ajufe de cultura

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Revista de Cultura AJUFE ANO 5 . ABRIL DE 2013 . Nº 8 Ponto de vista Ministros do STJ João Otávio de Noronha e Arnaldo Esteves Lima falam sobre o trabalho no tribunal, preferências culturais e mineiridade Crônicas e contos Chico Buarque e a ditadura, causos verídicos e engraçados, a revolta de um matador que falhou em cumprir seu trabalho: conra histórias contadas com maestria por nossos magistrados Galeria Belas imagens retratadas pelos juízes federais em suas viagens pelo Brasil e o mundo

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Page 1: AJUFE de Cultura

Revista de Cultura

AJUFE

ANO 5 . ABRIL DE 2013 . Nº 8

Ponto de vista

Ministros do STJ João Otávio de Noronha e Arnaldo Esteves Lima falam sobre o trabalho no tribunal, preferências culturais e mineiridade

Crônicas e contos

Chico Buarque e a ditadura, causos verídicos e engraçados, a revolta de um matador que falhou em cumprir seu trabalho: conÞ ra histórias contadas com maestria por nossos magistrados

Galeria

Belas imagens retratadas pelos juízes federais em suas viagens pelo Brasil e o mundo

Page 2: AJUFE de Cultura

Juscelino Kubitschek chega à cheÞ a do Poder

Executivo em 1955, tornando-se sinônimo

de empreendedorismo, democracia, desen-

volvimento econômico e explosão cultural.

Contagiando a nação, ganha o apelido de

Presidente Bossa Nova e é apontado como

uma Þ gura da maior importância para o sur-

gimento do movimento de música popular

criado pelo triunvirato Tom, João e Vinícius

no Þ nal da década de 50.

JK se foi e, antes dele, a própria bossa

nova. Ela, aclamada internacionalmente,

logo retomaria seu devido lugar em Pindo-

rama. Ele, apeado e mortalmente golpeado,

transformou-se numa lenda eternamente

pranteada. Tempos inglórios aqueles. Tem-

pos da Gloriosa, agnome Redentora, que

surge envergonhada, mas, logo, escancara-

da, e deixa à mostra suas garras e tentácu-

los, como a dizer: é ano novo, o rei chegou,

há nova ordem (outorgada), urge alegria

ufanista, gerando daí uma expectativa: será

que vem aí bom tempo?

Ninguém sabe ao certo quem lhe con-

tou sobre o tempo que viria lá pelos idos de

1968. Exato mesmo só os tropicalistas alÞ ne-

tando-o as previsões. Mas se Chico Buarque

é utópico ou irônico nas entrelinhas de Bom

Tempo, fato é que aconteceu exatamente o

contrário do que ali grafou: o tempo fechou.

Mas vale a advertência: a obra do nosso maior

compositor vivo não merece interpretação li-

teral, como fez a burra censura daquele tem-

po de sufoco. A propósito, até as feministas

erraram quando satanizaram Mulheres de Ate-

nas. Ele, depois, explicou: — Eu disse exata-

mente o contrário: não se mirem no exemplo

daquelas mulheres de Atenas. Elas leram ao pé

da letra!

Mas eis que chega a roda-viva e o que era

doce acabou-se. E é fato que, a partir do gol-

pe militar (nem contragolpe, nem revolução!),

na gente deu o hábito de caminhar pelas

trevas. E naqueles idos, quando caía a tarde

feito um viaduto e um bêbado, trajando luto,

fazia irreverências mil pra noite do Brasil, a

turba espreitava a banda passar cantando

coisas de amor. E com seu canto, punhalada,

Pedro pedreiro, penseiro, esperava o trem, re-

clamando b-a-i-x-i-n-h-o: — tou me guardan-

do pra quando o carnaval chegar! Queria can-

tar pro povo e ansiava um contragolpe, mas

veio o carnaval, a festa pagã, e pela avenida o

que se viu passar foi um samba popular. Cada

Chico & Cia no tempo do sufocoRoberto Machado

Juiz federal e cronista bissexto

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contador de histórias

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paralelepípedo da velha cidade, naquela noite, se arrepia-

va com a Portela na avenida cantando em adesão àquele

bordão: — conte comigo no seu carnaval/ tô me guardando

contra o mesmo mal. Parecia um ensaio geral, um imen-

so cordão formado por quem não tinha nada pra perder;

o sonho de um carnaval, o pobre deixando a dor em casa

o esperando.

É vero que a Redentora tentou calar a voz de Chico

pela censura. Como não era de costume levar desaforo

para casa, ele até ensaiou uma reação:

— Perdão, Marquês de Tamandaré, mas você me censu-

ra até o que é de coração. Sei que a maré não tá boa, mas

não vou dar braço pra ninguém torcer. Ninguém vai me

acorrentar, nem vai calar minha viola, nem vai me levar da-

qui. Quem é você? Diga logo, que eu quero saber o seu jogo!

Apesar do semblante meio contrariado, o patrono da

Marinha era boa praça e até não desmerecia o samba, que

falava mesmo era da desvalorização do velho cruzeiro,

cujo valor o tempo inconstante roubou.

Mas o que eu quero dizer é que a coisa aqui Þ cou pre-

ta mesmo foi quando os generais tomaram gosto pelo po-

der, deixando no chinelo a era dos marechais. Parodiando

o compositor Sérgio Porto (o nosso Stanislaw Ponte Preta,

do Febeapá), parecia até coisa de samba do crioulo doido,

aquele compositor que, em palpos de aranha sobre o que

seria “atual conjuntura”, embaralhou os fatos históricos

na composição do samba de enredo de sua escola. Pois

não é que, logo depois da primeira troca de generais, a

coisa aqui também endoidou de vez! Resultado: tome

de proclamação (ratiÞ cação da ditadura pelo AI-5/1968),

deduração, prisão, explosão, censura e tortura seguida de

morte. Eram os anos de chumbo – a face mais negra da

ditadura militar instalada em 1964 – com seu nada “amo-

roso” terrorismo cultural. Pode-se dizer que, a partir de

1968, o ano que não terminou, ela, a ditadura, desatinou,

porque o Brasil Þ cou com os dias sem sol raiando. E era

muita gente partindo num rabo de foguete.

Chico & companhia já não tinham dúvida sobre o

jogo do almirante e seus iguais. E Chico foi levado, sim.

Levado pela “dura” (a polícia política da dita-dura), numa

muito escura viatura. Temendo o pior, até liberou a mulher

do dever matrimonial de Þ delidade: — ... mas depois de

um ano eu não vindo/ ponha a roupa de domingo e pode

me esquecer! Como escapou, ouviu o bom conselho que

os homens lhe deram de graça (?). E como Deus lhe deu

pernas compridas e muita malícia, pra correr atrás de bola

e fugir da polícia, escafedeu-se para além-mar, aportando

em terras de Endrigo, ali nascendo, distante dos olhos (dos

avôs), seu primeiro rebento (Sílvia), embora talvez nem

fosse o momento dele rebentar. E ele se foi cantando a

sua própria canção de exílio, prometendo voltar para o

seu lugar, porque aqui ouviu e ainda ouviria cantar uma

sabiá. Na Roma dos Césares, suportou o autoexílio gra-

ças à companhia da mulher, Marieta Severo, e do amigo

Toquinho (Antônio Pecci Filho), a quem fez a seguinte

recomendação, quando o parceiro, correndo do frio eu-

ropeu, voltava ao Brasil depois daquela temporada um

tanto forçada (a convite e por insistência do próprio Chi-

co): — ... mas não diga nada/ que me viu chorando/ e pros

da pesada/ diz que vou levando, referindo-se àqueles que

Pode-se dizer que, a partir de 1968, o ano que não terminou, ela, a ditadura, desatinou, porque o Brasil * cou com os dias sem sol raiando. E era muita gente partindo num rabo de foguete

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aqui Þ caram na resistência, driblando a “dura” e a burra

censura, a exemplo, dentre tantos, dos membros do MPB4

e de Paulo César Pinheiro, compositor insuperável, par-

ceiro da nata da música popular brasileira e companheiro

inseparável de um ser de luz, santa Clara, que se mudou

numa eterna sabiá.

Apesar de você amanhã há de ser outro dia, uma metá-

fora perigosa “homenageando” o ditador de plantão (Mé-

dici) – na verdade dirigido ao sistema como um todo e

não a certa mulher mandona –, gera verdadeiro desalento

em Chico, recém-chegado ao Brasil, em março de 1970.

Ele até volta produzindo barulho, como recomendado

pelo poeta, poetinha vagabundo, Vinícius de Moraes.

Mas, depois que seus 100 mil compactos são recolhidos

e o censor é punido por “falta de senso”, o compositor

logo percebe que as mesmas pessoas que, na noite dos

bares de então, cantam Apesar de Você, também cantam,

com igual entusiasmo, Meu Brasil, Eu Te Amo, música que

a ditadura se apropriou para divulgar seu lema: Brasil!

Ame-o ou Deixe-o.

O resto todo mundo já sabe: do medo criou-se o trági-

co e o Brasil vira um pesadelo. Aliás, não é mais pesadelo

nada. É brincadeira de gato e rato entre a cultura e a cen-

sura, parada federal: verdadeiros barnabés do funciona-

lismo público alçados a tais cargos por subserviência e

alienação, como lembra Paulo César Pinheiro. E haja sam-

ba no escuro. E haja metáforas e, às vezes, corajosa sin-

ceridade, fruto da revolta de uma geração sufocada pelo

arbítrio: – você corta um verso/ eu escrevo outro.

Exato é que, nesse tempo, o sambista já não sabe

se amor é crime ou se samba é pecado. Mas ainda assim

insiste em cantar seu refrão, sem compromisso, sem re-

lógio, sem patrão, a despeito da censura da direita e do

patrulhamento da esquerda, ambos os lados lendo po-

liticamente o que não era. Apesar do sistema, o artista

vai levando, porque a noite é criança, do samba não abre

mão e por ele faz até revolução, embora grafe “evolução”.

Mas quando, na caixinha, um novo amigo vem bater um

samba antigo, Þ ca na esperança de que amanhã tudo vol-

te ao normal, revelando seu lirismo nostálgico. A espe-

rança dele é também do povo, e até o neguinho que upa

na estrada, começando a andar, grita a plenos pulmões:

– liberdade só posso esperar!

O tempo é instável, mas todo artista sabe que o

show tem que continuar e que o importante é que a

nossa emoção sobreviva. Acontece que, nesse tempo, é

tanta faca, navalha e tesoura de chumbo grosso – com a

censura mutilando ou vetando obras a torto e a direito –

que até lhe parece que tudo que se construiu desabou,

e que é invencível a ação negativa, que vai roubando

gota a gota o seu sangue de sambista. É um desalento

que já não tem mais Þ m. Mas, mesmo com toda esgrima,

com todo clima, o artista vai levando sua rima. E Chico,

em sua vertente crítica, de olho nas relações aviltan-

tes entre capital e trabalho, a essas alturas quase uma

unanimidade nacional, dá-se à construção de uma obra

prima em dodecassílabos, tijolo com tijolo num dese-

nho lógico, alternando rimas em proparoxítonas, es-

quecendo apenas “Médici”, sugestão da viperina crítica

direitista, o jornalista David Nasser. E, em tom de ironia,

exclama Deus lhe pague por lhe deixar existir, “apesar

dessa tempestade que está aí”, outro verso que lhe foi

machucado.

Ele tem o nome tão marcado na lista negra da insensa-

tez que Carlinhos Lyra, seu parceiro na canção, comemora

– “essa passou!”, ainda que a letra fale de tema tão diverso:

apenas uma história de amor acabado. Se, pelo menos ali,

o poeta não Þ cou sem verso, a censura lhe cortou, atrás da

porta, até os pelos, ele prometendo vingar-se a qualquer

preço. E se Þ cou de saco cheio e quase sem partido, quando

foi obrigado a trocar “titica” por “coisica” e “brasileiro” por

“batuqueiro”, calaram-lhe a boca em Calabar, pela audácia

do elogio da traição, peça que questionava a história oÞ cial

da Independência do Brasil. O império já condenara ao es-

quecimento o nome daquele “traidor da pátria”. Mas Chico,

parecendo calar a boca da mulher de Calabar, resgata-o,

repetindo seu nome, de maneira sutil, no refrão da canção

CALA a Boca BÁRbara.

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lêncio impositivo, o artista, atento na arqui-

bancada, via emergir o monstro da lagoa.

Nesse tempo, também tinha muita gente

naquela de você sai sem saber se vai voltar.

No início, apenas os comunistas e simpatizan-

tes. Depois, para espanto da nação, gente de

tudo que é lado, a começar pelo estudante

Edson Luiz de Lima Souto, assassinado no res-

taurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Estam-

pada nos jornais, a foto daquele secundarista

morto chocou o país, porque a morte dele era

um pouco a morte do Brasil, tanto que Milton

Nascimento e Ronaldo Bastos compuseram

Menino, uma canção cujos primeiros versos

diziam: Quem cala sobre teu corpo/consente

na tua morte/talhada a ferro e fogo/nas pro-

fundezas do corte/que a bala riscou no peito.

E é fato que outros tantos, levados pelos ho-

mens, nunca voltaram, a exemplo do “suicida”

Vladimir Herzog e do Þ lho de Zuzu Angel, a

Angélica de Chico, aquela mulher que, lutan-

do desesperadamente contra o sistema, até

morrer também, cantava sempre o mesmo es-

tribilho: só queria embalar seu Þ lho/ que mora

na escuridão do mar.

Não dava para reclamar: – “ah, ninguém

chora por mim!”. Não! Naquele tempo, nunca

Se, para os homens da tesoura, é legal,

num fado tropical, dizer que o Brasil ainda

vai tornar-se um imenso Portugal, é ofen-

sivo aos irmãos lusitanos, merecendo veto

oÞ cial a sátira à origem da nossa síÞ lis. Se

para Chico vence na vida quem diz sim, a

navalha dá-lhe um não à moda Vinícius: a

hora do sim é o descuido do não! E se a te-

soura já não podia alcançar antiga poesia

de Drummond (Quadrilha), os insensatos,

homofóbicos, proibiram o amor dos pares

em Flor da Idade.

No Sinal Fechado, Chico denuncia a cen-

sura ao seu labor, gravando sambas prati-

camente só de outros compositores. E, para

driblar os navalhas, ele se muda até num tal

de Julinho da Adelaide, criticando o milagre

brasileiro. Mas isso foi no tempo em que a

Þ lha do general piscava, arriscava e enros-

cava Jorge Maravilha. Também não se pode

esquecer que, na dúvida se era “cálice” (Gil)

ou “cale-se” (Chico), a insensatez optou por

silenciá-la. Trocando em miúdos, estava pro-

vado que era puro engano pensar que “de

muito usada, a faca já não corta”, porque ela

continuou cortando, e o Brasil permaneceu

calado por muito tempo. Atordoado pelo si-

Exato é que, nesse tempo, o sambista já não sabe se amor é crime ou se samba é pecado. Mas ainda assim insiste em cantar seu refrão, sem compromisso, sem relógio, sem patrão, a despeito da censura da direita e do patrulhamento da esquerda

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se chorou tanto. Choravam Marias e Clarices no solo do

Brasil. Aqui um parêntese: as “Marias” são as viúvas, mães

e Þ lhas dos torturados e/ou mortos; Clarice é a viúva do

jornalista Vladimir Herzog, assassinado na prisão. EnÞ m,

chorava toda a nossa pátria-mãe gentil. Na guerrilha, os

sobreviventes cantam Pesadelo, uma canção por eles

transformada em hino: – você me prende vivo/ eu escapo

morto. De fato, Herzog escapa morto. Ele e outros tantos.

Mas sua morte foi a gota d’água e a nação mudou-se num

pote até aqui de mágoa, sentimentos brotando à ß or da

pele, com mutilados em romaria a indagar o que será que

será, todos combinando no breu das tocas, sem mais jeito

de dissimular, à busca da grande utopia, diante da falta de

limite dos agentes da repressão.

Mas eis que, como uma luz no Þ m do túnel, brota

promessa oÞ cial de abertura lenta, gradual e segura (no

governo Ernesto Geisel), uma metáfora do bruxo Golbery.

Ironia do destino para esses dois generais, porque já se

sabe hoje que Ernesto Geisel (o sacerdote) e Golbery do

Couto e Silva (o feiticeiro), tendo ajudado a construir a di-

tadura entre 1964 e 1967, desmontaram-na entre 1974

e 1979. A propósito, há muito Chico já peitava o general:

– você que inventou o pecado/ esqueceu-se de inventar o

perdão, porque, aÞ ançava, não existia pecado do lado de

baixo do Equador.

É certo que, apesar da promessa de abertura, a coisa

continuava preta, tanto que Chico não tinha como mandar

notícias frescas para seus caros amigos ainda no exílio.

Mas a anistia, ansiada por todos, até pelo bêbado e pela

esperança equilibrista, já se prenunciava sim, tanto que,

em canção zangada, disfarçada de delicadeza, fruto de

seu lirismo nostálgico, o compositor, lembrando sua ma-

ninha de uma infância imaginária e de um futuro entre

os dois combinado, garante-lhe que ele, o general, um

dia iria embora para nunca mais voltar, tal como também

previra na utópica Apesar de Você e como, depois, nos

bastidores, amaldiçoando o dia em que o conheceu (numa

madrugada, aliás!), voltou correndo ao lar pra se certiÞ car

que ele, o tal general, nunca mais voltaria. Esse dia estava

pra chegar. E era só o que pedia: um dia, até meio dia, pra

aplacar sua agonia. E o prenúncio era tanto que, com uma

receita do marido, compilada de poesia do compadre Vi-

contador de histórias

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Page 8: AJUFE de Cultura

nícius de Moraes, Marieta prepara uma feijoada completa

para um batalhão de amigos do casal: exilado, morto-vivo,

ß agelado, nego humilhado, era gente de tudo que é lado,

inclusive o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, irmão

do cartunista HenÞ l, todos com muita fome e uma sede de

anteontem. E, logo, os companheiros, apesar das marcas

que ganharam nas lutas contra o rei, foram chegando às

gargalhadas (quaquaraquaquá), entoando, numa só voz, o

Tô Voltando, canção adotada como o “hino dos exilados”,

ganhando, assim, uma conotação jamais imaginada por

seu criador, o compositor Paulo César Pinheiro.

A ditadura, encurralada, logo seria derrotada. E se tor-

naria página virada, descartada do nosso folhetim. E até

a ânsia “pela volta do cipó de aroeira/ no lombo de quem

mandou dar” foi se desgarrando do espírito da nação. E

ninguém pagou, imagine dobrado, pelas lágrimas roladas.

É certo que, quanto ao ponto, o jogo ainda não terminou.

Está na prorrogação dos tribunais, inclusive internacionais.

No entanto, nem mesmo a redemocratização extirpou o

cancro da corrupção. Mas isso até os generais de 1964 já

sabiam, mesmo que hajam cometido o exagero de perpe-

trar a conquista do Estado sob o argumento, entre outros,

de combatê-la. E a nossa pátria mãe, tão distraída, conti-

nua dormindo em berço esplêndido, sem perceber que é

subtraída em outras tenebrosas transações de um bando

de malandros com contrato, com gravata e capital, que

nunca se dá mal.

O nosso tesouro Chico Buarque – artista brasileiro,

carioca, geminiano, andarilho, ético, leal, utópico, auto-

crítico, melancólico, idealista, humanista, estrategista,

imperfeito, moleque, mágico, radical, discreto, delicado,

simples, despojado, recatado, educado, sutil, elegante,

inteligente, intuitivo, virtuoso, erudito, talentoso, gene-

roso, inovador, preservador, seresteiro, cronista social,

poeta universal, lírico e épico, cantor, dramaturgo, escri-

tor, tradutor, intelectual orgânico e substantivo, e com-

positor reencarnado e redivivo – que discute com Deus

e mexe com os prepotentes, cantou tudo na sua inesgo-

tável “Lyra” e não evitou, assim o disse nosso maestro

soberano, assuntos escabrosos: sangue, tortura, derrame,

hemorragia..., como assim também o Þ zeram muitos de

seus caros amigos. É deles, de palavra em palavra, cuida-

dosamente compiladas de seus versos e outros escritos,

o enredo desta história.

Músicas compiladas: I) De CHICO BUARQUE - Ano Novo. Bom Tempo. Mulheres de Atenas. Roda Viva. Você Não Ouviu. Rosa-dos-Ventos. A Banda. Baioque. Pedro Pedreiro. Quando o Carnaval Chegar. Vai Passar. Cordão. Sonho de Car-naval. Tamandaré. Meu Refrão. Vai Levando. Lua Cheia. Noite dos Mascarados. Meu Caro Amigo. Ela Desatinou. Acorda Amor. Bom Conselho. Partido Alto. Meu Guri. Sabiá. Samba de Orly. Apesar de Você. Samba pra Vinícius. Juca. Olé Olá. Amanhã, Ninguém Sabe. Com Açúcar, Com Afeto. Logo Eu. Desalento. Construção. Deus lhe Pague. Retrato em Branco e Preto. Essa Passou. Atrás da Porta. Cala a Boca, Barbara. Fado Tropical. Vence na Vida Quem Diz Sim. Flor da Idade. Milagre Brasileiro. Jorge Maravilha. Cálice. Trocando em Miúdos. Angélica. Gota D’água. O Que Será (Abertura). O Que Será (À Flor da Pele). Não Existe Pecado ao Sul do Equador. Maninha. Bastidores. Não Sonho Mais. Basta Um Dia. Feijoada Completa. Sem Fantasia. Folhetim. II) De SÉRGIO END-RIGO: Distante dos Olhos. III) De ALDIR BLANC: O Bêbado e a Equilibrista. IV) De PAULO CÉSAR PINHEIRO: Agora é Portela 74 (Conte Comigo). Um Ser de Luz. Pesadelo. Mordaça. Vou Deitar e Rolar (Quaquaraquaquá). Tô Voltando. V) De SÉRGIO PORTO: Samba do Crioulo Doido. VI) De VINÍCIUS DE MORAES: Insensatez. Onde Anda Você. Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão). VII) De MIL-TON NASCIMENTO e RONALDO BASTOS: Menino. VIII) De GERALDO VANDRÉ: Aroeira. IX) De EDU LOBO e GIANFRANCESCO GUARNIERI: Upa Neguinho.

Obras Pesquisadas: Juscelino Kubitschek: O Presidente Bossa Nova. Marlene Cohen. São Paulo: Globo, 2005; Eu e a Bossa. Carlos Lyra. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008; Histórias de Canções – Chico Buarque. Wag-ner Homem. São Paulo: Leya. 2009; Histórias de Canções – Toquinho. João Carlos Pecci & Wagner Homem. São Paulo: Leya. 2010; Histórias das Minhas Canções – Paulo César Pinheiro. São Paulo: Leya. 2010; Chico Buarque – Tantas Palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006; Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2009; Desenho Mágico – Poesia e Política em Chico Buarque. Adélia Bezerra de Menezes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000; PerÞ s do Rio – Chico Buarque. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999; Palavra Prima: As faces de Chico Buarque. Ana Mery S. de Carli e Flávia B. Ramos. Caxias do Sul: Educs, 2006; Poesia e Política nas Canções de Bom Dylan e Chico Buarque. Lígia Vieira César. São Paulo: Novera Editora, 2007; O Ministério do Silêncio – Lucas Figueiredo. Rio de Janeiro: Record, 2005; 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe. René A. Dreifuss. Petrópolis: Vozes, 1987; A Ditadura Envergonhada. Elio Gaspari. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; A Ditadura Escancarada. Elio Gas-pari. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b; A Ditadura Derrotada. Elio Gaspari. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; A Ditadura Encurralada. Elio Gaspari. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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