre as partes nobres (a cabeça, o coração) e ignóbeis (o ventre, as mãos, o sexo).
A cabeça está do lado do espírito; o ventre, do lado da carne (LE GOFF; TRUONG, 2010,
p.76).
No tocante ao simbolismo espiritual do corpo, compreenda-se a relação dialética entre
o corpo e a alma, pois não foi a Idade Média que operou a separação radical entre corpo e
alma, mas a razão clássica do século XVII. No período medieval, a forma como a relação
corpo-alma foi concebida oscilava entre o pensamento de Platão sobre a alma preexistir ao
corpo – algo que irá alimentar em ascetas cristãos como Orígenes certo desprezo pelo corpo –,
e o pensamento de Aristóteles, segundo o qual a alma é a forma do corpo (hilomorfismo).
Etienne Gilson e Philotheus Boehmer (2009, p.469) discorrendo sobre o pensamento de
Tomás de Aquino a respeito desta questão, explica: “A alma é uma forma espiritual
essencialmente apta a se unir a um corpo; ou, mais precisamente: é um princípio racional que
necessita de um corpo para exercer suas operações próprias”.
Esta maneira de compreender a relação corpo-alma terá implicações para o campo da
saúde, o modo como se compreende as enfermidades que afetam o corpo, o papel
desempenhado pela alma nestas situações.
Mas para o homem da Idade Média, tanto nas civilizações cristãs quanto no
mundo islâmico, não era possível separar os acontecimentos corporais de sua
significação espiritual. Concebia-se a relação entre a alma e o corpo de uma
maneira tão estreita e imbricada que a doença era necessariamente uma
entidade psicossomática (LE GOFF; TRUONG, 2010, p.108).
Por isto que a medicina medieval não ignorava esta dinâmica espiritual que envolvia o
corpo. “Na Idade Média, o corpo em si não existe. Ele é sempre penetrado pela alma. Ora, sua
saúde é predominante. Assim, a medicina é antes de tudo uma medicina da alma, que passa
pelo corpo sem jamais reduzir-se a ele” (LE GOFF; TRUONG, 2010, p.116).
A hipótese é esclarecedora, pois permite compreender esse duplo movimento
de exaltação e distanciamento da medicina científica. A partir do momento
em que é preciso cuidar do corpo tendo em vista a salvação, o recurso ao
milagre se mostra fértil. Primado do corpo, mas primado da alma a ser salva
do pecado. Assim, “se a Idade Média contribuiu muito pouco para a
elaboração do modelo médico da doença, ela valorizou seu sofrimento.
Ligando a etiologia da doença ao pecado, fez da doença uma via de
redenção”.
Será preciso aguardar um novo contexto ideológico para que a medicina
entre em um processo científico determinante para o corpo dos homens, com
o risco de subtrair-lhe sua dimensão espiritual e simbólica: o século XVII
(LE GOFF; TRUONG, 2010, p.117).
Esta concepção do corpo (na qual alma e corpo estão dialeticamente relacionados,
onde não se ignora a influência de uma esfera transcendente sobre a realidade imanente, onde
matéria e espírito se influenciam mutuamente) o encara como uma entidade em conexão com
o cosmo, afetando-o e sendo afetado por ele. Le Breton (2011, p.50-51) extrai alguns
exemplos do livro Les évangilles des quenouilles (um apanhado de saberes tradicionais de
mulheres, publicado em 1480, em Bruges, no qual se encontra um repertório organizado de
crenças sobre a doença, a vida cotidiana, a educação das crianças, os remédios, o corpo
humano) que ilustram a forma como se compreendia o homem envolto num tecido holista no
qual tudo está em inter-relação, onde um gesto qualquer, consciente ou de forma inadvertida,
afeta o cosmo e desencadeia forças, causalidades singulares. Eis alguns exemplos: “se alguém
urina entre duas casas ou contra o sol, adquire o mal dos olhos chamado leurieul”; “quando os
cachorros uivam, devemos tapar os ouvidos, porque eles trazem más notícias. Em
compensação, devemos ouvir o cavalo quando ele bufa ou relincha”; “Quando uma criança é
recém-nascida, se for um menino, é preciso leva-lo ao pai e pôr-lhe os pés contra o seu peito,
então jamais a criança terá má morte”.
Estas noções sobreviveram até os dias atuais, em meio à cultura popular, sob o estigma
de superstição. Quem nunca ouviu que se uma mulher menstruada manusear a massa de um
bolo esta não irá crescer, quando levada ao forno? Que o cabelo deve ser cortado na lua cheia
para que cresça rápido e bonito? Que quando o assassino de alguém vai ao funeral do
assassinado, o corpo da vítima começa a sangrar para denunciar a presença de quem a
assassinou?
Isto pode ser descrito através de conceito de grotesco aplicado a literatura, apresentado
por Mikhail Bakhtin (2010, p.270), em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento,
na qual “as fronteiras entre o corpo e o mundo apagam-se, assiste-se a uma fusão do mundo
exterior e das coisas”.
Desta identificação do corpo com o mundo, fortalece-se, na Idade Média, o tema do
“homem-microcosmo”, expandindo-se na filosofia do século XII, no seio da escola de
Chartres com o tratado de Bernard Silvestre De mundi universitate sive megacosmus et
microcosmos [Sobre o universo do mundo ou megacosmo e microcosmo]. Daí resulta a
formação de metáforas corporais que concebem a sociedade de forma organicista, utilizando
ao mesmo tempo partes do corpo e o seu funcionamento para descrever a sociedade.
Acreditava-se na correspondência entre a carne do homem e a carne do mundo. O
homem estava identificado ontologicamente com o corpo, sendo este o pivô do seu
enraizamento no mundo. O corpo não é uma cisão, algo que separa o homem de si mesmo,
dos outros e do universo.
Por sua vez, no tocante a Modernidade, desde o início até aos dias atuais, no cenário
ocidental, várias concepções sobre o corpo foram se constituindo, resultando numa verdadeira
polissemia corporal. Essas concepções são tributadas a três esferas sociais e culturais: o
acentuado individualismo (em que os vínculos entre as pessoas são relaxados, e a oposição
entre vida privada e vida pública é valorizada); a emergência de um saber racional positivo e
laico sobre a natureza (resultando no estudo do corpo como realidade em si mesma,
dissociada do ser humano); e o recuo das tradições populares e locais, dando, aos poucos,
lugar à medicina (instituída como o saber oficial sobre o corpo).
Na sociedade ocidental da atualidade, predomina o divórcio entre dois conjuntos de
representações do corpo: um relacionado aos saberes populares e o outro tributado à cultura
erudita, principalmente de natureza biomédica. O saber biomédico é visto como representação
oficial do corpo humano na atualidade.
Le Breton (2011, p.71) expõe que o índice fundamental da mudança de mentalidade,
que torna o indivíduo autônomo, fazendo do seu corpo o elemento que o individualiza, é a
constituição do saber anatômico na Itália do Quattrocento, essencialmente, nas universidades
de Pádua, Veneza e Florença. Isto marca uma mutação antropológica proeminente, pois com
as primeiras dissecações oficiais de corpos humanos, no início do século XV, seguida da
banalização relativa dessa prática na Europa dos séculos XVI-XVII, acontece um dos
momentos-chave do individualismo ocidental. A distinção feita entre o corpo e a pessoa
humana traduz simultaneamente uma mutação ontológica decisiva.
Antes das descobertas e das experiências dos primeiros anatomistas, segundo Le
Breton (2011, p.72), o corpo não era concebido como um elemento singular separado do
sujeito, o ser humano era indissociável de seu corpo, pois ainda não estava submetido à ideia
de ter um corpo. Durante o período da Idade Média, as dissecações de corpos humanos,
embora não sejam proibidas, foram retardadas devido ao respeito pelo corpo (LE GOFF,
2010, 119). Porém as primeiras dissecações de corpos humanos, praticadas pelos anatomistas
para fins de formação e conhecimento, são o testemunho de uma considerável mudança na
história das mentalidades ocidentais. Com os anatomistas, o corpo deixa de ser visto como
uma presença humana, sendo dissociado do ser humano para ser estudado por si mesmo,
sendo visto como um conjunto de tecidos e órgãos.
Neste contexto, o avanço do individualismo ocidental irá pouco a pouco formar uma
mentalidade, segundo um modo dualista, estabelecendo uma cisão entre o homem e o seu
corpo, não em uma perspectiva diretamente religiosa, mas no plano profano. O
desenvolvimento do individualismo estabelece as condições para uma individualização
através do corpo.
Então, efetivamente, o corpo será a propriedade do homem, e não mais sua
essência. No plano das representações, uma teoria do corpo como objeto
independente do homem, conquanto estando ligado a ele, e encontrando nele
seus próprios recursos (especificidade do vocabulário anatômico e
fisiológico), adquirirá então uma importância social crescente. Mas nas
coletividades humanas de tipo tradicional, holista, reina uma espécie de
identidade de substância entre o homem e o mundo, uma conivência sem
defeitos, na qual os mesmos componentes intervém. Não mais do que o
homem dessas sociedades é não discernível de seu corpo; o mundo não é
discernível do homem. É o individualismo e a cultura erudita que
introduzem a separação (LE BRETON, 2011, p.44).
Esta concepção de corpo amparada por um saber biomédico, que representa o saber
científico, e o consequente individualismo moderno, reforça o entendimento do corpo como
fator de individuação. E ao mesmo tempo institui a cisão, transforma o corpo no elemento que
separa o sujeito de si mesmo, dos outros a sua volta e do mundo. Este saber biomédico
também contribui para que o corpo seja transformado em objeto distinto do sujeito e alvo de
manipulação.
1.1.1.1 Corpo como fator de individuação
Durkheim (2008), em As formas elementares da vida religiosa, ao discorrer sobre a
noção de alma, apresenta-a como um protótipo a partir do qual foi construída a ideia de seres
espirituais presente no pensamento religioso em geral. Para Durkheim (2008, p.323), o que há
de objetivo na noção de alma são as tramas que constituem a vida interior das pessoas, sendo
estas de duas espécies diferentes e irredutíveis uma à outra: umas estão em relação com o
mundo exterior e material; as outras com um mundo ideal ao qual se atribui uma
superioridade moral sobre o primeiro. Desta forma, segundo ele, o homem é constituído de
dois seres que se orientam em sentidos divergentes e quase contrários, e dos quais um exerce
sobre o outro verdadeira preeminência. Assim, segundo ele, tal é o sentido profundo da
antítese que todos os povos conceberam mais ou menos claramente entre o corpo e alma,
entre o ser sensível e o ser espiritual que coexistem no homem.
Em conformidade com Durkheim, para tornar essa dualidade inteligível absolutamente
não é necessário imaginar, sob o nome de alma uma substância misteriosa e irrepresentável
que se oporia ao corpo. Para ele, o erro está sobre a forma de símbolo empregado, não na
realidade do fato simbolizado. “É sempre verdade que a nossa natureza é dupla; existe
realmente em nós uma parcela da divindade porque há em nós uma parcela daqueles grandes
ideais que são alma da coletividade” (DURKHEIM, 2008, p.324). Isto porque, para Durkheim
(2008, p.324), “A alma individual não é senão uma porção da alma coletiva do grupo; é a
força anônima que está na base do culto, mas encarnada em indivíduo cuja personalidade
assume; é o mana individualizado.”
Deste entendimento de que a alma individual surge dos grandes ideais que forma a
alma coletiva compreende-se a origem da crença de que a alma sobrevive ao corpo. No
sentido de que a crença na imortalidade das almas dos indivíduos é a maneira que o homem
encontrou, para explicar a si mesmo, um fato de que não pode deixar de chamar a sua atenção:
a perpetuidade da vida do grupo.
Os indivíduos morrem; mas o clã sobrevive. As forças que constituem a sua
vida devem, portanto, ter a mesma perpetuidade. Ora, essas forças são as
almas que animam os corpos individuais; porque é nelas e por elas que o
grupo se realiza. Por essa razão, é necessário que elas perdurem. É até
necessário que, perdurando, elas permaneçam idênticas a si mesmas; porque,
como o clã conserva sempre a sua fisionomia característica, a substância
espiritual da qual é feito deve ser concebida como qualitativamente
invariável. Já que se tem sempre o mesmo clã como o mesmo princípio
totêmico, é preciso que as almas sejam as mesmas, as quais não são senão o
princípio totêmico fragmentado e particularizado. [...] E essa crença, apesar
de seu caráter simbólico, não deixa de ter verdade objetiva. Porque se o
grupo não é imortal no sentido absoluto da palavra, é verdade, no entanto,
que subsiste aos indivíduos e que renasce e se reencarna em cada nova
geração (DURKHEIM, 2008, p.329).
O exposto até aqui contextualiza a afirmação feita por Durkheim de que o corpo
desempenha o papel de um fator de individuação. De modo mais preciso ainda, esta afirmação
ocorreu no contexto da discussão de que a ideia de alma foi durante muito tempo e, em parte,
ainda continua sendo a forma popular da noção de personalidade. Assim, a origem da ideia de
alma deve ajudar a entender como a ideia de personalidade se constitui.
Ressalta, do que precede, que a noção de pessoa é o produto de dois fatores.
Um é essencialmente impessoal: trata-se do princípio espiritual que serve de
alma à coletividade. É ele, com efeito, que constitui a própria substância das
almas individuais. Ora, ele não é apanágio de ninguém em particular: faz
parte do patrimônio coletivo; nele e por ele comungam todas as
consciências. Mas, por outro lado, para que haja personalidades distintas, é
necessário que intervenha outro fator que fragmente esse princípio e que o
diferencie; em outras palavras, é necessário um fator de individuação. É o
corpo que desempenha esse papel. Como os corpos são distintos um dos
outros, como ocupam pontos diferentes do tempo e do espaço, cada um deles
constitui um meio especial onde as representações coletivas vêm se retratar e
se colorir diferentemente. Resulta daí que, se todas as consciências
engajadas nesses corpos estão voltadas para o mesmo mundo, isto é, o
mundo de idéias e de sentimentos que constituem a unidade moral do grupo,
nem todas o vêem pelo mesmo ângulo; cada uma o exprime à sua maneira
(DURKHEIM, 2008, p.330-331).
Esses dois fatores, um impessoal e coletivo e outro individualizador, o primeiro
fornecendo a matéria-prima da ideia de alma. Assim não é de espantar-se com a atribuição de
papel dada ao elemento impessoal na gênese da noção de personalidade. Desta maneira,
compreende-se que o que faz do homem uma pessoa é aquilo que o confunde com os outros
homens.
Durkheim (2008, p.332) declara que os elementos que servem para formar a ideia de
alma e aqueles que entram na representação do corpo provêm de duas fontes diferentes e
independentes uma da outra. Uns são constituídos das impressões e das imagens que partem
de todos os pontos do organismo; outros consistem em ideias e em sentimentos que derivam
da sociedade e que a exprimem.
A noção de corpo como fator de individuação exposta por Durkheim está centrada
numa organicidade, segundo ele, “há realmente uma parte de nós mesmos que não está sob a
dependência imediata do fator orgânico; tudo aquilo que em nós representa a sociedade”
(DURKHEIM, 2008, p.332). Em razão disto, ele resume a questão da seguinte forma: “o
único meio que temos para nos libertar das forças físicas é opor-lhes as forças coletiva”
(DURKHEIM, 2008, p.333). Isto se assemelha com a moderna representação do corpo,
centrada no saber biomédico, mas mesmo que se reconheça a realidade concreta deste corpo
orgânico, deve-se considerar que tanto a alma quanto o corpo podem ser produto de
representação coletiva. Neste sentido, a moderna representação do corpo o representa
coletivamente através do seu papel de individualização. Esta representação do corpo moderno
está amparada por ideias e pensamentos coletivos que reforçam a individualização, o
isolamento do grupo, e quando se particulariza no indivíduo, torna-se expressão individual da
alma coletiva do grupo. Assim de nada adianta opor as forças físicas as forças coletivas, pois
na atualidade uma é derivada da outra.
Na Modernidade, o individualismo crescente constitui-se na alma coletiva do grupo.
Isto se individualiza através da noção de corpo como cisão, o elemento que separa o indivíduo
de si mesmo, do cosmo e dos outros.
1.1.1.2 O corpo anatomizado
Já foi exposto acima que, na Modernidade, as concepções de corpo que foram se
constituindo são tributadas a três esferas sociais e culturais: o acentuado individualismo (em
que os vínculos entre as pessoas são relaxados, e a oposição entre vida privada e vida pública
é valorizada); a emergência de um saber racional positivo e laico sobre a natureza (resultando
no estudo do corpo como realidade em si mesma, dissociada do ser humano); e o recuo das
tradições populares e locais, dando, aos poucos, lugar à medicina (instituída como o saber
oficial sobre o corpo).
Até aqui houve uma referência ao acentuado individualismo moderno, agora serão
feitas referências à emergência de um saber racional positivo e laico, que ao estudar o corpo
como realidade em si, dissociando-o do ser humano, de forma reificada, produziu o recuo das
concepções populares acerca do corpo, fazendo que estas concepções fossem substituídas por
um saber biomédico, oficial, sobre o corpo. Para que isto tenha se tornado efetivo, foi de suma
importância o crescente interesse por dissecações de cadáveres nos estudos de anatomia no
fim da Idade Média. “Isto não se fazia desde o século III a.C, quando dissecações humanas –
as únicas que o mundo antigo conheceu – foram feitas em Alexandria. Seguiu-se um período
muito longo de uns quinze séculos sem dissecações” (MANDRESSI, 2012, p.411).
Sobre este longo período sem dissecações difundiu-se a opinião de que isto teria
ocorrido devido a uma proibição por parte da Igreja Católica. Porém não há documentos que
atestem isto, o único documento que poderia ser citado em apoio a esta alegação é a decretal
Detestande feritatis, emitida pelo Papa Bonifácio VIII, em 1299. Entretanto, esta decretal
expunha a oposição do pontífice ao esquartejamento dos cadáveres. A decretal pretendia
colocar um fim no costume de desmembrar os corpos dos defuntos para tornar mais fácil o
transporte até o local da sepultura, quando distante do local da morte. Desta forma não se
tratava de proibir dissecações anatômicas, que começavam a ser praticadas nesta época
(MANDRESSI, 2012, p.411-412).
Sobre esta questão da suposta proibição, Le Goff e Truong (2010, p.119-120)
asseguram:
A dissecação médica não era proibida. Mesmo Galeno, o mestre dos médicos
medievais, praticava a dissecação de animais. Assim, em Bolonha, em
Salerno, em Montpellier, em Paris, a dissecação tornou-se uma prática
pública e didática. O saber livresco predomina, entretanto. A abertura dos
corpos era frequentemente destinada a confirmar Galeno. Como resume
justamente Danielle Jacquart, “o corpo era ‘lido’ antes de ser visto”.
O predomínio do saber livresco, mencionado por Le Goff e Truong, associado à
prática da dissecação apenas com o objetivo de confirmar Galeno, possui uma estreita relação
com a depreciação por parte dos médicos no tocante a atividade realizada por cirurgiões na
Idade Média. A atividade dos cirurgiões consistia numa prática manual, no manuseio da carne
de outrem, algo não estimado por médicos universitários. Associada a “artes mecânicas”, “as
dissecações anatômicas, que também implicavam no recurso ao uso da mão e à incisão do
corpo, poderiam ter sido objeto de reticências análogas”, segundo Rafael Mandressi (2012,
p.414), que explica ainda que a divisão das tarefas que caracterizam a organização das
dissecações públicas até o século XVI mostra, efetivamente, que elas eram regidas por uma
hierarquia. O professor comandava o seu desenrolar, lia e comentava os escritos das
autoridades do alto de sua cátedra, sendo secundado por um demonstrator, que fazia os
assistentes ver o que o mestre explicava, enquanto a preparação do cadáver era em geral
confiada a um cirurgião barbeiro. Mesmo assim, não dá para concluir que o descrédito das
“artes mecânicas” estivesse na origem de uma impossibilidade qualquer de praticar
dissecações.
Uma vez que a busca por impedimentos que retardaram por mais de um milênio a
prática das dissecações humanas se revela infrutífera, Mandressi (2012, p.415) julga
conveniente deslocar o ponto de vista sobre esta questão. Em vez de procurar saber por que
não houve dissecações até a Idade Média tardia, seria melhor perguntar por que razão se
começou a recorrer a ela nesta época?
Com efeito, não somos obrigados a postular que a falta de dissecações seja
necessariamente devida a um impedimento. Isto equivale no fundo, a
considerar a dissecação como um meio “natural” de chegar ao conhecimento
do corpo. Ora, escrutar cadáveres com ajuda do escalpelo não é
necessariamente uma evidência fora de um tempo e de um espaço que viram
este ato tornar-se a chave das operações de desnudar “verdades” do corpo.
Temos o direito de presumir que a outros tempos correspondem outras
evidências, e que, se durante longos séculos as dissecações não foram
praticadas, é principalmente porque elas não foram julgadas necessárias.
Podemos, portanto, considerar o acesso às dissecações como uma invenção,
uma resposta que, em um determinado momento, apareceu como adequada
ou vantajosa diante da exigência de obter ou perfazer um novo conhecimento
sobre o corpo (MANDRESSI, 2012, p.415).
Uma vez que se compreendam as dissecações como uma invenção, ou uma reposta
que surgiu num determinado momento para satisfazer a exigência de um novo conhecimento
sobre o corpo, entende-se igualmente que isto possui como ponto de partida a recepção da
medicina greco-árabe no Ocidente medieval. Isto se fez por meio de uma vasta tarefa de
tradução. Segundo Mandressi (2012, p.415-416), como fruto desta vasta tarefa de tradução de
obras médicas greco-árabe, primeiramente no sul da Itália, onde, na segunda metade do século
XI, Constantino, o Africano, traduziu, no mosteiro do Monte Cassino, muitos textos médicos
árabes para o latim. Dois deles devem ser particularmente lembrados: o Isagogo, uma
introdução à medicina de Galeno composta por Hunain Ibn Ishaq (falecido em 877), e o Liber
pantegni, uma obra enciclopédica do médico de origem persa Haly Abbas (século X). Uma
segunda etapa importante teve lugar em Toledo, no século XII. As contribuições
fundamentais no domínio da medicina datam do período marcado pela presença, naquela
cidade, de Gerardo Cremona, que chegou lá depois de 1145 e traduziu, aparentemente como
chefe de uma equipe, dezenas de obras. Dentre as obras médicas, pode-se citar Liber de
medicina ad Almansorem, de Rhazès (falecido por volta de 930), a Cirurgia de Albucasis
(falecido em 1013), o comentário de Ibn Ridwan (século XI) à Arte médica de Galeno,
adaptações árabes de tratados galênicos e, sobretudo, o Cânon da medicina de Avicena.
As traduções do árabe tiveram um papel de primeira importância na
evolução do saber médico na Europa latina. Elas contribuíram
decisivamente, de modo particular na impregnação galênica da medicina
medieval europeia. Isto se fez, em primeiro tempo, por intermédio de um
galenismo arabatizado, mas de imediato se quis aceder diretamente aos
textos autênticos de Galeno. O corpus galênico greco-latino começou então a
se constituir. Por volta de 1185, Burgúndio de Pisa fez versões greco-latinas
de tratados como Do método terapêutico, Das compexões ou Dos lugares
afetados. Essas traduções sucederam, em particular, as de Niccolò da
Reggio, médico da corte angevina de Nápoles que traduziu, em 1317, Da
utilidade das partes do corpo [De usu partium], trazendo a primeira
recuperação direta de uma exposição essencial da anatomofisiologia galênica
(MANDRESSI, 2012, p.416).
Sob influência deste conjunto de obras, do fim do século XI ao começo do século
XIV, a posição dos conhecimentos anatômicos ganhou em clareza e em precisão. Além disto,
os tratados de cirurgia elaborados no Ocidente a partir da segunda metade do século XIII, que
têm como fonte obras árabe-latinas, insistem na importância dos conhecimentos anatômicos.
O recurso à dissecação aparece quando a maioria dos escritos médicos que
podiam exercer uma influência neste sentido só estavam disponíveis em
versões árabe-latinas. Foram Haly Abbas, Rhazés, Avicena e, mais tarde,
Averróis que fizeram da anatomia algo que devia ser conhecido, ou mais
bem conhecido do que antes. Uma vez colocada essa exigência, num
determinado momento foi adotada, para satisfazê-la, a modalidade de abrir
corpos humanos, o que essas mesmas fontes não preconizavam
expressamente.
Mas, para esta modalidade, incentivava-se a apelar para a experiência. À
base do que se podia ler em Averróis ou Avicena, a constituição do saber
anatômico está associada a um procedimento fundado na observação. Neste
quadro, o recurso ao veredicto dos sentidos torna-se o método adequado para
resolver os casos de opiniões discordantes das autoridades, para verificar de
visu o que é dito nos textos, ou ainda, conforme o caso, para corrigir as
autoridades e não somente para desempatá-las (MANDRESSI, 2012, p.417).
O procedimento de abrir cadáveres era realizado para fins variados: para o transporte
dos restos mortais com o objetivo de sepultá-los na terra natal do defunto; para fins de
embalsamento; para exames post-mortem com o intuito de estabelecer a causa da morte.
Práticas que se distinguiam uma das outras por sua intencionalidade, seja ritual ou judiciária,
a depender do caso. Neste contexto, segundo Mandressi (2012, p.418), estas práticas têm em
comum a época de sua introdução, entre os séculos XII e XIII, sendo que as dissecações só
aparecem por volta do fim deste período, isto é, depois de outras práticas que comportam a
abertura do cadáver humano. Este aparecimento tardio pode ser significativo, se interpretado
como a irrupção de uma intencionalidade específica de exploração do corpo, num contexto
em que práticas fundadas na abertura de cadáveres forneciam um dispositivo técnico do qual
era possível apropriar-se. O apelo ao uso de dissecações surgiu, quando a abertura de
cadáveres foi estimulada pela curiosidade anatômica.
Ora, se as técnicas de busca de uma verdade no interior do corpo morto, e o
próprio fato de entregar-se a uma busca deste tipo, foram adotadas em
contato com práticas que as exploram, é preciso ainda que se tenham tido
boas razões para fazê-lo. Essas razões não podem provir a não ser do estado
do saber anatômico, no seio do qual são firmadas demandas epistemológicas
face às quais a autópsia cadavérica podia representar uma oferta apropriada.
Isto se opera no fim de um processo subtendido pela introdução dos textos
médicos mencionados. Assiste-se primeiramente, por meio das obras árabe-
latinas, à promoção da anatomia à primeira classe dos componentes do saber
médico e, em seguida, à atribuição, também em grande parte sob a influência
desses textos, de uma função decisiva às constatações sensoriais entre as
fontes do conhecimento anatômico. Assim são fixados, a seu respeito, um
novo estatuto e novas orientações que, na virada dos séculos XIII e XIV,
assumem práticas que consistem em manipular, abrir e escrutar o interior dos
corpos (MANDRESSI, 2012, p.418-419).
Em 1543, é publicado em Basileia o De humani corporis fabrica de Andreas Vesalius
(1514 – 1564 d.C), médico belga considerado o pai da anatomia moderna. Um enorme tratado
de anatomia de 700 páginas. O surgimento do De humani corporis fabrica, no mesmo ano em
que Nicolau Copérnico (1473 – 1543 d.C) publica De revolutionibus, é sintoma de um
processo de mudança nos modos de conceber o mundo e o homem no Ocidente. O próprio
Vesalius discorre longamente em seu tratado sobre os obstáculos mentais que precisam ser
superados para que o corpo seja considerado como virtualmente distinto do homem. As
observações de Vesalius sobre anatomia humana encontram suas fontes neste olhar
distanciado, que esquece metodologicamente o homem para considerar somente o corpo.
Na proporção em que o corpo humano é manipulado, retalhado, esquadrinhado por
meio de dissecações públicas em teatros de demonstrações, sob o olhar de diversos
expectadores, opera-se uma mudança nas mentalidades das pessoas no Ocidente. O corpo
começa a ser esvaziado da presença humana, é posto em suspenção, dissociado do homem, é
coisificado, passando a ser estudado por si mesmo, como uma realidade autônoma. A
anatomia humana apoia-se num olhar distanciado, que metodologicamente se esquece do
homem para considerar somente o corpo, este analisado como uma máquina, parte por parte,
componente por componente. O corpo absorve traços de uma entidade mecânica composta de
peças e suscetível de ser desmontada. É a fragmentação do corpo que está no centro do
projeto anatômico, pois a anatomia não trata do corpo inteiro e contínuo, mas dividido em
partes e membros. O mecanicismo fragmenta, faz das partes do corpo engrenagens de um
dispositivo que fez da máquina a principal metáfora do corpo humano.
1.1.1.3 O corpo midiático
Experimenta-se a nudez dos corpos através dos meios de comunicação da atualidade
(nas revistas, nos cartazes, nos outdoors, na internet, na televisão), e também por meio de
diversas manifestações artísticas contemporâneas. Esta nudez jaz documentada pela
fotografia, bem como por telas pintadas; pode ser vista nas performances teatrais, bem como
em telenovelas e no cinema.
Diante desta exposição do corpo nu, chega-se apressadamente a conclusão que hoje as
pessoas estão vivendo numa época de valorização do corpo. Uma vez que este não está mais
escondido por tecidos, mas exposto de diversas formas e ângulos.
Todavia, esta conclusão deve considerar a pergunta sobre qual corpo está sendo
valorizado e consequentemente exposto com tamanha amplitude? A questão carrega em si a
necessidade de considerar o corpo como ideal, uma construção segundo os padrões estéticos
estabelecidos pela sociedade contemporânea. Não se trata de qualquer corpo, mas de certo
tipo de corpo, aquele que atenda as exigências ideais, que cumpra os parâmetros estéticos.
É inegável que o corpo está cada vez mais em cena e exposto no espetáculo
midiático da sociedade atual, porém analisar o sentido que o discurso sobre o
corpo adquire na sociedade contemporânea requer, cada vez mais, atenção
no que se refere às interpelações sobre a saúde, a estética e o consumo. A
relação entre a produção de imagens corporais pela mídia e a construção de
uma autoimagem, por parte dos sujeitos, é imediata. Nenhuma outra
sociedade na história produziu e disseminou tal volume de imagens do corpo
humano através da mídia como a atual.
Por isto, também é inegável que a atual busca por modelar o próprio corpo
seja marcada por diversas técnicas corporais legitimadas pela sociedade e
esteja localizada dentro de um movimento social mais amplo, que vem se
acirrando no contexto da modernidade.
Sem falar que a ideia de corpo como sinônimo do culto à boa forma física,
como uma vitrine ambulante (continuadamente reformulada e copiada, a um
só tempo produto e objeto de compra e venda), como instrumento de
produção e reprodução de sentidos, é constituída a partir da exposição de
imagens que circulam na mídia.
É preciso, ainda, atentar para mais um detalhe, o corpo exposto pela mídia e
cultuado pelas pessoas na atualidade não é o corpo real de indivíduos
comuns vistos cotidianamente, mas um corpo idealizado, esbelto, bronzeado,
atlético, sem odores, saudável, jovem e etc (PRAZERES, 2014, p.102-103).
Le Breton (2011) oferece uma pista de quais padrões estéticos o corpo ideal tão
propagado pelos meios midiáticos manifesta. Pois na vida cotidiana através de uma rede de
ritualidades se efetua o apagamento dos traços mais orgânicos do corpo, as evidências da sua
presença no mundo. Há uma etiqueta corporal que guia orienta como o corpo deve se postar,
conduzir-se no cotidiano e nas interações com outros corpos. Esta etiqueta necessita ser
seguida sem questionamentos.
Toda conduta que escape à sua definição social é ameaçada pela
inconveniência. Ela pode suscitar a vergonha daquele que toma consciência
de ter rompido um quadro estabelecido, e o mal-estar daquele que é
confrontado a esse afastamento: um mau cheiro, um hálito demasiadamente
forte, uma atitude desconjuntada, um ruído incontrolado, uma gargalhada
etc., voltando brutalmente a atenção para um corpo que deve permanecer
discreto, sempre presente, mas no sentimento de sua ausência. O embaraço
que faz irrupção e parasita a interação pode, entretanto, ser ritualmente
apagado por uma falsa indiferença, ou melhor ainda, pelo humor, sempre
disponível para simbolizar as situações escabrosas e dissipar a vergonha ou a
reticência. O corpo não deve testemunhar qualquer aspereza suscetível de
realcá-lo (LE BRETON, 2011, p.200-201).
O corpo é exposto, porém, esta exposição deve ocorrer sob a influência dos rituais,
não convém expor o corpo fora do quadro de ritualidades que pontuam o escoamento da vida
social, os padrões de conduta corporal aceitáveis. As interações sociais ocorrem sob a égide
do apagamento ritualizado das manifestações corporais. O corpo é revelador da condição
humana, não podendo ser totalmente afastado, todavia, tende-se cotidianamente a fortalecer
um dualismo entre o sujeito e corpo, tornando o corpo objeto, e estabelecendo o rompimento
da aliança ontológica entre o humano e o corpo.
O corpo exposto pela mídia manifesta um avanço audacioso ao abordar temas
corporais referentes à vida privada e associados à vergonha quando expostos ao público,
porém isto é realizado se utilizando do artifício do humor para que os propósitos publicitários
não sejam prejudicados. O humor cria as condições para que sejam discutidos os assuntos
sobre os quais se mantêm silêncio no cotidiano.
Nenhuma sensibilidade é escandalizada graças ao estilo humorístico cuja
função social consiste em autorizar a abordagem de temas proibidos de
serem ditos, como verdades que não poderíamos exprimir de frente. O
humor, na publicidade como na vida, torna aceitáveis imagens ou palavras
subtraídas do íntimo que indisporiam se tivessem sido formulados de outra
maneira. Mas a necessidade desse desvio para proteger o objeto, ou a
conduta, assim desvelado mostra bem que o corpo permanece impregnado de
sentido e de valores, lugar simbólico que publicidade tenta expurgar. Ela fala
significativamente de “tabus” ou de “preconceitos” quando evoca os atos
íntimos mantidos habitualmente na discrição. Mas, finalmente, sob a
aparência de uma afirmação de valores corporais, de uma exposição do
íntimo em toda descontração, a publicidade apaga sutilmente aquilo que
emana do orgânica, a “libertação” do corpo se faz sob a égide da higiene, de
um distanciamento da “animalidade” do homem: seus odores, suas
secreções, sua idade, sua fadiga, seus proscritos. Da mesma forma, a
progressão social do esporte ou dança moderna impõe um modelo de
juventude, de vitalidade, de sedução, ou de saúde. O corpo liberado da
publicidade é limpo, liso, claro, jovem, sedutor, sadio, esportivo. Não é o
corpo da vida cotidiana (LE BRETON, 2011, p.208-209).
As pessoas comuns com as quais se depara no dia-a-dia nem sempre manifestam o
ideal de corpo liso, jovem, modelado por exercícios físicos na academia. Estes padrões são
movidos pela mesma dinâmica dos rituais de apagamento corporal do cotidiano. O corpo ideal
é desprovido de maus odores e suores, sua pele deve ter a cor e a tonicidade correta, os
músculos devem ser rígidos e modelados, em toda a sua aparência, o corpo deve demonstrar
saúde. Assim, o corpo liberado e exposto como ideal, na verdade, representa o afastamento do
corpo em relação à pessoa, o sujeito.
Segundo Le Breton (2011, p.211), um artifício da Modernidade faz passar por
libertação dos corpos aquilo que não passa de elogio do corpo jovem, sadio, esbelto,
higiênico. A boa forma, a saúde, impõem-se como preocupação e induzem outro tipo de
relação consigo mesmo. Os valores cardeais da Modernidade e levados adiante pela
publicidade são os da saúde, da juventude, da flexibilidade, da higiene. Tudo isto serve como
explicação para sucesso atual das práticas que colocam o corpo em evidência, bem como o
sucesso da cirurgia estética ou reparadora, sem deixar de mencionar os tratamentos de
emagrecimento e o sucesso da indústria de produtos cosméticos. O corpo midiático é o
manifestação de se entende como ideal, o corpo submetido ao apagamento de todos as suas
características que causam vergonha.
1.1.1.4 O corpo rascunho
O modo como o discurso da tecnociência contemporânea se refere ao corpo o coloca
numa posição ontologicamente distinta do sujeito, cada vez mais tratado como matéria-prima
ou como um objeto sobre o qual se debruça com o intuito de o melhorar. Neste sentido, não é
entendido como identidade do sujeito, pois quando o corpo é coisificado dilui a identidade
pessoal. “O corpo é normalmente colocado como um alter ego consagrado ao rancor dos
cientistas”, afirma Le Breton (2003, p.15) e acrescenta: “Subtraído do homem que encarna à
maneira de um objeto, esvaziado de seu caráter simbólico, o corpo também é esvaziado de
qualquer valor”.
Assim, o corpo é encarado como um rascunho a ser corrigido, e representa no humano
a parte ruim e decadente, símbolo de fraqueza, carne fraca e submissa as intempéries do
tempo, que sangra e adoece, por fim, morre. Por isto, Le Breton expõe que para certas
correntes da tecnociência, devido à corporeidade que lembra a fragilidade, a espécie humana
jaz maculada. “A reconstrução do corpo humano, e até sua eliminação, seu desaparecimento,
é o empreendimento ao qual se dedicam esses novos engenheiros do biológico” (LE
BRETON, 2003, p.16). Isto porque, acrescenta Le Breton (2003, p.17):
Visão moderna e laicizada da ensomatose (a queda no corpo das antigas
tradições gnósticas), a carne do homem encarna sua parte maldita que
inúmeros domínios da tecnociência pretendem por sorte remodelar,
‘imaterializar’, transformar em mecanismos controláveis para livrar o
homem do incômodo fardo no qual amadurecem a fragilidade e a morte.
Diante desse despeito de ser constituído de carne, o corpo é dissociado do
homem que ele encarna e considerado com um em si. Consagrado aos
inúmeros cortes para escapar de sua precariedade, de seus limites, para
controlar essa parcela inapreensível, atingir uma pureza técnica. Tentação
demiúrgica de corrigi-lo, de modificá-lo, por não se conseguir torná-lo uma
máquina impecável.
A tecnociência tem colaborado com a construção de um imaginário no tocante ao
futuro da espécie humana, que pretende levar as últimas consequências o caráter técnico e
artificial da condição humana. Desde as antropologias filosóficas do início do século vinte,
em especial Gehlen e Plessner, que se tem afirmado que “o homem é artificial por natureza”.
O que, em outros termos, significa que o homem compensa as suas deficiências naturais
através da criação e do uso de artefatos técnicos que atuam com aperfeiçoamento ou
extensões de seu corpo. A própria maneira do homem intervir sobre as situações que surgem
em seu caminho possui um caráter técnico. O seu modo de pensar e buscar soluções para as
intempéries, os problemas ou os obstáculos que se colocam diante dele se constitui num
pensar técnico.
Todavia, para além de ferramentas ou artefatos tecnológicos criados para agilizar o
trabalho e obter melhores resultados no mais curto período de tempo, o homem tem
submetido a si mesmo como objeto da técnica, neste caso, o seu corpo. Isto porque este, ao
revelar as suas deficiências, tornar-se um obstáculo a ser superado. A fraqueza, debilidade e
finitude presente no corpo o humano não podem ser aceitas como um impedimento para a
realização do futuro que o homem moderno tem imaginado para si.
A cada nova descoberta científica e diante dos avanços e dos triunfos proporcionados
pelo domínio de novas tecnologias, o homem sente crescer em si a convicção de que pode
realizar cada vez mais. E não basta a sua intervenção no mundo, nas coisas que estão situadas
fora de si, o manuseio e a modelagem dos materiais disponíveis, ofertados pela natureza.
Construir cidades, grandes obras de engenharia, máquinas para o transporte de equipamentos
pesados ou para locomoção de pessoas para distâncias cada vez maiores e em curto tempo. O
domínio do mundo exterior não basta se não for possível viver para desfrutar das próprias
realizações e colocar vislumbrando novos futuros. Além do mais, tudo isto alimenta a
sensação de que há mais a ser explorado, de que tudo é possível para a engenhosidade
humana. Então se o corpo não atende ao que se deseja dele, será compreendido como algo que
está à mão para ser modelado segundo a vontade. O corpo como algo que literalmente pode
ser construído segundo o desejo de cada pessoa. Le Breton (2012, p.18) afirma:
Nem o corpo, nem o gênero, nem a orientação sexual são essências, mas
construções sociais por certo personalizadas e, portanto, revogáveis. Eles são
o resultado de uma decisão própria e de uma prática cosmética adaptada. As
representações e os valores afetam o corpo visando reproduzir um código ao
insistirem nas diferenças, notadamente masculino/feminino, a fim de
naturalizá-las e legitimar as modalidades do vínculo social. Hoje, a
individualização do sentido, e, portanto, a liquefação do sentimento de si,
leva a uma transformação dos velhos quadros de pensamentos a esse
respeito. A queer é uma tentativa de desnaturalização, e principalmente de
desculturação do gênero. Feminidade e masculinidade tornam-se objeto de
uma produção permanente por um uso apropriado de sinais.
Há uma revolta contra os limites, devem-se ultrapassar as fronteiras, seguir em busca
de novas conquistas. O biologicamente constituído não precisa ser aceito como um fato que
não pode ser alterado. Isto ficou evidenciado na citação anterior no que se refere ao gênero e a
orientação sexual. O corpo transexual é um bom exemplo do que o domínio técnico pode
realizar no tocante ao que outrora se compreendeu como biologicamente definido.
O corpo transexual é um artefato tecnológico, uma construção cirúrgica e
hormonal, uma criação plástica. Seu sexo de eleição é o resultado da decisão
do próprio transexual, e não de um destino anatômico; ele vive a partir de
uma vontade deliberada de provocação ou de jogo. O transexual suprime os
aspectos excessivamente significativos de sua antiga corporeidade para fazer
afluir os sinais inequívocos de sua nova aparência. Vontade de conjugar a
separação, de não fazer mais sexo (do latim secare: cortar), nem um corpo
nem um destino, mas uma decisão, e, sobretudo, vontade de afastar-se, a fim
de inventar-se e colocar-se por si mesmo no mundo. O transexual é um
símbolo do sentimento de que o corpo é uma forma a transformar (LE
BRETON, 2012, p,20-21).
A tecnociência moderna reforça a noção de que o corpo é um rascunho, algo que não
precisa ser aceito como é, pois na verdade não é, apenas está. E não necessariamente precisa
continuar no estado no qual se encontra, uma vez que se tenha os recursos científicos
disponíveis para transformá-lo.
1.2 Pós-humanismo: a aposta numa era pós-biológica
Os adeptos do imaginário pós-humano tomam, como ponto de partida ou como fonte
de sua inspiração, Nietzsche por sua famosa doutrina do der Übermensch.
E Zaratustra falou assim ao povo: Eu vos anuncio o Super-homem. O
homem é superável. Que fizestes para o superar? Até agora todos os seres
têm apresentado alguma coisa superior a si mesmos; e vós, quereis o refluxo
desse grande fluxo, preferis tornar ao animal, em vez de superar o homem?
(NIETZSCHE, 2006, p.25).
Nietzsche referia-se, não a transformação tecnológica, mas ao homem assumir o seu
crescimento pessoal e o refinamento cultural que possibilitaria a superação do
enfraquecimento da vida provocado pela sua condição de “escravo moral” do Cristianismo.
Neste sentido, Nietzsche expõe a necessidade de aperfeiçoamento do que a de se superar a
espécie humana: é esse o sentido mais evidente de suas menções ao supra-humano. Mas é
exatamente neste incentivo à superação, dado por Nietzsche, que os pós-humanista encontram
inspiração, o impulso no sentido da humanidade transformar tecnicamente a si própria e a sua
natureza.
Segundo Erick Felinto e Lucia Santaella (2012, p.26-27), o termo “pós-humano” foi
mencionado pela primeira vez pelo intelectual norte americano de ascendência egípcia Ihab
Hassan em um ensaio publicado em 1977. E que, entre os estudiosos, há certa convergência
em se localizar a gênese do pós-humano na série de dez conferências Macy em Nova York
entre 1946 e 1953. As conferências tinham natureza interdisciplinar e reuniram cientistas
notáveis.
A intenção dos estudiosos era lançar as bases de uma ciência geral do funcionamento
da mente, que resultou no nascimento da cibernética, da teoria dos sistemas e, pouca mais
tarde, da ciência cognitiva. Embora prioritariamente ligada ao nome de Norbert Wiener, autor
de Cibernética ou controle e comunicação no animal e na máquina (1948), a cibernética
brotou do convívio entre Wiener com o fisiologista Arturo Rosenblueth, com o engenheiro
Julian Bigelow e com Warren Weaver e Claude Shannon, autores da “Teoria matemática da
informação” (1949), além de John von Neumann, criador dos computadores digitais, do
neuropsiquiatra Warren McCulloch e do matemático Walter Pitts, todos participantes das
conferências Macy.
O que a cibernética propôs foi uma teoria unificada da máquina e do vivente, sendo
uma ciência das analogias entre máquinas e organismos. Isto lançou as sementes do pós-
humano, porque a analogia proposta entre o funcionamento do orgânico e da máquina
arrancou o humano do privilégio de sua irredutibilidade, surgindo uma nova forma de pensar
o humano como um sistema de processamento de informações que apresenta similaridades
com qualquer máquina dotada de certa inteligência.
Francisco Rüdiger (2007, p.7) reconhecesse que desse credo ou entendimento
originador do movimento pós-humanista provém, por sua vez, a hipótese de singularidade, de
uma situação totalmente nova e eventualmente catastrófica para a humanidade que estaria em
vias de ocorrer devido ao progresso científico-maquinístico.
A hipótese de singularidade, como exposto pelos pós-humanistas, fundamenta-se na
concepção de que os conhecimentos sobre Inteligência Artificial produzirá mudanças radicais
num período relativamente curto. Estes conhecimentos possibilitariam a criação de uma
máquina ultra-inteligente que superaria todas as atividades intelectuais de qualquer ser
humano por mais inteligente que seja. Esta máquina ultra-inteligente poderia projetar
máquinas ainda melhores, isto produziria uma “explosão de inteligência” de tal maneira que a
inteligência humana seria deixada para trás (BOSTROM, 2005, p.9).
Em 1993, Vernor Vinge (1993, p.1-2) desenvolveu o conceito de singularidade com
mais detalhes no paper Technological Singularity. No qual, respondendo a questão sobre o
que é singularidade, afirma que a aceleração do progresso tecnológico será a característica
central deste século e que a humanidade estaria próxima de uma mudança da vida humana na
Terra. A causa precisa desta mudança seria a iminente criação pela tecnologia de entidades
com maior inteligência do que a humana. Segundo ele, a ciência pode alcançar este avanço
por diversos meios, dentre os quais, ele enumera os seguintes: 1. O desenvolvimento de
computadores super-humanamente inteligentes; 2. Grandes redes de computadores e seus
usuários associados podem surgir como entidades super-humanamente inteligentes; 3.
Interfaces do tipo computador/ser humano podem tornar-se tão íntimas que os usuários podem
razoavelmente ser considerados super-humanamente inteligentes; e 4. A ciência biológica
pode fornecer meios para melhorar o intelecto natural do ser humano. Vinge também afirma
que as três primeiras possibilidades dependem de melhoramentos nos hardaware dos
computadores.
E como, segundo ele, nas últimas décadas, o progresso no desenvolvimento de
hardware computacional tem seguido uma curva surpreendentemente constante. Baseado
nesta tendência, ele acreditava que a criação de uma inteligência superior à humana ocorreria
nos próximos trinta anos. Como tal previsão fora feita em 1993, uma década depois, ele
afirmou: “Agora em 2003, eu ainda penso que esta declaração de intervalo de tempo é
razoável” (VINGE, 2003, p.3).
Traçando uma cronologia do movimento pós-humanista, pode-se considerar os
seguintes momentos: o aparecimento na década de 60 de pesquisas sobre cibernética,
conforme apresentado acima; e a partir de 1980, a organização de grupos simpatizantes da
ideia do pós-humano.
Em 1988, surgiu o primeiro número da Revista Extropy publicada por Max More e
Tom Morrow. E em 1992, eles fundaram o Extropy Institute. Segundo Bostrom (2005, p.14),
o termo extropy foi cunhado para ser o oposto de entropia. E o instituto serviu de catalisador
que reuniu vários grupos com ideias futurísticas. O instituto também realizou uma série de
conferências, mas talvez a mais importante foi a lista de discussão Extropianos, um fórum de
discussão online onde novas ideias foram partilhadas e debatidas.
Max More escreveu a primeira definição de transhumanismo em seu sentido
moderno e criou a sua própria marca distinta de transhumanismo,
“extropianismo”, que enfatizou os princípios de “expansão sem limites”,
“auto-transformação”, “otimismo dinâmico”, “tecnologia inteligente” e
“ordem espontânea (BOSTROM, 2005, p.15).
A lista de conferências e de discussão do Instituto Extropy serviu como um lugar de
encontro para algumas pessoas que se interessavam em discutir ideias futuristas. Uma enorme
quantidade de discussão sobre trans-humanismo tem ocorrido em várias listas de e-mail nos
últimos anos. A qualidade dessas postagens tem sido variada. No entanto, no seu melhor,
estas conversas online tem explorado ideias sobre as implicações de futuras tecnologias que,
em alguns aspectos, podem ser consideradas avançadas. A internet desempenhou um papel
importante na incubação do trans-humanismo por ter facilitado essa troca de ideias entre as
pessoas que compartilham de ideais trans-humanistas.
No inicio de 1998, foi fundada a World Transhumanist Association por Nick Bostrom
e David Pearce. Esta associação serviu para fornecer uma base organizacional geral para
todos os grupos e interessados em trans-humanismo. O objetivo também foi o de desenvolver
uma forma mais madura e academicamente respeitável de trans-humanismo. Os dois
fundadores são os responsáveis pela elaboração da Transhumanist Declaration e da
Transhumanist FAQ. A declaração foi concebida como uma declaração concisa de consenso
sobre os princípios básicos do trans-humanismo. Por sua vez, o FAQ também é um
documento que possui quase um consenso entre os trans-humanistas, porém sendo mais
ambicioso no seu âmbito filosófico na medida em que desenvolveu um número de temas que
antes eram, no máximo, implícito no movimento.
No movimento trans-humanista, é comum fazer uma distinção entre pós e trans-
humanismo, neste sentido trans-humanismo seria uma fase intermediária na qual os
indivíduos compartilham de interesses sobre ramificações, promessas e potenciais perigos das
tecnologias. Encontra-se uma explicação sobre esta distinção na resposta apresentada na
Transhumanist FAQ (2003, p.4) para questão “o que é trans-humanismo?:
O movimento intelectual e cultural que afirma a possibilidade e o desejo de
fundamentalmente melhorar a condição humana através da ampliação da
razão, especialmente através do desenvolvimento de tecnologias amplamente
disponíveis para eliminar o envelhecimento e aumentar consideravelmente
as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas do ser humano.
Segundo Rüdiger (2007, p.12), a associação já congregava em 2006 cerca de 15
entidades, possuindo quase quatro mil sócios de uns cem países, e se propõe a servir de
plataforma organizacional para os grupos interessados em promover o pós-humanismo.
Existem seções em doze países e seus quadros incluem pesquisadores de várias empresas e
sociedades científicas, tais como a Alcor life, O Foresight Institute, o Singularity, The Society
of Neuronal Prostethic, etc.
A expressão “pós-humanismo” ou “pós-humano” tem sido empregada no contexto
deste debate de formas variadas. Primeiro, é utilizada para descrever o fim do período de
desenvolvimento social conhecido como “humanismo”, neste sentido, assume o significado
de “depois do humanismo”. Segundo, refere-se também ao fato de que a visão tradicional do
que se constitui um ser humano está passando por profunda transformação. Isto ocorre de
forma tamanha que não seria possível pensar o ser humano como costumeiramente tem sido
feito. E terceiro, a expressão se refere à convergência geral entre o biológico e o tecnológico
até o ponto em que se tornam cada vez mais indistinguíveis. Assim pós-humano é um termo
utilizado com sentido similar a pós-biológico, uma vez que o humano, enquanto categoria,
passa a ser compreendido como um subconjunto de uma fase bio-tecnológica cada vez mais
virulenta (PEPPERELL, 2003, p. iv).
Os termos “pós-humano” e “pós-humanismo”, por enquanto, são termos
excessivamente sofisticados e acadêmicos para circular por outras instâncias menos reflexivas
da sociedade, não sendo percebido nenhum impacto aparente dessas noções no plano da vida
cotidiana ou nas mídias através das quais as pessoas constroem o seu imaginário social, pois
as representações do pós-humano encontram expressão significativa e explícita apenas no
âmbito da internet e contextos tecnológicos e científicos mais especializados, porém conceitos
pós-humanos tem chegado ao público em geral, sendo manifestos de forma muito esparsa e
indireta no domínio da ficção cinematográfica massiva em filmes como Matrix (1999) ou
Inteligência Artificial (2001).
Junto com o aparecimento das tecnologias digitais de informação e comunicação, um
novo e interessante campo de pesquisa se abriu. Nesse contexto, encontra-se a cibercultura, o
campo mais avançado em termos de estudos de representações tecnológicas. No campo da
cibercultura, há uma série de subculturas com suas particularidades, todas elas contribuindo
para a elaboração de um imaginário cujo fundamento é ciência e tecnologia. O pós-humano se
constitui um desses imaginários.
O discurso pós-humano trata a respeito de seres humanos corrigidos/aperfeiçoados
devido aos avanços do conhecimento científico e do consequente surgimento de tecnologias
avançadas. Lucia Santaella (2010, p.42) afirma que a primeira e mais óbvia compreensão que
se costuma ter do pós-humano está ligada às imagens de corpos híbridos, misturas de
humanos e máquinas, ambientes povoados de ciborgues como, há anos, vem aparecendo nos
filmes de Hollywood, inspirados em ficções científicas batizadas de ciberpunk. Dessas ficções
foram derivadas visões de que a evolução tecnológica conduzirá a humanidade à vida eterna
da mente por meio da substituição das fragilidades do corpo mortal por potentes aparelhos de
silício. A internet está repleta de sites que, com o batismo de trans-humano e trans-
humanismo, prometem que a imortalidade está batendo à porta. Ligadas a esse imaginário
estão também ideias que, embora unidas na suposição de que pós-humano significa a
emergência de outra espécie, distinta da atual espécie humana, caminham em duas direções:
de um lado, aqueles que creem que as duas espécies, humana e pós-humana, conviverão no
futuro, de outro lado, a crença de que o pós-humano engenheirado substituirá o humano.
1.3 A essência da Modernidade: o caráter técnico
A Modernidade, alvo de discussão aqui, é o período compreendido pela teoria social
de então como influenciado pelo Iluminismo. Momento no qual o homem passa a se
reconhecer como um ser autônomo, autossuficiente, e a se mover pela crença de que, por
meio da razão, pode atuar sobre a natureza e a sociedade. Neste sentido, Modernidade
também se caracteriza como episódio da história intelectual do Ocidente, um terreno de
urdidura das ideias que vão anunciando a emergência de novos padrões e paradigmas da vida,
compreendendo o domínio da vida pensada, o domínio das ideias propostas, discutidas,
confrontadas na esfera do universo simbólico que, a partir da Grécia, adquire no mundo
ocidental seu contorno e seu movimento próprios denominado mundo intelectual.
Como tivemos ocasião de explicar em outro lugar, a modernidade só se
constitui como estrutura de um universo simbólico quando a Razão, no seu
uso teórico explícito ou formalizado (logos demonstrativo), emerge
definitivamente como instância reguladora do sistema simbólico da
sociedade, fenômeno que teve lugar originariamente na Grécia do século VI
a.C. (VAZ, 2012, p.13).
O mundo intelectual não evolui solitário no espaço simbólico, mas forma sistema e
interage com outras esferas: da organização social, das estruturas de poder, das condutas, das
crenças e, por fim, na consciência comum.
A refração das ideias elaboradas no mundo intelectual da Modernidade, interagindo
com outras esferas, atuou como óculos através dos quais o mundo passou a ser visto e
interpretado. As ideias do mundo intelectual moderno formaram o fundamento
epistemológico da realidade, estabelecendo novas regras e princípios metodológicos para se
interpretar os acontecimentos do mundo, uma virada hermenêutica sobre como entender os
fenômenos, olhados agora a partir de um novo prisma, o da razão.
Habermas (2000, p.3-4), citando Max Weber, afirma que para este ainda era evidente a
relação interna, e não a meramente contingente, entre a Modernidade e aquilo que designou
como racionalismo ocidental, pois ele descreveu como “racional” o processo de
desencantamento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do mundo, criou
uma cultura profana, mas acrescentando o que Max Weber descreveu do ponto de vista da
racionalização não foi apenas a profanação da cultura ocidental, mas, sobretudo, o
desenvolvimento das sociedades modernas. As novas estruturas sociais são caracterizadas
pela diferenciação daqueles dois sistemas, funcionalmente interligados, que se cristalizaram
em torno dos núcleos organizadores da empresa capitalista e do aparelho burocrático do
Estado. Weber entende esse processo como a institucionalização de uma ação econômica e
administrativa racional com respeito a fins. À medida que o cotidiano foi tornado por esta
racionalização cultural e social, dissolveram-se também as formas de vida tradicionais.
Neste sentido, esta reviravolta hermenêutica, inspirada pelas ideias oriundas do mundo
intelectual moderno, provoca uma reviravolta no mundo real: a passagem de uma economia
feudal para uma economia capitalista moderna, do rural para o urbano; sociedade industrial e
de classes; o surgimento do Estado moderno; significativo avanço científico; otimismo em
torno do progresso gerado pela ciência e tecnologia.
Mas as questões suscitadas pelos acontecimentos do século XX despertaram a
necessidade de um olhar crítico sobre a Modernidade, tarefa realizado no primeiro momento,
após a Segunda Guerra, pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, cujos principais
representantes são Adorno (1903-1969), Marcuse (1898-1979), Horkheimer (1895-1973) e
Benjamin (1892-1940). Não obstante as diferenças de pensamento desses filósofos, um tema
perpassa a obra de todos eles: a crítica radical à sociedade industrial moderna.
Após problemas apontados pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, o debate atual a
respeito da Modernidade na teoria social, no que concerne ao seu âmago, gravita em torno de
conceitos relacionados à “pós-modernidade” ou à “segunda modernidade”, esta última como
uma tentativa de resposta as questões levantadas pelos teóricos da “pós-modernidade”. O que
há em comum entre estas duas formas de compreender a Modernidade é o modo como
discutem a questão: qual é o âmago da Modernidade? Pois teóricos que se situam numa ou
noutra posição tendem a reconhecer a racionalidade como âmago da Modernidade.
Tanto os defensores de uma “pós-modernidade” quanto os de uma “segunda
modernidade” estão reagindo ao que foi apontado na tradição filosófica ocidental como
indicações de que a promessa de Kant (1985), de que a razão levaria o homem à maioridade,
tinha um lado “regressivo” que precisava ser levado em conta.
A Modernidade como projeto que buscava desencantar o mundo, o conhecimento
acerca deste, e a organização social para libertar os seres humanos de seus grilhões, saudando
a criatividade humana, a descoberta científica e a busca da excelência individual em nome do
progresso humano, abundante de doutrinas de igualdade, liberdade, fé na inteligência humana
e razão universal, repleto de extravagante expectativa de que as artes e as ciências iriam
promover não somente o controle das forças naturais como também a compreensão do mundo
e do eu, o progresso moral, a justiça das instituições e até a felicidade dos seres humanos.
Os acontecimentos do século XX (duas guerras mundiais, ameaças de aniquilação
nuclear, campos de concentração, a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stálin) geram o
ambiente no qual florescerá a suspeita de que o projeto da Modernidade estava fadado a
voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num sistema de
opressão universal em nome da libertação da humanidade, com a consequente alegação de
que a lógica que se oculta por trás da racionalidade iluminista é uma lógica da dominação e da
opressão.
Sobre temor provocado pelo o que a humanidade poderá vir a causar a si mesma,
devido aos poderes que libertou e sobre os quais pode não ter controle, o filósofo Hans Jonas
(2006, p.65) destaca:
Agora trememos na nudez de um niilismo no qual o maior dos poderes se
une ao maior dos vazios; a maior das capacidades, ao menor dos saberes
sobre para que utilizar tal capacidade. Trata-se de saber se, sem restabelecer
a categoria do sagrado, destruída de cabo a rabo pelo Aufklärung
[Iluminismo] científico, é possível ter uma ética que possa controlar os
poderes extremos que hoje possuímos e que nos vemos obrigados a seguir
conquistando e exercendo.
Além dos problemas apontados pela Teoria Crítica, outros começam a ser observados
nas últimas décadas do século XX. Dentre estes, certa ruptura no interior da Modernidade, a
qual se destaca dos contornos da sociedade industrial clássica e assume uma nova forma,
denominada “sociedade industrial de risco”, conforme destaca Beck (2010, p.12).
Beck (2010, p.12-13), por meio de uma analogia histórica desta ruptura, expõe que do
mesmo modo como no século XIX a modernização dissolveu a “esclerosada sociedade agrária
estamental” e, ao depurá-la, extraiu a imagem estrutural da sociedade industrial, na atualidade
a modernização dissolve os contornos da sociedade industrial e, na continuidade da
modernidade, surge outra configuração social.
Os limites dessa analogia apontam simultaneamente para as peculiaridades
dessa perspectiva. No século XIX, a modernização se consumou contra o
pano de fundo de seu contrário: um mundo tradicional e uma natureza que
cabia conhecer e controlar. Hoje, na virada do século XXI, a modernização
consumiu e perdeu seu contrário, encontrando-se afinal a si mesma em meio
a premissas e princípios funcionais socioindustriais. A modernização no
horizonte empírico da pré-modernidade é suplantada pelas situações
problemáticas da modernização autorreferencial. Se no século XIX foram os
privilégios estamentais e as imagens religiosas do mundo que passaram por
um desencantamento, hoje é o entendimento científico e tecnológico da
sociedade industrial clássica que passa pelo mesmo processo – as formas de
vida e de trabalho na família nuclear e na profissão, os papéis-modelo de
homens e mulheres etc. A modernização nos trilhos da sociedade industrial,
que não estava prevista em qualquer dos manuais teóricos ou livros de
receitas políticas do século XIX. É essa iminente oposição entre
modernidade e sociedade industrial (em todas as suas variantes) que
atualmente nos confunde em nosso sistema de coordenadas, a nós que
estávamos até a medula acostumados a conceber a sociedade nas categorias
da sociedade industrial (BECK, 2011, p.13).
Beck trata do mundo moderno em dois momentos: primeira modernidade (industrial),
caracterizada por uma sociedade estatal e nacional, estruturas coletivas, pleno emprego,
rápida industrialização; e segunda modernidade ou modernidade reflexiva. A denominação
“reflexiva” decorre do fato de que as premissas, as contradições, os desacertos da fase
anterior, devem ser refletidos e projetados na busca da construção de uma nova sociedade
com linhas de coerência e de continuidade. O processo de modernização torna-se “reflexivo”
por converter a si mesmo em tema e problema.
De modo semelhante, ao discorrer sobre “emancipação”, Bauman (2001) argumenta
que um processo de liquefação dos poderes ocasionou a passagem do “sistema” para a
“sociedade”, da “política” para as “políticas da vida”, descendo do nível “macro” para o
“micro” do convívio social, tornando a fase atual da modernidade numa versão
individualizada e privatizada da modernidade na qual o peso da trama dos padrões e a
responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos.
Bauman demonstra como a teoria crítica clássica formulada por Adorno e Horkheimer
foi gerada pela experiência de outra modernidade, obcecada pela ordem e pelo controle social,
com normas institucionalizadas e regras habituais, atribuição de deveres e desempenho
supervisionado, a “modernidade sólida”. Esta teoria crítica objetivava a liberdade daqueles
que viviam sob o domínio dos controladores da produção. Tal teoria crítica é vista como
ultrapassada devido às diferenças entre a sociedade alvo de sua crítica e a sociedade de hoje.
“Ela parece ‘pesada’ (contra a ‘leve’ modernidade contemporânea); melhor ainda, ‘sólida’ (e
não ‘fluida’, ‘líquida’ ou ‘liquefeita’); condensada (contra difusa ou ‘capilar’); e, finalmente,
‘sistêmica’ (por oposição a ‘em forma de rede’)” (BAUMAN, 2001, p.33).
Esta modernidade pesada/sólida/condensada/sistêmica da “teoria crítica” era
impregnada por totalitarismo, homogeneizadora, por isso, o objetivo da “teoria crítica” era a
defesa da autonomia, da liberdade de escolha e da autoafirmação humanas. Já a sociedade
moderna atual deu forma à individualidade de tal modo que se tornou numa sociedade na qual
as pessoas conquistaram uma autonomia de jure, mas não uma autonomia de facto; sociedade
na qual interesses individuais suplantam os coletivos, onde não há espaço para a política com
P maiúsculo, mas somente para a “política vida” do indivíduo; lugar das falsas ilusões do
consumismo exorcizador.
Diante do exposto, propõe-se aqui buscar e apontar uma alternativa para o
entendimento das questões levantadas no debate sobre a Modernidade na teoria social que
ainda gira em torno da oposição entre os teóricos da “pós-modernidade” ou da “segunda-
modernidade” e problematizar a respeito da essência da Modernidade.
1.3.1 O debate sobre a Modernidade
O projeto da Modernidade que equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos
pensadores iluministas para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais, e a
arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas. A ideia era usar o acúmulo de
conhecimento gerado em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária.
O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da
arbitrariedade das calamidades naturais. Ou seja, o desenvolvimento de formas racionais de
organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das
irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem
como do lado sombrio da nossa própria condição humana.
Neste sentido, a racionalização tem sido um conceito fundamental para se entender
todo o desenvolvimento social e o progresso técnico das sociedades, bem como o projeto de
modernidade. Max Weber demonstrou como o progresso da civilização no Ocidente foi
regido por uma redução à lógica da vida social, explicou que a modernidade não só se deriva
da diferenciação da economia capitalista e do Estado, mas também de uma reordenação
racional da cultura e da sociedade. O conceito weberiano de racionalização, todavia, recorre a
duas tendências do desenvolvimento histórico: A primeira delas é a tendência dos processos
sociais e históricos em tornarem-se cada vez mais confiantes no cálculo e no conhecimento
técnico de modo a obter controle sobre o mundo natural e social. A segunda se refere à
tendência da ação humana em libertá-la de sua dependência do pensamento mágico como
forma de compreender o mundo, estabelecendo uma confiança contraposta àquilo que é
imediatamente dado na realidade empírica. Assim, a racionalização constituiu-se como um
processo dependente das estratégias de ação social e dos ajustes dos meios e fins da ação na
consecução dos objetivos (WEBER, 2012).
Weber (2003), ao refletir sobre o produto da moderna civilização europeia, indaga a
respeito de que combinações de circunstâncias podem ser atribuídas ao fato de na civilização
ocidental, terem surgido fenômenos culturais que apresentam uma linha de desenvolvimento
de significado e valor universais. E como resposta a sua indagação apresenta exemplos de
fenômenos presentes na civilização ocidental, bem como em outras civilizações, porém cujo
diferencial está no nível de racionalidade que permeia esses fenômenos. Tais como o pleno
desenvolvimento da teologia sistemática creditada ao Cristianismo sob a influência helenista,
enquanto havia apenas fragmentos no islamismo e em algumas poucas seitas hindus; na
astronomia, reconhece que embora presente na Babilônia faltavam as bases matemáticas
recebidas primeiramente dos gregos, bem como as provas racionais na geometria, outro
produto do intelecto grego, também criador da mecânica e da física; a total ausência de
fundamentos biológicos e, particularmente, bioquímicos na medicina de outros povos, mas
presente na ocidental; o mesmo pode ser dito sobre a música ocidental (com harmonia
racional, a formação do tom básico sobre três tríades com o terceiro harmônico; orquestra,
com seu núcleo de quarteto de cordas; e etc.), a arquitetura (o uso racional da abóbada gótica
como meio de distribuição de cargas), meios para impressão de literatura, universidades e
academias com uma busca racional, sistemática e especializada da ciência por parte de
pessoal treinado e especializado; um Estado com uma constituição racionalmente redigida,
leis racionalmente ordenada e uma administração coordenada por regras racionais; isto dentre
outros exemplos apresentados por Weber como fenômenos do ocidente que o distinguiam de
sociedades de outras partes do mundo.
Jürgen Habermas (2000, p.3-4) identifica no conteúdo desta indagação o problema que
permeia toda investigação científica da obra de Weber:
Na célebre introdução à coletânea dos seus ensaios sobre sociologia da
religião, Max Weber desenvolve aquele “problema da história universal” ao
qual dedicou toda a obra científica de sua vida, a saber, por que fora da
Europa “nem o desenvolvimento cientifico, nem o artístico, nem o politico,
nem o econômico seguem a mesma via de racionalização que é própria do
Ocidente”. Para Max Weber ainda era evidente a relação interna, e não a
meramente contingente, entre a modernidade e aquilo que designou como
racionalismo ocidental. Descreveu como “racional” aquele processo de
desencantarnento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas
do mundo, criou uma cultura profana. As ciências empíricas modernas, as
artes tornadas autônomas e as teorias morais e jurídicas fundamentadas em
princípios formaram esferas culturais de valor que possibilitaram processos
de aprendizado de problemas teóricos, estéticos ou prático-morais, segundo
suas respectivas legalidades internas.
É inegável que a racionalidade é um dos principais elementos que caracterizam a
modernidade, pois esta coloca à frente, em todos os seus domínios, a racionalidade. No plano
das relações sociais, isto significa que os indivíduos deveriam, em princípio, manter seu status
social em função apenas de sua própria competência, adquirida pela educação e a formação e
não como herança ou por atributos pessoais. No âmbito da explicação do mundo e dos
fenômenos naturais, sociais ou psíquicos, a racionalidade moderna exige que todas as
afirmações explicativas respondam a critérios precisos do pensamento científico (HERVIEU-
LÉGER, 2008, p.31).
Porém no século XX, a humanidade testemunhou duas guerras mundiais, campos de
concentração e esquadrões da morte, a ameaça de aniquilação nuclear e sua experiência de
Hiroshima e Nagasaki, fazendo com que certamente o otimismo presente no projeto da
Modernidade fosse posto por terra. Isto ocasionou a suspeita de que o projeto do Iluminismo
estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num
sistema de opressão universal em nome da libertação da humanidade. Foi essa a atrevida tese
apresentada por Horkheimer e Adorno em A dialética do esclarecimento (1985), livro
originalmente publicado em 1947.
A modernidade marcada pelo processo de racionalização e consequente
desencantamento do mundo, em termos weberianos, também ver-se obrigada a lidar com
irracionalidades, com corrosões em suas bases epistemológicas. Os problemas relacionados à
Modernidade, acima mencionados, irão culminar na “disputa sobre a modernidade”. Assim,
de um lado estarão aqueles teóricos que partem da premissa de que a sociedade atual já se
situa para além do horizonte moderno. Do outro, aqueles que sustentam que ainda é cedo para
dizer que nos despedimos da modernidade.
No âmbito de diferentes leituras sobre o estatuto da vida social no mundo
contemporâneo, em 1979, o filósofo Jean-François Lyotard publicou a obra La condition
postmoderne, um esforço de situar o conhecimento cientifico na chamada condição “pós-
moderna”. Onde destaca que uma das marcas registradas da pós-modernidade, enquanto
condição da cultura, está na rejeição as metanarrativas ou aos “grandes relatos”. Seguindo esta
mesma tendência, David Harvey escreve o livro Condição pós-moderna, originalmente
publicado em inglês em 1989 com o título The Condition of Postmodernity: An Enquily into
the Origins of Cultural Change, se constitui numa investigação histórica sobre a natureza do
pós-modernismo, “não tanto como um conjunto de ideias quanto como uma condição
histórica que requeria elucidação [...], um levantamento das ideias dominantes e, como o pós-
modernismo mostra ser um campo minado de noções conflitantes” (HARVEY, 2008, p.9).
Zygmunt Bauman, no livro Modernidade líquida, desenvolve a sua argumentação,
apropriando-se da metáfora da fluidez, característica de líquidos e gases. A metáfora da
“liquidez” ou “fluidez” é tomada pelo autor como adequadas para captar a presente fase da
modernidade. Desta forma, o autor compreende a modernidade a partir de duas fases distintas:
uma fase sólida, pesada, associada ao início do processo de modernização, mudança da
economia feudal para a capitalista; e a fase atual, caracterizada por “liquidez” e “leveza”,
momento no qual a modernidade derreteu os sólidos, fazendo deste evento o seu traço
permanente.
Bauman (1999), em sua tentativa de realizar uma “sociologia da pós-modernidade”,
apresenta como eixo de sua reflexão as categorias de “ordem” e “ambivalência”. A
Modernidade se caracteriza pela tentativa de eliminar a ambivalência através da “ordem”. Se
a Modernidade é a tentativa de superação da ambivalência, a pós-modernidade, ao contrário,
significa conviver com ela. A consciência pós-moderna significa a aceitação da incerteza e da
contingência da própria Modernidade.
As reflexões de Foucault e Bauman, embora diferentes, revelam o elemento
fundamental da abordagem pós-moderna. Tanto num quanto noutro, o projeto de
racionalização da Modernidade é denunciado como tendo produzido o seu contrário. Para
Foucault, a análise da razão nos revela uma sociedade do cárcere, permeada pelo poder e a
disciplina. Já em Bauman, a pós-modernidade é a aceitação da ambivalência da Modernidade.
Em ambos, porém, a proposta de Kant na qual a razão iluminista é apontada como a
maioridade do homem é desmascarada. A razão não trouxe emancipação, progresso ou a
maioridade, trouxe uma nova prisão e a eliminação do outro.
Os já citados, Adorno e Horkheimer (1985) e, mais tarde, Marcuse (1982) fazem uma
crítica radical à racionalidade científica, que, entendida como neutra em relação a valores,
afastou do exame da razão, como subjetivas e irracionais, todas as questões sociais que não
podiam ser resolvidas na perspectiva da relação meio-fins, e que fugiam do âmbito das
questões relativas à economia e à eficácia dos meios. Para esses autores, a ciência e a técnica,
ao visarem o domínio da natureza e a sua submissão ao homem, já trazem em si o germe da
dominação. Abstraindo de toda a discussão em torno da questão de valores, esse tipo de
racionalidade traz em seu bojo uma forma de dominação política que não lhe é imposta de
fora, mas habita o seu interior, e já está presente no processo de sua própria construção.
Jürgen Habermas, porém, no texto Modernidade, um projeto inacabado – texto de um
discurso proferido em setembro de 1980, quando recebeu o Prêmio Adorno (Habermas, 2000,
p.1) – propõe a retomada crítica dos ideais modernos, que não devem ser abandonados ou
tratados como uma causa perdida, mas ser tratado como um projeto cujos erros devem ser
corrigidos.
Habermas (2000) desenvolverá estes argumentos de um modo mais consistente nas
doze lições que fazem parte do texto O discurso filosófico da modernidade no qual faz uma
crítica aos autores pós-modernos que ao elaborarem um discurso racional para criticar a
própria razão caem em contradição, criando o que Habermas considera aporias
intransponíveis e, em última instância, na queda em direção ao “irracionalismo”.
Habermas busca superar as oposições que atravessam a cultura contemporânea:
“modernidade versus pós-modernidade, racionalismo versus relativismo, universalismo
versus contextualismo, subjetivismo versus objetivismo, humanismo versus ‘morte do
homem’, etc.” (MCCARTHY, 1995, p.10).
Habermas (1987) irá propor o que entende ser uma crítica correta à Modernidade com
uma alternativa as teorias pós-modernas em Teoria da ação comunicativa para salvar a razão
da crítica efetuada pelos autores pós-modernos, estabelece uma nova forma de compreensão
da própria razão. Assim busca superar o conceito de racionalidade instrumental, ampliando o
conceito de razão, para o de uma razão que contém em si as possibilidades de reconciliação
consigo mesma: a razão comunicativa. Deste modo, surge então sua célebre distinção entre a
“racionalidade instrumental” e a “racionalidade comunicativa”. Enquanto no primeiro
modelo, a racionalidade está voltada para o sucesso de seus empreendimentos, o segundo
modelo tem como objetivo o entendimento mútuo entre os participantes. Assim sendo, o
objetivo da racionalidade instrumental é o ganho e o da racionalidade comunicativa é o
entendimento. Ao dividir a racionalidade entre instrumental e comunicativa, Habermas
acredita poder levar adiante o projeto da Modernidade. Não se trata de abandonar o projeto
iluminista da Modernidade, deixando para trás o seu núcleo central que é a razão. Mas de
denunciar os excessos de um dos lados desta razão, a racionalidade instrumental, e resgatar o
potencial emancipador da racionalidade comunicativa. Desta forma, Habermas propõe uma
“segunda Modernidade”.
1.3.2 Modernidade técnica
Nos textos de Franz Josef Brüseke (2002), o conceito de Modernidade Técnica é, pela
primeira vez, proposto na literatura acadêmica brasileira para evidenciar o caráter técnico da
Modernidade como o seu essencial. O conceito destaca a emergência desta Modernidade para
evocar, por um lado, seu advento processual e histórico, e, por outro, seu alto grau de
instabilidade e imprevisibilidade.
Para Brüseke (2002, p.136), liberdade, igualdade, emancipação do homem da sua
menoridade por meio do uso da razão, progresso social e econômico, superação da fome e das
doenças, paz ao invés da guerra, e também em versão mais recente: individualidade,
autenticidade e autorrealização, reconhecimento da diferença, comunicação, participação, é
um belo catálogo de promessas da modernidade européia que tem a sua versão comunista,
também européia, enfatizando a igualdade em detrimento da liberdade, a satisfação das
necessidades básicas em detrimento das necessidades culturais e espirituais, vangloriando a
verdade absoluta em detrimento da relatividade individual e, assim, coroando as promessas
modernas com uma escatologia histórica.
O nacional-socialismo alemão, outro projeto da modernidade pouco
identificado pelos teóricos como tal, completa a tríade modernizante no
século XX, composto pelo paradigma comunista, nacional-socialista e
democrático ou, para simplificar ainda mais, pelo modelo russo, alemão e
americano. Hoje já estamos à caminho de esquecer que estes modelos eram
altamente competitivos entre si e que era difícil prever que o modelo
americano venceria a disputa. O projeto nacional-socialista era deficiente em
sua autolegitimação política, era um modelo excludente a tal ponto que
somente uma única população tinha chance de ser atendida por ele: os
próprios alemães. Este modelo, no entanto, carregava elementos de
legitimação coletivistas, comunitários e socialistas, que acabaram criando
simpatias também em movimentos políticos fora da própria Alemanha. Além
do fascismo italiano e espanhol, também o populismo latino-americano
carrega traços de ser um “sócio” menor e tímido deste projeto (BRÜSEKE,
2002, p.136).
Os três tipos ideais da Modernidade técnica (modelos alemão, russo e americano)
apresentam a técnica moderna como o elemento comum entre si. Estes tipos são relevantes
para nortear o debate recente sobre a Modernidade, uma vez que, são os intentos de
dominação do projeto nacional-socialista e o fracasso da utopia comunista que ocasionam,
após a Segunda Guerra, as críticas de tom negativo à Modernidade. Estas críticas provocaram
a emergência dos conceitos de “pós-modernidade” como resposta para a situação do Ocidente
do pós-guerra até os dias atuais e o aparecimento de uma teoria sobre uma “segunda
Modernidade” como tentativa de correção dos fracassos do projeto moderno original. Mas a
Modernidade que está sendo problematizada nestes dois conceitos é a Modernidade como
concebida pelos Iluministas, e esta de acordo com Brüseke é uma Modernidade européia e
não universal. E que no âmago da Modernidade está a técnica, uma vez que, ciência, técnica e
empresa capitalista formaram a tríade que fizeram eclodir a Revolução Industrial,
distinguindo os tempos modernos dos tempos anteriores.
Se procurarmos compreender a modernidade como algo essencialmente
técnico, evitaremos uma discussão sem parâmetros sobre os ideais
iluministas, em que uma boa idéia se opõe a outra. Difícil, embora não
impossível, é contestar os paradigmas da modernidade com sua razão
centrada no sujeito, sua racionalidade e cientificidade, seu clamor pela
igualdade, liberdade e justiça, seu humanismo e sua moralidade universal,
sua valorização do direito, da ordem e do progresso da humanidade
(BRÜSEKE, 2002, p.138).
A teoria da Modernidade técnica é uma retomada da leitura do pensamento de Martin
Heidegger com consequente aplicação à discussão sociológica sobre a Modernidade. Não se
trata de algo já concluído, mas de uma teoria em elaboração. Segundo Brüseke (2001, p.58):
[...] uma nova leitura coloca a teoria da técnica de Heidegger do lado, ou
melhor dito, na tradição das grandes reflexões sobre a causa movens da
sociedade moderna, em especial da tradição da mais-valia relativa de Karl
Marx e da teoria do racionalismo ocidental de Max Weber, com a sua
racionalização crescente (2001, p.58).
Ao discutir o texto A questão da técnica, publicado por Heidegger em 1958 para tratar
a essência da técnica que em nível mais profundo é “desocultamento”, Brüseke (2001, p.62)
afirma:
Definir a técnica como uma maneira de desocultamento significa entender a
essência da técnica como a verdade do relacionamento do homem com o
mundo. A técnica não é mais algo exterior e exclusivamente instrumental,
mas a maneira como o homem apropria-se e aproxima da natureza (...). Na
história das diversas populações, culturalmente distintas, encontramos
diferentes modos de desocultamento. Estes, por sua vez, são, na sua
diversidade, somente possíveis porque o Ser permite diferentes maneiras de
desocultamento, em um certo sentido, podemos dizer que o Ser mostra-se
sempre de um ângulo diferente, no processo do seu desocultamento.
Além disto, Brüseke destaca que na Modernidade a técnica (que possuía um caráter
finalístico, em definição, um meio para alcançar fins determinados pelo homem) perde o seu
caráter finalístico, tornando-se um meio aberto, fazendo com que a Modernidade transcenda a
racionalidade de fins, que não deixa de existir, para fazer surgir meios que posteriormente
buscam os seus fins. A técnica adquire um caráter contingente, ampliando o horizonte das
possibilidades do mundo do homem, “de maneira que a frase ‘Algo é assim, mas também
poderia ser diferente’ parece expressar a essência da modernidade” (BRÜSEKE, 2010, p.9).
A transformação da técnica em técnica moderna se dá com esta perda do
caráter finalístico da técnica, ou melhor, com a prevalência da técnica como
um meio aberto. Assim, entramos no mundo do imprevisível, onde a
trajetória linear está sendo substituída pelos “saltos quânticos”, onde algo é
necessariamente assim, mas também poderia ser diferente. A técnica
moderna é altamente contingente e contamina, com essa contingência, toda a
sociedade moderna (BRÜSEKE, 2002, p.139).
A técnica, ao ser incluída na percepção da contingência, é revelada como produto de
escolhas ocasionais, impulsionadas por hábitos culturais, interesses econômicos ou
irracionalidades de qualquer espécie.
Assim, para alguns, as leis da história garantem o sentido social da técnica e
do seu desdobramento, mesmo se for negativo. Os progressistas modernistas
encontram aqui solo firme, como igualmente os catastrofistas e críticos
negativos, que prognosticam a inevitabilidade e a necessidade da
autodestruição da sociedade moderna, através da técnica desenvolvida no
seu bojo (2002, p.139).
Em suma, segundo Brüseke (2002, p.140), a técnica moderna deixou, há muito, de ser
simplesmente um meio, a humanidade pensa tecnicamente e desoculta o mundo tecnicamente,
supondo que este mundo se deixa reduzir àquilo que é denominado matéria; supondo também
um mundo objeto que esteja à espera de que o homem descubra os seus mecanismos internos,
para desmontá-lo e recompô-lo ao seu gosto.
1.4 Conclusão
Umberto Galimberti (2006, p.17) levanta a questão “o que será do homem num
universo de meios que não têm em vista outra coisa senão o aperfeiçoamento e a
potencialização da própria instrumentalização?” O homem num universo de meios é o homem
num universo de possibilidades, no qual as coisas são como são, mas podem ser diferentes,
um universo de contingência, um futuro aberto. Após o fracasso das grandes utopias, é a
técnica moderna que mantém o horizonte aberto para as utopias futuras. A técnica moderna
por seu caráter contingente possibilita à humanidade desocultar o mundo.
Entre as categorias que costumamos usar para nos orientarmos no mundo, a
única que nos põe à altura do cenário aberto pela técnica é a categoria do
absoluto. “Absoluto” significa livre de qualquer vínculo (solutus ab),
portanto, de todo horizonte de fins, de qualquer produção de sentido, de todo
limite e condicionamento (GALIMBERTI, 2006, p.15-16).
O entendimento de que a humanidade está situada no horizonte de uma Modernidade
técnica oferece condições teóricas tanto para se compreender a Modernidade na sua origem
quanto para lidar com os temas que ocasionaram o surgimento das teorias da “pós-
modernidade” e da “segunda modernidade”, pois como núcleo central estas teorias trazem
uma crítica à razão. O que a teoria da Modernidade Técnica tem a mostrar é que as
possibilidades positivas e negativas da Modernidade são determinadas pelo caráter
contingente da técnica. É ela que fornece as oportunidades e os riscos da Modernidade.
Os espantosos surtos irracionalizantes no século XX somente aproximam-se
de uma compreensão analítica quando começamos a entender que a
modernidade é na sua raiz técnica. A técnica, por sua vez, contribui em
função de seu caráter contingente para uma destituição da predominância da
racionalidade de fins, tão característica da fase histórica na qual surgiu o
capitalismo, por uma racionalidade contingente. Essa racionalidade
desoculta científica e tecnicamente o Ser, sem dispor de um fim que daria
direção ou identificaria limites. Sem direção e limites a modernidade técnica
desenvolve-se racionalmente, sem que haja uma proteção contra oscilações
irracionalizantes que castigam cada vez mais seu percurso (BRÜSEKE,
2002, p.141).
Neste sentido, Galimberti (2006, p.12-13) acrescenta:
Se a técnica se torna esse horizonte último a partir do qual se desvelam todos
os campos da experiência, se não é mais a experiência que, reiterada,
comanda o procedimento técnico, mas é a técnica que se coloca como
condição a decidir o modo de se fazer a experiência, então assistimos a uma
reviravolta pela qual o sujeito da história não é mais o homem, e sim a
técnica, que, emancipando-se da condição de mero “instrumento”, dispõe da
natureza como um fundo e do homem como um funcionário seu. Isso
comporta uma revisão radical dos tradicionais modos de entender a razão, a
verdade, a ideologia, a política, a ética, a natureza, a religião e a própria
história.
A técnica como fornecedora das oportunidades e dos riscos da modernidade, porém
não somente os riscos que provêm do culto das forças do real, como alerta Beck, mas
também os riscos do culto das forças do bem e do culto das forças originárias (LOPARIC,
1994). Em meio a este alerta, Brüseke (2002, p.141) acrescenta:
As grandes catástrofes do século XX, o século mais sangrento na história da
humanidade, estão intimamente ligadas tanto com a sobrevalorização das
forças do bem como das forças originárias. A primeira e a segunda guerra
mundiais tiraram toda a sua força da modernidade técnica das sociedades
contemporâneas, e sua mobilização totalitária ganhou força tanto de ideais
nobres como de necessidades arcaicas. O nacional-socialismo, com a sua
relação pré-lógica com o solo e o sangue, seu culto à comunidade dos
soldados, dos camponeses e dos operários é o maior exemplo disso. Mas
também o culto das forças do bem fez as suas vítimas. A cumplicidade
intelectual de grandes cientistas do Ocidente e do Oriente com o regime
soviético – nos anos de 1920, 1930 e 1940, tão inescrupuloso quanto seu
adversário nacional-socialista – explica-se pela adesão à sua autolegitimação
classista-universalizante. Esta, por sua vez, consistiu basicamente no
argumento que a causa nobre, a libertação dos operários e dos camponeses
das restrições historicamente impostas, justificava temporariamente a
injustiça, a desigualdade e a ditadura (Courtois, 1997).
Ao pensar o modo como a técnica possibilita a revisão de cenários históricos e desloca
o homem da posição de sujeito da história para a de funcionário da técnica, Galimberti (2006,
p.14) expõe a forma como a técnica comporta uma revisão radical dos modos tradicionais de
entender a ética:
A ética, como forma de agir em vista de fins, sente a sua impotência no
mundo da técnica, regulado pelo fazer como pura produção de resultados,
em que efeitos se adicionam de tal modo que os resultados finais não se
remetem mais às intenções dos agentes iniciais. Isso significa que não é mais
a ética que escolhe os fins e encarrega a técnica de encontrar os meios, mas é
a técnica que, assumindo como fins os resultados dos seus procedimentos,
condiciona a ética, obrigando-a a tomar posição sobre uma realidade, não
mais natural e sim artificial, que a técnica não cessa de construir e tornar
possível, qualquer que seja a posição assumida pela ética.
A Modernidade, entendida como essencialmente técnica, faz compreender melhor os
fenômenos contingentes e irracionais gerados em seu seio. Isto provoca um esvaziamento de
tal magnitude que torna a técnica imune à ética, fazendo com que se adapte a todos os três
tipos ideais apresentados (o alemão, o russo e o americano).
Diante destas questões até agora suscitadas, percebe-se que o problema perene da
condição humana é a contingência, o fato que algo é necessariamente como é, mas, também
poderia ser diferente. Muito antes do surgimento da Modernidade Técnica que colocou a
mudança, a inovação, a construção e a destruição, no centro da dinâmica social, o homem
percebeu essa conditio sine qua non da sua existência.
Por meio da técnica, a humanidade intervém na natureza ansiosa por prever e controlar
o devir, o movimento, e assim perpetuar-se. Por sua vez, a contingência inerente à técnica
moderna amplia as possibilidades, fortalecendo a crença de que tudo é possível de ser
realizado tecnicamente, até mesmo o anseio por perpetuar-se. A técnica, deste modo, adquire
significado religioso, alimentando a crença de que poderia conceder as possibilidades para
redenção dos seres humanos, que no caso dos pós-humanistas de modo similar aos gnósticos,
consiste na libertação da condição corpórea. Assim, a técnica concederia as condições para
que se realize o triunfo final da humanidade, limitada por sua condição orgânica, biológica. A
técnica possibilitaria a consumação escatológica, a inauguração de uma nova era pós-
biológica, “novos céus e uma nova terra, as coisas velhas passaram, eis que tudo se fez novo”.
Uma era livre de doenças, na qual os paralíticos voltarão a andar, cegos a enxergar e os mudos
a falar; uma era onde não há choro ou luto, porque a morte não existirá; uma era na qual as
deficiências serão eliminadas e a humanidade experimentará a emergência de todas as suas
potencialidades.
Este tom escatológico e apocalíptico está sendo utilizado de forma intencional como
alerta para o modo como a existência, em meio a um contexto tecnológico, é alimentada por
um imaginário religioso. Religioso, porém, em sua versão dessacralizada, pois não serão
poderes divinos que operarão tais transformações, mas a própria humanidade através do
conhecimento (gnosis) técnico-científico. A noção de corporeidade, corpo como construção
social, parece se impor ao ponto de subordinar totalmente o corpo biológico, negando sua
relevância, sua realidade enquanto fenômeno da natureza. Neste sentido, há uma posição
extremada que através da ênfase sobre o culturalmente construído restringe o papel biológico
na formação de noções sobre o corpo. Desta noção de corpo culturalmente construído, através
das possibilidades geradas pela técnica, passa-se a concretização de corpo tecnicamente
construído, não somente como forma de conceber o corpo, mas pelo fortalecimento da crença
de que o que até então era apenas um conteúdo de consciência, uma idealização, pode tornar-
se algo real. O imaginado pode ser materializado, construído de fato tecnicamente.
Há o apagamento pelas normas de etiqueta de elementos que identificam a
corporeidade: odores do suor, flatulências, arroto, roncos estomacais, escarros, secreções
nasais, dentre outros. Além destes, são considerados embaraços, para moderna representação
do corpo, elementos que denunciam fragilidade e limitação: velhice, doenças, deformidades e
deficiências físicas, por exemplo. Há também como resultado de uma idealização do corpo, o
repúdio ao que não se enquadra no ideal de corpo jovem, malhado na academia, bronzeado.
Neste sentido, as intervenções técnico-cirúrgicas visam aperfeiçoar, adaptar aos padrões
estéticos, corrigir, melhorar o rascunho corporal. Assim as tecnologias geram possibilidades
ou a ilusão de que tudo é possível. Uma vez que a contingência está fortemente atrelada à
técnica moderna. Ao criar possibilidades reais de se moldar o corpo ao desejo, alimenta-se a
crença de que o ser humano pode projetar-se e executar o projeto de “auto-melhoramento”,
transmutar o que não lhe agrada. Ao gerar a ilusão de infinitas possibilidades, alimenta
imaginários sobre o futuro dos seres humanos e a completa eliminação do que se julgue
limitador da auto-transcendência humana. Dentre estes limitadores o corpo e a própria
condição humana. Eis um eschaton gnóstico, a consumação da história e a próxima etapa no
processo evolutivo possibilitados pelo conhecimento (gnosis).
CAPÍTULO 2
MODERNIDADE E SECULARIZAÇÃO: QUESTÕES FILOSÓFICAS
Já no início do século XX Georg Simmel (apud MARRAMAO, 1997, p.105) observou
que “Moderno” e “moda” possuem uma ligação não apenas terminológica, mas uma ligação
intrínseca, pois ambos os termos descendem do advérbio latino modo, cujo significado é
“agora mesmo”, “há pouco”, “acabou de acontecer”. E, como consequência, Simmel destaca
que a modernidade é antes de qualquer coisa a época na qual a circulação das mercadorias e
das ideias, bem como a crescente mobilidade social, ao universalizarem-se a todos os círculos
da vida social, focalizam o valor do novo, criam as condições para a identificação do valor
com a novidade como tal.
Considerando a forma como esta inconfundível proximidade entre moderno e
novidade, não raramente, servem como um paradigma hermenêutico, quando a modernidade
está sendo objeto de investigação. Assim, não é sem razão que Henrique Vaz (2012, p.18)
declara:
Já mencionamos a forma desse paradigma, a saber: uma dialética entre
continuidade e descontinuidade, que acompanha, aliás, toda a evolução da
razão ocidental: continuidade e descontinuidade entre mito e razão
filosófica no mundo antigo, entre fé e razão clássica na Idade Média, entre
fé e razão moderna no mundo pós-medieval. No uso desse paradigma,
trata-se de definir a linha de ruptura que separa a emergência do realmente
novo e o progressivo esmaecimento do antigo. Na última das modernidades
– a que estamos vivendo –, a interpretação da ruptura nos interpela
particularmente, pois nela é a interpretação da nossa própria existência
histórica que está em jogo.
Ora, o paradigma da ruptura só é pensável na pressuposição de uma
continuidade que se rompe. Essa pressuposição nos impõe pensar o novo
como negação dialética do antigo que lhe dá origem. No acontecer
histórico não há, evidentemente, nenhuma emergência do absolutamente
novo. A continuidade do tempo subjaz a todas as mudanças. O paradigma
ruptura deve ser inicialmente formulado segundo os termos da relação que
continua a unir o antigo e o novo no desenrolar histórico da sua separação.
Como pode ser observado, Vaz destaca que compreender o processo de ruptura entre o
antigo e o novo na modernidade constitui-se extremamente relevante para o entendimento
desta dialética entre continuidade e descontinuidade no desenvolvimento da razão ocidental.
Isto levando em conta que a modernidade ocidental é comumente interpretada a partir da
ruptura com a Idade Média latina. Uma evidência desta interpretação jaz na origem da
expressão Idade Média (media aetas), elaborada pelos humanistas do Renascimento já
contendo um juízo de valor, referindo-se ao hiato de civilização que é necessário saltar para se
alcançar a civilização antiga da qual os humanistas se consideravam herdeiros. Além disto,
não esquecendo que a Idade Média latina é reconhecida como realização de uma civilização
cristã. Deste modo, Vaz (2012, p.19) constata:
A ruptura presente na formação da modernidade passa a ser entendida, desta
sorte, como ruptura com uma determinada figura histórica do cristianismo,
ruptura esta que avançará no século XVIII para formas de ruptura radical
com toda a tradição cristã. Tal processo foi antes designado com o termo
hoje raro de “secularização”. É justamente na interpretação dos vínculos
históricos que ligam o mundo moderno ao mundo cristão medieval que são
propostos diversos paradigmas e, neles, as categorias de uma axiologia da
modernidade.
Isto exposto, neste capítulo, pretende-se examinar a modernidade em sua relação com
o fenômeno da secularização. E isto sem desconsiderar a genealogia do conceito de
secularização, bem como o debate filosófico que percebe na novidade moderna a permanência
de categorias teológicas transformadas com relação ao seu sentido original. E assim, numa
forma secularizada, essas categorias teológicas continuam a exercer influência sobre o mundo
social e as experiências da existência humana que são formadoras do modo de conceber a
realidade, a auto-interpretação da sociedade.
2.1 Semântica da secularização
A palavra latina saeculum (em termos lexicais, segundo Ernesto Faria expõe no
verbete correspondente a esta palavra em seu Dicionário latino-português) pode assumir os
seguintes significados:
I – Sent. Próprio: 1) Geração, gerações (geralmente no pl) (Lucr. 1,21). Daí:
2) Duração de uma geração, século, espaço de cem anos (Hor. O. 4, 6, 42) II
– Sent. Figurado: 3) Longo período de duração indeterminada, longa duração
(Cíc. Rep. 2, 20). 4) O século, o tempo em que se vive, tempo, idade, época
(Cíc. Div. 1, 36). 5) Espírito do século, costumes (Tác. Germ. 19).
Em termos, porém, de sua gênese e extensão semântica, bem como no tocante a sua
relação com o termo “secularização” e com a Modernidade, saeculum é uma expressão que,
ao longo dos últimos séculos, ampliou a sua extensão semântica: primeiramente ao campo
político-jurídico, depois ao campo da filosofia e teologia da história, enfim ao campo ético e
da sociologia. De acordo com Giacomo Marramao (1997, p.15-16):
Através destes deslocamentos e ampliações de significado, ela ascendeu
gradualmente ao status de categoria genealógica capaz de sintetizar ou
expressar unitariamente o desenvolvimento histórico da sociedade ocidental
moderna, a partir de suas raízes (judaico-) cristãs.
Ao mesmo tempo, justamente em consequência de tal ampliação a conceito
de filosofia da história – aplicável, em razão de sua generalidade, tanto à
política quanto às “ciências do espírito”, tanto à teologia quanto à história da
cultura e à filosofia – “secularização” tornou-se hoje um termo um tanto
difuso quanto indeterminado e controverso. [...].
Interpretada ora em termos de descristianização (ou seja, de ruptura e
profanação modernas dos princípios da Christianitas), ora em termos de
dessacralização (cujo núcleo essencial, ao invés, estaria já presente desde as
origens na mensagem cristã de salvação), a categoria de secularização foi
capaz de fornecer munição argumentativa à crítica cristã quanto à anticristã
da civilização.
Marramao (1997) identifica (na gênese do conceito de secularização, principalmente
no que se refere a sua derivação de sentido tanto do direito canônico quanto do direito estatal)
que este conceito recebe seu significado essencial da oposição entre poder temporal e poder
espiritual, cujo pano de fundo histórico-cultural desta antítese compreende-se à luz da
doutrina agostiniana das duas cidades, a Cidade Terrena e a Cidade Celeste.
No que se refere a esta relação derivativa de sentidos, destaca-se que do ponto de vista
histórico conceitual o termo secularização possui um núcleo institucional na saecularisatio do
Codex Juris Canonici, isto no tocante a seu vínculo de sentido com o direito canônico; bem
como, no que toca a derivação de sentido do direito estatal, o termo está associado ao
emprego da expressão séculariser utilizada por Longueville, delegado francês durante as
negociações para a Paz de Westphalia, em Münster, maio de 1646, para assinalar a passagem
de propriedades religiosas para mãos seculares. Sobre isto, Marramao (1995, p.58-59), no
livro Poder e secularização, em nota de final de capítulo, esclarece:
O termo “secularizar” foi usado provavelmente pela primeira vez em
Münster, no curso das tratativas para a paz de Westfalia, pelo delegado
francês Longuiville: cf. J. G. von Meiern, Acta Pacis Westphaliensis publica,
oder Wesphäl: Friedens-Hanlungen und Geschichte, Hannover, 1734, v.II,
p.637. Inicialmente o conceito de saecularisatio tem, todavia, um valor
neutro: não indica somente um ato de expropriação e de espólio, mas
também atos de “secularização” levados a cabo voluntariamente pela própria
instituição eclesiástica, como, por exemplo, a fundação de universidades ou
a supressão de conventos objetivando promover os estudos acadêmicos, em
geral de orientação teológica (cf. E. Hegel, “Fürstenberg und die
theologische Fakultät Münster”, in Westfalen, v.XXXIX, 1961, n.1,2, p.53
ss.), ou ainda o artigo do Codex Juris Canonici que contempla a
possibilidade de retorno da comunidade monástica ao “mundo” (cf. W. M.
Plöchl, Geschichte des Kirchenrechts, Wien-München, 1959, v.III, p.542;
onde se sublinha o uso tardio de saecularisatio, o qual remontaria ao fim do
século XVIII).
O emprego da expressão saecularisatio está documentado já a partir dos últimos
decênios do século XVI nas disputas canônicas francesas com o significado de passagem de
um religioso “regular” ao estado “secular”, ou, de modo mais geral, de “redução à vida laica”
de quem recebeu ordens religiosas ou vive segundo regra de um convento. Isto demonstrando
que, desde os primórdios, o termo secularização está marcado pela antítese regular/secular,
que em si, ainda que virtualmente, já contém “a metamorfose moderna dos pares paulinos
celeste/terreno, contemplativo/ativo, espiritual/mundano” (MARRAMAO, 1997, p.17-18).
Disto, observa-se a primeira flexão semântica do termo, que consiste na sua extensão
ao campo político-jurídico. Isto ocasionou o entendimento de secularização como o processo
de afirmação de uma jurisdição secular, laica e estatal, sobre amplos setores da vida social que
estiveram até então sob o domínio da instituição eclesiástica.
Neste sentido, poderíamos afirmar que a Paz de Westphalia não somente põe
fim à Guerra dos Trinta Anos, como também conclui simbolicamente o
inteiro ciclo histórico de aliança estável entre poder político e religião cristã
que, por obra do imperador romano Constantino, havia-se inaugurado com o
Edito de Milão de 313 (MARRAMAO, 1997, p.19).
Para Santo Agostinho (A Cidade de Deus, 3, L.XIX, XVII), a Cidade Celeste é
constituída pela “parte que peregrina nesta vida mortal, e vive da fé”, enquanto que Cidade
Terrena “não vive em conformidade com a fé”; a “Cidade Celeste, enquanto peregrina na
Terra, recruta cidadãos de todos os povos e constitui uma sociedade peregrina de todas as
línguas”. Assim, a Cidade Celeste coexiste no mundo com a Cidade Terrena, porém como
peregrina e orientada por um princípio transcendente, uma vez que se reconhece como a
“comunidade que em perfeita ordem e harmonia goza de Deus e da mútua companhia em
Deus”; orienta-se por uma escatologia que reconhece as coisas do mundo como transitórias e
de menor valor quando comparadas com as realidades celestes, assim vive no meio da Cidade
Terrena “a sua como que cativa vida de peregrinação, mas já com a promessa de redenção e
com o dom espiritual como que em garantia, ela não hesita em obedecer às leis da Cidade
Terrestre”, “para tudo o que lhe respeita, a concórdia das duas Cidades se mantenha”; a
Cidade Celeste “conserva e favorece tudo o que de diverso nos diversos países tende para o
mesmo e único fim – a paz terrena – contanto que tudo isso não impeça a religião que nos
ensina a adorar o único e supremo Deus verdadeiro”; a Cidade Celeste orienta-se por uma
expectativa escatológica por uma redenção que transcende este mundo, cujo princípio é
espiritual e eterno.
Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus
— a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si — a celeste.
Aquela glorifica-se em si própria — esta no Senhor;
aquela solicita dos homens a glória — a maior glória desta consiste em ter
Deus como testemunha da sua consciência;
aquela na sua glória levanta a cabeça — esta diz ao seu Deus:
Tu és a minha glória, tu levantas a minha cabeça;
aquela nos seus príncipes ou nas nações que subjuga, e dominada pela
paixão de dominar — nesta servem mutuamente na caridade: os chefes
dirigindo, os súbditos obedecendo;
aquela ama a sua própria força nos seus potentados — esta diz ao seu Deus:
Amar-te-ei, Senhor, minha fortaleza;
por isso, naquela, os sábios vivem com o ao homem apraz ao procurarem os
bens do corpo, ou da alma, ou dos dois: e os que puderam conhecer a Deus
não o glorificaram como Deus, nem lhe prestaram graças, mas perderam-se
nos seus vãos pensamentos e obscureceram o seu coração insensato.
Gabaram-se de serem sábios,
(isto é, exaltando-se na sua sabedoria sob o império do orgulho)
tomaram-se loucos — e substituíram a glória de Deus incorruptível por
imagens representando o homem corruptível, aves, quadrúpedes e serpentes,
(porque à adoração de tais ídolos conduziram os povos ou nisso os seguiram)
e veneraram e prestaram culto a criaturas em vez de ao Criador que é
bendito para sempre,
— mas nesta só há um a sabedoria no homem: a piedade que presta ao
verdadeiro Deus o culto que lhe é devido e que espera, com o recom pensa
na sociedade dos santos (tanto dos homens com o dos anjos),
que Deus seja tudo em todos (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, 2, L.XIV,
XXVIII).
Este pano de fundo histórico-conceitual, estabelecido através do “arquétipo teológico-
político do milenar confronto entre poder temporal e poder espiritual” (MARRAMAO, 1997,
p.20), estruturou a cultura do Ocidente medieval, estendendo a sua influência também sobre a
gênese do processo jurídico-político moderno.
O cenário que se abre na metade do século XVII, a partir do momento em
que a Paz de Westphalia põe fim no continente europeu, à longa e
sanguinosa época das guerras civis confessionais, parece inverter
definitivamente a lógica daquele processo, destruindo o ideal universalista
da respublica christiana fundado no plurissecular conúbio entre Céu e Terra,
autoritas pontifícia e potestas imperial. A Igreja perde o seu papel de
custódia essencial do poder político, enquanto este último se vê livre das
responsabilidades inerentes diretamente à esfera religiosa (MARRAMAO,
1997, p.20-21).
Além disto, como consequência deste processo, no plano histórico, ocorre um
fenômeno de intercâmbio simbólico:
O conflito entre os dois poderes não dá lugar a uma diferenciação, mas antes
a um jogo de espelhos no qual um tende a assumir as prerrogativas do outro:
a Igreja se “estataliza” (assumindo um caráter de centralização e
racionalização burocrática), enquanto o Estado se “eclesiasticiza”
(desenvolvendo características sacrais e ritualizando os próprios
procedimentos) (MARRAMAO, 1997, p.22-23).
Ainda como consequência desta extensão semântica do termo secularização, este
transpôs os limites de conceito “juscanônico e juspublicista para transformar-se em categoria
geral indissoluvelmente coligada com o novo conceito de tempo histórico” (MARRAMAO,
1997, p.23), indo além da acepção político-jurídica até uma acepção metafórica que diz
respeito diretamente à dimensão filosófica.
O desdobramento da interioridade numa perspectiva antropocêntrica
representa portanto o indicador da decisão de assumir a “interrupção” dando-
lhe uma conotação positiva (com a adoção consciente das relativas margens
de risco), transferindo do diálogo Deus-homem para a relação criatividade
humana-natureza o eixo da tensão. Mas a criatividade é a capacidade de
produzir formas, artifícios para direcionar ou contrastar os eventos: sejam
esses naturais ou humanos (também as ações humanas se apresentam à
consciência “no balanço” do Renascimento como “natureza”). Nasce aqui o
mitologema moderno do homo faber. Não obstante a ênfase naturalizante da
sua nomenclatura, ele na realidade representa justamente aquele elogio das
formas, do artifício, que tem sua máxima expressão inovativa – e, num certo
sentido, a sua cifra – no conceito renascentista de política. A política não é
um produto espontâneo, mas inventivo: construção altamente improvável,
possível somente àquela virtude “extraordinária” capaz de prever-controlar
as “coisas”. A “política da Renascença” exibe aqui seus peculiares traços de
cientificidade e autonomia: caracteres incontestavelmente novos, que não
tem precedente nem na Antiguidade nem no Medievo. Todavia, não basta
enunciá-los: é preciso circunscrevê-lo e “predicá-los”. A política é:
científica, na medida em que diante dela a civitas humana se configura com
a mesma dimensão de contingência de um fenômeno natural, como um
sistema de forças e de eventos tipologicamente ordenáveis e delimitáveis em
conformidade às leis; autônoma, na medida em que é virtualmente conforme
a um ideal de coerência interna e de autonomia lógica do discurso
(MARRAMAO, 1995, p.89-90).
Na Modernidade, conforme Marramao (1995), o homo faber, indo além da sua
faculdade de produzir artefatos, compreende-se capaz de conduzir os rumos da própria
história. Inicialmente, concebendo-se capaz de intervir na “natureza”, por enquanto através de
uma reestruturação prospectiva do seu espaço, ainda em visão fundamentalmente sincrônica e
não através de racionalização futurológica do tempo. Assim, sobre o reconhecimento teórico-
prático da fratura entre desígnio providencial e vicissitudes terrenas, o homem não reage mais
com sofrimento e desorientação diante das adversidades terrenas, mas as toma como um dado
para seu projeto de como intervir no mundo. Ou seja, a virtú é preferível a ter que aguardar
pela fortuna, ou ainda através da virtú se pode desafiar a fortuna.
A apoliticidade natural, neste sentido, seria a condição do homem que permanece
passivo diante dos acontecimentos, assistindo a sua repetição circular, em movimento
perpétuo; é na politicidade artificial que o homem se reconhece como capaz de agir com foco
no futuro, numa linearidade. Para Marramao (1995), esta politicidade do sujeito ocidental é
representativa da secularização do conceito cristão agostiniano de interioridade,
compreendida agora em termos ego cogito, centralidade do sujeito que pensa.
O homo faber como um fabricante da história orientada para o futuro, tendo como
foco a noção de progresso, que, por sua vez, consiste na versão secularizada da doutrina cristã
da providência, cuja perspectiva histórica é futurológica e linear. Esta noção consiste no
entendimento que Deus dispõe e dirige os rumos da história, cujo fundamento é a crença de
que Deus determina os eventos futuros e a consumação da história, em termos de uma
parousía, vinda ou retorno de Cristo no fim dos tempos, inaugurando novos céus e nova terra.
Esta noção, porém, ainda está vinculada a um conceito de secularização como versão
terrena ou mundana de elementos da doutrina cristã que sempre estiveram relacionados com a
eternidade e com a transcendência. Como tentativa de superar os pares agostinianos de
eternidade e século, além e mundo, impõe-se à secularização a categoria unitária de “história
universal” na qual a ideia de eschaton como um ponto terminal do curso do mundo que
irrompe desde a eternidade é absorvida por um conceito absoluto e processual de História.
Assim, o espiritual, o transcendente, o eterno, o sacro, são mundanizados; o além e o aquém
estão inclusos na razão, substância como força infinita que marcha na história universal; o
espiritual é mundanizado/secularizado através do conceito de história universal (HEGEL,
2008).
Deus, o governante supremo da história, cede lugar para um processo universal
conduzido por desígnios da racionalidade que jaz no que se compreende pela categoria
“história universal”. Mesmo assim esta categoria, através de seu vínculo com a noção de
razão que conduz os seus processos, continua atrelada a premissa de que os acontecimentos e
sucessões históricos se unificam e dirigem na direção de um sentido ou objetivo final. E ao se
pensar em sentido/objetivo final ou último, considere-se que se lida com o foco numa meta
final que transcende os acontecimentos, algo além de qualquer sentido ou valor que os
acontecimentos históricos possuam em si mesmos. A história pensada desta forma, tendo um
horizonte temporal orientado para uma meta final, continua atrelada a noção transcendente de
futuro escatológico, uma história que possui um ponto de partida, um “alfa” e um fim (telos),
objetivo, finalidade, um “ômega”.
O futuro é o “verdadeiro” foco da história, desde que a verdade resida na
base religiosa do Ocidente cristão, cuja existência histórica é, na verdade,
determinada por uma motivação escatológica, de Isaías a Marx, de Santo
Agostinho a Hegel, e de Joaquim a Schelling. O significado desta visão de
um fim derradeiro, como simultaneamente finis e telos, é o facto de
constituir um esquema de ordem e sentido progressivos, um esquema que
tem sido capaz de vencer o medo antigo no fado e na fortuna. O eschaton
não só delimita o processo da história através de um fim, como o articula e
preenche também com um objectivo definido. A influência do pensamento
escatológico sobre a consciência histórica do Ocidente situa-se ao nível da
conquista do fluxo do tempo histórico, que se desgasta e devora as suas
próprias criações a menos que seja definido por um fim derradeiro.
Comparável à bussola que nos orienta no espaço, e assim nos permite
conquistá-lo, a bússola escatológica orienta no tempo indicando o Reino de
Deus como objectivo e fim derradeiro (LÖWITH, 1991, p.30-31).
As mitologias das culturas tradicionais fundamentam-se na crença de que o cosmo se
degrada e, em razão disto, necessita ser renovado/recriado periodicamente, deste modo, o
mito cosmogônico serve como modelo exemplar para esta renovação do cosmo (ELIADE,
2011). Por sua vez, a perspectiva judaico-cristã da história está impulsionada para o futuro,
isto devido ao seu vínculo com o profetismo vetero-testamentário que tem no profeta um
visionário e proclamador de eventos revelados por Deus e que estão por vir, tal premissa fez
com que o futuro e não um retorno à cosmogonia se tornasse o conteúdo principal da
experiência histórica do Ocidente cristão. Nesta experiência, não se vislumbra um retorno a
uma época mitológica dourada, nutre-se da esperança pela criação de “um novo céu e de uma
nova terra”, em outros termos, tal existência histórica é constituída por um futuro
escatológico.
2.2 Modernidade: permanência de categorias teológicas secularizadas
A dialética que acompanha a evolução do pensamento ocidental se traduz entre
continuidade e descontinuidade, seja entre mito e razão filosófica no mundo antigo, entre fé e
razão clássica na Idade Média, entre fé e razão moderna no mundo pós-medieval. E ao
considerar este último processo dialético, comumente se interpreta a Modernidade ocidental a
partir de uma ruptura com a civilização cristã que avançará no século XVIII para formas ainda
mais radicais (VAZ, 2012). Tal processo tem sido designado pelo termo “secularização”,
examinado com mais detalhes no tópico anterior.
Conforme observado na análise semântico-genética do termo “secularização”, este
pressupõe um vínculo com conceitos teológicos através de um progressivo “historicizar-se” e
“mundanizar-se” destes conceitos que outrora apontavam para uma noção pós-histórica,
atemporal e transcendente.
2.2.1 A transposição de conceitos teológicos para o plano político-jurídico
“Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”, com esta frase Carl Schmitt
inicia o primeiro capítulo do seu livro Teologia política, publicado em 1922, no qual assume
uma analogia entre a noção política de soberania e a noção teológica de poder absoluto de
Deus. Em sua abordagem do tema, evidencia-se o pressuposto que reconhece a relevância do
conceito de secularização para o entendimento da Modernidade no Ocidente, algo que Schmitt
(2009, p.11) explicita já na apresentação da Teologia política:
O grande problema dos distintos níveis do processo de secularização – do
teológico passando pelo metafísico para chegar ao moral e ao econômico –
eu discuti isto em minha palestra sobre “a época das neutralizações e
despolitizações”, pronunciada em outubro de 1929 em Barcelona. Entre os
teólogos protestantes, Heinrich Forsthoff e Friedrich Gogarten mostraram
em particular que sem o conceito de secularização não é possível em geral
compreender os últimos séculos da nossa história.
Schmitt aborda o conceito de soberania como um conceito limite, um conceito da
esfera mais extrema. E, exatamente por isto, expõe que a definição de soberania não pode se
conectar a situação normal, mas a situação limite. Por semelhante modo, o “estado de
exceção”, enquanto conceito geral da doutrina do Estado, não é um decreto fruto de uma
necessidade qualquer e nem tão pouco um estado de sítio, algo que esteja submetido à norma
jurídica.
Uma razão sistemática lógico-jurídica faz do estado de exceção, em sentido
eminente, a definição de soberania. Pois a decisão sobre a exceção é decisão
em sentido eminente. Com efeito, uma norma geral, representada, por
exemplo, em um princípio jurídico válido normal, nunca pode captar uma
exceção absoluta nem, portanto, fundamentar a decisão na qual está dado um
caso excepcional autêntico (SCHMITT, 2009, p.13).
Soberania, declara Schmitt, “é o poder supremo e originário de mandar”, algo claro o
suficiente para que esteja fora de discussão, porém o que precisa ser discutido é a sua
aplicação concreta numa situação na qual o interesse público ou do Estado, ou até mesmo a
ordem e a própria existência do Estado estejam sendo ameaçadas. Isto se relaciona com um
caso excepcional, que não está previsto na ordem jurídica vigente, que, na melhor das
hipóteses, pode ser qualificado como caso de extrema necessidade, de perigo para existência
do Estado, mas não sendo possível rigorosamente determinar a sua natureza, ou quando irá
acontecer. Tal excepcionalidade traz a tona o problema do sujeito ou o problema mesmo da
soberania, não ter como prever com clareza quando o caso é de necessidade extrema e está
preste a dominar a situação, criando a necessidade de conceder poder ilimitado a alguém para
decidir. Claro que não se trata de alguém com competências no sentido que isto possui dentro
do sistema do Estado de direito, pois o “moderno Estado de direito tende a eliminar o
soberano neste sentido” (SCHMITT, 2009, p.14).
O Estado de direito através de regulamentações e mediante a divisão de competências
e de controle recíproco procura adiar o máximo possível o problema da soberania, porém tais
medidas não eliminam o problema da soberania em si, consegue-se apenas adiar ou relegar o
problema para o segundo plano. O Estado de direito, deste modo, lida com o que é normal e
por consequência conhecido, porém diante do caso extremo, extraordinário, não saberá o que
fazer. O Estado de exceção requer o poder para lidar com uma situação anormal e que
extrapola o ordinário, uma situação na qual o caos se estabeleceu e a norma não pode ser
aplicada ao caos, pois “a norma exige um meio homogêneo”. Isto requer a ação de alguém
que detenha o poder de decidir e estabelecer a ordem novamente.
Porque toda ordem descansa sobre uma decisão, e também o conceito de
ordem jurídica, que irrefletidamente é utilizado como coisa evidente, abriga
em seu peito o antagonismo dos dois elementos díspares do jurídico.
Também a ordem jurídica, como toda a ordem, descansa em uma decisão,
não em uma norma (SCHMITT, 2009, p.16).
A moderna ideia de Estado substitui o poder pessoal de reis, príncipes, imperadores ou
qualquer soberano por um império das normas jurídicas, assim a identidade do Estado se
confunde com a ordem jurídica. Em outras palavras, o conceito de Estado como um fenômeno
de poder é determinado pela condição de que se reconheça que este poder somente se revela
no direito e somente pode afirmar sua validade através da promulgação de uma norma
jurídica. “Considerado juridicamente, o Estado é idêntico a sua Constituição, ou seja, à norma
fundamental unitária” (SCHMITT, 2009, p.23). Assim, o Estado de Direito contrapõe a
autoridade pessoal à validade objetiva de uma norma jurídica.
As mais variadas teorias sobre o conceito de soberania – Krabbe, Preuss e
Kelsen – reclamam uma objetividade desta linhagem, concordando todas em
que do conceito de Estado tem que desaparecer todo elemento pessoal. Entre
personalidade e mandato há, a seus olhos, um nexo evidente. Segundo
Kelsen, a ideia de um direito pessoal a dar ordens (mandatos) é o erro
característico da doutrina da soberania do Estado; qualifica de “subjetivista”
a teoria da primazia da ordem jurídica estatal, e uma negação da ideia de
direito, porque põe o subjetivismo do mandato no lugar da norma
objetivamente válida. A antítese do pessoal e do impessoal se associa em
Krabbe a antítese do concreto e do geral, do individual e do universal,
podendo se ampliar para a antítese de autoridade e preceito jurídico,
autoridade e qualidade e, em sua formulação filosófica geral, a contraposição
entre pessoa e ideia. Está dentro da tradição do Estado de direito contrapor
desta forma ao mandato pessoal a validez objetiva de uma norma abstrata
(SCHMITT, 2009, p.30-31).
O Estado de Direito por meio de controle recíproco e regulamentações se orienta por
jurisprudência que, por vez, guia-se por problemas e negócios cotidianos, enquanto “o
conceito de soberania necessita de interesse prático”. Por consequência, o Estado de direito,
em seu conceito, só conhece o normal, tudo o que escapa a isto é considerado perturbação.
Schmitt (2009, p.17) explica:
Frente ao caso extremo se encontra sem saber o que fazer. Porque nem toda
faculdade extraordinária, nem qualquer medida de polícia ou um decreto de
necessidade são, em si mesmos, um estado excepcional. É necessário que a
faculdade seja ilimitada em princípio; a suspensão total da ordem legal em
vigor é necessária. Quando isso acontece, é evidente que, enquanto o Estado
subsiste, o direito passa para o segundo plano. Como o estado excepcional é
sempre algo diferente da anarquia e do caos, no sentido legal sempre existe
uma ordem, embora essa ordem não seja legal. A existência do Estado deixa
neste ponto credenciada sua superioridade sobre a validade da norma
jurídica. A decisão é liberada de todos os obstáculos regulatórios e se torna
absoluta por si só. Diante de um caso excepcional, o Estado suspende o
direito em virtude do direito à própria preservação, os dois elementos que
compõem o conceito de ordem jurídica confrontam-se e revelam sua
independência conceitual. Se em casos normais o elemento autônomo da
decisão pode ser reduzido a um mínimo, é a norma que no caso excepcional
que é aniquilada. No entanto, porque ambos os elementos – a norma e a
decisão – permanecem dentro do quadro legal.
“Racionalismo consequente seria dizer que a exceção nada prova e que só o normal
pode ser objeto de interesse científico”, o que leva Schmitt (2009, p.19) a afirmar: “a exceção
perturba a unidade e a ordem do esquema racionalista”. Isto ocorre pelo fato da teoria de
Estado positivista ser capaz de conceber como uma norma, uma ordem ou como um centro de
imputação se estabelecem. Entretanto, argumenta Schmitt (2009, p.19), se debate com a
dificuldade relacionada à concepção de “como uma unidade sistemática e uma ordem podem
se suspender em um caso concreto, e ainda assim o problema ser legal e permanecerá assim
enquanto o estado excepcional difere do caos jurídico e da anarquia”. No mesmo trecho,
Schmitt expõe ainda: “a tendência do Estado de Direito de regular tanto quanto possível o
estado de exceção não é outra coisa se não a tentativa de circunscrever precisamente os casos
em que o direito suspende a si mesmo”, e introduz a questão, “onde a lei toma essa força e
como é logicamente possível que uma norma tenha validade, exceto em um caso específico
que ela própria não pode prever de fato?” Questão de certa forma já respondida ao longo do
mesmo parágrafo, quando Schmitt argumentou que “os racionalistas não deveriam perder de
vista que a mesma ordem jurídica pode prever o caso excepcional e ‘suspender a si mesma’”.
Enquanto os racionalistas afirmam que a exceção nada prova, Schmitt se opõe a isto
frontalmente, declarando que uma filosofia que não foge da vida concreta e não bate em
retirada diante do excepcional e do caso extremo, pelo contrário, pondo em ambos todo o seu
empenho e seu maior estudo, considera a exceção mais importante aos seus olhos que a regra.
“A exceção é mais interessante que o caso normal. O normal nada prova; a exceção, tudo; não
somente confirma a regra, mas que esta vive daquela. Na exceção, a força da vida efetiva faz
cair a crosta de uma mecânica estagnada em repetição” (SCHMITT, 2009, p.20).
Schmitt (2009, p.37) constata, “todos os conceitos centrais da moderna teoria de
Estado são conceitos teológicos secularizados”, e no que se refere ao conceito de Estado de
exceção, este “tem na jurisprudência significado análogo ao de milagre na teologia”. A
analogia se dá pelo fato de que, em sentido teológico, o milagre se constitui numa violação ou
suspenção das leis naturais, consistindo num ato de providência divina, uma intervenção
direta de Deus na ordem do mundo, que extrapola os acontecimentos ordinários, comuns,
normais, sendo, desta forma, em sua essência, um acontecimento excepcional de cunho
extraordinário. Schmitt (2009, p.37), porém, recorda que o Estado de Direito se afirmou:
[...] com uma teologia e uma metafísica que baniram do mundo o milagre e
não admitem a violação com caráter excepcional das leis naturais implícita
no conceito de milagre e produzido por intervenção direta, como tão pouco
admitem a intervenção direta do soberano na ordem jurídica vigente.
Em meio á consideração de que para sociologia do conceito de soberania é necessário
ver com clareza o problema da sociologia dos conceitos jurídicos, levando em conta que até
este ponto está sublinhada a analogia entre conceitos teológicos e jurídicos, Schmitt (2009,
p.41-42) destaca que:
Seria erro grave crer que isto implica na oposição entre uma filosofia
espiritualista da história a outra materialista. A máxima formulada por Max
Weber em sua crítica a filosofia do direito de Stammler, que toda filosofia
radicalmente materialista da história pode ser posta em oposição a outra
filosofia espiritualista da história tão radical como aquela, poderia ser
ilustrada brilhantemente com o exemplo da teologia política da Restauração.
Os escritores contrarrevolucionários explicavam as mudanças políticas
através da maneira de conceber o mundo e atribuíam a Revolução francesa a
filosofia da Ilustração. Frente a eles, em antítese evidente, os revolucionários
radicais atribuíam as mudanças do pensamento às condições políticas e
sociais. Por volta dos anos vinte do século XIX, havia se estendido
amplamente por todo o Ocidente europeu, especialmente na França, o dogma
de que as mudanças religiosas, artísticas e literárias possuem íntima conexão
com a alteração das condições políticas e sociais. A filosofia marxista da
história radicou este nexo no plano econômico e o fundamentou
sistematicamente até o ponto de buscar também a chave das mudanças
políticas e sociais em um centro de imputação restrito ao econômico.
De forma distinta a este tipo de oposição entre materialismo e espiritualismo no
tocante a filosofia da história, Schmitt apresenta a sua abordagem da sociologia de conceitos.
E, em meio à discussão sobre uma sociologia do conceito de soberania, conclui que “a
metafísica é a expressão mais intensa e mais clara de uma época”. Como percurso
argumentativo até este desfeche, Schmitt (2009, p.43-44) acrescenta que sua forma de
abordagem ao conceito de soberania:
Obriga a ir além da conceitualidade jurídica, atenta somente aos interesses
práticos imediatos da vida jurídica, e explorar a última estrutura radical
sistemática e comparar essa estrutura conceitual com a articulação conceitual
da estrutura social de uma época determinada. Não nos importa saber se o
que essa conceitualidade radical tem de ideal é reflexo de uma realidade
sociológica ou se, pelo contrário, a realidade social se explica como
consequência de uma maneira de pensar e, por conseguinte, de uma
determinada maneira de agir. É mais sobre manifestar duas identidades
espirituais, mas também substanciais. Declarar, por exemplo, que a
monarquia do século XVII era o substrato real que se “reflexava” no
conceito cartesiano de Deus, não é sociologia do conceito de soberania. Sim,
pertence, em vez disso, à sociologia da soberania daquela época mostrar que
a existência histórica e política da monarquia correspondia ao estado de
consciência da humanidade ocidental naquele momento, e que a
configuração jurídica da realidade histórico-política sabia como encontrar
um conceito cuja estrutura se harmonizava com a estrutura dos conceitos
metafísicos. Por isto teve a monarquia na consciência daquela época a
mesma evidência que havia de ter a democracia na época posterior.
Pressupõe, portanto, esta classe de sociologia dos conceitos jurídicos, a
conceitualidade radical, isto é, uma consequência levada até o plano
metafísico e teológico. A imagem metafísica que de seu mundo é forjada
numa época determinada tem a mesma estrutura que a forma da organização
política que essa época tem como evidente. A comprovação desta identidade
constitui a sociologia do conceito de soberania.
Em termos desta correspondência entre a existência histórica e política de uma época e
a estrutura de conceitos metafísicos, Schmitt (2009, p.47) afirma que “o conceito de Deus dos
séculos XVII e XVIII supõe a transcendência de Deus frente ao mundo, tanto como a sua
filosofia pertence à transcendência do soberano frente ao Estado”. Aqui se manifesta o
conceito cartesiano de Deus, ancorado numa concepção deísta de divindade na qual Deus
desempenhou o papel de criador da máquina, pondo-a em funcionamento através de leis
naturais que não podem ser violadas ou alteradas. Deste modo, nos séculos XVII e XVIII, há
ainda uma noção personalista de Estado, pois este é o soberano, aquele que detém o poder de
mando, porém, correspondendo à imagem deísta de Deus, um soberano limitado a decidir
segundo as leis que estabeleceu. Estas leis, embora estabelecidas pelo Estado como expressão
pessoal de Deus e de sua soberania, segundo a noção metafísica presente na consciência das
pessoas da época, orientava-se pelo princípio de que “a validade geral de um princípio
jurídico se identifica com a lei natural válida sem exceções”.
O princípio metafísico de que Deus somente se manifesta por atos gerais de
sua vontade, não em particulares, domina a metafísica de Leibniz e de
Malebranche. Rousseau identifica a volonté générale com a vontade do
soberano; porém, ao mesmo tempo, determina-se quantitativamente o
conceito do geral, incluso no que se refere ao sujeito, ou seja, o povo se
converte em soberano. Desaparece, deste modo, o elemento decisionista e
personalista que antes alentava o conceito de soberania. A vontade do povo é
sempre boa, “le peuple est toujours vertueux” [o povo sempre é virtuoso]
(SCHMITT, 2009, p.46).
Expondo as consequências deste processo imanentista para a metafísica política e para
a teologia política, Schmitt (2009, p.47) constata:
No século XIX, as representações da imanência dominam cada vez com
maior difusão. Todas as identidades que reaparecem na doutrina política e
jurídico-política do século XIX descansam sobre estas representações da
imanência: a tese democrática da identidade de governantes e governados, a
teoria orgânica do Estado e sua identidade de Estado e soberania, a doutrina
do Estado de direito de Krabbe e sua identidade de soberania e ordem
jurídica e, por último, a teoria de Kelsen sobre a identidade do Estado e a
ordem jurídica.
Assim, como consequência, tanto o conceito teísta quanto o conceito deísta de Deus se
tornam incompreensíveis para a metafísica política, pois o poder deixa emanar de uma esfera
transcendente para emanar de uma imanente, “a voz do povo é a voz de Deus”. Assim, a
norma jurídica – fundamentada não numa metafísica de leis naturais, mas no direito positivo –
busca harmonizar a vontade e os costumes do povo através de preceitos jurídicos.
“A unidade que um povo representa não tem caráter decisionista; é uma unidade
orgânica; e com a consciência nacional brota a noção de Estado como todo orgânico”
(SCHMITT, 2009, p.46). Este todo orgânico é análogo à noção de divindade que deixando de
ser pessoal se confunde com a sua criação, fazendo com que esta seja divinizada. A criação
divinizada passa a desfrutar de todos os atributos que inerentes à divindade, neste caso, a
vontade desta divindade que se confunde nas suas criaturas necessita ser satisfeita. Toda a
norma jurídica se resumirá no esforço de harmonizar ou oferecer respostas às questões
oriundas do povo. Conforme já dito, a vontade do povo é boa. Então, Schmitt (2009, p.47)
conclui “a grande linha deste processo fez, sem dúvida, que a grande massa culta perdesse
toda noção de transcendência e mirasse como evidente ora um panteísmo mais ou menos
claro, fundado na imanência, ora na indiferença positivista frente à metafísica em geral”.
2.2.2 A secularização da teologia cristã da história
Em 1953, Friedrich Gogarten publica o livro Destino e esperança da época moderna
cujo subtítulo é a secularização como tema da teologia. E confronta-se com a crise que, a
partir do Iluminismo, atingiu o Cristianismo, que até então se constituía o fundamento
incontestável do mundo ocidental (GIBELLINI, 2002). A crise institui o contraste que diz
respeito, sobre tudo, à autonomia de que desfruta o homem moderno tanto diante da natureza
quanto diante da história. Até que ponto o contraste entre Cristianismo e mundo moderno é
inconciliável? Questiona Gogarten.
É significativo, (MARRAMAO, 1997, p.77), que também em 1953, surgia, na
Alemanha, a obra de Karl Löwith, História universal e evento salvífico, dedicado a discorrer
sobre os pressupostos teológicos da filosofia da história. Este texto havia sido publicado há
alguns anos antes numa edição em inglês com o título Meaning in History (O sentido da
história), ampliando, assim, a controvérsia sobre secularização no século XX. Desta, feita,
porém, tratava-se não de um teólogo e sim de um analista filosófico da “consciência
histórica”.
Löwith estudou filosofia com Husserl e Heidegger. Alemão, nascido em Munique,
protestante, porém descendente de judeus. Em 1934, ver-se forçado a deixar a Alemanha
devido ao regime político do Partido Nacional Socialista, indo para Itália. Em 1936, fixou
residência no Japão, lecionando na Tohoku University, mas devido à aliança entre o Terceiro
Reich e o Japão, muda-se mais uma vez em 1941 para os Estado Unidos da América. De 1941
a 1952, leciona no Hartford Theological Seminary e na New School for Social Research. Em
1952, retorna a Alemanha para lecionar Filosofia em Heidelberg, permanecendo neste posto
até seu falecimento em 26 de maio de 1973.
Em sua análise filosófica da “consciência histórica” do Ocidente, Löwith (1991)
considera o conceito de “filosofia da história”. Este conceito foi empregado pela primeira vez
por Voltaire para fazer distinção da interpretação teológica da histórica no Ensaio sobre os
costumes e o espírito das nações. Desde modo, operando a mudança no sentido de não
predominar na história a vontade de Deus e a providência, mas a vontade humana e a sua
razão. Por sua vez, Löwith o emprega com o significado de uma interpretação sistemática da
história universal segundo o princípio de que os acontecimentos e sucessões históricos se
unificam e dirigem para um sentido final. Segundo Löwith, considerada nesta acepção, a
filosofia da história está na total dependência da teologia da história, em particular do
conceito teológico da história como uma história de realização e salvação. Discordando da
crença dogmática no valor da história enquanto tal e de que o pensamento histórico
propriamente dito começa apenas na época moderna, com o século XVIII, Löwith (1991,
p.16) expõe que “o esboço que se segue procura demonstrar que a filosofia da história se
inicia com a fé hebraica e cristã numa realização e termina com a secularização do seu
esquema escatológico”.
Conceber a história de acordo com um princípio de que os acontecimentos e sucessões
históricos se dirigem para um sentido final, só se justifica a partir de um objetivo
transcendente que ultrapasse os acontecimentos em si.
Acontecimentos isolados desta natureza não têm qualquer sentido, nem são
uma mera sucessão de acontecimentos. Arriscar uma afirmação sobre o
sentido dos acontecimentos históricos só é possível quando surge o seu telos.
Quando as consequências de um movimento histórico foram reveladas,
reflectimos sobre o seu aspecto inicial a fim de determinarmos o sentido de
todo o acontecimento, apesar de específico – “todo” através de um ponto de
partida definido e um ponto final de chegada. Se refletirmos sobre todo o
curso da história, imaginando o seu começo e prevendo o seu fim, pensamos
no seu sentido em termos de objetivo básico. A afirmação de que a história
tem um sentido fundamental implica um objetivo ou meta finais que
transcendem os acontecimentos reais (LÖWITH, 1991, p.19).
A apresentação histórica desenvolvida por Löwith segue uma sequência invertida,
regressando a sucessão histórica das interpretações da história, começando na era moderna e
remontando ao seu começo. Ele justifica tal procedimento através de três motivos: didáticos,
metódicos e substanciais.
Por motivo didático, justifica que leitor moderno (que acabara de “despertar do sonho
secular do progresso que substituiu a fé na providência” pela fé na razão humana) está alheio
a interpretação teológica das fases iniciais.
Donde se conclui pelo oportunismo didáctico de começar por aquilo que é
mais familiar ao espírito moderno antes de abordar o pensamento
desconhecido de gerações anteriores. É mais fácil compreender a crença
inicial da providência através da análise crítica das implicações teológicas da
crença ainda existente no progresso do que através de uma análise da
providência (LÖWITH, 1991, p.16).
Já no que se refere aos motivos metódicos, Löwith (1991, p.16) argumenta que a
“forma adequada de abordar a história e as suas interpretações é necessariamente regressiva
pela mesma razão que a história progride, deixando para trás as bases históricas de
elaborações mais recentes e contemporâneas”.
A consciência histórica não pode deixar de começar por si mesma, não
obstante ter por objetivo o pensamento de outras épocas e de outros homens,
diferentes dos nossos e de nós próprios. A história tem muitas vezes de ser
reencontrada e redescoberta pelas gerações vivas. Compreendemos – ou não
– os autores antigos, mas sempre à luz do pensamento contemporâneo, lendo
o livro da história de trás para frente da última à primeira página. Esta
inversão do modo convencional de apresentar a história é actualmente
aplicada por aqueles que percorrem o caminho de épocas passadas até aos
tempos modernos, sem estarem conscientes das suas motivações
contemporâneas (LÖWITH, 1991, p.16).
E os motivos substanciais justificam-se pelo entendimento de que se vive mais ou
menos no fim da linha moderna. O próprio regresso metódico das modernas interpretações
seculares da história do seu antigo esquema religioso encontra, com alguma relevância, sua
justificação nisto. Substancialmente, pretende-se entender o mundo, descobrir o seu sentido
fundamental.
É muito pouca a sua consistência, pelo que não proporciona a esperança de
um apoio. Temos aprendido a esperar sem esperança, “pois ter esperança
seria esperar a coisa errada”. Daí que seja salutar a lembrança do que nestes
tempos de expectativa foi esquecido e a recuperação das fontes genuínas dos
nossos resultados sofisticados. É possível fazê-lo mas não através de um
salto imaginário, quer para os primórdios do Cristianismo (Kierkegaard)
quer para o paganismo clássico (Nietzsche), mas apenas através da redução
analítica do composto moderno nos seus elementos iniciais. No entanto, o
elemento predominante, a partir do qual poderia surgir mesmo uma
interpretação da história, é a experiência básica do mal e do sofrimento, e da
procura da felicidade por parte do homem. A interpretação da história é, em
última análise, uma tentativa de compreender o sentido da história enquanto
sentido do sofrimento por acção histórica. O sentido cristão da história, em
particular, consistente no facto extremamente paradoxal de a cruz, este sinal
da mais profundo ignomínia, poder conquistar o mundo dos conquistadores,
opondo-se-lhe. Na nossa época, as cruzes têm sido suportadas em silêncio
por milhões de pessoas; e se há algo que justifique pensar-se que o sentido
da história da história tem de ser entendido na acepção cristã, será este
sofrimento desmedido. No mundo ocidental, o problema do sofrimento tem
sido perspectivado de duas maneiras diferentes: pelo mito de Prometeu e
pela fé em Cristo – o primeiro um rebelde, o segundo um servo. Nem a
Antiguidade nem o Cristianismo acalentavam a moderna ilusão de que a
história pode ser concebida como a evolução progressiva que resolve o
problema do mal por via da eliminação (LÖWITH, 1991, p.16-17).
Löwith explicita que há perguntas que conservam o seu significado, porque não
podem ser silenciadas por nenhuma resposta. Constitui privilégio da teologia e da filosofia,
em contraste com as ciências, fazer perguntas que não podem ser respondidas só com base no
conhecimento empírico. Todas as questões fundamentais relativas às primeiras e às últimas
coisas são desta natureza. Segundo ele, tais questões dão significado a uma investigação
fundamental, pois não se procuraria o sentido da história se o mesmo estivesse presente nos
acontecimentos históricos, sendo exatamente a ausência de sentido nos acontecimentos
propriamente ditos que motiva a sua procura. “Inversamente, é apenas no seio de um
horizonte pré-estabelecido de sentido fundamental, por mais oculto que esteja, que a história
atual parece não ter o menor sentido” (LÖWITH, 1991, p.17).
“Para os judeus e os cristãos, no entanto, a história era principalmente uma história de
salvação e, como tal, a preocupação exclusiva dos profetas, pregadores e mestres” (LÖWITH,
1991, p.18). Sim, principalmente para o Cristianismo, uma história da salvação com Cristo
ocupando uma centralidade, uma vez que o sentido é estabelecido a partir da estrutura
subjacente no antes e depois de Cristo, bem como na expectativa futura por sua segunda vinda
para consumar a história. Desta forma, transparece o esquema básico de realização e
expectativa futura. Tal esquema pode ser notado na forma como os autores do Novo
Testamento interpretaram as profecias do Antigo Testamento. Para estes autores, tais
profecias pré-anunciavam o nascimento de Cristo e se realizaram em sua manifestação
histórica, quando o filho de Deus encarnou-se, viveu, morreu e ressuscitou dentre os homens,
“vindo, porém, a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido
sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de
filhos” (Gálatas 4,4-5).
Löwith (1991, p.184-185) faz uma citação do teólogo Oscar Cullman que sintetiza
bem isto:
O homem estava destinado a dominar o resto da criação. Caiu, e esta queda
no pecado fez que toda criação ficasse sob a maldição de Deus (Gen. 3:17;
Rom. 8:20). Da humanidade pecadora Deus escolheu um grupo, o povo de
Israel, para a salvação do mundo. Porém, no seio deste povo, tem lugar uma
certa redução para uma comunidade ainda mais pequena que deve cumprir o
desígnio de Deus – o “resto de Israel”, o qehal Jahwe. Este resto é mais uma
vez comprimido e reduzido a um homem que, sozinho, é capaz de assumir a
função de Israel. Ele é o “servo de Jahve” em II Isaías, o “Filho do Homem”
em Daniel, que representa o “povo de santos” (Dan. 7:13 segs.). Esta única
pessoa identifica-se na história com o Filho de Deus, Cristo, que através do
sacrifício da sua morte pelos outros realiza o objetivo pelo qual Deus
escolhera o povo de Israel. Assim, a história da salvação até Cristo
desenvolveu-se como uma redução progressiva: a humanidade (Adão) – o
povo de Israel – o resto de Israel – o Único, Cristo (o segundo Adão). Deste
modo chegou, com efeito, a história da salvação ao seu centro, mas não
percorreu ainda o seu curso completo. Torna-se agora necessário, por assim
dizer, inverter o processo, designadamente, passar do Único para os Muitos,
mas de tal forma que os Muitos representam o Único. O caminho leva agora
de Cristo àqueles que acreditam nele, que sabem que serão salvos pela sua fé
no sacrifício da morte d’Ele. Deste modo, o caminho conduz à Igreja, que é
o corpo do Único; ela deve agora realizar em nome da humanidade a tarefa
do “resto”, do “povo de santos”. Por conseguinte, aplica-se-lhe também o
título daquele “resto” (qehal Jahve) que é equivalente hebraico de ekklesia,
“Igreja”. Assim, a história da salvação percorre o seu curso em dois
movimentos. O primeiro vai dos Muitos para o Único. É esta a Velha
Aliança. O outro vai do Único para os Muitos. É esta a Nova Aliança.
Precisamente no meio encontra-se o factum decisivo, a morte de Cristo.
O nascimento e a crucificação de Cristo cumprem o esquema de realização ou
cumprimento de profecias do Antigo Testamento, porém sua ressurreição traz consigo a
promessa de que voltaria no futuro, conforme exposto no Credo Apostólico: “ressurgiu dos
mortos ao terceiro dia; está assentado à mão direita de Deus Pai Todo-poderoso, de onde há
de vir para julgar os vivos e os mortos”.
Para um crente, o aspecto redentor da história não é um aspecto da história
secular, mas a luz transcendente que brilha na escuridão da difícil história do
homem, e a história de Cristo “um centro importante à beira da vida
aparentemente sem sentido”. Percorrer a linha da história da salvação
significa renunciar às grandes vias de acontecimentos gerais, gloriosos e
espectaculares ou comuns e miseráveis. É um caminho estreito de renúncia
decidida, que dá orientação e significado aos acontecimentos – pelo menos a
alguns deles – por entre as muitas encruzilhadas de acontecimentos profanos.
Visto na perspectiva da história do mundo, Jesus Cristo é o fundador de uma
nova seita; visto pelos olhos da fé, ele é o Kyrios Christus e, por
consequência, o Senhor da história. Enquanto os senhores da história do
mundo são Alexandres e Césares, Napoleões e Hitlers, Jesus Cristo é o
senhor do Reino de Deus e consequentemente da história secular, apenas na
medida em que a história do mundo esconde um sentido redentor. As
histórias particulares do mundo estão apenas indirectamente relacionadas
com a história restrita, mas universal, da salvação e são em si
iincomensuráveis com ela. Meramente como base e instrumentos empíricos
na relação de Deus com o homem, os impérios e as pessoas históricos
mundiais são arrastadas para órbita da perspectiva bíblica da história nos
Antigo e Novo Testamentos.
Subjacente às figuras e acontecimentos visíveis, as forças misteriosas
trabalham invisivelmente como archontes ou agentes primários (Rom. 13:1;
I Cor. 2:8). A partir de Cristo estas forças passaram a estar dominadas e
enfraquecidas, mas encontram-se ainda poderosamente vivas. Sem se dar
por isso, a história mudou consideralmente; à vista, é ainda a mesma, pois o
Reino de Deus já chegou, e no entanto, como um eschaton, ainda para vir.
Esta ambiguidade é essencial a toda a história depois de Cristo: o tempo
encontra-se já preenchido, só que ainda não consumado. Os tempos cristãos
entre a ressurreição de Cristo e o seu reaparecimento são definitivamente os
últimos (I João 2:18; Mat. 12:28); mas, enquanto, são os penúltimos tempos
antes da conclusão do presente, apesar de oculto, Reino de Cristo, no Reino
visível de Deus para lá dos tempos históricos. Em virtude desta profunda
ambiguidade da realização histórica em que tudo é “já” o que “ainda não” é,
o crente cristão vive numa tensão radical entre presente e futuro (LÖWITH,
1991, p.188-189).
Em termos cristãos, a história é compreendida como os “últimos dias”, o intervalo de
tempo entre a encarnação (realização) e a segunda vinda de Cristo (expectativa futura), os
cristãos são peregrinos neste mundo, enquanto aguardam a consumação de todas as coisas.
Tal intervalo temporal é compreendido enquanto história da salvação por tratar-se de um
tempo de manifestação da misericórdia divina num mundo mergulhado em pecado cujas
pessoas necessitam ser reconciliadas com o seu Criador. A Cidade de Deus está presente no
mundo somente enquanto reinado de Cristo nos corações daqueles que creram e foram
reconciliados com Deus. “A Cidade de Deus não é um ideal que pudesse tornar-se real na
história, como a terceira época de Joaquim, e a Igreja, na sua existência terrena, é apenas uma
significação representativa da cidade verdadeira trans-histórica” (LÖWITH, 1991, p.166).
Para o crente, a história não é um domínio independente do esforço e do
progresso humanos, mas um domínio de pecado e morte e, por conseguinte,
necessitado de redenção. De acordo com esta perspectiva, o processo
histórico como tal não poderia ser encarado como de extrema importância. A
crença na relevância absoluta da história enquanto tal, que fez aumentar as
tiragens das obras de Spengler e Toynbee, é o resultado da emancipação da
consciência histórica moderna a partir da fundação e da limitação pela
cosmologia clássica e pela teologia cristã. Ambas limitaram a experiência da
história e evitaram que atingissem dimensões indefinidas.
Foi em particular a ruptura na tradição no final do século XVIII que deu
origem ao carácter revolucionário da história moderna e do nosso
pensamento histórico moderno. A revolução política em França e a
revolução industrial em Inglaterra e os seus efeitos universais sobre todo o
mundo civilizado realçaram a moderna sensação de viver numa época em
que as mudanças históricas são da maior importância. A filosofia da história
mostrou-se uma questão mais fundamental do que anteriormente, porque a
própria história se tornou mais radical. Não só as invocações da ciência
natural ganharam maior velocidade e alargaram o âmbito dos movimentos e
mudanças sócio-históricos, como tornaram a natureza um elemento
altamente controlável na aventura histórica do homem. Através de uma
ciência natural estamos agora, como nunca antes estivemos, “a fazer” a
história e, no entanto, somos dominados por ela porque a história se libertou
dos seus limites antigos e cristãos (LÖWITH, 1991, p.195).
Este processo de transformações na forma de conceber os acontecimentos históricos
no Ocidente que culminarão com a ruptura na tradição no final do século XVIII foi analisado
por Löwith desde trabalhos escritos por pensadores modernos, nos quais a ruptura está
claramente manifesta, até a perspectiva cristã, conforme exposta acima. Em Santo Agostinho,
principalmente na Cidade de Deus, encontra-se um desenvolvimento da teologia cristã da
história nos dois níveis opostos da história sagrada e profana, que se encontram algumas
vezes, porém em princípio estão separadas. Por sua vez, Bossuet retoma a afirmação da
teologia da história de Santo Agostinho, mas com maior ênfase na independência relativa da
história sagrada. Já Voltaire e, de forma não intencional, Vico separam a história secular da
história sagrada, subordinando a história da religião à da civilização. Hegel transformou a
teologia da história em filosofia da história, mundanizando o princípio cristão da providência,
concebido como razão universal condutora da história. Comte transformou a providência em
progresso, cuja principal mudança consiste em destituir Deus e em fazer dos homens os
realizadores da história. Marx constrói uma escatologia na qual a consumação da história é a
realização de uma comunidade comunista, um Reino de Deus, sem Deus e na terra.
O futuro é o “verdadeiro” foco da história, desde que a verdade resida na
base religiosa do Ocidente cristão, cuja consciência histórica é, na verdade,
determinada por uma motivação escatológica, de Isaías a Marx, de Santo
Agostinho a Hegel, e de Joaquim a Schelling. O significado desta visão de
um fim derradeiro, como simultaneamente finis e telos, é o facto de
constituir um esquema de ordem e sentido progressivos, um esquema que
tem sido capaz de vencer o medo antigo no fado e na fortuna. O eschaton
não só delimita o processo da história através de um fim, como o articula e
preenche também com um objetivo definido. A influência do pensamento
escatológico sobre a consciência histórica do Ocidente situa-se ao nível da
conquista do fluxo histórico, que se desgasta e devora as suas próprias
criações a menos que seja definido por um fim derradeiro. Comparável à
bússola escatológica que nos orienta no espaço, e assim nos permite
conquista-lo, a bússola escatológica orienta no tempo indicando o Reino de
Deus como objetivo e fim derradeiros (LÖWITH, 1991, p.30-31).
Löwith constata que, na transformação do plano providencial em plano progressivo,
“os atributos teológicos são tolhidos à dimensão da transcendência para serem radicalmente
mundanizados e transferidos à dinâmica histórica imanente” (MARRAMAO, 1997, p.78).
Este processo opera mutações no modo de lidar com certos fenômenos na sociedade, pois
estes fenômenos, embora seculares, seguem seu curso através de uma lógica religiosa
implícita, fazendo com que sejam ao mesmo tempo religiosos e irreligiosos.
As comunidades dos tempos modernos não são nem religiosamente pagãs
nem cristãs; são manifestamente seculares, isto é, secularizadas, e apenas,
por derivação, são ainda cristãs. As velhas igrejas das cidades modernas
deixaram de ser os enormes centro de vida comunal, passando a estranhas
ilhas mergulhadas em centros de comércio. No nosso mundo moderno é tudo
mais ou menos cristão e, simultaneamente, anticristão: o primeiro, se
avaliado pelos parâmetros da Antiguidade Clássica, o segundo se avaliado
pelos parâmetros do verdadeiro Cristianismo. O mundo moderno tem tanto
de cristão como de anticristão porque resulta de um longo processo de
secularização. Comparado com o mundo pagão antes de Cristo, que era em
todos os aspectos religioso e supersticioso e por conseguinte um objecto
adequado da apologética cristã, o nosso mundo moderno é profano e
irreligioso e, no entanto, depende do credo cristão do qual se emancipou. A
ambição de ser “criativo” e a luta por uma realização futura reflectem a fé na
criação e na consumação, mesmo quando estas são consideradas mitos
irrelevantes (LÖWITH, 1991, p.201).
A providência se refere ao governo e a manifestação na história dos desígnios de um
Deus transcendente, cujo plano está relacionado a objetivos gerais que afetam toda a
humanidade, produzindo o consequente desfecho da história. Este plano está oculto, é
misterioso, até que seja revelado através dos eventos históricos, porém de tal forma que cada
ação individual ou acontecimento particular contribuem para a consumação dos desígnios
divinos em sua totalidade.
Por sua vez, as escatologias seculares estão relacionadas muito mais a generalidades
do que a indivíduos ou a acontecimentos particulares. Nestas escatologias, toda evolução
humana ou avanço histórico estão associados à universalidade da história e acentuadas à
expensa do caráter finito e pessoal da vida humana. Em sua perspectiva secular, estas adotam
apenas o elemento universal da interpretação cristã da história, eliminando a preocupação
cristã com o destino eterno da pessoa, visto que o esquema cristão da história da salvação se
refere à salvação individual, uma vez que “a humanidade não pode ser salva porque não existe
a não ser nos homens e mulheres individualmente” (LÖWITH, 1991, p.93). As escatologias
seculares, ao adotarem apenas a universalidade da interpretação cristã da história,
negligenciam destinos individuais e diluem a individualidade numa coletividade que existe
para alcançar um objetivo universal. Conservou-se a noção da história enquanto orientada
para o futuro, uma perspectiva teleológica, porém como uma substituição por versões
secularizadas, seja pela moderna doutrina do progresso, tendo o homem como criador de um
futuro para a humanidade; seja através da versão socialista da luta de classes, na qual “o povo
eleito”, o proletariado, alcançará a vitória final, enquanto seu destino histórico; ou seja, em
versões tecnológicas nas quais a humanidade operará a sua própria evolução, sem ter que
depender da seleção natural, através de ciência e técnica.
2.2.3 A Modernidade como essencialmente gnóstica
Eric Voegelin (1982) põe em relevo a necessidade de “reconhecer a essência da
modernidade como o crescimento do gnosticismo”. Este foi um dos tópicos principais
abordados durante as seis conferências sobre “A verdade e a representação” que proferiu no
inverno de 1951 na Universidade de Chicago. Estas conferências foram publicadas em 1952
pela mesma universidade com o título The New Science of Politics. O livro foi publicado no
Brasil pela editora da Universidade de Brasília em 1982 como A nova ciência da política.
De certa forma esta obra resume alguns temas importantes que estarão presentes ao
longo de sua vasta pesquisa sobre teoria política e cumpre a função de texto inaugural da
terceira fase no tocante ao desenvolvimento do pensamento de Voegelin (FEDERICI, 2011,
p.66).
A primeira fase se refere à publicação dos seus cinco primeiros livros antes de emigrar
para os Estados Unidos, sua fuga do nazismo e a experiência do totalitarismo na Europa que
lhe tinham fornecido o contexto imediato para as suas primeiras obras: On the form of the
american mind [Da forma da mente americana], Race and State [Raça e Estado], The history
of the race idea [A história da ideia de raça], The authoritarian State [O Estado autoritário] e
The political religions [As religiões políticas]. Deste modo, a entrada de Voegelin no que se
pode considerar uma segunda e nova fase de sua erudição corresponde à sua emigração para
os Estados Unidos e sua obra acerca da História das ideias políticas.
Nas Reflexões autobiográficas, Voegelin expõe como surgiu o projeto de escrever a
História das ideias políticas após ter encontrado em Harvard o prof. Fritz Morstein-Marx,
então editor de uma série de manuais publicada pela McGraw-Hill e como foi incumbido de
escrever um manual de tamanho médio (algo entre 200 e 250 páginas) para referida série.
O objetivo comercial era produzir um texto que competisse com o manual
padrão de teoria política ao tempo: History of Political Theory [História da
Teoria Política] (1937), de George H. Sabine e a obra de três volumes de
William A. Dunning. Voegelin trabalhou nesse projeto que depois veio a se
transformar nos múltiplos volumes de História das Ideias Políticas, de 1939
a 1954 (FEDERICI, 2011, p.61-62).
Voegelin (2007, p.102) explica que ao longo da sua pesquisa algumas descobertas o
fizeram mudar os rumos que havia traçado para o desenvolvimento do seu texto: “O modelo
de um desenvolvimento linear das ideias políticas, de um suposto constitucionalismo
medieval e culminando no esplêndido constitucionalismo da era moderna, sucumbiu.” A
razão disto foi apresentada por ele nos seguintes termos:
Essas descobertas fizeram romper o modelo anterior e conferiram novos
rumos à investigação. Minha História das ideias políticas já estava escrita
até o século XIX. Cheguei a concluir extensos capítulos sobre Schelling,
Bakunin, Marx e Nietzsche. Enquanto preparava o capítulo sobre Schelling,
ocorreu-me que a concepção de uma história das ideias era uma deformação
ideológica da realidade. Não haveria ideias se antes não houvesse símbolos
de experiências imediatas. Ademais, era impossível tratar por “ideias”
fenômenos como um ritual de coroação egípcio ou a recitação do Enuma
Elish nas celebrações do Ano Novo sumério. Eu ainda não tinha condições
de entender realmente de onde viera o conceito de ideias e o que ele
significava. Muito posteriormente descobri que a origem mais provável são
os koinai ennoai dos estoicos. Essas opiniões comuns, ou autoevidentes,
serviram de ponto de partida para a crítica de Locke no primeiro capítulo de
seu Ensaio sobre o entendimento humano [1690]; ele protestou contra elas a
fim de recuperar as experiências em que as ideias tem sua origem
(VOEGELIN, 2007, p.102-103).
Com descoberta de que “não haveria ideias se antes não houvesse símbolos de
experiência imediata”, inicia-se a terceira fase da obra de Voegelin. E esta descoberta
coincide com o período de preparação das Preleções Walgreen que posteriormente seriam
publicadas como A nova ciência da política.
As Walgreen Lectures que proferi na Universidade de Chicago em 1951
propiciaram uma ruptura dessa situação. Fui forçado a formular, de maneira
resumida, algumas das ideias que haviam começado a se cristalizar.
Concentrei-me no problema da representação e na relação entre
representação e a verdadeira existência pessoal e social. Era óbvio, por
exemplo, que o governo da União Soviética não estava no poder em virtude
de eleições representativas no sentido ocidental; isso no entanto não impedia
que fosse representativo do povo, mas em virtude de quê? Na época, chamei
isso o problema da representação existencial. Descobri que a representação
existencial sempre é o núcleo central do governo bem sucedido,
independentemente dos procedimentos formais que alçam o governo
existencialmente representativo à sua posição. Em uma sociedade
comparativamente mais primitiva, onde o grosso da população é incapaz de
debater racionalmente e organizar partidos políticos que determinem quais as
questões de interesse público, um governo deitará suas bases sobre forças
tradicionais ou revolucionárias sem o recurso à instituição eleitoral. A
tolerância, pela população, de um governo nesses moldes dependerá de seu
maior ou menor sucesso na consecução dos objetivos que orientam a
instituição de qualquer governo: a garantia da paz interna, a defesa do reino,
a administração da justiça e o cuidado com o bem-estar da população. Se o
governo desempenha de forma moderadamente satisfatória essas funções, os
procedimentos que lhe permitem chegar ao poder são de importância
secundária (VOEGELIN, 2007, p.104).
Segundo Michael Federici (2011), Voegelin esteve nos Estados Unidos de 1938 a
1958. Durante esse período, escreveu os volumes de História das ideias políticas, A nova
ciência da política, e os três volumes de Order and history [Ordem e história]. Em 1944 se
tornou cidadão americano e lecionou por dezesseis anos na Universidade do Estado da
Lousiana, depois de breves estadas em Harvard, Bennington College, e na Universidade do
Alabama. Ele se mudou para Munique em 1958, depois de aceitar um cargo na Universidade
de Munique como professor e diretor do Instituto de Ciência Política. Sua preleção de
investidura foi publicada como Science, politics and gnosticism [Ciência, política e
gnosticismo]. Em 1969, Voegelin retornou aos Estados Unidos para um cargo na Instituição
Hoover da Universidade de Stanford, ocupou este cargo até 1974, o mesmo ano que se
publicou o quarto volume de Order and history, The ecumenic age [A era ecumênica].
Voegelin escreveu vinte um livros e mais de cem artigos. Faleceu em 19 de janeiro de 1985
enquanto escrevia o quinto volume de Order and history, In search of order [Em busca da
ordem] que devido ao seu falecimento foi publicado menor do que o planejado.
Em A nova ciência da política, Voegelin revela a mudança radical de eixo no seu
método de pesquisa. Por meio da tomada de consciência de que é necessário compreender os
símbolos da experiência imediata que antecedem as ideias, Voegelin se orienta pela noção de
que “a existência do homem na sociedade política é a existência histórica; e a teoria política,
desde que penetre no terreno dos princípios, deve ser, ao mesmo tempo, uma teoria da
história” (VOEGELIN, 1982, p.17). O reconhecimento da historicidade das sociedades
políticas está em relação próxima com o entendimento de que “qualquer investigação sobre a
representação, desde que suas implicações teóricas sejam consistentemente desdobradas,
tornar-se-á, na verdade, uma filosofia da história” (VOEGELIN, 1982, p.17).
Aceitar a historicidade da sociedade política conduz a Ciência Política pela noção de
que por natureza é uma ciência do homem em sua existência histórica. E este homem em
existência histórica não espera pela ciência para que esta lhe explique sua própria vida, a
ciência ao abordar a realidade social encontra um campo já ocupado pelo que Voegelin chama
de auto-interpretação da sociedade.
A sociedade é iluminada por um complexo simbolismo, com vários graus de
compactação e diferenciação – desde o rito, passando pelo mito, até a teoria
– e esse simbolismo a ilumina com um significado na medida em que os
símbolos tornem transparentes ao mistério da existência humana a estrutura
interna desse pequeno mundo, as relações entre seus membros e grupos de
membros, assim como sua existência como um todo. A auto-interpretação da
sociedade através dos símbolos é parte integrante da realidade social, e pode-
se mesmo dizer que é uma parte essencial dela, porque através desta
simbolização os membros da sociedade a vivenciam como algo mais que um
acidente ou uma conveniência; vivenciam-na como pertencendo a sua
essência humana. Inversamente, os símbolos exprimem a experiência de que
o homem é inteiramente homem em virtude de sua participação em um todo
que transcende a sua existência particular, em virtude de sua participação no
xynon, o comum, na expressão de Heráclito, o primeiro pensador ocidental
que desenvolveu este conceito. E, em consequência, toda sociedade humana
compreende a si mesma através de uma variedade de símbolos, alguns deles
símbolos linguísticos altamente diferenciados, independentes da ciência
política; tal auto-compreensão precede historicamente de alguns milênios o
surgimento da ciência política, do episteme politique, no sentido aristotélico.
Assim, ao se iniciar, a ciência política não parte de uma tabula rasa na qual
pudesse escrever seus conceitos; começa inevitavelmente a partir do rico
conjunto de auto-interpretações da sociedade e prossegue através do
esclarecimento crítico dos símbolos sociais preexistentes (VOEGELIN,
1982, p.33).
Voegelin, ao reconhecer o fato de que a sociedade se auto-interpreta através de
símbolos da sua própria experiência, faz isto reconhecendo que a sociedade política pode ser
caracterizada como um cosmion, um pequeno mundo.
Tal cosmion tem um reino interior de significado, mas esse reino existe
tangivelmente no mundo exterior, em seres humanos dotados de corpos e
que participam fisicamente da exterioridade orgânica e inorgânica do
mundo. A sociedade política pode dissolver-se não apenas pela
desintegração das crenças que fazem dela uma unidade atuante na história,
mas também pode ser destruída pela dispersão de seus membros de tal
maneira que a comunicação entre eles se torne fisicamente impossível ou,
mais radicalmente, por sua eliminação física; pode, igualmente, sofrer danos
sérios, destruição parcial da tradição ou paralisia prolongada mediante o
extermínio ou opressão de membros ativos que constituem as minorias
políticas e intelectuais que dirigem a sociedade (VOEGELIN, 1982, p.35-
36).
Deste modo, Voegelin está atentando para a necessidade de distinguir os conceitos
teóricos ou símbolos da linguagem da Ciência Política dos “símbolos da linguagem
produzidos como parte integrante do mundo social em seu progresso de auto-iluminação”. Há
uma relação entre ambos na proporção em que os conceitos teóricos da Ciência Política se
desenvolvem a partir do processo de esclarecimento crítico dos símbolos do mundo social. A
respeito disto, Voegelin (1982, p.34) acrescenta:
No transcurso desse processo, alguns dos símbolos que ocorrem na realidade
serão abandonados por não se prestarem à utilização científica, enquanto
novos símbolos se desenvolverão dentro da própria teoria para descrição
crítica adequada dos símbolos que fazem parte da própria realidade. Se, por
exemplo, o teórico descrever a ideia marxista do reino da liberdade, a ser
estabelecido pela revolução comunista, como hipóstase imanentista de um
símbolo escatológico cristão, o símbolo “reino da liberdade” é parte da
realidade; é parte de um movimento secular do qual o movimento marxista é
uma subdivisão, enquanto que termos como “imanentista”, “hipóstase” e
“escatologia” são conceitos da ciência política.
Por sua vez no tocante ao que Voegelin denominou de representação existencial, deve-
se considerar que a garantia da representatividade de uma sociedade política está
fundamentada na sua articulação política. Esta, por sua vez, efetiva-se com o propósito de
atender a uma necessidade existencial da sociedade. Em outros termos, a sociedade existe
como resultado de sua articulação e a pressão das circunstâncias cria o estímulo para
articulação. Neste estímulo jaz o vínculo com os processos históricos, pois são necessidades
reais (defesa do reino, aplicação da justiça, garantia de segurança e prosperidade para os
súditos e etc) que fazem com que a sociedade se articule com o objetivo de produzir um
representante que aja por ela. Nesta perspectiva, sobre o propósito de atuação das sociedades
políticas, Voegelin (1982, p.39) escreve:
Para serem capazes de atuar, as sociedades políticas devem ter uma estrutura
interna que possibilite a alguns dos seus membros – o governante, o
governo, o príncipe, o soberano, o magistrado, etc., de acordo com a
terminologia da época – obter obediência natural a suas ordens e essas
ordens devem servir às necessidades existenciais da sociedade, tais como a
defesa do reino e a aplicação da justiça – se se permite uma classificação
medieval dos propósitos. Essas sociedades, organizadas internamente para
atuar, não são entes permanentes e estáticos, e sim crescem historicamente; o
processo pelo qual os seres humanos se incorporam numa sociedade capaz
de atuar será denominado a articulação da sociedade. Em consequência da
articulação política, há seres humanos, os governantes, que podem atuar em
nome da sociedade, homens cujos atos não são atribuídos às suas próprias
pessoas mas à sociedade como um todo – o que resulta, por exemplo, em que
a emissão de uma norma geral que regule uma área da vida humana não será
vista pelos membros da sociedade como um exercício de filosofia moral,
mas sim como o estabelecimento de uma norma de cumprimento obrigatório.
Uma pessoa representa a sociedade quando seus atos são percebidos dessa
maneira.
Através da exposição de exemplos históricos, Voegelin demonstra que nem sempre
esta representação abrangeu cada indivíduo da sociedade como um todo. Em termos
históricos, não foi sempre que a articulação da sociedade ocorreu até o nível do indivíduo
como unidade representável. Este tipo particular de articulação não ocorre em toda parte,
existe apenas nas sociedades ocidentais, não sendo uma qualidade da natureza humana, e,
desta forma, não podendo ser separada de certas condições históricas que só se deram no
Ocidente.
Na atualidade, a articulação fruto da “pressão do simbolismo democrático é a última
fase de uma série de complicações terminológicas que começam nos meados da Idade Média,
com a incipiente articulação das sociedades políticas ocidentais.” Sobre isto, pode-se ler:
A Magna Carta, por exemplo, se refere ao Parlamento como o “commune
consilium regni nostri”, o “conselho comum de nosso reino”. Examinemos
esta fórmula. Ela designa o Parlamento como o conselho do reino e não
necessariamente do povo, visto que o reino, em si, é uma possessão do rei. A
fórmula é característica de uma época para qual convergem dois períodos de
articulação social. Numa primeira fase, o rei é o único representante do reino
e o sentido deste monopólio da representação está preservado no pronome
possessivo acoplado ao símbolo “reino”. Numa segunda fase, as comunas do
reino – condados, burgos, cidades – começam a articular-se até que se
tornaram capazes de atuar como representantes delas mesmas; os próprios
barões deixaram de ser senhores feudais isolados e se associaram no
baronagium, uma comuna capaz de atuar, como se vê na forma securitatis
da Magna Carta. Não é necessário assinalar os detalhes desse processo
complicado; o ponto de interesse teórico é que, quando os representantes das
comunas articuladas se encontram no conselho, formam comunas de uma
ordem superior, e assim sucessivamente até o Parlamento de duas casas, que
se vê a si mesmo como o conselho representante de uma sociedade ainda
maior, o reino como um todo. Com a progressiva articulação da sociedade,
desenvolve-se, assim, uma representação composta peculiar, juntamente com
um simbolismo que expressa sua estrutura hierárquica interna (VOEGELIN,
1982, p.40).
Até onde foi descrito, o símbolo “povo” ainda não é utilizado com referência a um
nível de articulação e representação, lembrando que a articulação é o que garante a
representação que, por sua vez, objetiva garantir ao representante as condições de atuar em
nome da sociedade. Ainda com referência ao exemplo histórico proposto por Voegelin, nos
séculos que se seguiram a Magna Carta, a principal representação permaneceu com o rei. Na
articulação da sociedade, novos participantes da representação foram incluídos dentro da
representação monárquica. De modo que não só o reino pertencia ao rei, também os prelados,
os magnatas e as cidades lhe pertenciam. Porém no tocante aos indivíduos comuns, membros
da sociedade, são simplesmente habitantes ou cidadãos do reino.
A fusão dessa hierarquia representativa em um único representante, o rei no
Parlamento, tomou um tempo considerável; o fato de que esse processo de
fusão estava ocorrendo só se tornou teoricamente tangível séculos depois,
numa famosa passagem do discurso de Henrique VIII ao Parlamento a
propósito do caso Ferrers. Nessa ocasião, em 1543, o rei disse: “Somos
informados por juízes de que em tempo algum nos elevamos mais em nossa
condição real do que quando o Parlamento está reunido, ocasião em que, nós
como cabeça e vós como membros, nos entrelaçamos e nos articulamos
formando um só corpo político, de tal maneira que qualquer ofensa ou
ataque (durante esse tempo) dirigido contra o mais inferior dos membros da
Casa deve ser julgado como se fosse contra a nossa pessoa e contra toda a
Corte do Parlamento”. A diferença de nível entre o rei o Parlamento ainda é
preservada, mas já pode ser simbolizada através da relação entre a cabeça e
os membros de um corpo; o representante composto transforma-se em “um
só corpo político”; a condição real se engrandece com sua participação na
representação parlamentar e o Parlamento se engrandece com sua
participação na majestade da representação real (VOEGELIN, 1982, p.40).
Sobre o processo histórico no qual se alcança o limite da representação expressa pelo
simbolismo do povo, Voegelin (1982, p.41) declara:
A direção que os símbolos se deslocam deve ter-se tornado clara com esta
passagem: quando a articulação se expande por toda a sociedade, também o
representante se expandirá até que alcance o limite determinado pela
articulação política total da sociedade, até o último indivíduo, e pelo fato
correspondente de que a sociedade se torna o representante de si mesma.
Simbolicamente, esse limite é alcançado na magistral descrição do governo
feito por Lincoln – “do povo, pelo povo, para o povo”. O símbolo “povo”
nesta fórmula significa sucessivamente a sociedade política articulada, seu
representante e a comunidade afetada pelos atos do representante. A fusão
inigualável do simbolismo democrático com o conteúdo teórico é o segredo
do efeito dessa fórmula.
O tipo de representação da sociedade política articulada por seus representantes foi
denominado por Voegelin como “representação existencial” devido ao seu processo de
desenvolvimento histórico, por ter fundamento em pressões histórico-existenciais ou sociais
que conduzem a sociedade a se articular. Deste modo o representante é constituído para atuar
com o fim de resolver os problemas relacionados com estas pressões sociais. Segundo
Voegelin, a questão existencial sempre é o núcleo central do governo bem sucedido,
independentemente dos procedimentos formais que alçam o governo existencialmente representativo à
sua posição. Conforme já demonstrado, originariamente, a forma como a articulação da sociedade
política ocorreu com o objetivo de constituir um representante nem sempre se amparou num modelo
democrático de representação de cada indivíduo de uma sociedade. Voegelin apresentou exemplos
históricos nos quais em sociedades comparativamente mais primitivas, onde grande parte da
população é incapaz de debater racionalmente e organizar partidos políticos que determinem quais as
questões de interesse público, um governo deitará suas bases sobre forças tradicionais ou
revolucionárias sem o recurso à instituição eleitoral. A tolerância, pela população, de um governo
nesses moldes dependerá de seu maior ou menor sucesso na consecução dos objetivos existenciais que
orientam a instituição de qualquer governo. Se o governo desempenha de forma moderadamente
satisfatória essas funções, os procedimentos que lhe permitem chegar ao poder são de importância
secundária.
Além da “representação existencial” há uma segunda relação na qual a própria
sociedade se torna representante de algo que está além dela, uma realidade transcendente, algo
que foi denominado como “representação transcendental”. Isto, conforme já exposto,
independentemente da interpretação da sociedade realizada por uma Ciência Política, a
sociedade realiza a sua própria auto-interpretação. Isto ocorre porque a sociedade é um
cosmion, um pequeno mundo, um conjunto global de significados, um mundo interiormente
iluminado por sua própria auto-interpretação. E este pequeno mundo de significados, segundo
Voegelin, deve ser precisamente o objeto a ser explorado pela Ciência Política, e o método de
começar pelos símbolos da realidade é o que visa assegurar a apreensão do objeto e esclarecer
teoricamente os símbolos da realidade. Tal procedimento visa evitar um conflito de verdades,
uma verdade representada pelo teórico em contraposição à outra verdade representada pela
sociedade. Uma vez que “os símbolos pelos quais a sociedade interpreta o significado de sua
existência são formulados como verdades”, de acordo com Voegelin (1982, p.49), “se o
teórico faz uma interpretação diferente, ele chega a uma verdade diferente com respeito ao
significado da existência humana em sociedade”.
Na verdade, essa relação pode ser encontrada desde que teve início o registro
da história das principais sociedades políticas que ultrapassaram o nível
tribal. Todos os impérios antigos, tanto do Oriente Próximo quanto os do
Extremo Oriente, viam-se como representantes de uma ordem transcendente,
a ordem do cosmos; e alguns deles chegaram a perceber essa ordem como
uma “verdade”. Quando se recorre às mais antigas fontes chinesas do Shû
King, ou às inscrições egípcias, babilônias, assírias ou persas, verifica-se que
a ordem do império é invariavelmente interpreta como a representação da
ordem cósmica na sociedade humana. O império é análogo ao cosmos, um
pequeno mundo que reflete a ordem do mundo maior e envolvente. O ato de
governar passa a ser a tarefa de assegurar a harmonia entre a ordem da
sociedade e a ordem cósmica; o território do império é uma representação
analógica do mundo com todos os seus quadrantes; as grandes cerimônias do
império representam o ritmo do cosmos; os festivais e os sacrifícios são uma
liturgia cósmica, uma participação simbólica do cosmion no cosmos; e a
pessoa do governante representa a sociedade, porque ele representa na terra
o poder transcendente que mantém a ordem cósmica. A palavra cosmion,
pequeno mundo, usada neste sentido, reflete a dupla significação da situação,
referindo-se ao mesmo tempo à sociedade e seu território e à representação
da ordem cósmica (VOEGELIN, 1982, p.50).
Neste sentido, a sociedade – representante de uma verdade transcendental, um
pequeno mundo que reflete a ordem do mundo maior – não existe automaticamente, mas é
fundada e necessita ser preservada e defendida. A ordem da sociedade análoga ao cosmo é
uma verdade que necessitada ser constantemente defendida, quando os governantes falham
em realizar esta tarefa a ordem pode ser ameaçada por revoluções internas ou derrotas
externas. Os governantes são representantes existenciais da sociedade e devido a isto se
tornam seus chefes ativos na representação da verdade e em sua defesa. O governo obtido
pelo “consenso do corpo de cidadãos pressupõe a articulação dos cidadãos individualmente
considerados até o ponto em que eles se possam tornar participantes ativos na representação
da verdade através do peitho, a persuasão” (VOEGELIN, 1982, p.63).
Os que estão do lado da ordem da sociedade representam a verdade, enquanto os seus
inimigos representam a desordem e a mentira. Assim seja o confronto interno ocasionado por
processos revolucionários, ou seja, a ameaça oriunda de inimigos externos serão sempre
confrontos entre verdades. Voegelin identifica esta relação não como mera curiosidade do
passado, mas como exemplo de uma estrutura política que pode ocorrer em qualquer época,
especialmente na atualidade.
O auto-entendimento de uma sociedade como representante da ordem
cósmica tem início no período dos impérios cosmológicos, no sentido
técnico, mas não está limitado a esse período. A representação cosmológica
sobrevive, não só nos símbolos imperiais da Idade Média ocidental ou em
sua presença continua na China até o século XX; seu princípio também pode
ser reconhecido em contextos em que a verdade a ser representada é
simbolizada de uma maneira inteiramente diferente. Na dialética marxista,
por exemplo, a verdade da ordem cósmica é substituída pela verdade da
ordem imanente da história. E, no entanto, o movimento comunista é
representante desta verdade simbolizada de modo diferente no mesmo
sentido em que um Khan mongol era o representante da verdade contida na
Ordem de Deus; e a consciência desta representação leva às mesmas
construções políticas e jurídicas encontradas nos outros exemplos de
representação imperial da verdade. Sua ordem está em harmonia com a
verdade da história; seu objetivo é o estabelecimento do reino da liberdade e
da paz; seus oponentes opõem-se a verdade histórica e serão, por fim,
derrotados; ninguém pode empreender uma guerra legítima contra a União
Soviética porque passa a ser um representante da inverdade histórica, ou,
usando a linguagem contemporânea, um agressor; e as vítimas não são
conquistadas, mas libertadas de seus opressores e, em consequência, da
inverdade de sua existência (VOEGELIN, 1982, p.53).
Em termos de como a “verdade transcendental” tem sido representada no Ocidente,
durante o Império Romano o confronto de verdades foi travado entre Cristianismo e
paganismo. Este confronto de verdades terminou com a vitória do Cristianismo. Outrora, o
Império Romano, sob a influência da religião pagã, era tido como divino, assim como os seus
imperadores também foram divinizados, semelhantemente o mundo e o tempo também eram
considerados divinos. O Cristianismo refutou a noção clássica de tempo como ciclo eterno,
cujo padrão visível é a revolução cíclica dos corpos celestes, bem como a noção de que o
cosmo é eterno e de que a natureza é divina. O Cristianismo, desta forma, desdivinizou o
mundo com base no entendimento judaico-cristão de que o cosmo é criação de Deus e
completamente distinto dele, não compartilhando de sua divindade. Porém, para Voegelin, na
Modernidade se estabelece um processo de redivinização, mas em que consiste este processo?
Sobre quais fundamentos está edificado?
Assim, entender-se-á por desdivinização o processo histórico pelo qual a
cultura do politeísmo morreu de atrofia experiencial e a existência humana
na sociedade foi reordenada mediante a experiência do destino do homem,
pela graça de Deus que transcende o mundo, rumo à vida eterna numa visão
beatífica. Por redivinização, contudo, não se entenderá uma revivescência da
cultura politeísta no sentido greco-romano. A caracterização dos
movimentos políticos de nossos dias como pagãos, a qual goza de certa
popularidade, é enganosa, pois sacrifica a natureza historicamente singular
dos movimentos modernos em favor de uma semelhança superficial. A
redivinização moderna, ao contrário, tem suas raízes no próprio
Cristianismo, a partir de componentes que foram suprimidos como heréticos
pela igreja universal (VOEGELIN, 1982, p.85).
A redivinização moderna “tem suas raízes no próprio Cristianismo, a partir de
componentes que foram suprimidos como heréticos”, afirma Voegelin, que, por sua vez,
compreende que a tensão surgiu da origem histórica do Cristianismo como movimento
messiânico judaico. Nas primeiras comunidades cristãs, havia uma oscilação entre a
expectativa escatológica do retorno de Cristo, a parousia, e a compreensão da igreja como o
apocalipse3 de Cristo na história. Porém esta expectativa escatológica da vinda de Cristo antes
do fim daquela primeira geração de cristãos, algo que, segundo a crença das primeiras
comunidades cristãs, implementaria o reino de Deus na história. Todavia, uma vez que tal
expectativa não se confirmou, a crença cristã evoluiu da escatologia do reino na história em
direção à escatologia da perfeição trans-histórica.
3 A palavra “apocalipse” tem sua origem no grego cujo significado é “manifestação”, “revelação” ou
“desvelamento”. Um termo com profundo sentido escatológico nos textos do Novo Testamento grego e bem
como na literatura apocalíptica tanto judaica quanto cristã.
Não obstante, a expectativa de uma ocorrência iminente do reino foi
repetidamente atiçada pelo sofrimento resultante das perseguições; e a mais
grandiosa expressão do sentimento escatológico, a Revelação de S. João, foi
incluída no cânone malgrado as dúvidas que inspirou quanto a sua
compatibilidade com a ideia da igreja. A inclusão teve consequências
fatídicas, pois, com a Revelação, foi aceito o anúncio revolucionário do
milênio em que Cristo reinaria com seus santos nesta terra. Mais ainda, a
inclusão não apenas sancionou a permanente efetividade, dentro do
Cristianismo, da vasta literatura apocalíptica judaica, mas também suscitou a
questão imediata de como o milênio podia ser conciliado com a ideia e a
existência da igreja. Se o Cristianismo consistia em desejar ardentemente
uma libertação das coisas do mundo, se os cristãos viviam na expectativa do
fim da história não-redimida, se o destino dos cristãos só podia ser realizado
pelo reino, no sentido do Capítulo 20 da Revelação, a igreja ficava reduzida
a uma comunidade efêmera de homens à espera do grande acontecimento, na
esperança de que ocorresse no transcurso de suas vidas. A nível teórico, o
problema só podeia ser resolvido mediante o tour de force interpretativo
empreendido por Santo Agostinho no Civitas Dei. Nessa obra, Santo
Agostinho rejeitou incisivamente a crença literal no milênio como “fábulas
ridículas”, declarando corajosamente que o reino dos mil anos era o reinado
de Cristo na sua igreja na época presente, a qual duraria até o Juízo Final e o
advento do reino eterno no além (VOEGELIN, 1982, p.85-86).
Fica evidente o protagonismo de Santo Agostinho na elaboração de uma teologia que
tornou possível a evolução da crença cristã da escatologia do reino na história em direção à
escatologia da perfeição trans-histórica, transferindo a expectativa futura da segunda vinda de
Cristo e o estabelecimento do reino de Deus para além da história. A interpretação de
Agostinho de que era inadmissível a esperança revolucionária numa Segunda Vinda que
transfiguraria a estrutura da história na terra permaneceu válida até o fim da Idade Média.
Deste modo, Agostinho direcionou a expectativa escatológica de um reino na história para um
reino cuja consumação só se daria após a história, impossibilitando teoricamente a elaboração
de uma teologia política ancorada na noção escatológica de reino de Deus.
O verbo se tornara matéria em Cristo; a graça da redenção fora concedida ao
homem; não haveria qualquer divinização da sociedade além da presença
espiritual de Cristo em sua igreja. O milenismo judaico foi excluído
juntamente com o politeísmo, assim como o monoteísmo judaico fora
excluído lado a lado com o monoteísmo metafísico pagão. Isso deixava a
igreja como organização espiritual universal dos santos e pecadores que
professavam a fé em Cristo, como representante da civitas Dei na história,
como o clarão da eternidade no tempo. Paralelamente, fazia da organização
de poder da sociedade uma representação temporal do homem, no sentido
específico de uma representação daquela parte da natureza humana que
desaparecerá com a transfiguração do tempo em eternidade. A sociedade
cristã unificada articulava-se nas ordens temporal e espiritual. Em sua
articulação temporal, aceitava a conditio humana sem fantasias sobre o
milênio, ao mesmo tempo em que valorizava a existência natural mediante a
representação do destino espiritual através da igreja (VOGELIN, 1982,
p.86).
Agostinho elaborou uma teologia da história que possibilitou que a sociedade cristã
ocidental se articulasse nas ordens espiritual e temporal, tendo o papa e o imperador como
representantes supremos tanto em sentido existencial quanto transcendental. A teologia da
história elaborada por Santo Agostinho na Cidade de Deus consiste numa noção
transcendental da história que inclui tanto os acontecimentos na esfera angelical quanto o
descanso eterno. E somente esta história transcendental, que também abrange a peregrinação
terrena da igreja, move-se rumo à realização escatológica. Por sua vez, para Agostinho, a
história profana não tem igual direção, pois consiste na espera do fim, sua atual forma é a de
uma época em estágio terminal.
Todavia, conforme Voegelin, o problema moderno da representação “tem suas raízes
no próprio Cristianismo, a partir de componentes que foram suprimidos como heréticos”.
Assim, no Ocidente a partir de sua sociedade com seu sistema consagrado de símbolos, o
problema da representação moderna ganha força através da ressurgência da escatologia do
reino na história. Segundo Voegelin (1982, p.87), o “movimento tinha uma longa pré-história
social e intelectual, mas o desejo de redivinizar a sociedade produziu um simbolismo próprio,
bem definido, somente por volta do século XII.” Ele identifica a primeira expressão mais
abrangente desta ideia na pessoa e obra de Joaquim de Fiore.
Joaquim rompeu com a concepção agostiniana da sociedade cristã ao aplicar
o símbolo da Trindade ao curso da história. Em sua especulação, a história
da humanidade teve três períodos, correspondentes às três pessoas da
Trindade. O primeiro foi a era do Pai; com o surgimento de Cristo teve início
a era do Filho. Mas esta não será a última, devendo a ela seguir-se a era do
Espírito. As três eras foram caracterizadas como incrementos inteligíveis de
realização espiritual. Na primeira era desdobrou-se a vida do leigo; a
segunda suscitou a vida de contemplação ativa do sacerdote; a terceira traria
a vida espiritual perfeita do monge. Ademais, as eras possuíam estruturas
internas comparáveis e duração passível de ser calculada. Da comparação
entre as estruturas, concluía-se que cada era tinha início com uma trindade
de figuras proeminentes, isto é, dois precursores seguidos pelo líder da
própria era; e, dos cálculos sobre a duração, inferia-se que a era do Filho
terminaria no ano 1260. O líder da primeira era foi Abraão; o da segunda,
Cristo; e predizia Joaquim que, por volta de 1260, apareceria o Dux e
Babylone, o líder da terceira era (VOEGELIN, 1982, p.87).
Voegelin declara que Joaquim de Fiore através de sua escatologia trinitária criou o
conjunto de símbolos que preside até a atualidade a auto-interpretação da sociedade política
moderna. Voegelin (1982, p.87-88) enumera e exemplifica esse conjunto de símbolos.
O primeiro desses símbolos é a concepção da história como uma sequência
de três eras, das quais a última é claramente o Terceiro Reino final. É
possível reconhecer como variações desse símbolo a divisão da história em
antiga, medieval e moderna; a teoria de Turgot e de Comte acerca da
sequência das fases teológicas, metafísica e científica; a dialética hegeliana
dos três estágios de liberdade e realização espiritual auto-reflexiva; a
dialética marxista dos três estágios do comunismo primitivo, sociedade de
classes e comunismo final; e, por último, o símbolo nacional-socialista do
Terceiro Reino – embora este seja um caso especial, a exigir maior atenção.
O segundo símbolo é o referente ao líder. Este símbolo teve eficácia
imediata no movimento dos religiosos franciscanos que viram em S.
Francisco a concretização da profecia de Joaquim, cuja eficácia foi ainda
reforçada pela especulação de Dante acerca do Dux da nova era espiritual.
Posteriormente, o símbolo pode ser encontrado nas figuras paracléticas, os
homines spirituales e os homines novi do fim da Idade Média, do
Renascimento e da Reforma; pode ser vislumbrado como componente do
príncipe de Maquiavel; e, no período de secularização, surgiu nos super-
homens de Condorcet, Comte e Marx, até que veio dominar o panorama
contemporâneo através dos líderes paracléticos dos novos reinos. O terceiro
símbolo, às vezes combinado ao segundo, é o do profeta da nova era. A fim
de emprestar validade e convicção à ideia do Terceiro Reino final, é
necessário presumir que o curso da história, como um todo inteligível e
significativo, seja acessível ao conhecimento humano, quer através de uma
revelação direta, quer através de uma gnose especulativa. Por conseguinte, o
profeta gnóstico ou, nos estágios posteriores da secularização, o intelectual
gnóstico torna-se um acessório da civilização moderna. O próprio Joaquim é
o primeiro exemplar dessa espécie. O quarto símbolo é o da irmandade de
pessoas autônomas. A terceira era de Joaquim, devido à nova descida do
espírito, transformará os homens em membros de novo reino sem a
mediação sacramental da graça. Nessa era, a igreja deixará de existir porque
os dons carismáticos necessários à vida perfeita chegarão aos homens sem a
administração dos sacramentos. Embora Joaquim concebesse a nova era
concretamente como uma ordem de monges, a ideia da comunidade dos
espiritualmente perfeitos, que podem viver em conjunto sem qualquer sem
qualquer autoridade institucional, foi formulada como uma questão de
princípio. A ideia prestava-se a variações infinitas. Ela pode ser encontrada,
em graus diferentes de pureza, nas seitas medievais e renascentistas, assim
como nas igrejas puritanas dos santos; em sua forma secularizada, tornou-se
um componente formidável do credo democrático contemporâneo; e
constitui o núcleo dinâmico dos misticismo marxiano acerca do reino da
liberdade e do gradual desaparecimento do estado.
Esta nova escatologia proposta por Joaquim de Fiore deslocou para a história
elementos cuja consumação, em termos agostinianos, só se daria numa realidade trans-
histórica e transcendente, afetando, desta forma, decisivamente a estrutura política moderna.
Na especulação de Joaquim de Fiore, foi utilizado o que estava disponível na ocasião, o
significado da história transcendental conforme proposto por Agostinho, porém dando-lhe um
curso imanente que não constava na concepção agostiniana. Esta foi, segundo Voegelin, a
primeira tentativa ocidental de imanentização, guardando ainda a conexão com o
Cristianismo.
A nova era de Joaquim traria maior realização dentro da história, mas isso
não seria devido a uma erupção imanente, e sim viria através de uma nova
irrupção do espírito. A ideia de uma realização radicalmente imanente
cresceu de forma vagarosa, num longo processo que, grosso modo, pode ser
caracterizado como uma transição “do humanismo ao iluminismo”; somente
no século XVIII, com a ideia de progresso, o aumento do significado na
história tornou-se um fenômeno completamente intramundano, sem
irrupções transcendentais. Chamaremos de “secularização” essa segunda
fase da imanentização (VOEGELIN, 1982, p.92).
Voeglin realizou o exame histórico deste crescimento vagaroso da “ideia de uma
realização radicalmente imanente” no volume quatro da História das ideias políticas, no qual
aborda a Renascença e a Reforma. Ele faz isto, ao analisar as tensões entre instituição e
movimento, realizando uma distinção entre dois planos da civilização ocidental, um mais
elevado e um inferior:
O plano elevado vamos caracterizá-lo de uma maneira preliminar como o
das instituições públicas; o plano inferior, como o dos movimentos que estão
em permanente revolta contra as instituições estabelecidas. Desde o começo
do século XI, a história espiritual e intelectual da civilização ocidental foi
ordenada em ambos os planos; além disso, boa parte dessa história é a
história da interação entre instituições públicas e os movimentos de revolta
(VOEGELIN, 2014, p.156).
Ainda no contexto das tensões entre instituição e movimento, Voegelin (2014, p.157)
pondera sobre como esta tensão assume traços específicos não encontrados da mesma maneira
em outras civilizações:
O leitor se lembrará de nossa discussão do apolitismo helênico. Nessa
ocasião observamos que a tensão entre as instituições da pólis e os
sentimentos dos grupos apolíticos seriam recorrentes de uma forma mais
radical numa civilização cristã, porque a ideia cristã da pessoa em
proximidade com Deus se mostraria o irritador permanente contra as
instituições. A ideia da pessoa cristã funcionaria como um agente de revolta
contra a institucionalização das relações entre a alma e Deus e como um
agente de regeneração das instituições.
Como resultado deste princípio, para Voegelin, as revoluções tanto religiosas quanto
políticas ocorrem devido a incapacidade da instituição resolver os problemas levantados por
grupos de insatisfeitos. Estes, sentindo-se deixados de fora, podem formar comunidades e se
organizar para a ação política. Quando isto ocorre, a situação está madura para uma
revolução. A capacidade de lidar com movimentos de espirituais insatisfeitos dentro da
instituição cristã, evitando o colapso, denomina-se reforma:
A resposta a um movimento espiritual a partir da base não depende de um
colapso; pode ser a reforma da instituição. A categoria da reforma, então,
torna-se uma ideia que distingue a civilização medieval e moderna da
helênica. De fato os cinco séculos de 1000 a 1500 são caracterizados pela
digestão de movimentos espirituais radicais através de uma série de reformas
menores assim como pela supressão social, algumas vezes sangrenta, das
escórias indigestas desses movimentos (VOEGELIN, 2014, p.159)
Voegelin descreve o modo como as queixas legítimas de um movimento espiritual, o
seu apelo à reforma, podem ser acompanhadas de hostilidade aos valores civilizacionais,
ressentimentos contra os valores intelectuais e estéticos da classe mais alta, “o clamor por
reforma espiritual é tipicamente unido às exigências de uma ‘queima de livros’, de uma
supressão da cultura literária e artística” (2014, p.159).
Essas misturas anticivilizacionais são duplamente perigosas para as
instituições. São um perigo por seu ataque imediato aos valores
civilizacionais; e são ainda um perigo pior porque essa mistura empresta
legitimidade à resistência institucional contra os movimentos; os elementos
anticivilizacionais em movimentos tornam-se desculpas para os grupos
reinantes não satisfazerem queixas legítimas, e a vitória momentânea da
instituição pode tornar-se, em consequência, a causa de insurreições ainda
piores no futuro” (VOEGELIN, 2014, p.159-160).
Neste sentido, quando a instituição falha na realização da reforma, reforçará o
ressentimento contra os valores civilizacionais na instituição, fazendo com que o
ressentimento vire-se contra os próprios valores espirituais.
O processo que começou com movimentos de reforma espiritual pode
terminar com movimentos contra o espírito. Esse tem sido, de fato, o curso
dos movimentos na civilização ocidental: o curso começa com movimentos
do tipo albigense; termina com movimentos do tipo comunista e nacional-
socialista. O desenvolvimento não tem paralelo na história. A civilização
cristã ocidental tem uma vulnerabilidade peculiar e mostra problemas
peculiares de declínio: enquanto na civilização greco-romana a tensão do
declínio era causada por movimentos que representavam um avanço do
espírito, na civilização cristã ocidental a tensão do declínio é causada por
movimentos que são espiritualmente regressivos (VOEGELIN, 2014, p.160).
No tocante a uma periodização do movimento, tendo como critério a capacidade de
absorção das instituições no tocante as iniciativas desencadeadas pelos movimentos. Até
1300, a Igreja era ainda capaz de lutar contra os problemas – exemplo disto, foi a absorção
dos movimentos religiosos populares do começo do século XIII por meio das novas ordens
mendicantes. Depois 1300, o quadro muda – o grande movimento místico do século XIV,
representado por figuras como Eckhart, não foi absorvido, mas tratado como heresia; os
movimentos da pré-reforma foram vencidos pela violência, como o caso do movimento
hussita. O período de 1300 a 1500 pode ser caracterizado como de capacidade de absorção
decrescente. De 1500 a 1700 – o período dos séculos protestantes – é marcado por
movimentos que se tornaram poderosos o suficiente para despedaçar as instituições,
resultando na criação de igrejas rivais cismáticas. O último período dos movimentos começa
em 1700, sobre este período Voegelin (2014, p.163) declara:
No entanto, podemos distinguir entre o internacionalismo religioso dos
séculos XVI e XVII como um arrebol da tarde do universalismo cristão e o
novo internacionalismo do tipo positivista e comunista que se desenvolveu
fora da tradição cristã e mesmo contra ela. Ademais, essa consideração
apresenta a segunda característica dos movimentos nesse período: seu caráter
secularista anticristão. Aqui, afinal, aconteceu o que avultava como um
perigo mesmo no caráter anticivilizacional anterior dos movimentos: o
clamor pela reforma espiritual que seguiu desatendida, ou foi
insuficientemente resolvida pelas instituições, transformou-se gradualmente
num clamor pela destruição completa dessas instituições porque o próprio
espírito que está vivendo nelas é a causa dos males. O clamor de reforma
transformou-se num ataque ao espírito.
Por meio deste exame, Voegelin apresenta as experiências históricas que ocasionaram
mudanças no cenário religioso e cultural do Ocidente desde o século XI até o XVIII. Assim,
pode-se entender melhor como ocorreu o crescimento vagaroso da “ideia de uma realização
radicalmente imanente”, desde a primeira tentativa de imanentização ocidental com Joaquim
de Fiore até a sua segundo fase, caracterizada como “uma transição do ‘humanismo ao
iluminismo”, fase de imanentização chamada por Voegelin de “secularização”.
Segundo Voegelin, a imanentização de Joaquim de Fiore suscitou um problema
teórico que não ocorria na antiguidade clássica, nem tão pouco no cristianismo ortodoxo, o
problema do eidos da história. No pensamento helênico, o problema da essência da história e
da essência na política estava associado pelo ritmo de crescimento e decadência cósmicos.
Assim a polis tinha um eidos, porém, como a realização deste é presidida pelo ritmo de
crescimento e decadência, a essência na realidade política se constituía o mistério da
existência, e não um eidos adicional. Porém a mensagem soteriológica cristã rompeu com este
ritmo de existência pagã.
O homem e a humanidade agora tem sua realização, mas ela está além da
natureza. Mais uma vez, nesse caso, não há um eidos da história, porque a
sobrenatureza escatológica não é uma natureza no sentido filosófico e
imanente. Portanto, o problema do eidos na história só se põe quando a
realização transcendental cristã é imanentizada. Contudo, tal hipótese
imanentista do eschaton é uma falácia teórica. As coisas não são coisas, nem
possuem essência em virtude de uma declaração arbitrária. O curso da
história como um todo não é objeto da experiência; a história não possui um
eidos, e isso porque seu curso se estende ao futuro desconhecido. Assim, o
significado da história é uma ilusão; e esse eidos ilusório é criado ao se tratar
um símbolo de fé como se fosse uma proposição relativa a um objeto da
experiência imanente (VOEGELIN, 1982, p.92).
“A tentativa de construir um eidos da história conduzirá a imanentização falaciosa do
eschaton cristão”, afirma Voegelin, e os pormenores disto conduz a percepção de que o
simbolismo cristão do destino sobrenatural possui por si próprio uma estrutura teórica
preservada até mesmo nas variantes da imanentização.
O avanço do peregrino, a santificação da vida, constitui um movimento rumo
a um telos, uma meta; e essa meta, a visão beatífica, é um estado de
perfeição. Daí, no simbolismo cristão, podem-se distinguir o movimento,
como seu componente teleológico, e um estado de valor máximo, como seu
componente axiológico. Os dois componentes ressurgem nas variantes da
imanentização, podendo, por conseguinte, ser classificados como variantes
que, em seu simbolismo, acentuam seja o componente teleológico, seja o
componente axiológico, ou ainda combinam ambos. No primeiro caso,
quando a ênfase recai fortemente sobre o movimento, sem que haja clareza
acerca da perfeição final, o resultado será a interpretação progressista da
história. O objetivo não precisa ser esclarecido porque os pensadores
progressistas, homens como Diderot ou D’Alembert, presumem a seleção de
fatores desejáveis como padrão e interpretam o progresso como um aumento
qualitativo e quantitativo do bem presente – o “maior e melhor” do slogan
simplificador. Essa é uma atitude conservadora, a qual se pode tornar
reacionária a menos que o padrão original seja ajustado à situação histórica
em fluxo. No segundo caso, quando a ênfase é posta incisivamente sobre o
estado de perfeição, sem nitidez acerca dos meios necessários para sua
realização, o resultado será o utopismo. Ele pode tomar a forma de um
mundo de sonho axiológico, tal como na utopia de More, quando o pensador
ainda se mantém consciente de que o sonho é irrealizável e das razões
porque o é; ou, como fruto de um crescente analfabetismo teórico, pode
assumir a forma de vários idealismos sociais, tais como a abolição da guerra,
da distribuição desigual da propriedade, do medo e da necessidade. E,
finalmente, a imanentização pode-se estender à totalidade do símbolo
cristão. O resultado será então o misticismo ativo de um estado de perfeição,
a ser atingido através da transfiguração revolucionária da natureza do
homem, tal como, por exemplo, no marxismo (VOEGELIN, 1982, 93).
Conforme Voegelin afirmou, “a tentativa de construir um eidos da história conduzirá à
imanentização falaciosa do eschaton cristão”. Deste modo, na compreensão de que houve
uma imanentização falaciosa, jaz a desconcertante questão sobre que tipo de homem se deixa
enganar por ela, uma vez que a falácia parece bastante óbvia. Disto, pode-se ingenuamente
tentar explicar sete séculos de história intelectual em termos de ignorância ou de
desonestidade. Isto quando se parte da presunção de que os pensadores que empreenderam a
tentativa não puderam discerni-la por falta de conhecimento. Ou se a discerniram, optaram
por manter silêncio por algum motivo malévolo. Voegelin, porém, compreende que a
explicação pode ser encontrada no que tais pensadores conseguiram através da sua construção
falaciosa.
Eles obtiveram uma certeza sobre o significado da história, e seu próprio
lugar na história, que de outro modo jamais teriam. Ora, existe sempre uma
demanda pelas certezas, a fim de vencer as incertezas e seu séquito de
ansiedades. A questão seria: que incerteza específica era tão perturbadora
que se fazia mister superá-la mediante o recurso duvidoso à imanentização
falaciosa? Não é preciso ir longe para encontrar a resposta. A incerteza é a
própria essência do Cristianismo. A sensação de segurança num “mundo
repleto de deuses” desaparece com os próprios deuses; quando o mundo é
desdivinizado, as comunicações com o Deus que transcende o mundo ficam
reduzidas ao tênue vínculo da fé, no sentido dado em Hebreus 11:1, como a
substância daquilo que se espera e a demonstração do que não se vê.
Ontologicamente, a substância das coisas desejadas só pode ser encontrada
na própria fé; e, epistemologicamente, a única prova das coisas invisíveis
está também na própria fé. O vínculo é verdadeiramente tênue, e pode ser
rompido com facilidade. A vida da alma aberta a Deus, a espera, os períodos
de aridez e enfado, culpa e desespero, desamparo e esperança quando já não
há esperança, o frêmito silencioso do amor e da graça, o tremor diante de
uma certeza que, se conquistada, é perda – a própria leveza desse tecido
pode-se constituir num manto por demais pesado para os homens que
anseiam por uma experiência maciçamente possessiva. O risco de um
colapso da fé em grau socialmente significativo aumenta na medida em que
o Cristianismo se converte em êxito temporal, isto é, cresce quando o
Cristianismo penetra inteiramente numa área civilizacional, com o apoio de
pressões institucionais, e, ao mesmo tempo, sofre um processo interno de
espiritualização, de realização mais plena de sua essência. Quanto mais
pessoas são atraídas para órbita cristã, de moto próprio ou sob pressão, maior
será o número daqueles que não possuem a força espiritual exigida para a
heroica aventura da alma que é o Cristianismo. A probabilidade da perda de
fé aumenta também na medida em que o progresso civilizacional da
educação, da alfabetização e do debate intelectual faz com que toda a
seriedade do Cristianismo seja compreendida por um número crescente de
pessoas. Esses dois processos caracterizaram o apogeu da Idade Média. Os
pormenores históricos não vêm ao caso; basta mencionar o crescimento das
sociedades urbanas, com sua intensa cultura espiritual, como centros
primários a partir dos quais o perigo irradiou a toda a sociedade ocidental
(VOEGELIN, 1982, p.94).
A massificação do problema da perda da fé no sentido cristão dependerá do conteúdo
do meio civilizacional no qual as pessoas estarão inseridas. E, em meio a esta crise de fé, a
busca por certeza e por evitar cair num vazio de sentido, conduzirá as pessoas a recorrer a
uma cultura menos diferenciada de experiência espiritual. Como recorrer ao politeísmo greco-
romano, na civilização do século XII, foi impossibilitado devido à influência cristã.
A queda só podia ser evitada por alternativas experienciais, suficientemente
próximas à experiência da fé para que apenas um olhar muito penetrante
pudesse distinguir a diferença, mas dela afastadas o bastante para aliviar a
incerteza da fé em sentido estrito. Tais experiências alternativas estavam
disponíveis na gnose que acompanha o Cristianismo desde suas mais
remotas origens (VOEGELIN, 1982, p.94-95).
Voegelin descreve a tentativa de imanentizar o significado da existência como um
esforço para obter o domínio sobre o conhecimento da transcendência maior do que o
propiciado pela cognitio fidei (a cognição da fé), segundo ele, as experiências gnósticas
oferecem esse maior domínio na medida em que se constituem uma expansão da alma até o
ponto em que Deus é trazido para dentro da existência do homem.
Tal expansão envolverá as diferentes faculdades humanas, razão pela qual é
possível distinguir diversas variedades gnósticas de acordo com a faculdade
que predomina no esforço de obter esse maior controle sobre Deus. A gnose
pode ser primacialmente intelectual e assumir a forma de uma penetração
especulativa nos mistérios da criação e da existência, como o foram, por
exemplo, as gnoses contemplativas de Hegel ou Schelling. Ou pode ser
basicamente emocional, tomando a forma de uma presença da substância
divina na alma humana, como, por exemplo, nos líderes sectários
paracléticos. Pode ser ainda principalmente volitiva, tomando a forma de
uma redenção ativista do homem e da sociedade, tal como representada por
ativistas revolucionários como Comte, Marx ou Hitler. Essas experiências
gnósticas, em toda a sua variedade, constituem o núcleo da redivinização da
sociedade, pois os homens que recorrem a essas experiências divinizam-se
ao substituir a fé, no sentido cristão, por formas mais concretas de
participação na essência divina (VOGELIN, 1982, p.95).
Conforme o Voegelin já havia constatado, a redivinização moderna não poderia
ocorrer nos moldes do paganismo greco-romano, pois este desapareceu como cultura viva na
sociedade. Em outros termos, “a cultura do politeísmo morreu de atrofia experiencial e a
existência humana na sociedade foi reordenada mediante a experiência do destino do homem,
pela graça de Deus que transcende o mundo, rumo à vida eterna numa visão beatífica.” O
diagnóstico voegeliano apontou que a redivinização moderna, ao contrário, possui suas raízes
no próprio Cristianismo em componentes heréticos suprimidos. Dentre estes componentes, a
gnose acompanha o Cristianismo desde as suas origens, constituindo-se numa cultura
religiosa viva que esteve na base dos movimentos religiosos que abalaram a Europa desde o
século XII até a Reforma. Um elemento apontado por Voegelin que interessa a esta pesquisa é
que o avanço da ciência a partir do século XVIII. Como parte deste compartilhamento da
essência divina, a ciência, novo instrumento de cognição, viria se tornar o veículo simbólico
da verdade gnóstica. Para Voegelin, o cientificismo é um dos poderosos movimentos
gnósticos na sociedade ocidental, manifestando-se na forma de um orgulho imanentista na
ciência tão forte que até mesmo os ramos especiais da ciência deixam sedimentos tangíveis
nas variantes de salvação através da física, da economia, da sociologia, da biologia e da
psicologia.
2.3 A controvérsia entre a secularização e a legitimidade da Modernidade
Resguardadas as particularidades do conteúdo teórico destes três autores (Löwith,
Schmitt e Voegelin) expostos, há um ponto central no qual são concordantes, há na
Modernidade a permanência de conceitos teológicos secularizados. Em outros termos, os
conceitos embora sejam apresentados de forma secularizada preservam uma identidade
substancial.
Embora isto já tenha sido afirmado por teólogos (Troeltsch e Gogarten), o primeiro
filósofo a escrever uma análise reconhecendo este fenômeno foi Karl Löwith. E como forma
de estabelecer um debate com texto de Löwith, Hans Blumenberg publicou em 1966 Die
Legitimität der Neuzeit (A legitimidade dos tempos modernos).
Blumenberg (1983) foi o primeiro a apresentar uma crítica à categoria de
secularização conforme apresentada por Löwith. A teoria de Löwith compreende a ideia de
“progresso inevitável” presente nas obras de autores Iluministas como resultado da
secularização da escatologia cristã, trazendo para o centro da discussão filosófica a questão da
legitimidade e ilegitimidade da Idade Moderna. Por sua vez, Blumenberg defende a
legitimidade e a originalidade próprias da Modernidade.
Como escopo do debate sobre legitimidade e ilegitimidade da Idade Moderna está o
intento moderno a uma originalidade, pois, uma vez que a Modernidade seja caracterizada
como o novo, esta é posta na posição de ter que justificar a sua própria legitimidade.
Ao se pensar como uma nova época, a idade moderna “criou” as outras
épocas históricas das quais ela difere. Sua própria identidade é dada, por
assim dizer, em comparação ao que veio antes dela. No século XVIII, a
concepção dos philosophes de um progresso inevitável contribuiu para a já
controvertida pretensão da modernidade de começar a partir do nada
(SOUZA, 1995, p.302).
Robert M. Wallace (1983, p.xvi-xvii), tradutor da edição estadunidense (The
Legitimacy of the Modern Age), escreveu que a crítica de Blumenberg se fundamenta em dois
principais elementos. Como primeiro elemento, Blumemberg aponta que o futuro que a ideia
de progresso moderno antecipa é concebido como o produto de um processo imanente de
desenvolvimento ao invés de uma intervenção transcendente comparável à vinda do Messias,
o fim do mundo, ou o Juízo Final. E se o elemento comum é uma suposta esperança, a atitude
cristã para com os eventos finais tem sido muito mais caracterizada pelo medo do que pela
esperança. Segundo Blumenberg, a maior parte da era cristã se caracteriza por desencorajar
precisamente o tipo de esforço construtivo voltado para o futuro, algo que está implícito no
progresso – de modo que a transformação de um no outro é muito difícil de imaginar. O
segundo elemento proposto por Blumenberg é que devem ser consideradas alternativas para a
origem da ideia de progresso, e não simplesmente a reduzir a uma projeção ingênua de um
período otimista na história da Europa, como faz Löwith. Blumenberg descreve a ideia de
progresso como decorrente de duas formas primárias de experiências formativas: a superação
do status fixo e autoritário de ciência aristotélica pela ideia de uma ciência cooperativa, em
longo prazo produzindo um progresso científico guiado pelo método; e a superação (no
mundo literário e do domínio estético) da ideia de arte e literatura antigas como modelos
permanentemente válidos de perfeição em favor da ideia de que as artes são o espírito criativo
de suas épocas particulares e, nesse sentido, como capaz de novamente alcançar validade
igual à das criações dos antigos. Estes dois desenvolvimentos paralelos, os quais ocorrem
principalmente no curso do século XVII, são seguidos por um processo no qual a ideia se
estende a outras formas (tecnologia, sociedade) e sendo generalizada como a ideia de
progresso em toda a linha.
Segundo José Carlos de Souza (1995), central no projeto de Blumenberg é a
concepção da “afirmação-do-eu” (self-assertion) como um programa existencial do qual a
modernidade deriva a sua própria legitimidade. Porém Blumenberg reconhece que a guinada
para o “eu” não surgiu do nada, ela está situada dentro de um contexto mais amplo que inclui
o que veio antes dela, em especial o Cristianismo Medieval. Através da “tese de reocupação”
(reoccupation thesis), Blumenberg demonstra que a relação de continuidade entre a Idade
Moderna e a Idade Média deve ser compreendida em termos de funções e não de substância.
Ou seja, a Idade Moderna tentou responder a um conjunto de questões que o Cristianismo
havia formulado, crendo já possuir as respostas.
De acordo com Blumenberg, ao introduzir o conceito de uma creatio ex
nihilo, o Cristianismo foi capaz de fazer uma reivindicação no que
concerne o sentido da totalidade do mundo e da história. Após a guinada
moderna os pensadores modernos se sentiram ainda obrigados a responder
as questões que não eram propriamente modernas mas medievais, e que
diziam respeito a totalidade da história, fazendo uso dos meios limitados
que a razão oferece. Desse modo, as idéias modernas legítimas se viram
forçadas a reocupar as posições deixadas pelo Cristianismo Medieval
(SOUZA, 1995, p.303).
Para Blumenberg, continua Souza (1995, p.303-304), se faz necessário que a Idade
Moderna se livre da ideia de que exista um cânone de grandes questões que acompanham a
curiosidade humana inalteradamente. Segundo Blumenberg, nem sempre as questões
precedem as respostas. Muitas vezes as respostas já estão dadas antes mesmo da formulação
de suas respectivas questões. A Idade Moderna herdou do Cristianismo Medieval uma série
de questionamentos radicais que este se havia colocado na certeza de já possuir respostas para
eles. A Idade Moderna se sentiu obrigada a responder a estas questões. Desta forma,
concepções modernas legítimas como a de um progresso possível, por exemplo, se tornaram a
concepção do progresso inevitável do século XVIII. A concepção de um progresso inevitável
tenta, no entender de Blumenberg, reocupar a posição deixada pelo Cristianismo de ter que
dar uma resposta ao que tange a totalidade da história, seu sentido e destinação última. No
que diz respeito à secularização especificamente, Blumenberg introduz o conceito de
“secularização pela escatologia” ao invés de “secularização da escatologia”.
Blumenberg admite a continuidade entre Idade Média e Idade Moderna, porém esta
não é o resultado da secularização de algo originalmente cristão. Ele reconhece uma
continuidade de problemas em vez de soluções, de perguntas e não de respostas. No meio
deste processo, está “auto-afirmação humana” na qual o “progresso” contribuiu como um
modo de execução. A atividade humana de inquirir realizou mudanças no pensamento
tradicional do Ocidente, tomando ideias anteriormente fixas e herdadas e, após as submeter a
questionamentos, conferindo-lhes novo significado. Isto fica bastante evidente na parte II do
livro, “absolutismo teológico e auto-afirmação humana”. Bem como nas partes III e IV, no
que se refere à Idade Moderna não ser resultado de uma transformação de conceitos
originários do Cristianismo, porém isto significa que tenha a sua existência de forma
espontânea, como se procedesse de um vazio histórico.
Blumenberg contestou a capacidade da secularização para explicar a complexidade da
época moderna. Ele contrapôs à secularização a categoria de legitimidade e esta estaria
estabelecida no que, em sua interpretação, é a legítima metáfora da Modernidade, a
“revolução copernicana”. Por sua vez, compreendida como capacidade do sujeito se tornar
senhor do próprio destino e, como consequência, se auto-afirmar. Deste modo, a relação entre
os conceitos próprios da Modernidade e os conceitos teológicos da época anterior, no
entendimento de Blumenberg, não deve ser compreendida como transformação, mas como
dissolução dos conceitos teológicos.
2.4 Conclusão
O debate filosófico no tocante a relação de continuidade ou de descontinuidade entre
Idade Média e Idade Moderna se debruçou sobre o processo de secularização e a necessidade
da Idade Moderna apresentar justificativas a respeito da sua pretensão a uma originalidade.
Pois, uma vez que a Modernidade seja caracterizada como o novo, esta é posta na posição de
ter que justificar a sua própria legitimidade.
No escopo dos que defendem o fenômeno secularização como crucial para o
entendimento das categorias mais significativas da novidade moderna (a história, a ética, a
política e a ciência), há uma concordância de que nesta novidade moderna permanecem
presentes elementos teológicos tradicionais, porém retirados do campo da transcendência e
submergidos na imanência histórica.
Voegelin descreveu este processo como redivinização do mundo, não nos moldes do
paganismo greco-romano, mas a partir de elementos cristãos heréticos que outrora foram
reprimidos, dentre estes, o mais significativo foi o gnosticismo. Löwith, por sua vez, em sua
análise do pensamento histórico moderno, concluiu que a consciência histórica moderna se
iniciou com o pensamento hebraico e cristão, principalmente no que se refere a sua
perspectiva escatológica em direção a uma realização futura, e esta perspectiva foi
transformada num processo contínuo de ação humana e desenvolvimentos seculares. E, por
sua vez, Schmitt afirma que a imagem metafísica que de seu mundo se forja uma determinada
época tem a mesma estrutura que forma a organização política que essa época tem por
evidente. E como a Idade Moderna redivinizou o mundo, Schmitt identifica que, em termos
político-teológicos, o Estado Democrático de Direito reproduz uma imagem metafísica de
mundo panteísta. Neste aspecto, Schmitt difere de Voegelin com respeito ao entendimento de
redivinização moderna, pois para Schmitt isto ocorre nos moldes do paganismo.
Como contraposição a esta leitura, há os que, semelhantemente a Blumenberg,
concebem o moderno em termos de autofundação e originalidade própria. E no tocante a
relação da novidade moderna com o antigo, o universo simbólico medieval, esta se dá em
termos de condições históricas de possibilidade de surgimento do novo. Blumenberg, em
oposição a Löwith, propõe ao invés da noção “secularização da escatologia” a noção de
“secularização pela escatologia”, neste sentido, o que é próprio da Modernidade e os
conceitos teológicos da época anterior, não devem ser compreendidos como transformação,
mas como dissolução dos conceitos teológicos. Assim a continuidade entre Idade Média e
Idade Moderna ocorre no tocante à permanência de problemas e de questões a serem
solucionados. A Modernidade não é o resultado da secularização de algo originalmente
cristão. Com isto, opera-se uma afirmação absoluta da novidade que é promovida como
legitimada pela sua própria vigência histórica.
Por sua vez, o conceito de legitimidade proposto por Blumenberg apresenta o mesmo
fenômeno denotado pelo termo secularização, porém de um ponto de vista imanente, tendo o
sujeito no centro deste processo. Isto foi bem identificado por Marramao (1995, p.30-31),
quando aponta que a legitimidade é uma categoria jurídica, e a extensão metafórica de seu uso
gera problemas não menos delicados do que aqueles aos quais dá lugar o conceito de
secularização, isto porque a ideia de autolegitimação moderna não faz mais do que transferir à
subjetividade do indivíduo os tradicionais atributos teológico-políticos da soberania. Isto fica
evidente quando se relembra o exposto por Schmitt sobre este ponto, “soberano é quem
decide sobre o estado de exceção”. Assim, Blumenberg, ao relacionar a legitimidade moderna
com a “auto-afirmação humana”, faz deste sujeito moderno o soberano no sentido analisado
por Schmitt com todas as suas implicações político-teológicas. E a ideia da Modernidade
como processo não tanto transformativo, quanto mais dissolutivo das hipóstases teológico-
metafísicas não é absolutamente estranha à tese da secularização, mas, ao contrário,
representa uma sua variante interna.
Até aqui, buscou-se compreender numa perspectiva filosófica o conceito de
secularização e suas implicações para Modernidade. Para os objetivos desta pesquisa, a
secularização, em termos teóricos, é um conceito elucidativo, principalmente no que se refere
ao modo como descreve a transferência de elementos da transcendência para a imanência
histórica. Neste sentido, tanto análises que focalizam o caráter revolucionário do pensamento
histórico moderno quanto às análises que apontam para divinização seja do mundo como um
todo ou do sujeito moderno em particular.
No tocante ao caráter revolucionário do pensamento histórico moderno, conforme
demonstrado por Löwith, a ruptura da tradição que se realizou no final do século XVIII, em
aliança com acontecimentos históricos importantes como a Revolução Francesa e a Revolução
Industrial na Inglaterra e os seus efeitos universais sobre o Ocidente realçaram a moderna
sensação de se viver numa época na qual as mudanças históricas ganham importância; além
disto, não somente as inovações da ciência ganharam maior velocidade, fortalecendo o
otimismo humano no tocante as mudanças sócio-históricas, como tornaram a natureza um
elemento controlável, dando a humanidade a função de condutores ou criadores da história.
Ou seja, a humanidade diante dos acontecimentos não mais se via obrigada, em termos
maquiavélicos, a aguardar passivamente pela fortuna, mas sob, a força de sua própria virtú,
antecipar e resolver problemas, desde modo, projetando o futuro.
Já no tocante ao sujeito moderno, enquanto alguém que se compreende com poderes
para fazer a história, assume funções outrora atribuídas às divindades. No caso dos poderes
para fazer a história, estes são compreendidos como fornecidos pelo conhecimento técnico e
científico. E como a história enquanto secularização do eschaton se projeta para o futuro, isto
é um campo fértil para o florescimento de utopismos de toda sorte e dentre estes os
tecnológicos como o trans-humanismo.
É o futuro que passa a ser vislumbrado pela humanidade, isto é ainda uma
reminiscência religiosa, herança da tradição profética do judaísmo bíblico
veterotestamentário. Os profetas eram visionários do futuro, assim como os intelectuais
modernos, tomados por sua hybris, apostam em suas ideias como uma nova percepção da
realidade e descoberta de como realizar o anseio por um mundo melhor. Ideias e domínio
técnico como instrumentos políticos para revolucionar o mundo. Desta feita, uma revolução
biotecnológica, a crença no poder de transmutar a condição humana por meio do
conhecimento tecno-científico, uma evolução que não se ampara no curso da natureza, mas é
realizada sob a égide da cultura humana, redenção através do conhecimento (gnosis).
CAPÍTULO 3
MODERNIDADE E SECULARIZAÇÃO: QUESTÕES SOCIOLÓGICAS
De certa forma este capítulo é uma continuidade do anterior, servindo-lhe de
complementação. No anterior, abordou-se o conceito de secularização na perspectiva do
debate filosófico relacionado à sua gênese, seu desenvolvimento teórico e suas implicações
para Modernidade. Já, neste capítulo, dar-se-á atenção ao exame de questões relacionadas à
secularização enquanto tema sociológico.
Neste sentido, a discussão é iniciada por meio de uma exposição sobre as principais
análises sociológicas contemporâneas sobre o conceito de secularização. Tomando como
referência a década sessenta como período do surgimento das teorias clássicas da
secularização, a exposição prossegue através da análise de textos contemporâneos que podem
ser agrupados em dois grupos. O primeiro grupo reúne teorias que podem ser denominadas de
adeptas da secularização, enquanto o segundo reúne teorias adversárias da secularização.
Feito isto, a atenção se volta para tópicos pertinentes ao tema desta pesquisa, a
permanência de noções religiosas ou teológicas em formas laicizadas em fenômenos
modernos que não são explicitamente religiosas. Em meio a isto, o conceito de secularização
é vital devido ao modo como descreve a transferência de elementos da transcendência para a
imanência histórica. Algo já anteriormente explicado e novamente aqui.
É primordial para compreensão deste tema a relação entre as ideias e as
transformações na sociedade, ou as transformações na sociedade e as ideias, ou seja, a relação
dialética entre o pensamento/consciência e a sociedade. E isto é uma questão pertinente para a
Sociologia do Conhecimento.
Então, isto esclarecido, a reflexão se volta para assuntos como “secularização da
consciência”, expressão utilizada por Peter Berger, e “inconsciência religiosa” expressão
elaborada neste texto como esforço de explicar o fenômeno de permanência de noções
religiosas inconscientes (exatamente por terem sido transferidas para uma esfera imanente e
secular) que persistem em influenciar o pensamento e as ações de grupos na sociedade
moderna. Com este mesmo escopo, serão examinadas ainda questões relacionadas ao par
“ideologia” e “utopia” e, por fim, o conceito weberiano de “ascese intramundana”.
3.1 Secularização enquanto tema sociológico contemporâneo
Com intuito de apresentar um panorama do que tem sido abordado nas últimas
décadas sobre secularização enquanto tema sociológico, recorrer-se-á aqui com frequência ao
artigo do sociólogo português José Pereira Coutinho (2018), O debate actual da
secularização. Pois no artigo o autor realizou um excelente trabalho de revisão de literatura,
organizando em grupos homogêneos os vários contributos produzidos nas últimas décadas,
uns mais teóricos e outros mais empíricos com destaques para os mais relevantes. Além disto,
para tornar a organização mais consistente, os contributos foram classificados por filiação
sociológica ou filosófica.
A década de sessenta foi marcada pelo surgimento das teorias clássicas da
secularização, principalmente de Peter Berger e Thomas Luckmannn. Berger (1969/1985,
p.119), no Dossel sagrado, arriscava, para fins de teoria sociológica, uma definição de
secularização como “o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à
dominação das instituições e símbolos religiosos”. E por sua vez, Luckmann, no livro The
invisible religion, lida com a tese da secularização como transposição de crenças e modelos da
esfera religiosa à secular. Tese que desde Troeltsch e do debate sobre a Ética protestante de
Weber é transmitida à concepção da “religião invisível”.
Coutinho (2018), tomando como referência a forma como atualmente as teorias se
relacionam com as teorias clássicas da secularização, entende que estas se dividem em dois
grupos principais: o primeiro grupo reúne teorias que podem ser denominadas de adeptas da
secularização, enquanto o segundo reúne teorias adversárias da secularização. Por sua vez, os
adeptos se afiguram como aprofundamentos e ajustamentos das teorias clássicas à realidade
contemporânea, defendendo principalmente a religiosidade individual; já os adversários
apresentam concepções diferentes das teorias clássicas da secularização, advogando a
permanência da religiosidade institucional. Devido a isto, estes dois grupos poderiam ser
denominados também de teorias da religiosidade individual versus teorias da religiosidade
institucional, ou ainda teorias da privatização versus teorias da pluralização, ou teorias da
autonomia versus teorias da pertença.
Com relação ao grupo de teorias adeptas da secularização, incluem-se ainda dois
subgrupos: as teorias pós-clássicas, que continuam as teorias clássicas; e as teorias da
individualização. Embora com abrangências distintas, elas partilham o foco na privatização,
concentrando-se na religiosidade individual, desconexa das ligações institucionais. Como
representativos de teorias pós-clássicas, Coutinho (2018) concentra-se especialmente no
exame de textos de autores como Olivier Tschannen, Karel Dobbelaere, Mark Chaves e Steve
Bruce.
De Olivier Tschannen, Coutinho (2018, p.329-330) examina principalmente dois
textos: o artigo The secularization paradigm, este publicado em 1991; e o artigo La genèse de
l’approche moderne de la sécularisation, publicado em 1992. Tschannen sintetiza os clássicos
em dois pressupostos: primeiro, as raízes da secularização encontram-se na própria religião
(raízes religiosas); e segundo, a imanência da religião à condição humana leva-a a nunca
desaparecer (permanência). Além destes dois pressupostos, faz referência a três conceitos:
diferenciação, em que a religião emerge diferenciada de outros domínios sociais;
racionalização, em que deste processo de diferenciação as instituições não religiosas
trabalham com base em critérios racionalmente relacionados com as funções sociais
específicas fora do controle religioso; e mundanização, em que a religião atravessada pela
racionalização perde alguma da sua especificidade, tornando-se mais profana, mais deste
mundo.
Por sua vez, no tocante Karel Dobbelaere, Coutinho (2018, p.330) expõe que este – no
artigo Towards an integrated perspective of the processes related to the descriptive concept of
secularization, publicado em 1999, conjugando a sua análise tridimensional (nível macro,
meso e micro), usada em 1981 no artigo Trend report: Secularization: a multi-dimensional
concept, com o paradigma de Tschannen (1991) – apresenta o paradigma da secularização em
três níveis. No nível societal, domina o processo de laicização, no qual, com a diferenciação
institucional, a religião é uma instituição como as outras perdendo o seu papel preponderante,
transpondo-se as funções antes exercidas pela religião para a sociedade. No nível meso,
domina o processo de mudança religiosa, havendo pluralização, derivada da diferenciação
segmentária do subsistema religioso, que gerou mercado religioso, no qual as várias
denominações competem pelas almas, levando à relativização dos conteúdos religiosos e,
assim, à crise de credibilidade religiosa (muitas denominações atuais perderam a noção de
transcendência, preocupando-se, principalmente, com a resolução dos problemas pessoais,
tornando-se mundanas). No nível micro, ou individual domina o processo de envolvimento
religioso, que se refere à influência das normas religiosas sobre as atitudes e os
comportamentos individuais, havendo declínio religioso. Sobre este último nível, Coutinho
(2018, p.331) acrescenta:
A privatização provocou a individualização, na qual os indivíduos, ao
escolherem a sua comunidade de amor, experimentam a alegria da pertença;
a perda da autoridade da Igreja, a pluralização e a individualização levaram à
bricolage religiosa, não sendo aceite o menu das igrejas, mas antes
construída individualmente “religião à carta”, misturando doutrinas e
desenvolvendo crenças heterodoxas e vários graus de crença e descrença;
com a diminuição da crença num Deus pessoal, os rituais cristãos são
abandonados, uma vez que se baseiam nesta premissa, diminuindo a
participação na igreja.
Com referência ao exame das contribuições oferecidas por Mark Chaves, Coutinho
(2018, p.332) explica que a proposição de Dobbelaere (1981) foi reformulada por Chaves em
1994 no artigo Secularization as declining religious authority. Neste texto, Chaves afirmou
que a secularização é melhor compreendida não como declínio da religião, mas como o
alcance decrescente da autoridade religiosa. O declínio da autoridade religiosa pode ser
compreendido, segundo Chaves, em três níveis: no nível societal, a incapacidade crescente
das elites religiosas em exercer autoridade sobre outras esferas institucionais; no nível
organizacional, o declínio do controle da autoridade religiosa sobre os recursos
organizacionais na esfera religiosa; no nível individual, o decréscimo do controle religioso nas
ações individuais.
E por fim, Coutinho (2018, p.332) examina o contributo dado por Steve Bruce para as
teorias pós-clássicas da secularização. Bruce desenvolve os seus contributos, sobretudo, em
dois livros: em 1996, publicou o livro Religion in the modern world: from cathedral to cults;
e em 2002, God is dead: secularization in the West. Bruce descreve a evolução religiosa no
mundo ocidental desde a Reforma, considerando que as formas organizacionais dominantes
foram se alterando: a igreja no período medieval, a seita na Era Moderna, a denominação no
século XX e o culto no século XXI.
Conforme já mencionado acima no âmbito das teorias adeptas da secularização há as
teorias pós-clássicas, que continuam as teorias clássicas (descritas nos textos dos autores
mencionados acima); e as teorias da individualização. No que se refere a estas, Coutinho
(2018, p.333) escreve:
Como vimos em cima, sendo as teorias da individualização sucessoras das
teorias clássicas, as suas raízes encontram-se tanto no positivismo francês
como no idealismo alemão. Estas teorias partilham o foco no nível micro,
com a centralidade do indivíduo em detrimento das instituições religiosas
(religiosidade como estado interior em Simmel, misticismo como
experiência individual em Troeltsch, religião como experiência individual
em James) e a bricolage religiosa, desenvolvida por Luckmann, no
seguimento sobretudo de Durkheim e no âmbito da quarta forma social de
religião (religião invisível). Durkheim enquadra-se na escola positivista
francesa, enquanto os outros surgem da escola idealista alemã, mesmo
James, já que o seu pragmatismo entronca no transcendentalismo de
Emerson, por sua vez herdeiro do idealismo alemão. Do lado americano
apresenta-se Ronald Inglehart (1934) e Wade Roof (1939); do lado inglês
afiguram-se Grace Davie (1946) e Paul Heelas (1946); por último, do lado
francês surge Danièle Hervieu-Léger (1947).
No grupo das teorias adversárias da secularização, Coutinho (2018, p.338) identifica
três subgrupos: “o modelo econômico e as teorias do regresso, e as teorias histórico-culturais,
que foram ganhando maior peso nos últimos anos, na senda das múltiplas modernidades”. O
modelo econômico centra-se nos níveis micro e meso, as teorias do regresso nos três níveis e
as teorias histórico-culturais nos níveis meso e macro. Estas teorias partilham o foco na
religiosidade institucional à revelia das teorias clássicas da secularização, assentando sobre
tudo na questão da pluralização, especialmente no modelo econômico e nas teorias histórico-
culturais.
O que Coutinho (2018) denomina de modelo econômico entre as teorias adversárias da
secularização foi proposto pelos sociólogos norte-americanos, Rodney Stark (professor de
Sociologia e Religião Comparada na Universidade de Washington) e William Sims
Bainbridge (diretor do Programa de Sociologia da National Science Foundation) no livro que
publicaram em conjunto sob o título A theory of religion. Coutinho (2018, p.339) identifica
que:
A genealogia deste modelo radica no empirismo britânico, nomeadamente
no liberalismo de Adam Smith e no utilitarismo de John Stuart Mill, matriz
da teoria da escolha racional. A escola francesa também influenciou este
modelo, através do liberalismo de Tocqueville e do funcionalismo de
Durkheim, este através de Parsons, o qual foi ainda marcado pelo
marginalismo austríaco.
Esta combinação entre teoria econômica liberal e utilitarismo fica evidente no capítulo
dois do livro no qual os autores desenvolvem os elementos conceituais da sua teoria. A
afirmação seguinte ilustra bem esta combinação:
A religião não apareceu pela primeira vez em uma catedral ou em sociedades
culturalmente avançadas. Há evidências claras de que os humanos já
possuíam religião na pré-história, que ela se desenvolveu pela primeira vez
quando as pessoas andavam em pequenos bandos em busca de subsistência,
da mesma maneira que os outros animais. Se a religião já existia quando as
sociedades humanas ainda eram bandos de vinte a cinquenta membros, e
quando sua tecnologia consistia em não mais que galhos e pedras afiadas,
então os aspectos fundamentais da religião devem ser necessidades e
atividades humanas muito básicas (STARK; BAINBRIDGE, 2008, p.35).
Em sua reflexão, com arcabouço de teoria econômica liberal e utilitarismo, os autores,
em meio ao que denominaram “teoria neclear: comprometimento religioso”, desenvolvem
uma teoria da ação humana através da exposição de axiomas, proposições e definições numa
lógica microeconômico-utilitarista que considera o agir humano motivado pela busca do que
percebe ser recompensas, porém considerando como as obter pelo menor custo possível.
O conceito de compensador é a chave para teoria da religião que
apresentaremos a seguir. Quando os seres humanos não conseguem obter
recompensas intensamente desejadas com facilidade e rapidez, eles
persistem em seus esforços e podem, com frequência, aceitar explicações
que ofereçam apenas compensadores. Estes são substitutos intangíveis para
recompensa desejada, tendo o caráter de dívidas, cujo valor deve ser aceito
pela fé (2008, p.48).
Deste modo, Stark e Bainbridge delineiam uma grande generalização na análise da
ciência social sobre as funções da religião, contemplando nesta generalização a teoria de
Malinowski sobre a magia como uma tentativa de dar às pessoas um senso de controle
compensatório sobre eventos perigosos ou vitais, considera também as reflexões de Marx
sobre a falsa consciência e o ópio do povo, bem como a análise de Durkheim sobre as
religiões primitivas, além das conjecturas de Freud acerca da religião como ilusão, sem
esquecer Weber e a sua teoria sobre igrejas e seitas.
Na perspectiva do modelo econômico, a religião atua oferecendo compensadores para
recompensas desejadas e que não podem ser obtidas nesta vida. Para algumas recompensas
como oferecer sentido último para a vida, à morte ou ao sofrimento, somente a religião
consegue produzir compensadores credíveis, pois se baseiam no sobrenatural, ao contrário do
oferecido pelo racionalismo científico. Desta forma, resume Coutinho (2018, p.339), a
secularização é vista como processo limitado de curto prazo, pela procura permanente de
sentido e de imortalidade, sendo o ambiente competitivo das sociedades modernas pluralistas
mais religioso do que a “idade da fé” pré-industrial, onde haveria apatia generalizada.
Sobre as teorias do regresso ou retorno do sagrado, Coutinho (2018, p.342) explica
que não se apresentam como conjunto coerente de teorias, mas como apanhado de contributos
díspares de vários sociólogos. Ele destaca que também que estes autores partilham a fé
religiosa e a sua vivência nos EUA, o que pode ter relativamente influenciado a sua visão
otimista sobre o futuro da religião. Destes autores destacam-se Daniel Bell (1919-2011),
judeu, norte-americano; Andrew Greeley (1928-2013), sacerdote católico, norte-americano;
Peter Berger (1929-2017), protestante, austríaco, vivendo nos EUA desde os anos 1940; Jose
Casanova (1951), católico, espanhol, vivendo nos EUA desde os anos 1980. É destacado
também que, nestas teorias, denota-se influência não só de Weber, tanto na necessidade de
permanência da religião pela busca do sentido (Bell, Greeley), como pela existência da
pluralização (Berger), mas também de Durkheim no recuo da privatização da religião na
esfera pública (Casanova).
Sobre os adeptos da teoria do regresso do sagrado, merece atenção a mudança de
posicionamento de Peter Berger no tocante a secularização, uma vez que ele é um dos
proponentes da teoria clássica sobre a secularização, posicionamento propagado no já
mencionado Dossel sagrado (publicado originalmente inglês em 1969), também no Rumor de
anjos (da década 60), bem como em O imperativo herético (publicado em 1979). A mudança
de posicionamento no que se refere à sua teoria clássica da secularização ocorreu em razão de
constatações empíricas. Isto aconteceu por volta de 1999, conforme ele mesmo manifesta,
quando se deu conta da evidência de que os dados empíricos contradiziam a teoria. Berger
(2008, p.1) compreende que o erro pode ser descrito como uma confusão de categorias, pois
está claro para ele que “a modernidade não é necessariamente secularizante; é
necessariamente pluralizante. A Modernidade é caracterizada por uma crescente pluralidade,
dentro da mesma sociedade, de diferentes crenças, valores e visões de mundo”.
Esta, porém, parece ter sido sempre a sua posição, pois sempre realçou a importância
da pluralização. Uma vez que já em Rumor de anjos Berger (1969/2018, p.77) afirma:
O indivíduo moderno existe numa pluralidade de mundos migrando de um
lado a outro entre estruturas de plausibilidade rivais e muitas vezes
contraditórias, cada uma sendo enfraquecida pelo simples fato de sua
coexistência involuntária com outras estruturas de plausibilidade.
Há uma grande diferença a destacar na forma como Berger compreendeu o papel
desempenhado pela pluralização moderna em seus primeiros textos. Nesta fase, Berger
(1969/2018, p.77) afirmou: “É a pluralização, ao invés de uma misteriosa queda intelectual da
graça, que considero a mais importante causa da decrescente plausibilidade das tradições
religiosas”. Ou seja, antes compreendia que o papel da pluralização moderna era provocar a
“decrescente plausibilidade das tradições religiosas”, passando a entender depois que, além
disto, a pluralização possibilita a coexistência de diversas estruturas de plausibilidade,
constituindo-se um desafio para todas as tradições religiosas e não necessariamente o seu
declínio total e consequente desaparecimento. De qualquer forma, existência de uma religião
em meio a um ambiente religiosamente plural faz com esta tenha os seus pressupostos e a sua
plausibilidade desafiados. E indivíduos expostos a este nível de pluralidade tendem a
questionar a autoridade e o caráter absoluto das doutrinas religiosas propagadas. Isto cria as
condições para que se perceba o relativismo das tradições religiosas, bem como a sua natureza
antropológica.
Sobre as constatações empíricas que fizeram Berger (2008, p.1-2) repensar a sua teoria
da secularização, através de observações globais, notou que há duas explosões religiosas
particularmente relevantes na atualidade – o ressurgimento do islamismo e o protestantismo
evangélico pentecostal. Observou que movimentos islâmicos apaixonados estão em ascensão
em todo o mundo muçulmano, desde o Oceano Atlântico até o Mar da China, e nos
muçulmanos da diáspora no Ocidente. E no caso da ascensão evangélico-pentecostal, esta tem
sido menos notada pelos intelectuais, pela mídia e pelo público em geral. Segundo Berger,
isto talvez, em parte, porque em nenhum lugar está associada à violência e em parte porque
desafia mais diretamente as suposições de opinião da elite estabelecida. No entanto, o
pentecostalismo se espalhou mais rapidamente e em uma área geográfica maior do que o
ressurgimento do Islã. Além disto, o crescimento islâmico ocorreu principalmente em
populações que já eram mulçumanas – uma revitalização em vez de uma conversão. Em
contraste o protestantismo evangélico tem sido penetrante em partes do mundo nas quais esta
forma de religião era até então desconhecida. E isso foi feito por meio de conversões em
massa. Isto tem feito do pentecostalismo o segmento mais numeroso e dinâmico atualmente.
Em certo sentido, Berger não abandona o conceito de secularização, apenas o submete
a uma revisão sob a luz de novos dados. Constata que o secularismo se encontra atualmente
num contexto global de religiosidade dinâmica, o que significa que enfrenta sérios desafios.
Com base nisto, Berger (2008, p.2-3) distingui três versões do secularismo: há a versão
moderada, tipificada pela visão tradicional americana da separação entre igreja e estado;
depois, há a versão mais radical, tipificada pela francesa laïcité em que a religião é ligada à
esfera privada e protegida pela liberdade de religião legalmente imposta; e existe também,
como no caso soviético, um secularismo que privatiza a religião e procura a reprimir, neste
caso, seus adeptos podem ser tão fanáticos quanto qualquer religioso fundamentalista.
Na primeira versão de secularismo, o termo pode se referir a aceitação das
consequências para a religião da diferenciação institucional que é uma característica crucial
da modernidade, atividades sociais que foram realizadas em sociedades pré-modernas dentro
de um contexto institucional unificado estão agora dispersas entre várias instituições. O
segundo tipo de secularismo é caracterizado precisamente por uma postura antirreligiosa, pelo
menos no que diz respeito ao papel público da religião, pois a compreensão francesa do
Estado se originou da postura anticristã do Iluminismo continental e foi politicamente
estabelecido pela Revolução Francesa. Esse segundo tipo de secularismo, com a religião
considerada uma questão estritamente privada, pode ser relativamente benigno, como na
França contemporânea onde símbolos ou ações religiosos são rigorosamente proibidos na vida
política, mas a religião privatizada é protegida por lei. Por sua vez, o terceiro tipo de
secularismo é tudo menos benigno, como na prática da União Soviética e outros regimes
comunistas. Mas o que caracteriza as versões benigna e malévola da laïcité é que a religião é
despejada da vida pública e confinada ao espaço privado. Todos esses tipos de secularismo
estão sendo vigorosamente desafiados. Mesmo a versão moderada do secularismo,
institucionalizada em uma separação entre igreja e Estado no estilo americano, está sendo
desafiada pelos movimentos religiosos contemporâneos que rejeitam diferenciação entre
instituições religiosas e o resto da sociedade, restando como alternativa o domínio da religião
sobre cada esfera da vida humana.
Sobre as teorias histórico-culturais, Coutinho (2018, p.345) destaca os seguintes
autores: apresenta-se primeiro David Martin, herdeiro intelectual das ideias de Weber, pela
sua obra pioneira desde os anos 1960, The religious and the secular; em seguida, aparecem
Philip Gorski e Charles Taylor (1931, ambos seguidores de Martin. Coutinho explica que este
conjunto de teorias descende da linha germânica subjetivista, hermenêutica ou compreensiva,
na qual o sentido da ação tem de ser olhado na perspectiva individual, neste caso nacional ou
regional, e não na perspectiva coletiva, condicionada pela narrativa hegemônica da
modernização única, o que conduz ao domínio das histórias particulares e do sentido ou
caminho que a modernização tomou em cada estado ou região. Nesta linha enquadra-se a
concepção de múltiplas modernidades de Eisenstadt (1923-2010) correspondentes a múltiplas
secularizações, pelo cumprimento diverso do programa da modernidade. Assim, o hiper-
relativismo e o hiper-individualismo da sociedade atual conduziram inevitavelmente as
ciências sociais para a contextualização das teorizações e das análises empíricas, tornando
paulatinamente desajustados quaisquer estudos generalistas.
Sobre Martin, Coutinho (2018, p.346) expõe que este desenvolve a sua teoria da
secularização assentada no processo de diferenciação social descrito por Parsons, para quem
esta não era tomada como declínio, mas antes como oportunidade para a religião alcançar
melhor a sua função, nomeadamente através do pluralismo religioso. Focado no cristianismo,
Martin analisa o processo de diferenciação social através de três filtros históricos, cruciais
para conduzir a secularização em direções singulares, destacando-se o tipo de cristianismo e a
região onde se implanta (protestantismo ou catolicismo; Europa ou América) e o tipo de
regulação religiosa (pluralismo ou monopólio), havendo ainda a questão centro/periferia,
associada ao nacionalismo religioso. Este autor trouxe duas alterações à discussão sobre a
secularização: na primeira, de caráter hermenêutico, em vez de mostrar como a modernidade
levou à secularização de forma universal e única, evidenciou a pluralidade de secularizações
em diferentes países e culturas (Martin considera que, apesar de os grandes processos
históricos (racionalização) terem alguma verdade neles, não podem ser tomados de forma
linear, mas antes escrutinados à luz da história particular de cada país ou região, dando origem
a secularizações singulares); na segunda, de caráter dialético, que suporta a anterior, em vez
de olhar para a história composta de ganhos e perdas irreversíveis, trouxe a noção de que a
história se vai construindo, com avanços e recuos, podendo os ganhos atuais terem perdas
futuras e vice-versa.
Charles Taylor (2010), discorrendo sobre o que significa dize que se vive numa era
secular, propõe três sentidos para esclarecer em que consiste a secularidade da era atual. O
primeiro sentido está relacionado ao fato de que na atualidade há um esvaziamento da religião
das esferas sociais, pois estas se tornaram autônomas. Neste sentido, Taylor (2010, p.14)
acrescenta:
Assim, um entendimento da secularidade dá-se em termos de espaço
públicos. Estes foram supostamente esvaziados de Deus ou de qualquer
referência a uma realidade derradeira. Ou, visto por outro ângulo, como
atuamos em várias esferas de atividade – econômica, política, cultural,
educacional, profissional, recreador – as normas e os princípios que
seguimos, as deliberações nas quais nos envolvemos geralmente não nos
reportam a Deus ou a quaisquer crenças religiosas; as considerações a partir
das quais atuamos são internas à “racionalidade” de cada esfera – o ganho
máximo na economia, o maior benefício ao maior número de pessoas na área
política e assim sucessivamente. Isso contrasta de modo surpreendente com
períodos anteriores, quando a fé cristã fazia prescrições autoritárias,
geralmente pelas vozes do clero, que não podiam ser facilmente ignoradas
em nenhuma dessas áreas, como a proibição da usura ou a obrigação de
impor a ortodoxia.
Ainda sobre este primeiro sentido para secularidade da era atual, Taylor (2010, p.13-
14) resume:
A religião, ou a sua ausência, consiste em grande medida numa questão
privada. A sociedade política é vista como uma sociedade de crentes (de
todas as nuances) e não crentes igualmente.
Dito de outro modo: em nossas sociedades “seculares”, as pessoas podem
engajar-se totalmente na política sem jamais encontrar Deus, ou seja, sem
jamais chegar ao ponto de evidenciar de modo forçoso e inequívoco a
importância crucial do Deus de Abraão para toda essa empreitada.
A ocorrência do esvaziamento da religião das esferas sociais autônomas não gera
incompatibilidade para os membros da sociedade que se devotam a algum tipo de credo
religioso. Em outros termos, a vasta maioria das pessoas ainda acredita em Deus e pratica sua
religião fervorosamente, todavia preserva uma distinção entre suas crenças religiosas privadas
e as suas atuações nos ambientes públicos secularizados.
Assim, Taylor (2010, p.15) acrescenta sobre os segundo e terceiro sentidos para
secularidade da era atual:
Nesse segundo sentido, a secularidade consiste no abandono de convicções e
práticas religiosas, em pessoas se afastando de Deus e não mais
frequentando a igreja. Nesse sentido, os países da Europa ocidental
tornaram-se majoritariamente seculares – até mesmo aqueles que mantêm
vestígios de referência a Deus no espaço público.
Acredito, contudo, que um exame desta era como secular seja pertinente em
um terceiro sentido, intimamente relacionado ao segundo e não desvinculado
do primeiro. Este enfocaria as condições da fé. A mudança para secularidade
nesse sentido consiste, entre outras coisas, na passagem de uma sociedade
em que a fé em Deus é inquestionável e, de fato, não problemática, para uma
na qual a fé é entendida como uma opção entre outras e, em geral, não a
mais fácil de ser abraçada.
Desta maneira, Taylor, no livro Uma era secular, empenha-se em investigar a
sociedade como secular neste terceiro sentido, busca compreender como ocorreu esta
metamorfose.
A mudança que quero definir e traçar é aquela que nos leva de uma
sociedade na qual era praticamente impossível não acreditar em Deus para
uma na qual a fé, até mesmo para o crente mais devoto, representa apenas
uma possibilidade humana entre outras (TAYLOR, 2010, p.15).
É compreensível que a secularização não seja entendida como um processo igualitário,
seguindo os mesmos rumos em todas as partes do mundo. Constitui-se algo razoável também
o alerta apresentado pelas teorias histórico-culturais sobre considerar as histórias particulares,
as características culturais próprias de cada região do mundo, pois isto pode conduzir a
percepção de múltiplas formas de secularização. É igualmente razoável o proposto por Peter
Berger, após ter revisto a sua teoria da secularização, de que a Modernidade é
necessariamente pluralizante e, deste modo, proporciona um ambiente desafiador para todas
as tradições religiosas e não obrigatoriamente o seu declínio total e consequente
desaparecimento. Todavia, este entendimento guarda uma proximidade com um conceito
restrito de religião, esta sendo compreendida apenas em suas manifestações explícitas e
institucionais, deste modo, deixando de reconhecer que mesmo em fenômenos seculares
persistem um modo de pensar e de agir tipicamente religiosos.
Desta maneira, para os interesses desta pesquisa não há quaisquer dificuldades em
aceitar a noção de que a Modernidade não é secularizadora no sentido de indispensavelmente
provocar a morte do sobrenatural ou o desaparecimento da religião, e sim necessariamente
pluralizante, fazendo surgir nos mesmos contextos sociais uma pluralidade de estruturas de
plausibilidade, uma multiplicidade de visões de mundo.
Ao se assumir, porém, tal aceitação, não se toma como obrigatório o abandono da
noção de secularização como um elemento importante para compreender certos mecanismos
operando nas sociedades modernas. Apenas se reconhece que a secularização não ocorre
igualmente em toda parte, ou que há certas questões sobre ela a serem melhores
compreendidas e necessitando de respostas ou esclarecimentos.
Diante disto, para os propósitos desta pesquisa se assume o conceito de secularização
em seu sentido mais básico que se relaciona com a ideia de transferência de noções religiosas
da esfera sagrada para a esfera secular ou mundana. E isto tanto pode ocorrer no sentido de
esvaziamento da religião das esferas sociais, quando estas esferas se tornam autônomas ou
orientadas por propósitos deste mundo, quanto como a mundanização de conceitos religiosos
que continuam operando na esfera secular sem perder contato com seu fundamento
transcendente, isto geralmente ocorrendo sem a consciência dos envolvidos no processo.
Em outros termos, interessa aqui o conceito de secularização para além das relações
dos atores sociais com a religião institucional ou para além do modo como esta perde o seu
domínio sobre os indivíduos ou instituições na sociedade que outrora estavam sob seu
controle. Neste sentido, conforme Knoblauch (2014, p.14), a religião institucional é
compreendida como a religião conduzida por uma instituição altamente especializada cujos
representantes, clérigos ou sacerdotes, possuem um conhecimento especializado sobre o
cosmo sagrado só acessível aos não especialistas em versões popularizadas. Este tipo modelo
de religião (no Ocidente, apesar de seu alto grau de especialização e da delimitação
excludente em uma área institucional específica) legitimava toda a ordem social. Exemplo
deste tipo de religião são os conflitos que se acumulam desde a Idade Média entre a igreja e o
imperador, a igreja e a ciência, a economia e a política como expressões da crescente exclusão
dessas outras áreas institucionais, cada vez mais autônomas. Nesta perspectiva, não só o
conhecimento dos especialistas religiosos já quase não é acessível aos leigos, mas a própria
estrutura social é secularizada.
A forma institucionalmente especializada da religião é apenas uma entre
muitas formas sociais da religião. Medir a religião a partir do modelo dessa
forma especial equipara-se a um tipo de etnocentrismo. Se, nas sociedades
não diferenciadas, cada pessoa tem acesso quase completo ao cosmo
sagrado, com a crescente diferenciação institucional esse cosmo se torna,
cada vez mais, algo laico. Para a religiosidade individual isso tem
consequências de longo alcance. O “modelo oficial” de religião, inscrito nas
instituições especializadas, agora só tem validade no interior dos próprios
limites; em outros lugares, seu significado é meramente retórico. A igreja
passa a ser uma instituição entre muitas, sem que sua interpretação da
realidade assuma primazia. Sistemas interpretativos laicos de origem
política, econômica ou mesmo “científica” cada vez mais assumem esse
lugar. Eles são expressão da perda, pela igreja, do “monopólio da
interpretação” (KNOBLAUCH, 2014, p.15).
Interessa, todavia, aqui, o conceito de secularização que se guia pelo entendimento que
mesmo uma sociedade que se orienta por uma consciência secular pode estar sob influência
de uma inconsciência religiosa. Ou seja, mesmo que a consciência secular tenha se tornado
predominante e a consciência religiosa tenha sido reduzida a esfera privada, em nível
inconsciente, noções religiosas continuam exercendo influência sobre a consciência secular.
Isto está implícito no próprio conceito de secularização, ou seja, a transposição de noções
outrora religiosas e transcendentes para um campo secular e imanente, uma mundanização
destas noções, ou, nos termos de Voegelin, imanentização.
3.2 Sociologia do Conhecimento, secularização da consciência e inconsciência religiosa
Já foi explicitado no primeiro capítulo, no tocante a Sociologia do Conhecimento, que
a sua tese principal, de acordo com Mannheim (1952), afirma a existência de pensamentos
incapazes de ser adequadamente compreendidos enquanto permanecerem obscuras as suas
origens sociais. Desta maneira, a Sociologia do Conhecimento, em seu método, não parte, à
maneira dos filósofos, do indivíduo isolado e de seu modo de pensar para o pensamento
abstrato em si. Ao contrário disto, declara Mannheim (1952, p.3):
A sociologia do conhecimento procura compreender o pensamento dentro da
moldura concreta de uma situação histórico-social, de que o pensamento
individualmente diferenciado emerge mui gradualmente. Assim, não são os
homens em geral que pensam, nem mesmo os indivíduos isolados, mas os
homens dentro de certos grupos que elaboraram um estilo peculiar de
pensamento graças a uma série interminável de reações a certas situações
típicas, características de sua posição comum.
Esta noção de conhecimento apreendida nos termos da Sociologia do Conhecimento
deve ser concebida de modo mais amplo possível. Com referência a isto, em 1937,
aproximadamente duas décadas após o surgimento da Sociologia do Conhecimento como uma
nova disciplina acadêmica, Robert K. Merton (2013, p.95) escreveu:
Como a maior parte das investigações nesse campo concernem aos fatores
socioculturais que influenciam o desenvolvimento de crenças e opiniões,
mais do que o conhecimento positivo, o termo “Wissen” (conhecimento)
deve ser interpretado de modo muito amplo, como referido às ideias e ao
pensamento social em geral e não às ciências físicas, exceto quando
expressamente indicado. Dito de modo sumário, a sociologia do
conhecimento concerne primariamente à “dependência do conhecimento em
relação à posição social” e, em um nível excessivo e estéril, às implicações
epistemológicas de tal dependência.
Quando Merton faz referência à “dependência do conhecimento em relação à posição
social”, ele o faz em relação ao pertencimento existencial do conhecimento, ponto retomado
em texto de 1945 no qual declara:
Um ponto central de acordo em todos os enfoques da sociologia do
conhecimento é a tese de que o pensamento tem uma base existencial, tal
que ele não é determinado de modo imanente, e um ou outro de seus
aspectos podem ser derivados de fatores extracognitivos (MERTON, 2013,
p.118).
O conhecimento ou as produções mentais de determinados grupos sociais possuem
uma base existencial, uma relação com situações históricas e sociais concretas, assim,
segundo Merton (2013, p.116-117), quando se busca onde está localizada a base existencial
de certas produções mentais, considera-se bases sociais (posição social, classe, geração, papel
ocupacional, modo de produção, estruturas grupais – universidade, burocracia, academias,
seitas, partidos políticos –, situação histórica, interesses, sociedade, filiação étnica,
mobilidade social, estrutura de poder, processos sociais – competição, conflito e etc); e bases
culturais (valores, éthos, clima de opinião, Volksgeist, Zeitgeist, tipo de cultura, mentalidade
cultural). Assim, podem ser analisadas sociologicamente produções mentais relacionadas às
esferas de crenças morais, ideologia, ideias, as categorias de pensamento, filosofia, crenças
religiosas, normas sociais, ciência positiva, tecnologia, etc. Bem como interessa também a
forma como produções mentais se relacionam com sua base existencial: relações causais ou
funcionais (determinação, causa, correspondência, condição necessária, condicionamento,
interdependência funcional, interação, dependência); relações simbólicas ou orgânicas ou
significativas (consistência, harmonia, coerência, unidade, congruência, compatibilidade e
antônimos; expressão, realização, expressão simbólica, identidades estruturais, conexão
interna, analogias estilísticas, integração entre lógica e sentido, identidade lógico-
significativa).
Sustenta-se que o Seinsverbundenheit (pertencimento existencial) do
pensamento está demonstrado quando se pode mostrar que, em certos
domínios, o conhecimento não se desenvolve de acordo com leis imanentes
de crescimento (baseadas na observação e na lógica), mas que, em certas
conjunturas, fatores extrateóricos de vários tipos, usualmente nomeados
Seinsfaktoren (fatores de existência), determinam a aparência, a forma e, em
certos casos, inclusive o conteúdo e a estrutura lógica desse conhecimento
(MERTON, 2013, p.96).
Até aqui está claro que a Sociologia do Conhecimento se ocupa com a relação entre o
pensamento humano e as condições sociais sob as quais este pensamento ocorre. Em
concomitância com isto, na discussão alvo do interesse desta pesquisa, o conceito de
estruturas de plausibilidade explicado sob o prisma da Sociologia do Conhecimento ganha
relevância.
Uma das proposições fundamentais da sociologia do conhecimento é que a
plausibilidade, no sentido daquilo que as pessoas realmente acham digno de
fé, das ideias sobre a realidade depende do suporte social que estas ideias
recebem. Dito mais simplesmente, nós conseguimos nossas noções sobre o
mundo originalmente de outros seres humanos, e estas noções continuam
sendo plausíveis, para nós em grandíssima parte, porque os outros continuam
a afirmá-las. Há algumas exceções – noções que derivamos direta e
instantaneamente de nossa própria experiência dos sentidos –, mas mesmo
estas podem ser integradas em visões significativas da realidade somente por
força de processos sociais. Claro que é possível ir contra o consenso social
que nos cerca, mas há pressões fortes (que se manifestam como pressões
psicológicas dentro de nossa própria consciência) para nos conformarmos às
visões e crenças de nossos semelhantes. É na conversa, no sentido mais
vasto do termo, que construímos e fazemos prosseguir nossa visão sobre o
mundo (BERGER, 1969/2018, p.64).
As definições sociais da realidade, as relações sociais que aceitam e contribuem para o
estabelecimento de tais definições sem as questionar, assim como as legitimações e os
mecanismos de controle social que as sustentam, são fatores que auxiliam a concepção do que
seja estrutura de plausibilidade.
Assim toda concepção do mundo, qualquer que seja seu caráter ou conteúdo,
pode ser analisada em termos de sua estrutura de plausibilidade, porque é só
quando o indivíduo permanece nesta estrutura que a concepção do mundo
em questão permanecerá plausível a ele. A força desta plausibilidade, indo
de certezas inquestionáveis através de firmes probabilidades a meras
opiniões, dependerá diretamente da força da estrutura que a sustenta
(BERGER, 1969/2018, p.66).
Isto no que se refere às afirmações religiosas acerca da realidade, Berger (1969/2018,
p.66-67) acrescenta que uma vez que estas, por sua própria natureza, não encontram apoio na
experiência dos sentidos humanos, por este motivo, dependem inteiramente do apoio social.
Estas afirmações dependem de uma estrutura de plausibilidade, ou seja, depende de seres
humanos que aceitem como inquestionáveis a definição da realidade expressa em tais
afirmações, bem como de uma rede conversacional através da qual estes seres humanos
mantêm a realidade em questão funcionando, assim como dependem de práticas e rituais
terapêuticos e as legitimações que os acompanham. E uma vez que uma estrutura de
plausibilidade adequada deixe de existir não há como sustentar a plausibilidade de tais
afirmações religiosas acerca do mundo.
E foi exatamente o que o desafio do moderno pensamento científico fez. Uma série de
disciplinas científicas desafiou a plausibilidade das afirmações religiosas. Desafio iniciado
pelas ciências físicas com seu questionamento da cosmologia da Idade Média que
paulatinamente tornou a “hipótese religiosa” cada vez mais desnecessária para explicar a
realidade. O desafio foi ainda mais agravado com a revolução na biologia ocorrida durante o
século XIX. Acrescentem-se ainda os desafios das ciências humanas, dentre estes o da
psicologia. Estes três conjuntos de desafios se enquadram no que Freud (1856-1839)
denominou como três feridas narcísicas sofridas pelo homem nos tempos modernos: a
primeira, a cosmológica – ocorrida quando Copérnico (1473-1543) aniquilou a cosmovisão
geocêntrica e a substituiu pela heliocêntrica, expulsou o ser humano do centro do universo e o
jogou à periferia; a segunda, a biológica – decorrente da descoberta de Charles Darwin (1809-
1882) de que as espécies têm sua origem num longo processo evolutivo, o ser humano,
portanto, seria o produto não de um ato criador, mas de uma evolução natural; e a terceira, a
psicanalítica – mostrando que o “eu” não é dono nem mesmo dentro da própria casa, age
impulsionado por instintos e desejos que fogem a seu controle, esta humilhação atinge o
homem no centro da sua personalidade. A pesquisa científica desencantou o mundo,
desmistificou o ser humano, destruiu os mitos que lhe asseguravam lugar privilegiado no
universo, reduziu a existência humana à trivialidade.
Berger (1969/2018) destaca que os desafios das ciências humanas foram mais críticos
e mais perigosos à essência das afirmações religiosas sobre a realidade. Neste contexto, a
sociologia seria a mais recente disciplina científica a desafiar a estrutura de plausibilidade das
afirmações religiosas, havendo dois importantes predecessores da sociologia, a história e a
psicologia. A psicologia depois de Freud sugeriu que a religião era uma gigantesca projeção
de necessidades e desejos humanos. Todavia, o estudo da história, especialmente como se
desenvolveu no século XIX, foi quem primeiro ameaçou minar as afirmações religiosas nas
suas próprias bases. “Dito de modo simples, o estudo da história levou a uma perspectiva na
qual até mesmo os mais sacrossantos elementos da tradição religiosa acabaram por ser vistos
como produtos humanos” (BERGER, 1969/2018, p.60).
Berger explica que uma vez que isto tenha acontecido todo o mistério em torno das
crenças religiosas se torna cientificamente apreensível, praticamente repetível e aplicável ao
geral. O mágico desaparece quando os mecanismos da gênese da plausibilidade se tornam
transparentes.
A comunidade de fé é agora compreensível como uma entidade construída –
foi construída numa história humana específica, por seres humanos.
Inversamente, pode ser desmantelada ou reconstruída pelo uso dos mesmos
mecanismos. Na verdade, a um fundador hipotético de uma religião poder-
se-ia dar um esquema sociológico para a fabricação da necessária estrutura
de plausibilidade – e este esquema conteria essencialmente os mesmos
elementos básicos que entraram na montagem da comunidade católica de fé.
A fórmula, uma vez transformada numa afirmação de autoridade única,
impõe-se como uma regra geral. Aplica-se a católicos, protestantes, budistas
de Theravada, comunistas, vegetarianos e crentes em discos voadores. Em
outras palavras, o mundo do teólogo tornou-se um mundo entre muitos –
uma generalização do problema da relatividade que vai consideravelmente
além das dimensões do problema como foi anteriormente colocado pelo
estudo da história. Para colocar a questão em termos simples: a história põe
o problema da relatividade como um fato, a sociologia do conhecimento
como uma necessidade de nossa condição (BERGER, 1969/2018, p.69).
Em meio a esta discussão sobre plausibilidade e a “crise de credibilidade” na religião
como uma das formas mais evidentes do efeito da secularização, bem como o amplo colapso
da plausibilidade das definições religiosas tradicionais da realidade que isto acarretou, Berger
aborda a manifestação da secularização em nível de consciência (secularização subjetiva) com
seu correlato em nível socioestrutural (secularização objetiva).
Subjetivamente, o homem comum não costuma ser muito seguro acerca de
assuntos religiosos. Objetivamente, ele é assediado por uma vasta gama de
tentativas de definição da realidade, religiosas ou não, que competem por
obter sua adesão ou, pelo menos, sua atenção, embora nenhuma delas possa
obrigá-lo a tanto. Em outras palavras, o fenômeno do “pluralismo” é um
correlato socioestrutural de secularização da consciência (BERGER,
1969/1985, p.139).
Este colapso de plausibilidade que a religião sofreu, em nível de estrutura social,
estaria relacionado, segundo Berger, ao fenômeno do pluralismo, também com
desdobramentos sobre a consciência e a ideação. Berger salienta que a natureza da relação
entre religião e sociedade é dialética. Por este motivo, tanto os enfoques doutrinários quer do
idealismo, quer do materialismo, ficam impossibilitados. Pois é possível demonstrar, em
exemplos concretos, como ideias religiosas levaram a mudanças empiricamente observáveis
na estrutura social. Bem como, em outros exemplos, é demonstrável como mudanças sociais
empiricamente observáveis tiveram consequências em nível de consciência religiosa. Para
ilustrar este argumento, Berger (1969/1985, p.140-141) expõe:
Uma coisa bem diferente é o poder que a religião tem de “retroagir” sobre a
infra-estrutura em situações históricas específicas. Sobre isso, pode-se dizer
que esse poder varia muito em diferentes situações. Assim, a religião pode
aparecer como uma força formativa numa situação e como uma formação
dependente na situação que se seguiu historicamente. Pode-se descrever essa
mudança como uma “reversão” na “direção” da eficácia causal entre a
religião e suas respectivas infra-estruturas. O fenômeno que estamos
considerando aqui diz respeito ao caso em questão. Os desenvolvimentos
religiosos originados da tradição bíblica podem ser vistos como fatores
causais na formação do mundo moderno secularizado. Uma vez formado,
porém, esse mundo precisamente impede que a religião continue como força
formativa. Diríamos que é aqui que reside a grande ironia histórica na
relação entre a religião e a secularização, ironia essa que exprimiríamos de
maneira mais plástica dizendo que, historicamente, o cristianismo cavou sua
própria sepultura.
Em outras palavras, dialeticamente, ideias religiosas originadas da tradição bíblica
contribuíram no Ocidente para formação do mundo secularizado, produzindo mudanças
empiricamente observáveis na estrutura social (secularização objetiva), principalmente
possibilitando o surgimento de um “pluralismo” de estruturas de plausibilidades concorrentes,
mergulhando o indivíduo moderno numa pluralidade de mundos, migrando de um lado para
outro entre estruturas de plausibilidades rivais e diversas vezes contraditórias. A secularização
observada na estrutura social se correlaciona com processos dentro da mente humana, isto é, a
secularização da consciência. Neste sentido, secularização da consciência, em termos
subjetivos, se contrapõe a consciência religiosa.
A menção à consciência, seja ela secularizada ou religiosa, não esquecendo também o
conceito de inconsciência, traz para a discussão uma premissa fundamental da psicanálise,
enquanto divisão do psíquico na perspectiva freudiana. Esta premissa torna possível à
psicanálise compreender os processos patológicos da vida mental. Em Freud (1996), o
conceito do inconsciente designa o estado dos conteúdos reprimidos, esquecidos ou
recalcados. Assim sendo, para Freud, o inconsciente é de natureza exclusivamente pessoal.
Freud (1996, p.28) afirma ter obtido o conceito de inconsciente a partir da teoria da
repressão. “O reprimido é, para nós, o protótipo do inconsciente”, declara Freud. Todavia, ele
percebe a existência de dois tipos de inconsciente: “um que é latente, mas capaz de tornar-se
consciente, e outro que é reprimido e não é, em si próprio e sem mais trabalho, capaz de
tornar-se consciente”. Assim, para efeitos de terminologia e descrição, Freud (1996, p.29)
explica:
Ao latente, que é inconsciente apenas descritivamente, não no sentido
dinâmico, chamamos de pré-consciente; restringimos o termo inconsciente
ao reprimido dinamicamente inconsciente, de maneira que temos agora três
termos, consciente (Cs.), pré-consciente (Pcs.) e inconsciente (Ics.), cujo
sentido não é mais puramente descritivo.
Além disto, há em cada indivíduo uma organização coerente de processos mentais que
Freud chamou de ego. Do ego procedem também as repressões através das quais são
excluídas certas tendências da mente. Todavia, há algo sobre o ego que conduz Freud (1996,
p.31) a declarar: “Deparamo-nos com algo no próprio ego que é também inconsciente, que se
comporta exatamente como o reprimido – isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio
ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser tornado consciente”. Além
da correção que obrigou Freud a distinguir o inconsciente do pré-consciente há uma segunda
correção oriunda, segundo Freud (1996, p.31-32), da compreensão interna da estrutura da
mente:
Reconhecemos que o Ics. não coincide com o reprimido; é ainda verdade que
tudo o que é reprimido é Ics., mas nem tudo o que é Ics. é reprimido.
Também uma parte do ego – e sabem os Céus que parte tão importante –
pode ser Ics., indubitavelmente é Ics. E esse Ics. que pertence ao ego não é
latente como o Pcs., pois, se fosse, não poderia ser ativado sem tornar-se Cs.,
e o processo de torna-lo consciente não encontraria tão grandes dificuldades.
Quando nos vemos assim confrontados pela necessidade de postular um
terceiro Ics., que não é reprimido, temos de admitir que a característica de
ser inconsciente começa a perder significação para nós. Torna-se uma
qualidade que pode ter muitos significados, uma qualidade da qual não
podemos fazer, como esperaríamos, a base de conclusões inevitáveis e de
longo alcance. Não obstante, devemos cuidar para não ignorarmos esta
característica, pois a propriedade de ser consciente ou não constitui, em
última análise, o nosso único farol na treva da psicologia profunda.
Por sua vez, Jung vai além das concepções de Freud acerca do inconsciente. Jung
(2008, p.13) resume o ponto de vista freudiano segundo o qual os conteúdos do inconsciente
se reduzem às tendências infantis reprimidas. Nesta perspectiva, a repressão é um processo
que se inicia na primeira infância sob a influência moral do ambiente, perdurando através de
toda a vida e por meio da análise, as repressões são abolidas e os desejos reprimidos
conscientizados. Jung salienta ainda que de acordo com essa teoria, o inconsciente contém
apenas as partes da personalidade que poderiam ser conscientes se a educação não as tivesse
reprimido. Todavia, Jung afirma que mesmo considerando que, sob um determinado ponto de
vista, as tendências infantis do inconsciente fossem preponderantes, seria incorreto definir ou
avaliar o inconsciente somente nestes termos. Segundo ele, o inconsciente possui, além deste,
outro aspecto, incluindo não apenas conteúdos reprimidos, mas todo o material psíquico que
subjaz ao limiar da consciência. Assim, Jung compreende ser impossível explicar pelo
princípio da repressão a natureza subliminal de todo este material, pois segundo ele, se assim
o fosse, a remoção das repressões proporcionaria ao indivíduo uma memória fenomenal, à
qual nada escaparia. Deste modo, Jung conclui que além do material reprimido, o
inconsciente contém todos aqueles componentes psíquicos subliminais, inclusive as
percepções subliminais dos sentidos.
Outro elemento na teoria junguiana que a faz avançar em relação à teoria de Freud
sobre o inconsciente é a sua constatação de que na camada mais profunda do inconsciente
jazem adormecidas as imagens humanas universais e originárias, imagens denominadas por
Jung de arquétipos. Essa constatação realizada por Jung significa mais um passo à frente na
sua teoria, a saber: a caracterização de duas camadas no inconsciente. A distinção do
inconsciente pessoal do inconsciente impessoal. Este último sendo chamado por Jung de
inconsciente coletivo, por ser desligado do inconsciente pessoal e por ser totalmente
universal. Na teoria junguiana, o inconsciente coletivo representa a parte objetiva do
psiquismo, uma vez que o inconsciente pessoal representa a parte subjetiva.
Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente
pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre
uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou
aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que
chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo “coletivo” pelo fato de
o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é,
contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de
comportamento, os quais são ‘cum grano salis’ os mesmos em toda parte e
em todos os indivíduos. Em outras palavras, são idênticos em todos os seres
humanos, constituindo portanto um substrato psíquico comum de natureza
psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo (JUNG, 2000, p.15).
Em termos do caráter universal dos conteúdos do inconsciente coletivo, os arquétipos,
Jung afirma se tratar de tipos arcaicos ou primordiais, imagens universais existentes desde os
tempos mais remotos. Um exemplo disto, de acordo com Jung, são as representações coletivas
que designam as figuras simbólicas da cosmovisão primitiva, algo aplicável aos conteúdos
inconscientes.
Os ensinamentos tribais primitivos tratam de arquétipos de um modo
peculiar. Na realidade, eles não são mais conteúdos do inconsciente, pois já
se transformaram em fórmulas conscientes, transmitidas segundo a tradição,
geralmente sob a forma de ensinamentos esotéricos. Estes são uma expressão
típica para a transmissão de conteúdos coletivos, originariamente provindos
do inconsciente (JUNG, 2000, p.16).
Outra forma de expressão dos arquétipos está relacionada ao mito, um elemento
extremamente importante para a linguagem religiosa. Para Jung (2000, p.17), o significado do
termo “arquétipo” fica mais claro quando se relaciona com o mito, o ensinamento esotérico e
o conto de fada. Jung compreende que os mitos são, antes de mais nada, manifestações da
essência da alma, porém isto foi negado de modo absoluto durante muito tempo. O que fez
com que os estudiosos da mitologia se contentassem em recorrer a ideias solares, lunares,
meteorológicas, vegetais, para fundamentar o mito.
Todos os acontecimentos mítologizados da natureza, tais como o verão e o
inverno, as fases da lua, as estações chuvosas, etc, não são de modo algum
alegorias destas, experiências objetivas, mas sim, expressões simbólicas do
drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue
apreender através de projeção – isto é, espelhadas nos fenômenos da
natureza. A projeção é tão radical que foram necessários vários milênios de
civilização para desligá-la de algum modo de seu objeto exterior. [...]
O homem primitivo é de uma tal subjetividade que é de admirar-se o fato de
não termos relacionado antes os mitos com os acontecimentos anímicos. Seu
conhecimento da natureza é essencialmente a linguagem e as vestes externas
do processo anímico inconsciente. Mais precisamente pelo fato desse
processo ser inconsciente é que o homem pensou em tudo, menos na alma,
para explicar o mito. Ele simplesmente ignorava que a alma contém todas as
imagens das quais surgiram os mitos, e que nosso inconsciente é um sujeito
atuante e padecente, cujo drama o homem primitivo encontra
analogicamente em todos os fenômenos grandes e pequenos da natureza
(JUNG, 2000, p.18).
É inegável que na Modernidade as pessoas foram postas numa posição na qual se
sentiram forçadas a ter que lidar não mais com um contexto social no qual uma religião
universal apresentava uma interpretação objetiva do mundo, mas com uma realidade na qual
múltiplas estruturas de plausibilidade passaram a coexistir e concorrer umas com as outras.
Este processo foi iniciado no Ocidente pela própria tradição judaico-cristã, que contrastando
radicalmente com noção pagã de deificação da natureza, operou a desdivinização da natureza
e consequente desencantamento do mundo já a partir da tradição bíblica. Esta visão bíblica do
mundo favoreceu, desde o século XVI, o desenvolvimento da ciência moderna e da sua
correspondente concepção do mundo. O modelo do mundo como um organismo foi
gradualmente sendo substituído até que uma concepção mecanicista do mundo assumisse o
lugar (HOOYKAAS, 1988). Disto até que a concepção racionalista e naturalista do mundo
desalojasse a concepção religiosa foi somente uma questão de tempo. No período do
absolutismo esclarecido, enfraqueceu-se a Igreja através de processos tomados de empréstimo
à própria Igreja, com fim de substituir uma interpretação objetiva do mundo, outrora garantida
pela Igreja, por outra garantida pelo Estado. Ainda no próprio âmago da tradição cristã
ocidental:
Nos primórdios dos tempos modernos, o movimento protestante colocou em
lugar da salvação revelada e sustentada pela instituição objetiva da Igreja, a
noção de certeza subjetiva da salvação. Admitia-se, à luz dessa doutrina, que
cada indivíduo devia decidir, segundo sua consciência subjetiva, se sua
conduta era agradável a Deus e conduzia à salvação. Assim, o protestantismo
tornou subjetivo um critério até então objetivo, numa transposição paralela à
da moderna epistemologia quando recuou de uma ordem de existência
objetivamente garantida para o sujeito individual. Não era grande a distância
entre a doutrina da certeza subjetiva da salvação e o ponto de vista
psicológico em que a observação do processo psíquico, transformada em
verdadeira curiosidade, tornou-se gradualmente mais importante do que o
apego aos critérios de salvação que os homens haviam até então procurado
descobrir dentro das próprias almas (MANNHEIM, 1952, p.31).
Todavia, do mesmo modo que ideias religiosas contribuíram para secularizar as
estruturas sociais e consequentemente consumar a secularização da consciência dos sujeitos, o
próprio fenômeno de secularização pode ocultar, ou em termos freudiano, reprimir ou recalcar
uma inconsciência religiosa que é inerente às origens religiosas deste fenômeno. Ou melhor
ainda, em termos junguiano, a consciência secularizada pode em certas circunstâncias
continuar atuando a partir de noções do inconsciente coletivo, uma vez que as narrativas
mitológicas que originaram tais noções religiosas procedem de processo anímico
inconsciente. A secularização apenas transpôs estas noções, outrora relacionadas com
imagens primordiais e transcendentes, para a imanência histórica, tornando inconsciente o
elemento religioso que lhe é próprio. O que não impede que noções religiosas inconscientes
continuem motivando e guiando certos processos e concepções de mundo na Modernidade.
Isto ocorre mesmo quando esses processos se compreendem totalmente desvinculados de
concepções religiosas, sendo explicitamente laicos.
3.3 Inconsciência, ideologia e utopia
Karl Mannheim publicou na década de trinta o livro Ideologia e utopia como uma
introdução à Sociologia do Conhecimento. Neste texto, ele realiza um exame do pensamento
humano em seu modus operandi na vida política como um instrumento motivador da ação
coletiva, o pensamento conforme os termos da Sociologia do Conhecimento, situado dentro
da moldura concreta de uma situação histórico-social. De conformidade com as bases
epistemológicas da Sociologia do Conhecimento, realiza-se um procedimento diferente do
realizado por filósofos que examinam o pensamento através de uma análise lógica, partindo
do indivíduo isolado e de seu pensamento até alcançar o “pensamento em si” em termos
abstratos. Pois segundo Mannheim (1952, p.3-4):
De acordo com o contexto particular da atividade coletiva de que participam,
os homens propendem a ver diferentemente o mundo que os rodeia. Do
mesmo modo que a pura análise lógica separou o pensamento individual de
sua situação dentro de um grupo, também separou o pensamento da ação. E
fê-lo baseando-se na suposição tácita de que essas conexões inerentes e
sempre existentes na realidade, entre o pensamento, de um lado, e do outro o
grupo e a atividade, ou eram insignificantes para o pensamento “correto” ou
destacáveis dessas fundações, sem que daí resultasse qualquer dificuldade.
Desta forma, Mannheim se propõe a identificar e isolar para análise vários tipos de
pensamento e os relacionar aos grupos nos quais surgiram. Isto porque ele se preocupa com o
surgimento de um método analítico que sirva para demonstrar os diversos tipos de
pensamento (para que se possa sustentar que um determinado tipo de pensamento é feudal,
burguês ou proletário, liberal, socialista ou conservador), isto aliado a um critério que forneça
um modo de controlar a demonstração. Assim, destaca a necessidade de elaborar hipóteses
que possam ser utilizadas como base de estudos indutivos. Dentre os seus objetivos de
pesquisa, destacam-se, primeiro, “refinar a análise do significado na esfera do pensamento,
que termos grosseiramente indiferenciados sejam gradualmente suplantados por
caracterizações mais exatas e pormenorizadas dos vários estilos de pensamento”; e segundo,
“aperfeiçoar a técnica de reconstrução da história social até que ao invés de perceber fatos
dispersos e isolados, possamos observar a estrutura social no seu todo, isto é, a trama de
forças em interação de que se originaram os vários modos de observar e pensar as realidades”.
De acordo com os critérios expostos, o conceito de “ideologia” é entendido como
produto do conflito político. Isto porque Mannheim concebe a discussão política como
possuidora de um caráter fundamentalmente diverso da discussão acadêmica, uma vez que
não busca somente ter razão, mas também demolir a base da existência social e intelectual do
adversário.
A discussão política penetra, por isso, mais profundamente nos alicerces
existenciais do pensamento do que a discussão que pensa somente em função
de alguns poucos “pontos de vista” selecionados, considerando apenas a
“significação teórica” de um argumento. O conflito político que é, desde o
começo, uma forma racionalizada de luta pelo predomínio social, ataca o
status social do adversário, seu prestígio público e sua confiança em si
próprio. É difícil decidir nesse caso se a sublimação ou substituição das
armas mais antigas do conflito, o uso direto da força e opressão, constitui de
fato um melhoramento fundamental na vida humana. É certo que,
exteriormente, é mais difícil suportar a opressão física, mas o desígnio de
aniquilamento psíquico que a substituiu em muitos casos é, talvez, ainda
mais intolerável. Não é pois de estranhar que, particularmente, nesta esfera, a
refutação teórica se tenha transformado gradualmente num ataque muito
mais fundamental a toda situação de vida do adversário, e que com a
destruição de suas teorias se espere solapar-lhe a posição social
(MANNHEIM, 1952, p.35).
Mannheim apresenta o conceito de “ideologia” relacionado ao conflito político porque
“foi nas contendas políticas que os homens perceberam, pela primeira vez, as motivações
coletivas inconscientes que sempre orientaram o pensamento”. Segundo ele, a discussão
política é algo mais do que uma argumentação teórica, “é o arrancar dos disfarces, o
desmascaramento daqueles motivos inconscientes que ligam a existência grupal a suas
aspirações culturais e seus argumentos teóricos”.
O conceito de “ideologia” reflete uma das descobertas que surgiram do
conflito político, a saber, que os grupos dominantes podem estar tão ligados,
em seu pensamento, aos interesses decorrentes de uma situação que se
tornam simplesmente incapazes de perceber certos fatos que lhes solapariam
o senso de domínio. A palavra “ideologia” implica o conceito de que, em
certas situações, o inconsciente coletivo de determinados grupos obscurece o
verdadeiro estado da sociedade, tanto para esses grupos como para os demais
e que, por isso mesmo, a estabiliza (MANNHEIM, 1952, p.36).
Por meio da análise de sentido do termo “ideologia”, considerando os vários
significados cambiantes nele misturados até atingir uma definição mais precisa das variações
de sentido do conceito que, de certo modo, prepara, segundo Mannheim, o caminho para uma
análise sociológica e histórica do termo. Análise que revelará que, de um modo geral, existem
dois significados distintos e separáveis do termo “ideologia”, o particular e o total.
Em sentido particular, “ideologia” enquanto conceito faz sua análise das ideias num
nível puramente psicológico, pois o termo é utilizado para denotar que as ideias e
representações avançadas de um oponente são consideradas com ceticismo e vistas como
disfarces mais ou menos conscientes da natureza real de uma situação, cujo verdadeiro
reconhecimento contrariaria os interesses do oponente. Assim, Mannheim afirma que neste
sentido “ideologia” é concebida como deformações que abrangem uma vasta gama de
variações – das mentiras conscientes aos disfarces semiconscientes e mesmo inconscientes.
Por sua vez, em sentido total, “ideologia” opera num nível noológico, uma vez que a
referência não é a casos isolados de conteúdo de pensamento, mas a sistemas de pensamento
fundamentalmente divergentes e a modos de experiência e interpretação profundamente
diversos. Neste sentido, refere-se à ideologia de uma época, de um grupo histórico-social
concreto, ou seja, consideram-se as características e a estrutura total do espírito dessa época
ou desse grupo. Enquanto em sentido particular, presume-se que certos interesses sejam a
causa de determinada ideologia, compreendida como mentira ou ilusão. Já em sentido total,
pressupõe-se que existe uma correspondência entre dada situação social e dada perspectiva.
Neste caso, conforme Mannheim, conquanto seja necessária uma análise de constelações de
interesse, ela visará, não estabelecer conexões causais, mas caracterizar a situação total. Em
outros termos, a psicologia do interesse tende a ser substituída por uma análise da
correspondência entre a situação a estudar e as formas de conhecimento.
Segue-se daí que o indivíduo só pode ser considerado portador de uma
ideologia enquanto tratarmos daquela concepção de ideologia que, por
definição, dirige-se mais a conteúdos destacados do que à estrutura total do
pensamento, desmascarando falsas maneiras de pensar e denunciando
mentiras. Mas, desde que se usa a concepção total de ideologia, procuramos
reconstruir a perspectiva inteira de um grupo social, e nem os indivíduos
concretos, nem sua soma abstrata podem legitimamente ser considerados
portadores desse sistema de pensamento ideológico como um todo. O objeto
da análise, nesse nível, é a reconstrução da base sistemática teórica
subjacente aos juízos do indivíduo. As análises das ideologias, nessa acepção
particular, que tornam o conteúdo do pensamento individual em grande parte
dependente dos interesses do sujeito, nunca poderão realizar essa
reconstrução básica da perspectiva inteira de um grupo social. Na melhor das
hipóteses, revelarão os aspectos psicológicos coletivos da ideologia ou
imprimirão algum progresso à psicologia das massas, tratando, ou das
diferentes condutas dos indivíduos na multidão, ou dos resultados da
integração multitudinária das experiências psíquicas de muitos indivíduos. E,
conquanto o aspecto coletivo-psicológico possa muitas vezes aproximar-se
dos problemas da análise ideológica total, jamais dará a solução exata de
suas questões. Uma coisa é saber até que ponto minhas atitudes e juízos são
influenciados e afetados pela coexistência com outros seres humanos, bem
outra saber quais as consequências teóricas de meu modo de pensamento que
são idênticas às de meus companheiros de grupo ou de camada social
(MANNHEIM, 1952, p.54-55).
O segundo conceito apresentado por Mannheim para compor o par básico com o de
“ideologia” é o conceito de “utopia”. E segundo Mannheim (1952, p.179), “um estado mental
é utópico quando é incongruente com o estado dentro do qual ocorre”, em outras palavras,
utópicas são “as orientações que transcendam a realidade e que, ao serem postas em prática,
tendam a destruir, parcial ou completamente, a ordem de coisas existentes em determinada
época”.
A distinção entre os estados mentais utópico e ideológico é realizada por Mannheim
ao limitar o significado de “utopia” ao tipo de orientação que transcende a realidade e que, ao
mesmo tempo, rompe os laços da ordem existente.
É possível voltar-se alguém para objetos alheios à realidade, que
transcendem a existência real – e, mesmo assim, continuar a perceber e
manter a ordem de coisas existentes. No decorrer da história, o homem
ocupou-se mais amiúde com objetos que transcendiam o âmbito de sua
existência do que com os que lhe eram imanentes, e, a despeito disso, as
formas reais e concretas da vida social foram assentadas em estados mentais
“ideológicos”, incongruentes com a realidade. Semelhante orientação
incongruente vinha a ser utópica quando, além do mais, tendia a romper os
limites da ordem existente (MANNHEIM, 1952, p.179).
Como pode ser observado, a distinção entre “utopia” e “ideologia” não está somente
no se orientar por ideias que transcendem a ordem existente, é possível assim proceder sem
que com isto a “ideologia” funcione como “utopia”, pois as “ideologias” podem ser
adequadas a determinados estágios da existência, enquanto se integrarem harmoniosa e
organicamente na concepção do mundo característica deste período, afirma Mannheim. As
“ideologias” atuam utopicamente quando oferecem possibilidades revolucionárias. De acordo
com Mannheim (1952, p.180): “Só no momento em que certos grupos sociais incorporaram
essas imagens desiderativas na sua conduta real, tencionando pô-las em prática, essas
ideologia se transformaram em utopias”.
A mentalidade utópica se concentra de tal forma em declarar que terminada ordem é
má e em razão disto deve ser destruída e transformada numa nova ordem supostamente
melhor que acaba por perder a capacidade de compreender acertadamente uma situação real
na sociedade. Isto ocorre, segundo Mannheim, em razão do pensamento utópico se empenhar
tanto em demonstrar que as ideias do adversário político são errôneas que, sem ter
consciência, percebe apenas aqueles elementos da situação que tendem a negar as ideias do
adversário e a afirmar as suas.
Esta não percepção da situação real por parte da mentalidade utópica de certo modo
remete ao que foi amplamente discutido no capítulo anterior sobre o processo de
“imanentização” ou de “secularização” conforme exposto por Voegelin.
Retomando o conteúdo abordado no capítulo anterior, segundo Voegelin, neste
processo de imanentização há o problema do eidos da história. E “a tentativa de construir um
eidos da história conduzirá a imanentização falaciosa do eschaton cristão”. Isto conforme é
resumido por Voegelin (1982, p.93), pode ser observado no avanço do cristão que peregrina
neste mundo, na sua busca por santificação da vida, ações que se constituem num movimento
rumo a um telos, uma meta. E essa meta, a visão beatífica, é um estado de perfeição. Daí, no
simbolismo cristão, podem-se distinguir o movimento, como seu componente teleológico, e
um estado de valor máximo, como seu componente axiológico. Os dois componentes
ressurgem nas variantes da imanentização, podendo, por conseguinte, ser classificados como
variantes que, em seu simbolismo, acentuam seja o componente teleológico, seja o
componente axiológico, ou ainda combinam ambos. No primeiro caso, quando a ênfase recai
fortemente sobre o movimento, sem que haja clareza acerca da perfeição final, o resultado
será a interpretação progressista da história. O objetivo não precisa ser esclarecido porque os
pensadores progressistas, homens como Diderot ou D’Alembert, presumem a seleção de
fatores desejáveis como padrão e interpretam o progresso como um aumento qualitativo e
quantitativo do bem presente – o “maior e melhor” do slogan simplificador. Essa é uma
atitude conservadora, a qual se pode tornar reacionária a menos que o padrão original seja
ajustado à situação histórica em fluxo. No segundo caso, quando a ênfase é posta
incisivamente sobre o estado de perfeição, sem nitidez acerca dos meios necessários para sua
realização, o resultado será o utopismo. Ele pode tomar a forma de um mundo de sonho
axiológico, tal como na utopia de More, quando o pensador ainda se mantém consciente de
que o sonho é irrealizável e das razões porque o é; ou, como fruto de um crescente
analfabetismo teórico, pode assumir a forma de vários idealismos sociais, tais como a
abolição da guerra, da distribuição desigual da propriedade, do medo e da necessidade. E,
finalmente, a imanentização pode-se estender à totalidade do símbolo cristão. O resultado será
então o misticismo ativo de um estado de perfeição, a ser atingido através da transfiguração
revolucionária da natureza do homem, tal como, por exemplo, no marxismo.
Esta discussão se aplicada a modos de pensar do tipo representado pelo pós-
humanismo serve para identificação dos dois movimentos. O movimento teleológico pode ser
observado na crença de que o próximo estágio na evolução da espécie humana será operado
pela cultura e não pela natureza, enquanto fenômeno biológico, exposto de outra maneira, a
humanidade progredirá através do conhecimento científico até um telos, um estado que
transcenderá a condição humana atual como uma condição beatífica ou de perfeição. Por sua
vez, o movimento axiológico, que enfatiza este estado de perfeição mesmo sem a nitidez
acerca dos meios necessários para sua realização. Algo que o caracteriza como utopismo, uma
vez que, perde o contato com o que é real e se concentra apenas em afirmar a imperfeição da
ordem atual e a necessidade de que mesma venha a ser superada. Ao mesmo tempo, que tal
noção oculta ou mantém inconsciente o elemento ideológico transcendente que seja deseja por
em prática como ideal realizável de uma ordem perfeita.
3.4 Ascese intramundana e secularização
A “ascese secular” foi um tema explorado por Weber em suas pesquisas sobre a
gênese da Modernidade, tomado em sua relação com o “protestantismo ascético”, vertente do
protestantismo evidentemente relacionada, segundo as pesquisas de Weber, com traços
decisivos da Modernidade.
Dificilmente, em qualquer narrativa da gênese da Modernidade, a reforma
luterana não ocupa um lugar central: trata-se de verdadeiro topos das
ciências sociais. No dizer de Hans Joas, a correlação entre os dois
fenômenos pode ser tomada até como “metanarrativa da modernização
protestante” no interior da qual ele divisa nada menos que seis modelos com
diferentes correlações de fenômenos: 1) a Jellineck tese (protestantismo e
direitos humanos), 2) a Hintze tese (protestantismo e Estado burocrático), 3)
a Troeltsch tese (protestantismo e individualismo religioso), 4) a Merton tese
(protestantismo e ciência moderna), 5) a Dewey tese (protestantismo e
democracia) e, naturalmente, 6) a Weber tese (protestantismo e capitalismo)
(SELL, 2013, p.216).
Segundo Sell (2013, p.217), embora o tema do protestantismo ocupe um lugar
destacado na pesquisa de Weber, ele não representa um fim em si mesmo, mas somente uma
variável explicativa. O interesse de Weber pelo protestantismo ascético, embora vital, é
determinado em função de dois temas que o transcendem e que representam o centro de sua
pesquisa: o capitalismo e o racionalismo.
Logo no parágrafo inicial da introdução de A ética protestante e o espírito do
capitalismo, Weber (2003, p.23) revela o que está no centro dos interesses da sua pesquisa
sobre religião e economia:
Ao estudarmos qualquer problema da história universal, o produto da
moderna civilização européia estará sujeito à indagação sobre a que
combinações de circunstâncias se pode atribuir o fato de na civilização
ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como
queremos crer, apresentam uma linha de desenvolvimento de significado e
valor universais.
Com isto em foco, Sell (2013, p.7) explica que Weber, tendo em vista esse insight,
após seu estudo seminal sobre a relação entre o ethos do protestantismo ascético e a moderna
concepção de vida profissional (realizado entre 1904 e 1905), amplia as suas pesquisas na
direção de uma investigação comparativa entre as religiões mundiais. Sell (2013, p.12)
destaca também que Weber aponta para análise dos caminhos e especificidades que a
racionalização adquiriu ao longo de um processo histórico amplo e diferenciado que ocorre,
primordialmente, no interior das grandes religiões mundiais. Isto consiste numa
racionalização como processo cultural que atravessa diferentes civilizações. E ampliando esta
discussão, Sell (2013, p.12-13) acrescenta:
Trata-se, portanto, de dois planos de análise, que podemos denominar de
“societário” e “cultural”. Pela via societária, Weber busca descrever como
emerge, no contexto da Modernidade, a institucionalização de padrões de
ação racionais específicos que constituem esferas de valor e ordens sociais
movidas por sua legalidade própria (mercado, Estado, arquitetura, arte,
guerra etc.). Quanto à racionalização em seu sentido cultural, uma nova
gama de distinções da maior importância precisa ser percebida. Weber
menciona que “se trata novamente de identificar a peculiaridade específica e
explicar a gênese do racionalismo ocidental e, no interior deste, do
racionalismo moderno”. A sentença aponta aqui para duas tarefas que
envolvem duas problemáticas distintas: a primeira é a determinação da
especificidade (problemática comparativo-tipológica) e a segunda é a
identificação da gênese (problemática sócio-histórica) dos processos de
racionalização cultural. Pelo primeiro, ele adota uma perspectiva sincrônica
(cultural-comparativa) que desemboca na caracterização da especificidade
do racionalismo na sua versão ocidental, enquanto pela perspectiva
diacrônica (genético-cultural) ele estabelece o processo de gênese histórica
do racionalismo moderno.
Há ainda alguns pontos importantes esclarecidos por Sell (2013) no tocante ao escopo
da pesquisa weberiana. Dentre estes, a importância de se compreender que Weber não
percebia o racionalismo como exclusividade ocidental, o que, segundo ele, ocorria eram
diferentes processos de racionalização que podiam ser verificados, nos mais diversos graus e
direções, em distintas configurações sociais e culturais e, justamente, através da comparação
com outros processos civilizacionais é que Weber extrai as peculiaridades do racionalismo
ocidental. E, além deste ponto, há as categorias weberianas de “racionalidade” e
“racionalização” como representativas de “um fio condutor privilegiado, uma chave analítica
destacada para reconstrução do argumento que estrutura a Sociologia weberiana”. A
“racionalização” não é um tema secundário, mas representa o problema nuclear da Sociologia
weberiana. Em síntese, estas categorias se vinculam a vasta investigação histórico-empírica de
Weber, que o levou a se aprofundar nas grandes religiões do mundo, não como um esforço de
compreensão destas civilizações enquanto tais, mas como instrumento comparativo para
entender o caráter próprio do mundo ocidental e moderno. Assim, destaca Sell (2013, p.9),
“que uma teoria (abstrata) da racionalidade e (empírica) da racionalização é, em última
instância, subsídio (típico-social) construído por Weber tendo em vista entender as formas de
vida racionais que permeiam o mundo em que vivemos”.
E de forma específica no tocante à relação entre protestantismo ascético e economia
capitalista, salienta Sell (2013, p.228), Weber longe de afirmar que a Reforma isoladamente
produziu o “espírito capitalista” ou o “capitalismo inteiro” (enquanto sistema econômico), ao
contrário, pois claramente distinguia entre “forma” (ou sistema) e “espírito” (ou conduta) do
capitalismo. Isto de tal modo que o fator a ser explicado em sua pesquisa tinha a ver apenas
com o “espírito” (ou conduta) capitalista e, ainda assim, não como conjunto ou totalidade,
mas apenas um dos elementos formadores do “espírito capitalista”, a ética ou ethos
profissional, que, em seu entendimento, vinculava-se a “ascese intramudana” de alguns
grupos protestantes, classificados por Weber como ascéticos, porém representando um desvio
do ascetismo no sentido do monasticismo católico, cujo sentido sempre foi extramundano.
Weber identificou em grupos protestantes (puritanos, batistas, quakers e etc) que
possuíam a crença numa vocação divina para atuar no mundo para glória de Deus, bem como
a necessidade de buscar a “certeza da salvação”, um tipo de ascese secular. Esta ascese
possuía o efeito prático de disciplinar a vida deste indivíduo de tal modo a fazê-los
desempenhar as suas atividades com zelo e empenho ao ponto de não desperdiçar tempo e
com o entendimento de que o trabalho que estava sendo realizado tinha significado religioso
semelhante ao realizado por clérigos em contexto eclesiástico.
Weber (2003, p.117) examina “a ligação entre as ideias religiosas fundamentais do
protestantismo ascético e suas máximas sobre a conduta econômica cotidiana”. Para efeito dos
interesses desta pesquisa em particular sobre noções religiosas, que em sua forma
secularizada, continuam influenciando o pensamento e as ações das pessoas na Modernidade,
isto é importante. E a importância jaz principalmente, quando Weber afirma que um elemento
constitutivo do “espírito capitalista”, “a ética profissional” especificamente burguesa, bem
como o traço “ascético” que lhe é inerente, possui vínculos com um ethos protestante ascético
(uma noção religiosa), conservando sua influência sobre a conduta do trabalho até que o
capitalismo atual pudesse a dispensar. Como ilustração para o que está sendo dito, leia-se uma
citação de A ética protestante e o espírito do capitalismo:
A ênfase da significação ascética de uma vocação fixa forneceu uma
justificativa ética para moderna divisão do trabalho em especialidades. De
modo semelhante, a interpretação providencial da obtenção do lucro
justificou as atividades dos homens de negócios” (WEBER, 2003, p.123).
Aqui Weber aponta o vínculo entre a “significação ascética de uma vocação fixa” e a
“moderna divisão do trabalho em especialidades”, e ainda “a interpretação providencial da
obtenção do lucro” e “as atividades dos homens de negócios”, tais noções religiosas
produziram uma conduta, uma ética profissional, desejável ao moderno sistema econômico
capitalista. Inicialmente, uma conduta religiosamente motivada, “promover a glória de Deus”,
“cumprir neste mundo a vocação designada por Deus”, porém uma vez que tal motivação
produz a conduta de vida metódica compatível, constituindo-se um dos elementos formadores
do “espírito capitalista”, cai no esquecimento, ou, em termos psicanalíticos, torna-se
inconsciente.
Em outros termos, noções religiosas serviram como motivação consciente para certo
modo de agir no mundo do trabalho, porém mesmo com o seu desaparecimento continua
exercendo de forma mecânica a sua influência sobre a conduta desejável no mundo do
trabalho do moderno sistema capitalista. Isto descreve o que foi exposto no capítulo anterior
como secularização ou mundanização de conceitos teológicos, sua transferência de uma esfera
transcendente para uma imanente. Se a ascese cristã medieval se caracterizava pela
contemplação como vislumbre ou antecipação de realidades que transcendem o mundo, então
a ascese protestante moderna ao valorizar o trabalho (em sentido secular, tarefas cotidianas,
atividades profissionais) como cumprimento de uma vocação (um chamado divino para o
indivíduo que deveria ser atendido no mundo) é um vislumbre da presença divina no mundo,
o divino imerso na imanência histórica, uma “ascese secular”.
3.5 Conclusão
Algo que deve ser destacado neste momento é que na análise filosófica apresentada no
capítulo três desta pesquisa fica evidente o potencial elucidativo do conceito de secularização
para se compreender a passagem da escatologia para história, principalmente porque o
conceito de secularização descreve a transferência de elementos da transcendência para a
imanência histórica. Uma vez que esta transferência está consumada. Na análise sociológica,
constatam-se as transformações operadas tanto na consciência quanto nas ações dos
indivíduos que compõem a sociedade.
As teorias sociológicas clássicas sobre a secularização perceberam este fenômeno em
termos de abalos na estrutura de plausibilidade erguida sobre um fundamento religioso. Isto
no que se refere ao papel das narrativas religiosas no tocante a explicar e fornecer sentido a
realidade. Este abalo na estrutura religiosa de plausibilidade ocasionou o surgimento de uma
vasta gama de tentativas de definição da realidade, religiosas ou não, que são concorrentes em
busca de obter a adesão dos indivíduos na sociedade ou no mínimo sua atenção. Tal fenômeno
de pluralismo se deu em nível socioestrutural. E Berger percebeu o impacto do abalo
provocado por ele sobre a consciência do sujeito moderno e o descreveu como uma
“secularização da consciência”.
Uma “consciência secularizada”, em termos psicanalíticos, pode ser o elemento
repressor e mantém a “inconsciência religiosa” imperceptível. A expressão “inconsciência
religiosa” foi elaborada neste texto como tentativa de explicar o fenômeno de permanência de
noções religiosas inconscientes (exatamente por terem sido transferidas para uma esfera
imanente e secular) que persistem em influenciar o pensamento e as ações de grupos na
sociedade moderna.
“Como o homem é uma criatura que vive primordialmente na história e na sociedade,
a ‘existência’ que lhe constitui o ambiente nunca é ‘existência em si’, mas sempre uma forma
histórica concreta de existência social” (MANNHEIM, 1952, p.180). E como a história não
pode ser humanamente experimentada em sua totalidade, é parcialmente conhecida. A história
enquanto orientação para o futuro, para um telos, alimentando-se de conteúdos ideológicas, é
real somente na consciência daqueles que compartilham das mesmas convicções ideológicas.
E quando se perder a capacidade de perceber o que é estritamente ideológico em
contraposição à realidade concreta (a ordem histórica e socialmente estabelecida em
determinada época, que não existe apenas na imaginação de certos indivíduos ou grupos) se
caminha por um horizonte utópico. Isto principalmente quando o conteúdo ideológico opera
num movimento axiológico, que enfatiza um estado de perfeição futura mesmo sem a nitidez
acerca dos meios necessários para sua realização.
Sob influência de um estado de consciência utópico, os grupos na sociedade acreditam
possuir o poder de transpor para a história ideias que transcendem o estado de realidade
existente. Pois a utopia se orienta para um horizonte futuro, em razão disto, inexistente na
realidade, existindo somente enquanto ideologia, um conteúdo de consciência no qual se
acredita como realizável. Todavia, devido à incongruência entre a utopia e a realidade, se for
posta em prática resultará na destruição parcial ou total da ordem das coisas existentes em
determinada época. É natureza da consciência utópica a perspectiva revolucionária, pois
propõe a destruição ou transformação da ordem real existente para que ceda lugar a um
“estado de perfeição futura”.
Está claro que até este momento que o interesse da pesquisa sociológica sobre o
fenômeno da secularização voltou a sua atenção para a relação entre as religiões e a sociedade
secularizada. Isto fica evidente tanto nas teorias clássicas quanto no mais recente
posicionamento assumido por Berger em favor do retorno do sagrado. Nas teorias clássicas,
esta relação se apresenta enquanto domínio da secularização sobre os espaços na sociedade
outrora dominados pelas religiões, dentre estes o domínio da consciência. Na teoria do retorno
do sagrado, esta relação se manifesta enquanto esforço por parte dos religiosos para
reconquistar os domínios perdidos.
Todavia, nesta pesquisa, a relação entre religiões e sociedade secularizada deixa de ser
o interesse principal, pois este cede lugar à sociedade secularizada, porém inconscientemente
agindo motivada por noções religiosas que foram transpostas para o domínio secular.
CAPÍTULO 4
O IMAGINÁRIO PÓS-HUMANISTA: O ESCHATON TECNOGNÓSTICO
Neste capítulo, buscar-se-á o objetivo de demonstrar a relação analógica entre o
imaginário pós-humanista (com sua fonte inspiradora, a tecnociência contemporânea) e os
elementos constitutivos de uma escatologia gnóstica.
Considerando isto, o capítulo será iniciado com uma exposição sobre o problema da
aniquilação escatológica do mundo. Isto ajudará ao leitor deste texto a identificar quais são os
elementos tipificadores de um pensamento claramente escatológico. Na sequência, será dada
maior atenção ao modo como, nesta pesquisa, foi estabelecida a relação entre gnosticismo e
pós-humanismo, ou seja, não como uma relação causal, mas como uma relação analógica.
Todavia, mesmo não tendo que demonstrar nenhum tipo de relação causal, reconhece-se a
significativa influência dos diversos gnosticismos sobre o pensamento ocidental, algo que será
apontado no tópico seguinte. E, por fim, serão evidenciados os elementos que ganham maior
relevo no imaginário pós-humanista e, assim, ilustram melhor a sua relação análogo com uma
lógica gnóstica.
4.1 O problema da aniquilação escatológica do mundo
Durkheim (2008, p.37), em As formas elementares de vida religiosa, afirmou que os
primeiros sistemas de representações que o ser humano produziu do mundo e de si mesmo são
de origem religiosa, concluindo que não há religião que não seja, ao mesmo tempo, a
cosmologia e a especulação sobre o divino. “Se a filosofia e as ciências nasceram da religião é
porque a própria religião, no princípio, fazia as vezes de ciência e de filosofia”.
Isto evidencia que as religiões historicamente realizaram o papel de primeiras
intérpretes de fenômenos que na Modernidade serão objeto de estudos das variadas ciências.
Assim é possível falar sobre a religião como um tipo de conhecimento ou forma de interpretar
a realidade histórica, social, econômica, biológica, existencial e etc. E que em determinadas
épocas e lugares reinaram como única forma de se saber a respeito destes vários fenômenos.
Entendida desta maneira, pode-se concluir que a religião e a ciência moderna não são
necessariamente adversárias, apenas utilizam conceitos e abordagens diferentes acerca dos
mesmos fenômenos. Como ambas são tentativas de explicar a realidade, constituem-se
diferentes formas de interpretações desta. E, deste modo, utilizam a linguagem, porém através
de símbolos que fazem com pareçam que estão falando uma língua estrangeira uma para
outra, e para que possam se compreender, necessitam ser mutuamente traduzidas.
A religião interpreta a realidade através da linguagem dos mitos. Espere um pouco!
Mitos?! Como assim? Mito não é algo semelhante às fábulas infantis? Um conjunto de relatos
fantasiosos, fictícios?
É claro que isto necessita ser melhor explicado para que os conceitos sejam mais
precisos e claros, evitando-se assim entendimentos equivocados. Quando se afirma que a
linguagem religiosa se fundamenta em mitos, não é com o significado atribuído aos mitos
pelas pessoas no cotidiano, como se estes fossem estórias ou fábulas.
Este equívoco é compreensível, pois, durante muito tempo até em meios eruditos, esta
foi a maneira de se estudar os mitos, ou seja, como se fossem fábulas, invenção, ficção.
Todavia, Mircea Eliade oferece uma perspectiva melhor sobre este assunto no livro Mito e
realidade. Nele, desenvolve uma relevante discussão sobre o mecanismo, a função, a
evolução do mito e a forma como este se conecta as perguntas que o ser humano faz acerca do
significado do mundo e da sua existência. Bem como a compreensão das formas de
linguagem, expressão e comunicação humanas são dependentes essencialmente do mito.
Eliade começa narrando que para que o mito fosse estudado de forma a não perder de
vista a sua importância ocorreu uma mudança significativa, a partir do século XIX, no modo
como os eruditos ocidentais concebiam o mito. Este deixou de ser concebido como fábula ou
invenção para ser aceito tal qual era compreendido pelas sociedades antigas. Nestas
sociedades, o mito é uma “história verdadeira” e extremamente preciosa por seu caráter
sagrado, exemplar e significativo. Assim, Eliade (2011, p.11) oferece a sua definição de mito
nos seguintes termos:
A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser
a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um
acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do
“princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos
Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total,
o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de
uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O
mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou
plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são
conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos
“primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e
desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas
obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes
dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa
irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que
é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o
homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.
Bem, uma vez esclarecido em qual sentido o mito deve ser compreendido, fica mais
fácil aceitar o quão importante é a função que os mitos desempenham enquanto explicações
do mundo. Além disto, como, ao mesmo tempo, sofrem influências e variações quando a
realidade do mundo muda, em outros termos, afetam a realidade e são afetados por ela.
Os mitos narram uma história sagrada ocorrida em tempos primordiais, preservando
estreita relação com as origens do cosmo, a atividade criadora, a cosmogonia. Todavia,
quando os mitos são narrados através dos rituais religiosos, eles atualizam o que ocorreu nos
primórdios. Uma das formas pelas quais os mitos continuam exercendo a sua influência nas
diversas culturas através da história é por meio dos mitos de cataclismos cósmicos, as
escatologias.
“A imersão total da Terra nas Águas ou sua destruição pelo fogo, seguida pela
emersão de uma Terra virgem, simbolizam a regressão ao Caos e à cosmogonia”, afirma
Eliade (2011, p.54). O fim de um mundo decrépito que cede lugar ao novo mundo parece ser
algo distante das culturas modernas, todavia, segundo Eliade, isto é uma representação em
escala macrocósmica e com uma intensidade dramática excepcional do sistema mítico-ritual
da festa do Ano Novo. Eliade (2011, p.47) explica que “a interdependência entre o Cosmo e o
Tempo cósmico (o Tempo ‘circular’) foi sentida com tal vivacidade, que em muitas línguas o
termo que designa o ‘Mundo’ é igualmente empregado para significar o ‘Ano’”.
O “Mundo”, portanto, é sempre o mundo que se conhece e no qual se vive;
ele difere de um tipo de cultura para outro; existe, por conseguinte, um
número considerável de “Mundos”. Mas o que importa à nossa pesquisa é o
fato de, malgrado a diferença das estruturas sócio-econômicas e a variedade
dos contextos culturais, os povos arcaicos pensarem que o Mundo deve ser
anualmente renovado e que essa renovação se produz obedecendo a um
modelo: a cosmogonia ou um mito de origem, que desempenha o papel de
um mito cosmogônico (ELIADE, 2011, p.44).
A humanidade em todas as épocas e lugares tem lidado de alguma forma com a noção
de renovo do mundo, pois tal noção se vincula aos mitos cosmogônicos que recordam aos
homens como o mundo foi criado e tudo o que ocorreu posteriormente. Os mitos de origem,
embora relatem o que já ocorreu, também guardam vínculos com o futuro, pois são
igualmente projetados num futuro atemporal, principalmente no que se refere à projeção da
sua ideia da perfeição do princípio. Assim, os mitos de fim do mundo desempenham um
importante papel na história da humanidade.
A cosmogonia é o modelo exemplar de todos os tipos de “atos”: não só
porque o Cosmo é o arquétipo ideal de toda situação criadora e de toda
criação – mas também porque o Cosmo é uma obra divina, sendo, portanto,
santificado em sua própria estrutura. Por extensão, tudo o que é perfeito,
“pleno”, harmonioso, fértil, em suma: tudo o que é “cosmicizado”, tudo o
que se assemelha a um cosmo, é sagrado. Fazer bem alguma, trabalhar,
construir, criar, estruturar, dar forma, in-formar, formar – tudo isso equivale
a trazer algo à existência, dar-lhe “vida” e, em última instância, fazê-la
assemelhar-se ao organismo harmonioso por excelência, o Cosmo. Ora, o
Cosmo, repetimos, é a obra exemplar dos Deuses, é a sua obra prima
(ELIADE, 2011, p.35).
Os homens inspirados num ideal de perfeição (o mundo perfeito dos primórdios
projetado como ideal paradisíaco de um mundo futuro) proclamam a destruição do mundo
existente, o fim da ordem contemporânea, pois esta deve ser extinta para que uma nova ordem
possa ocupar o seu lugar. Todavia, a destruição da ordem vigente não faz surgir
imediatamente uma nova ordem, ao contrário instaura o caos, pois o cosmos sempre deve ser
criado, é o produto do trabalho dos deuses.
Eric Voegelin (2014, p.357) alerta: “A ordem não é um estado de coisas eterno, mas
uma transição do caos para o cosmo no tempo. Uma vez criada, a ordem requer atenção à sua
precária existência ou voltará ao caos”. No centro desta discussão está o drama da transição
do caos para o cosmos, símbolos cuja importância não foi perdida ao longo da história, isto
foi muito bem colocado por Voegelin (2014, p.358):
A renovação ritual da ordem, um dos elementos simbólicos desenvolvidos
dentro das civilizações cosmológicas, por exemplo, percorre a história da
humanidade desde o festival de Ano Novo babilônico, passando pela
renovação da berith por Josias e pela renovação sacramental do sacrifício de
Cristo, até o retornar ai principii de Maquiavel, porque a queda da ordem do
ser e o retorno a ela são um problema fundamental da existência humana.
A conexão entre cosmologia e escatologia foi percebida por A. J. Wensinck (apud
VOEGELIN, 2014, p.361), abordada em seu artigo The semitic new year and the origin of
eschatology, e expressa através de fórmulas como a escatologia é “uma cosmogonia do
futuro”. Todavia apesar de Wensinck ter percebido esta conexão, não respondeu a questão de
por que alguém iria “aplicar a cosmologia ao futuro” e, desse modo, produzir a escatologia.
Quem deu resposta a isto foi o biblista Mowinckel, dando um passo a mais e explicando que o
reino de Deus, originalmente uma presença cultual a ser renovada a cada ano, tornou-se, por
fim, o reino escatológico de Deus no final dos tempos. A análise desta conexão foi o principal
tema de seu Psalmenstudien II, cujo subtítulo é “o Festival de Entronização de Yahweh e a
origem da escatologia”. Mowinckel resumiu os resultados de sua pesquisa em duas teses: (1)
o conteúdo da escatologia deriva do Festival de Entronização cultual; e (2) a escatologia
desenvolveu-se movendo para um futuro indeterminado o que, originalmente, eram as
consequências imediatas, realizadas no curso do ano, da entronização anual de Yahweh.
Este processo se tornou relevante para o Ocidente porque é através dele que o ritual
anual de entronização de Yahweh (por meio principalmente de tradições egípcias que se
tornaram a principal fonte da aspiração imperial da dinastia davídica que criaram um
amálgama de símbolos javistas e cosmológicos) se transformou no ritual de coroação de reis
da dinastia davídica, que no dia da subida ao trono eram adotados por Yahweh como seus
filhos. Assim, “Yahweh não é mais o deus de Israel, mas o governante divino do mundo, que
estabelece a ordem entre a humanidade por meio de seu filho, o rei da casa de Davi”
(VOEGELIN, 2014, p.364). E o modo como isto evolui para noções messiânicas se resume da
seguinte forma:
Assim como o império dravídico havia surgido de Israel e ganhado vida
própria, do império davídico havia surgido o símbolo do Ungido do Senhor,
do Messias de Yahweh, com uma vida própria. As desbotadas lembranças do
apogeu mundano podiam ser preenchidas com a nova substância das
esperanças escatológicas de um rei salvador espiritual que libertaria Israel
para sempre das tribulações impostas por seus inimigos. Na verdade, como
observou corretamente Martin Buber, essa ainda era a grande queda da
existência como Povo Escolhido no presente histórico sob seu Deus, porém,
sem dúvida, foi também um passo a mais no sentido de uma humanidade no
presente histórico sob Cristo (VOEGELIN, 2014, p.367).
Este acontecimento se reveste de especial relevância para o Ocidente porque é nesta
noção que pode ser encontrada a fonte das escatologias históricas e políticas. Eliade (2011,
p.43) identificou nisto o que mais tarde se tornou a expectativa da renovação cósmica, a
salvação do mundo, através do aparecimento de um certo tipo de Rei, Herói ou Salvador, ou
mesmo de chefe político. Deste modo, embora, sob um aspecto fortemente secularizado, o
mundo moderno ainda conserva a esperança escatológica de uma renovação universal, seja
mediante a vitória de uma classe social ou mesmo de um partido ou de uma personalidade
política.
4.2 O Trans-humanismo e sua relação analógica com a escatologia gnóstica
A noção de escatologia como cosmogonia aplicada ao futuro e por sua vez vinculada à
esperança escatológica de uma renovação universal contribui para o entendimento desta
tendência no Ocidente que se manifesta por um anseio revolucionário proclamador da
destruição da ordem vigente para que ofereça lugar a uma nova ordem. Em outras palavras,
isto está intimamente relacionado com uma inconsciência religiosa.
Assim, como expresso acima por Eliade, sob um aspecto fortemente secularizado, o
mundo moderno ainda conserva a esperança escatológica de uma renovação universal. O que
claramente pode ser observado no exemplo escolhido por esta pesquisa para ilustrar este
fenômeno, o trans ou pós-humanismo. Pois, em resumo, compreende-se que o pós-
humanismo é a ideia de que a humanidade pode ser transformada, transcendida ou eliminada
pelos avanços tecnológicos.
No primeiro capítulo, já foi realizada uma apresentação de alguns elementos que estão
associados ao movimento trans-humanista. Todavia, quando se fizer necessário serão
acrescentadas mais informações ao longo deste capítulo. O movimento trans-humanista
começa a se constituir a partir dos temores surgidos no início do século XX no tocante ao
futuro da humanidade. Temores relacionados com as guerras mundiais, os riscos da
contaminação nuclear ou poluição ambiental. Em meio a este cenário, fortalecem-se a
preocupação com o destino da humanidade e o anúncio sobre o virtual fim desta era humana.
Concepções futuristas começam a prever o eventual abandono da condição humana nos
próximos séculos, isto acompanhado por uma recusa em aceitar as limitações tradicionais que
definiam a condição humana, tais como as enfermidades, o envelhecimento e a morte.
O panorama contemporâneo sobre o trans-humanismo é iniciado, quando em 1988
Max More e Tom Bell começaram, com alguns exemplares da Extropian Magazine, o
embrião do The Extropian Institute fundado em 1991. O recém fundado Instituto Extropiano
conseguiu agregar a si nomes de prestígio como os de Hans Moravec, Marvin Minsky e Eric
Drexler.
O Instituto Extropiano acabou cedendo lugar a um agrupamento trans-humanista mais
representativo e consistente, a World Transhumanistic Association. Esta associação foi
fundada em 1998 por Nick Bostrom e David Pearce e, em 2008, congregava cerca de 15
entidades, possuindo quase quatro mil sócios de uns cem países, passando a se constituir na
plataforma organizacional para grupos interessados em promover o trans-humanismo. A
World Transhumanistic Association incluiu em seus quadros pesquisadores de várias
empresas e sociedades científicas como a Arcor Life, o Foresight Institute, o Singularity, The
Society of Neuronal Prostethic, e etc.
A Humanity+4 (atualmente a principal entidade representativa do movimento trans-
humanista, cujo nome substituiu o da World Transhumanist Association) apresenta como sua
missão a defesa do uso da tecnologia para expandir as capacidades humanas, expondo, em
outras palavras, o desejo de que as pessoas sejam aperfeiçoadas. Isto melhor explicado na
declaração de missão da entidade, significa, nas palavras de Natasha Vita-More (diretora
executiva da Humanity+), que tecnologias que intervêm na fisiologia humana para curar
doenças e reparar lesões se aceleraram a um ponto no qual elas também podem aumentar o
desempenho humano fora dos domínios do que é considerado “normal” para humanos. Essas
tecnologias são chamadas de emergentes e especulativas e incluem nanotecnologia,
nanomedicina, biotecnologia, engenharia genética, clonagem de células-tronco e transgênese,
para mencionar alguns exemplos. Outras tecnologias que podem ampliar e expandir as
capacidades humanas fora da fisiologia incluem a inteligência artificial, inteligência geral
artificial, robótica e integração cérebro-computador, que formam o domínio da biônica, e
podem ser usadas para desenvolver próteses corporais completas. No tocante a expansão das
capacidades humanas, Vita-More afirma que esta noção se refere aos esforços de conduzir o
humano para além do que é considerado normal. Em outros termos, ela compreende que o
aprimoramento humano, tanto terapêutico quanto seletivo, desafia o status normal e visa
expandir as capacidades humanas que aumentam as funções fisiológicas humanas e estendem
a vida útil máxima. Dispositivos externos, como smartphones, relógios inteligentes, monitores
portáteis, óculos do Google, etc., estão expandindo as capacidades humanas. No campo da
tecnologia médica, o implante coclear e os olhos biônicos romperam o teto de vidro no
4 Informações sobre esta entidade e sua missão podem ser encontradas em seu site na internet,
https://humanityplus.org.
determinismo biológico. A medicina regenerativa, terapias com células-tronco, próteses
inteligentes, engenharia genética, nanomedicina, criônica, nootrópica, neurofarmacologia, já
fizeram isso.
A Humanity+ em sua FAQ Transhumanist5 apresenta a distinção entre trans-
humanismo e pós-humanismo de modo que “trans-humano” se refere a uma transição
intermediária entre o humano e um possível futuro pós-humano, significa “humano
transicional”, uma transição do humano para o pós-humano. Por sua vez, “pós-humano” são
os futuros seres cujas capacidades básicas excedem tão radicalmente as dos humanos atuais,
que não são mais inequivocamente humanos pelos padrões atuais.
De imediato fica evidente a expectativa do fim de uma era e o início de uma nova cuja
realização se dará através dos esforços dos próprios seres humanos no sentido de transcender
da condição humana atual para uma condição pós-humana. Esforçar-se para que esta
expectativa se realize faz do indivíduo um trans-humanista, alguém que crer na promessa de
que as tecnologias permitirão superar as limitações humanas fundamentais. Assim, acredita-se
que o uso dos meios tecnológicos permitirão ir além do que é concebido como “humano”.
A meta ou o telos é atingir a condição pós-humano. Mesmo não havendo clareza no
tocante ao que em termos reais isto significa, o imaginário trans-humanista sobre este
acontecimento constantemente propaga a superação da atual condição biológica. Esta
superação é imaginada indo desde a fusão entre o organismo e a máquina; passando pelo
redesenho do organismo humano através do uso da nanotecnologia avançada ou seu
aprimoramento radical por meio de alguma combinação de tecnologias como engenharia
genética, psicofarmacologia, terapias antienvelhecimento, interfaces neurais, ferramentas
avançadas de gerenciamento de informações, drogas para melhorar a memória, e técnicas
cognitivas; até, em sentido radical, abandonar completamente os corpos e viver como padrões
de informação em vastas redes de computadores super-rápidas, onde as mentes podem ser não
apenas mais poderosas que as dos seres humanos, mas também podem empregar diferentes
arquiteturas cognitivas ou incluir novas modalidades sensoriais que possibilitem maior
5 A FAQ Transhumanist pode ser encontrada na página da Humanity+,
https://humanityplus.org/philosophy/transhumanist-faq/, segundo a entidade, foi concebida como uma tentativa
de desenvolver uma articulação consensual de base ampla sobre os fundamentos do transumanismo
responsável. O objetivo era um texto que pudesse servir tanto como um guia para aqueles novos no campo e
como um trabalho de referência para os participantes mais experientes.
participação em suas configurações de realidade virtual, as mentes pós-humanas podem ser
capazes de compartilhar memórias e experiências diretamente, aumentando muito a
eficiência, a qualidade e os modos pelos quais os pós-humanos poderiam se comunicar uns
com os outros.
Diante do exposto, o que está sendo defendido ao longo desta pesquisa é que o
movimento trans-humanista preserva em seu modo de pensar e agir no tocante a realização de
um futuro pós-humano uma relação analógica com uma escatologia gnóstica.
Ao afirmar a existência desta relação analógica, esta pesquisa não se obriga a ter que
demonstrar qualquer relação causal entre gnosticismo e trans-humanismo. Ao invés disto
intenta demonstrar a semelhança entre gnose e trans-humanismo, procedimento inerente à
analogia. Pois, segundo Nicola Abbagnano (2007, p.55), o termo analogia possui dois
sentidos fundamentais: o primeiro, “o sentido próprio e restrito, extraído do uso matemático
(equivalente à proporção) de igualdade de relações”; o segundo, “o sentido de extensão
provável do conhecimento mediante o uso de semelhanças genéricas que se podem aduzir
entre situações diversas”. Deste modo, dois elementos podem não ser idênticos nem
diferentes, mas análogos, ou seja, de algum modo se assemelham e se correspondem, sem ter
o mesmo significado. Abbagnano (2007, p.56) oferece um exemplo extraído da teologia de
Tomás de Aquino, que ao discorrer sobre os significados do ser de Deus e do ser das criaturas,
demonstra a analogia existente entre estes significados:
S. Tomás distingue, com mais precisão, o ser das criaturas, separável da sua
essência e, portanto, criado, do ser de Deus, idêntico à essência e, portanto,
necessário. Esses dois significados do ser não são unívocos, isto é, idênticos,
nem equívocos, isto é, simplesmente diferentes; são análogos, ou seja,
semelhantes, mas de proporções diversas. Só Deus tem o ser por essência; as
criaturas o têm por particiação; elas, enquanto são, são semelhantes a Deus,
que é o primeiro princípio universal do ser, mas Deus não é semelhante a
elas: esta relação é a analogia.
O raciocínio está exemplificado através de um argumento de teor teológico, todavia
ajuda a compreender a lógica inerente ao raciocínio por analogia. Esta mesma forma de
raciocinar pode ser aplicada a relação entre trans-humanismo e gnosticismos. Desde modo,
fica claro que os significados de trans-humanismo e gnose não são “unívocos”, idênticos;
porém nem tão pouco são “equívocos” ou diferentes; contudo é possível afirmar a semelhança
entre eles, declarando que são “análogos”. Assim, a analogia desempenha a função de uma
prova teorética, em sentido kantiano6.
Realizados estes esclarecimentos, é o momento de efetuar uma apresentação dos
elementos que constituem o pensamento gnóstico. Inicialmente, neste tópico, será realizada
uma exposição da tipologia do pensamento gnóstico, principalmente a sua cosmologia e os
consequentes desdobramentos desta em sua escatologia, uma vez que já ficou claro que a
escatologia é a cosmologia projetada no futuro. Depois, ao longo de tópicos seguintes neste
capítulo, quando o argumento exigir, serão apresentados exemplos complementares de
elementos que constituem o pensamento gnóstico.
Como o gnosticismo é um fenômeno com uma multiplicidade (o que evidencia
diferenças entre um sistema de pensamento gnóstico e outro) surge à necessidade de traçar um
esquema que represente em justa completude e sem ambiguidade os principais elementos na
maioria dos sistemas de pensamento gnóstico. Este esquema ou tipologia é um constructo
ideal que cobre o que é mais representativo e identificador da mente gnóstica. Neste sentido,
Hans Jonas realizou esta tarefa de forma primorosa e, por este motivo, será utilizada aqui a
sua tipologia do pensamento gnóstico.
Um ponto de partida natural é o próprio termo “gnosis”. Seu significado
literal, “conhecimento”, é em nosso contexto especificado como
conhecimento secreto, revelado, e salvífico. Isso significa que é um
conhecimento de mistérios, que ele não se dá de maneira natural, e que sua
posse altera decisivamente a condição do conhecedor. Além disso, ele é,
entretanto, especificado por um conteúdo teórico particular, o mundo-objeto
desse conhecimento, e esse mundo-objeto inclui, significativamente, o papel
do próprio conhecimento dentro desse esquema: o “quê” do conhecimento
contém a explicação de sua própria origem, comunicação, e efeito prometido
(JONAS, 2017, p.408).
A palavra “gnosticismo” tem servido como um título coletivo para uma multiplicidade
de doutrinas religiosas que surgiram dentro e no em torno do cristianismo durante os
primeiros séculos do aparecimento das primeiras comunidades cristãs. O termo, conforme já
citado, é derivado da palavra grega que significa conhecimento, porém como um meio para se
obter a salvação. Todavia, como explicitado por Jonas (2003), somente os membros de um
6 Isto no tocante ao apresentado por Kant na Crítica da faculdade do juízo (§90): “Ora todos os
argumentos teóricos são suficientes, quer: 1) para demonstrações através de inferências da razão estritamente
lógicas, ou, onde isso não acontece, 2) para inferências segundo a analogia, ou se tal ainda não for o caso, ainda
3) para a opinião verossímil, ou finalmente, no mínimo 4) para a admissão de um simples princípio de
explicação, como hipótese”.
conjunto de grupos pouco numerosos se denominavam “gnósticos” ou “os conhecedores”. De
imediato, deve-se ficar claro que o “conhecimento” alusivo aos gnóstico possui um
significado marcadamente religioso ou sobrenatural, referindo-se a objetos que, indo além dos
objetos da razão, são objetos de fé.
Gnosis significava fundamentalmente conhecimento de Deus, e do que
temos dito sobre a transcendência radical da divindade se deduz que o
“conhecimento de Deus” é o conhecimento de algo por natureza
incognoscível e, portanto, se trata de uma condição que não é natural. Seus
objetos incluem tudo o que pertence ao reino divino do ser, a ordem e a
história dos mundos superiores, e o que se deriva disto: a salvação do
homem. Com objetos desta classe, o conhecimento como ato mental é muito
diferente da cognição racional da filosofia (JONAS, 2003, p.68).
É em textos patrísticos como o de Irineu que “gnosis” se torna um termo empregado
para se referir a todos os grupos religiosos que compartilhavam com este termo a sua ênfase e
certas características. “Neste sentido, podemos falar de escolas, seitas e cultos gnósticos; de
escritos e ensinamentos gnósticos; de mitos e de especulações gnósticos, e inclusive de uma
religião gnóstica” (JONAS, 2003, p.66). De modo geral, estes grupos religiosos, como, por
exemplo, a gnose valentiniana, não se reconheciam distintos dos cristãos e estavam totalmente
envolvidos na vida da igreja e se referindo a si mesmos como cristãos devotos. Esta distinção
somente começa a ganhar corpo:
Com a preocupação aumentada por uma diferenciação clara entre cristãos
ortodoxos e heréticos do século IV em diante, contudo, os cristãos
valentinianos acabaram sendo sujeitos a uma série de editos e ataques, e
posteriormente no século IV uma multidão enfurecida de agitadores cristãos
incendiou uma capela valentiniana nas margens do rio Eufrates. Não
obstante, o cristianismo místico de Valentino e dos seus seguidores causou
um impacto sobre a igreja e sobre o mundo durante esses primeiros séculos e
depois, e os valentinianos produziram uma das mais belas literaturas místicas
cristãs de todas as épocas da história da igreja (MEYER, 2007, p.116).
“Esse amplo alicerce metafísico e teológico-cosmológico do poder salvífico do
‘conhecimento’, assinalado pela aparição do termo em ambos os lados do sistema, seja do
lado do sujeito ou do lado do objeto”, como assinala Hans Jonas (2017, p.408-409), “é a
primeira característica distintiva da especulação gnóstica”.
Jonas (2017, p.409) enumera alguns temas importantes que se relacionam com o
gnosticismo. O primeiro, uma “gênese transcendental” que narra à história espiritual da
criação em termos de uma história de mundos superiores e, em última instância da própria
divindade. O segundo, o desfecho dessa gênese transcendental, algo que atua como uma
estrutura de poder que determina a condição real do homem. O terceiro tema, preparado pelos
dois primeiros, “é o homem – sua natureza, e seu lugar em ambos, naquela história passada e
neste sistema presente, sua origem no ‘além’, em conexão com o drama divino pré-cósmico,
sua condição composta e afundada aqui; sua verdadeira destinação”. E por fim, o quarto, uma
doutrina da salvação individual e universal, “as últimas coisas respondendo às primeiras, a
reversão da queda, e o retorno de todas as coisas a Deus”. Em, outros termos, esses temas são
classificáveis como um sistema religioso com uma teologia, cosmologia, antropologia e
escatologia.
A característica fundamental da teologia gnóstica é o dualismo radical que há entre o
mundo e Deus e por consequência entre o homem e o mundo. A divindade é absolutamente
transmundana, e sua natureza é distinta da natureza do universo, pois este nem foi criado e
nem é governado por ela, uma vez que o universo é a antítese da natureza divina. O mundo,
no pensamento gnóstico, é exposto como obra de poderes inferiores, os arcontes
(governantes).
O mesmo Deus transcendente se oculta de todas as criaturas e não pode ser
conhecido por meio de conceitos naturais. Seu conhecimento requer uma
revelação e uma iluminação sobrenaturais, por isto nem mesmo pode ser
expresso, salvo se for através de termos negativos (JONAS, 2003, p.76).
A transcendência da divindade é evidente no pensamento gnóstico, todavia, a
combinação paradoxal de transcendência com falibilidade parcial, segundo Jonas (2017,
p.415), uma das características da teologia gnóstica que explica sua rapidez ou necessidade de
fazer uso de formas de mito politeísta e as colocar a serviço de uma concepção
preponderantemente monoteísta. Jonas (2017, p.414-415) exemplifica esta característica no
trecho seguinte:
Não obstante, o Absoluto não está sozinho, mas está cercado por uma aura
de expressões eternas e gradativas de sua infinitude, de aspectos parciais de
sua perfeição, hipostasiadas em seres quase pessoais com nomes altamente
abstratos e formando, no todo, a hierarquia do reino divino (o Pleroma). O
progresso, ou emanação, dessa multiplicidade interna a partir do fundamento
primevo, uma espécie de autodiferenciação do Absoluto, é descrito, às vezes,
em termos de uma dialética espiritual sutil, e mais frequentemente em
termos bastante naturalista, por exemplo, sexuais. Entre as entidades
fortemente mitológicas que disso decorrem, algumas, mais concretas, se
destacam com papéis definidos na evolução posterior do drama
transcendental: o “Homem” enquanto um princípio eterno, pré-cósmico (às
vezes identificado até com o próprio Ser Primeiro); “Sofia”, geralmente a
“mais jovem” dos éons; e “Cristo” ou alguma ação similar restauradora e
salvífica. Uma especulação desse tipo sobre o Pleroma é a marca de sistemas
avançados, mas algum grau de multiplicidade nos estratos superiores do ser
é um requisito para toda metafísica gnóstica, na medida em que fornece a
condição para a passividade divina e fracasso, do qual o movimento rumo à
criação e à alienação depende.
Assim, consequentemente, a cosmologia gnóstica enfatiza o mundo como inferior e
resultado da ignorância e do delírio demiúrgico, como resultado, esta ignorância foi
incorporada ao mundo. Esta carência de conhecimento infligida pelo mundo é ativamente
preservada por seus poderes, sendo esta a característica da existência do homem no mundo,
deste modo, a restauração do conhecimento é o veículo da salvação. “Portanto, a história da
criação – uma história do eu divino [divine self] – é emanacionista; e, como o movimento é
inevitavelmente descensional, é uma história de evolução às avessas” (JONAS, 2017, p.410).
O mito gnóstico típico, como nós vimos, começa com uma doutrina da
transcendência divina em sua pureza original; depois, ele delineia a gênese
do mundo a partir da ruptura primordial desse estado abençoado, uma perda
da integridade divina, que leva à emergência de poderes inferiores que se
tornam os criadores e senhores deste mundo; depois, como um episódio
crucial nesse drama, o mito reconta a criação e o destino inicial do homem,
no qual o conflito posterior vem a se concentrar; o tema final, de fato o tema
implícito do início ao fim, é a salvação do homem, que é mais do que a
salvação do homem, na medida em que envolve a superação e eventual
dissolução do sistema cósmico e é, pois, instrumento de reintegração para a
própria divindade debilitada, ou, ainda, para autossalvação de Deus (JONAS,
2017, p.413).
O estado primordial pré-cósmico é representado como um estado de unidade e
transcendência absoluta. Então, a primeira parte deste drama narrado pelos gnósticos se inicia
com a desintegração desta unidade ou plenitude (pleroma). Jonas identifica neste início o
movimento de decadência que rompe com a autocontenção deste estado pré-cósmico e da
própria divindade, este evento é crido como ocasionado por forças das trevas desde fora (o
que, por implicação, pode-se deduzir a existência de um dualismo preexistente) ou por uma
crise interna e transgressão no próprio reino divino que fornece a causa para um dualismo
evolutivo. Neste caso, uma evolução às avessas, visto que para o pensamento gnóstico o
surgimento do cosmo manifesta a decadência, sendo concebido em termos depreciativos. A
diversidade e a multiplicidade do sistema cósmico representam a separação entre Deus e o
homem e a desintegração da unidade divina. Assim, adquire valor positivo o que é “estranho”
ou “estrangeiro” a este mundo, pois estranho é o que nasce em outro lugar e não pertence a
este mundo. E para os que estão dominados pela ignorância deste mundo isto não é
compreensível.
Deste modo, a cosmologia reflete a teologia gnóstica. Então, como o que está
relacionado ao cosmo representa divisão, decadência e afastamento do que é divino, toda a
iniciativa para despertar da ignorância os que estão nas trevas deste mundo, é compreendida
como uma natureza estranha que vem habitar uma terra estrangeira. É comum, por exemplo, o
conceito de “Deus estranho” de Marcião, ou, simplesmente, “o Estranho”, “o Outro”, “o
Desconhecido”, “o Sem Nome”, “o Oculto”; “o Pai Desconhecido” que aparece em muitos
escritos gnósticos cristãos. O homólogo filosófico disto está representado pelo conceito de
“transcendência absoluta” do pensamento neoplatônico.
A transcendência da deidade suprema é enfatizada ao máximo em toda a
teologia gnóstica. Topologicamente, a deidade é transmundana, e habita em
seu próprio reino, inteiramente fora do universo físico, a uma distância
imensurável da abóbada terrestre do homem; ontologicamente, ela é
acósmica, ou mesmo anticósmica: em relação a “este mundo” e o que quer
que pertença a ele, ela é essencialmente “outro” [other] ou “alheio” [alien]
(Marcião), a “alheia Vida” [alien life] (Mandeus), também chamado de
“profundeza” ou “abismo” (Valentinianos), mesmo de “não-ser” (Basílides);
epistemologicamente, por causa de sua transcendência e da diferença
[otherness] de seu ser, e já que a natureza não a revela, nem aponta para ela,
ela é naturalmente desconhecida (naturaliter ignotus), inefável, desafia a
predicação, está além da compreensão, e é estritamente incognoscível.
Alguns atributos positivos e metáforas se aplicam a ele: Luz, Vida, Espírito,
Pai, o Bem – mas não Criador, Senhor, Juiz (JONAS, 2017, p.414).
Desta forma, a cosmologia gnóstica se apresenta como algo a ser depreciado,
manifestação de uma imperfeita, cega e má ordem. O universo é o domínio de forças
inferiores (os arcontes) e manifesta (não somente em termos espaciais, mas também através
de uma ativa força maléfica) a separação entre o homem e Deus. Conforme, já mencionado,
este universo não é produto da criação divina, mas obra de forças inferiores, mencionadas na
literatura gnóstica como “arcontes” e, em alguns casos, a criação do mundo é obra reservada
ao líder dos “arcontes”, que recebe o nome de “demiurgo” (o artífice do mundo, mencionado
no Timeu de Platão). Jonas (2017, p.416) declara que:
Esta figura de um criador imperfeito, cego ou mau é um símbolo gnóstico de
primeira ordem. Em sua concepção geral, ela reflete o desprezo gnóstico
pelo mundo; em sua descrição concreta, ela geralmente é uma caricatura
claramente reconhecível do Deus do Antigo Testamento [...].
A versão valentiniana, a mais sutil de todas, apresenta o Demiurgo como
tentando, em vão, imitar a ordem perfeita do Pleroma com sua ordem física,
e a eternidade do Pleroma com o substituto falsificado do tempo – portanto,
adicionado à imitação burlesca do Criador bíblico aquela do Demiurgo
platônico.
Em meio a este universo decadente, obra de um criador imperfeito, uma cópia
imperfeita de arquétipos ideais, está o homem. Embora a doutrina platônica de arquétipos
ideais sirva de inspiração aos gnósticos, esta adquire um sentido diferente para estes. A
doutrina platônica das formas atribuía à cópia uma medida de validade, pois junto com sua
imperfeição necessária, sua semelhança ao original se constituía em quota de perfeição,
justificando a sua existência. No gnosticismo, todavia, segundo Jonas , a ideia principal se
converte naquela da imitação ilícita (falsificação).
Portanto, quando os arcontes dizem: “Venham, façamos o homem à imagem
do que vimos”, o relato bíblico e a sabedoria platônica são pervertidos ao
mesmo tempo, e o resultante caráter de imago Dei do homem criado, longe
de ser uma justa honra metafísica, assume um sentido dúbio, se não sinistro.
O motivo para decisão dos arcontes é a simples inveja e ambição, ou a
decisão mais deliberada de aprisionar a substância divina no mundo inferior
deles pela isca de um receptáculo aparentemente agradável que se tornará
seu elo mais seguro (JONAS, 2017, p.417).
Assim, tanto o ser humano quanto o próprio cosmo em sua atual condição representam
um estado caído, um estado inferior, refletem a imagem do seu criador, são cópias ou
falsificações de arquétipos perfeitos, trevas ao invés de luz, multiplicidade ao invés de
unidade, separação ao invés de aproximação, matéria ao invés de espírito, cegueira e
ignorância ao invés da visão e do conhecimento, parcialidade ao invés de completude. Isto
tudo faz da condição humana débil e carente de redenção.
Deste modo, em termos escatológicos, a restauração final se relaciona a este drama
divino total, um processo de restauração da própria totalidade de Deus. Uma vez que a
substância divina, em tempos pré-cósmicos, foi dissolvida e fragmentada. Este acontecimento
fez com que a divindade se encontrasse imersa no destino do mundo. É com o propósito de
restaurar ou reunificar todas as coisas que um mensageiro ou salvador intervém na história
cósmica. Como os eventos que deram origem a atual situação humana são pré-cósmicos, a
missão deste salvador transcendente começa antes mesmo da criação do mundo e segue
paralela a sua história. Este salvador vem ao mundo para trazer o conhecimento do caminho
para que o espírito, a centelha divina no homem, seja liberta deste mundo.
Visto que este conhecimento se encontra oculto ao homem pelo fato deste se encontrar
imerso em ignorância, o que se constitui a essência da existência mundana. E como Deus é
transcendente e desconhecido no mundo, não pode ser descoberto a partir deste, o que torna
necessária uma revelação. Esta revelação altera a situação humana em seu aspecto mais
decisivo, o da ignorância, e, desta maneira, em si mesma forma parte da salvação. Conforme
já mencionado, esta redenção corre paralela à história humana. O conhecimento é, além de
instrumento, a meta da salvação, pois neste conhecimento esta implícita a obtenção do
conhecido pelo espírito no ser humano, fazendo com que o homem seja transformado de
matéria e alma em espírito através da união com a Realidade Suprema. Deste modo, a
escatologia gnóstica proclama o triunfo final deste conhecimento que avança ao longo da
história e que se consumará por meio da reunificação de todas as coisas à divindade.
4.3 Gnose e pensamento ocidental
Em relação aos primórdios da formação do pensamento no Ocidente, Hans Jonas, em
sua tese doutoral, Gnosis und spätantiker geist (A gnosis e o espírito da antiguidade tardia)
insiste no ponto de que um orientalismo sob influência do pensamento helenista ocidental,
converteu-se numa cultura pronunciadamente religiosa. O Oriente sob domínio grego revela a
sua reação e renasce vitorioso (isto em termos intelectuais e não políticos) numa espécie de
contra-ataque espiritual.
Jonas (2003) sustenta a sua afirmação após considerar que o feito histórico perseguido
e realizado por Alexandre Magno (356–336 a.C.) foi a união entre Oriente e Ocidente.
Compreendendo Ocidente como o mundo grego que girava em torno do Egeu e Oriente, a
área das antigas civilizações orientais que se estendia do Egito as fronteiras da Índia.
Esta união iniciada por Alexandre foi precedida por um período preparatório para
ambas as partes. Tanto o Oriente quanto o Ocidente haviam alcançado o máximo nível de
unificação em seus próprios reinos, especialmente em termos políticos. Oriente havia sido
unificado sob o governo persa e o mundo grego sob a hegemonia macedônica. A cultura
grega, às vésperas das conquistas de Alexandre, estava num momento no qual os ideais
morais ou políticos e até mesmo a ideia de conhecimento se associavam a condições sociais
muito concretas que possibilitaram algo que outrora não fora uma realidade prática. Isto é,
uma aplicação destes ideais aos homens em geral. Uma vez que o próprio conceito de homem
em geral não existia enquanto uma realidade prática. O heleno, do modo como havia sido
concebido, era uma noção aplicada somente para os gregos nascidos livres ou para os
cidadãos que gozavam de plenos direitos. Desta forma, escravos e bárbaros não eram
considerados helenos. A reflexão filosófica e o desenvolvimento da civilização urbana que
havia sido produzida no século precedente a Alexandre conduziram à aparição e à formulação
explícita de uma noção mais ampla de homem.
Em uma palavra, na época de Alexandre a ideia de cultura helênica havia
alcançado um ponto no qual era possível dizer que uma pessoa era helena
não por nascimento e sim por educação, de forma que um bárbaro podia se
converter em um verdadeiro heleno. A entronização da razão como o
elemento constitutivo mais elevado do homem havia levado ao
descobrimento do homem como tal, e ao mesmo tempo à concepção do
helênico como uma cultura geral (JONAS, 2003, p.40).
No tocante as fases históricas da cultura grega, Jonas expõe: 1) anterior a Alexandre, a
fase clássica como cultura nacional; 2) posterior a Alexandre, o helenismo como cultura
cosmopolita secular; 3) helenismo tardio como cultura religiosa pagã; e 4) bizantinismo como
cultura grega cristã. A transição da primeira a segunda fase é explicada fundamentalmente
como um desenvolvimento autônomo grego. Na segunda fase, o espírito grego estava
representado pelas grandes escolas rivais da filosofia, a Academia, os epicureus, e sobretudo
os estoicos, enquanto que, simultaneamente, a antítese greco-oriental continuava seu avanço.
Desde modo, Jonas (2003, p.45) explica:
A transição desta para a terceira fase, a virada para religião da civilização
antiga em seu conjunto e o espírito grego que ela comportava, foi obra de
forças profundamente anti-gregas que, originárias do Oriente, entraram na
história como novos fatores. Entre a liderança da cultura secular helenística e
a posição defensiva final do último helenismo tardio que se havia voltado
para religião, estendem-se três séculos de movimentos espirituais
revolucionários que exerceram sua influência nesta transformação, e entre os
quais o movimento gnóstico ocupa um lugar proeminente.
Dos últimos anos da Antiguidade até o universalismo nunca desafiado dos primeiros
séculos helenísticos se sucede uma época de nova diferenciação baseada principalmente em
assuntos espirituais e não somente de forma secundária em assuntos de caráter nacional. Isto
conduziria a fragmentação da antiga unidade em grupos exclusivos. Segundo Jonas (2003,
p.44):
Nestas novas circunstâncias, o termo “heleno”, utilizado como contrassenha
num mundo totalmente helenizado, faz referência a uma causa assediada por
seus oponentes cristãos e gnósticos, os quais sem dúvida não deixam de
fazer parte do mundo grego enquanto linguagem e literatura. Neste terreno
comum, o helenismo se converteu quase num sinônimo de conservadorismo
e se cristalizou numa definível doutrina na qual toda a tradição da
Antiguidade pagã, tanto religiosa quanto filosófica, se viu sistematizada pela
última vez. Seus seguidores e oponentes estavam repartidos de forma que o
campo de batalha se estendia por todo o mundo civilizado. Não obstante, a
maré ascendente da religião havia absorvido o mesmo pensamento grego
transformando seu próprio caráter: tanto por autodefesa do cristianismo
como por necessidade interna, a cultura secular helenística se converteu
numa cultura de caráter pronunciadamente religioso e pagão. Isto significa
que na época do surgimento da religião mundial, o helenismo mesmo se
converteu em um credo religioso.
O modelo de colonização intentado por Alexandre se orientou desde o princípio como
parte de seu programa político por uma simbiose totalmente nova e que para alcançar uma
clara helenização do Oriente requeria certa reciprocidade. O mundo grego em combinação
Oriente e Ocidente havia se convertido numa civilização mundial graças as conquista de
Alexandre. Todavia, além das condições prévias existentes na cultura grega há outras no lado
oriental as quais explicam o papel do Oriente nesta combinação. Como bem destaca Jonas, o
grande Oriente, formado por antigas e orgulhosas civilizações, não era simplesmente uma
matéria inerte a qual a cultura grega viria a modelar, pois não se deve desconsiderar o fato de
que forças nativas orientais continuaram se expressando sob as novas condições do
helenismo.
Em termos das condições que antecedem a conquista de Alexandre, Oriente havia sido
unificado durante o Império Persa por meio da força, porém esta unidade era política. No que
se refere à cultura, o Oriente estava longe de ser uma unidade como no caso do mundo grego.
Apesar disto, segundo Jonas (2003, p.46), “a exceção do caso do Egito, podemos distinguir no
Oriente pré-helenístico certas tendências universalistas, os começos de um sincretismo
espiritual que pode ser tomado como contrapeso do giro cosmopolita grego”.
Antes mesmo dos persas, os assírios e babilônios haviam transformado antigos centros
de civilização oriental em lugares nos quais a apatia política convivia com um estancamento
cultural. Às margens do Eufrates e do Nilo, onde também haviam centros de poder político
antes da época persa, todo o movimento intelectual havia sido detido e somente restava a
inércia de um conjunto de tradições. Esta situação foi em grande parte gerada pela prática da
Assíria e da Babilônia de trasladar povos inteiros conquistados de um lugar para outro,
principalmente a sua classe social e culturalmente dirigente. Isto destruía as forças de
crescimento cultural nestas regiões conquistadas, sendo também uma das razões que explicam
o torpor dos antigos centros mencionados. Todavia, Jonas chama a atenção para o fato de que
este estado de coisas possuía aspectos positivos para o papel que o Oriente iria desempenhar
na era helenística.
Não é somente que a passividade predominante ou a ausência de forças de
resistência consciente facilitassem a assimilação. Eles impediram a fusão em
uma síntese mais ampla e possibilitaram a entrada desses elementos em um
tronco comum. O desenraizamento e a transferência de populações inteiras
tiveram dois efeitos especialmente significativos. Por um lado, favoreceu a
separação dos conteúdos culturais da sua terra de origem, sua abstração e
adaptação a formas suscetíveis de ser transmitidas e, consequentemente, sua
conversão em elementos válidos para um intercâmbio de ideias cosmopolita,
como exigido pelo helenismo. Por outro lado, favoreceu um sincretismo pré-
helenístico, uma fusão de deuses e cultos de diferentes origens e às vezes
extraordinariamente distantes um do outro, o que novamente antecipa uma
característica importante do desenvolvimento helenístico posterior (JONAS,
2003, p.48-49).
Esta situação ocasionou a transformação das culturas locais em ideologias, um
exemplo emblemático deste fenômeno é o caso da afirmação universal do monoteísmo pelo
judaísmo, que uma vez liberto de suas limitações palestinas fortaleceu o culto a Iahweh,
processo que havia sido iniciado pelos profetas hebreus, mas que somente se consumou no
exílio babilônico. O exílio obrigou os judeus a desenvolver este aspecto de sua religião cuja
validade transcendia as condições particulares palestinas e a opor o credo assim obtido aos
princípios religiosos do mundo no qual estavam habitando.
Outro exemplo deste fenômeno é o da antiga religião babilônica que, depois do
domínio persa, deixou de ser um culto estatal, ligado a um centro político. A religião
babilônica, como parte das instituições da monarquia, havia desfrutado de um status oficial
definido. Segundo Jonas, esta relação da religião babilônica com o poder secular havia, ao
mesmo tempo, apoiado e limitado o seu papel naquela sociedade. Todavia, tanto o apoio
quanto à limitação desapareceram com a perda da sua condição de religião de estado. E o
modo como esta religião se libertou de sua função política produziu um desenraizamento. A
sua condição de rebaixamento e impotência política vivida durante o Império persa a forçou a
se apoiar, daquele momento em diante, em seu conteúdo espiritual. “Desconectada das
instituições do sistema de poder local e desfrutando do prestígio, voltou a depender de suas
qualidades teológicas próprias”, de acordo Jonas (2003, p.50), “formuladas como tais, se
quisessem manter seu status contra outros sistemas religiosos igualmente vigentes e que
também competiam pelo espírito dos homens”.
De modo análogo, a antiga religião persa do mazdeísmo se separou também de sua
origem iraniana. Levada por todo o Império persa a algo parecido com uma situação
cosmopolita. E depois da queda do Império persa, não somente perdeu o apoio com que havia
contado, como também passou a estar sob o domínio estrangeiro e partir de então
compartilhar com outros credos, em países fora da Pérsia, as mesmas condições e vantagens
da diáspora. Jonas informa que, uma vez mais, da tradição nacional menos definida se extraiu
um inequívoco princípio metafísico que se desenvolveu até se converter num sistema de
significação intelectual geral: o sistema do dualismo teológico.
Podemos pensar que se produziram processos similares em todo o Oriente,
processos pelos quais as crenças originalmente nacionais e locais se
adaptaram para converter-se em elementos de um intercâmbio internacional
de ideias. Estes processos conduziam a dogmatização, no sentido de que se
extraía um princípio do corpo da tradição e se desenvolvia até se transformar
numa doutrina coerente. A influência grega, que possuía estímulos e
ferramentas lógicas, fez amadurecer este processo em todos os lugares; se
bem, como temos intentado demonstrar, no Oriente já haviam iniciado
alguns destes às vésperas do helenismo. Os três que temos mencionado
foram escolhidos com uma intenção particular: o monoteísmo judaico, a
astrologia babilônica e o dualismo iraniano foram, talvez, as três forças
espirituais mais importantes com as quais o Oriente contribuiu para
configuração do helenismo, e cuja influência marcou de forma crescente e
determinante seu curso posterior (JONAS, 2003, p.51).
Assim, uma vez que estes processos estão amadurecidos, pode-se observar a situação
melhor. O Oriente permaneceu em silêncio durante vários séculos, conservando o seu
pensamento num estado latente. E desta observação, Jonas deriva uma divisão da época
helenista em dois diferentes períodos: um período de evidente domínio grego e submersão
oriental, e um período de reação de um Oriente que renasce e por sua vez avança vitorioso,
não em termos políticos, num contra-ataque espiritual até o Ocidente e remodela a cultura
universal. Sob este prisma, “helenismo não serviu apenas para nomear a transformação da
pólis em cultura cosmopolita, e as transformações inerentes a este processo”, acrescenta Jonas
(2003, p.53), “mas também a mudança de caráter que ocorreu após a recepção das influências
orientais acrescentada a tudo isso”. A metamorfose do helenismo numa cultura religiosa
oriental se pôs em marcha.
Até então, o pensamento do Oriente havia fugido do conceitual e havia se
expressado por imagens e símbolos, disfarçando mais que expondo seus
objetivos fundamentais em forma de mitos e ritos. Esta expressão havia
ficado confinada na rigidez de seus antiquíssimos símbolos, e foi libertada
de sua prisão pelo vivificante alento do pensamento grego, o qual deu novo
impulso e ferramentas adequadas a todas as tendências de abstração surgidas
anteriormente. No fundo, o pensamento oriental continuou sendo mitológico,
como evidenciou a sua nova aparição diante do mundo; enquanto isto, não
obstante, aprendeu a dar a suas ideias a forma de teorias e a utilizar não
somente imagens sensíveis, mas também conceitos racionais no momento de
as expor. Desta maneira, a formulação definitiva do dualismo, do fatalismo
astrológico e do monoteísmo transcendente chegou graças à conceitualidade
grega. Com a categoria de doutrinas metafísicas estes sistemas ganharam
aceitação geral e sua mensagem pôde se dirigir a totalidade. Desta forma, o
espírito grego libertou o pensamento oriental das ataduras de seu próprio
simbolismo e, graças a reflexão do logos, permitiu-lhe descobrir-se. Assim,
chegado o momento, o Oriente lançaria sua contraofensiva com as armas
adquiridas no arsenal grego (JONAS, 2003, p.56).
Jonas (2003, p.60) expõe que, em linhas gerais, os fenômenos nos quais o influxo
oriental se manifestou no mundo helenista, desde o início da era cristã em diante, são os
seguintes: a expansão do judaísmo helenístico, e em especial a filosofia judaico-alexandrina; a
expansão da astrologia babilônica e da magia, coincidente com o crescimento geral do
fatalismo no mundo ocidental; a expansão de distintos cultos de mistério no mundo greco-
romano, e sua evolução até a condição de religiões de mistérios espirituais; o surgimento do
cristianismo; o florescimento dos movimentos gnósticos e de seus grandes sistemas dentro e
fora do marco cristão; e a aparição das filosofias transcendentais do último período da
Antiguidade, que começam com o neopitagorismo e culminam com a escola neoplatônica.
Este período do helenismo, conclui Jonas, pode ser caracterizado como ocasião na
qual o sincretismo obteve sua maior eficácia, deixou de estar limitado a cultos específicos e
ao cuidado de seus sacerdotes para se introduzir em todo o pensamento da época e se mostrar
em todos os campos de expressão literária. Apesar de diferentes, todos estes fenômenos estão
relacionados entre si. Pois seus ensinamentos possuem importantes pontos em comum e até
mesmo em suas divergências compartilham um clima de pensamento comum. Isto ocorre de
forma que a literatura de cada um complementa a compreensão dos outros. Segundo Jonas
(2003, p.60), da predominância da substância espiritual resulta a recorrência de padrões de
expressão típicos, de imagens e fórmulas específicas, que estão presentes na literatura de todo
o grupo. Por exemplo, em Fílon de Alexandria se encontram elementos platônicos e estoicos
que saturam o centro medular do judaísmo; a linguagem das religiões de mistérios servirá de
incipiente terminologia do novo misticismo, além disto, estas religiões preservam uma estreita
relação com um complexo de ideias astrais; por sua vez, o neoplatonismo se mostra aberto a
todo o conhecimento religioso popular pagão; o cristianismo, incluindo suas manifestações
ortodoxas, teve, desde o princípio, aspectos sincréticos, dentre os quais elementos
considerados heréticos como os sistemas gnósticos; e por fim, estes sistemas gnósticos se
constituem num compêndio de mitologias orientais, doutrinas astrológicas, teologia iraniana,
elementos da tradição judaica – bíblica, rabínica ou ocultista –, escatologia salvífica cristã,
termos e conceitos platônicos.
Não obstante, o sincretismo, a combinação de ideias e imagens, constitui um feito
formal que levanta a questão do conteúdo mental determinado pelo aspecto externo. E em
relação a isto, se há um elemento aglutinador em meio a um fenômeno formado por tantos
elementos, se existe, em que consiste? De que é feita a força que organiza a matéria
sincrética? Jonas formula estas questões e responde que apesar de seu exterior “sintético”, o
novo espírito não era um ecletismo desorientado, havia um princípio que o movia em
determinada direção. Sobre este princípio, Jonas (2003, p.61) declara:
Este princípio aparece em todos os lugares nos movimentos que vem do
Oriente, de forma mais sobressalente nesse grupo de movimentos espirituais
que se englobam sob o nome de “gnósticos”. Podemos, portanto, considerar
este último o representante mais radical e intransigente de um novo espírito
e, por meio da analogia, chamar consequentemente a esse princípio geral,
que em representações menos equivocadas se estende além da área da
literatura gnóstica propriamente dita, “princípio gnóstico”. Seja qual for a
utilidade da extensão do significado deste termo, é certo que o estudo deste
grupo particular é extraordinariamente interessante não somente em si
mesmo, mas também porque pode apontar, se não a chave de toda aquela
época, ao menos uma contribuição vital para sua compreensão.
Pessoalmente, Jonas estava inclinado a observar todas esta série de fenômenos nos
quais se manifesta o influxo oriental, por um lado, como um conjunto de refrações deste
princípio gnóstico, e por outro lado, como reações contra o mesmo princípio. Assim, podem-
se perceber no princípio gnóstico os seguintes elementos: uma visão claramente religiosa;
uma referência à salvação; um conceito transcendente de divindade; diversos dualismos (Deus
e mundo, espírito matéria, luz e trevas, etc).
Até aqui ficou evidente que o gnosticismo mantém fortes vínculos com a Antiguidade,
conforme demonstrado por Jonas, com o Helenismo, e também com as heterodoxias
doutrinárias que, sob o prisma da ortodoxia cristã, estiveram em oposição aos princípios da fé
oficialmente declarada pela Igreja.
No tocante a história da Igreja Ocidental, o gnosticismo recebeu o estigma de heresia.
Esta é uma das razões de durante um tempo razoável somente se ter acesso a textos sobre os
gnósticos através do que foi escrito pelos autores eclesiásticos. Nos textos de história
eclesiástica, os gnósticos costumam ser agrupados entre as heresias que assolaram a Igreja
cristã da Antiguidade. As heresias deste período costumam ser classificadas como de cunho
teológico e filosófico, especulando racionalmente sobre os dogmas cristãos, especialmente os
que tratavam sobre a Trindade, a natureza divina e humana de Cristo e sobre a relação
existente entre ambas, além de questões relacionadas com a essência da divindade.
Observa-se na tipologia da gnose apresentada no tópico anterior que havia um estado
primordial ideal e deste a humanidade foi lançada nesta existência. De modo que o estado
presente é concebido como ruim, uma queda de uma condição superior para uma inferior, mas
havendo uma esperança no tocante a restauração, a possibilidade de retorno ao estado
primordial. O caminho a ser percorrido até a restauração do estado primordial somente pode
ser alcançado através do conhecimento. Este foi o ponto nevrálgico da polêmica entre os
cristãos gnósticos e os que declaravam a gnose como heresia. Hans-Josef Klauck (2011,
p.195) chama atenção para o principal ponto que levou os Padres da Igreja a serem unânimes
em declarar a gnose como heresia:
Até esse ponto, nada soa muito problemático. O caminho do ser humano
caído, na visão bíblico-cristã, também poderia, sem mais, ser resumido do
seguinte modo: paraíso, pecado original, redenção por Cristo, retorno ao céu
depois da morte, fim do mundo com a restauração da perfeição original. Mas
por que os Padres da Igreja são unânimes em nos apresentar a gnose como
heresia? Deve haver algo de especial nesse “conhecer”, que deu o nome a
todo o movimento. O conhecer tem categoria soteriológica, e num sentido
exclusivo. “Soteriológico” quer dizer: o saber e o conhecimento já salvam;
para a salvação basta esse saber, tudo o mais é acessório. Todavia, sem esse
saber não há salvação. “Exclusivo” significa: quem possui esse saber é salvo,
quem não possui está perdido. Isso, ao mesmo tempo, divide a humanidade
em dois grupos: gnósticos e não gnósticos. Portanto, o saber contém um
elemento pronunciadamente esotérico.
Todavia, o que parecia ser um assunto resolvido pela Igreja na Antiguidade reaparece
nas controvérsias religiosas dos séculos XII e XIII. Estes movimentos religiosos da Baixa
Idade Média se diferenciavam no que se refere aos movimentos da Antiguidade nas ênfases
doutrinárias. Enquanto os movimentos da Antiguidade se envolveram em questões
relacionadas à Trindade (a natureza divina e humana de Cristo e questões vinculadas a
substância divina), “o que caracteriza as heresias posteriores, isto é, as da Baixa Idade Média,
é o seu cunho popular assentado sobre uma nova visão ética da instituição eclesiástica e do
cristianismo como religião vigente na sociedade ocidental” (FALBEL, 2012, p.13).
Todavia, no centro da crítica a instituição eclesiástica, estava a questão sobre a
presença do mal no mundo, se um Deus bom não pode desejar o mal, de igual forma não pode
criar as condições para que o mal se manifestasse; logo, ao lado de um princípio eternamente
bom, deveria existir um princípio eternamente mau. Segundo Maria Nazareth de Barros
(2007), estas preocupações permeavam o pensamento religioso na Europa por volta do 1000
d.C. E o pensamento dualista surgiu como uma resposta satisfatória a esse questionamento.
Por volta do ano 1000, o problema do Mal voltou a atormentar o homem. O
retorno das heresias tornou-se um fato europeu. O que hoje denominamos
catarismo apareceu na França, no século XI, possivelmente trazido da
Bulgária. O catarismo se instalou também na Catalunha, na Itália, na
Alemanha, na Inglaterra, mas foi no Sul da França que tomou forma de
religião, organizando-se como Igreja, como civilização original. Foi ainda no
Sul da França que ele contou com a conivência dos senhores feudais e
exerceu influência social e política sobre a região, modificando o
pensamento e os hábitos cotidianos dos sulistas (BARROS, 2007, p.9).
Para reprimir os movimentos religiosos deste período, uma sucessão de ações foram
realizadas. Segundo Falbel (2012), já no século XI, a Igreja começou a tomar medidas mais
enérgicas, em especial com relação aos cátaros que nessa época começavam a difundir
intensamente as suas doutrinas. Contudo, ainda hesitava em adotar providências extremas,
pois compreendia que isto destoava com a caridade apregoada pelo cristianismo. Falbel
(2012, p.15) aponta que:
O impulso para radicalização da atitude social contra os heréticos partiu de
baixo para cima, ou seja, do fanatismo popular que tomava corpo à medida
que se cristianizava a sociedade bárbaro-européia. Mesmo no ano 1045,
quando foram descobertos alguns heréticos em Châlons, as autoridades
eclesiásticas recorreram aos legisladores pois ainda não sabiam o que fazer
com eles. A ausência de uma legislação precisa fazia com os heréticos
fossem tratados ora com clemência, ora com excessivo rigor. Quando a
população de Colônia queimou certo número de cátaros em 1145, São
Bernardo de Clairvaux recriminou os atos da multidão, embora tivesse
aprovado o seu zelo religioso, argumentando que a fé devia ser defendida
pela persuasão e não pela violência.
Falbel (2012, p.16) acrescenta ainda que com o passar do tempo, a Igreja utilizou a
excomunhão como meio de induzir o poder secular a participar da perseguição e do combate à
heresia. “Nesse sentido, o Concílio de Verona de 1148 estabeleceu que os soberanos deveriam
empenhar-se, ao lado da lei civil e canônica, para o seu extermínio, sob ameaça de
excomunhão”.
Em algumas regiões da Europa, os movimentos religiosos floresceram graças à
tolerância e a proteção recebida por parte da população e dos governantes destas regiões. Este
foi o caso do Sul da França em relação aos cátaros. Segundo Maria de Barros (2007, p.10):
O Sul da França, o Midi, sempre esteve aberto a novidades. Doutrinas de
caráter religioso, místico ou ético nasceram e se desenvolveram em seu
solo. A atração pelo novo pode ser explicada por sua situação geográfica e
por seu percurso histórico. O Midi foi um lugar de passagem de povos e
civilizações. O homem meridional conviveu com culturas diversificadas.
Aprendeu bem cedo a ser tolerante com os que discordavam de suas
verdades; a valorizar liberdade e independência; a respeitar novas ideias.
Desenvolveu o hábito de contestar, de romper com valores estabelecidos e
não se curvar à lei do mais forte. Com esta valoração da liberdade, acolheu
os cátaros, e, enquanto os senhores do Norte do país perseguiam hereges,
os expulsavam das cidades e os queimavam em praças públicas, os
senhores do Sul acolhiam-nos em seus domínios, deixavam que pregassem
a heresia, protegiam-nos. Era natural para os meridionais que cada um
escolhesse sua religião. Esta tolerância fazia com que respeitassem judeus
e hereges, concedendo-lhes as mesmas regalias dadas aos cristãos.
Desta forma, com o intuito de reduzir o acolhimento aos hereges, além da ameaça de
excomunhão, já mencionada, outras medidas contras os senhores seculares foram tomadas
pela Igreja. No tocante a isto, Falbel (2012, p.17) relata a seguinte situação:
O Quarto Concílio de Latrão, em 1215, decretou medidas contra os senhores
seculares caso protegessem heresias em seus territórios, ameaçando-os até
com a perda dos domínios. Já antes do Concílio e como consequência dele,
as autoridades laicas decretaram a pena de morte para evitar a disseminação
de heresias em seus territórios, a começar por Aragão em 1197, Lombardia
1224, França 1229, Roma 1230, Sicília 1231 e Alemanha 1232.
Assim, na proporção em que as heresias se difundiam e aumentavam a sua influência
sobre as camadas da população medieval crescia também a violência do braço secular. Falbel
(2012, p.16) descreve o progresso da repressão às heresias pelo braço secular:
Pedro de Aragão, em 1197, introduziu no Código Civil a condenação do
herético através da punição pelo fogo que, mais tarde, faria parte do arsenal
de armas para o seu combate. Frederico II, no estatuto 1220, incluiu a
perseguição aos heréticos, a seguir agregada ao direito público europeu. O
estatuto previa o confisco dos bens e a colocação dos acusados fora da lei, o
que equivalia à pena de morte. Em 1231, Frederico II inclui na Constituição
da Sicília a pena drástica da fogueira. Mas o Imperador Hohenstaufen não
foi o único a tomar tal atitude em relação aos heréticos daquele tempo, pois o
doge de Veneza, em 1249, antes de ascender ao cargo, jurou queimar todos
os heréticos de sua região. A prática de mandar à fogueira os heréticos era
geral na época e não surgiu com a criação da lei positiva, baseada no
costume popular, e que acabou sendo incorporado pelos legisladores com o
decorrer do tempo.
Embora tais punições tenham sido justificadas pela Igreja, buscando-se apoio
exegético nas Escrituras Sagradas, podem ser identificados em todos esses elementos os
meios que prepararam o caminho para o surgimento futuro de uma instituição que tratasse
especificamente da identificação e da perseguição de hereges.
Assim, a Inquisição surgiu no cenário da história do século XIII para tornar-
se uma instituição de temor bem marcante. [...]
A Gregório IX devemos a organização do tribunal inquisitorial e, em 1229,
no Concílio de Toulouse, foi criado oficialmente o Tribunal do Santo Ofício
(FALBEL, 2012, p.17).
Os eventos que se desenvolveram nestes que foram chamados de “os séculos
heréticos” podem vir a ser considerados por alguns como acontecimentos sem grande
importância ou impacto sobre o pensamento no Ocidente. Todavia, as agitações religiosas
deste período foram de grande importância, pois se estenderam por toda a Europa, deixando a
sua influência na cultura e tendo desdobramentos em acontecimentos importantes para o
surgimento da Modernidade.
No tocante aos vínculos entre estes movimentos de cunho espiritualista, dentre eles o
dos cátaros ou albigenses, e a influência sobre acontecimentos modernos, Voegelin7 (2014,
p.160) afirmou: “O processo que começou com movimentos de reforma espiritual pode
terminar com movimentos contra o espírito. Esse tem sido, de fato, o curso dos movimentos
do tipo albigense; terminando com movimentos do tipo comunista e nacional-socialista”.
Voegelin (2014) chama a atenção para esta dinâmica da civilização ocidental ao
discorrer sobre as tensões entre instituições e movimentos. Ele reconhecia que o tema ainda
não havia recebido até aquele momento a dedicação que merecia, pois os interesses de
pesquisa se concentravam apenas no nível institucional desta dinâmica. No que se refere às
fases iniciais deste processo, Voegelin dá os créditos devidos à pesquisa realizada pelo
historiador Edward Gibbon, em Declínio e queda do Império Romano, principalmente ao
7 As ideias de Eric Voegelin a este respeito foram apresentadas no capítulo dois desta pesquisa. Principalmente
quando foram abordadas questões relacionadas com a tensão entre instituições e movimentos. Quem, porventura,
desejar ter acesso ao pensamento de Voegelin sobre o assunto, poderá encontrar esta discussão no capítulo três
do quarto volume da História das ideias políticas.
apontar como os movimentos do final da Idade Média culminaram na Reforma do século
XVI.
Ele assinalou a linha de continuidade direta do movimento pauliciano do
século VII na Síria, passando da transplantação dos paulicianos para os
Balcãs, pela sua ramificação na seita bogomila e pelas migrações dos
paulicianos e bogomilos até à Itália, até o aparecimento dos cátaros no sul da
França no século XI. Cátaros, a linha continua pelos waldenses e
franciscanos até os movimentos sectários posteriores que se espalharam por
toda a Europa e chegaram a seu cume no movimento Lollard na Inglaterra e
no movimento hussita na Boêmia nos séculos XIV e XV. A Reforma do
século XVI é levada a efeito por um movimento amplo que se manifestou na
Guerra dos Camponeses assim como no movimento anabatista que se
espalhou da Holanda para a Suíça e da Alsácia para Morávia, com sua
continuação na vida sectária na Holanda, Inglaterra e América. No século
XVII, de novo, vemos o movimento puritano propriamente dito levado a
efeito por um movimento amplo com suas franjas nos Cavadores,
Buscadores e Oradores Exaltados. E no século XVIII, finalmente, podemos
observar a transição dos grupos deístas e unitários para clubes e movimentos
de iluminismo, utilitarismo e socialismo (VOEGELIN, 2014, p.164).
Tendo feito este relato de como este período foi relevante para as mudanças que
viriam a ocorrer no cenário europeu, conforme já mencionado, havia na essência destes
movimentos religiosos do fim da Idade Média um princípio dualista e este com evidente
inspiração gnóstica. Em muito destes movimentos, delineou-se um conceito de Igreja
destituído de toda materialidade, rejeição a estrutura eclesiástica, e favorável à noção de Igreja
espiritual. Assim como mais tarde se verá nas igrejas da Reforma, havia forte inspiração no
cristianismo primitivo e na reprodução de padrões bíblicos que imitasse a vida de Jesus e seus
apóstolos. Também eram perceptíveis os sinais das insatisfações das camadas populares em
relação ao clero, pois estes movimentos, com regularidade, apontavam os vícios do clero e
declaravam a necessidade da hierarquia eclesiástica ser humilde e adotar a pobreza, além de
rejeição ao uso de paramentos luxuosos e até mesmo à magnificência e ao luxo dos templos.
É bem representativa deste período a heresia dos cátaros, também conhecidos como
albigenses. Esta foi a heresia que conquistou o maior número de adeptos na baixa Idade
Média e que alcançou maior repercussão na época. Havia um evidente caráter dualista na
doutrina propagada pelos cátaros.
Dualismo, nesse sentido, significa a crença de que a bondade existe somente
no mundo espiritual do deus bom e que o mundo material é mau e foi criado
por um deus mau ou espírito chamado Satã. O Bem e o Mal possuem dois
criadores diferentes, e tal concepção está próxima das seitas gnósticas que
também tinham as mesmas ideias e foram igualmente disseminadas no início
da Idade Média, nos Bálcãs e no Oriente Próximo, pelas seitas dos
paulicianos e bogomilos. Os cátaros relacionam-se com esses dois últimos,
que eram conhecidos no Ocidente como publicani (corrupção de paulicianos
e também um eco dos publicanos do Novo Testamento) ou bougres (isto é,
búlgaros, pois na Bulgária localizavam-se os bogomilos) e mais tarde como
cathari (cathari = puros) ou albigenses, da cidade de Albi, um dos centros de
influência herética no Sul da França (FALBEL, 2012, p.36-37).
Falbel, assim como Edward Gibbon citado por Voegelin, reconhece o vínculo entre os
cátaros e os paulicianos e bogomilos. Os bogomilos eram na verdade gnósticos maniqueus,
que apesar das perseguições sofridas, mantiveram-se estabelecidos em Constantinopla e nos
Balcãs sob este nome até exercerem a sua influência sobre estes movimentos religiosos dos
chamados “séculos heréticos”. Falbel (2012, p.41-42) resume a organização e a forma como
este dualismo ficava evidente no cotidiano das Igrejas cátaras:
Segundo o consenso geral, a matéria era má e o homem um alienado
habitando num mundo mau. O objetivo principal era que o homem deveria
restaurar este mundo para a comunhão com Deus. Acreditavam na redenção
dos espíritos, embora nem sempre na redenção universal. Acreditavam,
igualmente, na transmigração das almas do homem para o homem, e do
homem para a besta, pois os animais, segundo eles, também possuíam almas.
Tinham regras para jejuar e a carne era proibida. As relações sexuais eram
vedadas e tinham horror à procriação, pois implicava o aprisionamento de
seus espíritos ao mundo da carne. Acreditavam piamente no celibato e em
qualquer forma ascética de renúncia ao mundo, olhando favoravelmente o
suicídio.
Pelo extremo ascetismo, os cátaros eram, na verdade, uma igreja de eleitos.
Mas, sendo popular, distinguiam-se dois corpos de fiéis: os “Perfeitos” e os
“Crentes”. Os Perfeitos eram isolados das grandes massas dos Crentes por
uma elaborada cerimônia de iniciação, ou batismo espiritual, o
consolamentum.
Afora o consolamentum e a ordenação, os cátaros tinham dois outros
sacramentos: a penitência e a quebra do pão. Esta era uma espécie de
comunhão, pois não acreditavam na transubstanciação. Os Perfeitos
dedicavam-se à contemplação e esperava-se que mantivessem o mais
elevado nível moral, cabendo aos Crentes fornecer-lhes alimentos.
Os crentes não podiam aspirar ao alto nível dos Perfeitos. Por não
obedecerem inteiramente à proibição das relações sexuais, por exemplo, eles
provocavam aberrações nos relacionamentos, o que constituía motivo para
os católicos acusarem-nos de todos os tipos de vícios. Mas é possível que
estas acusações tenham sido exageradas.
As doutrinas cátaras da criação levaram a reescrever o relato bíblico e a
elaborar uma mitologia que o substituísse para negar a noção que a Bíblia
toda era sagrada. Viam o Velho Testamento com reserva, e o Novo
Testamento foi reinterpretado. A doutrina da reencarnação de Deus era
impossível aos cátaros, para os quais Jesus foi um anjo que veio para indicar
o caminho da salvação, mas não fornecê-lo em pessoa; logo, seus
sofrimentos e morte eram uma ilusão.
Os medos deste período (as pestes, penúrias, revoltas, avanço turco, o Grande Cisma
da Cristandade e tudo o que ameaçasse e traumatizasse os participantes desta cultura cristã)
são canalizados para um princípio representativo do mal e para todos aqueles que fossem
vistos associados a este princípio.
Evidentemente, é Satã que conduz com fúria seu derradeiro grande combate
antes do fim do mundo. Nesse supremo ataque, ele utiliza todos os meios e
todas as camuflagens. É ele que faz os turcos avançarem; é ele que inspira os
cultos pagãos da América; é ele que habita o coração dos judeus; é ele que
perverte os heréticos; é ele que, graças às tentações femininas e a uma
sexualidade há muito tempo considerada culpada, procura desviar de seus
deveres os defensores da ordem; é ele que, por meio de feiticeiros e
sobretudo por intermédio de feiticeiras, perturba a vida cotidiana
enfeitiçando homens, animais e colheitas. Não há por que surpreender-se se
esses ataques se produzem ao mesmo tempo. Soou a hora da ofensiva
demoníaca generalizada, sendo evidente que o inimigo não está apenas nas
fronteiras, mas na praça, e que é preciso ser mais vigilante dentro do que
fora (DELUMEAU, 2009, p.586).
Deste modo, portanto, o princípio dualista que esteve presente exercendo a sua
influência sobre os movimentos religiosos e sobre a cultura europeia no final da Idade Média
revela a sua outra face nos defensores da ortodoxia. Estes compreendiam que o surgimento de
concepções divergentes da oficialmente estabelecida pela Igreja era obra de Satã. Satã é
tomado como o princípio representativo do mal e assim cumpre o papel de canalizar através
de si todos os temores deste período. “Assim, todo sagrado não oficial é considerado
demoníaco, e tudo o que é demoníaco é herético, não sendo o contrário menos verdadeiro:
toda heresia e todo herético são demoníacos” (DELUMEAU, 2009, p.592).
4.4 A superação da condição corpórea: uma “era do espírito”
A produção discursiva trans-humanista é abrangente e imprecisa, todavia, é possível
perceber em seu discurso duas perspectivas: (1) a da superação da condição humana; e (2) a
transformação biotecnológica ou biogenética desta condição humana. Estas perspectivas
foram apontadas por Hermínio Martins (2012) em seu livro Experimentum Humanum. O
título da obra reflete o objeto de atenção do autor, demonstrado através dos ensaios contidos
no livro, ou seja, o impacto das inovações tecnológicas sobre a condição humana. O
experimentum humanum, expressão utilizada pelo teólogo católico Karl Rahner, cujo o
significado é o “experimento-sobre-o-homem, pelo próprio homem, sobre seu próprio ser ou
natureza”.
O trans ou pós-humanismo se constitui no esforço de através da contribuição das
diversas disciplinas do conhecimento científico superar a condição biológica humana por
meio da aplicação de tecnologias presentes e a surgir no futuro como resultado deste
conhecimento científico.
Tomando como referências ambas as perspectivas, isto implica em romper com
quaisquer limites impostos por noções como natureza, é não mais ter que esperar que algum
processo evolutivo ocorra por vias naturais, mas assumir o controle deste processo, sob a
crença de que a história pode ser projetada. Algo que, conforme foi discutido amplamente no
segundo capítulo, constitui-se numa laicização da escatologia. O que outrora esteve orientado
para um telos pós-histórico e realizável apenas transcendentalmente, agora foi transformado
na crença de que o controle da natureza operado pelo homem lhe concede o poder para
determinar tecnicamente os acontecimentos que garantirão o futuro da humanidade. Então,
não é preciso esperar que poderes misteriosos ou sobrenaturais, seja a providência divina ou o
acaso, conduzam a história. Os acontecimentos não precisam seguir cursos aleatoriamente,
mas devem ser previstos matematicamente e controlados. Pois a natureza deve ser dominada
pela engenhosidade da cultura humana. Não há motivos para aguardar passivamente pela
fortuna, mas sob, a força de sua própria virtú, os homens podem antecipar e resolver os
problemas que cruzarem o seu caminho e, desde modo, projetar o futuro que desejarem para
si.
A segunda perspectiva presente na produção discursiva trans-humanista, “a
transformação biotecnológica ou biogenética da condição humana”, é na verdade o meio para
se alcançar a meta final da condição pós-humana, o descarte da condição corpórea ou
biológica. Os trans-humanistas assumem o dualismo corpo-consciência, sendo o corpo o
túmulo da consciência, a parte perecível e limitadora. Algo que inicialmente pode ser
aprimorado (por engenharia genética, nanotecnologia, pela fusão simbiótica entre o orgânico e
a máquina) até que seja possível libertar completamente a consciência dos limites impostos
pela condição corpórea.
Trans-humanistas como Ray Kurzweil (2007) parecem acreditar que o que tornará
realizável a superação da condição humana é o crescimento da tecnologia computacional,
precisamente avanços no campo de inteligência artificial. Tais avanços possibilitarão
solucionar problemas que até o momento não foram ou não podem ser solucionados, como
por exemplo, mudar a natureza da mortalidade conforme aguardo em um futuro pós-
biológico.
Enquanto este evento divisor de águas não se revela (algo que em termos
escatológicos se assemelha ao conceito de parousia, a manifestação, o momento aguardado
que mudará todas as coisas), busca-se o melhoramento da atual condição de vida corpórea
com o intuito de que esta seja prolongada ao máximo de tempo possível. Isto é compreensível
uma vez que a consciência está aprisionada nesta condição corpórea e a morte do corpo
implica a extinção da consciência.
Esta discussão toca, de certo modo, no complexo problema mente-corpo
(CHURCHLAND, 2004), como este problema está além dos objetivos desta pesquisa, será
apenas mencionado. Todavia, é importante saber que o debate acadêmico em torno deste
problema costuma ser dividido, de forma básica, do seguinte modo: de um lado, há as teorias
materialistas da mente, estas afirmam que o que costuma ser chamado de processos e estados
mentais são meramente estados sofisticados de um complexo sistema físico, o cérebro; de
outro lado, há as teorias dualistas da mente, que afirmam que os estados mentais não são
apenas estados de um sistema exclusivamente físico, mas se constituem uma espécie distinta
de fenômeno de natureza essencialmente não-física. Independente de como se posicione sobre
o problema ontológico da relação mente-corpo, em outros termos, mesmo que em sua
totalidade não se assuma uma posição materialista reducionista, identificando estados mentais
e estados físicos com o cérebro, a neurociência reconhece, em certo sentido, a ideia de que a
mente emerge do organismo como um todo, que o eu no corpo é um estado biológico. Como
pode ser observado na afirmação do neurocientista António Damásio (1996, p.256):
À primeira vista, a ideia de que a mente emerge do organismo como um todo
pode parecer contra-intuitiva. Ultimamente, o conceito de mente tem
passado do nenhures etéreo que ocupou no século XVII para sua morada
atual no ou em redor do cérebro – um certo rebaixamento, mas, mesmo
assim, um posto digno. Pode parecer exagero sugerir que a mente depende
das interações cérebro-corpo em termos de biologia evolutiva, ontogenia
(desenvolvimento individual) e funcionamento atual. Mas o leitor não deve
desanimar. O que estou sugerindo é que a mente surge da atividade nos
circuitos neurais, sem sombra de dúvida, mas muito desses circuitos são
configurados durante a evolução por requisitos funcionais do organismo.
Mesmo que não se tenha clara compreensão de como a consciência está vinculada ao
corpo, a matéria orgânica, é inegável esta realidade. Então, mesmo que o corpo seja visto
pelos trans-humanistas como um fardo a ser carregado, a sua transformação biotecnológica ou
biogenética deve ser efetuada até que se possa substituí-lo por um abrigo melhor para
consciência ou por uma forma de existência superior.
O corpo é visto como um rascunho a ser aperfeiçoado ou fundido a máquina. O
destino do corpo, por enquanto, é se tornar híbrido, junção de compostos orgânicos e
mecânicos. Este evento será realizado pela robótica, com próteses mecatrônicas, avanços no
campo da nanotecnologia e da nanorobótica, fazendo emergir o que se convencionou chamar
de “ciborgue”. O corpo humano e sua constituição orgânica estão condenados à obsolência,
um objeto da era evolutiva e biológica, em razão disto, ultrapassado, pois a atual era é pós-
evolutiva. Esta era pós-evolutiva no atual estágio estaria amparada graças a este processo de
hibridização prometido pela tecnociência, pois este processo garantiria livrar o corpo humano
da finitude.
Kurzweil (2007) argumenta que a evolução segue um ritmo em aceleração exponencial
em relação ao tempo, de modo que grandes transformações operadas pelo mecanismo
evolutivo estão ocorrendo em intervalos de tempo cada vez mais curto. Neste processo, a
evolução criou algo extremamente importante, a genética com base no DNA, pois isto
orientaria e registraria o desenvolvimento evolucionário. O registro “escrito” de realização,
segundo Kurzweil, é uma exigência-chave para o processo evolucionário. Isto permitiu
transmitir material genético para as próximas gerações que originaria mudanças cada vez mais
complexas nas espécies. Então Kurzweil afirma que enquanto a evolução levou bilhões de
anos para projetar as primeiras células primitivas, acontecimentos relevantes começaram a
ocorrer em centenas de milhões de anos, uma distinta aceleração do ritmo. Com a extinção
dos dinossauros, os mamíferos herdaram a Terra. E com o surgimento dos primatas, as
mudanças passaram a ocorrer em dezenas de milhões de anos. Quando os humanoides
surgiram, este intervalo para o progresso evolutivo foi reduzido para milhões de anos. Os
humanoides (com cérebros maiores particularmente na área do córtex responsável pelo
pensamento racional, e distintos por caminharem em suas patas traseiras) tornaram-se os
responsáveis pela criação de tecnologias. Afirma Kurzweil (2007, p.33): “A história da
evolução desde aquela época agora se concentra numa variante da evolução patrocinada pelos
humanos: a tecnologia”.
A tecnologia é a variante da evolução patrocinada pelos humanos que garantirá na
atualidade a aceleração das transformações da natureza, será uma continuação da evolução
por outros meios. Sobre isto, a conclusão de Kurzweil (2007, p.34) é a seguinte:
O “código genético” do processo evolucionário da tecnologia é o registro
mantido pela espécie que fabrica as ferramentas. Assim como o código
genético das primeiras formas de vida era simplesmente a composição
química dos organismos propriamente ditos, o registro escrito das primeiras
ferramentas consistia das próprias ferramentas. Mais tarde, os “genes” da
evolução tecnológica evoluíram para registros utilizando linguagem escrita,
e são, hoje, com frequência, armazenados em bancos de dados de
computadores. No fim das contas, a tecnologia propriamente dita criará nova
tecnologia.
Há muita coisa acontecendo na atualidade que contribui como alimento para estas
crenças, servem para reforçar todo este imaginário de progresso e para fortalecer o credo na
obtenção de poderes para realizar tudo o que se deseja. Os limites, se é que existem, ficam
cada vez mais distantes, o verbo da ocasião é transcender, ir sempre além, explorar as
possibilidades.
Assim, com poderes que antes só concerniam aos deuses ou às potências
naturais, os engenheiros da vida se propõem a reformular o mapa biológico
de cada indivíduo, alterando o código genético, mexendo em seu substrato
molecular e ajustando sua programação celular. Os dados estatísticos
mostram que a expectativa de vida não cessa de se estender: no início do
século XVIII, uma pessoa vivia em média quarenta anos, um século depois,
homens e mulheres ganharam mais uma década; atualmente, a expectativa
média mundial é de 75 anos, superando os oitenta em vários países. Quanto
ao futuro, os cientistas com afluências fáusticas são pródigos em proferir e
inspirar previsões grandiloquentes (SIBILIA, 2015, p.56).
Assim, provisoriamente se busca melhorar a atual condição de vida orgânica até que se
possa transcendê-la completamente. Por enquanto, realiza-se o esforço para tornar o corpo
humano imortal para que se adapte aos ditames de um propósito maior estabelecido não por
decreto divino, mas pelos próprios seres humanos que assumiram os rumos da história, que
almejam eles mesmos serem detentores de poderes divinos. Pois está evidente que o orgânico
não é mais prioridade, o tecnológico assumiu a sua posição prioritária, o orgânico é
transitório, perecível. E como fruto da natureza preexistente se tornou matéria-prima a ser
manipulada com vistas a alcançar propósitos superiores. Nas palavras de Pepperell (2003,
p.161):
A era pós-humana, então, começa na sua totalidade quando já não achamos
necessário, ou possível, distinguir entre humanos e natureza. Isso não
significa que as categorias de humanos e da natureza, ou mesmo deuses,
deixarão de exercer influência sobre a conduta dos assuntos globais. Mas vai
marcar o tempo em que nos movemos verdadeiramente da condição humana
para a pós-humana da existência.
Retomando a analogia gnóstica, por hora, através da tecnociência são exibidas as
potencialidades demiúrgicas, busca-se a ampliação de tecnologias da imortalidade, seja sob o
suporte da inteligência artificial ou da engenharia genética, passando pela criogenia, ou cada
vez mais como se nota na atualidade, recorrendo-se ao uso de produtos farmacêuticos
antioxidantes e todos os tipos de dietas em conjunto com terapias corporais. Todavia sempre
almejando tecnologias superiores que possam conduzir a humanidade sempre avante. Das
potencialidades demiúrgicas contemporâneas emanam combinações do orgânico e do
inorgânico, do natural e do artificial. Porém como escreveu Paula Sibilia (2015, p.51):
A tecnociência contemporânea é um tipo de saber com forte inspiração
fáustica, pois algumas de suas vertentes almejam ultrapassar todas as
limitações ligadas à materialidade do corpo humano. Estas são entendidas
como rudes obstáculos orgânicos que restringem as potencialidades e as
ampliações de cada indivíduo, bem como da espécie em conjunto. Um
grande leque desses limites corresponde ao eixo temporal da existência; por
isso, a fim de romper essa barreira imposta pela temporalidade humana, que
é finita por definição, o arsenal tecnocientífico é colocado a serviço da
reconfiguração do que é vivo, em luta contra o envelhecimento e a morte.
Os trans-humanistas demiurgicamente enxergam nos instrumentos da tecnociência a
possibilidade de não somente prolongar a vida, mas até mesmo de criá-la. Segundo o que já
foi mencionado anteriormente, não há mais razões para aguardar pacientemente pela fortuna,
porque podem agir impulsionados por sua própria virtú. Nesta perspectiva, questões como a
vida e a morte não seriam mais concebidas como obras da natureza, ou, no caso da morte,
como uma fatalidade a respeito da qual não há o que ser feito. A vida e a morte perdem o seu
caráter sagrado, deixam de ser objeto da inviolável vontade divina e de estar além do alcance
dos que habitam a dimensão terrena.
Todavia, o objetivo que está sendo perseguido é alcançar uma forma de existência pós-
humana e pós-orgânica e para que este propósito seja atingido é necessário transcender a
condição biológica e corpórea atual dos seres humanos. Já no primeiro ponto da Declaração
Trans-humanista8 está expressa a crença neste objetivo: “Nós vislumbramos a possibilidade
de ampliar o potencial humano superando o envelhecimento, as deficiências cognitivas, o
sofrimento involuntário e nosso confinamento ao planeta Terra”. Assim, os trans-humanistas
imaginam um futuro no qual poderão coexistir “futuros intelectos artificiais, formas de vida
modificadas ou outras inteligências às quais o avanço tecnológico e científico possam dar
origem”.
Acredita-se piamente que o avanço tecnológico dará origem a outras formas de vida
além das que são atualmente conhecidas, o próprio conceito de vida está em discussão,
principalmente no que se refere ao seu referencial orgânico e biológico. De acordo com trans-
humanistas como Pepperell (2003), até mesmo “máquinas complexas são uma forma
emergente de vida”. Anseia-se pela emergência de uma singularidade, uma inteligência
artificial que adquirirá consciência e ultrapassará a inteligência humana.
Mesmo que limitemos nossa discussão a computadores que não sejam
derivados diretamente de um cérebro humano particular, eles parecerão cada
vez mais ter suas próprias personalidades, evidenciando reações que só
podemos rotular como emoções e articulando seus próprios objetivos e
propósitos. Eles parecerão ter vontade própria. Afirmarão ter experiências
espirituais. E as pessoas – aquelas que ainda usam neurônios com base em
carbono – vão acreditar nelas (KURZWEIL, 2007, p.24).
Uma vez que máquinas complexas podem ser consideradas como formas de vida,
elimina-se a distinção entre o humano e a máquina. Andróides não serão mais máquinas que
imitam a constituição orgânica e psicológica humana, uma vez que adquiram consciência,
serão elevados ao mesmo status atribuído atualmente aos humanos. Neste imaginário,
consciências humanas poderão ser transferidas para os mesmos ambientes nos quais as
consciências artificiais habitarão, em outros termos, co-existirão como uma consciência
superior. Uma vez libertos das restrições impostas pela condição biológica, humanos e
consciências artificiais transcenderão. Kurzweil (2006), no livro The Singularity is Near,
descreve como a engenharia genética, a robótica, a tecnologia da informação e a
nanotecnologia unirão poderes para transformar e depois transcender a espécie humana.
8 A Declaração Trans-humanista pode ser encontrada em https://humanityplus.org/philosophy/transhumanist-
declaration/.
Neste cenário, aguarda-se a chegada do momento no qual se poderá remover a mente
do cérebro humano e transferi-la para um dispositivo inorgânico ou para uma existência em
ambiente digital e cibernético nos quais todas as consciências estariam conectadas.
Embora, conforme já mencionado, a produção discursiva trans-humanista seja
abrangente e imprecisa, compreende-se que um pós-humano é um descendente humano que
foi aumentado a tal ponto que não seja mais humano. Os trans-humanistas anseiam se tornar
pós-humanos. Como pós-humanos, suas habilidades mentais e físicas superariam em muito as
de qualquer humano que não tenha sido aperfeiçoado. Um pós-humano seria mais inteligente
que qualquer gênio humano e seria capaz de lembrar-se das coisas muito mais facilmente.
Pós-humanos podem ser completamente sintéticos, híbridos orgânicos e maquínicos ou eles
poderiam ser o resultado de melhoramentos no ser humano biológico ou trans-humano.
Todavia, encontra-se entre os que propagam estas ideias a expectativa de que os pós-humanos
irão se livrar de seus corpos e viver como padrões de informação em grandes redes de
computadores super-rápidas.
As potencialidades demiúrgicas da tecnologia garantirão a sobrevivência do corpo até
o surgimento de uma tecnologia que possibilite descartá-lo completamente. Os trans-
humanistas possuem, deste modo, um triplo objetivo: preservar a humanidade em curto prazo;
aprimorá-la dramaticamente em um futuro próximo; para enfim superá-la completamente.
O primeiro e o segundo objetivos garantem lidar com o problema dos limites impostos
pelo tempo, porém o propósito almejado é a transcendência, ultrapassar não somente os
limites temporais, resolver o problema da morte e eliminar as fraquezas típicas da condição
corpórea, mas também os espaciais. Para que este último problema seja resolvido, acreditam
que devem transferir a consciência para uma forma de existir que não dependa da matéria (se
bem que cada vez mais, matéria é concebida como energia) e que a liberte dos limites
espaciais.
Hans Moravec (apud KRUEGER, 2005, p.77), em texto publicado em 1996, expôs sua
visão sobre a existência humana numa realidade virtual absoluta como o objetivo final da
evolução. Ou seja, a personalidade humana, a sua “mente”, deve ser digitalizada como uma
simulação perfeita e deve continuar a existir daí em diante como um ser imortal dentro do
armazenamento de dados de um computador. A existência no ciberespaço garantiria este
objetivo, acreditam. Além disto, seria a possibilidade de estabelecer a conexão de todas as
consciências, até mesmo as consciências das inteligências artificiais, que a esta altura do
processo teriam superado a inteligência humana e seriam as realizadoras deste tão aguardo
acontecimento. O empenho por desvincular a existência humana da condição orgânica é o
propósito a ser buscado com afinco, a meta é transcender a atual condição biológica, este é o
importante evento escatológico.
4.5 A singularidade: auto-redenção pelo conhecimento
Em março de 1993, em simpósio patrocinado pela NASA Lewis Research Center e
pelo Ohio Aerospace Institute, Vernor Vinge apresentou um artigo cujo título era
Technological Singularity, no qual discorreu sobre o surgimento de uma “singularidade”. Esta
para Vinge seria o surgimento de um intelecto que superaria o humano e seria o responsável
pelas transformações que ocorreriam deste momento em diante. Este acontecimento estaria
relacionado ao amplo desenvolvimento da Inteligência Artificial. Atrelado a isto e como sua
preparação estaria o desenvolvimento de computadores com milhões de vezes o poder de
processamento do cérebro humano.
Sobre os desdobramentos destas ideias, Michael Zimmerman (2008) menciona que,
mesmo reconhecendo que o escrutínio público na atualidade tem focado principalmente em
pesquisa sobre células-tronco, clonagem e outros tipos de bioengenharia, os trans-humanistas
afirmam que tais conquistas empalidecerão em comparação com as consequências da
confluência entre engenharia, nanotecnologia, robótica e inteligência artificial. Recentemente
Ray Kurzweil e outros têm afirmado que a confluência da nanotecnologia, inteligência
artificial, robótica e engenharia genética em breve produzirão seres pós-humanos que
superarão a atual humanidade em muito em poder e inteligência. Do mesmo modo como os
buracos negros se constituem uma “singularidade” da qual nada pode escapar, os pós-
humanos se constituirão uma “singularidade”, cujos objetivos e capacidades estão além do
alcance dos humanos atuais. Os trans-humanistas nutrem a expectativa de que nas próximas
décadas, como as taxas de inovação nesses domínios tornam-se exponenciais e são
representadas quase verticalmente nos gráficos, surgirá uma “Singularidade”. Quando isto
acontecer, surgirão seres pós-humanos cujo poder e inteligência superarão os que os humanos
possuem até agora, isto de tal forma que os pós-humanos parecerão divinos.
Vinge tomou o termo “singularidade” emprestado da astrofísica, que o utiliza para
descrever o horizonte de eventos em torno de um buraco negro, pois a atração gravitacional
em seu em torno é tão grande que nada, nem mesmo a luz, pode escapar. Não se pode saber
nada sobre o que ocorre depois que a força da gravidade toma conta. De modo similar, tanto
Vinge quanto Kurzweil utilizam o termo para se referir ao evento horizonte que surgirá uma
vez que surja a inteligência pós-humana que é muito maior do que qualquer coisa que os
humanos possam agora imaginar.
Kurzweil (2005), em The Singularity is Near, define a “singularidade” como a
inteligência não-biológica criada e que será um bilhão de vezes mais poderosa que toda
inteligência humana hoje. Para ele, em um quarto de século, a inteligência não-biológica
corresponderá à variedade e sutileza da inteligência humana. Emergirá por causa da
aceleração contínua das tecnologias baseadas em informações, bem como a capacidade das
máquinas compartilharem instantaneamente seus conhecimentos. Nanorobôs inteligentes
estarão profundamente integrados aos corpos humanos, seus cérebros e seu ambiente,
superando a poluição e a pobreza, proporcionando longevidade. Todavia, isto ainda será um
estágio precursor, a inteligência não-biológica terá acesso ao seu próprio design e será capaz
de melhorar a si mesma de forma crescente, implementando um ciclo de redesenho rápido.
Chegar-se-á a um ponto no qual o progresso técnico será tão rápido que a inteligência humana
não aprimorada não poderá segui-lo. Assemelhando-se ao que ocorre com a singularidade na
astrofísica, no tocante a dificuldade de enxergar além do evento no horizonte de um buraco
negro, também será difícil enxergar além do horizonte de eventos da Singularidade histórica.
Isto no sentido de imaginar, como tentativa de antecipação, as transformações que serão
realizadas através da intervenção deste tipo de inteligência na natureza. Todavia, Kurzweil
especula a respeito disto, refletindo que se com a atual limitação dos cérebros biológicos se
realizou grandes coisas, imagine o que a civilização futura, com sua inteligência multiplicada
trilhões de vezes, será capaz de pensar e fazer. Kurzweil (2005) emprega um discurso
escatológico ao declarar o destino final da Singularidade e do universo, que consistirá em
fazer com que a civilização humana se expanda, transformando toda a matéria e a energia
existente em uma matéria e energia sublimemente inteligentes e transcendentes. Isto de tal
forma que, em certo sentido, pode-se dizer que a Singularidade acabará por infundir o
universo com espírito.
No tocante ao discurso escatológico dos trans-humanistas, Michael Zimmerman
(2008) expõe que embora muitos trans-humanista sejam ateus declarados, Kurzweil insiste
que a ideia de Deus necessita ser redefinida, não descartada, porque os descentes da
humanidade que se tornarem pós-humanos serão seres divinos capazes de reinventar todo o
universo. Em outros termos, Kurzweil propõe a revisão da concepção habitual de Deus para
acomodar a possibilidade de que os seres humanos estejam participando de um processo pelo
qual os seres pós-humanos alcançarão poderes equivalentes àqueles geralmente atribuídos a
Deus. Trata-se de um processo de auto-redenção e auto-divinização através do conhecimento.
Sobre este conhecimento redentor, Zimmerman (2008) expõe ainda que antes de
prosseguir, deve-se perguntar: O que, exatamente, significa “inteligência” nos termos trans-
humanistas? E prossegue, afirmando que os que postulam a existência de humanos altamente
aperfeiçoados não têm uma definição comum disso, embora falem de inteligência em termos
do poder computacional do cérebro, que está ligado à cognição humana. E que tal atividade
cognitiva é claramente valorizada entre os muitos cientistas e especialistas técnicos atraídos
por este processo de aprimoramento. Acredita-se, por sua vez, que liderando o apoio à
singularidade pós-humana, de acordo com a crescente visibilidade internacional do
movimento trans-humanista, surgirá uma onda de novas ciências e tecnologias para melhorar
o humano em suas habilidades e aptidões físicas e mentais, para melhorar aspectos
considerados indesejáveis e desnecessários da condição humana, como doença,
envelhecimento e morte. Este conhecimento redentor é uma clara descrição de como
engenharia genética, robótica, tecnologia da informação e nanotecnologia irão unir forças para
transformar e depois transcender a espécie humana.
Para os gnósticos clássicos, o conhecimento sobre a história pré-cósmica possuía
caráter salvífico, pois consistia num telos para existência por apontar o caminho para
libertação da atual condição caída, que era compreendida como decadente, o mundo material,
a presente existência era uma condição de ignorância e alienação. De forma análoga, os trans-
humanistas acreditam que um conhecimento superior dará a humanidade as possibilidades
para transcender. E da mesma maneira como o gnosticismo clássico a unificação (uma fez que
a queda criou multiplicidade, uma diáspora dos seres), os trans-humanistas aguardam o tempo
no qual todas consciências estarão interligadas.
Hermínio Martins (2012, p.23) cita a tendência de tecnólogos de conceber tecnofanias
ligadas ao discurso sobre tecnologias de informação:
Os tecnólogos de hoje têm a tendência de conceber tecnofanias nas quais a
dominação total da Natureza é ela mesma quase desmaterializada em saber
absoluto e numa espécie de totum simul. Versões correntes de tecnofanias
ligadas ao discurso sobre as tecnologias da informação, nas quais a
“informação” se torna o conceito dominante do quadro categorial, sugerem
que a conversão total do não-informacional em informação é o momento da
consumação do progresso tecnológico.
Cada vez mais no mundo contemporâneo se percebe o modo como a tecnociência, em
sua busca por adquirir total domínio sobre a natureza, já ultrapassou as concepções
mecanicistas da realidade, tão comuns no início da Modernidade. A busca foi direcionada
para desvendar as informações que explicam os níveis mais abstratos e invisíveis do mundo e
para dominar os processos de reprodução e controle proporcionados por estas informações.
No prefácio escrito por Luís Furtado (1993, p.21) ao livro de Oswald Spengler, O homem e a
técnica, no qual é avaliada a responsabilidade da tecnociência no “declínio do Ocidente”,
encontramos uma menção a esta mudança:
Ao contrário da física clássica que se inspirava na realidade dimensional da
natureza organizando o espaço do homem em confiantes representações, o
caminho da física moderna tem sentido inverso. Parte de abstracções que
devem ser comprovadas nesta zona real, traduzindo possibilidades muito
concretas. Isto tem como consequência o declínio de toda atividade
representativa, e corresponde à descoberta da estrutura cada vez menos
sensível e cada vez mais transparente da matéria, nos limites já invisíveis do
próprio átomo. É sabido que este elemento postula e representa uma
inesgotável fonte de energia.
Em outras palavras, é na transparência da matéria e nos limites invisíveis do átomo,
nas estruturas moleculares, que se busca a informação, o texto codificado e inscrito no suporte
biológico. Persegue-se com afinco a compreensão profunda dos processos de surgimento da
informação sobre o mundo e sobre em que consiste a vida.
Na tecnociência de inspiração fáustica, a natureza é decomposta e recriada,
não mais de acordo com um regime mecânico-geométrico que permitia
ajustes analógicos sob o lema do progresso ou da evolução, mas de modos
bem mais radicais, inspirados no modelo informático-molecular (SIBILIA,
2015, p.86).
Uma vez que se tenha obtido o domínio pleno sobre o conhecimento que torna
possível a transformação do que tem sido compreendido como natureza. Um processo de
metamorfose que resultará numa nova natureza na qual o artificial predomina sobre o natural,
na qual a cultura assume o rumo dos acontecimentos que se seguirão. A engenhosidade do
pensamento humano se imporá como uma vontade divina transfigurando toda a realidade
conhecida. A dúvida no tocante ao limite entre natureza e cultura não existirá, pois a cultura a
esta altura terá ultrapassado esta fronteira. E o que outrora foi concebido como natureza terá
sido absolvido e se tornado parte da cultura. O “penso, logo existo” será real em sentido
pleno, pois este critério psicológico para existência será levado até as últimas consequências,
uma vez que tudo o que for pensado poderá ser tecnologicamente criado, trazido à existência.
Esta é a crença que move as ações dos trans-humanistas, com um imaginário intensamente
inspirado nas projeções de progresso inerentes da tecnociêcnia contemporânea.
4.6 Conclusão
Chegando ao encerramento deste capítulo, perante o exposto, pode-se notar (mesmo
sem estabelecer relação causal entre a tecnociência contemporânea que serve de inspiração
fáustica para as ideias e o imaginário de trans-humanistas) uma relação analógica entre
gnosticismo e trans-humanismo.
Esta relação assume relevo especialmente em seu caráter claramente escatológico,
visto que os trans-humanistas ao se empenharem em benefício de um cada vez maior
desenvolvimento técnico e científico o fazem na esperança de que este estabeleça as
condições para que se atinja a meta de um futuro pós-humano, ou pós-biológico.
Esta expectativa futura de surgimento de uma nova era e consequentemente o fim da
anterior são elementos que tipificam as escatologias. Como discutido no início deste capítulo,
as escatologias são cosmogonias direcionadas para o futuro. Visto que as cosmogonias narram
os mitos sobre as origens do cosmo, semelhantemente as escatologias narram o fim do cosmo
para que um novo seja criado. Isto no que se refere ao imaginário trans-humanista é tipificado
como o fim da atual condição humano e biológica para oferecer lugar a uma condição pós-
humana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O pós-humanismo (enquanto movimento que visto genericamente ambiciona controlar
o mundo e transcender a condição humana) tende a ter curta duração, pois dificilmente
conseguirá exercer influência sobre o pensamento das massas. Todavia serve para ilustrar a
tese que está sendo defendida ao longo desta pesquisa, que a consciência secularizada do
homem moderno, em diversos exemplos, está sob influência de uma inconsciência religiosa.
Além disto, o pós-humanismo é, em certo sentido, uma exacerbação do reconhecimento de
que o humanismo ocidental fracassou em seu projeto humanizador do homo sapiens.
Assim, dentre tantos conceitos relevantes a esta a discussão há mais um a ser
esclarecido já de imediato, o conceito de “condição humana”. Esta necessidade de
esclarecimento se torna urgente pelo fato desta noção servir de fundamento para o que se
compreende por humano e tudo o que isto implica, tal como a noção de “direitos humanos” e
esta associada à dignidade inerente a todos os que sejam partícipes da “condição humana”.
A humanidade coexiste no mundo com outros seres, dentre estes, diversos seres vivos
reconhecidos como animais não humanos. Todavia fundamentado em quê tal distinção é
feita? O que torna os humanos o que são e distingue-os dos não humanos?
Enquanto os animais não humanos vivem em mundos fechados com estruturas
predeterminadas pelo equipamento biológico das diversas espécies animais, a relação do
humano com seu ambiente, em contraste, caracteriza-se pela abertura para o mundo
(GEHLEN, 1949/1957). Isto no sentido de que o humano não somente conseguiu estabelecer-
se na maior parte da superfície do planeta, mas também pelo fato de sua relação com o
ambiente circunstante ser muito imperfeitamente estruturada por sua constituição biológica.
Sem dúvida a constituição biológica do ser humano lhe permite as condições para que se
empenhe em diferentes atividades. Em outros termos, o processo de tornar-se humano realiza-
se através da correlação com o ambiente. O organismo humano manifesta uma imensa
plasticidade em suas respostas às forças ambientais que agem sobre ele. Isto é observável na
flexibilidade da constituição biológica humana ao ser submetida a uma multiplicidade de
determinações socioculturais. Porém isto não significa que não haja limitações
biologicamente determinadas para as relações entre o humano e o ambiente onde vive
(BERGER; LUCKMANN, 1966/2014).
Em harmonia com o pensamento de Arnold Gehlen, Peter Berger e Thomas Luckmann
(1966/2014, p.70) afirmam:
A humanização é variável em sentido sociocultural. Em outras palavras, não
existe natureza humana no sentido de substrato biologicamente fixo, que
determine a variabilidade das formações socioculturais. Há somente a
natureza humana, no sentido de constantes antropológicas (por exemplo,
abertura para o mundo e plasticidade da estrutura dos instintos) que delimita
e permite as formações socioculturais do homem.
Gehlen, por meio da antropologia filosófica, busca rearticular a cultura ao substrato
biológico que lhe é subjacente, de forma a identificar os elementos definidores da conditio
humana, isto é, “constantes antropológicas” verificáveis em todas as sociedades ao longo de
todas as épocas da evolução da humanidade. E dentre estas “constantes antropológicas” se
deve considerar a plasticidade da estrutura dos instintos ou equipamento biológico humanos, a
abertura do humano para o mundo (algo que o torna um ser contingente, ou em termos
heideggarianos, um “ser-aí” (Dasein), um ser de possibilidades), mas que ao mesmo tempo
ordena o seu habitat e busca na ordem os limites para se proteger da ilusão de que a sua
abertura para o mundo lhe possibilita tudo.
Por sua vez, nos termos do existencialismo de Jean-Paul Sartre (2013), não se é
humano, torna-se humano, pois “a existência precede a essência” (p.23). Observe-se isto
explicado pelo próprio Sartre (2013, p.25):
Que significa, aqui, que a existência precede a essência? Significa que o
homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo, e se define em
seguida. Se o homem, na concepção do existencialismo, não é definível, é
porque ele não é, inicialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa
posteriormente, e será aquilo que ele se tornar. Assim, não há natureza
humana, pois não há um Deus para concebê-la. O homem é, não apenas
como é concebido, mas como ele se quer, e como se concebe a partir da
existência, como se quer a partir desse elã de existir, homem nada é além do
que ele se faz. Esse é o primeiro princípio do existencialismo.
O humanismo-existencialista de Sartre concebe o homem como um existente que
assume a incumbência de projetar a si mesmo, de definir a sua essência, o homem é “como se
concebe a partir da existência”. E se, por um lado, Sartre afirma que “não há natureza
humana, pois não há um Deus para concebê-la”, por outro lado, ao declarar o homem como
projetista de si mesmo, torna-o seu próprio deus, uma vez que “se concebe a partir da
existência”.
Neste sentido, o existencialismo não escapa do mesmo princípio metafísico que
conduziu o humanismo renascentista. Este humanismo definiu o ser humano como “animal
racional”, e, ao interpretar o humano desta forma, acrescenta que este se diferencia dos
demais animais por ser complementado com algum acréscimo cultural e por adições
espirituais. Desta forma, o empenho do humanismo moderno se orientou pela tarefa de
construir racionalmente o ideal de humano e de civilização humana. Todavia, este projeto de
humanismo, em seu afã por construir a humanidade ideal, resultou na tomada de poder sobre
todos os seres e na natural cumplicidade de todos os possíveis horrores que podem ser
cometidos em nome do bem humano.
Isto foi afirmado pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk que (comentando a carta de
Heidegger sobre o humanismo, escrita no outono de 1946, logo após a Segunda Guerra)
salienta que Heidegger interpretou o mundo histórico da Europa como o teatro dos
humanismos militantes, e acrescenta:
Sob essa perspectiva, o humanismo se oferece como cúmplice natural de
todos os possíveis horrores que podem ser cometidos em nome do bem
humano. Mesmo na trágica titanomaquia da metade do século entre o
bolchevismo, o fascismo e o americanismo exibiram-se, na visão de
Heidegger, somente três variações dessa mesma força antropocêntrica e três
candidaturas a um domínio humanitariamente ornado do mundo – dentre as
quais o fascismo errou o passo ao exibir mais abertamente que seus
concorrentes seu desprezo por valores inibitórios pacíficos e educacionais.
De fato, o fascismo é a metafísica da desinibição – talvez mesmo uma forma
desinibida da metafísica. Na visão de Heidegger, o fascismo foi a síntese do
humanismo e do bestialismo; isto é, a paradoxal confluência de inibição e
desinibição (SLOTERDIJK, 2000, p.31).
Sloterdijk (2000) menciona “valores inibitórios pacíficos e educacionais” como
elementos que estiveram associados ao projeto humanista, isto porque ele entende que há algo
acerca do humanismo, tanto do moderno quanto o dos dias dos romanos, sem o qual a
tendência humanista não se deixa jamais compreender inteiramente, pois, segundo Sloterdijk
(2000, p.16), “o humanismo, como palavra e como assunto, sempre tem um ‘contra quê’, uma
vez que constitui o empenho para retirar o ser humano da barbárie”, e acrescenta (p.17): “O
tema latente do humanismo é, portanto, o desembrutecimento do ser humano, e sua tese
latente é: as boas leituras conduzem à domesticação”.
Sloterdijk (2000, p.10) identifica no humanismo moderno e burguês um humanismo
literário, que atua através de processo educacional para formar o “modelo de uma sociedade
literária na qual os participantes descobrem, por meio de leituras canônicas, seu amor comum
por remetentes inspiradores”.
Pois o que são as nações modernas senão eficazes ficções de públicos
leitores que teriam se transformado, pelos mesmos escritos, em uma
associação concordante de amigos? O serviço militar obrigatório universal
para jovens do sexo masculino e a leitura obrigatória universal dos clássicos
para jovens de ambos os sexos caracterizam a época burguesa clássica, isto
é, aquela era da humanidade armada e dedicada à leitura, para a qual os
novos e velhos conservadores de hoje olham nostálgicos e ao mesmo tempo
impotentes, totalmente incapazes de dar conta, em termos da teoria dos
meios de comunicação, do sentido de um cânon de leitura – quem quiser
uma visão atual sobre isto pode verificar quão precários foram os resultados
obtidos em um debate nacional ocorrido recentemente na Alemanha sobre a
alegada necessidade de um novo cânon literário (SLOTERDIJK, 2000,
p.12).
Em sua reflexão sobre o fenômeno do humanismo, Sloterdijk (2000, p.16-17) lembra
que está no centro disto o questionamento sobre o futuro da humanidade e dos meios de
humanização, se há alguma esperança de dominar as tendências embrutecedoras entre os
homens. Ele percebe que no tocante a isto há como uma perturbadora importância o fato de
que o embrutecimento, hoje e sempre, costuma ocorrer exatamente quando há grande
desenvolvimento do poder, seja como rudeza imediatamente bélica e imperial, seja como
bestialização cotidiana das pessoas pelos entretenimentos desinibidores da mídia.
O fenômeno do humanismo hoje merece atenção antes de mais nada porque
nos recorda – embora de forma velada e tímida – que as pessoas na cultura
elitizada estão submetidas de forma constante e simultânea a dois poderes de
formação – vamos aqui denominá-los, para simplificar, influências
inibidoras e desinibidoras. Faz parte do credo do humanismo a convicção de
que os seres humanos são “animais influenciáveis” e de que é portanto
imperativo prover-lhes o tipo certo de influências. A etiqueta “humanismo”
recorda – de forma falsamente inofensiva – a contínua batalha pelo ser
humano que se produz como disputa entre tendências bestializadoras e
tendências domesticadoras (SLOTERDIJK, 2000, p.17).
Diante da constatação de que “o humanismo, como palavra e como assunto, sempre
tem um ‘contra quê’, uma vez que constitui o empenho para retirar o ser humano da barbárie”,
Sloterdijk (2000, p.18) afirma:
Só pode entender o humanismo antigo se o apreendermos também como
uma tomada de partido em um conflito de mídias – isto é, como a resistência
do livro contra o anfiteatro e como oposição da leitura filosófica
humanizadora, provedora de paciência e criadora de consciência, contra as
sensações e embriaguez desumanizadoras e impacientemente arrebatadoras
dos estádios. O que os romanos cultos chamavam humanitas seria
impensável sem a exigência de abster-se da cultura de massas dos teatros da
crueldade. Se o próprio humanista se perder alguma vez em meio à multidão
vociferante, que seja tão somente para constatar que também ele é um ser
humano e pode, por isso, ser contagiado pela bestialização. Ele retorna do
teatro para casa, envergonhado por ter compartilhado involuntariamente as
contagiantes sensações, e está agora disposto a admitir que nada de humano
lhe é estranho. Mas o que se diz com isto é que a humanidade consiste em
escolher, para o desenvolvimento da própria natureza, as mídias
domesticadoras, e renunciar às desinibidoras. O sentido dessa escolha de
meios consiste em desabituar-se da própria bestialidade em potencial, e pôr
distância entre si e a escalada desumanizadora dos urros do teatro.
Por sua vez, Heidegger (1946/2009) desenvolve a sua reflexão sobre o humanismo em
uma carta dirigida primeiramente a Jean Beaufret, em Paris, posteriormente publicada e
traduzida por conta do autor. Heidegger, neste texto, retoma questões formuladas por Beaufret
e como tema de sua reposta escolhe a mais fundamental sobre o humanismo: “como restaurar
o significado da palavra humanismo? Heidegger, em sua resposta, considera a tarefa da
tradição humanística ou metafísica fracassada, principalmente quando se considera que a
catástrofe recente da Segunda Guerra revelou que o problema é o próprio ser humano e os
seus sistemas de auto-interpretação, os seus projetos de humanidade melhor.
Para Heidegger o humanismo antigo que exerceu influência sobre o renascentismo,
atrelado ao mundo romano e grego, criou uma tradição na qual concebe o humano como
“animal racional”, e aspira um ideal de humanidade em termos de oposição entre o homo
humanus e o homo barbarus, sendo que o homo humanus é o romano que exalta e enobrece a
virtus romana pela incorporação da paideia tomada dos gregos.
Os gregos são os gregos do Helenismo, cuja formação se fizera nas escolas
filosóficas. Ela se refere à eruditio et institucio in bonas artes. A paideia
assim entendida se traduz por humanitas. A romanitas propriamente dita do
homo romanus consiste nesta humanitas. É em Roma que encontramos o
primeiro humanismo. Em sua Essência, portanto, o humanismo permanece
um fenômeno especificamente romano, que nasce do encontro da
romanidade com a cultura do helenismo. A chamada Renascença dos séculos
XIV e XV na Itália é uma renascentia romanitatis. Porque o interessa é a
romanitas, trata-se da humanitas e, por conseguinte, da paideia grega. Mas o
grego aqui é sempre o grego em sua forma posterior e esta ainda assim, à
romana. Também o homo romanus da Renascença está numa oposição ao
homo barbarus. Todavia, o in-umano é agora o pretenso barbarismo da
escolástica gótica da Idade Média. Por isso, ao humanismo, entendido
historicamente, sempre pertence um stadium humanitatis que, num certo e
determinado modo, retoma a antiguidade e assim se torna cada vez um
reviver da Grécia (HEIDEGGER, 1946/2009, p.35-36).
Ainda neste contexto de crise europeia durante e pós-guerra, os três principais
modelos de humanismo – cristianismo, marxismo e existencialismo – que se candidatam
como solução para crise apenas diferem entre si na superfície e em suas interpretações
apressadas sobre o ser humano. No entender de Heidegger, são responsáveis por obstruir o
pensamento sobre a essência do ser humano, atrasando o surgimento da genuína questão sobre
essa essência. Todas estas formas representativas do humanismo, segundo Heidegger
(1946/2009, p.28-29), distanciam-se do pensamento originário e, em razão disto, não pode ser
considerado pensamento, pois pensar de modo mais originário significa essencializar, é deixar
uma coisa vigorar em sua própria proveniência, isto é, deixar que ela seja.
O Cristianismo interpreta a humanidade do homem a partir da distinção da divindade,
o homem e a história da humanidade aparecem dentro da história da salvação, concebe-se o
homem como não sendo deste mundo, uma vez que o mundo é pensado enquanto apenas uma
passagem transitória para o além. E, deste modo, constitui-se num humanismo que determina
a humanidade do homem a partir de uma interpretação previamente estabelecida da natureza
do homem, da história, do mundo, do fundamento do mundo, em resumo, uma interpretação
estabelecida do Ser em sua totalidade. Por sua vez, o humanismo marxista não necessita de
um retorno à Antiguidade, pois exige que o homem humano seja reconhecido enquanto ser
social, o homem social é para Marx o “homem natural”. Na sociedade se assegura
equitativamente a “natureza” do homem, isto é, através da totalidade de suas “necessidades
naturais” (alimentação, vestuário, reprodução, subsistência econômica). Deste modo, para
Heidegger, a questão sobre a essência do ser humano esteve perdida em meio um princípio
metafísica no qual só se consegue pensar o humano através de uma interpretação determinada
e metafísica do Ser como actus e potentia, interpretação que se identifica com a distinção de
existentia e essentia.
Heidegger (1946/2009) realiza uma análise existencial-ontológica do humano que
reconduz o homem de volta a sua essência, pois a humanidade do homem reside em sua
essência. A essência do homem está na verdade do Ser ou de certo modo do Ser, o Ser-aí
(Dasein). O pensamento restitui a essência do homem ao Ser, “essa restituição consiste em
que, no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua
habitação mora o homem” (p.24), “a história do Ser carrega e determina toda condição e
situação humana” (p.26).
O pensamento é ainda pensamento do Ser, enquanto ausculta o Ser.
Enquanto, auscultando, pertence ao Ser, o pensamento é de acordo com a
pro-veniência de sua Essência. O pensamento é, isso significa: o Ser se
apegou, num destino histórico, à sua essência” (HEIDEGGER, 1946/2009,
p.28-29).
O pensamento ausculta o Ser, e a essência do humano não está, segundo Heidegger,
em cuidar que o homem seja humano no sentido de ser transformado num animal que
raciocina, moldado segundo pensamento que elegeu um determinado estágio da humanidade e
um certo modelo de civilização como ideal de humanidade, pois a essência do homem reside
no Ser, em certo modo do Ser no qual os humanos se distinguem de todos os outros seres
vegetais e animais de forma essencial. “Auscultar o Ser”, há aqui algo místico, buscar a
essência do humano no que há de mais fundamental, permitir que o Ser se desoculte através
da linguagem, que manifeste as suas possibilidades, os modos para os quais o humano está
destinado historicamente a ser ou a se tornar.
Em sua resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, Sloterdijk (2000, p.33)
afirma existir uma história ignorada por Heidegger da saída dos seres humanos para clareira.
Isto se referindo afirmação de Heidegger no tocante a linguagem enquanto casa do Ser e ao
habitar nela o homem existe, à medida que compartilha a verdade do Ser, a clareira é o lugar
onde o Ser surge como aquilo que é. A saída dos seres humanos para a clareira é “uma
história social da tangibilidade do ser humano pela questão do ser e uma movimentação
histórica no escancaramento ontológico”.
Para Sloterdijk, a história real da clareira consiste de duas narrativas maiores que
convergem em uma perspectiva comum, segundo ele, a explicação de como animal sapiens se
tornou o homem sapiens. A primeira delas dá conta da hominização, narrando como nos
longos períodos da história pré-humana primitiva surgiu do mamífero vivíparo humano um
gênero de criaturas de nascimento prematuro que saíram para seus ambientes com um excesso
crescente de inacabamento animal.
Aqui se consuma a revolução antropogenética – a ruptura do nascimento
biológico, dando lugar ao ato de vir-ao-mundo. Dessa explosão, Heidegger –
em sua obstinada reserva contra toda antropologia, e em sua ânsia de
preservar o ponto de partida ontologicamente puro no Estar-aí (Dasein) e no
estar-no-mundo dos seres humanos – não toma nem de longe suficiente
conhecimento. Pois o fato de que o homem pôde tornar-se o ser que está no
mundo tem raízes na história da espécie, raízes que se deixam entrever pelos
conceitos profundos da precocidade do nascimento, da neotenia e da
imaturaidade animalesca crônica do ser humano. O ser humano poderia até
mesmo ser definido como a criatura que fracassou em seu ser-animal
(Tiersein) e em permanecer-animal (Tierbleiben). Ao fracassar como animal,
esse ser indeterminado tomba para fora de seu ambiente e com isso ganha o
mundo no sentido ontológico. Esse vir-ao-mundo extático e essa “outorga”
para o ser estão posta desde o berço como heranças históricas da espécie. Se
homem está-no-mundo, é porque toma parte de um movimento que o traz ao
mundo e o abandona ao mundo (SLOTERDIJK, 2000, p.34).
Este movimento que trouxe o homem ao mundo foi complementado, segundo
Sloterdijk, ao mesmo tempo por outro movimento, a entrada naquilo que Heidegger
denominou “casa do ser”, assim por meio da linguagem é mostrado aos homens que o estar-
no-mundo pode ser ao mesmo tempo experimentado como estar-consigo-mesmo. Assim,
conforme Sloterdijk (2000, p.35), “a clareira é um acontecimento nas fronteiras entre as
histórias da natureza e da cultura, e o chegar-ao-mundo humano assume desde cedo os traços
de um chegar-à-linguagem”.
Estes movimentos podem ser resumidos da seguinte forma: no primeiro, o animal se
tornou homem ao estar-no-mundo, podendo ser denominado como hominização; no segundo,
o homem se tornou humano ao habitar “a casa do ser”, a linguagem, este foi um movimento
de humanização. Porém, segundo Sloterdijk (2000, p.35-36), a história da clareira vai além da
chegada dos seres humanos às casas das linguagens:
Pois assim que os seres humanos falantes começam a viver juntos em grupos
maiores e se ligam não só às casas da linguagem, mas também a casas
construídas, eles ingressam no campo de força do modo de vida sedentário.
Daí em diante, eles estão não apenas resguardados por sua linguagem, mas
também domesticados por suas habitações. Erguem-se na clareira – como
sua marca mais vistosa – as casas dos homens (com os templos de seus
deuses e os palácios de seus senhores).
A clareira como um lugar de habitações seguras, estabelecendo uma vida doméstica,
segundo Sloterdijk (2000, p.37-38), é apenas o aspecto mais inofensivo da humanização nas
casas. Pois a clareira “é ao mesmo tempo um campo de batalha e um lugar de decisão e
seleção”. Uma vez erguidas às habitações na clareira, “deve-se decidir no que se tornarão os
homens que as habitam; decide-se, de fato e por atos, que tipo de construtores de casas
chegarão ao comando”. E isto ocorre pelo fato da clareira ser o lugar onde se revela “por
quais posições os homens lutam, tão logo se destacam como seres construtores de cidades e
produtores de riquezas”.
Deste diálogo entre Sartre, Heidegger e Sloterdijk percebemos que humano – seja ele
enquanto projetar a si mesmo (existencialismo) ou encontrar a sua essência auscultando o Ser
(existencialismo-ontológico) – não é concebido enquanto uma “natureza”, algo previamente
estabelecido, mas enquanto uma “condição ou situação humana” no mundo e, assim, aberta.
Por ser uma “condição humana” no mundo possui uma longa história, que se estende desde o
momento no qual os homens vieram habitar na “casa do ser”, posteriormente construindo
também as suas casas, vilarejos, cidades (civilizações), domesticando-se, até o estágio atual
da história da humanidade.
Isto posto, passemos a questão dos “direitos humanos” que se norteia pelo
reconhecimento da “dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis”. Tomada nestes termos fica evidente que aqui se oculta um
princípio religioso, a crença numa natureza humana previamente dada e em direitos enquanto
uma “lei natural” e universal que é análoga a algo como “a lei divina” ou “a vontade de
Deus”. A experiência histórica, porém, demonstra que o que se compreende atualmente como
direitos universais da humanidade nem sempre foi compreendido. Exemplo disto é o direito à
liberdade. Nem sempre a humanidade compreendeu que “todo ser humano tem direito à
liberdade”, pois durante séculos a humanidade considerou a escravidão algo legítimo, tal
mudança de concepção é historicamente recente.
Sloterdijk (2000), todavia, levanta uma tese que merece ser considerada. Trata-se da
“tese de que os homens são animais dos quais alguns dirigem a criação de seus semelhantes
enquanto os outros são criados – um pensamento que desde as reflexões de Platão sobre a
educação e o Estado faz parte do folclore pastoral dos europeus” (p.44-45). Isto implica no
fato que alguns poucos, elites culturais, assumirão papel ativo neste processo de domesticar
homens. Sobre isto, Sloterdijk acrescenta ainda, retomando a afirmação de Nietzsche que
havia citada outrora, “de que, dentre os homens nas pequenas casas, alguns poucos querem;
quanto à maioria, porém, outros querem por eles. Que outros queiram por eles significa que
eles existem apenas como objeto, e não como sujeito de seleção” (p.45).
As consequências disto, segundo Sloterdijk (2000, p.45), é que na atual era técnica e
antropotécnica, “os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleção,
ainda que não precisem ter se dirigido voluntariamente para o papel do selecionador”. Em tal
circunstância de desconforto no tocante ao poder de escolha, muitos buscarão o caminho da
omissão, “e em breve será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o
poder de seleção que de fato se obteve”.
Mas tão logo poderes de conhecimento se desenvolvam positivamente em
um campo, as pessoas farão uma má figura se – como na época de uma
anterior incapacidade – quiserem deixar agir em seu lugar um poder mais
elevado, seja ele Deus, o acaso, ou os outros. Já que as meras recusas ou
abdicações costumam falhar devido a sua esterilidade, será provavelmente
importante no futuro, assumir de forma ativa o jogo e formular um código
das antropotécnicas. Um tal código também alteraria retroativamente o
significado do humanismo clássico – pois com ele ficaria explícito e
assentado que a humanitas não inclui só a amizade do ser humano pelo ser
humano; ele implica também – e de maneira crescentemente explícita – que
o homem representa o mais alto poder para o homem (SLOTERDIJK, 2000,
p.45-46).
O momento histórico no qual a humanidade se encontra é um período no qual
importantes decisões políticas sobre a espécie a humana deverão ser tomadas. E conforme já
frisado por Sloterdijk não é suficiente simplesmente transferir o ônus destas decisões para
algum poder mais elevado. Ao mesmo tempo, urge a necessidade de se assumir papel ativo na
formulação de “um código das antropotécnicas”, uma vez que está implícito na constatação de
“que o homem é o mais alto poder para o homem” a tarefa de formular tal código não caberá a
Deus, ao caso, ou aos outros, mas ao próprio homem. E isto independe do fato se a
humanidade detém ou não atualmente o poder para estabelecer uma era pós-biológica, poder
para não somente intervir na cultura, mas também na própria constituição orgânica, poder de
transcender o biológico.
Se o desenvolvimento a longo prazo também conduzirá a uma reforma
genética das características da espécie – se uma antropotecnologia futura
avançará até um planejamento explícito de características, se o gênero
humano poderá levar a cabo uma comutação do fatalismo do nascimento ao
nascimento opcional e à seleção pré-natal – nestas perguntas, ainda que de
maneira obscura e incerta, começa a abrir-se à nossa frente o horizonte
evolutivo.
Pertence à rubrica da humanitas que os homens devam enfrentar problemas
demasiado difíceis para eles, e que essa dificuldade não lhes possa servir de
pretexto para deixar esses problemas intocados (SLOTERDIJK, 2000, p.47).
Nesta discussão sobre a condição humana, lida-se com o entendimento fortemente
exposto em perspectivas antropológico-filosóficas como a apresentada por Gehlen
(1948/1957) em A alma da técnica, que concebe a existência humana numa estreita relação
com a técnica, na proporção que compreende o humano como um ser corporalmente
deficiente e que por isto lança mão de técnicas compensatórias. Em outros termos, Gehlen, em
sua antropologia, segundo Brüseke (2014, p.13):
[...] situa o surgimento do homem no mundo das coisas, artefatos e utensílios
e interpreta seu desenvolvimento, como um ser técnico por natureza, carente
de instintos e fraco em relação à sua constituição orgânica (GEHLEN,
1949/1957). A técnica, supostamente “inumana”, está nesta antropologia nas
bases daquilo que denominamos como humano. Bem no espírito desta
compreensão antropológica do homem formulou Plessner (1928): “O
homem é artificial por natureza”.
Levando em consideração o que tem sido refletido por filósofos que se dedicaram a
uma filosofia da técnica, Brüseke (2014) conclui que estes resistem contra uma unificação do
seu pensamento, a filosofia não possui um conceito homogêneo da técnica. Dentre estes
filósofos nos quais se nota uma resistência contra uma unificação de pensamento estão Platão,
Aristóteles, Francis Bacon, René Descartes, Ernst Kapp, Dessauer e Heidegger.
Exemplificando o modo como não se dá esta unificação de pensamento, Brüseke destaca
como digno de observação que os filósofos da Antiguidade compreenderam a técnica mais
como um fazer do que como um artefato. “A techné dos antigos, em procedimentos
miméticos que encostam-se naquilo que é e paradigmaticamente presente no produzir artístico
tem, por assim dizer, uma conotação poética” (BRÜSEKE, 2014, p.10). Isto em contraposição
ao que é pensado no início dos tempos modernos, pois se observa que com pensadores como
Bacon e Descartes se depara com um conceito de técnica que encontrou mais tarde, na
filosofia da técnica de Heidegger, forte oposição.
Por sua vez, Brüseke lembra que uma filosofia da técnica em sentido restrito e
apresentando-se sob tal denominação existirá somente a partir da obra de Enst Kapp,
publicada em 1877 sob o título Linhas fundamentais de uma filosofia da técnica. Na mesma
direção de Brüseke, Hermínio Martins (2012) afirma que a ideia de que os artefatos técnicos
representam extensões do ser humano e do seu corpo tornou-se um lugar do pensamento
moderno, o que tem sido chamado de teoria prostética da tecnologia. Segundo Martins, esta
teoria aparece formulada numa variedade de textos, entre 1860 e 1870, sendo encontrada
também, em versões parciais, no marxismo clássico, nas popularizações da teoria
evolucionista de Darwin e na psicanálise freudiana, todavia a primeira exposição sistemática
desta perspectiva aparece no mencionado livro escrito por Kapp. Sobre este, Martins (2012,
p.15-16) acrescenta:
Enquanto hegeliano, vê a história humana como a objetivação da essência
humana. Como hegeliano de esquerda, considera que esta objetivação deriva
não do espírito, mas do ser humano corporizado. Tal como Feuerbach tinha
visto na antropologia a chave para a teologia, Kapp vê-a como a chave para
o entendimento da história da tecnologia. Formulou, assim, uma teoria
antropológica da tecnologia. A locução central explicativa desta antropologia
da tecnologia é “projeção orgânica” (Organprojektion). Deste modo, as
ferramentas primitivas são facilmente vistas como projeções de partes do
corpo humano e sobretudo da mão humana, cuja versatilidade e
maleabilidade a entronizam como parte mais tecnogênica do corpo (por
exemplo, as mãos em concha teriam gerado a classe dos implementos
contentores e o punho cerrado seria análogo dos martelos e de muitas
espécies de armas). Os sentidos humanos da vista e do ouvido forneceriam
os modelos para instrumentos ópticos e acústicos, respectivamente.
Eventualmente, a estrutura interna do corpo humano facultaria o modelo
inconsciente de outros artefatos técnicos. Mesmo as invenções recentes do
tempo de Kapp são postas em correspondência analógica com as estruturas
interiores do corpo humano: os cabos do telégrafo elétrico são comparados
aos nervos e os caminho-de-ferro ao aparelho circulatório.
A filosofia da técnica de Kapp, em sua exposição da técnica como extensão do ser
humano e aperfeiçoamento da constituição orgânica e das habilidades humanas, segundo
Brüseke (2014, p.11), é filha da sua época, compartilhando da filosofia do progresso do
século XIX e estendo, como Marx, mas sem se referir a ele, a sua validade à co-evolução do
homem e dos artefatos, produzidos por ele.
Neste sentido, Kapp enunciou uma filosofia da técnica que apresenta esta enquanto
condição do desenvolvimento humano, incluindo a sua auto-consciência. Este caráter técnico
da condição humana, conforme já mencionado, será reafirmado posteriormente nas
antropologias filosóficas de Gehlen e Plessner. Tudo isto servindo como constatação de que
artificialidade e técnica se constituem parte da condição humana.
Seguindo esta linha de raciocínio, quando os trans-humanistas reconhecem na técnica
uma variante da evolução patrocinada pelos humanos, eles não estão equivocados. Todavia,
deixando-se encantar pelo caráter contingente da técnica moderna, acreditam não haver
limites para as suas realizações. Este é o motivo de ter sido apresentado nesta pesquisa, em
seu primeiro capítulo, o conceito de “modernidade técnica”, e ter reconhecido nesta a base
existencial para a formação do pensamento que se destaca em fenômenos como o trans-
humanismo. Isto significa que no tocante a uma Sociologia do conhecimento a modernidade
técnica oferece os determinantes históricos e sócio-culturais para o surgimento de
pensamentos como o trans-humanismo.
Todavia, conforme está sendo sustentado ao longo desta pesquisa, esta base existencial
secular oculta inconscientemente uma lógica religiosa que no caso do trans-humanismo acaba
por se manifestar como uma escatologia gnóstica. Sobre esta relação analógica entre
gnosticismo e trans-humanismo, exposta mais extensivamente aqui no último capítulo,
Hermínio Martins (2012, p.17) explica:
As correntes e tendências recentes numa variedade de áreas tecnológicas,
bem como as prolépticas pretensões e profecias de destacados estudiosos em
campos tais como a genética, a engenharia biológica e a inteligência
artificial, sustentam a tese de que estamos enfrentando atualmente uma
síndrome cultural a que Victor Ferkiss (1980) chamou “gnosticismo
tecnológico” (mas que poderia igualmente chamar-se “gnosticismo técnico-
científico”, dada a interpenetração da investigação científica e da invenção
técnica. De fato, os defensores destes projetos têm sido trabalhadores
identificados primariamente como “cientistas” e não como “tecnólogos”).
A partir do citado acima, Hermínio Martins levanta um questionamento sobre a
aparente contradição entre gnosticismo e tecnologia. Na verdade, ocorre um paradoxo, para
utilizar um termo mais preciso. Isto porque é parte do gnosticismo o horror ao orgânico e a
repugnância pelo corpo, aversão pelo natural, e tecnologia implica manipulação do mundo
material, o que sugere que esta seja contra-gnóstica. Porém Martins (2012, p.18) objeta:
Todavia, pela expressão superficialmente paradoxal “gnosticismo
tecnológico” quer-se significar o casamento das realizações, projetos e
aspirações tecnológicas com os sonhos caracteristicamente gnósticos de se
transcender radicalmente a condição humana (e não simplesmente de a
melhorar e habilitar os seres humanos a triunfarem sobre forças naturais
hostis). Ultrapassar os parâmetros básicos da condição humana – a sua
finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade, limitação
existencial – aparece como uma motivação e até como uma das legitimações
da tecnociência contemporânea, pelo menos em algumas áreas.
Esta objeção está em concordância com o já exposto nesta pesquisa, que há tendências
gnosticizantes na tecnociência contemporânea, embora esta não possa ser imputada
diretamente a correntes de pensamento gnósticas designáveis. Isto mesmo admitindo a forte
influência do gnosticismo sobre o pensamento no Ocidente, o que faz com que Martins (2012,
p.20) declare: “A constelação cultural que presidiu ao crescimento da ciência moderna
nascente incluiu contribuições gnósticas”. Como exemplos de contribuições gnósticas a
ciência moderna nascente, Martins menciona que entre as influências que modelaram o
desenvolvimento da ciência matemática-experimental e das cosmologias que o acompanham
acham-se a alquimia (como berçário de práticas experimentais, mas também, em certa
medida, das suas visões mais amplas, envolvendo o projeto de domesticação do tempo e a
aceleração dos processos naturais), a astrologia ou astro-biologia, o hermetismo, o
pitagorismo místico e os ensinamentos cabalísticos, bem como uma variedade de formas de
mágica natural ou espiritual.
E, por fim, mesmo reconhecendo que não é possível estabelecer relação causal entre a
tecnociência contemporânea e alguma corrente gnóstica, esta pesquisa compartilha da mesma
percepção que levou Martins (2012, p.21) a admitir: “Contudo, não deixa de ser curiosa a
circunstância que criou o que poderíamos chamar uma afinidade eletiva entre o espírito da
tecnociência moderna e o ethos deste gnosticismo mundano e imanentizado”.
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