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priscilla pachi*

MIGRAÇÃO E INTERCULTURALIDADE,um binômio capaz de construir pontes de convivência

* Mestranda do Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade de São Paulo; bolsista CAPES. – “O presente trabalho foi realizado com apoio da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance

Code 001”

resumo Este artigo tem o objetivo de promover uma reflexão sobre os recentes fluxos migratórios que chegam ao Brasil, mas principalmente à cidade de São Paulo. O que atrai os imigrantes e os refugiados para a cidade global de São Paulo? Como se inserem na sociedade e como está sendo tratado o tema das migrações? Qual a importância da interculturalidade para a adaptação dos estrangeiros no Brasil? Quais as diferenças entre o Brasil e os demais países desenvolvidos no que diz respeito ao trato da questão migratória e do refúgio? Essas questões serão abordadas e analisadas com base numa experiência pessoal desenvolvida com imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo.palavras-chave Imigração. Cidade global. Interculturalidade.

abstract This is a reflection on the recent migratory flows that arrived in Brazil, mainly in the city of São Paulo. What attracts immigrants and refugees to the global city of São Paulo? How do they fit into society and how is the issue of migration being addressed to? What is the importance of interculturality for the adaptation of foreigners in Brazil? What are the differences between how Brazil addresses migration and refuge vs. other developed countries? These issues are approached and analyzed based on a personal experience with immigrants and refugees in the city of São Paulo.keywords Immigration. Global city. Interculturality.

MIGRATION AND INTERCULTURALITY: a binomial able to build bridges of convenience.

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Introdução

Até o fim de 2016, o Brasil reconheceu 9.552 refugiados de 82 nacionalidades.

Desse total, 8.522 foram reconhecidos por vias tradicionais de elegibilidade, 713

chegaram ao Brasil por meio de reassentamento, e a 317 foram estendidos os efeitos da

condição de refugiado de algum familiar. Os países com maior número de refugiados

reconhecidos no Brasil em 2016 foram Síria (326), República Democrática do Congo

(189), Paquistão (98), Palestina (57) e Angola (26).1

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU, 2015), cerca de 244 milhões

de pessoas residem em país diferente daquele onde nasceram, um aumento de 41%

em relação ao ano 2000. Destes, quase 20 milhões são refugiados. Esse número se

eleva consideravelmente se levarmos em conta os filhos de migrantes que nascem nos

países onde seus pais se estabeleceram. (DANTAS, 2017 apud SAM & BERRY, 2006).

O Brasil lida no momento com os refugiados venezuelanos que cruzam a fronteira

entre os dois países pelo estado de Roraima. Desde 2015, esse fluxo vem se intensifi-

cando em decorrência da crise política e econômica enfrentada pela Venezuela.

Além dos dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados –

ACNUR – e da ONU, o censo brasileiro de 2010 do IBGE nos mostra o retorno de

brasileiros que viviam no exterior e que, com a crise iniciada em 2008 nos Estados

Unidos e que se espalhou pela Europa, decidiram voltar para o Brasil que, naquele

momento, mostrava uma economia saudável e promissora.

Entre 2005 e 2010, 174,6 mil brasileiros retornaram ao Brasil. Os principais países

de origem dos imigrantes foram os Estados Unidos (51,9 mil imigrantes), Japão (41,4

mil), Paraguai (24,7 mil), Portugal (21,4 mil) e Bolívia (15,8 mil). Em 2000, os princi-

pais países de origem eram Paraguai (35,5 mil), Japão (19,7 mil), Estados Unidos (16,7

mil), Argentina (7,8 mil) e Bolívia (6,0 mil).2

Segundo dados do Ministério da Justiça, 43.8713 haitianos entraram no Brasil pela

fronteira do Acre, de 2010 a 2015.

1 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Brasil tem aumento de 12%

no número de refugiados em 2016. Disponível em:

<http://www.justica.gov.br/news/brasil-tem-aumento-

de-12-no-numero-de-refugia-dos-em-2016>. Acesso em 5

fev. 2018.

2 INSTITUTO BRASILEI-RO DE GEOGRAFIA E

ESTATÍSTICA – IBGE. 174,6 mil brasileiros retornaram ao país entre 2005 e 2010.

Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/

noticias-censo?id=1&idnoticia=2125&view=noticia. Acesso em 05 fev. 2018.

3 MINISTÉRIO DA JUSTI-ÇA. Governo brasileiro ga-

rante direitos para imigran-tes haitianos. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/governo-

brasileiro-garante-direitos-para-imigrantes-haitianos>.

Acesso em 6 mar. 2016.

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Os dados citados anteriormente nos surpreendem e indicam o cenário das migra-

ções pelo mundo neste início do século XXI. Conflitos armados, guerras, perseguições

políticas, desastres ambientais, pobreza e ausência de condições dignas de vida viti-

mam cada vez mais contingentes populacionais que partem em busca de sobrevivên-

cia, como é o caso dos inúmeros refugiados e dos imigrantes que buscam um recome-

ço capaz de garantir uma vida decente em outro país.

Nesse contexto, o Brasil aparece como uma alternativa para muitos imigrantes e

refugiados que, em razão das barreiras de entrada impostas pelos países desenvolvidos

do hemisfério norte, encontram aqui um destino para mudarem de vida. Desse modo,

o Brasil recebe atualmente vários imigrantes e refugiados vindos de várias partes do

mundo. São chineses, congoleses, sírios, angolanos, haitianos, bolivianos, colombia-

nos e tantos outros que chegam por razões diversas, mas com um único objetivo:

encontrar paz e um recomeço de vida.

No que diz respeito ao Brasil, este artigo analisará a cidade de São Paulo como polo

receptor de imigrantes, seja como destino final ou trânsito para outras cidades ou esta-

dos. São Paulo nos fornece condições de pensarmos o fenômeno das migrações pelo âm-

bito da globalização, pelas oportunidades de trabalho e pela lógica do capitalismo atual.

Assim sendo, propomos neste artigo analisar as imigrações recentes na cidade de

São Paulo com base no conceito de cidade global desenvolvido por Saskia Sassen e se-

gundo uma experiência pessoal de treinamento e palestras interculturais ministradas

na Missão Paz4, no bairro do Glicério, no município de São Paulo. Acreditamos ser pos-

sível, por meio da noção de interculturalidade, construirmos pontes em vez de muros.

São Paulo e a imigração A história de São Paulo carrega consigo um passado de migrações que nos revela a

multiculturalidade de sua população.

A sociedade brasileira, inicialmente formada por índios, portugueses e escravos

africanos, presenciou, a partir do final do século XIX, a chegada de imigrantes e o cres-

cimento de uma população etnicamente diversificada e multicultural.

Algumas leis promulgadas durante o século XIX anunciavam que a escravidão

chegaria ao fim. Primeiramente, em 1850, houve a extinção do tráfico de escravos da

África para o Brasil; posteriormente, em 28 de setembro de 1871, a promulgação da

4 A Missão Paz é uma obra dos Missionários de São Carlos – Scalabrinianos que têm larga vivência junto aos migrantes, imigrantes e refugiados das mais diversas culturas, crenças e etnias em São Paulo.

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Lei do Ventre-Livre, que tornava livres os filhos de escravos que nascessem a partir da

decretação dessa Lei. Em 1885, foi promulgada a lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexa-

genários, que beneficiava os negros com mais de 65 anos de idade. E em 13 de maio

de 1888, a Princesa Isabel assina a Lei Áurea, que concede a liberdade definitiva aos

escravos pondo um fim à escravidão no Brasil.

Mesmo antes da abolição da escravatura, o Brasil já se preparava recebendo imi-

grantes europeus, principalmente italianos, que garantiriam o trabalho nas lavouras

de café (produto de exportação), o que tornaria possível atender aos anseios de bran-

queamento da população brasileira presente na época.

Os primeiros imigrantes italianos começaram a chegar em 1870, mas foi entre as

décadas de 1880 e 1910 que houve o maior fluxo de italianos para o território brasileiro,

principalmente para as regiões Sul e Sudeste do país.

Os primeiros imigrantes trabalharam com os escravos e também foram vítimas de

trabalho forçado e maus tratos. Além de italianos, vieram para o Brasil – para a subs-

tituição do trabalho escravo e para a continuidade do trabalho nas lavouras de café e

na agricultura – portugueses, espanhóis e japoneses. Os imigrantes desempenharam

um papel fundamental para a economia da época e para a urbanização e industrializa-

ção, principalmente do estado e da cidade de São Paulo. São Paulo foi um dos estados

que mais recebeu imigrantes a partir do fim do século XIX, pois, além de necessitar

de mão de obra, subsidiava o transporte de vinda dos imigrantes que, naquela época,

migravam em família.

Desse modo, São Paulo desponta como um importante centro receptor de imigran-

tes a partir do século XIX. Isso se estende pelo século XX e continua a ocorrer neste

século. Embora o processo migratório em cada época tenha apresentado características

próprias, o motivo que atrai imigrantes para São Paulo parece ser o mesmo, ou seja, a

oferta de trabalho para os que chegam à capital paulista.

Além das imigrações, as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pelas migrações

internas no Brasil, por meio da vinda de trabalhadores das zonas rurais e de regiões

menos industrializadas do país, como a região Nordeste, em busca de trabalho em

vários setores da indústria e da construção civil. Dessa forma, os migrantes tornaram-

se grandes protagonistas do desenvolvimento e da construção da metrópole paulista

como a conhecemos hoje.

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No atual contexto mundial das migrações, os deslocamentos das pessoas não se

limitam somente a uma mudança e a uma nova ocupação territorial, eles provocam

impactos sociais, econômicos, culturais e políticos que merecem ser analisados.

Por isso, segundo Sayad (1998), o itinerário epistemológico dos estudos migra-

tórios é também um ponto de encontro de inúmeras disciplinas: história, geografia,

demografia, economia, direito, sociologia, psicologia, antropologia, linguística, ciência

política, entre outras.

Com base na história do capitalismo recente, as principais causas apresentadas

para a imigração são as dificuldades de vida, a pobreza, a busca por um futuro melhor e

até mesmo o anseio de conquistar alguma fortuna fora do país de origem. Essas causas

não diferem da motivação pela qual os mais diversos grupos de imigrantes buscaram e

buscam o Brasil, ou seja, um novo começo de vida, um trabalho que garanta o sustento

deles e futuramente de suas famílias.

Segundo Oliveira (2015), observa-se que os fatores estruturais motivadores da emi-

gração estão fortemente presentes em todos os países de origem: exclusão, exploração

da força de trabalho, falta de infraestrutura básica e de serviços são marcas comuns.

O último censo demográfico (IBGE, 2010) mostrou que o município de São Paulo

tem uma população de 11.253.503. Desse montante, 1,34% são estrangeiros. Parece

pouco, mas São Paulo está definitivamente na rota dos imigrantes e refugiados. Além

das dificuldades de entrada impostas pelos países desenvolvidos, podemos nos per-

guntar qual a razão de os imigrantes e refugiados se sentirem atraídos por São Paulo.

O que a cidade, considerada global, oferece que a difere de outras cidades brasileiras?

Como estamos tratando a imigração e o refúgio do ponto de vista social, econômico e

das políticas públicas?

O conceito de cidade global ou cidade mundial surge na década de 1980 e tem

como precursora a socióloga holandesa Saskia Sassen. Esse conceito está diretamen-

te relacionado aos impactos causados sobre as metrópoles do Primeiro Mundo pelo

processo de globalização da economia. O final da década de 1970 e a década de 1980

foram marcadas por uma forte crise econômica nas principais metrópoles do Primeiro

Mundo que perderam sua centralidade com o desenvolvimento de novas tecnologias

de informação e comunicação e com o deslocamento de suas principais indústrias

para locais que ofereciam menor custo de implantação e manutenção, além da dispo-

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nibilidade de mão de obra mais barata. Esses são os principais fatores que geraram o

início da globalização da economia acompanhada de uma crise fiscal e do aumento do

desemprego nas principais cidades capitalistas do Primeiro Mundo.

Nesse período, as plantas das grandes indústrias se moveram para outras cidades

e até mesmo para outros países, porém uma nova morfologia surge nas antigas metró-

poles que eram sedes das empresas do período fordista. As metrópoles passam, a partir

desse momento, a sediar empresas de origem quase sempre transnacionais, ligadas,

em sua maioria, ao setor financeiro e da informação, o que se tornou um fator de gran-

de transformação na estrutura produtiva das metrópoles e no mercado de trabalho.

Com a mudança dos locais de produção, houve uma dispersão geográfica das ativida-

des econômicas e, com isso, a necessidade de centralização territorial da gestão e do con-

trole das operações das grandes empresas. Essa centralização passa a ser exercida pelas

cidades globais, ou seja, pelas principais metrópoles do período fordista onde a dispersão

geográfica das atividades econômicas e o novo arranjo organizacional contribuíram para

o desenvolvimento das funções decisórias corporativas na centralidade das metrópoles.

Desse modo, as últimas duas décadas do século XX marcaram o surgimento de um

tipo específico de cidade que passou a desempenhar, segundo Sassen (1998), as fun-

ções de: 1) postos de comando na organização da economia mundial; 2) lugares-chave

e mercados para as indústrias financeiras e de serviços especializados; 3) campos de

produção e inovação às principais indústrias.

O conceito de cidade global de Sassen (1993) busca apreender toda essa novidade.

As principais cidades que compunham a rede de cidades globais na década de 1980

eram Nova York, Londres e Tóquio. Nas décadas posteriores, foram incorporadas a essa

rede as cidades de São Paulo, Hong Kong, Toronto, entre outras.

Para Sassen (1998), as metrópoles readquiriam a importância estratégica como

locais destinados ao setor terciário, acompanhando a mudança de direção da economia

mundial. Não se tratava, portanto, da perda de sua centralidade econômica, mas de

sua ressignificação no interior do sistema produtivo internacional. Desse modo, cabe

ressaltar que o surgimento da cidade global é resultado de um processo histórico vivido

inicialmente pelas principais metrópoles do Primeiro Mundo.

A substituição das atividades industriais pelo setor financeiro e de serviços gerou

uma nova ordem social e um novo tipo de urbanização que revelaram a atual divisão

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territorial do trabalho nas metrópoles, pautada pela necessidade de mão de obra alta-

mente qualificada e, consequentemente, bem-remunerada para os setores de ponta.

Por outro lado, surgem também empregos que se utilizam de mão de obra não qualifi-

cada para atuar na manutenção dessa estrutura maior (limpeza, ajudantes e auxiliares

de várias atividades dos setores de serviços, entre outros).

Para Sassen, as novas tecnologias da informação exercem um papel fundamental

ao possibilitarem as dinâmicas simultâneas de dispersão geográfica das operações das

empresas globais, o controle centralizado e a organização integrada. As condições sob

as quais essas tecnologias estão disponíveis promovem a centralização das indústrias

de informação intensiva nos centros de telecomunicações mais avançados, localizados

em um número restrito de cidades ao redor do mundo.

Ressaltamos que, não somente os serviços financeiros e altamente especializados

ligados aos setores de tecnologia, comunicação e serviços são encontrados nas cida-

des-globais; existe, ao lado de toda a opulência, uma grande quantidade de empregos

manuais, precários e malremunerados que são geralmente ocupados por mulheres e

imigrantes vindos de várias partes do mundo e que garantem, com isso, a prestação

de vários outros serviços e a manutenção da engrenagem que alimenta e reproduz os

ramos mais especializados e elitizados dessas metrópoles.

No final da década de 1990, o conceito de cidade global se estende às metrópoles

consideradas de segunda ordem. É nesse momento que São Paulo passa a ser cogitada

como uma possível cidade global.

Considerando atualmente São Paulo uma cidade global da periferia do capitalis-

mo, podemos nos questionar: como os imigrantes e refugiados se inserem de forma

precária na face globalizada da metrópole? Como vivenciam o cotidiano da cidade do

ponto de vista do trabalho?

Santos (2015) nos chama a atenção para a importância da aglomeração em torno

das metrópoles tidas como cidades globais. A aglomeração é caracterizada pelas altas

densidades demográficas nos centros expandidos dessas cidades. Considera-se tam-

bém a aglomeração para os fornecedores de uma cadeia produtiva, de consumidores e

trabalhadores como um fator de extrema importância para o desenvolvimento econô-

mico, para a regulação de salários e a maximização do tempo de trabalho, garantindo

maior retorno para as empresas.

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Além da mão de obra qualificada que se concentra nos grandes centros urbanos e

que estão à mercê das empresas transnacionais, faz também parte dessa aglomeração

os inúmeros imigrantes de diversas nacionalidades que chegam ao Brasil, mas sobre-

tudo em São Paulo, em busca de oportunidades de trabalho que possam ser conquis-

tadas com base na centralidade oferecida localmente pela cidade frente ao país e, de

forma global, perante a economia mundial.

A nova divisão internacional do trabalho gerada pela globalização da economia

cria lugares mundializados e metrópoles globais. No contexto das cidades globais, a

metrópole de São Paulo passa a ser uma referência no Terceiro Mundo, pois congrega

diversas atividades, um setor financeiro de ponta, uma gama de serviços de qualidade,

além de dispor de tecnologia e uma rede de comunicação que a diferencia das demais

cidades brasileiras e garante o desenvolvimento de suas atividades econômicas. Além

disso, São Paulo atrai capitais estrangeiros, migrantes e imigrantes de várias partes do

Brasil e do mundo que buscam a cidade para trabalharem e nela se fixarem.

Para os imigrantes de diversas nacionalidades, a cidade de São Paulo atua no ima-

ginário como sendo o local ideal para que as suas vidas economicamente tomem um

novo rumo, uma guinada que é posta à prova quando tomam consciência de que o

Brasil é um país em desenvolvimento, com uma desigualdade social assombrosa e,

em São Paulo, deparam com as contradições que a cidade impõe para a manutenção

da vida. A inserção no mercado de trabalho, o reconhecimento de diplomas e a atuação

em atividades com melhores remunerações tornam-se praticamente impossíveis.

No que tange aos estudos sobre a globalização e seus impactos nas cidades do

Terceiro Mundo, Milton Santos nos revela que o processo de globalização desencadeou

a constituição de um meio técnico-científico-informacional e a emergência de novas

formas de regulação territorial. Ainda segundo Milton Santos, o território e o Estado

passam a ter papel fundamental para a compreensão do mundo contemporâneo com a

internacionalização do capitalismo. O Estado assume a função de regulador num mo-

mento em que a circulação dos fluxos de pessoas, mercadorias e das finanças passam a

dominar a cena mundial. Na questão da regulamentação dos fluxos de pessoas, vemos

o Estado regulando e aprovando a nova Lei de Migração 13.445/17, que entrou em vigor

em 21/11/2017, substituindo o antigo Estatuto do Estrangeiro, um dos resquícios da

ditadura militar.

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No que diz respeito aos países da periferia do capitalismo, como é o caso do Bra-

sil, verificamos que as facilidades da globalidade não estão presentes em todo o ter-

ritório nacional, o que nos revela a desigual distribuição do meio técnico-científico-

informacional, a vivência de várias e diferentes temporalidades e a sociedade dividida

entre formas desiguais de participação no processo da globalização. A precariedade e

as formas não modernas de inclusão são o vínculo do imigrante na metrópole paulis-

tana e uma das faces do processo de globalização.

Seria, portanto, “global” a “cidade” que se configurasse como “Nó” ou ponto nodal

entre a economia nacional e o mercado mundial, congregando em seu território um

grande número das principais empresas transnacionais, cujas atividades econômicas se

concentrassem no setor de serviços especializados e de alta tecnologia , em detrimento

das atividades industriais, quando, por consequência, o mercado de trabalho fosse polari-

zado gerando novas desigualdades sociais e uma forma de segregação urbana dualizada.

(CARVALHO, 2000 apud LEVY, 1997; VÉRAS, 1997; MARQUES e TORRES, 1997).

Conforme ressalta Carvalho (2000), São Paulo se enquadra nessa condição de

ponto nodal entre a economia brasileira e a economia global, já que ali encontramos

a prestação de serviços extremamente especializados e bem remunerados, mas tam-

bém trabalhos precários, malremunerados e até mesmo pessoas que trabalham em

condições análogas à escravidão. Essa realidade que vivenciamos em São Paulo, fruto

da divisão territorial do trabalho, mostra-nos a imensa desigualdade social que deixa

suas marcas no plano do vivido por seus habitantes e pelos imigrantes na metrópole.

É nos trabalhos precários, nos “bicos” malremunerados e temporários que encon-

tramos a maior parte dos imigrantes, que aceitam “qualquer tipo” de trabalho que

possa garantir o mínimo de sobrevivência frente à crueldade imposta pelas formas de

reprodução capitalistas.

Com base na teoria dos dois circuitos da economia urbana proposta por Milton

Santos, podemos explicar como as cidades dos países periféricos – caso de São Paulo

– funcionam em dois subsistemas urbanos: o subsistema superior, composto das

grandes empresas, bancos e pelos setores de alta tecnologia, e o subsistema inferior,

constituído das atividades que se utilizam de mão de obra intensiva e com pouca ne-

cessidade de capital e investimento, mas que juntos são capazes de produzir, distribuir,

comercializar e gerar demandas de consumo para a população, seja ela de alta ou baixa

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renda. Os dois subsistemas produzem materialidades distintas, são complementares e

estabelecem uma relação dialética visível no urbano.

Para Milton Santos, o circuito inferior cumpre seu papel de produção e distribuição

de bens e produtos não modernos com pouco capital, gera trabalho para muitos e se

utiliza de mão de obra de imigrantes, precarizada, não qualificada e não formalizada.

No que diz respeito à cidade de São Paulo, o potencial de globalidade se revela,

ao contrário do que foi lido, por meio das noções de cidades globais centrais ou do

Primeiro Mundo porque ela se estrutura em torno de formas precárias de produção e

circulação da riqueza.

A globalização gera dialeticamente a homogeneização dos modos de vida e do con-

sumo das sociedades em nível global. Localmente, há o aumento dos empregos malre-

munerados e sem proteção social em um contexto de concentração urbana, de riqueza

e poder. Para os imigrantes, principalmente os que se encontram em cidades globais do

Terceiro Mundo, cada dia é uma luta sem vitória. A pobreza e a falta de perspectiva nas

cidades corrói a esperança juntamente com a fome e a precariedade da vida cotidiana.

Interculturalidade e a possibilidade de construção de pontes

Como vimos, a cidade de São Paulo se difere das demais cidades brasileiras por ser

uma cidade global, mas uma cidade global da periferia do capitalismo, ou seja, carrega

consigo uma série de contradições e desigualdades que se revelam no cotidiano da

metrópole. Por ser global e apresentar uma concentração de empresas e consequente-

mente uma possibilidade maior de oferecer trabalho, ainda que precário, a cidade de

São Paulo atrai pessoas de outras cidades e estados, assim como imigrantes e refugia-

dos de outros países na esperança de conseguirem emprego e se estabilizarem no país.

A globalização do final do século XX surgiu com a ideia de unir o mundo, por

meio de um processo econômico e social que estabelece uma integração entre os pa-

íses, suas culturas e as pessoas do mundo todo. Desse modo, previa-se também uma

livre circulação de mercadorias, de fluxos financeiros e pessoas. No entanto, o que ve-

mos no momento são os países, principalmente os desenvolvidos do Primeiro Mundo,

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erguendo muros e impedindo a entrada de imigrantes e refugiados. A globalização

permanece somente no que tange aos objetivos econômicos, isto é, para a comerciali-

zação de mercadorias e para a circulação de capitais.

Com relação à cultura, presenciamos, a partir da década de 1980, a disseminação

dos hábitos e do modo de vida americanos como cultura hegemônica. Porém, muitos

países, apesar de aceitarem a introdução de mercadorias estrangeiras e de alguns ele-

mentos da cultura americana (música, modo de se vestir, entre outros), defenderam

suas culturas locais com o intuito de preservá-las e reafirmá-las perante sua população

e as futuras gerações.

O Brasil, país onde se vê uma multiculturalidade advinda, como já citamos ante-

riormente, da própria formação da nossa sociedade e das heranças culturais trazidas

pelos diversos povos que para cá migraram, apresenta uma grande diversidade cultu-

ral. Desse modo, com a imigração, muitos povos trouxeram suas culturas e as man-

tiveram em território brasileiro. Mesmo que tenham incorporado muitos de nossos

costumes, ainda preservam traços de suas culturas de origem (hábitos alimentares,

religião e elementos da tradição).

Não pretendemos nos aprofundar no conceito de interculturalidade como propos-

to pelas ciências sociais, mas abordaremos essa temática de forma mais ampla. Logo,

tomaremos a interculturalidade como a possibilidade de um grande diálogo entre dife-

rentes culturas, buscando uma forma pacífica de convivência num mesmo espaço so-

cial. Assim sendo, a interculturalidade favorece a integração, a tolerância e a convivên-

cia entre as pessoas. Parte-se do princípio de que todos são iguais e que o contato com

o outro deve proporcionar a troca de experiências. Contrariamente à noção de multi-

culturalismo, a interculturalidade pressupõe o diálogo e o respeito pela diversidade.

Priorizando a interação e o convívio entre diferentes culturas e acreditando que

devemos defender uma sociedade mais justa, onde todos sejam iguais e detentores do

direito de ir e vir, possibilitados de reconstruir suas vidas, é que, em 2014, abracei a

causa dos imigrantes e refugiados e comecei a ministrar palestras de cunho intercultu-

ral na Missão Paz como voluntária da ONG Sietar Brasil5.

O objetivo das palestras é apresentar aos recém-chegados ao Brasil o que vem a

ser o nosso país, a nossa sociedade. Mostrar a eles as dificuldades que irão enfrentar e

informá-los dos documentos necessários para regularizar a situação como estrangeiro.

5 A SIETAR Brasil é uma Organização Não Governa-mental – ONG – composta de membros filiados que se dedicam à pesquisa, ao treinamento e às atividades educacionais no campo das relações interculturais.

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Eles também são orientados sobre a importância do aprendizado da língua portuguesa,

o uso da linguagem (expressões idiomáticas em especial) e algumas normas de com-

portamento. Procuramos ressaltar a liberdade religiosa existente no país, lembrando-

os que eles devem se adaptar à nova realidade, mas procurando manter sempre vivas,

principalmente em família, as suas tradições e a língua nativa.

Com essa abordagem, as palestras se desenvolvem, e várias são as trocas de experi-

ências e informações . Algumas dessas informações, no que se refere ao cenário atual

das recentes migrações, merecem ser relatadas.

Os imigrantes e refugiados, na sua maioria, chegam ao Brasil com pouco conhe-

cimento sobre o país e acreditam tratar-se de um país de Primeiro Mundo. Espantam-

se com a desigualdade social, o valor do salário mínimo e a renda média das famílias

brasileiras. Além de se espantarem com essas descobertas, surpreendem-se com o

fato de não haver boas oportunidades de emprego em São Paulo, já que as ofertas que

aparecem são para trabalhos braçais e com baixíssima remuneração.

Nas palestras, há o predomínio de homens imigrantes e refugiados. Poucas são

as mulheres. Algumas vezes, casais com crianças ou famílias inteiras participam da

formação. Muitos relatam que partiram sozinhos para o Brasil e que não conheciam

nenhum compatriota que morasse no país. Laços de amizade são criados no próprio

espaço da Paróquia Nossa Senhora da Paz no Glicério, onde está instalada a Missão Paz.

A língua é, de forma unânime, a primeira barreira cultural enfrentada por eles.

Estar num país totalmente desconhecido, mas, principalmente, sem falar o idioma

torna a adaptação ainda mais difícil. O aprendizado da língua portuguesa torna-se uma

urgência para se relacionarem e conseguirem um trabalho. O idioma, que inicialmen-

te é uma barreira, pode se tornar sinônimo de libertação e conquista quando compre-

endido e falado.

A cada palestra, olhos atentos, assustados, ansiosos e cansados tentam prestar aten-

ção ao que é apresentado, mas a insegurança quanto ao futuro, muitas vezes, leva os

participantes para longe da sala. Aí começa uma verdadeira ginástica para atrair-lhes a

atenção e fazê-los participar do momento, questionar, tirar dúvidas ou, simplesmente,

tentar entender um pouco o que é o Brasil e o modo de ser e de viver dos brasileiros.

As fases do processo de integração cultural é composto dos seguintes momentos:

euforia – momento anterior à emigração; choque cultural – momento após a chegada

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ao país de destino; adaptação – momento em que se é apresentado à cultura brasileira

e às formas de se adaptar a ela; e, finalmente, o momento de integração cultural, que

leva um tempo, mas que é almejado por todos que pretendem se estabelecer no Brasil.

Quando o assunto é introduzido, pergunta-se aos imigrantes o que conheciam

sobre o Brasil antes de imigrarem. As respostas são vagas e sempre as mesmas, in-

dependentemente do grupo e de sua nacionalidade: futebol, carnaval, samba, café,

Amazônia, imagem do Cristo Redentor, país emergente e com possibilidades de cresci-

mento, receptivo, que oferece oportunidade de trabalho. Desenham inicialmente uma

imagem romântica de um país perfeito para se viver, onde não existem problemas.

Na segunda fase do processo, ou seja, a do choque cultural, questionamos o que os

choca desde a chegada em São Paulo. As respostas são mais realistas: muitas drogas

e pessoas viciadas (maconha parece ser liberada), pobreza e miséria, muitas pessoas

vivendo nas ruas (inclusive idosos), muita violência, racismo, homossexualismo em

excesso, mulheres com roupas extravagantes exibindo o corpo, passividade do povo

brasileiro frente aos absurdos que acontecem na política.

Perguntados sobre o que buscam no Brasil, a resposta é praticamente a mesma, ou

seja, trabalho. Em alguns casos, citam o anseio por cursar uma universidade, a busca

de proteção e asilo político, mas a questão do trabalho e a expectativa de uma vida me-

lhor sempre aparecem em primeiro lugar.

A realidade política e econômica é mencionada quando falamos sobre o Brasil na

atualidade e o índice de desemprego. Assustados, não poupam perguntas curiosas

para entender o que realmente acontece no cenário brasileiro e o que fez o país deixar

a sua posição de país promissor e de emprego fácil para dar lugar à uma crise polí-

tica e econômica difícil de ser superada e que compromete os planos de quem aqui

desembarcou cheio de esperanças. Preocupam-se com a situação econômica e com a

dificuldade de encontrar trabalho. Muitos relatam o medo de ter que ir morar na rua

devido à falta de trabalho e a dificuldade de honrar com o pagamento do aluguel. O

desemprego e a dificuldade de se manterem no país impedem o envio de remessas

para as famílias no exterior. Muitos citam que suas famílias não acreditam na situação

enfrentada por eles no Brasil.

Afirmam que gostam do Brasil e julgam o brasileiro simpático e alegre, mas reve-

lam que sofrem de racismo nas ruas, no transporte público. O racismo é, então, abor-

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dado de forma a contextualizar a história do Brasil, último país a abolir a escravidão.

É preciso reconhecer que o negro, desde então, luta para conquistar algum tipo de

igualdade num país tão desigual em oportunidades.

Como todos buscam um emprego e uma condição de vida melhor do que a que

tinham em seu país de origem, a abordagem de temas referentes à documentação, sa-

lário, impostos que incidem na folha de pagamento, entre outros, torna-se de interesse

geral, e as informações são cuidadosamente registradas. Mesmo considerando a atual

situação em que vivem, todos afirmam que desejam continuar no Brasil.

Alguns temas são difíceis de serem abordados, como a higiene pessoal e o fato de

que não devem e não podem se calar diante de abusos de ordem moral, legal e sexual.

A denúncia precisa ser feita para que outros imigrantes não sejam submetidos à hu-

milhação e à violência.

Várias mensagens durante a palestra são passadas para ajudar o imigrante a se

adaptar a uma nova cultura, mas, para mim, uma das mais importantes é a de que,

apesar de se adaptarem, eles jamais devem esquecer as suas origens – a língua-mãe, a

cultura e a história de seu país – valores que devem ser passados de geração em gera-

ção. Também sugerimos a eles que compartilhem suas experiências e sua cultura com

os brasileiros.

Infelizmente o enfoque que damos à interculturalidade não exclui os atos de racis-

mo, violência e discriminação na sociedade brasileira. Crianças estrangeiras em am-

biente escolar também passam por discriminação. Algumas que mal compreendem o

português são vistas e tratadas como crianças especiais. Para evitar essas situações, é

preciso ressaltar, no ambiente escolar, assim como nas instituições públicas e privadas,

o reconhecimento e a valorização das diferentes culturas e as dificuldades de compre-

ensão e aprendizado de um novo idioma.

O aumento da presença de imigrantes na cidade de São Paulo mobiliza e esta-

belece o diálogo entre a sociedade civil, os próprios imigrantes e o governo. Políticas

públicas para melhoria da prestação de serviços públicos, da qualidade de vida e para a

garantia da diversidade cultural e igualdade de direitos são discutidas e criadas.

Conseguimos comtemplar, sobretudo, a cidade de São Paulo, com muitas conquis-

tas, como a aprovação da primeira Lei Municipal de Migração 16.478/2016, que asse-

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gura a igualdade de tratamento e direitos aos estrangeiros que vivem na cidade, mas

ainda há muito por fazer. Nossa trajetória mostra-se na contramão das construídas nos

países desenvolvidos. Acreditamos estar no caminho da destruição de muros para a

construção de pontes de convivência pacífica, de respeito pela diversidade cultural e de

troca de experiências.

Considerações finaisA globalização do século XX nos revelou as tendências de integração comercial e

financeira, porém nos fez ver que a homogeneização não está presente nas sociedades

e que se faz necessário o diálogo entre as diferentes culturas que compartilham um

mesmo espaço social e geográfico.

Cabe mencionar que, nos últimos anos, o Brasil recebeu vários imigrantes, assa-

lariados globais – expatriados, médicos cubanos e universitários –, mas, ao lado desse

fluxo mais especializado, há um outro representado pelas grandes levas migratórias

vindas de países periféricos e não brancos, destinadas aos trabalhos precários e malre-

munerados. O Brasil é um exemplo de país que recebe fluxos migratórios diversifica-

dos. Muitos chegam de modo explorável e vulnerável e lutam por sobrevivência, o que,

muitas vezes, os força a buscar formas precárias de trabalho.

Conforme nos mostra os estudos de Hasbaert, a territorialização dos imigrantes

se dá no sentido do engajamento com o mundo do trabalho. O trabalho é a garantia

de sobrevivência, inserção na sociedade, garantia de envio de remessas para o país de

origem e o que cria o sentimento de pertencimento no país estrangeiro.

Os imigrantes fazem parte de uma engrenagem do capitalismo à qual a utilização de

sua mão de obra é indispensável para o funcionamento econômico do mundo. Migram

de situações precárias em seus países capitalistas, “fugindo” para o centro ou para outros

países também da periferia do mesmo sistema capitalista. Os imigrantes “fogem” para o

capitalismo para se manterem vivos. No sistema escravagista, o escravo tinha um dono,

no capitalismo, o trabalhador livre pode trabalhar para quem quiser, mas acaba se sub-

metendo a trabalhos em condições de precariedade porque não tem outra opção.

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A cidade global de São Paulo atrai imigrantes e refugiados por ser um local que

oferece oportunidades de trabalho, ainda que precários, e por se configurar como pon-

to nodal entre a economia local e a global. No entanto, presenciamos processos de ter-

ritorialização que revelam as relações capitalistas de produção, desigualdades sociais,

discriminação, preconceito e dificuldades de inserção.

Paralelo às dificuldades vivenciadas pelos imigrantes, há uma força de vontade

para enfrentá-las em busca de sobrevivência. Consideramos os imigrantes sujeitos que

agem no espaço e na vida cotidiana, deixando suas marcas, seja por meio da cultura de

origem que vivenciam no país de destino, seja pelo próprio idioma, que é preservado

quando vivem em comunidades.

Atualmente testemunhamos Estados-nação que, mediante as diversas crises hu-

manitárias presentes em várias partes do mundo, utilizam-se de sua soberania e er-

guem muros em suas fronteiras ou criam locais de contenção de refugiados de forma

a não permitirem a sua entrada em seus territórios, tirando-lhes o direito de ir e vir e

impedindo a sua inserção nas sociedades. As consequências dessas medidas são inú-

meras, mas podemos citar, entre elas, o aumento do número de apátridas pelo mundo.

Podemos dizer que o Brasil, ao contrário dos demais países, tem adotado uma postu-

ra mais acolhedora e humanitária, seja pelo recebimento de imigrantes e refugiados de

vários países do mundo, tanto pela aprovação da Lei Federal de Migração no 13.445/17 –

substituta do antigo Estatuto do Estrangeiro, resquício da ditadura militar – quanto pela

aprovação da Lei Municipal (São Paulo) de Migração 16.478/2016 que trazem, apesar de

seus vetos, avanços para as questões migratórias em âmbito federal e municipal.

Vivenciamos diversidades culturais em todo o mundo. No caso brasileiro, mais es-

pecificamente na cidade global de São Paulo, os recentes fluxos migratórios explicitam

a imensa diversidade cultural dos que chegam. O caminho para a boa convivência e o

respeito está nas práticas interculturais.

A convivência da diversidade cultural e a possibilidade de tratar o tema da intercul-

turalidade com base na alteridade, como nos ensina Sayad (1998), e no respeito pelo

outro nos situam num patamar diferenciado em comparação aos outros países.

Para os imigrantes e refugiados, apesar de também sofrerem no Brasil situações de

discriminação e racismo, a noção de interculturalidade possibilita-lhes vivenciar uma

nova cultura sem terem que abdicar das suas. Concebemos, assim, a possibilidade de

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criar “pontes” de convivência e de respeito mútuo e de adotar ações mais solidárias e

humanas ao entendermos as dificuldades e o sofrimento dos migrantes.

Ministrar as palestras de cunho intercultural na Missão Paz é, sem dúvida, uma

experiência única. Poder passar um pouco de conhecimento aos migrantes e ajudá-

los a entender o que é o Brasil e o brasileiro me traz a certeza de que, no fim de cada

encontro, é possível contribuir para a adaptação deles à nova realidade sem que seja

necessário abdicar de suas culturas de origem.

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