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1 Ainda cabe a pergunta: Psicologia para quê? Beatriz de Basto Teixeira 1 Introdução O contato mais recente com a pesquisa sobre o currículo escolar, especialmente depois da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do ensino fundamental pelo Ministério da Educação (BRASIL. MEC, 1997;1998), tem me feito refletir sobre a contribuição dada pela Psicologia para o desenvolvimento do processo educativo. Isso porque julgo que essa ciência pode ser fonte de esclarecimento sobre o desenvolvimento dos educandos, o processo de cognição, oferece meios para o auto-conhecimento e uma melhor compreensão do outro. Existe nos PCN uma expectativa em relação aos professores que me pareceu construir uma figura do “professor ideal”. Como se esse fosse o outro lado de uma moeda em que já estava o “aluno ideal”. A leitura desse documento foi-me fazendo recordar que essas expectativas não seriam algo exclusivo dele. Na minha, pode-se dizer, breve experiência de pesquisadora pude ter acesso a outras fontes de dados em que um processo de idealização semelhante também se manifestava. Entre uma e outra situação de pesquisa treze anos se passaram. Pretendo, portanto, chamar a atenção para a necessidade de estarmos mais uma vez analisando como a Psicologia pode ajudar a desvendar quem somos nós mesmos, professores, e quem são nossos alunos, para que a escola possa dar conta de educar os seus alunos reais, valendo-se do trabalho de seus professores reais. Estarei trazendo as informações das diferentes situações de pesquisa em ordem cronológica. Primeiramente, trarei o que me revelaram a leitura de projetos pedagógicos, ou planos diretores como eram chamados, e as entrevistas com alunos de escolas da rede estadual paulista de ensino fundamental, há cerca de dez anos (TEIXEIRA, 1995). Os depoimentos desses alunos foram ouvidos quando, em pesquisa de Mestrado, buscava suas opiniões sobre o processo educativo e possíveis razões pelas quais insistiam em se escolarizar. Nesse encontro com o passado, que no momento realizo, aproveito para prestar uma homenagem, que começa pelo título deste trabalho, a uma professora, minha professora, que se dedicou a pesquisar as diferenças entre a “Psicologia 1 Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Mestrado em Educação da UFJF.

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Page 1: Ainda cabe a pergunta: Psicologia para quê? · 1 Ainda cabe a pergunta: Psicologia para quê? Beatriz de Basto Teixeira 1 Introdução O contato mais recente com a pesquisa sobre

1

Ainda cabe a pergunta: Psicologia para quê?

Beatriz de Basto Teixeira1

Introdução

O contato mais recente com a pesquisa sobre o currículo escolar,

especialmente depois da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do

ensino fundamental pelo Ministério da Educação (BRASIL. MEC, 1997;1998), tem me

feito refletir sobre a contribuição dada pela Psicologia para o desenvolvimento do

processo educativo. Isso porque julgo que essa ciência pode ser fonte de

esclarecimento sobre o desenvolvimento dos educandos, o processo de cognição,

oferece meios para o auto-conhecimento e uma melhor compreensão do outro.

Existe nos PCN uma expectativa em relação aos professores que me pareceu

construir uma figura do “professor ideal”. Como se esse fosse o outro lado de uma

moeda em que já estava o “aluno ideal”. A leitura desse documento foi-me fazendo

recordar que essas expectativas não seriam algo exclusivo dele. Na minha, pode-se

dizer, breve experiência de pesquisadora pude ter acesso a outras fontes de dados em

que um processo de idealização semelhante também se manifestava. Entre uma e

outra situação de pesquisa treze anos se passaram.

Pretendo, portanto, chamar a atenção para a necessidade de estarmos mais

uma vez analisando como a Psicologia pode ajudar a desvendar quem somos nós

mesmos, professores, e quem são nossos alunos, para que a escola possa dar conta

de educar os seus alunos reais, valendo-se do trabalho de seus professores reais.

Estarei trazendo as informações das diferentes situações de pesquisa em ordem

cronológica.

Primeiramente, trarei o que me revelaram a leitura de projetos pedagógicos, ou

planos diretores como eram chamados, e as entrevistas com alunos de escolas da

rede estadual paulista de ensino fundamental, há cerca de dez anos (TEIXEIRA,

1995). Os depoimentos desses alunos foram ouvidos quando, em pesquisa de

Mestrado, buscava suas opiniões sobre o processo educativo e possíveis razões pelas

quais insistiam em se escolarizar.

Nesse encontro com o passado, que no momento realizo, aproveito para

prestar uma homenagem, que começa pelo título deste trabalho, a uma professora,

minha professora, que se dedicou a pesquisar as diferenças entre a “Psicologia

1 Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Mestrado em Educação da UFJF.

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Ensinada e a Psicologia Praticada”, como uma forma de compreender o papel do

professor, a influência que sua relação com os alunos pode ter no desempenho destes

e como o ensino de psicologia pode interferir no processo de ensino-aprendizagem

(CASTELLO BRANCO, 1988).

Em seguida, apresentarei as expectativas dos PCN em relação aos

professores, o que foi identificado por mim quando analisava o conteúdo do

documento em função de pesquisa de doutoramento (TEIXEIRA, 2000), em que

procurava possíveis aproximações entre suas orientações e aquelas necessárias à

construção de escolas democráticas (APPLE; BEANE, 1997). Ainda sobre as

expectativas presentes nos PCN, trarei alguns resultados de pesquisa desenvolvida

com o objetivo de perceber como tem se dado a apropriação dos PCN por professores

de ensino fundamental em duas escolas da rede estadual mineira no município de Juiz

de Fora. A pesquisa Os Parâmetros Curriculares Nacionais em escolas públicas de

Juiz de Fora, que teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas

Gerais (FAPEMIG), utilizou as mesmas técnicas em duas escolas: após uma

discussão inicial com os professores sobre os PCN, foi aplicado um questionário

respondido por todos eles e observadas aulas de Língua Portuguesa e Matemática em

todas as séries do ensino fundamental. Essa pesquisa mostra como os PCN são

desconhecidos pelos professores e que alguns juízos presentes nos planos diretores

das escolas paulistas, feitos pelos professores em relação a seus alunos, estão

atualmente presentes nas escolas mineiras pesquisadas nos anos de 2002 e 2003.

De volta ao passado

Para chegar aos alunos que seriam entrevistados à busca daqueles que

insistissem na sua escolarização percorri um longo, mas metodologicamente

necessário caminho na pesquisa para minha dissertação de mestrado (TEIXEIRA,

1995). Li 107 planos diretores, o que correspondia a projetos pedagógicos de escolas

estaduais no município de São Paulo. Eram planos supostamente elaborados pela

equipe escolar. Boa parte deles apresentava os dados resultantes de pesquisa feita

pela mesma equipe escolar para caracterização dos alunos dessas escolas. Eram as

únicas fontes disponíveis em que eu pudesse encontrar uma caracterização

socioeconômica de alunos da rede estadual, dados de que precisava para chegar às

escolas onde seria feita a pesquisa qualitativa com os alunos. Mas o material de leitura

revelou-se tão interessante que extraí dele muitas informações sobre como os

professores vêem seus alunos. Lá e cá, há mais de dez anos e hoje, um mesmo

problema. A velha figura do aluno-ideal está nas cabeças dos professores.

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Um plano diretor afirmava sobre os alunos de sua escola que "muitos não têm

respeito para com os adultos e nem para com eles mesmos, apresentam valores

incompatíveis com o convívio social e o processo educacional". Ou ainda, uma escola

em Campo Limpo escrevia em seu plano que atende alunos com "dados percentuais

de 86% despidos de preceitos econômicos, religiosos, políticos, sociais em virtude de

serem oriundos de favelas". Afinal, o que são valores compatíveis com o convívio

social e o processo educacional? Que preceitos são esses de que se fala? O aluno

que essas escolas têm não é bonzinho, limpo, bem comportado, submisso, que

aprende tudo e rápido. Afirmações como essas podem parecer prenúncios de

"profecia auto-realizadora". Vistos como incapazes, de antemão, nunca poderão

atender às exigências do processo educativo. Essas concepções acerca dos alunos

vão produzindo uma legião de fracassados na escola. O que dizer então, quando num

Plano Diretor aparece a afirmação de que os alunos "apresentam baixa auto-estima e,

em casos numerosos, ausência [dela]".

Foi por isso que lembrei da pesquisa realizada por Lisandre Maria Castello

Branco (1998), que revela como a avaliação do aluno pelo professor influi nos

resultados do primeiro. Na situação apresentada pela pesquisadora, "os professores

deveriam escolher entre os alunos de cada classe, aqueles que mais se

aproximassem de seu 'aluno-ideal' e de seu 'pior-aluno' e justificar as escolhas feitas".

As escolhas foram feitas com base em critérios organizados em dois grupos. Primeiro,

características de personalidade, sociais e morais, tendo como critérios para cada uma

dessas características: simpatia, criatividade, bom humor, discrição, humildade

(intelectual); sociabilidade, interação com os colegas e professores, liderança,

independência, companheirismo, maturidade; responsabilidade, honestidade,

persistência, seriedade, pontualidade, respeito, educação -- respectivamente. O

segundo grupo consistia de características de escolaridade e intelectuais, com os

seguintes critérios: interesse, participação, aproveitamento, atenção; raciocínio,

críticas, observação, análise, organização, perguntas inteligentes – para o primeiro e

segundo tipos de características respectivamente.

Foram, ainda, apresentados aspectos negativos (pelos professores a partir das

características "positivas" para escolha do "pior-aluno"): para o primeiro grupo foram

apontados irrequietude, desafio, infantilidade, isolamento, insolência, dissimulação,

deboche, irresponsabilidade; para o segundo grupo foram citados falta às aulas,

conversas em classe, ausência de tarefas e indiferença.

A partir disso, a autora revela que

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Entre os alunos apontados [de primeiro colegial da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP] como "aluno-ideal" estão onze meninas e sete meninos.(...) Todos os alunos mencionados foram aprovados. Entre os alunos apontados como "pior-aluno", estão oito meninos e oito meninas. (...) Deste grupo, apenas um aluno dos mais indicados conseguiu aprovação. Entre os dezesseis alunos, sete foram reprovados (cinco meninas e dois meninos). Entre os oito alunos que foram mencionados uma única vez (quatro meninas e quatro meninos), apenas duas meninas foram reprovadas (CASTELLO BRANCO, 1988, p. 214-219).

Só um aluno entre os “piores” foi aprovado naquele ano. Tendo sabido de seu

futuro, ele é advogado, formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo, aprovado em primeiro vestibular, graduado em tempo certo. Esse escapou das

profecias.

Estamos falando de preconceitos. Eles continuam agindo nas escolas. Outro

exemplo, o caso de alunos que param de estudar e voltam após muito tempo

comumente aparece relacionado entre aspectos (negativos) causadores do fracasso

escolar. Não será possível uma leitura positiva desse acontecimento? Não será esse

retorno a tentativa de reparar uma perda que possa ter causado alguma espécie de

frustração - a perda da possibilidade de acesso ao conhecimento? Ou mesmo da

simples melhoria de vida via escolarização? "Todo preconceito é condicionado por

outro preconceito, e os mais freqüentes são aqueles que provêm de suas

contradições" (CANETTI, 1989, p. 14). Cabe muito bem esta idéia ao se falar em

educação, principalmente discutindo a visão que os professores têm de seus alunos.

Neste sentido, o professor tem que ser um pouco antropólogo (e psicólogo também):

ver com familiaridade o que lhe parece estranho, ver com estranheza o que lhe parece

familiar. É a constante percepção das diferenças que o torna capaz de perceber cada

aluno em seu processo particular de aprendizagem, ao mesmo tempo em que enxerga

o conjunto de sua classe e, como num espelho, percebe a si mesmo e ao seu

trabalho. A ausência disto impede a realização do processo de ensino-aprendizagem

enquanto crescimento e transformação de todos os seus sujeitos.

Falando em perceber diferenças e trabalhar com elas é oportuno citar o

trabalho de Madalena Freire com 35 crianças de Vila Helena, no município de

Carapicuíba, na Grande São Paulo. Superando a descrença de muitos que achavam

não ser possível realizar aquele trabalho, superadas as dificuldades iniciais que iam

desde o número de crianças (inicialmente considerado alto) até a falta de condições

materiais, a professora diz:

Acabava dia, começava dia e eu me perguntando: - O que vou propor hoje? Já fiz tudo que sabia, não sei de nada, 'dentro' dessa realidade! Fui aos poucos, aceitando viver esse período de inserção, e fui começando a 'aprender a ler' esta nova realidade (MELLO; FREIRE, 1986, p. 103).

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A dificuldade de ler ou aprender a ler as realidades dos alunos impede a visão

de cada um deles como alguém que pode estar buscando algo mais na escola, além

do que o senso comum aponta como sendo merenda, proteção contra a violência no

lar ou nas ruas, só um espaço de lazer. Até porque há escola que diz ser a merenda

consumida apenas esporadicamente. Então o que querem os alunos?

Nenhuma aspiração é absoluta. Generalizar neste caso, como em vários

outros, seria um erro. Mas há uma série de razões que levam as pessoas a buscar a

escolarização, que devem ser levadas em conta ao se buscar a melhoria da qualidade

do ensino para garantir a permanência do aluno na escola.

Há alunos que têm entre suas aspirações, como apontava um plano diretor, "a

aprendizagem do saber pelo saber". Isto confirma a hipótese de que os alunos

também vão à escola em busca de conhecimento. Outros falavam em "vontade de

estudar"; diziam gostar de estudar; querer "adquirir conhecimentos"; uma escola no

bairro de Pinheiros, em São Paulo, reconhecia em seus alunos “grande potencial e

motivação para o estudo”, capacidade de crítica e que "a maioria busca na escola o

aprendizado para utilizá-lo na prática e poucos encaram o estudo como obrigação";

numa outra escola, em Jaçanã, para a maioria dos entrevistados, o papel da escola

representava a formação de um cidadão consciente e crítico; alunos no bairro de

Santa Cecília "querem um conhecimento mínimo que garanta realização pessoal".

Arrolada uma série de depoimentos que revelam o anseio por conhecimento, deve-se

refletir sobre em que medida esta expectativa está sendo satisfeita. Será que voltar a

atenção para esses dados da realidade não levaria a repensar a escola?

Essas aspirações dos alunos por conhecimento fazem pensar que quanto mais

de forma interessante se apresentar o conteúdo da Educação, maior pode ser o

número daqueles que buscam a escola para aprender. Afinal, cabe também à escola

despertar a "necessidade de conhecimento" (HELLER, 1980, p. 92), propriamente

humana, que pode existir para cada um de seus alunos.

Buscar a existência dessa motivação, dentre outras, é desafio a que os

professores devem se lançar. Uma outra interpretação do que já é conhecido também

pode abrir horizontes. É o caso de quando os alunos dizem que vêem a escola como

meio para melhorar de vida. Basta ampliar a noção do que pode ser uma vida melhor,

para vermos o quanto esta idéia pode ser explorada favoravelmente e não motivo de

ironia2. Ao restringir a idéia de uma vida melhor apenas à possibilidade de ascensão

2 Tanta filosofia não tem se dedicado a pensar numa "boa vida" para ironizar sobre as condições reais de vida do ser humano, mas justamente para propor como um valor guia aquela que deve ser a vida de todo homem que tenha se apropriado do mundo e de si mesmo.

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social, o risco de frustração é muito grande. Mas entre o que se considera uma vida

melhor também pode estar o acesso ao conhecimento produzido pela humanidade,

que enquanto um bem genérico deve ser apropriado por todo ser humano, que de

posse dele pode não morrer de Aids, por exemplo, ou evitar o sarampo de seus filhos,

ou ainda não ser presa fácil de discurso demagógico de político em época de eleição.

Se "poucos encaram o estudo como necessidade", outros "não nutrem nenhum

apreço pela cultura ou saber", ou há aqueles que "demonstram desconhecer o valor

da escolarização e seu papel na realidade", como afirmavam os planos diretores, por

que estariam na escola? Além do mais, a escola não deve apenas ensinar o que

aparece nos livros didáticos; o aluno deve ser motivado para reconhecer o benefício

que a aquisição de conhecimento lhe traz, o prazer que isto pode proporcionar. Como

diria Alain,

Não há experiência que eduque melhor um homem que a descoberta de um prazer superior, que ele teria ignorado para sempre se não tivesse se esforçado, um pouco, inicialmente. (...) Principalmente às crianças, que têm tanto frescor, tanta força, tanta curiosidade ávida, não quero que se ofereça assim a noz descascada. Toda a arte de instruir consiste em conseguir-se, pelo contrário, que a criança se esforce e se erga ao estado de homem (CHARTIER, 1978, p. 11-12).

A necessidade pode brotar do desejo despertado (HELLER, 1986); apreço se

tem pelo que se conhece ou parece bom. Quando a aula é boa, o tema estimulante,

apresentado de forma dinâmica, é possível passar horas a fio escutando o professor.

As expectativas dos alunos em relação à escola são tantas e envolvem um

leque tão variado de aspectos, que vão desde que sua escola continue sendo escola

padrão, passando por professores pacientes, até a reivindicação de que o governo dê

mais atenção às escolas, "pois nós [os alunos] somos prioridade neste país". Diante

disso, como poderia alguém falar de "ausência de aspirações, de ideais ou objetivos

de vida entre os alunos", como aparecia em um dos planos diretores? Muitos alunos

chegavam a projetar expectativas para seu futuro, almejando profissões acadêmicas

mesmo quando seus pais tinham escolaridade inferior ao 2º grau. Chegava a ser

"razoável o número de alunos que prestam vestibulares, geralmente nas faculdades

particulares da região do ABC, Itaquera, Móoca", numa escola do Jardim Fernandes

(entretanto, tinham dificuldade de se imaginar fazendo vestibular nas universidades

públicas estaduais paulistas).

Ainda quanto à valoração da escola pelo aluno, numa escola da Vila Califórnia,

bairro paulistano, era dito que "na escala de valores deles [os alunos], o trabalho vem

Conforme o modelo que Ágnes Heller constrói da "personalidade moral" sobre o "homem (virtuoso) bom" de Aristóteles, em The Power of Shame (HELLER, 1985, cap. 3).

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antes da escola". E mais, numa escola em Santo Amaro, a partir da renda familiar

majoritariamente inferior a 3 salários mínimos, "os professores concluem que os

alunos têm necessidade, em primeiro lugar, de comer e morar e em segundo lugar de

estudar". Se o conceito de necessidade é tratado à maneira de Ágnes Heller, em

Teoría de las Necesidades en Marx (HELLER, 1986), quando se fala em alimentação,

moradia, estamos tratando apenas da satisfação de condições básicas para a

sobrevivência, necessidade com um sentido puramente econômico. Não caberia

sequer comparar "comer e morar" com a necessidade de conhecimento, de estudar -

isto sim necessidade. A permanecer com o sentido econômico do conceito de

necessidade, só restaria dizer que a escolha que os referidos alunos fazem é óbvia.

Finalmente, mas não de menor importância, muito pelo contrário, foram

apontadas pelos planos diretores as causas dos altos índices de retenção e evasão

(TEIXEIRA, 1995). Uma escola em Casa Verde Alta, analisando os dados da pesquisa

realizada por seus professores entre os alunos, apontava como causas da evasão a

não fixação da família do aluno no bairro, integração precoce no mercado de trabalho,

casos de alunos que cuidam dos irmãos para os pais trabalharem; para a evasão no

noturno apontava o cansaço após o trabalho, a distância, horário da aula, dificuldade

de transporte; e, ainda, como responsável pela aprendizagem lenta por parte dos

alunos, o desinteresse da família pelo estudo e escola, falta de atenção e em alguns

casos problemas de saúde.

Interessante perceber como a escola não assume para si nenhuma parcela de

responsabilidade pelo fracasso de seus alunos. Todos os fatores apontados são

externos à escola e ao processo educativo propriamente dito. Os únicos sujeitos

responsabilizados são os pais e os próprios alunos. Onde estão os professores, a

direção da escola e orientadores?

Foram raros os casos em que, como em escola no Jardim Carombé, se admitia

que a "qualidade da aula contribui para índices de retenção/evasão, com professores

despreparados, cumprindo jornada excessiva de trabalho, mal remunerados e com

falta de material pedagógico". Outra escola, que se constituía numa verdadeira

exceção, era a localizada no Conjunto dos Bancários, que concentrava a maioria das

causas do fracasso sobre a escola, professores e recursos materiais, segundo seu

plano diretor.

A leitura de tantos planos diretores serviu para que fossem selecionadas cinco

escolas estaduais, em diferentes pontos da cidade de São Paulo, onde foram

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aplicados questionários a todos os seus 524 alunos de 7ª série. Os questionários, por

sua vez, além de oferecerem uma série de respostas dos alunos sobre o processo

educativo, os professores e as escolas, permitiu a seleção de vinte alunos para

entrevistas semi-estruturadas, entre aqueles que tiveram uma vida pessoal e escolar

das mais difíceis. Das falas dos alunos pude extrair suas expectativas em relação a

seus professores e à educação. Eis o que no começo deste trabalho julguei como

informações relevantes e atuais, apesar da década transcorrida. Talvez essas

expectativas se mantenham e os impedimentos a sua satisfação também.

Ninguém foi mais responsabilizado pela “chatice” da escola que o professor. Os

alunos disparavam suas falas contra a aula, a escola, mas no final das contas o mais

atingido era o professor.

Uma aluna da escola de Vila Medeiros pedia: "Espero que diminua o tempo e o

número das aulas. E que mude todos os professores menos: X, Y e Z". Essa aluna

não é a única que gostaria de trocar seus professores. Os depoimentos dos alunos

apresentavam um grande número de exemplos do que eles consideravam inadequado

na atitude do professor. Foram selecionados alguns casos em que, com a condenação

dos alunos, fica claro o que não se deve fazer.

Tudo começa pelo primeiro dia de aula. Desde este primeiro momento os

alunos estão alertas àquele que terá sua atenção durante todo um caminho a ser

percorrido.

Resta elucidar, tanto quanto possível, o significado desse momento tão pesado em que os olhares se cruzam e se estabelecem os primeiros contatos. É preciso repetir que, se o espaço escolar é o lugar de um confronto, o papel do professor não se reduz à afirmação impessoal. O professor não fala como um livro, é uma presença concreta, qualitativamente diferente da presença abstrata e ausente que as técnicas audiovisuais, tão em moda hoje em dia, procuram. O professor fala, mas sua palavra não é somente uma palavra diante da classe, é uma palavra dentro, com e para a classe. (...) A classe é mais que um público cuja cooperação se limita a um recolhimento receptivo e a uma aprovação intermitente e controlada. (...) Não importa se o deseje ou não [o professor], este não pode renunciar a esta superioridade de ciência e razão que faz dele um super-homem. O professor sabe bem quais são suas fraquezas e insuficiências; porém, na presença da classe, não pode reconhecê-las sem se rebaixar ou desonrar. Tudo isso também está incluído no confronto silencioso da primeira aula (GUSDORF, 1987, p. 31-32).

Que vira uma algazarra, se não se dá dessa maneira.

Acho que o professor, desde o primeiro dia de aula, ele tinha que mostrar que quem manda na sala é... Porque, é... A voz ativa da sala é o professor, né. (...) Por exemplo, a professora de ..., ela vai lá e fala, ela fala né. Ela xinga aluno, isso é que é ruim nela.

Essa era a fala de uma aluna de 13 anos. Quem não conseguiu estabelecer

relação de autoridade desde o primeiro dia de aula, tem como recurso "xingar aluno"

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ou deixar "a bagunça rolar", como revela o diálogo seguinte, entre dois alunos de uma

escola no bairro do Brooklin, em São Paulo:

A – Eu estudei com a X. Ela dava bastante coisa, sempre, não deixava o aluno sem fazer lição, sem dar trabalho. E quando aluno bagunçava, ela mandava para a diretoria. Como tem de fazer. (...) O professor de ... que a gente tem, se ficar bagunça não dá nem pra prestar atenção direito na aula. B – Não adianta falar assim que ele não explica. Porque tentar ele tenta. Ninguém deixa. (...) Se ele tivesse autoridade desde o começo do ano, ninguém ia montar em cima dele.

A fala do primeiro aluno não está sendo usada para defender o ponto de vista

de que se deve mandar para a diretoria os problemas da sala de aula. Mas para

advertir quanto ao fato de que a autoridade do professor não pode ser confundida com

autoritarismo. (Os alunos parecem saber disto.) Pois deve haver,

(...) na autoridade do mestre, um mistério insuperável. Essa autoridade não está ligada ao exercício de uma função, à intervenção de qualquer hierarquia. O mestre impõe-se pelos seus próprios meios e, sem outro artifício, força de algum modo o consentimento do aluno, se for necessário, contra a própria vontade dele (GUSDORF, 1987, p. 60-61).

A reação do professor que deixou "rolar a bagunça" revela uma outra

alternativa, oposta à autoritária, mas também de desequilíbrio nas relações entre

professor e alunos.

A primeira algazarra revelou uma desproporção das forças confrontadas; o professor, cuja presença deveria impor a calma, o silêncio, a atenção, revelou-se em situação de inferioridade. (...) A transgressão inicial revelou a ausência de um verdadeiro mestre, e esta transgressão primeira das interdições e dos rituais arrasta consigo uma espécie de reação em cadeia que, em muitos casos, não terminará nunca (GUSDORF, 1987, p. 152).

Comumente, a "bagunça" está relacionada a uma situação de aula

desinteressante, como na fala dessa aluna de uma escola da Água Rasa:

Ah! Tinha que mudar um pouco, não sei. O jeito que eles dão [a aula], assim. Que nem a professora de ..., faz um teatrinho, né. E é legal. Pode ver, na aula de ... ninguém bagunça. (...) A gente quer aprender cada vez mais.

Outros depoimentos revelam o importante papel do professor em apresentar o

conhecimento como algo interessante. Esses pontos de vista dos alunos colocam nas

mãos do professor a responsabilidade de agente privilegiado do processo educacional,

quando se tem em mente a escola como uma instituição que pode despertar a

necessidade de conhecimento nos futuros adultos. Atenção ao que essa aluna de uma

escola em Santa Cecília dizia. Ela havia repetido a 1ª série uma vez e a 2ª série duas

vezes:

Eu adoro história, ciências. É o que eu tiro nota maior. Quando o professor, ele chega chato, aí já não me interessa tanto. Mas quando ele chega: 'hoje a gente vai estudar,

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eu vou contar história disso daqui e são histórias interessantes...' Aí a gente se interessa, quando ele tem entusiasmo em contar. (...) É como vida de artista, você representar, tem de ser um bom ator, saber dar a matéria bem dada. E dependendo, a gente entende quando o professor tem problema. Chegar no colégio, vai jogar toda a mágoa na gente, assim também não.

Outra aluna, de escola da Cidade Dutra, falava claramente de quando perdia a

vontade de estudar uma matéria - mesmo quando achava importante - em função da

atuação do professor. Isso confirma, mais uma vez, a conhecida relação entre matéria

e professor preferidos.

Eu acho [importante]. Ter português, inglês, matemática. (...) Eu nem faço lição quando é assim, não tenho vontade de fazer lição. (...) Ela fica gritando, a maioria do pessoal fica fazendo bagunça, ninguém aprende nada. (...) Não sei se ela que não explica bem ou os alunos que não dão valor à professora, eu só sei que ...[a matéria] eu não tô entendendo nada.

O sentimento de frustração que é manifestado na fala da aluna da escola de

Cidade Dutra é o mesmo de que uma outra aluna, CLL, falava – a frustração pela não

satisfação de um desejo: "...Dá um sentimento de frustração para os dois. Você chegar

na sala de aula, querer saber algo mais e o professor não ter a capacidade de

explicar". A compreensão de CLL de que o sentimento de frustração se dá para aluno

e professor é prova de uma grande sensibilidade de sua parte. Porque o professor, em

virtude de sua formação e das condições de trabalho a que vem sendo submetido,

também experimenta frustração quando vê rebaixadas suas expectativas de

realização profissional. E este aspecto é poucas vezes reconhecido como causa de

um desempenho qualitativamente inferior por parte dos docentes.

É verdade que o professor encontra o discípulo segundo as normas e instituições da instrução pública, pelo menos nos casos mais gerais, mas, enquanto essas modalidades técnicas forem predominantes, a relação continua a ser uma relação de ensino [uma das atividades implicadas no processo educacional] e o professor primário e o professor secundário que cumprirem honestamente seu papel de funcionários não são mestres no sentido amplo da palavra (GUSDORF, 1987, p. 81).

Alguns alunos apresentavam tristes exemplos do que é capaz um professor

cujo desempenho o rebaixou à condição de "funcionário":

C – Cheguei no meio do ano [mudou para o bairro da escola] e a professora olhava pra minha cara e falava: 'coitado desse menino!' Direto. Falou um monte de vezes. Aí eu fiquei cheio, vim um dia só e parei [aluno da escola da Cidade Dutra, noturno, ficou o resto do ano sem estudar]. D – Tem uma professora de ... aqui, não sei nem porque ela faz isso. Mas tem um aluno que faz a lição dela, um aluno aplicado, assim, ela sempre conversa mais com esse aluno. (...) Se o aluno é um dos que não faz a lição, não presta atenção, só conversa, quando ela vai falar pra ele ir à lousa ela fala: “Fala alguma coisa de útil, vai na lousa, age ali”. Ela tipo despreza o aluno que não faz as lições. Isso não é bom pro aluno [ outro aluno da escola de Cidade Dutra, noturno].

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Muitos outros depoimentos revelaram manifestações de atitudes

discriminatórias em sala de aula, certamente um reflexo entre quatro paredes do que

se apresentava nos planos diretores das escolas – quando caracterizam os alunos ou

avaliam o processo educacional.

Anteriormente havia comentado como professores idealizam um aluno. Mas

como a educação é muito claramente um processo de interação e também isso já foi

comentado, os alunos também constroem seu “professor-ideal”. Um plano diretor, de

uma escola na Vila Califórnia, revelava o que seriam as características de um

professor eficiente, segundo os alunos: "amigo", "paciente" e "humano". Esta opinião é

comungada por vários alunos que a pesquisa escutou (TEIXEIRA, 1995). Quando

perguntados sobre o que esperavam da escola, muitas vezes respondiam com sua

expectativa em relação aos professores:

E – Escutar mais os alunos. F – A gente quer de um professor que ele considere a gente como adulta. Já basta em casa ser considerada como criança. G – Ajuda para qualquer problema e que os professores não sejam tão mal educados. H – O professor de ..., só tem que falar bem dele. Em todas as escolas que eu passei eu nunca encontrei um professor que se comparasse com ele. (...) Ele explica a matéria bem explicada e antes da prova ele dá revisão da matéria toda.

O professor que os alunos desejam, na verdade, é o que Gusdorf chama de

mestre.

A pedagogia do mestre desenvolve-se, assim, numa espécie de contraponto da pedagogia do professor. O professor ensina a todos a mesma coisa; o mestre anuncia a cada um uma verdade particular e, se é digno de seu trabalho, espera de cada um uma resposta particular, uma resposta singular, uma realização. A mais elevada função da mestria parece ser o anúncio da revelação para lá da exposição do saber. O professor exerce sua profissão e o mestre intervém como agente duplo, utilizando para outros fins essa atividade de cobertura (GUSDORF, 1987, p. 56).

Oposto ao mestre está o “funcionário honesto”, modelo que poderia ter sido

construído por Gusdorf (1987, p. 81) tendo em mente alguém como a diretora que

fecha o portão, religiosamente, às 19:30 horas. Um dos defeitos de que pode ser

acometido um burocrata é a obtusidade com que cumpre sua função. Preso à rigidez

das normas e do relógio, não consegue olhar para os lados e ver mais que os

carimbos da sua mesa. Daí que só resta preencher formulários para a Secretaria da

Educação. E pior, se a obtusidade vai encontrando terreno cada vez mais fértil para

sua instalação em um "ser humano pouco moral", o oposto da personalidade – que se

responsabiliza por outros seres humanos (HELLER, 1985, cap. 3) –, pode se

manifestar em preconceito. Como o que relatava um aluno da escola de Cidade Dutra,

no turno da noite:

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Essa diretora aí, ela é ignorante. Esses dias ela foi na classe avisar pra gente que não era pra faltar e não vim de boné, que ela ia subir nas classes pra ver quem estava de boné. Aí ela foi atrás de um aluno que não era da nossa classe e tem apelido de Senna. Aí ela falou: 'O Senna tá aí?' Aí um menino falou: 'Airton Senna?'. Só porque ele é moreninho ela falou: 'Não, o Pelé'.

A insistência com que os alunos buscam a escolarização parece brincadeira de

João Teimoso. Aquele boneco em que a criança bate e ele volta; bate de novo e ele

não cai, volta. Isso ficou mais evidente quando mal maior que a evasão, viu-se que a

repetência era o grande empecilho à escolarização no Brasil (RIBEIRO, 1993). As

escolas tentam jogar a responsabilidade do fracasso escolar para todo lado: família,

trabalho do aluno (no caso do noturno, em especial), debilidades do aluno. Mas estará

a escola preocupada em saber o que se passa com o aluno? As medidas tomadas no

sentido de permitir a progressão dos alunos pelos anos de escolarização não têm sido

eficazes em propiciar o aprendizado, pelo menos é o que mostram os resultados das

avaliações do sistema educacional.

Os PCN e os professores

A pesquisa nas escolas paulistas foi feita entre os anos de 1992 e 1994.

Avançamos um pouco no tempo e passamos a discutir qual a expectativa dos PCN em

relação aos professores. O documento ministerial teve uma Versão Preliminar

divulgada em 1995 (BRASIL.MEC, 1995) e sua publicação em 1997 para 1ª a 4ª

séries, e em 1998 para 5ª a 8ª séries (BRASIL. MEC, 1997;1998). Os PCN afirmam

que a aplicação de suas orientações se dará em quatro níveis de concretização. O

primeiro transcorreu no nível do próprio MEC com a sua elaboração; o segundo

ocorreria no âmbito das secretarias estaduais e municipais de educação, dialogando

com as propostas já existentes nessas instâncias; o terceiro seria representado pelo

uso dos PCN na elaboração do projeto pedagógico de cada escola; o quarto nível é

quando o professor realiza o currículo dentro da sala de aula (BRASIL. MEC, 1998, v.

1, p. 51-52).

A escola é apresentada pelos PCN como “espaço social de construção dos

significados éticos necessários e constitutivos de toda e qualquer ação de cidadania”

(BRASIL. MEC, 1997, v. 1, p. 34). Para que dê cabo dessa tarefa, os PCN falam em

Fortalecer a escola como unidade do sistema escolar, conferir-lhe autonomia financeira e, principalmente, credenciá-la para a elaboração e execução de um projeto educacional, é condição essencial para a efetivação dos princípios expressos nos Parâmetros Curriculares Nacionais e constitui, sem dúvida, o mais importante nível de sua concretização (BRASIL. MEC, 1998, v. 1,p. 85).

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Os PCN, cuja elaboração se deu num questionado processo participativo e de

consultas (ver ANPEd, 1996; CUNHA, 1996; TEIXEIRA, 2000), devem agora ser

utilizados pelas escolas na elaboração de seu projeto pedagógico. É o que estabelece

uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela Lei nº 10.721,

de 2001 (BRASIL, 2001). Isso significa que, mesmo que as escolas e os professores

não tenham propriamente participado da sua elaboração, teriam que cumprir a meta

até janeiro de 2004, caso venham a executar o que manda a Lei.

Ao mesmo tempo em que os PCN consideram a escola “o mais importante

nível da sua concretização”, atribuem ao professor uma enorme responsabilidade

sobre o que efetivamente será feito em sala de aula. E isso talvez não pudesse ser

diferente, haja vista que é o professor quem está em contato mais direto, por mais

tempo, com os alunos. Na perspectiva de uma escola democrática, são os professores

que

vivem com a tensão constante de proporcionar um ensino significativo para os jovens, ao mesmo tempo em que transmitem os conhecimentos e habilidades esperados pelas poderosas forças educacionais cujos interesses são tudo, menos democráticos (APPLE; BEANE, 1997, p. 31).

Em todas as áreas e Temas Transversais os conteúdos devem levar em conta,

para o seu desenvolvimento, a “idade e amadurecimento dos alunos” (BRASIL. MEC,

1997, v. 4, p. 62). Ainda que a idade possa ser informação constante da ficha de

matrícula, o grau de amadurecimento de alguém é algo que só se percebe depois de

algum tempo de convivência, muitas vezes compartilhando experiências diversas.

Essa informação só o professor pode (e deve, segundo os PCN) obter.

Alguns trechos extraídos do documento do MEC ilustram essa preocupação em

relação ao que se exige do professor. Quanto ao ensino de Matemática, por exemplo,

o docente deve ser capaz de:

- identificar as principais características dessa ciência, de seus métodos, de suas ramificações e aplicações; - conhecer a história de vida dos alunos, sua vivência de aprendizagens fundamentais, seus conhecimentos informais sobre um dado assunto, suas condições sociológicas, psicológicas e culturais; - ter clareza de suas próprias concepções sobre a Matemática, uma vez que a prática em sala de aula, as escolhas pedagógicas, a definição de objetivos e conteúdos de ensino e as formas de avaliação estão intimamente ligadas a essas concepções (BRASIL. MEC, 1997, v. 3, p. 37).

Outro exemplo diz respeito ao que se espera do professor no ensino de

atitudes e valores:

(...) Embora muitas vezes o professor não se dê conta estará sempre legitimando determinadas atitudes com seus alunos. Afinal é ele uma referência importante para sua classe. É muito importante que esta dimensão dos conteúdos seja objeto de

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reflexão e de ensino do professor, para que valores e posturas sejam desenvolvidos tendo em vista o aluno que se tem a intenção de formar (BRASIL. MEC, 1997, v. 4, p. 35).

Essa passagem pode lembrar um artigo de Dante Moreira Leite (1989, p. 252)

em que o autor comenta o quanto professores adquirem uma certa incapacidade de

perceber o seu comportamento diante dos alunos, dos gestos mais simples, tom de

voz, à própria maneira como produzem nos alunos sua auto-imagem a partir de um

processo de projeção/introjeção. Muito mais eficácia têm os anos em produzir essa

incapacidade no professor se nunca foi despertado para esse aspecto do seu papel

em sala de aula.

A abordagem do Tema Transversal meio ambiente “demanda fundamentação

em diferentes campos do conhecimento. Assim, tanto as ciências humanas quanto as

ciências naturais contribuem para a construção de seus conteúdos” (BRASIL. MEC,

1997, v. 4, p. 45). Situação semelhante ocorre com o tema transversal pluralidade

cultural, que deve mobilizar conhecimentos de antropologia, sociologia, estudos

populacionais, históricos e geográficos, jurídicos, psicológicos e pedagógicos, o

trabalho com diferentes linguagens e fundamentos éticos (BRASIL. MEC, 1997, v. 10,

p. 35-49).

Em Arte (BRASIL. MEC, 1997, v. 6, p. 110-111), “a prática da aula é resultante

da combinação de vários papéis que o professor pode desempenhar antes, durante e

depois de cada aula”. Antes da aula, o professor deve ser:

(...) um pesquisador de fontes de informação, materiais e técnicas; (...) um apreciador de arte, escolhendo obras e artistas a serem estudados; (...) um criador na preparação e na organização da aula e seu espaço; (...) um estudioso da arte, desenvolvendo seu conhecimento artístico; (...) um profissional que trabalha junto com a equipe da escola.

O tema orientação sexual exige do professor um tipo de formação que seja

capaz de alterar sua própria conduta, de forma a torná-lo apto a tratar dos conteúdos

como orientam os PCN. A formação, nesses termos, compreende a adoção de valores

pelo docente e a superação de seus preconceitos, o que requer, além de um

compromisso político com a sua função, um processo “quase terapêutico” de reflexão

sobre suas experiências particulares e autoconhecimento (BRASIL. MEC, 1997, v. 10,

p. 124).

A Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED)

alerta para o fato de que uma das dificuldades que podem ser enfrentadas na

implementação dos PCN advém justamente da formação que os professores recebem,

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considerada inadequada e insuficiente para que dêem cabo da tarefa atribuída a eles

(ANPED, 1996, p. 91). Outra advertência vem de pesquisa realizada pela Fundação

Carlos Chagas (SIQUEIRA, 1995, p. 6), que subsidiou a elaboração dos Parâmetros.

A análise de reformas curriculares realizadas nos estados e municípios de capitais

consideradas pela pesquisa revelou que a reelaboração didática teve que vencer

obstáculos justamente no nível da sua concretização nas salas de aula, devido à

formação dos professores, que não os capacitava para as novas exigências colocadas

pelos currículos. Pode-se inferir que os PCN não estariam submetidos a situação

muito diferente.

Ainda que nos PCN seja reconhecida a necessidade de que a formação de

professores seja transformada num processo contínuo (BRASIL. MEC, 1997, v. 1, p.

29-31), e se dê em níveis cada vez mais elevados de escolarização, hoje não

podemos saber ao certo que direção vai tomar. Se havia o entendimento de que a Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 1996 (BRASIL,

1996) previa a formação em nível superior para os professores de educação infantil e

séries iniciais do ensino fundamental, e isso deveria se tornar realidade num prazo de

dez anos a partir da publicação da Lei, o Parecer nº 3/2003, da Câmara de Educação

Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE), dá nova interpretação ao

texto legal (BRASIL. MEC. CNE, 2003). De qualquer modo, é urgente a tomada de

medidas no sentido de aprimorar a formação dos professores. Porque não se pode

contar com o fato de que eles, formados atualmente nos cursos de Magistério ou

mesmo aqueles que passam pelos cursos de Pedagogia das universidades, adquiram

seus diplomas e entrem imediatamente em sala de aula com condições de

corresponder às expectativas que o Ministério deposita neles. Ademais, a

remuneração não anda permitindo muito que o professor seja um apreciador de arte; a

luta pela sobrevivência, na maioria das vezes, deixa pouco espaço para a poesia. E a

solução desse problema não está em decretar que a formação de professores se dê

com base nos PCN, como foi feito pelo então Presidente da República com o Decreto

nº 3.276, de 1999 (BRASIL, 1999).

A disparidade entre o que é esperado dos professores e o quanto o magistério

é valorizado, haja vista o que se aplica em salários e formação dos docentes, faz-me

recordar o que diz José Sérgio Carvalho (1996) sobre a função da desvalorização

econômica e social de ameaçar a formação de uma “identidade do pedagogo”, o que

se aplica aos professores de uma maneira geral. Tendo colhido depoimentos de

algumas pedagogas, no último deles chama a atenção para a relação que pode ser

estabelecida, a partir da fala da educadora, entre a desvalorização econômica da

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profissão e o juízo que ela passa a fazer de seu ofício. O autor conclui dizendo que

“talvez não haja lugar para uma identidade, uma tradição, quando sistemática e

progressivamente nos despojam de certos bens materiais e do reconhecimento social

que possam por direito nos pertencer” (CARVALHO, 1996, p. 25). O que o autor

chama de “identidade de pedagogo” poderia ser associado a uma identidade positiva

desse profissional. O que existe é uma identidade negativa formada pela

desvalorização da carreira. Se este fenômeno continuar acontecendo, não haverá

professores com quem contar para concretizar os PCN.

Mais de dois anos depois do anúncio da distribuição dos PCN aos professores

de 1ª a 4ª séries (BRASIL. MEC, 1997a), docentes de São Paulo acusavam não ter

recebido os exemplares contendo a proposta do Ministério para uma base comum

nacional (FOLHA DE S. PAULO, 1999). Uma professora do ensino fundamental disse

só ter tido contato com o documento ao prestar um concurso público; outra professora

afirmou só ter contato com os PCN na escola, quando deveria tê-los recebido em

casa, e que encontra dificuldade em aplicá-los. O MEC se defende dizendo que os

PCN foram enviados para as escolas e que muitos endereços de professores estavam

errados, o que dificultou sua remessa para as residências dos docentes. Pedia, na

matéria intitulada Professores não entendem parâmetros de ensino do MEC (FOLHA

DE S. PAULO, 1999), que os professores que não tivessem recebido o material

entrassem em contato com o Ministério.

Podemos avançar mais um pouco no tempo para apresentar alguns resultados

da pesquisa desenvolvida nas escolas mineiras que mostram que seus professores

também tiveram dificuldade em ter contato com os PCN. As escolas são chamadas de

VT e NL; a primeira tem nível sócio-econômico e desempenho dos alunos abaixo da

média e a segunda tem esses indicadores acima da média verificada pelo Sistema

Mineiro de Avaliação da Educação Básica (SIMAVE) em Juiz de Fora, referente ao

ano de 2000 (SIMAVE, 2001).

Antes de comentar as respostas às questões relativas ao contato com os PCN,

interessa ter uma breve caracterização dos 26 professores da escola VT que

responderam ao questionário, do total de 29. Encontramos a seguinte distribuição

conforme seu grau de instrução: treze têm curso de especialização (pós-graduação);

nove têm graduação; dois cursaram magistério e um tem mestrado. Dez professores

têm mais de dez anos de trabalho na profissão e dezesseis estão nessa função há

menos de dez anos. Dezenove professores trabalham também em outra escola, mais

uma no mínimo. E o que mais pode nos chamar a atenção é o fato de que dezessete

professores estão nessa escola há menos de um ano.

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Na escola NL, apenas 24 dos 40 professores de ensino fundamental se

dispuseram a responder o questionário. Desses, onze têm especialização, outros onze

têm curso de graduação e dois têm magistério como grau máximo de escolaridade.

Dezesseis são professores há mais de dez anos e oito há tempo inferior que esse. O

tempo de lotação nessa escola é de até um ano para oito professores, dez estão na

instituição há sete anos ou mais e os demais se distribuem em tempos intermediários

a esses dois períodos.

Sobre os PCN, 46 professores disseram conhecer os documentos em suas

respostas ao questionário. Perguntados sobre os volumes de que fizeram a leitura, a

maioria afirmou ter lido os volumes de sua área de conhecimento; em seguida vieram

os que leram resumos dos PCN. Quanto ao ano em que o primeiro contato com os

PCN aconteceu, o ano mais citado na escola VT foi 2001 com nove menções; o ano

de 1998 foi citado quatro vezes, 1999 cinco vezes, 2000 duas vezes, 2002 uma vez e

cinco professores não responderam a essa pergunta. As respostas na escola NL

situam a maior freqüência do ano de contato com os PCN em 1997, com sete

respostas; as demais respostas estão dispersas entre os anos de 1998 e 2000.

Apenas um professor citou curiosamente o ano de 1990. Nas reuniões ocorridas nas

escolas VT e NL, em setembro de 2002 e fevereiro de 2003 respectivamente, a

maioria dos professores também manifestou que havia lido os volumes referentes a

suas áreas de conhecimento. Os motivos para isso são a falta de tempo para leitura

de todos os volumes, o interesse mais dirigido a sua disciplina e a influência do

concurso que alguns deles haviam prestado.

O texto dos PCN não foi considerado de difícil compreensão: 21 professores o

julgam de fácil compreensão, outros 21 os consideram regular para o entendimento,

apenas dois professores em NL os julgam difíceis. Mas não seria o texto em si o

impedimento para sua implementação. O que as observações das aulas têm indicado

é que a utilização das orientações dos PCN no processo educativo é um problema de

política educacional. Digo isso porque a realização da qualidade da educação indicada

pelos PCN exigiria outro nível de investimento na educação: recursos financeiros

capazes de equipar a escola com material didático e pedagógico; formação dos

professores que os capacitasse para lidar com a realidade de seus alunos e os

conteúdos propostos pelos PCN; valorização da carreira docente que servisse de

estímulo para que os professores se tornassem os pesquisadores que os PCN

esperam que eles sejam. Os próprios professores usam todos esses argumentos

quando justificam a razão de não implementarem as orientações dos PCN.

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As aulas observadas pela equipe da pesquisa mostraram que alguns velhos

problemas ainda estão presentes na educação. Não é gosto pela repetição, mas isso

pode ser estímulo para que tentemos compreender por que, apesar do anunciado

maior investimento no ensino fundamental, esses entraves à educação continuam

existindo. As turmas não são tão heterogêneas quanto seria recomendado ou nos

fazem crer os discursos dos professores. Por mais que as turmas percam as

indicações A, B ou C, continuam sendo tratadas como a mais atrasada ou a mais

adiantada. As famílias dos alunos continuam sendo tidas como desinteressadas pela

escolarização de seus filhos e “desestruturadas”; os alunos estão cada vez mais sem

limites, a família não cumpre seu papel no sentido de educá-los e a escola não se

sente responsável por isso; essas são opiniões emitidas pelos professores em

conselhos de classe, reuniões pedagógicas, no intervalo das aulas. Alunos que não

correspondem a um determinado padrão de normalidade têm dificuldades de

permanecer na escola, isso foi afirmado por profissionais das escolas e verificado pela

pesquisa. A visão de tudo isso é que me fez recuperar as informações de antiga

pesquisa (TEIXEIRA, 1995). Como se um certo padrão de relacionamento entre

professores e alunos ainda norteasse o processo educativo. Talvez esta seja uma das

razões pelas quais o desempenho de nossos alunos continue aquém do esperado.

Cabe mencionar a exceção: uma professora de Língua Portuguesa que leciona

na escola VT e teve suas aulas observadas durante dois meses. Ensinava para as

turmas de 7ª e 8ª séries. É graduada em Letras, com cursos de especialização na sua

área de ensino, foi aprovada em concurso realizado em 2001. Além de conseguir

trabalhar o conteúdo de sua disciplina, realizou durante um mês uma experiência em

que articulava esse conteúdo ao tema transversal Pluralidade Cultural, definido pela

escola para aquele bimestre. Foi capaz de reler os PCN de Língua Portuguesa e

discutir com a equipe da pesquisa, identificando no texto as citações indiretas feitas

aos autores constantes das referências bibliográficas. Trabalhava com seus alunos em

ambiente de absoluto respeito. O comportamento da turma mudava com a sua entrada

em sala e os alunos a tinham como “uma ótima professora”, alguém “que sabe a

matéria”. Ela tratava seus alunos pelo nome e sabia de cada um. Esse foi um caso

entre vinte profissionais que tiveram suas aulas observadas. Essa professora não está

mais na escola estadual; é professora substituta no Colégio de Aplicação da

Universidade Federal de Juiz de Fora desde o início de 2004.

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“Psicologia para quê?”

O contato com as escolas mineiras, que a pesquisa sobre os PCN tem

permitido, mostra que os problemas observados em São Paulo, ainda que

aparentemente transformados, continuam presentes. Que a realização de uma

educação de qualidade é um problema de política educacional já foi dito, mas há uma

dimensão do processo educativo que se realiza na relação entre professor e aluno.

Não entre um professor ideal e um aluno ideal, mas entre professor e aluno reais, com

direito à diferença. Não basta ter escolarizado 97% da população entre 7 e 14 anos,

conforme dados do próprio MEC. Realizar o direito à educação depende do

reconhecimento de suas diferenças (CURY, 2002).

Eis para o que creio que a Psicologia pode muito contribuir. Não digo nada de

novo, mas reforço idéia antiga que diz que a Psicologia pode ajudar a compreender as

relações que se dão na escola, no desenvolvimento do processo educativo. A

“Psicologia ensinada”, para usar termos de Castello Branco (1988), pode ser

instrumento para que professores escutem mais seus alunos, e pratiquem uma outra

Psicologia, livre do preconceito, das profecias auto-realizadoras. As teorias produzidas

no campo da Psicologia devem servir como suporte para que os professores possam

compreender o desenvolvimento de seus alunos. Eles devem saber que essas teorias

comportam sistemas de classificação racionalmente construídos, sem o que nossa

cabeça que opera pela lógica formal jamais daria conta da realidade que é dialética3.

Os conceitos são abstrações que jamais se encontram na realidade tal como

expressos conceitualmente. As teorias servem como guias, não como camisas de

força.

A Versão Preliminar dos PCN (BRASIL.MEC, 1995), em seus “Fundamentos

Psicopedagógicos”, aderia de forma clara e sumária a uma concepção de ensino e

aprendizagem, a uma concepção de conhecimento (AZANHA, s/d, p. 9). Não deveria

ser essa a lição da “Psicologia ensinada”. Muito pelo contrário, ela deveria oferecer

condições para que cada professor fizesse a melhor opção, em função de suas

próprias convicções e da realidade de seus alunos.

Pelo papel que devem desempenhar no processo educativo cabe aos docentes

a atribuição de oportunizar aos alunos momentos estimulantes de aprendizado dos

conteúdos das disciplinas, de valores, e essa expectativa também está posta pelos

PCN. Colocados à disposição dos professores, os conhecimentos produzidos pela

3 Orlando Miranda refere-se dessa maneira à construção dos conceitos de comunidade e sociedade por Ferdinand Tönnies (MIRANDA, 1996).

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Psicologia podem ajudar a elucidar as diferenças existentes entre os alunos, conhecer

seu processo de desenvolvimento, as condições de sua vida particular, sem perder de

vista a cultura, o ambiente em que estão inseridos (PATTO, 1993). Se esforços nesse

sentido vêm sendo feitos há muito tempo, infelizmente ainda não lograram o sucesso

desejado, haja vista o que aparece no texto dos PCN e nas falas de professores e

documentos por eles escritos. Atentos para o que está em jogo dentro da sala de aula,

para o quanto há de interação no processo educativo, professores podem realizar uma

educação de qualidade, diferente da idealização que faz da educação democrática

uma meta sempre inatingível em nosso país.

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