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APRESENTAÇÃO
Hegel conclui a seção consagrada, nos Princípios da Filosofia do Direito, ao
direito político próprio de cada Estado, mas considerado, inicialmente, na única relação
deste consigo mesmo; isto é, na sua constituição interna, evocando as duas intervenções
maiores nesta - donde a estruturação objetiva garante enquanto tal a realização estatal do
espírito objetivo - da subjetividade. A primeira, no ápice do Estado, é aquela da
subjetividade, única, do Príncipe; a segunda, na base do Estado, é aquela da subjetividade,
plural, da opinião pública. Certo, a subjetividade, real nos indivíduos, como tais expostos
ao arbítrio, é felizmente limitada, no Estado racional, pela Constituição. É sempre no
quadro objetivo desta que Hegel pode sublinhar, mais do que qualquer outro teórico
racionalista da política, o papel decisivo do Chefe de Estado e o papel indispensável da
opinião publicamente expressa dos cidadãos. Pois a satisfação das exigências prioritárias,
da razão estatal deixa um vasto campo, no interior do conteúdo universal destas exigências,
à escolha do entendimento solicitado pela particularidade das situações. Ora, é aqui que o
discernimento de um Príncipe sábio e de uma comunidade esclarecida de cidadãos pode
comandar, para sua felicidade ou para sua infelicidade, o destino concreto mais racional do
Estado. A insistência de Hegel sobre o duplo papel da subjetividade cultivada pela vida
moderna testemunha, então, a atualidade conservada por seu pensamento profético. Com
efeito, o Estado contemporâneo é bem aquele que, em sua ordem constitucional, libera o
poder político presidencial e o poder de uma opinião pública animada pelo
desenvolvimento da mídia.
Entretanto, se o tema do poder do Príncipe foi, nestas últimas décadas, um
objeto privilegiado do comentário hegelianizante, o mesmo não ocorreu com aquele da
opinião pública na filosofia política de Hegel. E é por isso que a presente obra de Agemir
Bavaresco é bem-vinda. Ela tem o mérito, de uma parte, de situar a contribuição hegeliana
na história da formação da opinião pública na vida sócio-político-cultural da humanidade
moderna, detendo-se notadamente sobre o século XVIII e a Europa ocidental, e, de outra
parte, de bem marcar o sentido e o papel da opinião pública no organismo do Estado
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racional hegeliano. Ele insiste, oportunamente, sobre os dois aspectos, cuja contradição
estimula a vida comunitária, em torno desta opinião, e sobre o juízo, por conseguinte,
contrastado que Hegel revela sobre o assunto. De um lado, a opinião pública expressa o
espírito do povo, em sua tradição já fixada e em seu dinamismo aberto, o mesmo que a
legítima reivindicação dos cidadãos, em prol de uma participação ativa na vida do Estado; e
é por isso que o responsável político deve levar em conta a vox populi. Mas, de outro lado,
o conteúdo substancial do espírito do povo se aliena, na opinião pública, através das trocas
não propriamente racionais entre os indivíduos, deixados à contingência de sua situação e
de sua cultura; logo, a obrigação que o homem de Estado tem numa ocasião, saber
desprezar uma opinião incerta. Sabedoria hegeliana, ainda a meditar hoje!
É bem este o objetivo do livro de Agemir Bavaresco, de chamar, diante das três
principais respostas, que ele distingue, levadas ao problema do sentido e do papel da
opinião pública, a virtude de uma tal meditação da teoria elaborada por Hegel. Pois a
resposta socioliberal abre a porta a um elitismo subjetivista que relativisa e fragiliza a
cidade; a resposta político-institucional conduz a um diretivismo cultural, também perigoso
para o Estado então esclerosado; quanto à resposta que quer liberar o público do político
por um tipo de volta ao espírito crítico do século XVIII, ela é desqualificada por uma tal
retrogradação. A solução - do príncipe - hegeliana ultrapassa, por antecipação, a
unilateralidade dividida destas respostas atuais. É dizer, uma vez mais, quanto pode ser
salutar recomeçar novamente de Hegel para enfrentar racionalmente os desafios do
presente.
Bernard Bourgeois
Professor da Universidade de Paris I
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ÍNDICE
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................................ 2
ÍNDICE .............................................................................................................................................................. 4
ABREVIAÇÕES ............................................................................................................................................... 6
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................. 7
- A - ................................................................................................................................................................... 16
A MEDIAÇÃO POLÍTICA DA LIBERDADE DE OPINIÃO ................................................................... 16
1 - A LIBERDADE FORMAL DE OPINAR ................................................................................................ 25
1.1 - O direito de a pessoa opinar ................................................................................................................ 27
1.2 - A impaciência da opinião ..................................................................................................................... 32
1.3 - O interesse particular ou a opinião privada ........................................................................................ 34
2 - A LIBERDADE SUBJETIVA DE OPINAR ........................................................................................... 38
2.1 - É o bem próprio ou o bem privado que interessa a opinião ................................................................ 40
2.2 - O direito da vontade subjetiva ou o direito de opinar sobre o Bem ..................................................... 45
2.3 - A contradição da consciência moral e a opinião subjetiva .................................................................. 49
3 - A LIBERDADE PÚBLICA DE OPINAR ................................................................................................ 56
3.1 - O espírito do povo ou como a opinião se torna pública ...................................................................... 62
3.2 - A esfera privada e pública da opinião ................................................................................................. 77
a) A pedagogia da opinião na família ...................................................................................................... 77
b) A força da opinião no engendramento das necessidades sociais ......................................................... 79
c) O Direito privado e a publicidade das leis nos debates judiciários ...................................................... 84
3.3 - A esfera política da opinião ................................................................................................................. 90
a) O papel da opinião nos “Escritos Políticos” ..................................................................................... 100
b) O reconhecimento da opinião pública ............................................................................................... 112
3.4 - Os espaços públicos da opinião ......................................................................................................... 116
a) A Comunicação pública ..................................................................................................................... 116
b) A publicidade dos debates das assembléias dos estados ................................................................... 125
c) O poder legislativo: a opinião mediatizada dos cidadãos .................................................................. 129
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- B - ................................................................................................................................................................. 136
O ESTATUTO TEÓRICO E PRÁTICO DA OPINIÃO PÚBLICA ........................................................ 136
1 - A fenomenologia da opinião ................................................................................................................. 138
2 - A lógica da opinião ............................................................................................................................... 142
3 - O político da opinião ............................................................................................................................ 149
CONCLUSÃO ............................................................................................................................................... 167
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 171
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ABREVIAÇÕES
Enc Enciclopédia das Ciências filosóficas [trad., B. Bourgeois].
Trad. I: t. I / A Ciência da Lógica.
Trad. III: t. III / A Filosofia do Espírito.
FdD Princípios da Filosofia do Direito [trad., R. Derathé]
FdE Fenomenologia do Espírito [trad., Labarrière-Jarczyk].
CdL I, II, III Ciência da Lógica [trad., Labarrière-Jarczyck].
Trad. I: I / O Ser.
Trad. II: II / A doutrina da Essência.
Trad. III: III / Lógica subjetiva ou doutrina do Conceito.
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INTRODUÇÃO
A teoria hegeliana da opinião pública se propõe a verificar a idéia dialética de
comunicação nas mediações políticas da liberdade de opinar.
Este estudo hoje se justifica particularmente, pois o fenômeno da opinião
pública muito em voga recebe, quase exclusivamente, um tratamento psico-sociológico e
sociológico. A participação filosófica trará, esperamos nós, outros pontos de vista e
aprofundamentos a este debate. Hegel apresenta uma verdadeira teoria da opinião pública
em alguns parágrafos da Filosofia do Direito. Ele aí anuncia as grandes questões e as
categorias fundamentais, tais como o fenômeno, a contradição e a liberdade; sua análise da
opinião se concentra sobre o eixo filosófico-político, a qual se fixa a explicitar a mediação
lógica, que se pressupõe no fenômeno e se efetiva no espírito político; enfim, a
apresentação desta teoria nos permite de definir, no pensamento hegeliano, uma filosofia
que na sua época compreende especulativamente um problema bem atual. Ao mesmo
tempo, nós vemos nesta teoria os fundamentos e a originalidade para compreender, em
nossos dias, esse fenômeno.
O desenvolvimento deste estudo sobre a teoria hegeliana da opinião pública se
refere ao conceito mesmo da opinião pública, estabelecido por Hegel no parágrafo 316 da
Filosofia do Direito. Ele mesmo nos dá aí o movimento silogístico e os principais
momentos de sua teoria: a opinião pública é uma forma de saber fenomenal; a opinião
pública, é a existência da contradição do universal, do substancial e verdadeiro ligado ao
elemento particular do ato de opinar; e a opinião pública é a liberdade de os indivíduos
exprimirem seus julgamentos a respeito dos assuntos universais.
A teoria da opinião pública é exposta na Filosofia do Direito do parágrafo 315
ao parágrafo 320, mas são os parágrafos 316 a 318 que tratam da mesma diretamente. O
problema ou a questão central se apresenta assim: o fenômeno da opinião é uma
contradição indiferente, isto é, tanto tempo, quanto ela permanece na sua consciência
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imediata exterior. Ora, as mediações lógico-políticas permitem de suprassumir 1 a
contradição da opinião pública desenvolvendo-lhe toda força transformadora sócio-
política? Dito de outro modo, como realizar a mediação entre o imediato impaciente da
dialética da opinião com a paciência especulativa do conceito para chegar a um resultado
positivo, isto é, a verdade da opinião pública?
Nós antecipamos esta hipótese, para responder a esta interrogação central: A
idéia de comunicação, enquanto julgamento da opinião se mediatiza no silogismo político,
pois a mediação lógico-política suprassume o fenômeno imediato da opinião, e esta aqui
desenvolve seu poder crítico de transformação de toda a realidade reificada a fim de que a
liberdade de opinar se torne, conforme à verdade do político. Enfim, o princípio da
liberdade subjetiva encontra na modernidade sua expressão mais elevada, e a opinião
pública é uma das manifestações privilegiadas desta liberdade. A apresentação da
constituição da opinião pública, no interior do espaço público burguês, ilustra o fato de que
a mediação lógico-política, proposta pela teoria hegeliana da opinião pública, já se
verificou efetivamente dentro de condições sócio-históricas determinadas.
1 . Nós adotamos a tradução do verbo aufheben pelo neologismo “suprassumir”. Seguimos, portanto, a opção
feita por Paulo Meneses e José Machado na tradução da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em
Compêndio de Hegel. Id. op. cit., São Paulo, Loyola, 1995, p. 9.
Nós sabemos a significação complexa deste termo, que precisaria ser traduzido pela tríade:
negar, conservar e elevar. A propósito J.P-Labarrière afirma: “Aufheben, Aufhebung: significação, ao mesmo
tempo, positiva e negativa: conservar ao nível da verdade suprimindo o que permanece ainda inacabado.
Nenhum termo francês pode dar-lhe o sentido complexo. A melhor solução poderia ser aquela introduzida por
Yvon Gauthier no seu artigo: “Lógica hegeliana e formalização”, Diálogo, Revista canadense de Filosofia,
setembro 1967, p. 152, nota 5: “Nós propomos a tradução „suprassumir‟ e „suprassunção‟ para „Aufheben‟ e
„Aufhebung‟. A derivação etimológica apóia-se sobre o modelo „assumir-assunção‟. A semântica do palavra
corresponde ao antônimo de „subassunção‟ que se encontra em Kant. A suprassunção define, portanto, uma
operação contrária aquela da subassunção, a qual consiste em colocar a parte em ou sob a totalidade; a
suprassunção - „Aufhebung‟- designa o processo da totalização da parte”. Id.
Structures et mouvement dialectique dans la Phénoménologia de l‟esprit de Hegel. Paris, Aubier, 1968, p.
309.
Labarrière nos dá um exemplo para explicar o termo suprassunção, em que ele acentua a
prevalência do aspecto positivo no processo de “negar-conservar-elevar”: “O trabalho doméstico que consiste
em conservar um alimento - um fruto por exemplo - fazemos que ele passe por uma transformação, isto é,
negando-o na sua forma imediata de subsistir e elevando-o, de tal modo, a um estado que permite
precisamente sua “conservação”: Konfitüre für den Winter aufheben (“fazer conservas de compota para o
inverno”). É em função desta primazia do positivo que o termo pode ser retido para significar a essência da
discursividade reflexiva”. Id. Phénoménologie de l‟Esprit. Paris, 1993, Gallimard, p. 58. Cf. também G.W.F.
Hegel. Ciência da Lógica. Trad. de P.-J. Labarrière e Gwendoline Jarczyk. v. I, Paris, Aubier, 1972, p. 25.
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O desenvolvimento da estrutura do plano de trabalho e a disposição lógica de
suas articulações se encadeiam em dois momentos: Primeiramente, a mediação política da
liberdade de opinião foi elaborada a partir da Filosofia do Direito, onde são apresentados
três momentos da liberdade de opinar, enquanto ela é formal, subjetiva e pública. Nesta
tríplice articulação, a opinião pública encontra as mediações lógico-especulativas
necessárias, para afirmar a liberdade na esfera pública. E, em segundo lugar, o estatuto
teórico e prático da opinião pública corresponde a três momentos do sistema hegeliano: a
Fenomenologia do Espírito, enquanto ela é a apresentação de todo o sistema, a principiar
pela experiência da consciência; a Ciência da Lógica, enquanto ela é o desenvolvimento
total do sentido no pensamento puro; e a Filosofia do Direito, enquanto momento do
espírito objetivo, é a efetivação histórica do sentido. Esta abordagem segue a articulação da
filosofia do círculo1 científico do sistema hegeliano: do imediato indeterminado – o começo
– através da mediação, chega-se ao imediato determinado – ao resultado. Seguindo este
caminho de produção do sentido das determinações da ciência filosófica, nós temos
desenvolvido o estatuto teórico e prático da opinião pública, articulando os momentos de
seu círculo filosófico: a fenomenologia, a lógica e o político2.
Para Hegel, entre os traços fundamentais da modernidade, o princípio da
subjetividade ou o direito à liberdade subjetiva é a marca da passagem da antigüidade aos
tempos modernos. O reconhecimento deste direito resulta de muitos fatos históricos tais
como o direito romano, o cristianismo, a sociedade civil moderna e a Revolução Francesa.
Cada uma destas realidades tem contribuído para fundar o princípio de uma nova forma de
mundo, que é a modernidade. Esse princípio tem moldado nossos modos de pensar e nossas
instituições, é no interior da efetividade ética que se exerce e se desenvolve o direito, por
1 . A figura do círculo serve para dar o movimento da filosofia hegeliana no plano do sistema. Segundo
Denise Souche-Dagues, o círculo hegeliano não funciona nem como símbolo, nem como modelo estrutural,
ele é sinal de retorno, mas não de fechamento, ele indica a presença do Absoluto como unidade do começo e
do resultado, mas na sua mediação. O círculo reúne as duas vertentes do hegelianismo: o desenvolvimento da
forma absoluta e aquela do concreto, como experiência e como história. Cf. Denise Sauche-Dagues. Le cercle
hégélien. Paris, PUF,1986. 2 . Cf. Labarrière-Jarczyk. PdE, apresentação, p. 35; André Léonard. La structure du système hégélien. In
Revue Philosophique de Louvain, t. 69, Louvain/Belgique, Éd. de l‟Institut Supérieur de Philosophie, 1971, p.
495-524.
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exemplo, da opinião da pessoa jurídica e do sujeito moral. O risco do princípio da
subjetividade é que ele pode fechar-se sobre seu direito à particularidade subjetiva e
considerar como última justificação ética seu sentimento individual, sua própria convicção
ou sua opinião pessoal. O indivíduo quer encontrar na particularidade contingente de seus
instintos de suas pulsões ou de seus interesses uma norma de ação universalizável. Hegel
reconhece o direito da liberdade formal e subjetiva junto ao indivíduo moderno, mas, ao
mesmo tempo, ele reconhece a objetividade reivindicada pelos antigos, particularmente
junto a Platão e à “bela totalidade ética” da cidade grega, pois eles tinham compreendido
que a justiça por si exige ter uma figura objetiva sob a forma de uma das teorias que
definissem as instituições concretas que organizam a vida em comum dos homens. Se a
opinião pública tem sua justificação primeira ou imediata no princípio da subjetividade, em
contrapartida, são as mediações da vida ética que lhe dão a sua segunda ou verdadeira
justificação.
Historicamente, a opinião pública se afirma como tal, a partir do
desenvolvimento, ao mesmo tempo do sistema de mercado capitalista e da sociedade
burguesa. No interior desta sociedade, a subjetividade se afirma como um espaço de
intimidade familiar, objetivando-se na propriedade privada e na cultura literária. O
indivíduo constrói sua subjetividade e dá a si mesmo os meios jurídicos de garantir e de
proteger esta determinação pessoal. O sujeito se emancipa das amarras absolutistas e
constrói a cidade em oposição à corte. Esse é o sujeito burguês que se torna autônomo e
estabelece as relações econômicas e sociais independentemente do poder do rei. Essas são
todas as mudanças que constituem a base de afirmação do sujeito moderno, como livre, e
lhes dão a capacidade de falar e de opinar sobre o destino do mundo; dito de outro modo, o
burguês faz o mundo, toma-o em seu pensamento científico e muda-o pela sua ação
histórica; o cidadão exprime sua vontade livre de opinar como membro de um poder
político.
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A verdade do Estado moderno é fundada sobre o duplo princípio da liberdade
universal e da liberdade subjetiva 1. Ora, a opinião pública se inscreve no interior deste
princípio. O Estado se exprime através da opinião; dito de outro modo, ele se manifesta
através da verdade própria da opinião pública e encontra a fonte de sua autoridade e a
legitimidade de suas decisões, escutando o conjunto do “espírito do povo”. Isso não
significa dizer que o princípio sobre o qual repousa a verdade do Estado moderno é a idéia
do povo soberano, que se exprime sob a forma da opinião pública, nem seu corolário que
faz da opinião pública a única fonte da verdade de toda a democracia moderna. Esta é uma
visão política, correspondendo a uma concepção ingênua da “racionalização” do exercício
do poder.
Existem, atualmente, duas concepções de opinião pública face ao Estado, que
nós podemos chamar a posição liberal e a posição institucional. A primeira sustenta a
liberdade subjetiva, enquanto que a segunda se inclina antes em direção à afirmação da
liberdade universal. Os adeptos da primeira posição querem que um pequeno grupo de
representantes ou de especialistas formem a opinião, pois o espaço público desintegrado
necessita, segundo eles, de uma comunicação integradora. Um grupo de formadores de
opinião é encarregado de estabelecer os pontos de referência públicos, no interior do grande
público do qual não se solicita mais que o consentimento por aclamação. O liberalismo
constata que a opinião pública tem mais e mais dificuldade de impor-se, por causa da massa
de inclinações, de idéias confusas, de pontos de vista vulgarizados que se espalham através
dos meios de comunicação. Face a esse fenômeno, o liberalismo acha urgente criar
instituições encarregadas de criar uma opinião pública orientada, a qual corrija a opinião
comum da massa. Essas instituições apresentarão os pontos de vista defendidos por uma
elite de cidadãos bem informados, a fim de evitar, no interior do espaço público a
contradição das diversas correntes de pensamento e, desta maneira, monopolizar a opinião
pública em favor de um pensamento único. Para K. Popper esta posição corresponde a uma
visão ultra liberal da opinião pública, pois se trata de formar a opinião pública para uma
1 . Cf. FdD, p. 260.
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“vanguarda”, uma elite avançada de líderes ou de formadores de opinião, através de suas
obras, seus panfletos etc. Nós podemos constatar que, no interior da posição liberal,
existem pontos de vista diferentes. Eles são de acordo sobre os grandes princípios liberais.
Mas alguns, como Popper, tomam distância e denunciam os perigos da opinião pública,
pois esta é anônima e constitui, segundo eles, uma forma de poder irresponsável. Para ele a
teoria liberal, defendendo a liberdade de discussão, de pensar e de trocar idéias no debate,
representa um dos valores últimos do liberalismo. Pois essa teoria não deve,
necessariamente, estabelecer a verdade, nem seguir uma marcha, atingindo a formação de
um consenso. Os liberais, segundo K. Popper, não aspiram a um consenso perfeito do
conjunto das opiniões, eles desejam somente que as diferentes opiniões se fecundem
mutuamente e que esse processo permita um progresso das idéias. E se a busca da verdade
pelo caminho da livre discussão racional é um negócio de caráter público, esse processo
não tem por resultado a formação de uma opinião pública. Enfim, conclui ele, esta entidade
vaporosa e inapreensível que é a opinião pública, às vezes, mostra uma sagacidade natural
ou, isso que é mais freqüente, de um senso moral superior aquele do governo. Ela não
constitui uma ameaça para a liberdade, se é mediatizada por uma tradição liberal poderosa1.
A segunda posição mantém, como essencial para a opinião pública o caráter
representativo e os critérios institucionais. Assim, a opinião pública é identificada a
doutrina majoritária, a qual obedece o parlamento. Este aqui por suas discussões, representa
a opinião e esclarece o governo, que, de seu lado, das informações recebidas, expõe a
política que ele vai seguir. O parlamento serve, portanto, de porta- voz da opinião pública.
Para alguns, porém, são os partidos os verdadeiros parceiros políticos. Para eles, os partidos
exprimem as diferentes perspectivas da vontade dos cidadãos e o partido majoritário é o
digno representante da opinião pública.
Segundo J. Habermas, essas duas concepções da opinião pública, que
correspondem a uma democracia de massa, mostram que a opinião não está quase mais na
1 . K. P. Popper. Conjectures et réfutations. [É no capítulo 17 que Popper trata da opinião pública e dos
princípios liberais]. Paris, Payot, 1985, p. 506-516. Para Popper a tradição liberal é firmada num “quadro
moral” de uma sociedade, correlativo de “armação jurídica” fornecido por suas instituições.
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medida de assumir um papel político, se ela não se coloca como mediação das
organizações, assim como da sociedade civil, do sistema político que a mobilizam e a
enquadram. Para ele, ali está a fraqueza destas duas posições, pois o conceito de opinião
pública se encontra completamente neutralizado, na medida em que o público não é mais o
sujeito da opinião pública. O material de uma sondagem, continua ele, enquanto expressão
das opiniões de uma amostra qualquer da população, não tem valor de opinião pública, pois
as opiniões de um grupo, definidas pelos critérios das pesquisas não podem preencher o
abismo que separa a ficção jurídica da opinião pública e a dissolução que é feita pela
psicossociologia. O princípio democrático da publicidade, sustentado pelo Estado social,
define a opinião pública como um freio que pode opor uma resistência à ação do governo e
da administração. Mas ela pode ser também dominada em função dos resultados e das
conclusões fornecidas pelas sondagens e manipulada por meios apropriados. Os institutos
de sondagens têm por tarefa efetuar as pesquisas, partindo de amostras confiáveis,
escolhidas nos limites de uma realidade dada. Os resultados obtidos são transmitidos a
título, de “feed-back”, aos órgãos e às instituições, as quais tem o papel de fazer
corresponder o comportamento da população aos objetivos políticos do governo. Assim, a
opinião pública é definida para ser manipulada, pois, sem a sua ajuda, os grupos políticos
no poder não conseguiriam fazer coincidir ou adaptar o comportamento da população ao
fim e às decisões políticas propostas pelo regime e pela doutrina política dominante. Esta
opinião pública permanece, portanto submetida ao controle do poder, mesmo quando ela
obriga o mesmo a concessões ou a reorientações. Ela não obedece mais às regras da
discussão pública ou da comunicação escrita ou oral. Ela não se preocupa com os
problemas de ordem política e não se dirige a instâncias políticas. Ao contrário, as relações
que ela mantém com o poder se restringem a reivindicações de ordem privada. Para
Habermas, a solução considerada é de tomar como ponto de partida a mutação estrutural e a
evolução da esfera pública e, a partir de lá, elaborar um conceito de opinião pública
rigoroso sobre o plano teórico, verificável ao nível empírico e que satisfaça as exigências
das normas constitucionais do Estado social. As opiniões “não públicas” proliferam,
enquanto que a opinião pública permanece uma ficção. Entretanto, é preciso manter o
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conceito de opinião pública como um paradigma, pois o Estado social constitucional se
realiza como uma esfera pública política, onde o poder social e a dominação política são
submetidas ao princípio democrático da publicidade. Considerando esta evolução sócio-
política, é preciso forjar, conclui ele, os critérios que definem a opinião pública como um
paradigma, os quais permitirão apreciar as opiniões do ponto de vista empírico 1.
A descrição habermasiana do modelo da esfera pública burguesa é, segundo
G. Eley 2, muito “idealtípica”, pois de um lado ela valoriza de modo idealista a primeira
forma da esfera pública política até a metade do século XIX, apresentando-a como a
manifestação superior do princípio da “publicidade”, a qual precisaria retornar, a fim de
reencontrar a criticidade perdida da opinião pública. De outro lado, sua análise da esfera
pública política atual do Estado social, no quadro das democracias de massa, faz parecer
esta esfera como deformada por uma opinião pública de demonstração e de manipulação e,
além disso, por uma cultura de massa acrítica ou de simples receptividade passiva e de
resposta aclamativa. Com efeito, sua concepção de opinião pública é muito idealizada e
centrada sobre as características de uma comunicação pública formada quase unicamente
pela leitura e orientada em direção à discussão. Na verdade, a esfera pública moderna
compreende uma pluralidade de espaços, onde a contradição das opiniões é mediatizada
pelos produtos da imprensa, mas também pela educação, a informação e o divertimento,
mais ou menos regulados discursivamente. Há também os espaços, nos quais concorrem
diversos partidos, associações e onde, se desenvolve a contradição fundamental entre o
público burguês dominante da origem da esfera pública e o público plebeu.
As três posições que tem sido apresentadas sobre a opinião pública nos dão, em
síntese, o desafio teórico e prático e sublinham o interesse do problema que nosso estudo
sobre Hegel: a teoria hegeliana da opinião pública quer tratar e desenvolver. A posição
liberal permanece ao nível da manifestação formal e subjetiva da opinião. A posição
institucional, no oposto, afirma que a organização estatal através do parlamento representa
1 . Cf. J. Habermas. L‟espace public. p. 249-254.
2 . Cf. G. Eley. Nations, Publics and Political Cultures. Placing Habermas in the Nineteenth Century. 1989.
Cf. J. Habermas. op. cit. p. 3-10, onde Habermas reconhece a pertinência destas observações.
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toda a opinião. Enfim a posição, que nós podemos chamar “idealtípica” se fixa na
construção histórica de um modelo de opinião pública como ponto de referência, para
analisar e condenar a opinião no seu desenvolvimento atual. Certo, esta última posição tem
o mérito de ter descrito com pertinência e justiça o nascimento e o desenvolvimento da
esfera pública e a constituição da opinião pública no século XVIII, mas seu defeito é de
querer sustentar uma volta a um modelo passado, como condição de possibilidade para a
opinião pública reencontrar sua potência crítica de outrora, isso que, de fato, não
corresponde mais às condições sócio-políticas da comunicação no século XX. Nossa tese
quer mostrar que a teoria hegeliana da opinião pública toma distância em relação a estas
três posições e desenvolve uma concepção verdadeiramente original sobre o assunto. Esta
teoria não cai no relativismo subjetivista, ou na vanguarda elitista, ou ainda numa discussão
sem fim, que termina por eliminar toda decisão ou referência institucional; ela evita,
também, a concepção oposta de uma opinião monopolista de publicidade de Estado; enfim,
ela não defende um retorno à idade de ouro da opinião pública, vendo aí o único modo de
salvá-la de seu estado de degradação presente, isto é, da manipulação e da alienação da
sociedade e da comunicação de massa. Ao contrário, a teoria hegeliana da opinião pública
mediatiza as três posições – a opinião subjetiva ou individual, a opinião institucional e o
modelo “idealtípico” – a partir da consciência imediata contraditória do fenômeno de
opinar, elevando a opinião a um saber dialético, depois mediatizando a liberdade de opinar
pelo poder da idéia de comunicação dialética, e enfim, efetivando a verdade da opinião
pública pela mediação política.
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- A -
A MEDIAÇÃO POLÍTICA DA LIBERDADE DE OPINIÃO
No século XVIII, a esfera pública burguesa tem consciência do papel que ela
exerce no cenário político-econômico em via de se desenvolver. É na opinião pública que
esta consciência vai encontrar sua expressão e sua afirmação histórica. Nós não trataremos
da história do “senso comum”, nem da ligação entre “a opinião geral” e a relação da
opinião pública com o “consensus omnium”. Nosso propósito é de abordar, brevemente, a
história do fenômeno da opinião pública, antes de analisar esse mesmo conceito a partir da
Filosofia do Direito de Hegel.
A palavra “opinião” transcreve em português o termo latino “opinio”, que
significa, simplesmente, um julgamento incerto e incompleto. O pensamento filosófico
desta palavra opinião – a partir da “doxa” de Platão até “das Meinen” de Hegel – conserva
o sentido que dela é dado no uso comum. O outro sentido da opinião é aquele do ruído
popular onde o rumor público nos reenvia à opinião dos outros: reputação, fama ou
consideração. Esses dois sentidos da opinião têm pontos comuns: o primeiro designa uma
idéia não estabelecida que exige provas para ser reconhecida verdadeira; e a segunda, a
fama junto à massa, no fundo, é duvidosa, portanto, não é plenamente verdadeira.
A evolução do conceito de opinião para aquele de opinião pública como ela é
compreendida no fim do século XVIII – a capacidade de emitir julgamentos públicos e de
pesar sobre as decisões – não aparece claramente. Há uma oposição 1 entre a opinião
1 . Sobre a oposição paradigmática entre público e privado, observemos que a diferença entre o privado e o
público caracteriza a representação das sociedades ocidentais, enquanto isto representa um conjunto de
mutações sociais, econômicas, políticas, ideológicas, marcando a entrada destas sociedades na era da
modernidade. Esta diferença implica de um lado, a esfera privada, fundada sobre a livre iniciativa individual e
estruturada ao redor das relações de interação entre os indivíduos e os grupos; de outro, a esfera pública
engloba as relações de autoridade e de força, integrando o conjunto das funções de direção e gestão da
coletividade. Esta representação e esta organização social e política corresponde à aparição do Estado na
Europa. A diferenciação do público e do privado se situa no coração do pensamento liberal: o monopólio
público contribui na eliminação da violência das relações sociais e o reconhecimento de uma zona de
autonomia individual constitui um meio de proteção face ao poder.
Esta diferença entre privado/público reenvia a valores opostos: o público é ligado ao interesse
universal e é o princípio de ordem e de totalização, que permite a sociedade de chegar a integração, de realizar
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pública que reinvindica uma racionalidade crítica e os dois sentidos originais: a pura e
simples opinião e a fama que é o eco das opiniões.
Hobbes identifica a consciência a opinião. Mais ainda, para ele, a consciência e
a consciência moral são uma só e a mesma coisa. Assim, se opera uma aproximação entre
consciência, consciência moral e opinião. No Leviatã –1651 – Hobbes elabora um conceito
de Estado fundado sobre a única autoridade do príncipe. Este governa independentemente
das convicções ou das opiniões de seus subordinados, que são excluídos do domínio
público do aparelho do Estado e suas opiniões não têm nenhuma influência sobre o plano
político. Hobbes é influenciado pela experiência das guerras de religião. A consciência
moral, torna-se uma opinião. Uma “corrente de opiniões” parte da fé e chega ao
julgamento. Todos os atos de fé, de julgamento e de pensar são reduzidos à mesma esfera
da opinião.
De outro lado, no Ensaio sobre o entendimento humano, Locke defende a tese
da “law of opinion” e a situa no mesmo plano que as leis divinas e as leis de Estado. A “law
of opinion” é o arbitro dos vícios e das virtudes. A opinião não significa mais aqui o estado
de incerteza ou de puro e simples conselho, como o postulava o sentido tradicional, isto é, a
opinião era considerada uma aparência superficial e enganosa. Pelo contrário, a “law of
opinion”, enquanto medida dos vícios e das virtudes, é chamada “philosophical law”. A
opinião designa então o tecido informal das idéias tais quais estão em uso num povo. E,
neste sentido, estas exercem um controle indireto sobre a sociedade mais eficaz, que aquele
da censura institucional quer ela seja acompanhada de sanções religiosas ou
administrativas. A “lei da opinião” é chamada também “law of private censure”. Esta lei
supõe que é chegado o momento em que a opinião se torna uma tomada de consciência
sua unidade, pela superação dos particularismos individuais e dos egoísmos categoriais. O privado é, ao
contrário, ligado ao interesse particular e ele dá a cada um a possibilidade de buscar a realização de seus
próprios fins, garantindo sua autonomia e protegendo sua intimidade. A oposição que existe entre essas duas
axiologias cria a tensão dialética da qual a sociedade tem necessidade para existir. “Sabemos que, na
perspectiva hegeliana, há ligação intima do interesse geral e do interesse particular, que se implicam
reciprocamente: a individualidade pessoal e os interesses particulares não recebem seu pleno desenvolvimento
senão na medida onde eles se integram eles mesmos ao interesse geral e são orientados em direção ao
universal; ao inverso, o universal supõe o interesse particular”. Id. Jacques Chevallier. Public/privé.
Apresentação. Paris, PUF, 1995, p. 7.
18
sobre o fundamento de uma moral secularizada, e de uma confissão que se tornou uma
coisa privada. A “law of opinion” não tem ainda o sentido de opinião pública. A opinião
não resulta de discussões públicas e ela não tem efeito sobre as leis do Estado. Ela se funda
antes sobre o consenso de pessoas privadas. A opinião, aqui, não pressupõe a cultura e a
propriedade – duas características da sociedade de mercado burguês - como o comportará a
opinião pública. Participar da opinião, imediatamente, não exige um uso público da razão,
mas simplesmente a expressão dos hábitos de pensar. A opinião pública, aí se oporá depois,
diretamente, denunciando-os como sendo prejuízos.
Pierre Bayle – o autor do Dicionário histórico e crítico – que é contemporâneo
de Locke, chama a “law of opinion” de “regime da crítica”. Para ele, a razão permanece um
fenômeno sobre a cena pública, pois ela se restringe ao domínio íntimo. Como a
consciência para Hobbes, a crítica, junto a Bayle, é um negócio privado, sem efeito sobre o
poder do Estado. Os Enciclopedistas retomam o conceito de opinião no sentido polêmico de
um estado de espírito, caracterizado pela incerteza e a vacuidade. Quanto à J.-J. Rousseau,
ele fala sobre a opinião pública no Discurso sobre as ciências e as artes. Utiliza a nova
expressão, mas conserva seu sentido antigo.
Junto aos ingleses, a evolução do conceito de opinião para o de opinião pública
passa pelo conceito de “public sprit”. O “public sprit” tem, inicialmente, o sentido de uma
disposição subjetiva, própria ao indivíduo tomado em particular, pois Stelle dá à expressão
um sentido novo, acentuando a dimensão objetiva, de espírito do tempo e de opinião geral
ou público. O Oxford Dictionary dá em 1871 a primeira ocorrência da categoria opinião
pública retomando isso que Burke chamava de opinião geral.
Rousseau e os Enciclopedistas na França identificam a opinião pública e
opinião popular, tal como ela se exprime através da tradição e o bom senso. Para os
fisiocratas a opinião pública é como a emanação do público esclarecido. Eles representam o
público que faz um uso político de sua razão e eles são os primeiros a defender a autonomia
legislativa da sociedade civil em relação a intervenção do Estado, sem colocar em causa o
regime absolutista. Para eles a opinião pública é o resultado esclarecido da reflexão pública,
efetuada em comum, sobre a ordem social. Ela não governa, mas o déspota esclarecido
19
escuta seus pontos de vista. Os fisiocratas não concebem, fora do regime estabelecido, o
papel do público que faz um uso político de sua razão. A função crítica da opinião pública
permanece separada de seu papel legislativo e isso provoca o isolamento da sociedade em
relação ao Estado, na França. Ao mesmo tempo, esta concepção de opinião desenvolve a
idéia de uma esfera pública politicamente orientada. Os ingleses, ao contrário, na mesma
época através do “public spirit”, obrigam o legislador a se justificar no exercício de sua
função.
Rousseau elabora a teoria da autodeterminação democrática do público através
do conceito da “vontade geral”; esta ligada à opinião pública e assimilada a uma opinião
irrefletida e espontânea, tal qual ela é publicada. Ele quer reinstalar a ordem natural no
interior da sociedade. A desigualdade e a servidão são as conseqüências da corrupção do
estado de natureza que provoca o corte do indivíduo em homem e cidadão. A origem da
alienação é devida ao progresso da civilização. O Contrato Social é a solução, pois nele
cada um submete à comunidade sua pessoa, seus bens e todos seus direitos a fim de poder
ter parte nos direitos assim como em todos os deveres, através da mediação da vontade
geral. É a garantia de um estado de natureza reinstaurado no estado da sociedade, como
uma espécie de instinto humano, no interior do estado de natureza. Montesquieu diz que o
espírito da Constituição é gravado no mármore. Rousseau, ao contrário, afirma no Contrato
Social que o espírito da Constituição é fundado no coração dos cidadãos, dito de outra
modo nos hábitos, nos costumes e sobretudo na opinião. A vontade geral reside no
consenso dos corações, bem mais que nos argumentos, e a sociedade mais bem governada é
aquela onde as leis correspondem às opiniões. Face à opinião compreendida como a opinião
do público esclarecido, mediatizada pela imprensa e a discussão dos salões, Rousseau
permanece fiel à opinião que emana dos hábitos simples e dos corações naturalmente bons,
isso é conforme ao Discurso de 1750.
Mesmo se considerarmos o aspecto natural da opinião, esta necessita ser
dirigida pela censura que supervisiona a convenção. A opinião pública é uma espécie de lei
na qual o censor é o ministro, diz Rousseau. O censor se faz o representante da opinião,
quando deve exercer seu controle sobre a sociedade. A opinião tem, segundo ele, uma
20
função reduzida na elaboração das leis; neste sentido a opinião, aqui, é diferente da “law of
opinion” junto a Locke. O legislador se encontra face a uma opinião que é soberana, e, ao
mesmo tempo, precária e sem meios. O legislador não pode empregar nem a força nem a
discussão pública. Ele deve recorrer à autoridade de uma influência indireta. Segundo
Habermas 1, a democracia, rousseauista, fundada sobre a opinião não pública, supõe o
exercício da força e as manipulações que isso ocasiona.
Uma questão se põe: por que Rousseau identifica a vontade geral e soberana
com a opinião pública? Para ele numa democracia direta, o soberano deve estar presente de
modo real. A vontade geral é o “corpus mysticum” idêntico ao “corpus physicum” que é
representado pelo conjunto do povo. Nós reencontramos aqui a imagem da cidade grega,
com a idéia de um plebiscito permanente, onde é o povo reunido na ágora ou na praça
pública, que é o fundamento da Constituição. A opinião pública para Rousseau é o fato de
os cidadãos se encontrarem numa assembléia, e de procederem somente pela aclamação,
sem o uso de sua razão. É esta que caracteriza um público esclarecido e lhe faz, portanto,
falta.
Os fisiocratas preconizam, todavia, o absolutismo onde a esfera pública guarda
uma real eficácia crítica. Rousseau, por seu lado, quer uma democracia onde seria excluída
a discussão pública. Assim os dois pensamentos se autoproclamam defensores da opinião
pública. Esta expressão encontra sua ilustração na França pré-revolucionária. A Revolução,
no que se refere, confunde as duas funções da opinião pública, separando o papel crítico de
seu papel legislador.
Na mesma época, na Inglaterra, Jeremy Bentham redigia, a pedido da
Constituinte, um texto que, pela primeira vez, expunha a ligação entre a opinião pública e o
princípio da publicidade dos debates. A publicidade dos debates parlamentares garante ao
público a possibilidade de vigiar e criticá-los. A opinião pública tem necessidade, por sua
parte, da publicidade dos debates para se instruir. Para Bentham, os debates parlamentares
públicos são apenas uma parte dos debates públicos em geral. A publicidade, no interior
1 . J. Habermas. L‟espace public. Paris, Payot, 1992, p. 108.
21
como no exterior do Parlamento, pode assegurar a continuidade do uso público de uma
razão politicamente orientada. Na Inglaterra, o progresso da publicidade tem evoluído
violando as leis. É por isso que Bentham fala do “regime of publicity” como de uma coisa
muito imperfeita e tolerada somente há pouco tempo.
É Guizot quem tem dado a primeira definição clássica do "reino da opinião
pública": "É o caráter do sistema que não admite em nenhuma parte a legitimidade do
poder absoluto, que obriga todos os cidadãos a buscar sem cessar, e em cada ocasião, a
verdade, a razão, a justiça, que devem regular o poder de fato. Isso é que faz o sistema
representativo: 1. pela discussão que obriga os poderes a buscar em comum a verdade; 2.
pela publicidade que coloca os poderes ocupados nesta busca sob os olhos dos cidadãos; 3.
pela liberdade da imprensa que provoca os cidadãos a buscarem a verdade e dizê-la ao
poder" 1.
Na Alemanha, no começo dos anos 1790, que Friedrich Georg Forster
introduziu o conceito de opinião pública sob o termo "öffentliche Meinung". Forster afirma
que a opinião pública tem, inicialmente, atingido sua forma acabada na Inglaterra e na
França, antes de ser importada na Alemanha: "Nós temos já 7000 escritores, e, além disso,
não existe nenhum espírito geral na Alemanha, não há aqui opinião pública. Essas
expressões mesmas são novas e estranhas para nós, porque cada um tem necessidade de que
lhes demos uma definição e que lhes expliquemos, enquanto que nenhum inglês hesitará
sobre o sentido do "public spirit", como um francês não tem maiores problemas para
compreender seu compatriota, logo que se trata de opinião pública" 2. Cinco anos após as
observações de Forster, Wieland consagra uma de suas "Gespräche unter vier Augen"
precisamente sobre a opinião pública 3. Para ele a opinião pública emana, inicialmente, da
gente instruída e se espalha no meio das classes assim que elas agem na massa. Existe junto
a Wieland certos traços rousseauistas, dos quais o romantismo político se apoderará para de
1 . G. Guizot. Histoire des origines du gouvernement représentatif en Europe. Bruxeles, 1851, t. II, p. 10 ss.
Citado a partir de J. Habermas. op. cit. p. 111. 2 . G. Forster. Sämtliche Schriften. "Über öffentliche Meinung". Gervinius ed., Leipzig, 1843, v. 2, p. 249.
Citado a partir de J. Habermas, op. cit. p. 111. 3 . C. M. Wieland. Sämtliche Werke. Leipzig, t. 32, p. 191-218. Citado a partir de J. Habermas, op. cit. p. 111.
22
identificar a opinião pública ao espírito do povo - "Volksgeist" -. Apesar disso, Wieland
permanece fiel à tradição elitista da Aufklärung alemã e a opinião pública se limita a
denunciar, diante do fórum da razão pública, alguns segredos de gabinete" 1.
A apresentação da história do conceito de opinião pública nos mostra,
inicialmente, que a opinião é uma idéia ainda não verificada ou que faz falta uma prova
fundada. A opinião, enquanto fama ou rumor público, designa a opinião da massa, em
relação a alguém ou sobre alguma coisa. No século XVIII nasceu uma outra concepção de
opinião pública que se torna crítica e reivindica a capacidade de fazer julgamentos. O
debate, para definir o fenômeno da opinião pública, já tinha começado com Hobbes, que
lhe atribui um papel menor na tomada de decisão do príncipe. Locke, de seu lado, dá uma
importância extraordinária à opinião - a "law of opinion" - a tal ponto que ele a chama lei,
neste sentido a opinião exerce uma função de controle social e sobretudo moral. Mas, aqui,
não se trata ainda, expressamente, de opinião pública, enquanto resultado da discussão
pública. Rousseau usa a expressão "opinião pública" identificando-a com seu conceito
chave de "vontade geral". Esta aqui é a opinião pública, enquanto surge dos costumes, dos
hábitos e dos sentimentos do coração dos cidadãos e não da discussões públicas. A opinião
pública tem por função publicitar o legislador e não ser uma instância crítica do poder. Ao
contrário, os Fisiocratas concebem uma opinião mais crítica. De toda maneira, antes da
Revolução Francesa, persiste na França um conflito em relação à função da opinião
pública: Ela deve ser crítica em relação ao poder? Qual é sua influência na elaboração das
leis? Ou, então, é a simples caixa de ressonância dos costumes populares e das opiniões da
multidão?
Jeremy Bentham, na Inglaterra, mostra a ligação da opinião pública com a
publicidade, dito de outro modo, a publicidade dos debates parlamentares constitui um dos
meios para o público ser crítico e vigilante a respeito do poder. Para Kant, o principio da
publicidade é um elemento mediador entre a política e a moral, isto é, a opinião pública
deve racionalizar a política em nome da moral.
1 . J. Habermas. op. cit. p. 99-112.
23
Enfim, é com Hegel que a opinião pública é compreendida como a dialética da
publicidade. Melhor ainda, a opinião pública é a contradição situada no interior da vida
ética, mas ela se determina a partir dos momentos mais abstratos para chegar a um
resultado concreto, que se tornará orgânico no interior do conceito de Estado. Hegel vai
diferencia-se de todas as concepções de opinião pública precedentes e, ao mesmo tempo,
integrar todas as aquisições do pensamento anterior, a fim de colocá-las em tensão
dialética, segundo sua originalidade conceptual.
A teoria hegeliana mostra que a opinião pública é um fenômeno colocado no
interior de sua teoria política. Ora, o pensamento liberal despolitiza o fenômeno da opinião
pública numa ética da discussão 1. A utilização do fenômeno despolitizado da opinião
pública pelo governo liberal, como instrumento de dominação política e como um critério
para governar o povo, nos leva a colocar esse problema: A dissolução do fenômeno da
opinião pública numa "ética liberal da discussão" que possui um conteúdo específico
permite aceder a verdade do político?
A teoria política hegeliana, desenvolvida na Filosofia do Direito, estabelece
um vínculo lógico entre a opinião pública e as determinações fundamentais da Filosofia do
Direito: a pessoa, o sujeito e o cidadão burguês. Ora, a opinião pública, de acordo com
Hegel, contém essas determinações como a justificação da mesma opinião pública: a) a
liberdade formal de opinar é a determinação da pessoa do direito abstrato, enquanto
imediatidade da vontade livre, que se sabe absolutamente livre, como uma particularidade
abstrata que contém a oposição do finito e do infinito nela mesma; b) a liberdade subjetiva
de opinar é o sujeito da moralidade, que se reflete em si, na sua interioridade, tendo como
seu fundamento o princípio da autodeterminação da vontade, que faz o homem senhor de si
mesmo e responsável pelos seus atos; c) a liberdade pública de opinar traduz-se junto ao
cidadão burguês da vida ética, o qual se exprime e manifesta seu julgamento, seu
pensamento ou sua opinião sobre os negócios públicos. Comecemos por desenvolver as
1 . Jean-François Kervégan. Hegel, Carl Schmitt. Le politique entre spéculation et positivité. Paris, PUF, 1992,
p. 118-124.
24
determinações da opinião pública a começar pelo seu momento formal, passando pela
liberdade subjetiva e terminando pela liberdade pública de opinar.
25
1 - A LIBERDADE FORMAL DE OPINAR
Hegel define a opinião pública, inicialmente, como a "liberdade formal" 1 de ter
o direito de opinar. Na introdução a Filosofia do Direito, ele afirma que a vontade tem, por
substância, a liberdade e é por isso que o direito é o reino da liberdade efetivada. A
primeira manifestação da liberdade da vontade é a vontade natural ou imediata, e a segunda
se dá sob a forma do livre arbítrio.
O livre arbítrio comporta dois aspectos: a vontade de uma parte enquanto
reflexão livre é capaz de abstrair-se de tudo e, de outra parte, ela é dependente de um
conteúdo ou de uma matéria que podem ser interiores ou exteriores. O livre arbítrio é a
contingência, porque em seu conteúdo que é necessário em si como fim, permanece uma
possibilidade em relação à reflexão. A reflexão, a universalidade formal e a unidade da
autoconsciência constituem a certeza abstrata da liberdade, sem ser ainda a verdade da
liberdade, porque a reflexão não se toma ainda como fim, nem como conteúdo. A reflexão
da vontade se restringe ao seu lado subjetivo e não se determina no objeto, por esta razão o
conteúdo desta autodeterminação permanece algo finito. "O livre arbítrio não é a vontade
na sua verdade, pelo contrário, ele é a vontade na sua contradição" 2. Só o elemento formal
da autodeterminação está presente no livre arbítrio.
A liberdade formal do ato de opinar é essa possibilidade de escolher e de
determinar-se, segundo o livre arbítrio. A escolha reside na indeterminação do Eu e na
determinação de um conteúdo. A vontade pode decidir-se a emitir uma opinião e logo em
seguida abandoná-la. Ela tem a possibilidade de opinar indefinidamente, porque o conteúdo
é diferente da forma. É a oposição incluída no livre arbítrio que se manifesta como a
dialética das pulsões. A satisfação de umas leva à subordinação ou ao abandono da
satisfação de outras e assim por diante 3. A opinião se identifica ao livre arbítrio que
contém a diversidade das pulsões em sua liberdade formal. Da mesma forma que existe a
1 . Cf. FdD, § 316.
2 . FdD, § 15, Ad.
3 . FdD, § 15-17.
26
pulsão que busca o prazer da satisfação natural, da mesma forma existe também a pulsão
que busca o prazer da satisfação de opinar. O homem é atraído pelo prazer de satisfazer o
livre arbítrio de opinar. É a paixão da opinião que move os indivíduos no exercício da
liberdade formal. A liberdade da vontade no seu aspecto arbitrário, exprime a mesma, pois
a opinião pode ser formal ou depender de um conteúdo interior ou exterior. De toda
maneira, a pessoa faz o uso de seu livre arbítrio e, neste sentido, ela tem o direito de opinar.
O entendimento da vontade ou o livre arbítrio é isso que os homens,
habitualmente, chamam de liberdade. Diz-se, seguidamente, que a liberdade consiste em
poder fazer o que se quer. O livre arbítrio é esta separação entre a livre reflexão da
consciência que faz abstração de todo conteúdo e, ao mesmo tempo, ela é dependente de
um conteúdo dado - interior ou exterior - e sobre o qual ela não tem domínio. O livre
arbítrio é uma liberdade formal, pois ele é um ato da vontade que permanece junto a si. É a
reflexão da consciência em si mesma sem conteúdo, mas que, ao mesmo tempo, depende de
um conteúdo. É um ato livre de toda determinação, que permanece limitado por um
conteúdo que lhe é imposto. Lá se encontra a contradição do entendimento da vontade: a
pura forma em oposição com o conteúdo. Ora, o ato de opinar carrega em si mesmo a
oposição do livre arbítrio do entendimento da vontade; o indivíduo é colocado entre a
vontade natural e a vontade substancial. O entendimento da vontade é o livre arbítrio, que
contém a liberdade formal e a liberdade substancial. Assim a opinião, enquanto liberdade
formal, engloba em si mesma o livre arbítrio; o indivíduo é livre para opinar sobre tudo o
que ele deseja, opinando sobre o conteúdo universal, começando pela sua particularidade
formal.
Hegel caracteriza a opinião pública como a liberdade formal, aproximando-a do
conceito do entendimento da vontade, sabendo que esta é a manifestação da contradição do
livre arbítrio. Ora, o livre arbítrio ou o entendimento da vontade, em sua liberdade formal,
tem o direito de julgar ou de opinar, enquanto prerrogativa da pessoa.
27
1.1 - O direito de a pessoa opinar
A primeira figura da Filosofia do Direito é o "direito abstrato". Esta figura
exprime uma imediatidade produzida por um movimento de efetividade que é
imediatamente livre. A vontade livre, em si e por si mesma acha-se determinada na
imediatidade, dito de outro modo, a vontade se determina livremente em relação a um
conteúdo dado. A vontade apresenta um comportamento negativo em relação ao real e neste
sentido é livre. O homem é uma vontade que é agente e sujeito do mundo a tal ponto, que
ele reconhece o mundo como o resultado de sua liberdade. O trabalho que consiste em
produzir uma nova objetividade, passa pelo processo de interiorização da imediatidade,
dada através da ação da vontade. O conteúdo primeiro da vontade situa-se ainda no
exterior, e o indivíduo, pela sua ação, determina-se como uma "pessoa" do direito em
relação aos outros indivíduos. O indivíduo é uma pessoa pela relação que mantém com o
mundo e porque ele é, ao mesmo tempo, reconhecido pelo outro, numa relação jurídica.
A pessoa aparece no mundo moderno como constituída por uma multiplicidade
de trocas. Por exemplo, os objetos do comércio são produzidos para satisfazer as
necessidades dos homens. É a vontade que atribui a si os meios de mediatizar suas
determinações, as mais imediatas. A troca de mercado é a aparição do conceito da liberdade
na imediatidade do ser. A vontade pode por lá se conhecer como um poder de efetuar no ser
as determinações da essência. Assim, a pessoa é a determinação que exprime esse processo
onde a vontade começa a se saber infinita na sua finitude, universal na sua singularidade e
individualidade livre nos seus conteúdos naturais. A pessoa é uma categoria política,
porque o indivíduo não é um objeto ou um ser natural na cadeia das relações que
constituem a troca de mercado. A imediatidade da liberdade é a subordinação das relações
de troca às relações jurídicas entre as pessoas; dito de outro modo, são as relações de direito
que permitem ao indivíduo atualizar a capacidade que ele tem de forjar seu próprio
presente. "A universalidade desta vontade, livre por si, é a universalidade formal, a relação
simples, consciente de si e desprovida de conteúdo, na sua própria individualidade: assim o
sujeito é uma pessoa. A personalidade implica que eu, este indivíduo perfeitamente
28
determinado de todos os lados (no livre arbítrio interior, nas minhas tendências e meus
desejos, assim como segundo o ser-aí imediato exterior) e finito, eu não seja senão uma
simples relação a mim, e que eu me conheça, assim, na finitude, como esse que é infinito,
universal e livre" 1.
A pessoa é uma determinação do homem livre, tal que este busca tomar posse
de seu próprio ser essencial, portanto ele tem a vontade livre de determinar sua
interioridade. Assim, Hegel quer tomar os direitos da pessoa enquanto engendrados através
de uma relação de troca. A categoria pessoa exprime as relações humanas, como saídas de
uma relação de direito, onde cada indivíduo se eleva a um processo que o torna capaz de
despertar a liberdade que ai é contida. A pessoa pode dispor livremente dela mesma,
impedindo, desta maneira, toda redução que faria dela um ser natural ou um simples objeto.
A filosofia política hegeliana não é aquela do acomodamento ao ser, mas aquela
de sua transformação em vista de verificar sua verdade. Para chegar a esse resultado, a
vontade individual tem o direito de opinar. Hegel parte de um estado de direito ao mesmo
tempo individual e imediato, a fim de que dele saia a verdade do conceito. O "direito
abstrato" é um direito privado que se efetua na esfera das relações interindividuais. As
determinações naturais da pessoa tem um caráter empírico e abstrato: enquanto empírico, a
pessoa age segundo suas pulsões e tendências, buscando sua satisfação de acordo com as
relações jurídicas em vigor numa comunidade dada; quanto ao lado abstrato, a pessoa se
acha numa relação de exterioridade a respeito de suas próprias determinações naturais.
Portanto, a relação de direito que aí nasce, é um preceito formal: "Seja uma pessoa e
respeite os outros como pessoa" 2.
O "direito abstrato" é o ponto de partida onde a pessoa concretizando sua
liberdade, começa a mediatizar a relação de exterioridade através do conteúdo particular de
sua ação. A pessoa se determina pela oposição entre a singularidade imediata e o mundo
que está presente diante dela. É, somente, pondo no real suas próprias determinações, que a
1 . FdD, § 35. Citado a partir da tradução de Marie-Jeanne Königson. Hegel: o direito, a moral e a política.
Textos escolhidos. Paris, PUF, 1977, p. 35-36. 2 . FdD, § 36.
29
vontade se torna livre de tudo isso que lhe é imposto, quer se trate dos elementos naturais
de sua própria interioridade ou do mundo imediatamente dado. A pessoa realiza o
movimento de suprassunção da oposição entre sua natureza formal e abstrata e o conteúdo
particular de sua ação 1.
A pessoa é a vontade que sabe sua singularidade como livre. A vontade livre
tornada existente é o direito. O direito é a liberdade, como idéia, portanto a liberdade que
tem efetuado seu conceito, a liberdade tornada efetiva, a liberdade realizada na existência
ou na história humana. Ora, o direito da pessoa é a existência efetiva do indivíduo como
vontade livre.
A vontade de opinar é uma liberdade formal, que existe como um direito da
pessoa. Hegel diz que, durante tanto tempo, quanto o sujeito tiver, simplesmente, uma
consciência em geral, ele não é uma pessoa. A personalidade começa, quando o sujeito tem
uma autoconsciência dele mesmo como Eu, perfeitamente abstrato, no qual todas
limitações e valores concretos são negados e desprovidos de valor. Assim, na pessoa se
encontra o saber de si, como aquele de um objeto, mas como aquele de um objeto elevado
pelo pensamento a simples infinitude, e por lá, puramente idêntico a si mesmo. Aqui, reside
a liberdade formal do ato de opinar que é posto como um direito da pessoa. Os indivíduos e
os povos que não têm acedido a este puro pensamento ou a este puro saber de si, não têm
nenhuma personalidade. O espírito que é em e por si distingue-se do espírito que é somente
uma manifestação fenomenal. O espírito, como fenômeno, é somente uma consciência
como vontade natural, enquanto o espírito como autoconsciência se toma por objeto e por
fim, enquanto Eu abstrato e livre e assim ele é uma pessoa 2.
O homem, segundo sua existência imediata e natural, é um ser exterior ao seu
conceito. É através do desenvolvimento, da formação e da cultura aprofundada -
Ausbildung - de seu próprio corpo e de seu próprio espírito, que ele toma consciência de si
como um ser livre. Ainda mais, ele toma posse de si e ele se apropria de si mesmo e se opõe
1 . D. Rosenfield. Politique et liberté. Structure logique de la Philosophie du Droit de Hegel. Paris, Aubier,
1984, p. 75-81. 2 . FdD, § 35 Ad.
30
ao outro. Esta tomada de posse é o ato de realizar efetivamente isso que ele é, segundo o
seu conceito: como possibilidade, faculdade e disposição. A justificação da escravatura,
assim como a justificação de uma dominação como simples direito do senhor e toda a
concepção histórica do direito do escravo e da dominação, repousam sobre o ponto de vista
que consiste em tomar o homem como ser natural, segundo um modo de existência, que
não é conforme a seu conceito. Pelo contrário, aqueles que afirmam a injustiça absoluta da
escravatura se atêm ao conceito de homem como espírito, como quem é livre em si e sua
concepção é unilateral nisto que ela toma o homem como sendo livre por natureza, ou, isso
que é a mesma coisa, que ela o toma pelo verdadeiro conceito como tal, na sua
imediatidade, e não a Idéia. Hegel critica as duas posições, enquanto elas permanecem
abstratas; pelo contrário, é a efetivação do conceito de homem que, para ele, é a verdade da
liberdade humana; dito de outro modo, o desenvolvimento da liberdade como consciência
subjetiva e objetiva permite efetivar a idéia de dignidade e o direito do homem a ser livre
em-e-por-si.
Nesta oposição, aquele que afirma o conceito da liberdade abstrata, tem a
vantagem de ter o ponto de partida absoluto, mas somente o ponto de partida em direção à
verdade; todavia aquele que nega a existência do conceito, não leva em conta o ponto de
vista da razão e do direito. O espírito que permanece nesta antiga e falsa representação, se
situa ainda no ponto de vista da consciência; a dialética do conceito e da consciência, ainda
imediata da liberdade, produz a luta pelo reconhecimento e a relação da dominação e da
servidão. O homem em si e por si não é destinado à escravatura, mas a ser livre. Para o
saber, é necessário ter atingido o nível do conhecimento onde se compreende que a Idéia
não existe verdadeiramente senão enquanto Estado 1. A oposição da escravatura e da
liberdade abstrata exprime a posição de uma concepção característica dos tempos
modernos, e da filosofia moderna. Esse princípio é a base do direito da pessoa como
vontade livre, e constitui também o fundamento do direito da pessoa a dizer sua opinião. A
pessoa, enquanto livre, quer exprimir a própria opinião, ela quer que a mesma seja sua
31
propriedade. E isso constitui a grande evolução dos tempos modernos que dá a capacidade
ao indivíduo de romper com toda forma de escravatura. Ter a própria opinião é desenvolver
o conceito de vontade livre. O indivíduo exprime sua vontade apropriando-se de sua
opinião, como qualquer coisa de próprio, como sua propriedade. O direito que tem a pessoa
de tomar posse de sua natureza empírica, corresponde ao direito que ela tem de dizer sua
opinião. E neste nível da liberdade formal a opinião se quer impaciente, pois esta liberdade
é imediata. A opinião quer poder exercer imediatamente seu direito.
A vontade livre se determina, enquanto pessoa, na medida em que ela é capaz
de dizer sua opinião face ao mundo e às outras pessoas. A pessoa se afirma no mundo
negando-o, pois ela é uma vontade que age e quer conquistar a realidade imediata que está
diante dele. Para aí chegar, a pessoa julga o mundo a partir de sua opinião e em relação com
a multiplicidade de trocas de opinião com os outros. É na relação que ela descobre seu
direito de opinar e de dizer livremente sua opinião. Ela toma consciência de si como uma
vontade livre determinando-se, enquanto oposição, pois reúne em si mesma a finitude da
determinação de suas pulsões e de seus desejos com o pensamento infinito, universal e
livre. E isso já é a contradição que constitui a pessoa em si mesma, quando exprime sua
opinião; ela julga o mundo a partir de sua opinião finita, marcada pelas determinações do
livre arbítrio imediato e ao mesmo tempo, ela julga de modo universal. Nesse contexto, a
pessoa busca a verdade de seu direito abstrato e o preceito formal é este aqui: "Diga tua
opinião e respeite a opinião dos outros".
A pessoa existe como indivíduo livre e isso é seu direito de pessoa e ao mesmo
tempo ela objetiva sua liberdade se tornando proprietário. A apropriação da pessoa como,
Eu consciente, é uma condição para o indivíduo afirmar sua opinião e seu julgamento sobre
o mundo, e deste modo o indivíduo verifica sua própria opinião e a opinião dos outros. A
formação e a cultura do corpo e do espírito, tomando consciência de si mesmo, como
pessoa livre, é o começo da realização do 2conceito de homem. A efetivação do conceito de
1 . FdD, § 57 e Ad. Citado a partir da tradução de Marie-Jeanne Königson. Hegel: le Droit, la Morale et la
Politique. Textos escolhidos. Paris, PUF, 1977, p. 47-49.
32
pessoa livre é uma luta contra a justificação da escravatura e de toda forma de dominação
opressora, logo que a pessoa começa a falar e a dizer sua opinião. Ora, é isso o exercício do
direito de opinar e de se impacientar para a efetivação do conceito e do direito de tornar-se
uma pessoa plenamente consciente de si mesma.
1.2 - A impaciência da opinião
A propriedade é por essência, propriedade livre e inteira. Não existe um uso
parcial ou temporário da coisa como posse parcial ou temporária. A distinção entre o direito
ao pleno uso da coisa e a propriedade abstrata pertence ao entendimento vazio 1. Hegel diz
que é preciso suprimir a separação entre o pleno uso e a propriedade abstrata, porque ela
não comporta uma relação de trabalho. Se nós separamos o uso da apropriação, nós
colocamos em causa o conceito mesmo da propriedade, pois o conceito de propriedade
implica a efetivação de suas determinações - a tomada de posse pelo trabalho, o uso da
coisa e a alienação da propriedade. Se a propriedade cessa de ser um princípio e se torna
um simples objeto de avidez humana, qual é a atitude a tomar logo que o processo de
apropriação não pode mais acontecer?
Hegel responde a esta questão, estabelecendo um paralelismo entre a liberdade
da pessoa, própria ao cristianismo, e a liberdade da propriedade. "Há cerca de um milênio e
meio de anos que a liberdade da pessoa tem começado a se afirmar graças ao cristianismo e
a tornar-se um princípio universal, para uma pequena parte da humanidade somente. Mas,
não é depois de ontem, podemos dizer, que a liberdade de propriedade tem sido aqui e lá
reconhecida como princípio. Este exemplo, tirado da história universal, mostra o tempo
considerável que é preciso ao espírito para progredir na sua consciência de si e deveria
servir para acalmar a impaciência da opinião" 1.
1 . FdD, § 62 e Ad.
1 . FdD, § 62 Ad.
33
As transformações históricas necessitam um longo tempo para tomar lugar no
cenário sócio-político. O tempo necessário para o espírito progredir na sua tomada de
consciência exige um lento engendramento conceptual dos acontecimentos. É somente esse
tempo histórico que produz uma objetividade sólida, pode resistir aos ataques da opinião.
As ações que se fundam sobre a opinião são aquelas que as exigências não correspondem
necessariamente ao conceito. Nos encontramos portanto face a "paciência do conceito" 1 e a
impaciência da opinião. Dito de outro modo, a paciência do conceito corresponderia ao
termo "reforma" e a impaciência da opinião àquele da "revolução".
Quanto a história do conceito, Hegel é classificado entre os partidários das
reformas. Estas apenas são capazes de atualizar o fundamento livre de uma sociedade, sem
colocar em perigo as determinações do todo. As mudanças ou as reformas devem ser
progressivas, obedecendo ao espírito do tempo. O combate revolucionário para transformar
o mundo pode conduzir a uma regressão histórica. Enfim, a história moderna, esta que já
tem sido mediatizada, exige a paciência do conceito. Mas não é necessário confundir a
paciência do conceito com uma espécie de "masoquismo social", pois a paciência tem seus
limites.
Basta olhar a história mundial, para constatar que ela tem sido sempre
atravessada por mudanças mais ou menos profundas. Hegel é muito atento às
transformações que tem permitido a fundação dos Estados nos diferentes momentos de sua
constituição. Ele exprime isso pelo "direito do herói" a fundar ou a transformar os Estados.
Hegel reserva esse direito a um momento histórico, que não tem ainda chegado à
maturidade do conceito. O último exemplo em data seria para ele a Revolução Francesa.
Depois deste acontecimento, os homens são chamados a aperfeiçoar as instituições que têm
sido criadas, evitando deste modo repetir as experiências históricas, como o "terror
jacobino". Mas, isso é apenas uma das possibilidades, pois se o conceito tende à reforma,
ele não é necessariamente submetido à mesma. Aqui intervém de novo o conceito de
revolução ou melhor ainda, o "direito do herói" a transformar uma situação dada. As causas
1 . Cf. Gérard Lebrun. La patience du concept. Paris, Gallimard, 1972.
34
que podem levar a uma revolução são múltiplas, como a "reificação" de uma sociedade ou a
passividade de seus cidadãos que torna necessária a transformação social. O conceito de seu
lado pode se encontrar no máximo de sua paciência. É neste cenário que se justifica a
intervenção dos "heróis". "O 'direito dos heróis' torna-se então, essencialmente um "direito
de revolta". Ele é um recurso constante dos indivíduos, dos grupos sociais, que se revoltam
contra uma situação de injustiça insuportável e buscam por lá fazer valer seus direitos. O
conceito tem o "direito de se impacientar". Reforma sim, se é possível. "Direito dos heróis"
ou revolução se isso é necessário" 1.
Enfim, a opinião se caracteriza pela impaciência que quer imediatamente a
realização do direito da pessoa. A opinião não suporta a lentidão da paciência do conceito e
o longo processo de efetivação de suas determinações históricas. Isso porque a opinião tem
um papel capital no cenário sócio-político, enquanto ela contém em si a força da
contradição e a reserva da indignação moral e ética, que faz mudar toda situação que não
corresponde à idéia de liberdade. A este nível do "direito abstrato" é necessário lembrar-se
que a impaciência da opinião busca realizar seu direito privado e por conseguinte a
defender seus interesses particulares, mas sabendo que, ao nível da liberdade pública, a
impaciência do opinar torna-se também portadora dos interesses universais.
1.3 - O interesse particular ou a opinião privada
A terceira seção do "direito abstrato" trata da negação do direito ou da injustiça.
Pensar a injustiça é pensar como o direito se torna para a vontade particular uma simples
aparência 2. A oposição entre o ser da vontade e a aparência produzida pela vontade
particular ocasiona a aparição de uma vontade moral, que vai suprassumir o fato jurídico.
1 . D. Rosenfield. op. cit. p. 94-95 e 96.
2 . Schein e Erscheinung tem o mesmo radical - sheinen: parecer -, mas eles tem um sentido diferente: O
Erscheinung pode ser traduzido por manifestação fenomenal e ele é da ordem do positivo, na medida em que
a essência deve manifestar-se; o Schein, sob a sua primeira emergência é da ordem do negativo, portanto
destinado a ser negado; o direito como aparência - Schein - é um não direito ou uma injustiça. Cf. FdD, § 82
Ad.
35
Esse movimento de mediação mostra que esse fato não é somente jurídico, mas ele
apresenta uma relação entre o direito e a moral. Existem três modos de injustiça: a negação
do direito de boa fé ou o dano civil que conserva a essência jurídica; a fraude ou a
aparência do direito; e a violência e o crime ou o desvanecimento da aparência e a
emergência da vontade moral. O fenômeno da injustiça demonstra a autonomização da
aparência imediata pela relação a um ser que não lhe dá mais satisfação sob a forma de uma
oposição entre a vontade particular por si e a vontade geral em si. A verdade desta
aparência ou sua falta se tornará a atualização do direito da liberdade subjetiva.
A negação do direito, sem fraude, não atenta contra o direito, pois ela visa a
uma coisa particular, que provoca a disputa entre diferentes vontades que buscam fazer
valer seus títulos jurídicos. O que está em questão não é, portanto, o direito, enquanto tal,
mas uma coisa que é reclamada por muitas pessoas. Seu desacordo aparece sobre um
terreno comum, aquele que repousa sobre o reconhecimento do direito ao qual é preciso se
recorrer para resolver o litígio. A aparência situa-se do lado da vontade particular, que crê
exprimir melhor seu respeito pelo direito. Trata-se de um problema de subsunção do objeto
em questão sob a determinação jurídica que beneficiará a uma ou a outra das partes. "Para
as duas partes, o reconhecimento do direito é ligado ao interesse particular e à opinião
particular que lhe são opostas. Face a esta aparência se manifesta o direito como
representação e como exigência. Mas ele existe ainda apenas como dever-ser, pois a
vontade não é ainda tal qual possa se liberar da imediatidade do interesse e toma por fim,
enquanto particular, a vontade universal. Esta é, aqui, determinada apenas como uma
realidade reconhecida, face à qual as partes teriam de reconhecer sua opinião e seu interesse
particular" 1.
O dano civil mostra o caráter imediato de uma relação que não é ainda um fim
em si para a vontade particular. Esta reconhece a universalidade do direito, mas na verdade
que ela busca é dar satisfação a seu próprio interesse particular. Neste nível do direito
abstrato, a vontade particular quer defender seu interesse próprio, dito de outro modo a
1 . FdD, § 86.
36
oposição entre as vontades se revela como o conflito das opiniões particulares. Cada um
quer fazer valer sua opinião que corresponde a seu interesse particular. A opinião é sempre
baseada no seu interesse. Entretanto, a pessoa que procura seus direitos, começa a
reconhecer o nascimento de uma aspiração nova, para agir de um modo conforme ao
universal. Esta aspiração tem a forma de uma exigência, de um dever-ser que põe o
problema de uma ação conforme ao que é universal e, ao mesmo tempo, a questão da
vontade constituir-se uma universalidade que seja o produto de seu movimento de
autodeterminação. Trata-se de fazer com que o direito seja interiorizado na subjetividade da
pessoa, a fim de produzir nela suas próprias determinações. Esta interiorização supõe uma
negação que libera a particularidade de sua tendência a tornar-se qualquer coisa de fixo. O
que é importante compreender no dano civil, não é o fato de que uma vontade seja
enganada a respeito de seus títulos jurídicos, mas que este erro tenha permitido desvelar os
direitos legítimos de uma vontade particular, que chama a concretização de sua
subjetividade 1, permitindo desta maneira a passagem em direção à moralidade e a
liberdade subjetiva de opinar.
Ao interesse particular corresponde a opinião privada, pois a determinação da
figura do "direito abstrato" se preocupa em conquistar seu direito à propriedade. Aqui,
estamos no interior do reino da liberdade imediata, onde o direito da liberdade de se
apropriar é manifestada como um direito de opinar, segundo seu interesse privado. A
negação do direito de boa fé opõe dois proprietários em conflito diante da lei, sem que eles
tenham cometido uma violação do direito, enquanto tal. O que está em jogo é o interesse
particular de um e de outro como proprietários e a exigência de sustentar, através de sua
opinião privada, seu interesse respectivo. A vontade nesta imediatidade não tem os meios
de sair dos interesses particulares e de se orientar em direção à vontade universal ou à
opinião pública. Esta implica já um reconhecimento de sua opinião privada ou de seu
interesse particular, que se tornará, através da negação de sua imediatidade, o retorno da
1 . D. Rosenfield. op. cit., p. 105-106.
37
pessoa a sua interioridade e, ao mesmo tempo, a abertura à universalidade do Bem. Ora,
isto já é a contradição da opinião já colocada, na qualidade de sujeito moral.
38
2 - A LIBERDADE SUBJETIVA DE OPINAR
Na sua definição de opinião pública - cf. FdD § 316 - Hegel a caracteriza como
uma liberdade ao mesmo tempo formal e subjetiva. Nós acabamos de mostrar a liberdade
formal da opinião. Falta agora desenvolver as determinações da liberdade subjetiva da
opinião no interior da "moralidade".
A moralidade é o fundamento subjetivo da liberdade. A pessoa se atualiza no
sujeito, da mesma maneira que o "direito abstrato" é contido na "moralidade". O sujeito é
uma vontade por si na sua interioridade e ele toma consciência de seu poder de
autodeterminação. A subjetividade da vontade tem o poder de se interrogar diante de toda
realidade e não somente de se inquietar, mas sobretudo de tudo verificar. A vontade moral é
a capacidade de tudo colocar em questão e de se interrogar em tudo sobre o cotidiano ou
sobre o que é considerado como já estabelecido. É a atitude própria de verificação e de
exame da verdade do mundo dado. A liberdade subjetiva consiste em reconhecer como
verdade, somente o que foi submetido à opinião, à experiência, à crítica. "É principalmente
esta liberdade subjetiva ou moral que se chama liberdade no sentido europeu do termo. Em
virtude do direito desta liberdade, o homem deve, em geral, possuir uma noção da diferença
do Bem e do Mal, as determinações éticas como as determinações religiosas não devem
requerer sua obediência somente como as leis e prescrições exteriores de uma autoridade,
mas ter no seu coração, sua disposição interior, sua consciência (moral), seu discernimento,
etc., sua aprovação, seu reconhecimento ou mesmo sua fundação. A subjetividade do querer
nele mesmo é [um] fim por si mesmo, um momento absolutamente essencial" 1.
O sujeito é o meio termo entre a "pessoa" e o membro de uma comunidade. A
esfera da moral não é independente da esfera jurídica e nem da esfera ética. A esfera da
moral tem, por finalidade, ordenar o mundo segundo uma ordem de verdade. A "vida ética"
- esta é hoje compreendida como o conjunto das relações
1 . Enc. III, § 503 Ad.
39
culturais, sociais, econômicas e políticas - constitui o domínio mesmo sobre o qual se
exerce a ação moral. A esfera moral pressupõe uma "vida ética" simplesmente dada e tal
como esta se mostra para ser conhecida através da esfera do direito privado. E, neste
sentido, o sujeito é o elemento de mediação entre a "pessoa" e o membro de uma
comunidade.
A vontade moral vive numa tensão entre o que ela é, individualmente, e o que
ele crê ser a universalidade do conceito e isso segundo a relação, o dever-ser e a exigência.
As três determinações da vontade moral indicam que a vontade individual mantém ainda
uma relação formal com a vontade universal em dois sentidos: como a forma do dever-ser
moral, que permanece uma universalidade abstrata e como uma atividade criadora de
forma, uma atividade que põe suas determinações na objetividade. A vontade subjetiva
leva, portanto, à exigência de se colocar como igual a seu conceito, no interior de uma
relação de efetividade, embora a "figura moral" apareça antes da "figura ética". Ora, isso
supõe, no movimento de figuração da Idéia de liberdade, que o "direito abstrato" e a
"moralidade" precedem a análise da "vida ética". A "vida ética" é, assim, o acabamento do
processo através do "direito abstrato" que se atualiza na "moralidade" e esta, por sua vez,
informa de modo prático a vontade, segundo uma Idéia de Bem que ela a si atribui e
engendra a figura que dá razão à sua falta de objetividade: o conceito de "vida ética" 1.
A "moralidade" introduz na concepção do indivíduo a dimensão de uma
liberdade subjetiva, que honra o direito de cada um se produzir como agente consciente de
seu processo de autodeterminação. O sujeito tem o direito de verificar em tudo o que já
existe o que é verdadeiro. Sem esse poder de verificação, o indivíduo pode ser reduzido à
força ou a dominação de um Estado totalitário. O Estado é a atualização deste movimento
de reconhecimento de cada indivíduo. O indivíduo se integra, reflexivamente, à
comunidade, isto é, a vontade moral se efetiva na sua subjetividade universal. A ausência
de tomada de consciência de cada indivíduo é livre, torna-se um terreno favorável para o
desenvolvimento de um Estado despótico. Uma interioridade cultivada, crítica e que é
1 . FdD, § 108 e Ad.
40
capaz de dizer sua opinião, é a melhor proteção contra toda forma de submissão do homem.
Ela se torna uma condição ao pleno desenvolvimento da liberdade e, ao mesmo tempo, ela
evita que a comunidade se torne opressiva em relação à vida individual. Enfim, trata-se de
criar as condições para tornar efetiva a possibilidade de uma coincidência entre a finalidade
da ação moral e a finalidade da ação política 1.
A liberdade subjetiva de opinar quer passar pelo crivo a realidade. Ela não se
contenta em aceitar o que já está dado. Ela coloca tudo em questão e faz a verificação de
seu mundo e do Bem e do Mal, a partir da vontade subjetiva ou da opinião subjetiva. É o
espírito crítico que se manifesta como uma exigência ainda formal, através da vontade
moral, que não é ainda uma vontade substancial ou ética. A vontade moral se manifesta,
portanto, como uma opinião interessada em seu bem próprio.
2.1 - É o bem próprio2 ou o bem privado que interessa a opinião
A categoria "intenção" - Absicht - visa fazer valer o aspecto do sujeito que
consiste em atribuir a coisa particular um predicado universal. A intenção pensa seu projeto
na universalidade. A ação particular deve engendrar sua própria universalidade. O que se
deve observar aqui, é a força do fator consciente, o fato que cada indivíduo deve querer
saber o que ele realiza em sua ação - Handlung -. O indivíduo é responsável e senhor de sua
ação moral, alguém não subordinado às opiniões dos outros, mas que se determina
conscientemente. "O direito da intenção consiste nisto: a qualidade universal da ação não
1 . D. Rosenfield. op. cit., p. 113-119.
2 . Nós seguimos a tradução de B. Bourgeois da palavra "das Wohl" por "bem próprio". "O que exprime, para
Hegel, "das Wohl", é a felicidade, o bem-estar etc., enquanto correlato do querer que se reflete "moralmente"
nele mesmo. Se, portanto, a simples tradução de "Wohl" por "felicidade", por "bem-estar" etc., diz muito
pouco, apagando esta referência "moral" distintiva, ao contrário uma tradução como "felicidade moral" diz
demais, sugerindo uma determinação ou limitação, pelo adjetivo, do substantivo em seu conteúdo (o
contentamento produzido por uma conduta nela mesma moral…), então que "das Wohl" exprime
inicialmente, no sentido hegeliano, a retomada "moral" formal da felicidade (em sua indeterminação
empírica). - Para marcar a especificidade "moral" de "Wohl", nós utilizaremos o termo "bem", mas lembrando
a imediatidade - individual - de um tal bem pela expressão ( que é na pior das hipóteses! ): "bem próprio".
41
existe somente em si, mas ela é conhecida do sujeito, logo ela já está presente na vontade
subjetiva. Inversamente, o direito da objetividade da ação, se nós podemos chamá-la assim,
é de se afirmar como conhecida e querida pelo sujeito como ser pensante" 1. O homem não
é um simples anel de uma corrente cotidiana, mecânica, inconsciente, de causas e efeitos.
Pelo contrário, o sujeito exige ter sua opinião própria a qual deve se inserir no movimento
do conceito. A vontade moral exige que o homem exprima sua opinião no meio do barulho
dos acontecimentos.
Se a categoria "intenção" insiste sobre o lado universal da ação moral, nós
sabemos que o sujeito busca, antes de tudo, sua própria satisfação particular. Enquanto ser
particular, o sujeito tem no fim universal que ele busca, seus fins particulares e estes aqui
constituem a alma da ação. Com efeito toda ação é uma ação interessada 1. O querer se
endereça sempre para alguma coisa e, ao mesmo tempo, o particular não se apresenta
separado do universal. A vontade é essencialmente temporal e na medida onde ela se
desenvolve no tempo, cria as condições de engendramento de um fundamento novo. Esse
tempo de efetivação da vontade é o tempo onde a ação moral se interioriza na subjetividade
do conceito. Hegel quer engendrar o universal pelo desenvolvimento mesmo do particular.
É preciso, portanto, que o sujeito suprassuma a cisão entre a universalidade subjetiva e a
particularidade objetiva, entre a consciência subjetiva e a objetividade da ação, evitando
assim toda sorte de utilitarismo moral ou, o contrário, o formalismo moral kantiano.
O sujeito tem o direito de encontrar satisfação na sua própria ação a tal ponto,
que é um dever para a sociedade responder, positivamente, aos interesses da vontade
particular. Esta importância combinada à satisfação da particularidade, contrasta com as
teorias que julgam possível uma ação completamente desinteressada. O universal é sempre
ligado ao particular. Existe o perigo de cair numa pura universalidade desinteressada - é o
caso, por exemplo da figura da "bela alma" - ou ao inverso, numa ação unicamente
interessada.
Nós traduziremos "das Gute" - que designa o correlato do querer "moral" mediatizando-se na universalidade
posta de sua liberdade, pelo enfático: "o Bem". Enc., III, nota nº 1, p. 152. 1 . FdD, § 120.
42
O homem, enquanto ser finito, deve, na sua ação, partir de sua particularidade e
essa é a sua condição mesmo de finitude. Se a ação moral não tem os meios de dar
satisfação à sua própria particularidade, ela cai na pura indeterminação da universalidade.
Os móveis imediatos da ação a qual faz o sujeito sair de si mesmo, são os interesses
particulares e os conteúdos imediatos da vontade natural. "Para precisar o conteúdo destes
fins, não dispomos aqui senão disto que segue: a) a atividade formal mesma consiste nisto:
o sujeito emprega sua atividade apenas em função do que ele deve considerar e promover
como seu fim; pois os homens querem ser ativos apenas para isso que os interessa ou os
deve interessar, como sendo seus negócios próprios; b) mas a liberdade ainda abstrata e
formal da subjetividade não tem um conteúdo mais determinado senão na sua existência
subjetiva natural: necessidades, inclinações, paixões, opiniões, fantasias, etc. A satisfação
deste conteúdo é o bem próprio ou a felicidade nas suas determinações particulares e na sua
universalidade, isto é, os fins da finitude em geral" 2.
Hegel quer abrir um espaço conceptual ao conhecimento dos fenômenos
naturais. Ele tem a preocupação de tomar em conta toda a realidade do sujeito: suas
necessidades, seus interesses e as opiniões mais banais e fazer de tal modo que elas sejam
satisfeitas. Ora, a vontade natural constitui o nível mais imediato e mais sensível do
conceito da vontade. Isso quer dizer também que a vontade não pode permanecer neste
estado, senão a liberdade não poderá nascer. A vontade natural pertence ao conceito da
vontade. A categoria do "bem próprio" atualiza a vontade natural numa vontade situada ao
nível do entendimento que afirma o direito de cada indivíduo acordar satisfação à sua
particularidade própria 3. A liberdade consiste aqui em pensar a vontade natural e a
mediatizar através das determinações da vida ética, a fim de que a particularidade seja
engendrada no universal 4.
1 . FdD, § 121.
2 . FdD, § 123.
3 . "O sujeito tem o direito que a particularidade do conteúdo na ação, seguindo a matéria, não seja uma
particularidade exterior a ele, mas a própria particularidade do sujeito, que ela contenha suas necessidades,
interesses e fins, que, reunidos igualmente num único fim, constituam seu bem próprio; - [é lá] o direito do
bem próprio". Enc. III, § 505. 4 . D. Rosenfield. op. cit., p. 128-132.
43
A ligação entre a "intenção" e o "bem próprio" visa garantir a conexão entre a
interioridade universal da vontade e sua determinação particular e objetiva. Desta maneira,
a vontade do outro não se torna um simples meio de minha satisfação, mas ela é
considerada como um agente ativo de uma mesma relação moral universal. Então, minha
relação subjetiva ao outro é uma relação positiva, pois o direito moral de um indivíduo é o
direito de todos. "O elemento subjetivo, com o conteúdo particular do bem próprio,
encontra-se igualmente, enquanto refletido em si e infinito, em relação com o universal,
com a vontade existindo em si. Esse momento, inicialmente posto nesta particularidade
mesma, é o bem próprio dos outros também - e, segundo uma determinação completa, mas
inteiramente vazia, o bem próprio de todos. O bem próprio de muitos outros indivíduos
particulares constitui então o fim essencial e o direito da subjetividade" 1. O bem próprio de
outro é particular e consiste também, igualmente, na satisfação de suas pulsões, inclinações
e necessidades. Isso é de seu interesse próprio. Entretanto, seu direito ao bem próprio torna-
se universal. "O sujeito se reconhece como igual ao outro. O direito da subjetividade, da
particularidade, não se confunde de modo algum com a satisfação particular de qualquer
vontade. Hegel visa, portanto, colocar em relevo que é o aspecto universal do direito que
sobrepuja sobre o conteúdo particular de cada ação. O direito da particularidade se
universaliza assim, no interior de uma vontade moral que busca mais e mais uma
universalidade que possa manter firme, segundo uma ordem de verdade (isto é da
liberdade), a efetivação da particularidade" 1.
O sujeito, em sua ação, busca, inicialmente, seu interesse particular e isso é um
direito da vontade moral. Neste nível da liberdade abstrata e formal, a subjetividade
comporta como conteúdo da vontade natural as necessidades, as paixões, as opiniões. O que
interessa à vontade natural, enquanto que se exprime na opinião, é seu bem próprio. A
opinião, estando no estágio inicial da liberdade subjetiva, é levada a julgar segundo os
interesses particulares. O que determina a opinião a julgar, é seu bem próprio. Se Hegel
defende a opinião, enquanto ela manifesta esta determinação particular da vontade moral,
1 . FdD, § 125.
44
não pára neste nível do desenvolvimento da moralidade e preconiza que a vontade natural
seja suprassumida na universalidade ética. Neste sentido é preciso compreender a crítica
feita por Hegel à moralidade fundada exclusivamente sobre a noção do "bem próprio",
enquanto satisfação do interesse particular da opinião subjetiva: "Se nos atemos ao bem
próprio, mesmo ao bem próprio dos outros, sem querer o direito, coloca-nos sempre do
ponto de vista da particularidade. O bem próprio é somente determinado, por isso é
particular, pela opinião - é o negócio de cada um, em particular, de decidir em que ele
colocará seu bem próprio. Junto ao indivíduo - isso é de outro modo no Estado - o conteúdo
do bem próprio é uma coisa que depende da contingência, do livre arbítrio do indivíduo, de
sua própria decisão particular. O bem próprio dos indivíduos, na medida em que ele pode
tornar-se para mim um fim, é qualquer coisa limitada, pois ele não tem seu fundamento na
opinião subjetiva, mas nisto que é objetivo, no Estado, na vida ética" 1.
O bem próprio interessa à opinião, porque ela faz parte da vontade subjetiva
natural e, neste nível, o indivíduo age para satisfazer seus bens privados. A ação do
indivíduo se inscreve pela intenção num círculo de universalidade, mas isso não quer dizer
que o sujeito moral aja em vista do universal simplesmente, mas ele não o faz senão
visando seu bem próprio. E isso, diz Hegel, é um direito do sujeito, pois este aqui deve
encontrar satisfação em sua própria ação, segundo ele julgue poder satisfazer sua opinião
subjetiva. Se o sujeito em sua vontade natural é interessado em agir, a partir de suas
necessidades, de suas paixões e de suas opiniões próprias, nós sabemos que Hegel faz
suprassumir esta vontade moral inicial em direção a uma vontade ética. Mas, é preciso dizer
também que este espaço que existe para a liberdade da vontade natural de buscar seu bem
próprio, segundo uma opinião interessada, ao bem privado, é um direito do sujeito.
1 . D. Rosenfield. op. cit., p. 134.
45
2.2 - O direito da vontade subjetiva ou o direito de opinar sobre o Bem
A categoria do "Bem" é a resolução da contradição entre o "bem próprio" e o
"direito da pessoa" 2 e, ao mesmo tempo, engaja um processo de produção verdadeiro de
objetividade, a fim de chegar ao conceito de vida ética. O Bem leva a completar as
determinações do "direito abstrato" e do "bem próprio". Ele é um cume, um ponto de
realização, um elemento mediador das figuras passadas: cada figura é suprassumida na sua
autonomia, para que, a partir de lá, se engendre uma nova determinação da liberdade. A
idéia do Bem implica um conteúdo que se atualiza através do movimento de figuração
anterior. O Bem é o resultado do movimento que consiste em tornar universal a
particularidade 3. Dito de outro modo, o homem dá a si mesmo os meios subjetivos de agir
conforme ao que é universal, e o Bem se determina, enquanto ser, na sua particularidade.
A universalidade moral se desenvolve, ao mesmo tempo que o movimento da
particularidade. O Bem se engendra, enquanto vontade particular no mundo e faz com que
o bem próprio de cada um se torne um direito de todos. "O bem próprio não é um Bem sem
direito. Da mesma forma, o direito não é o Bem sem o bem próprio (fiat justitia não deve
ter por conseqüência pereat mundus). É porque o Bem, como realidade que deve existir,
necessariamente graça à vontade particular, e que é também a substância desta, tem o
direito absoluto que prevalece contra o direito abstrato da propriedade e contra os fins
particulares do bem próprio. Enquanto separado do Bem, cada um destes momentos não
tem valor, senão que ele lhe é conforme e subordinado" 4. É preciso que para a vontade
subjetiva, o Bem seja o absolutamente essencial e ela não tem valor e nem dignidade, senão
na medida em que é conforme a ele no seu ponto de vista e na sua intenção 5. O Bem decide
1 . FdD, § 125, nota nº 27.
2 . "O Bem é a Idéia como unidade do conceito da vontade e da vontade particular - na qual o direito abstrato
tanto quanto o bem próprio [Wohl] e a subjetividade do saber e a contingência do ser-aí [Dasein] exterior são
suprassumidos como autônomos por si [für sich selbständige], mas ao mesmo tempo aí são contidos e
conservados segundo sua essência - isso é a liberdade realizada, o fim último [Endzweck] absoluto do
mundo". FdD, § 129. 3 . FdD, § 129.
4 . FdD, § 130.
5 . FdD, § 131.
46
a oposição entre o "direito privado" e o "bem próprio" da vontade, constituindo-se a
substância e o direito absoluto das determinações morais. Para chegar a isso, o Bem deve
particularizar-se, e de seu lado, a vontade moral deve agir, conforme ao que é substancial.
"A substancialidade do Bem tem a ambição de transformar profundamente o real: o Bem
não busca permanecer somente perto da imediatidade do ser. A tarefa do Bem consiste,
portanto, em engendrar o real a fim de se colocar como idêntica a efetividade. Nisso reside
sua força: em se mediatizando na subjetividade da vontade, sob a forma de um dever-ser
moral, ele cria uma nova subjetividade, graças à produção de determinações que tornam
possível uma nova objetividade. Nenhuma realidade pode, com efeito, subtrair-se a seu
poder de negatividade e de universalidade" 1.
O Bem é o ato pelo qual a vontade moral se pensa na sua verdade. Hegel
designa o Bem sob os termos da "Idéia", da "substância", do "pensar", pois ele quer tomar a
verdade de uma atividade moral de transformação do mundo. "O Bem é a essência da
vontade na sua substancialidade e na sua universalidade - a vontade na sua verdade. Ele só
existe plenamente no pensamento e pelo pensamento" 2. A determinação pelo universal leva
o sujeito ao direito de saber o Bem universal, de pensar e querer em toda liberdade, de
assumir a responsabilidade total a respeito de toda a existência humana. Por esta
responsabilidade total o homem se torna autônomo, livra-se de toda tutela. O direito da
vontade subjetiva, trata de reconhecer que o sujeito tem o direito de considerar como bom
ou mal tudo o que corresponde à suas opiniões morais. "O direito da vontade subjetiva
consiste nisto - tudo aquilo que ela deve reconhecer como tendo valor, seja julgado por ela
como bom. Uma ação ou a realização de seu fim na objetividade exterior não pode lhe ser
imputado como justo ou injusto, bom ou mal, legal ou ilegal, a não ser na medida em que
ela mesma tem o conhecimento do valor que esta ação tem efetivamente nesta objetividade
exterior" 3. O homem tem atingido um ponto de vista moral - este é o mérito de Kant, que
Hegel reconhece plenamente, quando ele se torna o senhor absoluto de seu destino.
1 . D. Rosenfield. op. cit. p. 139.
2 . FdD, § 132 Obs.
3 . FdD, § 132.
47
Eis que a força do Bem, para se realizar, passa pela "fraqueza" do sujeito: é
preciso que o Bem se incarne no sujeito e se deixe dizer através de suas opiniões, suas
convicções ou seus erros. O homem não tem o direito de reconhecer senão isso que ele
considera como racional. É o direito mais eminente do sujeito, mas é, ao mesmo tempo um
direito ainda formal, porque ele permanece subjetivo. Em razão de sua determinação
formal, a apreciação do sujeito é suscetível de ser verdadeira ou mesmo de se constituir
uma simples opinião, ou de sustentar um erro. O indivíduo se encontra aqui ainda na esfera
da moralidade, no nível de sua cultura subjetiva. "Isso que eu posso exigir de mim, e
considerar como um direito subjetivo em mim, é apreciar uma obrigação em função de
motivos que me parecerão bons, ter a convicção intima, e mesmo de conhecê-la segundo
seu conceito e sua natureza. Mas o que eu posso exigir para satisfazer minha convicção de
que uma ação é boa, permitida ou defendida, e que, por conseguinte, ela me é imputável a
respeito, não leva nenhum prejuízo ao direito da objetividade 1.
Hegel acrescenta logo em seguida que o direito de ter uma opinião sobre o Bem
é diferente do direito de apreciar a ação, enquanto tal. A ação é uma mudança que deve
existir no mundo real, e ser reconhecida no mesmo; ela deverá ser conforme aos valores
que são admitidos neste mundo. Aquele que quer agir nesta realidade, deve submeter-se a
suas leis e reconhecer o direito de objetividade. No interior do Estado, logo que se trata de
estabelecer juridicamente a responsabilidade, é preciso não se ater ao que cada um
considera ou não, de acordo com a sua opinião, a sua apreciação de justo e de injusto, do
bem e do mal, as exigências que lhe impõe a satisfação de sua convicção. No domínio
objetivo, o direito de apreciação vale como legal ou ilegal em função do direito que está em
vigor. "O estado suprime o aspecto formal e a contingência ligada ao sujeito, que comporta
o direito de apreciação, pois as leis são públicas e tomam a forma geral dos costumes,
enquanto que no nível que nos ocupa aqui, esse direito conserva ainda seu aspecto formal e
sua contingência" 2.
1 . FdD, § 132 Obs.
2 . FdD, § 132 Obs.
48
Hegel funda o direito da vontade subjetiva e defende o direito de opinar sobre o
Bem. Entretanto, a questão de fundo consiste a saber como se organizam as relações entre a
finalidade da vontade subjetiva e a finalidade exterior ou ética. A vontade reconhece a
objetividade do Bem e ela reconhece o direito desta objetividade. A relação essencial do
sujeito com ele mesmo passa através da Idéia do Bem. Enfim, a conformidade interior ao
Bem deve coincidir com as leis exteriores. Trata-se, portanto, de mostrar o aspecto
determinante da aprovação da vontade subjetiva às leis, sua conformidade interior e sua
opinião ou sua apreciação sobre o Bem. É questão de fundar universalmente, segundo a
moralidade, a dimensão subjetiva do conceito de reconhecimento e assim o homem pode
resistir ao risco de tornar-se a isca fácil de um poder despótico. O acordo somente exterior à
lei, não interiorizado, pode vir a ser uma força exterior. Ao contrário, o acordo somente
subjetivo a isso que a vontade considera como o Bem, separado da objetividade, pode
transformar-se em formalismo contingente, onde o sujeito pode estar de acordo ou não com
a lei: é o livre arbítrio da vontade individual.
A ligação entre o Bem e a ação mostra o reconhecimento do direito de
objetividade, evitando assim de trocar a "vida ética" pela subjetividade moral. É a isso que
Hegel se opõe e não funda o direito da vontade sobre o puro sentimento, a emoção ou a
representação. Ele quer engendrar o Bem através dos resultados atingidos pela ação moral,
ao mesmo tempo ao nível da vontade subjetiva e ao da vontade objetiva. Dito de outro
modo, os direitos da vontade subjetiva e aqueles da objetividade se põem e se reconhecem
mutuamente. É preciso valorizar o poder de verificação que o homem individualmente
carrega em si, a fim de colocar a objetividade verdadeira através de sua vontade subjetiva e
seu direito de opinar sobre o Bem. Enfim, é conhecer a objetividade e ao mesmo tempo
reconhecê-la subjetivamente e por lá, colocá-la verdadeiramente como objetividade 1.
Através da categoria do Bem, Hegel pensa a vontade moral no seu movimento
verdadeiro ou universal, enquanto pensamento. A determinação do Bem, passa, entretanto,
pela vontade do sujeito e pela sua responsabilidade, pois o homem torna-se autônomo e,
1 . D. Rosenfield. op. cit. p. 140-141.
49
plenamente, senhor de sua ação, ou de outro modo, é o direito de o sujeito autodeterminar-
se. Ora, esse direito dá ao sujeito a responsabilidade de reconhecer o que é bom ou mau, ou
de conhecer tudo o que é legal ou ilegal, passando pelo conhecimento de sua opinião
subjetiva, de suas convicções ou mesmo de seus erros. Se, de um lado, Hegel é o defensor
do direito da vontade subjetiva de satisfazer sua convicção e sua opinião subjetiva sobre o
Bem, de outro, ele exige que esse direito, ainda formal e contingente, se mediatize com o
direito objetivo da vontade substancial da vida ética. A importância acordada ao direito da
vontade subjetiva, fazendo determinar o Bem, através da opinião do sujeito, apela também
para o reconhecimento recíproco da objetividade, a fim de evitar o deslize do formalismo
subjetivista, ou da dissolução do sujeito no interior do poder estatal. Com efeito, é esta a
contradição que a consciência moral deve sempre fazer face.
2.3 - A contradição da consciência moral e a opinião subjetiva
A consciência moral carrega nela a contradição deste que conhece o Bem em
sua universalidade e o determina segundo sua vontade subjetiva, enquanto certeza de sua
opinião própria. É esta tensão dialética que constitui a consciência moral: "A relação, umas
nas outras, das determinações que se contradizem, é somente a abstrata certeza de si
mesmo, e, para esta infinitude da subjetividade, a vontade universal, o Bem, o direito e o
dever, tanto são como não são, é ela que se sabe e a qual escolhe e decide. Esta pura
certeza de si mesmo se instalando no seu cume aparece nas duas formas, passando
imediatamente uma na outra, da consciência moral e do Mal" 1.
A consciência moral 2 exprime a consciência subjetiva de saber o que é justo e
o dever e o direito de não reconhecer, senão o que ela conhece como o Bem. Enquanto ela é
1 . Enc. III, § 511.
2 . B. Bourgeois tem definido o sentido dialético da categoria "consciência moral" - Gewissen -: "O termo
alemão "Gewissen", que designa a consciência enquanto moral, indica - o que não pode fazer a tradução
francesa de "consciência (moral)" - nela mesma a dupla referência - constitutiva da tensão e dialética da
consciência (moral) - a universalidade visada pelo saber ["Wissen"] do Bem e a reflexão subjetiva em si
mesma que é a certeza ["Gewissheit"] desse Bem". Enc, III, § 428, nota nº 1, p. 156. Labarrière-Jarczyk
50
esta unidade do saber subjetivo, diz Hegel, a consciência moral é uma coisa sagrada e
golpear aí seria um sacrilégio. Mas, para saber se o que a consciência moral tem por bem,
ou quer fazer é efetivamente bom, é preciso referir-se ao conteúdo deste dever-ser-bom,
que pode somente decidir. É isso que são o direito e o dever, ou o que é racional em si e por
si, nas determinações da vontade. Isso não é nem a propriedade particular de um indivíduo,
nem o que se apresenta sob a forma do sentimento, de um saber particular ou sensível, mas
o que se apresenta sob a forma de determinações universais, portanto refletidas, ou sob a
forma de leis e princípios. A consciência moral deve ser submetida a esse julgamento: É ela
verdadeira ou não? A referência ao seu eu próprio é imediatamente oposta à regra que é
válida, universalmente, em si e por si. É por isso que o Estado não pode reconhecer a
consciência moral sob a sua forma de saber subjetivo, do mesmo modo que a ciência não dá
valor a uma opinião subjetiva. É a consciência moral, enquanto opinião subjetiva, que pode
separar-se do conteúdo verdadeiro e reduzir esse conteúdo a uma simples forma ou a uma
aparência. Na esfera da simples moralidade, que é distinta da vida ética, isso é questão
somente da consciência moral formal. Foi mencionada, aqui, a consciência verdadeira ou
ética a fim de sublinhar sua diferença com a consciência moral formal, pois a consciência
verdadeira é o conteúdo da disposição ética 1. A consciência moral determinando-se
segundo sua opinião subjetiva adquire somente lá a disposição interior ou sua opinião
subjetiva de que o que ela faz e o que deseja é bom. A consciência moral se define por esta
exigência de verdade formal, sem que nós saibamos por enquanto, se isso é bom ou justo.
Donde a contradição ao interior da consciência moral: a tensão constitutiva resultando do
saber do Bem, enquanto universal, ligado à vontade subjetiva. Esta contradição é já o
traduzem a "Gewissen" por "certeza-moral" a fim de tomar a nuance da "certeza" que nasce da relação entre
"Gewissen" e "Gewissheit": "Esta terceira sub-seção [C. O espírito certo de si mesmo. A moralidade] é
colocada sob a razão da Gewissheit, da "certeza". É por isso que a consciência moral se completará com a
figura do Gewissen - para o qual desde logo se justifica a tradução de "certeza-moral". Cf. FdE, nota 4, p.
525. No Saber absoluto, a consciência moral será o lugar da tensão entre interior e exterior, sujeito e objeto,
consciência e autoconsciência, essência e fenômeno, lógica e história e neste sentido, aqui, na "Moralidade"
da Filosofia do Direito, nós assistimos à mesma tensão dialética do sujeito e da vida ética, privado e público,
para isso se justifica nossa opção de tradução em favor da "consciência moral". 1 . Cf. FdD, § 137 Obs.
51
anúncio da opinião pública, pois esta aqui é a contradição da universalidade e da
particularidade, da tendência verdadeira e do erro, como nós o veremos na próxima parte.
A subjetividade tem nela mesma um poder originário de autodeterminação que
é próprio da "reflexão que se põe" 1 em busca dos princípios que tornam possível uma nova
organização do mundo. "Enquanto autodeterminação abstrata e pura certeza de si mesma,
esta subjetividade faz volatilizar toda determinação do direito, do dever e da existência
empírica em si, e isso, porque ela é o poder de decidir por ela mesma, por um conteúdo
determinado, o que é bom e porque ela é ao mesmo tempo o poder ao qual o Bem, que é,
inicialmente, somente um Bem representado, um Bem devendo-ser, deve sua realidade
efetiva" 2. Quando a realidade perde seu sentido ou se não responde às exigências de uma
época, então intervém esse poder da subjetividade, que determina uma nova efetivação do
conceito. Tal, diz Hegel, tem sido o caso de Sócrates e dos Estóicos. A subjetividade ou a
moral, enquanto negatividade da razão é uma defesa contra os abusos do poder ético ou
estatal. Ela tem sempre o poder de volatilizar ou de dissolver todo conteúdo dado e de
verificá-lo. A moral não reconhece, senão o que provém dela mesma, isto é, o que tem
passado pelo crivo de sua autodeterminação. Assim, a consciência moral exige a busca
subjetiva do conceito do Bem e isso é determinado pela dialética da razão. A consciência
moral em sua busca do Bem dá sua opinião subjetiva e aprecia como verdadeiro o que ela
tem colocado como verdade. A moralidade é o momento que consiste um verificar
subjetivamente, ou segundo a opinião subjetiva, o dado em sua verdade 3.
Na consciência moral coexistem o Bem e o Mal. Nela eles têm sua raiz, pois as
duas determinações morais repousam sobre uma certeza subjetiva e formal. "Tornando vãs
todas as determinações em vigor e refugiando-se na pura interioridade da vontade, a
consciência de si constitui a possibilidade de tomar por princípio tanto o universal em si e
por si, quanto o arbitrário ou sua própria particularidade, elevada acima do universal e de
1 . "O paradoxo da essência como reflexão, é que ela não é nada mais que o puro ato de pôr, isto é de se pôr
ela mesma para o que ela é, isto é, ainda por a suprassunção do ser que ela é. Ela é assim reduplicação da
negação, ou mudança do negativo consigo". CdL, II, nota nº 35, p. 19. 2 . FdD, § 138.
3 . D. Rosenfield. op. cit., p. 146-147.
52
realizá-los pela sua atividade. No segundo caso, ela constitui a possibilidade de ser má" 1.
Aqui, o movimento de autodeterminação da consciência se converteu no contrário do que a
vontade moral queria ser: o Bem como realização verdadeira do processo moral,
consistindo tornar universal a particularidade. O Mal nasce como uma possibilidade da
ação humana. Ele é a recusa de se elevar ao universal ou é o fato para a vontade moral de
permanecer fechada no poder somente subjetivo. Ora, a reflexividade do sujeito não é um
estado fixo, mas um movimento que se determina na exterioridade. Se o sujeito não sai de
si, se ele não se orienta em direção à objetivação moral, permanece submisso ao ser
imediato de suas pulsões, inclinações e necessidades. Ao contrário, se o sujeito, dando
satisfação a suas pulsões e inclinações, se recusa a fecha-se no estado não ainda
mediatizado, então ele se dirige para a realização verdadeira do Bem. Aqui, se coloca a
contradição da opinião moral: esta contém as duas tendências acima nomeadas e, enquanto
opinião subjetiva, vive esta contradição do Bem e do Mal. A ação moral - boa ou má -
situa-se precisamente nesta contradição. Esta pode ser mediatizada ou suprassumida, e o
sujeito entra numa nova realidade; aquela pode concretizar-se no "cidadão" consciente de
seu poder de atualizar a moral na política e vice-versa. O Bem é, então, o resultado da
suprassunção da vontade subjetiva que atualiza a idéia moral na idéia ética 1.
Hegel, antes de fazer a passagem em direção ao momento da "vida ética",
analisa o movimento da consciência moral numa sucessão de formas, por exemplo, a
hipocrisia, o probabilismo, a convicção, a ironia. São as diferentes determinações do Mal,
dos estados de alma que se recusam a se submeter à efetivação do conceito de Bem. A
moralidade não é pura, ela é submetida à contradição da opinião subjetiva ou a
indeterminação dos estados da alma. A consciência moral, certa de si mesma, não é uma
condição suficiente para a realização de uma ação moralmente boa. Com efeito, quando
fazemos valer o particular em detrimento do universal, isso leva às diferentes formas de
mal. A vontade hipócrita é a aparência do Bem que engana o outro ou faz passar o Mal pelo
Bem. O caso da convicção se caracteriza por uma crença subjetiva no que é bom, sem que
1 . FdD, § 139.
53
se preocupe de guardar uma relação objetiva com o mundo. A objetividade própria, no
momento do conhecer, tem desaparecido, e a relação objetiva da vontade no mundo
desemboca sobre uma prática cega. A "convicção" toma o lugar do direito e do dever e a
vontade dissolve todo conteúdo ético. Cada indivíduo se torna portador de sua opinião ou
crença que exclui o outro da mesma convicção, pois os traços objetivos do processo de
conhecimento foram apagados. "A opinião subjetiva é claramente expressa como a regra do
direito e do dever, logo que se diz que é a convicção do direito que deve determinar a
natureza ética de uma ação. O Bem que se quer, não tem então nenhum conteúdo; o
princípio da convicção contém somente isso: a subsunção de uma ação sob a determinação
categorial do bem pertence ao sujeito. Através disso está a aparência mesma de uma
objetividade ética que tem completamente desaparecido. Uma tal doutrina se liga a esta
'filosofia' […] que nega a possibilidade de conhecer o verdadeiro - ora o verdadeiro do
espírito, o qual quer, sua racionalidade, na medida em que se torna efetivamente real, estes
são os imperativos éticos" 1. O que importa é meu ponto de vista, minha opinião subjetiva
do bem, logo que eu ajo, e é minha convicção de que se trata do bem, que faz de minha
ação o bem. A opinião subjetiva em moral é incapaz de resolver a contradição entre a
intenção subjetiva e sua realização no mundo através das ações. Ela abandona a
objetividade e o sujeito se torna o poder absoluto, ou ainda, o particular toma o lugar do
universal. Deste modo, indiferentemente, o Mal - a particularidade - se muda em Bem - a
universalidade da lei ou da obrigação moral - e cada ação pode ter sua justificação a partir
da opinião subjetiva.
A consciência moral contém ao mesmo tempo o saber da universalidade do
Bem e a determinação da vontade subjetiva, enquanto certeza de sua opinião subjetiva. Esta
contradição engloba ao mesmo tempo o Bem e o Mal na mesma consciência moral. Se a
vontade subjetiva tem o poder de tudo verificar, a partir da opinião subjetiva, e de colocar
novos princípios, a fim de efetivar o conceito, existe também o risco de cair no
subjetivismo que recusa se universalizar e, neste caso, se constitui a figura do mal. A
1 . D. Rosenfield. op. cit., p. 148-149.
54
consciência moral pode inclinar-se em direção a diversas formas de mal, até chegar a
"convicção" - "Überzeugung" - que se quer como a regra absoluta do direito e do dever.
Entra-se num movimento de ir ao abismo da consciência moral, onde se constituem ao
mesmo tempo a dissolução da contradição e a passagem em direção a "vida ética".
A liberdade formal de opinar se funda sobre a vontade do livre arbítrio, pois
este aqui contém a contradição da pessoa como uma forma infinita e unida, ao mesmo
tempo, a um conteúdo finito. A liberdade formal que toma figura através da apropriação, é
a realização da pessoa. A liberdade de opinar é formal, inicialmente, porque a pessoa do
"direito abstrato" é separada de seu conteúdo. A pessoa tem sua existência no exterior e, ao
mesmo tempo, ela sabe que é idêntica a si como pensamento formal ou separado de toda
realidade. Esta sendo contraditória na pessoa já é o início da afirmação da liberdade mesma,
enquanto tal. A vontade que se quer livre e capaz de romper com o escravismo, quer seja
ele de ordem imediata ou natural, adquire o direito de ser uma pessoa e, portanto, ao
mesmo tempo, o direito de falar, de manifestar sua opinião sobre si ou sobre o mundo. O
começo do direito de opinar coincide com o direito de ser uma pessoa, pois o indivíduo
decide desenvolver o conceito de vontade livre. É aqui que se justifica a impaciência da
opinião, pois ela deseja que seus direitos imediatos de pessoa sejam realizados. Ora,
enquanto estes são imediatos, permanecem particulares e, pois, reivindicados como
interesses particulares e confirmados por uma opinião privada.
A liberdade subjetiva de opinar encontra seu fundamento na liberdade da
vontade subjetiva ou na vontade moral. Esta vontade garante a cada um o direito de se
autodeterminar e de discernir o que é o Bem ou o Mal. Inicialmente, a vontade moral busca
seu bem privado e isso é garantido pela opinião subjetiva. Além disso, esta opinião
interessada pelo bem próprio constitui um direito do sujeito. Esse direito põe a exigência de
saber o Bem, partindo da opinião subjetiva, que considera uma coisa como válida, somente
após ter sido avaliada por seus julgamentos e seus pontos de vista subjetivos. O Bem se
deixa dizer através da vontade subjetiva e, por isso, a consciência moral contém em si
1 . M.-J. Königson. op. cit., p. 103; FdD, § 140 Obs. p., 183.
55
mesma a contradição do Bem e do Mal como uma possibilidade sempre presente da ação
moral. Esta contradição da consciência moral é também a contradição da opinião pública.
Ela encontra sua mediação na vontade ética, portanto seu lugar específico e sua importância
no interior da organização da vida do Estado, como o sustenta a filosofia política hegeliana.
É lá que ela encontrará a resolução de sua contradição.
56
3 - A LIBERDADE PÚBLICA DE OPINAR
A liberdade de opinar se funda sobre a liberdade formal e subjetiva do
indivíduo que se mediatiza na liberdade de julgar e de dar sua opinião sobre os negócios
públicos - cf. FdD, § 316 - e por lá se manifesta o fenômeno da opinião que se torna
finalmente pública.
O parágrafo 142 da terceira parte da Filosofia do Direito desenvolve a
atualização da unidade da pessoa - a objetividade do direito ou a liberdade formal de opinar
- e do sujeito - a subjetividade moral ou a liberdade subjetiva de opinar - na autoconsciência
ética - a liberdade que se tornou mundo presente, ou a liberdade pública de opinar: " A vida
ética é a Idéia da liberdade, enquanto o Bem vivente, que tem seu saber e seu querer na
autoconsciência, e torna-se efetivamente real pela atividade desta autoconsciência. O
mesmo tem esta atividade no ser ético, seu fundamento em si e por si, a saber, seu fim
motor. A vida ética é, portanto, o conceito da liberdade que se tornou mundo presente e
natureza da autoconsciência". A autoconsciência une o "saber" e o "querer" nela mesma
através de sua ação que tende a realizar o Bem. A vontade consciente desenvolve agora
uma ação ética objetiva. Se a realidade ética é uma substância concreta objetiva, trata-se de
uma mediação que se realiza pela forma infinita da subjetividade ou da determinação
subjetiva.
A realidade ética objetiva concretiza o Bem abstrato da moralidade através da
subjetividade como forma infinita ou pensamento. Ora, isso é a substância concreta. A
realidade ética tem um conteúdo estável, necessário por si: isso são as leis e as instituições
existindo em si e por si. Ela é qualquer coisa de firme e de eminentemente acima das
opiniões e das preferências subjetivas 1. A vida ética engloba, ao mesmo tempo, o momento
objetivo e o momento subjetivo; isto é, o Bem é aqui a substância, enquanto realização do
objetivo com a ajuda da subjetividade. Se consideramos a vida ética somente do ponto de
vista objetivo, o homem não é autoconsciente desta vida ética. É por isso que Hegel afirma
1 . Cf. FdD, § 144.
57
que a substância concreta é o conjunto objetivo e subjetivo da realidade ética. Mas, ele
observa que o subjetivo não se constitui simplesmente das opiniões subjetivas; é o subjetivo
na sua forma infinita ou segundo a forma da razão. Com efeito, a realidade ética objetiva é
dita através do sujeito autoconsciente, pois a substância se sabe e se torna objeto do saber.
É aqui que intervém a opinião do sujeito durante o tempo em que ele estiver ligado a vida
ética. Um sujeito público é, portanto, portador de uma opinião pública. A opinião outrora
formal e subjetiva é, agora, pública. A opinião pública é um momento do saber do sujeito
que deve chegar a conhecer o verdadeiro ético. É possível, então, compreender a exigência
hegeliana, segundo a qual o conteúdo da realidade ética está acima das opiniões e das
preferências subjetivas.
Entretanto, é preciso dizer que toda realidade substancial já não está
completamente livre. A substância ética em movimento de sua atualização, pode encontra-
se exposta aos perigos de reificação que podem ameaçar toda realidade existente. A
substância ética pode fixa-se sob o peso de uma positividade histórica. Numa tal situação,
as relações entre o indivíduo e a comunidade podem devenir uma oposição entre o livre
arbítrio da opinião subjetiva e as leis da comunidade. Ou ainda, pode ser a oposição entre a
opinião pública e a substância ética ou as instituições. É aqui que intervém a impaciência da
opinião pública, querendo que as instituições sejam verdadeiramente livres. Esta oposição
coloca em questão a efetivação da substância, enquanto substância livre, pois esta aqui
pressupõe o caráter efetivo da autoconsciência e o caráter consciente de toda realidade
posta. Quando isso não existe, é preciso que se realize a dissolução desta reificação. Esta
pode demonstrar que a ação da opinião pública que luta contra hábitos éticos, ainda não
conscientes deles mesmos, é uma denúncia da situação de não liberdade das instituições
éticas. A opinião pública faz o papel de movimentar a situação fixada ou reificada da
substância ética dada. A opinião, enquanto contradição, é o começo de um processo de
desestruturação que provoca o movimento que leva a Idéia da liberdade a se fazer
efetivamente consciente e presente na realidade do mundo.
O indivíduo, enquanto membro de uma comunidade participa num processo de
mediação, onde ele é, ao mesmo tempo, mediatizado e agente de mediação. Não é possível
58
separar o indivíduo da comunidade, pois esta, sem o indivíduo, cai na violência exterior,
sendo o mesmo tomado abstratamente como princípio da constituição do todo, e isso é o
atomismo. Enquanto membro de uma comunidade, o indivíduo suprassume as
determinações próprias do livre arbítrio - a individualidade abstrata - e ele começa a
reconhecer no outro e nas instituições o engendramento de uma relação igualitária e livre.
Entre o indivíduo e a comunidade, existe ao mesmo tempo um processo de reconhecimento
e de suprassunção, pois "a suprassunção - Aufhebung - e o reconhecimento - Anerkennung -
são duas formas de um mesmo movimento, do qual a primeira é a expressão lógica e a
segunda, a expressão propriamente ética. De seu engendramento mútuo nasce a liberdade
do conceito" 1. As relações entre os indivíduos e os costumes em vigor consistem numa
relação de reconhecimento que eleva o indivíduo a uma consciência ativa e capaz de
exprimir sua opinião, enquanto membro de uma comunidade. Assim o indivíduo pode dizer
sua opinião publicamente e ser reconhecido num público constituído eticamente.
A virtude é a vida ética refletida no indivíduo e ainda a aptidão que o indivíduo
manifesta, para colocar em prática seus deveres, segundo as circunstâncias em que se deve
engajar. Nós podemos dizer ainda que a virtude é a adesão aos deveres éticos de um modo
lógico, isto é, refletidos. Se faz falta a reflexão, a vida ética não é plenamente livre. Assim,
nós compreendemos que nada é dado sob uma forma para sempre fixada, pois todo dado se
torna uma forma de relação produzida pela atividade da vontade a fim que ela se torne
verdadeiramente livre. O dado ético é uma produção da vontade humana, no sentido que os
costumes e hábitos são postos como uma segunda natureza do homem. "Mas na simples
identidade com a efetividade dos indivíduos, a ética aparece como sua maneira de agir
geral, como costume. O hábito do [ que é ] ético [se torna] uma segunda natureza que é
colocada no lugar da vontade primitiva, simplesmente natural e seu ser-aí, o espírito
presente e vivente como um mundo cuja substância é então pela primeira vez, espírito" 1. A
atividade da vontade que penetra nos costumes e os determina segundo a liberdade do
conceito é a produção propriamente dita da segunda natureza do homem. Esta é a história
1 . D. Rosenfield. op. cit., p. 164-165.
59
ética do indivíduo, chegando conscientemente a ser membro de uma comunidade. A ética é
a natureza do homem enquanto produzida pelo mesmo; dito de outro modo, ela é o
resultado da ação consciente do homem 2. Os costumes são com efeito as opiniões comuns
no interior de uma comunidade. Segundo Locke a "law of opinion" exerce a função de
regular o comportamento dos indivíduos no interior de uma comunidade. Do mesmo modo,
em Hegel, os costumes são a opinião presente numa comunidade e servem de parâmetro de
ação ética. A opinião é expressa publicamente e, determinando a forma dos costumes, é a
primeira manifestação do comportamento ético do indivíduo.
Logo que se trata da "segunda natureza" do homem é preciso distinguir o hábito
que concretiza os costumes e o hábito que pode tornar-se um obstáculo ao desenvolvimento
da razão. Se os costumes são expressões da ação humana, do trabalho da vontade, isso não
é o mesmo para os hábitos que se podem fixar e, neste caso, impedir a livre ação da
vontade. A substância não engendra mais sua interioridade e a positividade ética se torna o
produto da passividade, do inconsciente que segue, cegamente, os hábitos éticos, sem os
assumir de maneira consciente, isso leva a romper o círculo reflexivo da consciência. Desde
que se fica ligado passivamente ao hábito dos costumes, marcha-se em direção à morte de
uma comunidade ou de uma época. A opinião pública, quando ligada aos costumes, joga
sempre o papel que consiste um querer sacudir a passividade de uma comunidade.
Nenhuma forma histórica de sociedade é eterna, mas sua duração depende da atividade
própria a cada vontade ética, à liberdade pública de opinar. Quando uma época é consciente
do processo de totalização que ela tem atingido no desenvolvimento do conceito, é a seus
membros que cabe a responsabilidade de assumir seu presente, a fim de preparar seu futuro.
O desafio está lançado à opinião de se inquietar e de acordar a consciência ética da
comunidade.
1 . FdD, § 151. Citado segundo a tradução de D. Rosenfield. op. cit., p. 166.
2 . "Para Hegel, como para Aristóteles, os costumes ou os hábitos, - ηθоς , Sitte - tornam-se uma maneira de
ser habitual - έξις - ou uma segunda natureza. Mas Hegel se separa de Aristóteles e dos gregos em geral pela
importância que ele acorda a consciência. É o que tem bem mostrado T. M. Knox no seu comentário: "Para os
gregos, diz ele, um homem se elevava a vida ética observando o costume. Para Hegel, ao contrário, a forma
mais elevada da vida ética é aquela onde os indivíduos se conformam, mas com uma plena consciência, às
instituições e aos costumes racionais". FdD, § 151, R. Derathé, nota nº 5.
60
O fato de dizer a subjetividade da substância esta é uma atividade da
consciência dos indivíduos. "A subjetividade é, ela mesma, a forma absoluta, a realidade
existente da substância. A diferença entre o sujeito e a substância como seu objeto, seu fim,
sua potência, é apenas uma diferença na forma, diferença que desaparece também
imediatamente" 1. A separação própria das diferenças políticas do entendimento entre o
indivíduo e o mundo ético tem ocorrido, mas ela toma a forma de uma oposição interna ao
conceito, em que as tensões entre os costumes e os hábitos, a subjetividade e a objetividade,
o indivíduo e a comunidade, estão sempre presentes. A substância ética se engendra graças
à apreensão de si, num processo ao mesmo tempo de produção e de resolução de suas
contradições mesmas. A oposição interna ao conceito, entre os costumes e os hábitos, é
também a oposição da opinião que no interior da comunidade ética provoca sempre o
despertar da contradição pública. Manifestar-se e opor-se publicamente à opinião já
estabelecida pelos costumes em vigor, numa situação histórica determinada, é um direito
dos indivíduos. "O direito dos indivíduos de agir, segundo sua destinação subjetiva à
liberdade, encontra sua realização efetiva e sua satisfação no fato de que eles pertencem à
realidade ética; com efeito, a certeza - do sentimento - de sua liberdade - subjetiva - tem sua
verdade numa tal objetividade e eles possuem, efetivamente, na realidade ética, sua
essência própria, sua universalidade íntima" 2. O indivíduo tem o direito de agir
subjetivamente e também de julgar e de dar sua opinião, segundo sua liberdade subjetiva, à
condição que exercendo esse direito ele tenha conta das instituições objetivas, e sabendo
que ele encontra sua satisfação e sua realização verdadeira no interior das instituições
públicas ou éticas.
Os direitos do indivíduo são afirmados no interior de uma comunidade ética
onde a liberdade pública de opinar e de apreender são garantidas num sentido político-
pedagógico: "Faze-o cidadão de um Estado no qual as leis são boas" 3. Esta é a resposta do
Pitagórico a um pai que lhe perguntava qual era a melhor maneira de educar seu filho. Esta
1 . FdD, § 152.
2 . FdD, § 153.
3 . FdD, § 153 Obs.
61
responda mostra que o indivíduo é mediatizado pelo Estado, num processo pedagógico, em
que ele se torna um cidadão, isto é, o indivíduo desenvolve o hábito ou a virtude do
patriotismo. Ora, Hegel "não fala de cidadãos 1, sem outra precisão, no sentido
supracategorial adquirido por este termo segundo o direito natural moderno, senão em
referência ao patriotismo" 1. Que entende ele por patriotismo? O patriotismo é o estado de
espírito político, resultando das instituições, elas mesmas em vigor no Estado. A instituição
e o patriotismo se chamam e se condicionam, logo um e o outro. O patriotismo é a
disposição do espírito, que na vida quotidiana se torna um hábito de considerar a vida em
comum como fim e como fundamento substancial. O patriotismo é a virtude ética, maneira
de ser própria do cidadão, uma disposição permanente de participação na vida do Estado.
Fazendo do indivíduo o cidadão de um Estado, Hegel não afirma a dissolução do indivíduo
numa totalidade ética, mas afirma que é efetivamente membro de uma universalidade que
reconhece como sua e na qual ele reconhece as leis como boas. É isso o desenvolvimento
da cidadania que leva a tornar-se membro do Estado através da virtude do patriotismo. A
disposição permanente de pertencer a um Estado - o patriotismo - não concerne qualquer
Estado, mas um Estado que é submetido ao processo de autodeterminação do Bem, que
pode ser verificado em sua verdade por todo cidadão. Hegel defende o direito dos
indivíduos à sua particularidade, podendo-se dizer o direito de os indivíduos expressarem
sua opinião. "O direito dos indivíduos à sua particularidade, é igualmente contido na
substancialidade ética, pois a particularidade é o modo exterior fenomenal na qual a ética
1 . A palavra alemã Bürger significa ao mesmo tempo cidadão e burguês. J.-F. Kervégan demonstra que o
emprego da categoria Bürger corresponde a atitudes complementares que são uma e outra, modos de ser
éticos. As duas determinações - o burguês e o cidadão - são o mesmo indivíduo reconciliado como burguês e
cidadão. "A Filosofia do Espírito de 1805-1806 afirma: 'O mesmo [indivíduo singular] toma cuidado de si e
de sua família, trabalha, faz contratos, etc., e ao mesmo tempo ele trabalha para o universal, tem este aqui por
fim: segundo o primeiro aspecto ele se chama BURGUÊS; conforme o segundo, CIDADÃO'. O mesmo
indivíduo: precisão capital em relação aos textos anteriores. Assim, o princípio verdadeiro da ética não reside
na oposição do homem natural e do cidadão político, como pensava Rousseau, sobre esse ponto ainda
tributário das representações jusnaturalistas, nem mesmo aquela de um burguês isolado na busca egoísta da
felicidade privada e de um cidadão dedicado a afirmação heróica do bem comum, como o artigo sobre o
direito natural parecia indicar. O universal, fim da ética e de sua efetivação política, se constitui no interior
das mediações, nelas mesmas abstratas e sempre suscetíveis de colocar em perigo o fim que os ultrapassa, da
sociedade civil, da vida 'burguesa' ". J.-F. Kervégan. Hegel, Carl Schimitt. Le politique entre speculation et
positivité. Paris, PUF, 1992, 184-185.
62
existe" 2. O indivíduo tem o direito de se exprimir e de dizer sua opinião publicamente,
enquanto cidadão, sobre a legalidade das leis de um Estado. É isso que constitui um meio
de impedir que a vida ética se torne fixa, e que funda eventualmente o direito à revolta. O
direito dos indivíduos a afirmar sua particularidade é o fundamento do direito do cidadão a
fazer uso público de sua razão ou a garantia da liberdade pública de opinar.
A identidade entre a vontade universal - o Estado - e a vontade singular - o
indivíduo - permanece na indivisibilidade ética entre os direitos e os deveres, pois a vida
ética se conserva através desta identidade fundamental. A reciprocidade entre os direitos e
os deveres permite o desenvolvimento da Idéia de liberdade. A ligação entre o universal e o
particular evita toda atomização e garante a unidade substancial. A vida ética é uma
totalidade individualizada, que se manifesta como a totalidade de um povo. Ela é enraizada
nos costumes, nas leis, nos hábitos, enfim, no espírito de um povo. Na sua individualidade,
enquanto espírito de um povo, a vida ética se efetiva através das figuras da família, da
sociedade civil-burguesa e da Estado 3. A efetivação das figuras é a individualidade viva de
um povo, dito de outro modo, o espírito de um povo, onde cada figura, cada forma
comunitária se determina segundo o que constitui a particularidade própria ao
desenvolvimento temporal do conceito 4.
3.1 - O espírito do povo ou como a opinião se torna pública
No Curso de Estética, Hegel analisa a função do coro na tragédia grega. O coro
antigo é o condensado de um conjunto de costumes não escritos que estavam ainda
imediatamente vivos na comunidade. Na tragédia moderna o coro é desligado deste fundo
que é o espírito do povo. O indivíduo toma suas decisões e age, partindo da pura
subjetividade de seu bem próprio e de seu caráter, segundo a ambição ou as inclinações
1 . Franz Rosenweig. Hegel et l'État. Paris, PUF, 1991, p. 331.
2 . FdD, § 154. Citado segundo D. Rosenfield. op. cit., p. 168.
3 . FdD, § 157.
4 . D. Rosenfield. op. cit. p. 166-170.
63
particulares de sua personalidade. Este lugar do coro na tragédia grega é fortemente
sublinhado por Hegel. Do mesmo modo que o teatro possui seu solo exterior, sua cena e
seu ambiente, assim o coro, o espírito do povo, é de uma certa maneira a cena espiritual,
comparável ao templo que construíam os arquitetos para circunscrever a imagem do deus,
aqui tornado o herói em ação. Nos tempos modernos, é o contrário: as estátuas se levantam
ao ar livre, sem um pano de fundo, do qual, também a tragédia moderna não tem
necessidade, pois as ações que representa repousam não sobre esse fundo substancial, mas
sobre o querer e o caráter subjetivos, não mais que sobre o azar, aparentemente exterior,
dos acontecimentos e das circunstâncias 1. O coro exprime a opinião pública, representando
os costumes da comunidade. O herói, o indivíduo, não está jamais separado do espírito de
seu povo e sua ação e sua opinião são organicamente ligadas às determinações éticas. O
espírito do povo é, neste sentido, o começo da determinação da opinião pública.
O povo é a unidade orgânica verdadeira e universal concreta. O indivíduo,
permanecendo nele mesmo, é uma abstração. Na primeira Filosofia do Espírito, Hegel
descreve a organização social, partindo das necessidades concretas dos homens até o
Estado e a religião do povo. A moralidade propõe somente um dever-ser, um ideal
inacessível. É num povo que a moralidade se realiza. "O espírito de um povo é portanto o
que reconcilia o dever-ser - sollen - e o ser. É uma realidade histórica que ultrapassa,
infinitamente, o indivíduo, mas que lhe permite de encontrar-se sob uma forma objetiva" 2.
Junto a Kant e Fichte a moralidade - Moralität - exprime o indivíduo agindo. Hegel
descobre além da moralidade, a realidade vivente dos costumes e das instituições -
Sittlichkeit. O indivíduo encontra o conteúdo de sua ação, de sua virtude substancial na vida
mesma do povo. Desde os primeiros trabalhos da juventude, à Tübingen, Hegel pensa sua
vida espiritual, como a vida de um povo, prova disso são os termos que ele utiliza: o
1 . Ernest Bloch. Sujet-Objet. Éclaircissements sur Hegel. Paris, Éd. Gallimard, 1977, p. 287-289.
2 . J. Hyppolite. Introduction à la philosophie de l'histoire de Hegel. Paris, Éd. du Seuil, 1983, p. 20.
64
espírito de um povo - Volksgeist -, a alma de um povo - Seele des Volks -, o talento de um
povo - Genius des Volks 1.
Hegel quer mostrar que o espírito concreto é o espírito de um povo. Entre o
individualismo e o cosmopolitismo, Hegel, escolhe o espírito do povo como a encarnação
do espírito numa realidade, ao mesmo tempo individual e universal. O espírito está presente
na história do mundo, sob a forma do espírito de um povo, pois a humanidade se realiza nos
diversos povos que exprimem, do seu modo, seu caráter universal.
A religião retém a atenção do jovem Hegel, pois ela é um dos momentos
essenciais do gênio e do espírito de um povo. Hegel não aceita a concepção da religião
natural do século XVIII , que é abstrata e anti-histórica, tanto como a concepção do puro
moralismo kantiano, que postula uma religião a partir do puro ideal moral. Face a isso, ele
quer elaborar melhor seu próprio pensamento, iniciando pela história, ao redor do conceito
de espírito do povo.
Sua estada no seminário de Tübingen se desenvolve na época dos grandes
movimentos de libertação histórica - Revolução Francesa - e filosófica - o Iluminismo na
França e na Alemanha a Aufklärung. Mas Hegel e seus companheiros, Schelling e
Hölderlin, são também sensíveis à beleza da antigüidade clássica. Eles amam a cidade
grega, porque o indivíduo aí vive em perfeita harmonia com o todo. Lá se realizou um ideal
concreto de humanidade, onde era possível de encontrar-se a integração feliz do indivíduo e
do todo. Hoje, diz Hegel, este ideal foi perdido, pois o cristianismo tornou-se, no século
XVIII, uma religião exterior e ela não penetra mais a profundeza das almas. Então, ele se
pergunta como uma religião pode ser verdadeiramente viva?
Ele começa por distinguir a religião subjetiva e a religião objetiva. A religião
subjetiva é aquela do coração, dos sentimentos. A outra é a religião que se estrutura no
sistema, num livro. Hegel estuda a religião, para encontrar o homem concreto. Ora o
homem concreto não é aquele que está isolado, o indivíduo abstrato sem relação com os
semelhantes e privado de um ambiente espiritual. É neste sentido que Hegel oporá a
1 . Cf. Le fragment de Tübingen, in R. Legros, Le jeune Hegel et la naissance de la pensée romantique,
65
religião privada à religião do povo. Para ele, o cristianismo é sobretudo uma religião
privada, ao contrário da religião antiga dos gregos que é uma religião da cidade. Aqui, o
cidadão vive a religião como a integração orgânica de si e do absoluto. O privado se
identifica ao público. Hegel se opôs à religião privada, pois ela reforça o individualismo
que triunfa na sua época, assim como ele se opõe ao moralismo abstrato de Kant. Este,
segue a via da moral ao invés da via da religião, como ele o desenvolve na Crítica da
Razão Prática ou na Religião nos limites da simples razão. Hegel quer, porém, estudar a
religião como realidade concreta da vida humana.
A Aufklärung dissolve todas as formas da vida religiosa. No seu racionalismo
abstrato, ele chega ao ateísmo e preconiza uma religião natural sem vida, nem conteúdo
concreto. Quando Hegel estuda o fenômeno da religião subjetiva e objetiva, da religião
privada e pública, ele quer propor uma religião diferente daquela da Aufklärung. A religião,
para ele, é uma das manifestações primordiais de um povo em particular. A formação do
espírito do povo está ligada a prática da religião: as cerimônias, os mitos e os ritos. Enfim, a
religião é um fenômeno que ultrapassa o indivíduo e que pertence a esta totalidade única e
singular, que é o espírito do povo. Que é o espírito do povo?
Nos seus primeiros trabalhos, o conceito de espírito do povo é mais uma
intuição que um conceito bem determinado, assim concebido: “O espírito absoluto de um
povo é o elemento absolutamente universal, o éter que tem absorvido nele todas as
consciências singulares. Ele é a substância absoluta, simples, vivente, única. Esta
substância deve ser, assim, a substância agente e ela deve opor-se a si mesma enquanto
consciência, e ser o meio termo que se manifesta, fenomenalmente, às [consciências]
opostas; [ela deve ser o elemento] no qual as consciências singulares são, assim, uma
enquanto elas se opõem nele, e que elas são agentes em relação a ele. É o um negando [ou o
povo], do qual a atividade destas consciências, assim como a atividade das consciências
singulares em relação a este um [que é o povo] é imediatamente a atividade do espírito. O
Bruxelles, 1980; Hegels theologische Jugendschriften (1784-1806), Ed. Nohl, Tübingen, 1907.
66
espírito do povo deve imediatamente mudar-se na Obra 1, isto é, ele não existe senão
enquanto é um eterno devenir-espírito” 2.
É importante observar o ato de tornar-se outro do espírito do povo, nisso que o
espírito, enquanto ser passivo, relaciona-se a si mesmo, enquanto ser ativo. O espírito,
enquanto povo agente e enquanto ele é consciente dele mesmo, exprime uma opinião
pública, como consciente de seu ser ativo, capaz de intervir sobre a cena pública. “A vida
de um povo é expiração e aspiração; ela é um ato de separar-se; opõe- se a ela mesma,
enquanto ser ativo, face a ela mesma, enquanto ser passivo. O espírito de um povo torna-se
um; ele torna-se uma unidade de ser-ativo e ser-passivo: torna-se uma Obra. Mas, nesta
Obra, o ser-passivo e o ser-ativo são eles mesmos suprassumidos. O espírito de um povo é
o absolutamente universal” 3. A Primeira Filosofia do Espírito mostra o indivíduo que se
torna um verdadeiro sujeito que age, um ser-ativo, ligado organicamente com seu povo. O
indivíduo passa da atitude de contemplação - o ser-passivo - à atividade consciente e o
sujeito se conhece como fazendo a história. O sujeito quer exprimir sua opinião,
publicamente, neste processo de produção da história. É esta tese que Hegel afirma na
Filosofia do Espírito de 1803. O espírito do povo não é uma consciência abstrata ou
estática, o povo critica, opina, reivindica e age publicamente, produzindo a Obra, isto é,
existe, enquanto devenir-espírito. Esta idéia será desenvolvida, mais tarde, na sua futura
filosofia da história. A Obra é a mediação dos indivíduos, pois ela transcende estes aqui e,
ao mesmo tempo, os indivíduos sabem que ela é produzida por eles 4.
A Filosofia da História analisa o desenvolvimento do espírito do mundo através
dos momentos particulares, que são os espíritos dos povos individuais. Um povo não é
constituído por indivíduos-átomos, mas ele é uma organização que pré-existe a seus
membros. Para Hegel, como para Aristóteles, o todo é anterior às partes. Numa
1 . “Como na Fenomenologia do Espírito, a Obra é o resultado do agir de todos e de cada um. Mas Hegel não
emprega ainda o termo técnico de Sache selbst que é unidade do ser e da ação. Assim, o espírito não é a Idéia
platônica, mas História que eternamente se realiza. Portanto, nada de fim da história”. Hegel. La première
philosophie de l‟Esprit. Trad. Guy Planty-Bonjour. Paris, PUF, 1969, nota nº 2, p. 118. 2 . Hegel. La première philosophie de l‟Esprit. (trad. Guy Planty-Bonjour), Paris, PUF, 1969, p. 118.
3 . Id., p. 120.
4 . Id., p. 46-47.
67
comunidade, a unidade dos indivíduos é primeira, ele é o “τέλος” (fim) imanente. O
espírito do povo exprime uma comunidade espiritual, uma realidade espiritual e não o
resultado de um contrato, como é o caso para um contrato civil. O espírito do povo
estabelece uma relação íntima com o espíritos dos indivíduos. Há uma harmonia entre os
dois termos. O indivíduo é livre e se realiza, na medida em que participa a disso que o
ultrapassa e o exprime ao mesmo tempo, isto é, participando de uma família, de uma
cultura, e enfim, de um povo.
Se nós buscamos as influências que Hegel tem sofrido na elaboração do
conceito de espírito do povo, podemos salientar, inicialmente, aquela de Montesquieu. Este
busca, no Espírito das Leis, descobrir as relações que as leis tem com o meio geográfico e
com o espírito geral de uma nação. O espírito do povo resulta de forças diversas. A escola
histórica dirá, ao contrário, que o espírito do povo decorre de um gérmen original, de um
dado primeiro. Ultrapassando esta posição, Hegel afirma que o espírito do povo é a
conjugação de fatores espirituais. Ele não subestima a importância das forças naturais e o
vínculo entre a natureza e o espírito do povo. Mas essas influências têm um papel
subordinado, não chegam à manifestação de um espírito particular. O espírito do povo
hegeliano é diferente do espírito geral de uma nação, a qual Montesquieu descreve. Hegel,
antes que os componentes mecânicos, busca a originalidade irredutível de um espírito
individual. Por exemplo, procura caracterizar os indivíduos, quando encarnam um certo
espírito como Sócrates, o Cristo, Abraão, Antígona, etc.
Uma outra influência vem de Herder, que pesquisa no gênio primitivo dos povos a
“consciência histórica”. Herder quer encontrar, na história, a energia vivente, não sua forma
invariável, mas seu tornar-se. Mas, para Hegel, esta concepção é ainda mais naturalista. Ele
descreve a vida do espírito dos povos, na história, como uma dialética. Enfim, Rousseau
tem, certamente, influenciado Hegel com a noção de vontade geral. Nesta encontramos
uma certa transcendência sobre as vontades particulares. Hegel considera que a grande
originalidade de Rousseau tem sido considerar o Estado como vontade. Rousseau insiste
sobre a diferença entre a vontade geral e a vontade de todos. No Contrato Social, diz que a
vontade geral olha somente o interesse comum, enquanto que a vontade de todos visa ao
68
interesse privado, numa soma de vontades particulares. Mas Hegel se diferencia de
Rousseau no conceito de contrato. Este, no seu ponto de vista, é marcado pelo
individualismo, pois parte ainda de um prejuízo atomista do direito abstrato. Hegel insistirá
sobre a idéia essencial da vontade geral, diferente das vontades particulares 1.
Segundo Rosenzweig 2, o conceito hegeliano de espírito do povo não pode ser
isolado da religião e do grau da liberdade política. A religião popular e as relações políticas
formam em conjunto o espírito do povo. “O espírito do povo é „constituído‟, „produzido‟,
„educado‟ e age de volta sobre o indivíduo; pois de novo, e pelo indivíduo, ele age sobre os
poderes que o têm produzido, educado, formado, realmente, por cima do indivíduo, ao
menos na passagem em que é exigido dos ritos religiosos que eles sejam engendrados pelo
espírito do povo” 1. O que sai desta concepção é que o espírito do povo está encarnado e
constituído, mas, ao mesmo tempo, é engendrado e produzido como o conjunto visível e
vivente de uma cultura nacional. Hegel designa a razão universal como a fonte única, a raiz
profunda da vida nacional total que encontramos no espírito do povo. Enfim, a cultura
nacional, o espírito do povo, se determina em relação ao nível atingido pela razão universal.
Nas suas obras de juventude, Hegel contempla na cidade grega a bela harmonia
que existe entre o todo e o indivíduo, em que a religião está ligada ao todo da cidade. Para
ele a religião é a manifestação primordial de um povo. Trata-se, bem entendido, da religião
do povo - diferente da religião privada, subjetiva e da religião objetiva e natural. Para ele, a
religião forma o espírito do povo e a prática da religião é a expressão do espírito do povo.
Para além das influências sofridas, o conceito de espírito do povo, junto a Hegel, guarda
1 . “Rousseau, no qual Hegel reconhece o mérito de ter posto a vontade livre, isto é o conceito, no princípio do
Estado, não permaneceu prisioneiro do naturalismo das teorias do direito natural, concebendo a vontade sob
sua forma individual: apesar da diferença que ele estabelece entre a vontade geral e a vontade de todos, ele
constitui portanto a vontade geral sob a base de um contrato, isto é, a partir da composição das vontades
singulares. A este vício de fundo está ligada a confusão que cometem os teóricos entre Estado e sociedade
civil. A mistura de uma categoria do direito privado (o contrato) nos princípios do direito público tem por
conseqüência em última análise que o Estado parece não ter por fim e justificação que assegurar a proteção
dos interesses privados do indivíduo: sua segurança e sua propriedade. Uma conseqüência que aos olhos de
Hegel, destrói a autoridade e a majestade absoluta do Estado”. Catherine Colliot-Thélène. Le
désenchantement de l‟État. Paris, Éd. de Minuit, 1992, p. 18. 2 . F. Rosenzweig. Hegel et l‟État. Trad. Gérard Bensussan. Paris, Vrin, 1991, p. 29-40. Rosenzweig descreve
o período que Hegel viveu em Tübingen e como nasceu o conceito de espírito do povo nesta época.
69
sua originalidade lógica e histórica. Ao nível lógico o espírito do povo está composto de
dois elementos, o todo e o indivíduo - o “dever-ser” e o ser -, que se movem como o todo
pressuposto, que se encarna num povo como um “τέλος” imanente e se determina na
unidade dos indivíduos. Historicamente, o espírito do povo, é a evolução de um processo de
encarnação do mesmo espírito na História Universal e na história de cada povo, como uma
vontade livre dos povos - diferente da vontade de todos e também da vontade geral. O
espírito do povo se interioriza e se liga na fé e na liberdade do indivíduo e ele se exterioriza
e se liga na religião e nas relações políticas de um povo, enquanto eles são a efetuação da
razão universal.
Até aqui temos mostrado como se forma o conceito de espírito do povo no
jovem Hegel. Agora, vejamos como se apresenta em Hegel na maturidade e qual é sua
relação com a opinião pública.
A Enciclopédia nos diz: “A substância que se sabe livre, na qual o dever-ser
absoluto é tanto do ser, tem como espírito de um povo [uma] efetividade. A divisão abstrata
deste espírito é a singularização nas pessoas, da substância-por-si, das quais ele é a potência
e a necessidade interior. Mas a pessoa, enquanto inteligência pensante, sabe a substância
como sua essência própria; cessa, nesta disposição interior, de ser um acidente daquela; ela
a intui, enquanto seu objetivo final absoluto na efetividade, como [um] de cá atingido, tanto
que produz um tal fim pela sua atividade, mas como qualquer coisa que, bem antes, é
absolutamente; assim ela completa, sem a reflexão que escolhe, seu dever, enquanto o que é
seu e enquanto qualquer coisa que é; e, nesta necessidade, tem ela mesma e sua liberdade
efetiva” 1. Os indivíduos efetuam o espírito do povo e estão firmados nesta tradição do
espírito popular onde haurem seu poder e sua firmeza interior. O indivíduo não participa na
comunidade acidentalmente, mas reconhece, livremente, segundo sua opinião, o ato de
pertencer à comunidade e ao povo. Este é o objetivo último - o objetivo final - das
aspirações do indivíduo. O povo é o fim já realizado pelos seus antepassados, mas, ao
mesmo tempo, ele é a realidade na qual o indivíduo deve se engajar pela sua própria ação
1 . F. Rosenzweig. op. cit., p. 34.
70
histórica. O sujeito se constitui no espírito do povo: isso é um fato incontestável. Neste
sentido, o homem da cidade grega faz seu dever, sem que se coloque problemas, porque seu
dever é a manifestação da vontade já realizada de sua comunidade 2. Nós podemos dizer
que ele recebia a substância ética pela tradição, no seu estado irrefletido e inconsciente.
Mas, na sociedade moderna, esta substância exige a aprovação da consciência individual e
da opinião pública. Se a efetividade do dever exige a adesão às leis, a liberdade de opinião
exige a participação, enquanto vontade criativa.
O sujeito se identifica, imediatamente, ao espírito do povo. O indivíduo intui
como seu objetivo final o espírito de um povo. Mas é no Estado que o sujeito se reconhece
consciente, livre, e efetua seu espírito público como uma virtude patriótica. “O Estado é a
realidade efetiva da Idéia ética - o Espírito ético, enquanto vontade substancial, revelada,
clara a ela mesma, que se pensa e se conhece (sabe), que executa o que ela sabe, na medida
em que o sabe. Ele tem sua existência imediata nos costumes, sua existência mediatizada na
autoconsciência, no saber e na atividade do indivíduo, de forma que, por sua convicção, o
indivíduo possui sua liberdade substancial nele [o Estado] que é sua essência, seu objetivo e
o produto de sua atividade” 3. O Estado exprime o espírito do povo no interior do qual o
indivíduo tem sido formado e ele dá o reconhecimento a cada um dos cidadãos. Além de
que os indivíduos reconhecem o Estado como garantia suprema do interesse público. Este
reconhecimento recíproco - a tensão interior entre os indivíduos e o conjunto - constitui a
força do Estado.
“Os Penates são os deuses interiores, os deuses inferiores; pelo contrário, o
espírito do povo (Atenas) é o divino que se sabe e que se quer; se a piedade é o sentimento
e a vida ética no interior do sentimento, a virtude política consiste em querer o fim pensado,
existindo em si e por si”4. A mitologia grega já conhecia, portanto, as virtudes que animam
o Estado. Os penates são os deuses da família e eles simbolizam a virtude subjetiva. Atena
1 . Enc., III, § 514.
2 . Na Grécia antiga, ninguém se pergunta: “o que devo fazer” - é a questão kantiana - pois cada um sabe que
um cidadão para ser feliz e livre deve participar da coletividade. 3 . FdD, § 257.
4 . FdD, § 257, Obs.
71
é o espírito do povo, a deusa que sabe e quer, e que é consciente. A piedade é a virtude das
relações no nível imediato. A virtude política consiste em saber e querer o fim supremo da
vida em comum, a liberdade pública 1.
Hegel fala do patriotismo enquanto virtude subjetiva ética no parágrafo 268:
“Enquanto certeza, apoiando-se sobre a verdade (a certeza puramente subjetiva não tem sua
fonte na verdade e é somente opinião) e enquanto querer tornado hábito, o estado de
espírito político ou o patriotismo em geral só pode ser o resultado das instituições em vigor
no Estado. Pois a racionalidade está realmente presente no Estado e ela aí está confirmada
por uma força de agir, conforme as instituições. Esta disposição do espírito consiste na
confiança (que pode tornar-se uma compreensão mais ou menos desenvolvida pela cultura),
na consciência que meu interesse substancial e particular está conservado e contido no
interesse e nos fins de um outro (este outro sendo aqui o Estado), em razão da relação onde
ele se encontra comigo como indivíduo singular. Disto resulta, imediatamente, que ele não
é um outro para mim e que tendo consciência disso, eu sou livre” 2. Por patriotismo,
entende-se, em geral, o fato de estar pronto a fazer sacrifícios e ações extraordinárias em
favor da pátria. Ora, o patriotismo consiste, em sua essência, numa disposição de espírito
nas circunstâncias ordinárias e no decorrer da vida cotidiana. É o fato de considerar
habitualmente a vida em comum, como fim e como fundamento substancial. É a
consciência que se guarda durante a vida cotidiana, face a todas as situações. Neste sentido,
o patriotismo é o fundamento e a fonte da capacidade de realizar esforços extraordinários.
Esta disposição do espírito patriótico tem seu fundamento verdadeiro na realidade objetiva3.
O patriotismo é uma virtude subjetiva, exceto no sentido de um fenômeno
passageiro como um estado de cólera, uma impulsão ou uma sensação momentânea. O
1 . E. Fleischmann. op. cit., p. 257.
2 . FdD, § 268.
3 . “Para Hegel, a constituição dos costumes verdadeiros, isto é das normas objetivas e duráveis do
comportamento, supõe que a identidade coletiva tenha o suporte racional do Estado. A definição de uma
comunidade humana é antes de tudo política, e não cultural ou social. É sem dúvida, por esta razão, que Hegel
parece ignorar ou sub-estimar a consciência nacional, que se vai tornar logo após a sua morte um elemento
político de grande importância. O patriotismo, e não o nacionalismo, é a verdadeira disposição (éthos)
político”. J.-F. Kervégan. De la démocratie à la représentation. In Philosophie, nº 13, Paris, 1986, p. 55.
72
patriotismo é um “habitus” e, segundo Aristóteles, (έξις) nasce do exercício consciente e
repetido, isto é, o hábito faz nascer a virtude. O patriotismo é o resultado subjetivo da
prática da liberdade nas instituições éticas, que são, efetivamente, livres. Num Estado
desprovido de instituições livres e de um espaço público de opinar, não existe verdadeiro
patriotismo. Num regime de força, o povo pode ser exortado a ações patrióticas, mas estas
não serão ações virtuosas. O patriotismo responde ao sentimento de confiança da alma
humana. A confiança é racional, quando ela se funda sobre os atos já realizados do Estado.
O verdadeiro patriotismo é a confiança e a identificação do cidadão no Estado, de tal modo
que ele pode dizer: “O Estado sou eu”! A virtude do patriotismo sustenta a ordem pública e
faz com que as instituições públicas sejam as “suas”.
A virtude política é a consciência patriótica que sabe e que deseja a liberdade
pública de opinar, de criticar, de julgar e o “direito de dizer não”, realizado nas instituições.
Esta virtude política do patriotismo se encontra no espírito do povo, que a mitologia grega
identificava com Atenas, como a deusa que se sabe e, ao mesmo tempo, se quer. O
patriotismo enquanto certeza é uma virtude subjetiva, mas enquanto virtude ética, é o
resultado da prática da liberdade pública. É a virtude patriótica que anima o Estado, e sua
expressão na Constituição corresponde ao Estado histórico e cultural ao qual se tem
chegado 1. “Como o Espírito não é real senão pelo saber que tem dele mesmo, e que o
Estado, enquanto Espírito de um povo, é ao mesmo tempo, a lei que penetra em todas as
situações da vida deste povo, nos costumes e na consciência de seus membros; a
Constituição de um determinado povo depende, absolutamente, da natureza e do grau de
cultura da autoconsciência deste povo. É nesta consciência que reside a liberdade subjetiva
do mesmo povo e, portanto, a realidade da Constituição” 1. A Constituição à qual um povo
se atribui, corresponde ao estado histórico de sua cultura e ao grau de lucidez de sua razão e
à consciência que os cidadãos têm de seu grau de liberdade pública. A Constituição não
pode ser um dado a priori. Ela é a expressão do nível de consciência pública ou a
1 . “Verdade das esferas cuja insuficiência manifesta que elas não podem subsistir senão porque ele é o
fundamento, o Estado tem sua verdade - relativa - nele mesmo, no patriotismo e na constituição”. Bernard
Bourgeois. La pensée politique de Hegel. Paris, PUF, 1992, p. 125.
73
manifestação do espírito do povo. Rousseau pensava que se podia forçar um povo a ser
livre. Isso não é possível. Cada povo dá-se a si Constituição que lhe convém e que lhe é
adaptada.
Os povos primitivos não são condenados a permanecer inconscientes, mas é
através da educação de sua consciência que eles serão libertados, antes que pela imposição
de leis que não têm sentido para eles. Napoleão, como Rousseau queria forçar os povos a
serem livres - Napoleão queria dar, a priori, uma Constituição para a Espanha -. Para Hegel,
é o povo que deve poder reencontrar o sentimento de seus direitos e de sua situação na
Constituição, senão esta não terá nem significação, nem valor. É, por esta razão, que
nenhuma Constituição pode ser unicamente elaborada por um indivíduo. A evolução da
liberdade subjetiva se faz sob forma de tomada de consciência dos indivíduos, unidos à
evolução da liberdade pública de opinar. A opinião pública do espírito de um povo torna-se
efetiva na Constituição. “A garantia de uma Constituição, isto é, a necessidade de que as
leis sejam racionais e de que sua realização efetiva seja assegurada, reside no espírito do
conjunto do povo, isto é, na determinação, segundo à qual este tem a consciência de si de
sua razão (a religião é esta consciência em sua substancialidade absoluta), - e, depois, ao
mesmo tempo na organização efetiva, conforme esta consciência de si, enquanto
desenvolvimento de um tal princípio. A Constituição pressupõe uma tal consciência do
espírito, e, inversamente, o espírito pressupõe a Constituição, pois o espírito efetivo não
tem a consciência determinada de seus princípios senão na medida em que estes estão
presentes para ele como existentes” 2. A garantia de uma Constituição reside, portanto, no
espírito de todo o povo, na consciência que ele tem de sua tradição, de sua liberdade e das
instituições já existentes que manifestam a realidade e a efetividade dos princípios que os
animam. Há uma relação recíproca entre espírito do povo e Constituição: esta pressupõe a
existência do espírito do povo e, inversamente, esta consciência cultural pede uma
Constituição. O Estado será consciente de sua vocação no instante em que existirá uma
1 . FdD, § 274.
2 . Enc., III, § 540.
74
Constituição como expressão do espírito do povo e da opinião pública dos cidadãos 1. A
matéria que dá a uma Constituição política seu conteúdo próprio e seu princípio unificador,
é a forma que toma a idéia do Estado, num momento determinado de seu desenvolvimento,
em relação com a opinião pública, com a cultura nacional e com o espírito de um povo. O
Estado, historicamente constituído, é o Estado, enquanto espírito de um povo.
Uma verdadeira Constituição é sempre a expressão do espírito do povo, isto é, a
Constituição pressupõe uma consciência pública e o espírito pressupõe a Constituição.
Ninguém pode dá-la a priori. A garantia de uma Constituição e, portanto, do mesmo Estado
reside no espírito do povo, é neste sentido que o povo tem consciência de sua tradição, de
sua cultura, de sua liberdade e de sua história. Ora, tudo isso constitui o conteúdo
verdadeiro da opinião pública e isso será, em seguida, o objeto de nossa exposição.
O espírito do povo é a manifestação do espírito do mundo 2 na história de um
povo determinado. “O espírito de um povo determinado, uma vez que ele é efetivo e sua
liberdade é enquanto natureza, tem [nele], seguindo esse lado natural, o momento de uma
determinidade geográfica e climática; ele está no tempo, e, segundo o conteúdo, tem,
essencialmente, um princípio particular, assim como precisa percorrer um desenvolvimento
determinado, de sua consciência e de sua efetividade; - ele tem uma história, no interior
dele mesmo. Enquanto é [um] espírito limitado, sua subsistência por si é qualquer coisa de
subordinada; ele passa pela História Mundial Universal, cujos eventos são representados
pela dialética dos espíritos dos povos particulares, para o tribunal do mundo” 3. O princípio
1 . E. Fleischmann. op. cit., p. 298-299.
2 . “O espírito popular é, essencialmente, um espírito particular, mas ao mesmo tempo ele não é outro que o
espírito universal absoluto - pois este aqui é único. O espírito do mundo - Weltgeist - é o espírito do Universo,
tal qual ele se explicita na consciência humana. Entre ele e os homens, há a mesma relação que entre os
indivíduos e o Todo que é sua substância. O espírito do mundo é conforme ao Espírito divino, o qual é o
Espírito absoluto. Na medida onde Deus é omnipresente, ele existe em cada homem e aparece em cada
consciência: é isso o espírito do mundo. O espírito particular de um povo pode declinar, desaparecer, mas ele
forma uma etapa na marcha geral do espírito do mundo e este aqui não pode desaparecer. O espírito do povo
é, portanto, o espírito universal numa figura particular que ele está subordinado, mas que ele deve revestir, na
medida onde ele existe, pois com a existência aparece igualmente a particularidade. A particularidade do
espírito popular se manifesta na consciência específica que ele tem do espírito. Na vida ordinária nós
dizemos: esse povo tem tido tal idéia de Deus, tal religião, tal organização jurídica; da ética coletiva ele se
tem feito tal idéia”. Hegel. La Raison dans l‟histoire. Paris. Ed. 10/18, 1993, p. 81-82. 3 . Enc., III, § 548.
75
que determina o espírito do povo é, portanto, ao mesmo tempo, natural e espiritual. A
natureza é um meio, um instrumento que permite exprimir o que não é mais natural, mas
espiritual, outrossim, a natureza está aqui colocada ao serviço do espírito, a fim de produzir
esse indivíduo concreto que manifesta o universal: um povo, um espírito popular.
Os povos formam a realidade natural imediata da evolução do espírito. Cada
povo tem seu caráter antropológico e geográfico próprio, de tal modo que cada um forma
uma diversidade empírica, o espírito de um povo determinado. As condições naturais
favoráveis permitem aos povos desempenhar e desenvolver o conteúdo racional da história.
Um povo feliz é aquele que une, inseparavelmente, o que o condiciona exteriormente, seu
espírito e a evolução de sua consciência pública. A disparidade entre condições e espírito
anuncia o fim de uma época. Um povo que começa a se desintegrar, não pode mais
constituir uma época. Um outro povo mais feliz o substituirá e encarnará o novo princípio,
segundo as novas condições. Esse povo representa o novo princípio mundial, pois ele é
mais poderoso e tem mais direito que os outros. A humanidade, na sua consciência
evoluída, não suporta a restauração de um princípio ultrapassado. O novo princípio se volta
contra o antigo e dá nascimento a um novo povo, hostil ao antigo. Um povo que toma
emprestado ou imita o novo princípio, não pode realizá-lo efetivamente, pois lhes faltará o
arrebatamento e o frescor espiritual próprios, isto é, lhes faltará o espírito do povo 1.
O conceito de espírito do povo ocupa um lugar importante na filosofia da
história hegeliana. O espírito toma figura, historicamente, através da existência histórica
dos povos. “A forma concreta que reveste o espírito - que nós concebemos, essencialmente,
como consciência de si - não é a de um indivíduo singular. O espírito é essencialmente
indivíduo, mas no elemento da história universal, não temos que tratar com pessoas
1 . Cf. FdD, § 347. Na Enciclopédia, Hegel sintetiza a relação entre o espírito do povo e o espírito do mundo
na história: “O movimento é o caminho da libertação da substância espiritual, o ato pelo qual o objetivo final
absoluto do mundo se realiza neste, pelo qual o espírito que não é, inicialmente em si eleva-se a consciência e
a consciência de si, e, por lá a revelação e efetividade de sua essência, sendo em e por si, e pelo qual ele se
torna a ele mesmo também espírito, exteriormente universal, espírito do mundo. Enquanto esse
desenvolvimento está no tempo e no ser-aí, e, por lá, enquanto história, seus momentos e degraus singulares
são os espíritos dos povos; cada um [destes aqui], enquanto espírito singular e natural numa determinidade
qualitativa, é determinado a ocupar um só degrau e a realizar uma só tarefa do ato total”. Enc., III, § 549.
76
singulares reduzidas a sua individualidade particular. Na história, o espírito é um indivíduo
de uma natureza ao mesmo tempo universal e determinada: um povo; e o espírito do qual
nós temos que tratar, é o espírito do povo”1. O espírito universal se encarna na figura de um
povo. Um povo é uma realidade espiritual, enquanto ele constitui uma figura particular do
espírito universal. O espírito do povo é determinado como uma forma da consciência
específica, historicamente delimitada, através da forma da cultura que lhe é própria. É
verdade que esses são os indivíduos que formam e colocam em prática, pelas suas ações,
uma cultura dada, mas existe também um espírito que a impregna, unindo os indivíduos no
interior de uma comunidade. O indivíduo é o agente do espírito, enquanto membro de uma
comunidade, e vive numa cultura, conformando-se a certos costumes, participando de uma
certa religião, apreciando certas formas de arte, vivendo numa certa organização política. O
indivíduo é impelido a participar de uma cultura na qual ele nasceu, e a manifestar a
liberdade pública de opinar enquanto consciência de espírito de seu povo. “A consciência
de um povo não é transmitida ao indivíduo como uma lição feita, mas se forma por ele: o
indivíduo existe nesta substância” 1. A consciência de um indivíduo se desenvolve através
da liberdade de opinar no interior das instituições, do espírito do povo e é, através deste ato,
que a opinião se torna pública.
A opinião pública é, enquanto liberdade, subjetiva e pública unida ao espírito
do povo. Ora, este é uma realidade histórica que ultrapassa o indivíduo, mas que lhe
permite encontrar-se, sob uma forma objetiva. O indivíduo encontra o conteúdo de sua
opinião, de sua ação, de seus costumes e de sua virtude na vida do povo. Mas o conceito de
espírito do povo evolui no pensamento de Hegel. Nas suas obras de juventude, o espírito do
povo é visto como uma manifestação original de um povo ao nível da religião e também da
política - por exemplo, na Grécia antiga, onde o espírito do povo está unido ao todo da
cidade. É nos tempos modernos que o conceito de espírito do povo permitirá a livre
manifestação do indivíduo e as bases espirituais do Estado constitucional. O espírito do
povo se efetiva no Estado - o patriotismo como um estado de espírito cívico - e o Estado
1 . Hegel. La Raison dans l‟histoire. Paris. Ed. 10/18, 1993, p. 80.
77
realiza o espírito do povo segundo o grau de cultura da consciência da opinião pública deste
povo, determinando-o na Constituição política. Enfim, o espírito do povo, expresso na
Constituição de um Estado, encarna o espírito do mundo na história particular de um povo e
é, aqui, que a opinião aparece “publicamente”.
O conceito de espírito do povo se situa no espírito objetivo, que se determina
como filosofia política e filosofia da história. A filosofia do espírito mostra a manifestação
do espírito na história e neste sentido o espírito do povo é a manifestação do mesmo
espírito na sua história. Mas esta manifestação do espírito, no espírito de um povo, segue
uma dialética e uma estrutura como conceito que se desenvolve em espírito subjetivo,
objetivo e absoluto. O espírito de um povo, enquanto espírito objetivo surge quando a
opinião se torna pública. Assim nós chegamos à liberdade pública de opinar.
3.2 - A esfera privada e pública da opinião
A família é o pano fundo da subjetividade, ou a esfera da intimidade, e, neste
sentido, ela é também a origem histórica do domínio privado no sentido moderno de uma
interioridade livre, ao mesmo tempo em que a esfera pública é a esfera das pessoas privadas
reunidas em público.
a) A pedagogia da opinião na família
Na figura da família, Hegel mostra que a educação das crianças é regida pelo
princípio da subordinação e da liberdade. “O direito que os pais têm sobre o livre arbítrio
de suas crianças, têm por destinação e por fim mantê-los na disciplina e educá-los. O fim
das punições não é a justiça como tal, mas ele é de natureza subjetiva ou moral: consiste a
intimidar uma liberdade que permanece ainda prisioneira da natureza e despertar, junto às
1 . Id. p. 81.
78
crianças, a universalidade que dorme na sua consciência e na sua vontade” 1. A educação
das crianças é uma questão fundamental, pois nelas se engendram os membros de uma
comunidade. O fim da educação é de negar a liberdade natural ou imediata - o puro livre
arbítrio - para a fazer aceder a liberdade, inicialmente subjetiva, e depois, ética ou
universal. Evidentemente, o meio pedagógico - a punição - é contestada pela pedagogia
moderna. Hegel veicula, às vezes, os prejuízos morais ou pedagógicos de sua época, mas,
sem conjugá-los com o essencial, ele reconhece o direito de as crianças serem tratadas
como pessoas de pleno direito, de serem livres e não coisas que podem ser modeladas pela
punição. Com efeito, ele visa, na educação das crianças, a dois momentos: a determinação
positiva que consiste introduzir a vida ética imediata sob a forma do amor, da confiança e
da obediência; e a determinação negativa que é a educação, a autonomia das crianças, pois
elas serão os sujeitos de uma nova família. A autonomia é esse processo de
autodeterminação - princípio próprio à moralidade - das crianças, enquanto vontade
subjetiva. A criança aprende a afirmar-se como sujeito, de outro modo, desenvolve sua
vontade subjetiva e, neste sentido, adquire o direito de opinar. A educação em família, é o
primeiro espaço pedagógico para aprender a manifestar sua opinião subjetiva e a julgar
sobre a realidade dada ou o Bem. Esta educação é uma condição de participação futura do
indivíduo na esfera pública e, por conseguinte, na vida do Estado. Melhor ainda, a liberdade
subjetiva é acordada a fim de que a participação na comunidade ética natural seja já uma
aprendizagem à prática da liberdade objetiva ou da liberdade de opinião pública no interior
da comunidade ética política. Então, a educação das crianças realiza sua tarefa que é de
educar para a liberdade subjetiva e para a liberdade universal ou ética, pois, se a família é,
na lógica da exposição da Filosofia do Direito, anterior ao Estado, isso não nos deve fazer
esquecer que um e outro se engendram, reciprocamente, numa mesma realidade
comunitária 1. A experiência educativa da criança, no interior da esfera íntima familiar,
modela a capacidade de auto-opinião do sujeito e lhe abre a possibilidade de participar na
esfera pública burguesa.
1 . FdD, § 174.
79
b) A força da opinião no engendramento das necessidades sociais
A sociedade civil burguesa concretiza uma nova figura da história. O conceito
de sociedade civil burguesa é o produto de um pensamento, elaborado a partir de uma
realidade nova. É constituída pelas relações de direito que os indivíduos, enquanto agentes
econômicos livres, mantêm entre eles no interior de uma comunidade ou bourg 2. “O
conceito mesmo da vida ética, enquanto totalidade objetiva-subjetiva procede da
necessidade de mediação entre o Estado e a sociedade civil. O Estado hegeliano é a
pressuposição histórica concreta e, por isso o “fundamento verdadeiro” da sociedade civil,
mas devido à razão mesma da cisão que ela representa, da totalidade ética e da
predominância nela da particularidade, é a mediação lógica que lhe permite desdobrar a
racionalidade ética. O Estado e a sociedade são, ao mesmo tempo, distintos e
indissociáveis, singularmente depois que a Revolução francesa e sua institucionalização
napoleônica têm numa certa medida inscrita na história, a necessidade de seu desimplicar”3.
O cidadão é um indivíduo livre que desenvolve as atividades econômicas,
observando as regras jurídicas produzidas por ele mesmo. O sentido da sociedade civil é, ao
mesmo tempo econômico, social e político; cada determinação é colocada pelo outro e
todas constituem uma unidade mediatizada nela. Isso significa uma nova posição social do
conceito, uma determinação do mesmo que faz da sociedade civil uma figura da Idéia ética,
de agora em diante um dos fundamentos de toda forma de comunidade humana livre.
1 . D. Rosenfield. op. cit. p. 178-179.
2 . D. Rosenfield citando o Dicionário de E. Oertel - Grammatisches Wörterbuch der Deutschen Sprache. 2 v.
Munique, E. A., Fleischamann, 1829, p. 218. - nos dá uma importante precisão sobre a palavra Bürger:
“Assim, E. Oertel define o Bürger como “citadino, habitante de uma vila” - Stadtbewohner - como “tal
cidadão que tem o que se chama o direito civil, isto é que goza das liberdades e dos direitos da vila a quem
cabe em troca a participação aos cargos desta aqui, em oposição ao camponês” - “solcher Stadtbewohner,
welcher das sogennante Bürgerrecht hat, d. h. die Freiheiten und Gerechtsame der Stadt geniesst und dafür
ihre Lasten mit tragen muss, ent. Bauer” - como “tout membre d‟une société civile-bourgeoise ou d‟une
société étatique, citoyen” - “jedes Mitglied einer bürgerlichen oder staatlichen Gesellschaft, Staatsbürger” -
vai por si que “sociedade cilvil-burguesa” e “sociedade estatal” sejam aqui termos sinônimos; ou ainda,
“sentido cívico” - “Bürgersinn” - que significa “convicção (atitude) de um citadino ou de um cidadão, civismo
- Gesinnung eines Satadt = u. Staatsbürgers, Civismus - ”. D. Rosenfield. op. cit. p. 185. 3 . J.-F. Kervégan. Hegel, Carl Schmitt. Le politique entre spéculation et positivité. Paris, PUF, 1992, p. 231.
80
Esta figura da Idéia é a reunião de duas determinações que correspondem a
duas correntes do pensamento político do Ocidente. A primeira é a filosofia política
moderna - Hobbes, Montesquieu, Locke, Ferguson, etc. - e a segunda é a economia política
clássica - Steuart, Smith, Say e Ricardo -. Para a filosofia política moderna, “sociedade” e
“sociedade civil” são termos sinônimos, entretanto a ênfase é colocada antes sobre civil do
que sobre econômico. Trata-se de um estado de comunidade sócio-político, formado a
partir das inseguridades e dos perigos do estado de natureza, constituído dos poderes
executivos, legislativos e judiciários neutros, imparciais, situados acima das vontades e dos
interesses egoístas. Sua função essencial reside na proteção da vida, da propriedade, dos
bens e da liberdade individual, através das leis que são comuns a todos. Enquanto que, para
a economia política clássica, o acento da noção de sociedade civil repousa sobre o
econômico. O termo significa as leis e regras que comandam a vida econômica e que são,
segundo Hegel, as “determinações-de-reflexão” éticas. O resultado portanto da Idéia de
sociedade civil é, assim, uma síntese das determinações civis - jurídico, político - e
econômicas - as determinações-de-reflexão que regem a vida econômica dos homens livres
-. Hegel tem concebido uma política da razão que é a suprassunção das diferentes políticas
do entendimento, no interior mesmo, da sociedade civil burguesa; esta é de uma parte o
lugar de reunião e de efetivação de uma política moderna; e de outra, a sociedade civil é
uma política econômica do entendimento, englobando a economia política clássica. Enfim,
a sociedade civil abre desta maneira o caminho em direção a uma política da razão do qual
o Estado será o acabamento realizado 1.
A sociedade civil, enquanto esfera de autonomia privada, funda-se a partir do
direito privado e da liberalização do comércio. Em sua dimensão política - “a esfera pública
politicamente orientada” - mediatiza-se com o poder do Estado, a fim de responder à suas
necessidades próprias. A sociedade civil burguesa pressupõe, sobre o plano social, um
mercado que tende a liberalizar-se e que faz da troca no domínio da produção, tanto quanto
1 . D. Rosenfield. op. cit. p. 185-187. J.-F. Kervégan demonstra a dinâmica privada e pública da sociedade
civil afirmando que existe uma mediação recíproca do social e do político através das instituições. A
81
é possível, um negócio de pessoas privadas. Sob o absolutismo, as funções políticas,
jurídicas e administrativas têm sido concentradas nas mãos do poder. O domínio que era
separado desta esfera pública do poder, não podia ser dito privado no sentido de uma
independência em face de um controle exercido pela autoridade. Mas o domínio privado
começa a aparecer e se desenvolver segundo as leis próprias do mercado. As relações
sociais são, portanto, meditaizadas por relações de troca. A extensão e a liberalização desta
esfera do mercado dá ao proprietário capitalista uma autonomia de caráter privado. O
sentido positivo do privado se forma através da noção de livre usufruto da propriedade do
tipo capitalista.
Para Hegel, a atividade econômica da sociedade civil burguesa forma o homem
e o diferencia do animal. Ela cria, continuamente, novas modalidades para satisfazer as
necessidades humanas. Uma necessidade se subdivide em diversas necessidades e se
diferencia sem cessar; dito de outro modo, ela se multiplica quantitativa e qualitativamente.
Os indivíduos exigem produtos novos para satisfazer uma mesma necessidade. O livre
movimento da particularidade com outras particularidades, se determina como um sistema
de necessidades 1. Isso quer dizer que a vida econômica é um conjunto onde nenhum
indivíduo é capaz de satisfazer sozinho todas as necessidades. “As necessidades e os meios
se tornam, enquanto existência real, um ser para outro: pelas necessidades e o trabalho dos
outros, a satisfação é submetida à condição da reciprocidade. Esta universalidade que toma
a forma de um reconhecimento por outro, é o momento que transforma essas necessidades e
esses meios, que se tornam concretos e têm um caráter social” 2. Hegel analisa a
necessidade em função do trabalho que ele implica, pois o processo de trabalho tem
adquirido uma autonomia em relação às necessidades, isto é, não se trata somente de
satisfazer a necessidade imediata de sobrevivência, mas de estabelecer uma nova relação
entre o meio e o fim. O meio - o processo de trabalho - tem sido tornado autônomo em
mediação política na sociedade civil é realizada pela justiça e a polícia. A mediação social do político cabe
aos estados. Enfim a corporação efetua a realização institucional do social. Cf. op. cit. p. 231-253. 1 . Cf. FdD, § 189-208.
2 . FdD, § 192.
82
relação às necessidades em geral e o processo de trabalho chega mesmo a criar novas
necessidades. Enfim, a necessidade tem perdido seu caráter simplesmente natural.
Se existe de uma parte o papel do trabalho, para satisfazer as necessidades, de
outra, o reconhecimento das necessidades é ligado à influência que exerce o contexto social
sobre o comportamento dos indivíduos. O indivíduo deve conformar seu comportamento ao
dos outros. Como nós obtemos dos outros os meios de satisfazer nossas necessidades,
vemo-nos obrigados aceitar a opinião deles. Na satisfação das minhas necessidades,
intervém a opinião dos outros, assim como eu levo ao outro minha opinião para a satisfação
de suas necessidades 1. Já nesta época, as necessidades são condicionadas pela opinião. Elas
são suscitadas através da publicidade, que cria novas necessidades junto aos consumidores.
Por exemplo, a maneira de se vestir, diz Hegel, é uma regra de conveniência que é preciso
aceitar. “A necessidade de igualdade, o desejo de se tornar semelhante aos outros, a
imitação de uma e de outra parte, a necessidade de se singularizar, de se fazer observar por
sua originalidade, constituem a fonte real da multiplicação das necessidades e de sua
extensão” 1. O fato de se tornar semelhante aos outros, é a opinião publicitária que dita o
modo de satisfazer ou de criar novas necessidades. E, inversamente, é a necessidade de se
separar da opinião pública que faz influenciar a mesma opinião no processo de criação de
outras necessidades públicas. O homem se acha tomado de uma necessidade, engendrada
pela opinião pública, compreendida na sua determinação sócio-econômica, que conduz
todos a se conformar aos hábitos sociais. As necessidades se multiplicam e se diversificam
por esse processo de identificação-diferenciação, segundo a orientação e o julgamento da
opinião. As necessidades têm se tornado as determinações éticas ou as determinações da
opinião, pois a necessidade social é a união entre a necessidade natural ou imediata e a
necessidade espiritual, que é criada pela representação da opinião. É entre os dois que se
determina o sistema de relações econômicas.
A necessidade foi criada e socializada pelo homem e isso vem desde que uma
época e uma opinião se representaram como pertencendo às suas funções vitais. As
1 . FdD, § 192 Ad.
83
necessidades devidas à natureza, não trabalhadas pelo longo caminho da cultura, são ainda
não livres, enquanto que as necessidades sociais, engendradas pela atividade humana e a
opinião, têm sido liberadas de sua dependência a respeito do estado bruto natural. “Na
necessidade social, enquanto ela implica uma união entre a necessidade imediata ou natural
e a necessidade espiritual, saída da representação, é essa última que vence enquanto
universal. Disso resulta que esse momento social contém nele o lado da libertação. A estrita
necessidade natural passa, com efeito, ao segundo plano, e, no seu comportamento, o
homem se encontra preso com sua opinião, que é também uma opinião universal, com uma
necessidade que ele mesmo criou, com uma contingência que não mais é apenas uma
contingência exterior, mas uma contingência interior a ele, seu livre arbítrio” 1. Hegel
critica as doutrinas que preconizam uma volta ao estado de natureza livre e original ou a um
estado de liberdade, condicionado por um círculo limitado de necessidades e de
modalidades, visando satisfaze-las para fundar uma sociabilidade livre. Ao contrário, é a
necessidade da natureza que é um estado de não liberdade, de dependência a respeito da
contingência exterior, de não consciência de si, como ser capaz de refletir. A liberdade, é o
trabalho, a transformação da exterioridade natural em interioridade humana. Acomodar-se a
um estado de natureza pretendido livre, é a recusa de viver e de tomar as contradições de
um mundo novo, em que a opinião de cada homem e a opinião de todos tem contribuído a
colocar em funcionamento. O comportamento dos homens obedece às necessidades sociais
e, neste sentido, eles se encontram envoltos com sua opinião, que é, ao mesmo tempo, a
opinião universal ou a opinião pública que eles mesmos têm criado ao nível de seu livre
arbítrio.
O processo de criação deste mundo de necessidades sociais levanta dois
problemas. Inicialmente, o desenvolvimento a nível da existência empírica, das
necessidades não conhece limites e já Hegel, naquela época, como a consciência ecológica,
faz hoje, face a este excesso, denuncia e critica uma exploração desenfreada das fontes
naturais e exige uma regulamentação das necessidades, conforme o desenvolvimento
1 . FdD, § 193.
84
sustentável: “A direção que toma o estado da sociedade na multiplicação e na especificação
indeterminada das necessidades, meios e usufruto não tem limite, não mais existe limite
entre as necessidades naturais e as necessidades saídas da cultura” 2. Mais ainda, as
necessidades sociais conduzem a sociedade, ao mesmo tempo, em direção ao luxo e a um
aumento igualmente infinito da dependência e da miséria - Not. É a mesma opinião que vai
denunciar esta oposição entre o luxo e a miséria 3. Assim, na sociedade ateniense, a atitude
cínica de Diógenes é um protesto público que mostra ter o luxo atingido seu cúmulo,
provocando, portanto, a miséria. A opinião pública mostrará, progressivamente, as
contradições do sistema social de trabalho 4 que são, de um certo modo, legitimados no
direito privado da sociedade burguesa.
c) O Direito privado e a publicidade das leis nos debates judiciários
A história moderna do direito privado mostra o processo de desenvolvimento
do mercado. A concepção das relações jurídicas, sob forma de contrato, repousa sobre uma
livre declaração da vontade, ligando dois proprietários no interior da livre concorrência. O
sistema jurídico é essencialmente formado pelos contratos de caráter privado. Ele exige,
como critério de relações de troca, as leis da livre concorrência. A noção de capacidade
jurídica universal, a garantia do estatuto jurídico da pessoa são também compreendidas
entre as liberdades fundamentais do direito privado. Esta capacidade jurídica não se
1 . FdD, § 194.
2 . FdD, § 195.
3 . FdD, § 195 Ad.
4 . Hegel abordando a divisão do trabalho e a diferença de estados sociais no interior da sociedade civil se
pergunta o que faz com que um indivíduo pertença a um estado determinado - estado substancial, industrial e
universal - e ele responde que isso pode ser devido a uma determinação natural, o nascimento ou a outras
circunstâncias, mas “a determinação última e essencial reside na opinião subjetiva e no livre arbítrio
particular” - FdD, § 206 -,pois o livre arbítrio se dá seu direito, seu mérito e sua honra de tal modo que o que
aí se produz por uma necessidade natural pode ser mediatizado pela vontade e assim devenir um ato da
consciência subjetiva enquanto capacidade de opinar sobre seu destino e seu lugar no interior dos estados. Ele
conclui dizendo que é o princípio da particularidade e do livre arbítrio subjetivo, enfim o direito da opinião
subjetiva do indivíduo que caracteriza a diferença que separa a vida política do Oriente e aquela do Ocidente,
o mundo antigo e o mundo moderno - FdD, § 206 Obs.
85
determina mais segundo a condição e o nascimento. “O status libertatis, o status civitatis e
o status familiae cedem o lugar somente ao status naturalis que é, agora, aplicado
universalmente a todos aqueles que se beneficiam de um estatuto jurídico - o que
corresponde ao princípio de igualdade ao qual obedecem os proprietários do mercado e as
pessoas cultivadas no interior da esfera pública” 1.
Com a codificação do direito burguês, é estabelecido um sistema de normas que
garantem uma esfera privada no sentido de troca entre pessoas privadas. O sistema de
normas torna estas aqui mais independentes diante das prerrogativas do poder central e dos
diferentes estados e corporações. O código garante a propriedade privada e suas liberdades
fundamentais: o direito de se ligar por contrato, o direito à liberdade de empreender e de
herança. É na Inglaterra, sobretudo, mais que nos países de tradição jurídica do Direito
Romano - no continente europeu - que têm sido instauradas as instituições e as formas
jurídicas que correspondem a uma sociedade, repousando sobre a livre troca. O Código
Jurídico da Prússia foi publicado em 1794, o Código do Império Austríaco em 1811, e
Napoleão fez publicar em 1804 o Código Civil, o clássico direito burguês. Esses códigos
jurídicos têm em comum os interesses próprios da sociedade burguesa e sobretudo sua
origem ou o contexto que tem provocado sua aparição: eles emanam do uso da razão que as
pessoas privadas fazem quando elas estão reunidas em público, dito de outro modo, é o
resultado da influencia da opinião pública. A opinião pública tem contribuído para a
elaboração desses códigos civis, através de concursos e de pesquisas, mesmo nos países
onde os corpos legislativos eram fracos ou quase inexistentes, como na França napoleônica.
Em Berlim, Viena e em Paris, o projeto do código jurídico foi, inicialmente, submetido ao
exame da opinião pública e não mais, simplesmente, ao círculo de especialistas. Por
exemplo, os esboços do projeto de um código eram elaborados por homens cultos que
tinham a confiança do governo e que exprimiam de um certo modo o ponto de vista da
opinião pública. É assim que, em Berlim, os princípios fundamentais do código civil têm
1 . J. Habermas. op. cit. p. 85.
86
sido discutidos inicialmente nos clubes. Isso tem rompido com uma tradição que confiava
sempre esta tarefa aos representantes tradicionais da jurisprudência.
O Direito Romano é o herdeiro da tradição e considerado, inicialmente, como
direito privado, e aquele lá se tornou o direito da sociedade burguesa no momento em que
este se libertou das formas jurídicas tradicionais e pôde emancipar-se dos diferentes estados
e das corporações urbanas. Sob o absolutismo, o Direito Romano foi utilizado mais como
uma técnica jurídica que como Direito puro e simples; é o instrumento dos príncipes para se
defender contra o centralismo ou o particularismo dos Estados. A sociedade burguesa se
livra das obrigações que a liga às corporações, para tornar-se subordinada ao príncipe. O
Direito Romano não garante ainda um regime jurídico privado no sentido estrito, pois
mantém o burguês unido a autoridade administrativa do príncipe. A verdade é que, face a
um regime jurídico abstrato, na aparência livre e orientado em direção ao individualismo,
em matéria de economia, a realidade oferece uma quase esmagadora massa de forças
administrativas, profissionais e corporativistas que emanam do Direito Contratual, do
Direito do Trabalho, do Direito de Residência e do Direito Imobiliário.
A partir da segunda metade do século XVIII, o Direito Privado Moderno põe
por terra todas estas violências e obrigações. Entretanto, é preciso esperar ainda um século,
para que esta evolução se complete verdadeiramente, ao nível da estruturação do capital
industrial, do estabelecimento definitivo do modo de produção capitalista e de todos os
direitos privados: a liberalização da propriedade nas relações de livre mercado, para todos
aqueles que participam no mercado, e o abandono da transmissão por herança e a livre
decisão do proprietário, enquanto pessoa autônoma; o poder do empreendedor de decidir no
funcionamento de sua empresa e na formação de seus quadros, assim como o valor do
salário fixado no livre contrato entre empregador e empregado. É assim que a liberdade da
empresa tem começado a progredir na Inglaterra, na França, após a Revolução e, na
Áustria, desde o reino de José II. Antes que o comércio entre as nações seja liberado pela
retirada das barreiras alfandegárias, o capital industrial goza de livre curso no interior do
país pelas leis da livre concorrência, ao nível do mercado de mercadorias, dos terrenos, do
trabalho e do dinheiro.
87
A livre troca que é a conseqüência da livre concorrência no mercado exterior,
como no comércio interior, tem determinado esta fase do capitalismo que se chamou
liberal. Esta forma liberal do capitalismo é o produto de uma conjuntura histórica única,
própria à Inglaterra, na virada do século XVIII. O apogeu desta era liberal teve lugar na
metade do século XIX, mas nenhum outro país tem aplicado sem reservas os princípios do
laisser faire 1 no comércio internacional. É exatamente durante este período que a
sociedade burguesa se libera, enquanto esfera privada, das diretivas do poder de Estado, a
tal ponto que a opinião pública atinge seu pleno desenvolvimento no quadro dos Estados
constitucionais burgueses 2. “A opinião pública era do ponto de vista que deixasse o
empreendedor livre para investir seu dinheiro em qualquer negócio de sua escolha, e que
era preciso considerar o lucro, assim adquirido, como a melhor prova de que esta empresa
era benéfica para o Estado” 3.
Quando Hegel trata da jurisdição - a positividade da lei, o direito e a lei, o
conhecimento e o reconhecimento da lei e o tribunal - enquanto administração da justiça,
seu olhar se fixa sobre o problema da publicidade da lei, a saber, sobre o fato de que a lei
seja conhecida não somente da opinião privada de um grupo restrito de especialistas, mas
do conjunto da opinião pública que está submetida a esta mesma lei. “Do ponto de vista do
direito da consciência de si - cf. § 132 e Obs. - a obrigação para com a lei implica a
necessidade que as leis sejam universalmente conhecidas” 4. Aqui, Hegel nos conduz ao
parágrafo da parte da moral, onde é dito que o indivíduo tem o direito da vontade subjetiva,
que consiste em reconhecer como tendo valor o que é julgado como bom. Mais ainda, na
adição, são citados os três níveis do desenvolvimento do Bem: o conhecimento do Bem
pelo sujeito, o conhecimento das determinações particulares do Bem e, enfim, a
determinação do Bem no interior da consciência, como subjetividade infinita. Isso significa
1 . É preciso observar que nesta época, a Inglaterra era ao mesmo tempo rainha dos mares e do mercado e
portanto se achava numa situação privilegiada de dominação mundial onde ela tinha tudo a ganhar e nada a
perder, aplicando a política do laisser faire. 2 . J. Habermas. op. cit. p. 83-89.
3 . W. Cunningham. The Progress of Capitalism in England. Cambridge, 1925, p. 107. Citado segundo J.
Habermas. op. cit., p. 274. 4 . FdD, § 215.
88
que o sujeito tem o direito de conhecer as leis, segundo sua opinião e seu julgamento e,
para tal é preciso que o sujeito se beneficie das condições objetivas para conhecê-las. As
leis devem ser acessíveis à opinião pública e ao seu nível: uma linguagem clara, fácil,
popular e na língua materna. “Pendurar as leis a uma tal altura que nenhum cidadão possa
lê-las, como o faz Dionísio, o Tirano, ou ainda escondê-las sob um conjunto imponente de
livros sábios, de coleções de decisões, resultando de opiniões ou de julgamentos
divergentes, de costumes etc, escritos além do mais numa língua estrangeira, de tal modo
que o conhecimento do direito em vigor não seja acessível, senão àqueles que se aplicam a
estudá-lo, é na realidade uma só e mesma injustiça” 1. A crítica é muito forte, pois negar à
opinião pública os meios de se apropriar do direito em vigor e de se informar sobre ele, é
qualificado de ato de injustiça.
O homem se conforma somente com o que ele conhece e que não é exterior à
sua consciência, mas que se torna uma determinação desta, porque isso é reconhecido. A
estabilidade e a segurança das leis pressupõem que o direito privado, individual, seja
efetivamente reconhecido por toda a opinião pública. Evidentemente, isso não quer dizer
que o livre arbítrio da vontade subjetiva pode atingir ao que é legalmente estipulado, pois
“o que é conforme ao direito deve ser legalmente formulado” 2, mas a opinião tem o direito
de conhecer e segundo seu modo próprio de reconhecê-lo.
O tribunal tem por função de estabelecer uma relação jurídica com a
particularidade de cada indivíduo. O indivíduo sabe que o tribunal é uma determinação de
seu direito enquanto cidadão, donde a afirmação que a administração da justiça é um dever
do poder público de resolver, segundo a lei, a multiplicidade dos conflitos privados da
sociedade, e o cidadão tem o dever de se submeter ao poder público para a solução de toda
sorte de conflitos jurídicos.
“O tribunal está na encruzilhada de todos os litígios que concernem aos
negócios privados da sociedade civil-burguesa” 3. Ele tem, como função decidir,
1 . FdD, § 215 Obs.
2 . FdD, § 217 Ad.
3 . D. Rosenfield. op. cit. p. 226 e p. 224-227.
89
universalmente, todas as contendas desta mesma sociedade. Ninguém pode livrar-se de seu
poder, mesmo o príncipe, pois todos os indivíduos são iguais diante dos tribunais.
Entretanto, o processo jurídico pressupõe que ele seja estabelecido publicamente. “A
publicidade das leis faz parte dos direitos da consciência subjetiva - § 215 -. Isso é o mesmo
para a possibilidade de saber como a lei se aplica num caso particular, como se efetiva o
desenrolar de certas ações de justiça exteriores, de argumentos jurídicos etc. O desenrolar é,
em si, uma história universalmente válida, pois, se no seu conteúdo particular, o caso
considerado não concerne senão ao interesse das partes em presença, porém pelo seu
conteúdo universal, ele concerne ao direito mesmo e a decisão é tomada em função dele no
interesse de todos - disto, a publicidade dos debates judiciários” 1. O julgamento, enquanto
palavra da justiça, é qualquer coisa de demonstrável. As partes em litígio apresentam suas
provas e seus argumentos respectivos em público, a fim de que se manifeste a todos o modo
que concretiza o direito. O Direito Privado se determina no desenrolar mesmo dos debates
judiciários, donde a necessidade da publicidade dos mesmos. A opinião pública é vigilante
em relação ao tribunal, a fim de que seja reduzida a possibilidade de um julgamento injusto.
Ora, sabe-se que os conflitos privados são carregados de emoção, de contingência, de
credulidade, portanto, um terreno propício à incidência do livre arbítrio, da subjetividade. A
contingência pode estar presente na qualificação de um crime, no juramento das
testemunhas, na confissão do criminoso. Cabe ao juiz vigiar pela eficácia do tribunal, pela
imparcialidade da pesquisa, pela igualdade dos julgamentos. É assim que o tribunal ganha a
confiança da opinião pública e é lá que os cidadãos reforçam suas ligações com as
instituições públicas. “O bom senso humano considera a publicidade dos tribunais como a
expressão do que é justo. O que tem impedido esta publicidade tem sido sempre o
sentimento que tinham os juizes de sua dignidade: eles não queriam mostrar-se aos olhos do
público e consideravam-se como o santuário do direito em que os profanos não deviam
penetrar. Mas a confiança que os cidadãos têm neles faz parte integrante do Direito e é isso
que faz com que os debates dos tribunais devam ser públicos. Se esta publicidade é um
1 . FdD, § 224.
90
direito, isso repousa sobre o fato de que o fim do tribunal é o Direito, o qual, enquanto
universalidade, deve ser também debatido diante da universalidade dos cidadãos. Esta
publicidade permite aos cidadãos de convencerem de que o julgamento foi tornado
conforme ao direito” 1. A publicidade dos debates judiciários é já a prova de uma sociedade
capaz de reconhecer o papel da opinião pública na constituição da esfera pública enquanto
tal.
3.3 - A esfera política da opinião
É na Inglaterra, na virada do século XVII, que aparece, inicialmente, a esfera
pública no fato de assumir as funções políticas. Certas forças da sociedade querem
influenciar as decisões do poder público; com este objetivo, apelam para a opinião pública
a fim de legitimar suas reivindicações. Esta prática pressupõe a formação do parlamento
moderno, a partir das assembléias de estados, onde certos conflitos são regrados graça à
participação do público. Sobre o continente europeu, a consciência pública literária é o
espaço onde se faz o apelo. Ela não se torna realmente ativa sobre o plano político senão a
partir do desenvolvimento do mercantilismo.
Ainda na Inglaterra, no mesmo século, são criadas um grande número de
companhias de manufaturas de tecido e de indústrias metalúrgicas e um forte crescimento
na fabricação de papel. Então se constitui uma oposição de interesse entre o capital
financeiro e comercial e os interesses expansionistas do capital industrial e manufatureiro.
Esta nova luta de interesse, no início do século XVIII, reativa um antagonismo já
característico das fases anteriores da história do capitalismo, onde se opõem os interesses
de uma geração mais velha já estabelecida sobre o mercado e uma geração mais jovem, que
deve descobrir os novos ramos do comércio e da indústria.
Durante os anos 1694 e 1695, alguns acontecimentos marcam uma significativa
evolução na história do capitalismo. No início, a fundação do Banco da Inglaterra e a
1 . FdD, § 224 Ad.
91
criação da Bolsa de Lyon e de Amsterdã. Estes organismos asseguram a consolidação de
um sistema que até esse momento era somente baseado sobre a estrutura das trocas
comerciais. “A forma específica do capitalismo moderno não se impõe, inicialmente, como
se sabe, senão na medida onde o capital comercial e financeiro toma o controle dos antigos
modos de produção, nas vilas - pequena produção artesanal; - e na campanha - produção
agrícola feudal - antes de transformá-los em uma produção, na qual a base é o trabalho
assalariado. A forma capitalista de trocas - capital financeiro e comercial - parece firmar-se,
duravelmente, apenas onde se muda também a mercadoria e a força de trabalho, portanto,
onde uma mercadoria é produzida, segundo o modo capitalista” 1.
É neste cenário econômico que a esfera pública supera uma nova etapa depois
da supressão da instituição da censura prévia. Assim a imprensa se torna um órgão que faz
conhecer ao público as decisões tomadas pelo poder. A constituição do primeiro ministério
ou gabinete pelo rei Guilherme III - de 1695 a 1698 - ocasiona um outro progresso pela
formação do parlamento que participará enquanto órgão de Estado.
As discussões nos cafés ou outros lugares, nos momentos de reuniões, tanto
públicas, quanto privadas, fazem crescer a liberdade de criticar e de analisar as ações de
Estado. Os jornalistas e outros autores realizam uma aproximação entre literatura e política.
As análises e as críticas constantes da opinião pública em relação às decisões da coroa e as
resoluções tomadas pelo parlamento transformam a natureza do poder. O poder torna-se
público graças à discussão entre a imprensa e o Estado. Os editoriais políticos denunciam,
publicamente, as intrigas políticas e colocam à luz do dia certas conveniências de caráter
político tidas secretas. O parlamento, para se proteger da opinião, dispõe do privilégio de
conduzir seus debates em lugar fechado, mas interditar a publicidade dos debates
parlamentares não era mais possível, numa época onde um “Memory” Woodfall fez do
Morning Chronicle o primeiro jornal londrino, porque ele era capaz de reproduzir, palavra
por palavra, dezesseis colunas de discurso, sem poder tomar notas na Galeria da Câmara
dos Comuns. Depois do incêndio de 1834,o parlamento foi reconstruído e, então, foram
1 . J. Habermas. op. cit., nota nº 3, p. 271.
92
construídas as tribunas para os jornalistas, ou seja, dois anos depois que a primeira Reform
Bill tinha feito do parlamento o órgão da opinião pública.
No fim do século, a Inglaterra é o único Estado, onde a guerra de religião tem
coincidido com o estabelecimento de uma Constituição, que tornava, de uma certa maneira,
a revolução inútil sobre o solo inglês, devido à aplicação de certos princípios
constitucionais tais como o Habeas Corpus ou a Declaration of Rights. Esta transformação
se estende durante um século e meio e mostra a ascensão crescente de um público, fazendo
uso da sua razão na função de controle político que ele vai assumir. Em 1792, o público
dotado de razão política viu-se confirmado, ainda que indiretamente, no seu papel, por
ocasião de um discurso de Fox na Câmara dos Comuns. Ele reconhece o direito de a
opinião exercer, abertamente, sua função crítica e que se pode, portanto, falar de opinião
pública no senso estrito: “É certamente justo e prudente consultar a opinião pública […]. Se
a opinião pública não se achava de acordo com a minha própria, se, depois que eu lhes
tinha mostrado o perigo, não lhes aparecia sob o mesmo aspecto, ou se eles pensavam que
um outro remédio fora preferível ao meu, eu considerava que era de meu dever para com o
Rei, meu país e minha honra, de retirar-me, a fim de que eles pudessem continuar o projeto
que lhes parecia melhor, e com o meio que era preciso, isto é com um homem que pensaria
como eles, […] mas uma coisa é clara, é que eu devo dar ao público o meio de se elaborar
uma opinião” 1.
O período que segue até o limiar do século XIX vai abolir as prerrogativas
exclusivas do parlamento, e o público se torna então, no momento de grandes debates
políticos, o parceiro oficialmente designado pelos deputados. Os sujeitos portadores da
opinião pública não podem mais ser considerados como estrangeiros que se podiam excluir
dos debates da Câmara. O absolutismo parlamentar viu-se forçado a limitar, gradualmente,
a extensão de sua soberania. De agora em diante, não é mais questão do sense of people,
nem de opinião vulgar ou de common opinion, mas se fala de opinião pública, pois ela se
1 . J. Habermas. op. cit. p. 75.
93
forma no interior das discussões abertas. O público educado e informado pode exprimir as
idéias fundamentadas, uma vez que lhe seja dado o meio de formar uma opinião.
A discussão sobre a extensão do direito eleitoral vai durar quarenta anos e dois
anos depois da Revolução de julho, é votada a Reform Bill que transformava a divisão
eleitoral, e as classes médias obtiveram o direito à participação política. Sobre os vinte e
quatro milhões de habitantes que a Inglaterra contava na época, quase um milhão adquirem
o direito de voto. Em 1834, abre-se uma era temporária de “governo pela opinião pública”,
pois, pela primeira vez, um partido publicou seu programa eleitoral. A opinião pública se
forma, então, através de um combate de idéias, não sem que tome uma distância crítica em
relação à adesão do common sense, a respeito de certas personalidades, ou em relação à sua
eleição, evitando que esta adesão ou eleição não seja espontânea ou feita por aclamações,
portanto manipulada.
Sobre o continente, um público que fazia uso de sua razão não aparecia na
França, senão ao redor de 1750. Antes da revolução, quase uma linha não podia ser
impressa, sem o acordo da censura. O jornalismo político não podia desenvolver-se e a
imprensa periódica permanecia bastante medíocre. Por exemplo, o semanário oficial, o
Mercure de France, em 1763 contava não mais de 1600 assinantes, ainda que fosse o jornal
mais difundido. Não existia imprensa política experimentada. Fazia, igualmente, falta uma
assembléia de estados. Os estados gerais não tinham mais sido convocados depois de 1614.
A única força política era aquela das Cortes superiores de justiça, mas elas não eram
totalmente independentes em relação ao poder real. Enfim, não existia uma infra-estrutura
social, que tivesse permitido a formação de poderes intermediários face ao centralismo do
governo absolutista. Em tudo e por tudo, existia uma burguesia constituída de negociantes e
de industriais, as pessoas da Bolsa, os banqueiros, os manufatureiros, mas que não tinham a
influência sobre o plano político.
A crítica dos “Filósofos” faz-se durante a primeira metade do século sobre as
questões religiosas, literárias e artísticas. É com a aparição da Enciclopédia que da
problemática moral se passa indiretamente à política . A Enciclopédia quer ser uma
94
publicação de grande estilo, 1 a tal ponto que Robespierre a tinha caracterizado como o
“prefácio da Revolução”. Promotores da crítica pública, os “Filósofos” se fizeram
economistas, abandonando a crítica literária e é assim que se qualificavam os Fisiocratas,
reunidos inicialmente ao redor de Quesnay, mais tarde ao redor de Turgot e de Mirabeau.
Os porta-vozes de sua doutrina foram a Gazette du Comerce e o Journal de l‟Agriculture,
do Commerce e o de Finances. Em 1774 Turgot e Malesherbes, dois de seus principais
representantes, foram chamados ao governo, tornando-se assim de um certo modo os
primeiros deputados da opinião pública.
Mas Necker abriu uma brecha no sistema absolutista a fim de aí introduzir a
esfera pública, politicamente orientada, publicando o balanço da gestão nacional, o que
levou três meses mais tarde, a ser demitido pelo rei de seu cargo de ministro 2. Depois da
publicação por Necker de sua prestação de contas, a esfera pública não toleraria mais ser
reprimida no seu papel político. Os Cadernos de Doléances têm, oficialmente, aberto a
razão crítica aos negócios gerais e conduzido à convocação os “estados gerais”, essas
assembléias que desempenharão um papel comparável àquele de um parlamento moderno.
O que, na Inglaterra, tinha exigido uma evolução progressiva de um século, a
Revolução francesa o criou num dia, dando ao público, politicamente consciente, ainda que
isso não fosse durável, as instituições que, até lá, lhe faziam falta. Apareceram os Clubes
que eram como partidos onde se recrutaram as diversas frações do parlamento. Criou-se
uma imprensa abertamente política e os “estados gerais” adotaram o princípio da
1 . “Em 1750 aparece o prospecto de Diderot, um anúncio que iria imediatamente encontrar um eco na Europa
inteira; um ano mais tarde, aparecia o Discurso preliminar de D‟Alembert, brilhante esquema do conjunto da
obra. Seu texto é, explicitamente, dirigido ao público esclarecido. E, em 1758, Diderot lembra numa carta a
Voltaire quais são os deveres que se tem ao público: nesse meio tempo, 4.000 assinates tinham-se
manifestado; seja dois ou três vezes o número das assinantes dos jornais mais lidos na época”. J. Habermas.
op. cit. nota nº 26, p. 272. 2. As vésperas da Revolução, é Necker que observa o nível de maturidade atingido pela opinião pública
burguesa: “O espírito que anima a vida social, a predileção pela consideração e o louvor, tem na França
instituído um tribunal diante do qual todos os homens que voltaram sobre eles a atenção, vêm-se obrigados a
comparecer: e isso é a opinião pública”. E ele continua: “A maioria dos estrangeiros tem dificuldade de ter
uma idéia justa da autoridade que exerce na França esta opinião pública. Eles compreendem, dificilmente, que
há uma força invisível que, sem dinheiro, sem guarda de corpos e sem exército, promulga leis às quais se
obedece mesmo no palácio real; e, portanto, não há nada que seja mais verídico”. “A partir de lá, o discurso
95
publicidade dos debates. Desde o mês de agosto de 1789, o Jornal de Debates e de
Decretos apareceu diariamente, a fim de prestar contas das atividades parlamentares. O
processo revolucionário se dotou logo de uma Constituição que lhe dava um sentido sobre
o plano jurídico. É talvez uma das razões que explicam que, sobre o continente europeu, a
opinião pública tenha sido de modo agudo consciente de seu papel político. A Constituição
revolucionária francesa codifica as tarefas políticas que cabem à esfera pública. Ela se
espalha, em seguida, por toda a Europa.
A Constituição de 1791 adota a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão e, no parágrafo II, ela anuncia um complemento ao conjunto dos artigos
concernente à publicidade: “A livre difusão das idéias e das opiniões é um dos direitos mais
preciosos do homem. Em conseqüência, cada um pode falar, escrever e imprimir
livremente, sob a reserva da responsabilidade exposta por aquele que abusa desta liberdade,
no caso previsto pela lei”. A Constituição de 1793 coloca explicitamente, o direito de livre
reunião, no quadro da livre expressão das opiniões: “O direito de fazer conhecer suas idéias
e suas opiniões, que isso seja por via da imprensa ou por todo outro meio, o direito de se
reunir pacificamente […] não podem ser interditados”. Mas, entre as declarações e os fatos,
a distância a percorrer é ainda grande. Por exemplo, um edito da Comuna de Paris
denuncia os adversários da Revolução como “envenenadores da opinião pública” e ordena
que seus jornais sejam prendidos. Depois do golpe de Estado do Brumaire, Bonaparte
suprime toda liberdade de imprensa. É somente em 1811, que o jornal oficial - Le Moniteur
- e mais três periódicos são autorizados a circular, sempre com a censura prévia.
Na Alemanha, a vida parlamentar começa a despertar depois de 1830. O
absolutismo tem mantido na Alemanha bem mais tempo que na Inglaterra, as barreiras
entre os diversos estados e, em particular entre a burguesia e a aristocracia. Os burgueses,
quanto a eles, se mantêm distantes do povo, que é composto de trabalhadores agrícolas, de
pequenos proprietários, de lojistas, de artesãos e de trabalhadores. Os burgueses de outrora,
que habitavam uma vila e eram artesãos, não são mais considerados por “novos” burgueses
trata da “opinião pública de M. Necker” e fala abertamente dos relatórios apresentados ao rei”. J. Habermas.
96
como fazendo parte de seus estados. Os “novos” burgueses são pessoas cultas, e homens de
negócios, universitários, enfim, sábios, eclesiásticos, funcionários, médicos, juristas ou
professores etc. As reuniões privadas da burguesia são o espaço onde se forma um público
dotado de uma consciência política. Durante os últimos anos do século XVIII, as revistas e
os jornais políticos se multiplicam. Mas são sobretudo, depois de sua criação, desde os anos
1770, as “sociedades de leitura”, privadas ou com finalidade comercial, que se espalharam
em todas as vilas. No fim do século XVIII, reconheceram-se mais de 270 sociedades de
leitura na Alemanha. Essas sociedades ou associações dispunham de seus próprios locais.
Elas oferecem a possibilidade de ler os jornais e as revistas e de conversar sobre o que se
havia lido. Essas associações elegem seus representantes conforme seus estatutos e regulam
os litígios, seguindo um processo parlamentar. Têm como fim responder aos desejos das
pessoas privadas de condição burguesa, a sua vontade de formar uma esfera pública, isto é,
ler e comentar a imprensa, trocar opiniões pessoais, chegar, em comum, a melhor formular
essas opiniões. Finalmente, nos anos 1790, isso foi designado como opinião pública. Os
jornais políticos são os preferidos dos leitores, tais como: o Staatsanzeigen de Schlözer, o
Deutscher Merkur de Wieland, o Minerva de Archenholz, o Hamburger politische Journal
e o Journal von und für Deutschland 1.
Esse resumo histórico sobre a gênese na Inglaterra e na Europa da esfera
pública, politicamente orientada, mostra o contexto institucional das relações entre o
público, a imprensa, os estados e o parlamento e também a oposição do poder a publicidade
na medida onde esta aqui é crítica diante do governo. A história desta gênese demonstra
que, durante o século XVIII, as funções da esfera pública são de natureza política. Mas é
preciso compreender o conjunto desta fase específica da sociedade burguesa e, sobretudo,
levar em conta o fato de que a troca de mercadorias e o trabalho social tem conquistado
uma larga independência em relação às diretivas estatais, durante esta evolução histórica.
A sociedade burguesa implica que o sistema da livre concorrência assegure sua
própria regulação pela determinação das leis da livre troca. A sociedade se torna mais e
op. cit., nota nº 272.
97
mais autônoma em relação a todo poder, à exceção daquele que se refere ao de mercado, ao
qual ela permanece submetida. O Estado lhe dá as garantias jurídicas na medida em que o
mercado respeita as normas gerais - o regime da livre troca - estabelecidas no Código Civil
das liberdades burguesas. Fazer que as decisões levem em conta as competências, e
respeitar uma justiça formal tornaram-se, portanto, os critérios que caracterizam o Estado
constitucional burguês a nível de sua organização, de sua administração e do exercício
independente da justiça. As leis do Estado correspondem àquelas do mercado, pois umas
como as outras não fazem nenhuma exceção entre os cidadãos e as pessoas privadas. Elas
são objetivas e devem ter para todos e para cada um o mesmo poder coercitivo.
O Estado constitucional verdadeiramente burguês institui a esfera pública
política no seu papel de órgão estatal, a fim de garantir o vínculo institucional de uma
continuidade entre a lei e a opinião pública. O fato de que o Estado seja constitucional não
implica ainda uma integração da esfera pública no interior da Constituição, no quadro de
um regime parlamentar, pois no conflito em que se opõem os interesses de classe, o caráter
constitucional apenas do Estado não garante uma legislação que corresponderia às
necessidades da burguesia no domínio das trocas. Somente com a legislação adquirida
serão assegurados os interesses das pessoas privadas. A lei exprime, em si, a formação de
seu conceito: nas lutas políticas contra um governo monárquico poderoso; tomando, no
caso da elaboração da lei, a ênfase foi, inicialmente, posta sobre a participação de uma
representação do povo. A decisão da autoridade vinha somente após. A lei é um produto da
participação e da representação do povo. O conceito de lei, enquanto expressão de uma
vontade, compreende uma fase em que uma vontade se impõe pela força e uma outra em
que a lei é a expressão da participação popular, dito de outro modo, ela nasce da relação
que se estabelece entre a opinião pública e o parlamento. O reino da lei tem por fim
eliminar toda forma de dominação. A idéia burguesa é aquela do Estado legal, em que a
atividade do Estado é ligada a um sistema de normas legitimadas pela opinião pública.
1 . J. Habermas. op. cit. p. 67-83.
98
Não se pode dizer de um poder legislativo, repousando sobre a opinião pública,
que ele seria diretamente uma forma de dominação. A competência legislativa foi obtida no
fim de uma longa luta da opinião pública contra os poderes tradicionais. O poder legislativo
é um verdadeiro poder e é assim que o entendem Locke denominando-o legislative power
ou Montesquieu que o chama, simplesmente, pouvoir. Para esses dois autores, somente a
Justiça, a qual tem a função de aplicar as leis já promulgadas, parece ser uma instância
destituída de poder. A distinção entre poder legislativo e poder executivo procede da
oposição entre a regra e ação, entre o entendimento classificador e a vontade agente. A
legislação, enquanto estruturada como um poder emana, não de uma vontade política, mas
de um acordo fundado na razão.
Lá, onde o regime constitucional foi sancionado por uma lei fundamental ou
por uma Constituição - é o caso sobre o continente europeu - as funções da esfera pública
se encontram claramente definidas e institucionalizadas. Elas compreendem: 1) a série de
direitos fundamentais que concerne à esfera do público que faz uso de sua razão: a
liberdade de opinião, de palavra, a liberdade de imprensa, a liberdade de associação, de
reunião etc.; as funções políticas que as pessoas privadas assumem no interior desta esfera
pública: direito de petição, direito de voto e direito de ser eleito etc.; 2) a série de direitos
que se refere ao livre estatuto do indivíduo, fundada sobre a esfera da intimidade da família
restrita e patriarcal: liberdade da pessoa, inviolabilidade do domicílio etc.; 3) a série de
direitos fundamentais que concerne às trocas entre proprietários na sociedade civil:
igualdade diante da lei, proteção da propriedade privada etc. “Esses direitos fundamentais
garantem a esfera pública e a esfera privada - assim que seu núcleo: a esfera da intimidade;
as instituições e os órgãos - a imprensa, os partidos - do público de um lado, e os
fundamentos de autonomia privada - a família e a propriedade - de outra parte; enfim as
funções assumidas pelas pessoas privadas, suas funções políticas de cidadão, como suas
funções econômicas de proprietários - assim que seu papel, enquanto seres humanos, no
interior da comunicação entre indivíduos, graça, por exemplo, ao segredo postal” 1.
1 . J. Habermas. op. cit. p. 93.
99
A publicidade dos debates parlamentares permite a opinião pública de verificar
a influência que ela aí exerce, e garante ao mesmo tempo o vínculo entre deputados e
eleitores, membros, uns como os outros, de um só e mesmo público. Na mesma época, a
publicidade se impõe também nos debates judiciários e mesmo a justiça independente deve
submeter-se ao controle exercido pela opinião pública. É a administração que se opõe ao
princípio de publicidade, sob o pretexto de que certos negócios deveriam permanecer
secretos. Com efeito, a única força da qual dispõe o príncipe, face aos interesses da
sociedade civil, são o exército e a burocracia que formada sob o absolutismo.
Na origem da esfera pública burguesa, é garantido a todos o acesso à
participação no Estado constitucional. O indivíduo privado (que não faz parte da esfera
pública) é um puro e simples ser humano ou uma pessoa moral. O lugar histórico e social
em que se desenvolveu uma tal consciência, é a esfera íntima da família restrita e patriarcal.
Correlativa à esfera da intimidade, a esfera pública tem adquiriu sua forma definitiva no
século XVIII. A forma específica desta esfera é literária e permanece como tal, logo que
assume as funções políticas. A cultura permanece primeira condição para quem quer
pertencer a esta esfera pública e a segunda é a propriedade. De fato, os dois critérios de
pertença concernem à mesma categoria de pessoas, pois a formação escolar pressupõe um
status social determinado em primeiro lugar pela propriedade. As camadas cultivadas são,
ao mesmo tempo, as classes proprietárias.
O acesso de todos à esfera pública, que é institucionalizada pelo Estado
constitucional, deve começar, imediatamente, através da inserção na estrutura mesma da
sociedade civil, e não por meio da Constituição política que esta sociedade se atribui. O
acesso à esfera pública é ligado às condições econômicas e sociais, isto é, a possibilidade
que o indivíduo tem de adquirir os atributos de autonomia privada que caracterizam a
pessoa como um proprietário e um homem culto. Somente os proprietários eram um
público que podia garantir sobre o plano legislativo as bases da propriedade. Entre a pessoa
e o cidadão, não há nenhuma ruptura, pois o homem é ao mesmo tempo o proprietário, e o
cidadão que contribui para manter a estabilidade de um regime de propriedade privada. O
interesse do estado - classe - está na base da opinião pública. Durante este período, a
100
opinião coincide, portanto, com o interesse geral, ao menos no sentido em que esta tenha
podido ser considerada como a opinião pública, e que ela tenha podido aparecer como
resultando do uso público da razão 1.
a) O papel da opinião nos “Escritos Políticos” 2
O desenvolvimento da gênese histórica da esfera política da opinião nos
convida a apresentar a visão hegeliana, desde os Escritos Políticos: A Constituição da
Alemanha [1800-1802], publicação póstuma], Atas da Assembléia dos estados do reino de
Würtemberg 1815 e 1816 e o artigo A propósito da „Reformbill‟ inglesa de 1830. Esses três
escritos foram redigidos em datas cruciais da história da Europa e eles nos apresentam uma
visão do conjunto do pensamento político de Hegel sobre um período de 30 anos. Eles nos
permitem compreender como Hegel tem vivido a atualidade política, formulando e
reinterpretando seu pensamento, na imediatidade dos acontecimentos e sob a pressão da
opinião pública.
Na Constituição da Alemanha - “Die Verfassung Deutschlands” - Hegel faz
esta dura constatação: “A Alemanha não é mais um Estado”. E, partindo deste olhar, ele vai
desenvolver toda sua análise: as instituições políticas alemãs herdeiras da Idade Média,
eram ultrapassadas, o funcionamento da justiça imperial era pesado e ineficaz, não existia
mais um exército e nem polícia para garantir a defesa exterior e a manutenção da ordem
interior. Enfim, o direito constitucional se converteu em direito privado e não há poder
supremo na Alemanha 3.
1 . Id. op. cit. p. 89-98.
2 . Hegel. Escritos Políticos: A Constituição da Alemanha. Atas da Assembléia dos estados do reino de
Wurtemberg em 1815 e 1816. A respeito da Reformbill inglesa. Traduzido do alemão respectivamente por
Michel Jacob, Pierre Quillet e Michel Jacob. Paris, Éd. Champ Libre, 1977. 3 . “A Alemanha não é mais um Estado porque a ligação obstinada dos alemães à antiga liberdade germânica
levou a dissolução do direito público no direito privado. A Alemanha perdeu o direito de se nomear um
Estado, pois uma multidão não é um Estado, senão quando ela é unida pela defesa comum de seus bens,
defesa que se encarna numa força nacional suficiente contra os inimigos do interior e do exterior”. B.
Bourgeois. O pensamento político de Hegel. (La pensée politique de Hegel). Paris, PUF, 1992, p. 64.
101
Em seu primeiro projeto de introdução da Constituição, Hegel diz que o poder
do universal, enquanto fonte de todo o direito, desapareceu, pois se fragmentou e passou ao
estado de particular. Portanto, o universal não existe mais, enquanto realidade, mas somente
enquanto pensamento. A opinião pública perdeu a confiança no Estado e decidiu ocupar-se
dos negócios particulares. “Não há quase necessidade de propagar uma consciência mais
clara disto que a opinião pública, perdendo confiança, decidiu mais ou menos
obscuramente. Portanto, todos os direitos existentes não têm fundamento, senão nesta
relação à totalidade: mas este fundamento, desaparecido depois de muito tempo, tem
deixado todos (os direitos) se particularizar” 1. Por isso, é difícil para os homens, de uma
maneira geral, fazer a experiência de conhecer e avaliar a necessidade. “Pois entre os
acontecimentos e a livre opinião que é preciso ter, eles introduzem uma multidão de noções
e de intenções e quereriam que isso que acontece lhes seja conforme” 2. A liberdade de
opinião leva a obrigação de pensar a necessidade ou o que é do interesse de todos e não de
ficar fechado nas suas idéias, fazendo delas o reino da necessidade. A opinião é livre,
quando é capaz de conceber um sistema regido por um espírito que ultrapassa os limites
dos acontecimentos particulares. “Sobre a base desta atividade opiniosa, que somente
recebe o nome de liberdade, formaram-se sistemas hierárquicos, segundo o azar e o caráter
dos homens, sem referência a um interesse geral e sem ser verdadeiramente limitado pelo
que se chama poder de Estado; pois esse último era quase inexistente na sua oposição aos
indivíduos” 3. No lugar de ser uma opinião livre, o que se constituiu na Alemanha foi uma
atividade opiniosa unicamente em direção aos interesses particulares e o Estado nada fez a
não ser constatar que o poder lhe foi tirado.
Depois de ter afirmado que a Alemanha não pode mais receber o nome de
Estado, Hegel analisa os diferentes poderes essenciais que devem encontrar-se no interior
do Estado. Tratando dos Estados, constata que eles gozam quase de independência uns em
relação aos outros. Assim na ocasião de um litígio entre dois Estados, as declarações e as
1 . Hegel. Escritos Políticos. A Constituição da Alemanha. p. 23.
2 . Id. p. 33.
3 . Id. p. 36.
102
notas oficiais dos dois campos contém sua própria justificação e as acusações contra a
conduta do adversário. Cada campo estabelece, juridicamente, sua tese e acusa o outro
campo de ter violado tal ou tal de seus direitos. É, segundo esse cenário, que o público -
“Publikum” - toma partido, cada campo afirmando ter o direito de seu lado. Com efeito,
esses são os direitos dos mesmos Estados que entram em contradição. Aqui, o público,
subentendido a opinião pública, toma posição em relação ao conflito jurídico e político
entre dois partidos, no caso entre dois Estados. O exemplo da Liga dos príncipes -
“Fürstenbund”, 1785 - dirigida contra a ação de Joseph II, ilustra o eco da opinião do povo
- “Volksmeinung” - que foi expressa por um grande número de escritores dos dois lados. A
voz pública - “öffentliche Stimme” - parece ter tido uma certa importância no momento em
que Frederico II aparecia aureolado pelo brilho de suas ações: no domínio da
administração, das leis civis e religiosas das províncias prussianas, enquanto o resto da
Alemanha não tinha mais nada a esperar desse lado, pois nada aí se passava que a
interessasse. Fora desse papel, representado pela opinião pública - “öffentlichen Meinung”
- e da grande esperança e inquietude que ela suscitou, esta liga dos príncipes alemães,
segundo Hegel, não teve nada de notável 1. É importante constatar a progressão no
vocabulário hegeliano, para designar o papel da opinião pública nos conflitos entre os
Estados: o público, a opinião do povo, a voz pública e, enfim, a opinião pública que ele a
qualificou como a única realidade, provocando inquietude e esperança, ou como a única
coisa de novo no meio dos acontecimentos.
A religião e a autonomia política: tais eram outrora os centros de interesse que
uniam as províncias alemães. Esses dois centros de atração constituíam a base de seu
sistema político. Hoje, diz Hegel, essas influências têm desaparecido, ainda que a religião
se mantenha, a mentalidade da época as considerava como as mais ameaçadoras. A sorte
dos Estados alemães se joga, irremediavelmente, entre os políticos de duas grandes
potências: a Prússia e a Áustria. Mas, com o tempo, a oposição entre os interesses da
Áustria e os de uma grande parte da Alemanha desapareceram; e de um outro lado, os
1 . Id. p. 109.
103
interesses da Prússia foram distanciados daqueles dos Estados alemães. A religião é um
desses interesses essenciais na defesa da qual a Prússia toma a dianteira. Os Estados
alemães, principalmente a Saxônia e o Hesse no passado, assim como as potências
estrangeiras, tais como a Suécia e a França, tinham no passado sustentado esse interesse
contra o imperador, enquanto a Prússia, na época, não tinha aí desempenhado nenhum
função, senão um papel secundário por intermédio do Brandebourg. Durante a guerra dos
Sete Anos, essa questão retorna ao primeiro plano e teve sua importância, menos pelo fato
das potências em luta, do que pelo papel desempenhado pela opinião popular -
“Volksmeinung”1.
Assim, duas causas impediram a Alemanha de se tornar um Estado, exercendo
uma grande influência: os perigos vindo da religião protestante e o medo da monarquia
universal. Mas as duas causas desapareceram e os anos de luta e de miséria em que afundou
parte da Alemanha, contribuiu para suscitar a liberdade dos cidadãos e a liberdade dos
Estados. E disso resultou que certas idéias e certos modos de pensar foram gravados na
opinião popular, por exemplo, a exigência de uma participação do povo nas leis e nos
negócios mais importantes do Estado, e o fato de que a garantia da legalidade dos atos do
governo e a participação da vontade geral nos negócios mais importantes, tocando o
interesse comum, residem na organização de um corpo representativo. “Sem um tal corpo
representativo, nenhuma liberdade é concebível; esta instituição definida fez desaparecer
todos os elementos indeterminados, toda a agitação estéril ao redor da liberdade. Isso não é
a descoberta de indivíduos que teriam adquirido como uma concepção científica, como o
resultado de um estudo deliberado, mas esta instituição é um princípio da opinião pública -
“öffentliche Meinung” -, hoje, ela faz parte da sã razão humana. A maior parte dos Estados
alemães dispõem de uma tal representação” 1. Ora, esta liberdade alemã busca um apoio
mais próximo dos Estados que defendem esse tipo de liberdade, fundada sobre a
representação, pois os centros de interesse de outrora desapareceram. Por conseqüência, a
Prússia não pode mais se prender aí e nenhuma guerra prussiana, segundo Hegel, pode hoje
1 . Id., p. 130.
104
passar ainda aos olhos da opinião pública como uma nova guerra em favor da liberdade
alemã. Mesmo contando com o desenvolvimento de uma consciência da opinião popular,
em direção da liberdade constituída em representação, ele conclui que os alemães não
souberam encontrar o meio termo entre a opressão e o despotismo - o que eles chamam
monarquia universal - e a desagregação completa. Ele apresenta, portanto o esboço de uma
reforma da Constituição defendendo a reorganização do Estado na Alemanha: que se
constitua um poder político dirigido pelo chefe supremo; ou melhor, que se restabeleça na
cabeça do império alemão o imperador, um novo Teseu, para fazer participar nos negócios
comuns o povo por ele mesmo teria criado, a começar pelos elementos dispersos. Ele
precisará de bastante caráter para suportar a raiva que atraíram Richelieu e outros grandes
homens pelo fato de quebrar os particularismos e os individualismos.
Os Atos da assembléia dos estados do reino de Württemberg em 1815 e 1816 -
“[Beurteilung der im Druck eschienenen] Verhandlungen in der Versammlung der
Landstände des Königreichs Würtemberg im Jahr 1815 und 1816. XXXIII Abteilungen”. -
expõem o conflito que opõe o rei Frederico II de Württemberg na assembléia dos estados
de seu reino ao redor de um projeto de Constituição 2 que se torna um negócio político.
Hegel faz a análise, seguindo os trinta e três cadernos das Atas publicadas pela mesma
assembléia depois da segunda sessão. O autor demonstra um vivo interesse por este assunto
provincial. Aqui ele se sente em casa, pois passou sua infância e fez seus estudos
secundários em Stuttgart - onde seu pai era funcionário de finanças do antigo ducado de
Württemberg - e seus estudos universitários em Tübingen.
Foi convocada a assembléia para que aceite, ou rejeite a carta constitucional
proposta pelo rei. A assembléia se beneficiou da sustentação de uma grande parte da
opinião pública, seja através da imprensa escrita: entre outros jornais, por exemplo, o
Allgemeine Zeitung consagra artigos a seus debates; seja da parte do povo mesmo, que lhe
1 . Id., p. 134-135.
2 . “Ela [Constituição projetada do rei] comporta 66 parágrafos e se divide em duas partes, a primeira, de 46
§§, tendo o título de Constituição da representação dos estados, a segunda, de 20 §§, o título de Disposições
gerais em função da constituição do reino e os direitos e obrigações dos sujeitos do rei”. Hegel. Atas da
assembléia dos estados de Württemberg.
105
oferece uma “música de noite” para uma de suas últimas sessões. Mas o rei não era popular
e sua carta foi aceita mais tarde, depois de sua morte - em 25 de setembro de 1818 - após o
ultimatum. Hegel não se priva de criticar os parlamentares e ele os acusa de ineficácia, de
incapacidade, de cegueira, de venalidade. Ele os censura de alienar o povo, de ser das
“classes” - Klassen - dos parasitas, que bloqueiam a situação política em proveito dos
interesses da aristocracia burguesa e dos privilégios de casta - “Meu povo, teus chefes te
enganam!” 1. Esta assembléia dos estados, acusada de impotência e de corrupção,
corresponde, por seus modos de designação e de eleição, ao instante orgânico mediador da
Filosofia do Direito - o poder legislativo. O problema é que o parlamento, eleito através do
sufrágio universal, é contestado por Hegel, segundo ele, isso exprime somente “os
movimentos elementares, insensatos, da multidão atomizada, a multiplicidade dos
indivíduos que se quer passar pelo povo […], mas que é somente uma massa informe”2. E
eis o paradoxo: o parlamento que quer defender seus privilégios e o direito privado; e o rei
que propõe uma Constituição implicando severas restrições de seus próprios poderes em
benefício do povo ou de seus representantes. “A assembléia wurtemburguesa não tem
buscado engajar-se no conteúdo do projeto da Constituição, ela não perguntou nem buscou
provar o que podia bem ser qualquer coisa como um direito racional, simplesmente se
agarrou a esta atitude formalista de exigir um velho direito positivo pela simples razão que
ele tinha sido positivo e contratual. É necessário considerar o começo da Revolução
francesa como o combate que o direito público racional estabeleceu com a massa do direito
positivo e os privilégios pelo qual ele era oprimido. Nos debates da assembléia de
Württemberg, observamos, exatamente, o combate pelos mesmos princípios, somente que
as posições foram invertidas. Então a maioria dos estados gerais franceses - französische
Reichsstände - e parte do povo sustentava e reivindicava os direitos da razão e o governo
estava do lado dos privilégios; em Württemberg, ao contrário, é o rei que coloca a
Constituição no plano do direito racional e os estados que se lançam na defesa do direito
1 . Id., Atas da Assembléia dos estados de Württemberg. p. 320. Hegel cita, aqui, o verso do livro do profeta
Isaias 3,12. 2 . FdD, § 303 Obs.
106
positivo e dos privilégios; na verdade, eles jogam a peça ao inverso, fazendo isso em nome
do povo contra os interesses do qual esses privilégios são dirigidos bem mais que contra o
príncipe” 1.
Esse cenário de princípios e de interesses contraditórios da assembléia é
“portanto de uma importância infinita para a educação política, da qual um povo e seus
chefes têm necessidade, um povo que viveu, até então, na nulidade política e cuja a
educação não começou do nada, como um povo ainda ingênuo, mas que estava ainda preso
nas cadeias severas de uma aristocracia opressiva, de uma Constituição interna organizada
para mantê-los, numa carência e numa confusão conceitual completa, a respeito dos direitos
políticos e das liberdades, ou antes, nas cadeias das palavras” 2. Contra isso, Hegel propõe
de começar um combate direto e indireto, uma ação sobre o público, pois a educação
política se faz pelo debate e pela publicidade dada aos debates da assembléia e, em
particular, pela imprensa. Tem-se conhecimento de uma série de artigos que Hegel fez
publicar nos Anais literários de Heidelberg para influenciar a opinião pública 3.
Hegel começa por observar nas suas análises que um dos aspectos importantes
para a assembléia é a publicação das Atas e a repercussão observada no público: “Essas
Atas não expõem, na verdade, senão um dos aspectos principais desta experiência: os
trabalhos que foram acompanhados publicamente, esses tiveram lugar na assembléia. Na
verdade, o público, sobretudo, tem-se interessado, espontaneamente por esta parte oficial
das atas da assembléia, aquela que, em todo caso, tem, primeiramente, por característica,
fornecer à história materiais dignos dela” 4. E ele acrescenta que a assembléia deve fazer
1 . Hegel. Atas da Assembléia dos estados de Würtemberg. p. 255-256.
2 . Id. p. 329.
3 . Id., Informação do tradutor p. 185-203. “A publicação impressa das Atas da assembléia - jornal dos
debates, com numerosas peças anexas: relatórios dos comitês, projetos de requerimentos ao rei, petições
recebidas e enviadas etc. - foram decididas pela assembléia ela mesma, conforme um uso bem estabelecido,
no fim de sua segunda sessão - 15 de outubro de 1816 à 15 de janeiro de 1817 -. É esse texto impresso das
Atas, apresentado sob a forma de trinta e três cadernos, que Hegel analisa com paciência e pertinência. Esta
análise tem aparecido fracionada em nove artigos à seguir nos Anais literários de Heidelberg durante o
segundo semestre de 1817 até janeiro de 1818. A querela da constituição está, entretanto longe, de estar
terminado em Württenberg: a constituição não será finalmente votada que em 25 de setembro de 1818”. Id.,
nota nº 1, p. 205-206. 4 . Id. p. 207.
107
conhecer, sem rodeio, sua opinião verdadeira, pois “é para este fim que existe uma
assembléia de estados, não somente para agir sem debate, mas ainda para expor ao povo e
ao mundo seus debates sobre os interesses do Estado” 1. As deliberações devem
desenvolver-se da maneira segundo a qual o povo se exprime, pois as assembléias têm seu
público essencial no povo. “Eles tratam os assuntos do povo excluindo o povo e nada
mudaria, se as sessões fossem públicas. A assembléia não é muito diferente dos debates de
uma companhia de adolescentes cujas atividades consistem em reunir-se para redigir
dissertações, a título de exercício e, para o progresso de sua cultura, dedicam-se ao serviço
de escutar reciprocamente a leitura dos mesmos” 2. Sua preocupação é o nível da linguagem
que deve ser acessível ao público e a comunicação com a opinião que permitirá evitar assim
os debates estéreis.
Desde a quinta sessão, o conde de Waldek julga necessário tranqüilizar a
opinião pública, pois, segundo informações seguras, o povo estava inquieto a respeito da
publicação da carta constitucional real. Mas a assembléia não prestava nenhuma atenção,
objetivamente, às petições do povo se isso não servisse às intenções da mesma. A
assembléia está amarrada a antiga constituição e encontra apoio na opinião pública graças a
esta fórmula mágica: “o bom velho direito” do qual ela exige o reconhecimento como
princípio jurídico formal. Ora, o conteúdo desta fórmula mágica, é o espírito de formalismo
e de particularismo que “tem constituído o caráter próprio e a infelicidade da Alemanha na
sua história; este espírito se mostra aqui com toda sua força. Se queremos chamá-lo de
espírito germânico, nada poderá ser mais germânico do que a mentalidade dos deputados do
antigo Württemberg, aí incluído a nobreza. Mas, se compreendermos por espírito
germânico, segundo seu conceito, qualquer coisa de universal e de razoável […] será difícil
encontrar qualquer coisa de mais anti-alemão que esta mentalidade” 3. O conde Waldek
exprime a opinião do povo que quer a publicação da Constituição proposta pelo rei e Hegel
de seu lado, mostra que a opinião pública foi plasmada ao longo da história alemã, a partir
1 . Id. p. 262.
2 . Id. p. 266.
3 . Id. p. 282-283.
108
da luta pelo “bom velho direito” - “das alte, gute Reicht” - que quer garantir os interesses
particulares dos deputados e da nobreza.
Chegando ao final de suas análises, Hegel revela o modo com o qual a
assembléia procedia para apresentar os projetos. Eles eram lidos, periodicamente, durante o
ano, seja por capítulos separados, sob proposição do comitê, seja acompanhados de outros
discursos. Enfim, os trabalhos da assembléia se tornavam públicos através da imprensa:
jornais, gazetas, brochuras, livros etc. O importante em tudo isso, é que a sociedade
conquistou o direito do livre julgamento; de outro modo, é a opinião pública que se torna
crítica em relação ao poder e que participa ativamente nas discussões públicas. “Pode-se
ver o Allgemeine Zeitung e outros escritores - “Schriftsteller” - desconhecidos tomarem
parte nos assuntos e nas conversas da assembléia. Esta aparição do direito de livre
julgamento e de outra voz do que louvores das gazetas e dos jornais, que se liam até então,
pareceu-lhes qualquer coisa de estranho, ver-se a assembléia instaurar deliberações contra
os artigos da gazeta ou das brochuras, tanto como contra as decisões do rei, nomear comitês
e espalhar vastos trabalhos e discursos que se tornaram livros, para fins de se justificar e,
como se dizia também, de refutar as injúrias e as difamações maquinadas contra ela, de um
modo bufo” 1. A assembléia, permitindo a publicação das Atas para o público, tem-nas
submetido assim a seu julgamento e isso provocou a abertura de um debate entre a esfera
pública literária e a mesma assembléia.
O papel representado pela opinião pública política, na assembléia de
Württemberg, foi, sem nenhuma dúvida fortemente sublinhado por Hegel. A publicação das
Atas e a assembléia, enquanto tal, Hegel repete seguidamente, tem sido um verdadeiro
momento de educação política. O público reagiu à publicação das Atas, inicialmente Hegel
mesmo, publicando seu longo comentário nos Anais Literários de Heidelberg, e também,
de um modo geral, toda a imprensa. Isso denota um despertar da opinião do povo, que se
torna político, pois quer influenciar os debates da assembléia, propondo e criticando seus
projetos. O público também toma posição e isso desencadeia os debates a nível da mesma
1 . Id. p. 341.
109
assembléia e no interior da sociedade “wurtemburguesa”. A insistência sobre todo esse
processo de discussão pública prova quanto Hegel valoriza o papel de uma opinião que se
torna crítica e educa a consciência política.
O último texto político publicado por Hegel é o artigo A respeito da Reformbill
inglesa - “Über die englische Reformbill” - que apareceu em 26 de abril de 1831 no
Allgemeine preussische Staatszeitung. Sabe-se que o rei da Prússia censurou o fim do
artigo, pois o julgava muito crítico a respeito da Inglaterra, evitando, deste modo, os
problemas de política estrangeira. Hegel foi sempre interessado pela economia, a política e
a vida social inglesa. Por exemplo, desde 1799, ele comentava os Princípios de economia
política de J. Stewart e, nos seus cursos de Iena de 1804-1805, ele escolhe ainda a
Inglaterra, para estudar as estruturas da sociedade burguesa. Em 1831, a motivação de
Hegel é a vaga revolucionária que, na época, sacudiu a Europa depois de 1830 - Itália,
Polônia, França, Bélgica -. Nos dois primeiros países, a revolta fracassou; ao contrário, nos
últimos, ela foi vitoriosa, e na Inglaterra a oposição ganhou as eleições. Em março de 1831,
o novo gabinete apresentou um projeto de reforma eleitoral. A Inglaterra foi agitada por
muitos anos pela questão da mudança de sistema eleitoral desusado e injusto. Tal é o objeto
da Reformbill. Em 1830, a vida pública inglesa é ainda dominada por tradições muito
antigas; em princípio, o rei, hereditário e inviolável, comanda o reino; o governo central
compreende duas câmaras - a câmara dos Lords ou a câmara alta composta de lords
hereditários e a câmara dos Comuns ou câmara baixa, composta de deputados eleitos por
um tempo de sete anos. Os poderes do rei e do parlamento são regulados pelo uso e por três
leis constitucionais isoladas: o Habeas Corpus - 1679 - o Bill of Rights - 1689 - e o
Establishement Act - 1700 -. O sistema eleitoral inglês é costumeiro e quase medieval.
Calcula-se na época que sobre 658 deputados, 424 são designados, por antecipação, pelo
ministério ou por 252 patrões. Mesmo os deputados são eleitos pela assembléia, as
corporações e as universidades não são verdadeiras circunscrições eleitorais, mas corpos
privilegiados, desigualmente repartidos, sem relação nem com a população nem com o
território. Enfim, no conjunto, pode-se dizer que existe um tráfico de cadeiras
110
parlamentares. É por isso que o país sente a necessidade de uma reforma eleitoral, que vai
ser adotada definitivamente em maio de 1832.
O artigo de Hegel toma posição em relação a esse projeto de reforma eleitoral,
mas sua análise dirige-se ao problema de fundo: “O projeto de reforma atualmente
submetido ao parlamento inglês, propõe-se, inicialmente, a levar justiça e igualdade na
participação das diferentes classes e frações do povo à eleição dos membros do parlamento,
criando uma simetria maior face à desordem e à desigualdade que reinavam na época.
Existem cifras, localidades, interesses privados a modificar; mas na realidade, ao mesmo
instante, esta transformação penetra até no coração venerável, até nos princípios vitais da
Constituição e do Estado britânico” 1. Na verdade, a corrupção, a venalidade das cadeiras
parlamentares são apenas sintomas de degradação da vida pública e do Estado. O problema
principal, para Hegel, reside no direito positivo 2 que comanda as instituições inglesas,
quando o direito racional já era divulgado no século XVIII sobre o continente. Com efeito,
o problema jurídico e político revela também o mal estar da sociedade a nível econômico, o
crescimento da industrialização provoca o desemprego e se acha numa mistura de
modernismo - regido pelas teses de livre troca - e de arcaísmo, que pode chegar a uma
situação explosiva 3.
1 . Hegel. Escritos Políticos. A propósito da Reformbill inglesa. p. 355. “Hegel critica esta concepção [o
sufrágio censitário] se fundando sobre outras premissas que as democráticas. O defeito do sufrágio restrito
não é tanto excluir do corpo político uma parte considerável dos membros da sociedade - esta exclusão se
produz, de fato ou de direito, qualquer que seja o sistema eleitoral, e mesmo se ele é integralmente
democrático - mas pelo fato que não permite “uma ligação viva […] no interior de um todo articulado”. O
artigo de 1830 precisa, no ocasião de uma crítica da modificação prevista pela Reformbill das condições para
ser eleitor, que a oposição verdadeira não está entre sufrágio censitário e sufrágio universal, mas entre “o
princípio moderno segundo o qual é somente a vontade abstrata do indivíduo que deve ser representada” e
aquele, mais antigo mas dispondo de uma atualidade renovada, da “representação dos interesses”. J.-F.
Kervégan. Hegel, Carl Schmitt. O político entre especulação e positividade. (Hegel, Carl Schmitt. Le
politique entre spéculation et positivité). p. 291. 2 . “O projeto de reforma atacou também um princípio jurídico verdadeiramente próprio a Inglaterra, a saber o
caráter positivo que impregna de modo preponderante o direito inglês, público e privado. Todo direito assim
como a lei que dele provém é formalmente qualquer coisa de positivo, estabelecido e ordenado pelo poder
político supremo e cuja obediência é devida, porque é a lei. Somente, hoje mais que em toda outra época, o
entendimento universal foi conduzido a se perguntar se os direitos são positivos igualmente segundo seu
conteúdo material ou se, eles são justos e razoáveis em si e por si”. Id. p. 360. 3 . Id., Informação do tradutor Michel Jacob. p. 347-354.
111
Segundo Hegel, a opinião pública já havia tomado partido em favor da reforma,
mesmo se ele achasse legitimo examinar o que a opinião sustentava, pois ela se revelava
seguidamente contraditória: “Entretanto, mesmo se a opinião pública, na Inglaterra, era
quase universalmente favorável à reforma prevista pelo Bill, quaisquer que sejam a
extensão ou os limites, deveria ser ainda permitido examinar o que esta opinião exige; e
isso tanto mais que a história recente nos tem ensinado que suas exigências se mostravam,
seguidamente, irrealizáveis, ou mesmo funestas na sua execução e que a opinião geral se
voltava em breve com tanta força contra o que ela parecia julgar bom e reclamar pouco dos
tempos anteriores” 1.
Falta ao projeto um fundamento sólido e argumentos verdadeiros. “E o último
projeto não contém precisamente nenhum elemento particular que daria a preponderância à
sagacidade profunda e ao conhecimento verdadeiro, no lugar da ignorância grosseira de
caçadores de raposas e de falcões ou de conhecimentos simplesmente já adquiridos nos
círculos, pelos jornais e debates parlamentares, ou enfim, da competência dos juristas o
mais freqüente, unicamente devido à prática rotineira” 2. As idéias de mudança propostas
pelo projeto, que constituem as bases de uma liberdade real e concernente a situação dos
bens da Igreja, a organização clerical, os direitos senhoriais e outros direitos e limitações
estrangeiras da propriedade saída do feudalismo, assim como todo o conjunto caótico de
outras leis inglesas, essas idéias, afirma Hegel, que na França foram confundidas com toda
sorte de abstrações e têm sido ligadas às violências bem conhecidas, “tornaram-se sob uma
forma mais pura e depois de longo tempo, na Alemanha, as formas principais da convicção
íntima e da opinião pública e tem operado a transformação efetiva, tranqüila, progressiva e
legal das relações jurídicas, se bem que já se evoluiu no que concerne às instituições da
liberdade real” 3. Ao contrário da Alemanha, onde a opinião pública formou-se conforme
um processo de mudança progressivo, na Inglaterra a opinião tem tomado posição de uma
só vez em favor do projeto de reforma de um modo imediato. É isso que Hegel censura na
1 . Id., A propósito da Reformbill inglesa. P. 356.
2 . Id, p. 373.
3 . Id. p. 389.
112
opinião inglesa: de se voltar contra o que ela antes tinha sustentado. De toda maneira, isso
corresponde ao conceito mesmo da opinião pública, de ser sempre a expressão da
contradição das opiniões da sociedade.
Assim as análises dos Escritos Políticos nos demonstram que Hegel está
consciente do papel da opinião pública e de seu poder de influenciar os negócios públicos.
Participa desse processo de formação da opinião, através de suas publicações e seus artigos
na imprensa escrita. Constata-se, que, para ele, a opinião tem sobretudo um papel político,
quer seja no debate parlamentar ou na formação das idéias no interior da sociedade. Os
instrumentos privilegiados de expressão da opinião são os debates parlamentares e a
imprensa: os jornais, as brochuras, os livros etc, e que têm o direito de ser reconhecidos,
enquanto tal, pela esfera política.
b) O reconhecimento da opinião pública
Afirmar a identidade entre o conceito de Estado e seu ser-aí histórico é qualquer
coisa de somente provisório, pois existe uma oposição entre os cidadãos e seu Estado que
se exprime pelo direito de dizer não ou o direito subjetivo de opinar ou de se opor a toda
realidade já dada. É preciso lembrar, também, que, oposto ao princípio da vontade
individual, existe o princípio fundamental da vontade objetiva que é racional, em si, no
conceito. É por isso que o querer e o saber individuais ou a opinião subjetiva, a
subjetividade da liberdade, não constituem senão um momento incompleto da Idéia da
vontade racional 1. O direito que o indivíduo tem de opinar sobre o Estado, provém do fato
que este não é, do ponto de vista histórico, um conceito completo da Idéia ética, enquanto
tal. “O Estado não é uma obra de arte; ele está no mundo, por conseguinte na esfera do
arbitrário, da contingência e do erro; as medidas deploráveis podem desfigurá-lo em
diversos aspectos” 2. O conceito hegeliano de “vida ética” não se reduz a alinhar as
1 . FdD, § 258 Obs.
2 . FdD, § 258 ad.
113
determinações lógicas sobre o ser-aí-histórico, mas ele é a suprassunção dos
acontecimentos históricos pela determinação conceitual. Todos os objetos ou ser-aí não
correspondem à Idéia, mesmo, se eles têm neles mesmos o poder. “A realidade que não
responde ao conceito, é simples fenômeno, o subjetivo, contingente, arbitrário, que não é a
verdade” 1. É necessário tomar a verdade e não se acomodar à contingência, ao arbitrário
disto que é ainda fenômeno no ser-aí histórico da vida do Estado. O indivíduo tem o direito
de dizer não ao que é simples fenômeno, dito de outro modo, o indivíduo tem o direito de
opinar e de se opor ao ser-aí simplesmente fenomenal do Estado, a fim de que a verdade
venha à luz do dia. Tomar a verdade do que nos é dado imediatamente, é obra de um
pensamento que se produz pelo trabalho da comunidade humana e que, através da opinião
de todos, organiza as instituições livres. É preciso dizer que os fenômenos arbitrários são já
portadores de um movimento de racionalidade e, a partir de lá a verdade de um
acontecimento histórico se constrói por sua negação e de tudo aquilo que impede a
emergência da verdade.
A relação entre os cidadãos e o Estado passa pela consciência e a opinião dos
indivíduos enquanto membros das instituições da vida ética. “O pior Estado, cuja realidade
corresponde menos ao conceito, na medida em que ele ainda existe, é ainda a Idéia, os
indivíduos obedecem ainda a um conceito que tem poder” 1. A distância do conceito em
relação a seu ser-aí histórico não significa que os vínculos substanciais, que formam as
relações entre os indivíduos e o Estado sejam completamente cortados; o perigo extremo
seria a destruição das relações comunitárias. O Estado é animado por um fundamento
lógico que é, ao mesmo tempo, um fundamento figurativo. O fundamento lógico deve
colocar sempre em marcha o processo figurativo, pois viver num Estado não quer dizer
submeter-se passivamente ou suportar uma realidade dada. É a tarefa do cidadão de exercer
seu direito de criticar, do direito de opinar, e ainda mais, de buscar os meios de resistir e de
negar o ser-aí histórico de uma instituição a fim de transformá-la e de fazer com que ela se
torne conforme ao conceito de liberdade. Quando os indivíduos se acomodam na
1 . CdL, III, p. 275-276.
114
conjuntura e, se eles perdem a capacidade crítica de opinar, o Estado pode tornar-se uma
substância inerte e fixa e, então, sobrevém um período de degradação da livre organização
social. O exercício do direito, dito de outro modo, a ação de pensar e de opinar de todo
cidadão, completa e desenvolve o conceito de Estado. O movimento lógico é sempre uma
ação que se atualiza pelo pensar teórico e prática dos cidadãos. O indivíduo tem o direito de
opinar e de traduzir na imediatidade das instituições éticas sua consciência patriótica.
Enfim, o ato de dizer sua opinião e para isso ser capaz de negar o ser-aí histórico do Estado
significa que os cidadãos querem a efetivação do conceito deste mesmo Estado 2.
O direito político interno trata das articulações ético-lógicas que constituem o
Estado. Este é a realidade da liberdade concreta. Ora, a liberdade concreta consiste nisso:
que a pessoa individual encontre seu desenvolvimento completo e o de seus interesses
particulares; obtenha o reconhecimento na família e na sociedade civil, ao mesmo tempo
em que os interesses particulares passem ao interesse do universal. Dito de outro modo, a
pessoa, com seu saber e seu querer, reconhece o universal como seu próprio espírito
substancial e age em vista deste universal como escopo. Isso quer dizer que o universal não
vale e não pode completar-se sem o interesse, o saber e o querer particulares, mas também
que os indivíduos não vivem unicamente para o seu próprio interesse assim como simples
pessoas privadas, mas querem também o interesse universal de uma maneira consciente. “O
princípio dos Estados modernos tem esta força e esta profundidade prodigiosa de permitir
ao princípio de subjetividade completar-se ao ponto de tornar-se a extrema autonomia da
particularidade pessoal e de reconduzir ao mesmo na unidade substancial e assim,
conservar nele esta mesma unidade substancial” 3. A vontade particular torna-se parte do
Estado, através de um ato de reconhecimento em que, de um lado, o indivíduo se dissocia
ou diferencia do universal e, de outro lado, retorna à unidade com o Estado. A unidade
estatal passa pelo movimento de diferenciação da vontade particular, ou ainda, a liberdade
1 . CdL, III, p. 277.
2 . D. Rosenfield. op. cit., p. 257-260.
3 . FdD, § 260.
115
ética é a liberdade individual de exprimir, subjetivamente, sua própria opinião. O direito
político interno, é o reconhecimento da opinião ao mesmo tempo particular e pública.
O reconhecimento da opinião do outro é inscrito no movimento histórico de
figuração do conceito, em que essa opinião não é imediatamente excluída, mas, ao
contrário, torna-se um momento incluído na relação ética. É preciso observar que o
conceito de reconhecimento da opinião pública tem atingido sua plena significação somente
nos tempos modernos, pois é o resultado de um percurso histórico que consiste em fazer
viver a diferença como um momento da subjetividade individual e, portanto, como um
direito de opinar. A unidade é, sempre, um resultado mediatizado pela diferenciação: assim
o direito à diferença constitui a lógica interna do Estado para ser, verdadeiramente, uma
unidade livre. O Estado é livre no movimento de engendramento de suas diferentes figuras.
O direito à diferença deve ser pensado no interior de uma unidade que é plural na expressão
das opiniões. A força do Estado reside precisamente no fato de que ele é, de um lado, o
acabamento do livre desenvolvimento da particularidade, pois é posterior à sociedade civil
burguesa, na ordem da exposição das figuras da Filosofia do Direito; e de outro lado, é
animado pelo princípio da livre subjetividade, que se desenvolve nele. Logo, não se pode
afirmar que o Estado hegeliano anula o indivíduo, ou ainda que privilegiaria uma
universalidade estatal, que se imporia aos indivíduos, pois estes são a alma daquela.
Somente o Estado que respeita os direitos da vontade particular, pode completar a Idéia da
liberdade. A universalidade estatal hegeliana garante o espaço do direito de opinar aos
sujeitos como uma liberdade particular que se mediatiza nos debates públicos, quer sejam
parlamentares ou publicados na imprensa, e que encontrem sua verdade na vontade
orgânica da “subjetividade idêntica ao querer substancial” ou no Estado 1.
1 . D. Rosenfield. op. cit. p. 260-262.
116
3.4 - Os espaços públicos da opinião
A opinião cria e ocupa os espaços específicos como meios de se manifestar em
público. O espaço público da opinião é o lugar e também o modo para a opinião de se
determinar e de se organizar as instituições onde o cidadão faz aparecer publicamente seus
direitos. Obedecendo a lógica da contradição, a opinião ocupa inicialmente o espaço da
comunicação pública, seja pela imprensa falada seja pela imprensa escrita. A imediatidade
da comunicação transmite também a contradição do fenômeno público. Os debates das
assembléias dos estados são o espaço onde o fenômeno da opinião encontra a contradição
posta das necessidades e dos interesses dos cidadãos. Mas ao mesmo tempo, é lá onde a
opinião encontra um espaço de educação político privilegiado, pois o poder legislativo
mediatiza as contradições das opiniões dos cidadãos e prepara deste modo a decisão final
do poder singular tornando a opinião verdadeira, assumindo a responsabilidade das
reivindicações vindas à tona nos espaços públicos. Os debates das assembléias e sua
publicidade formam a opinião pública. A comunicação pública, através da imprensa,
fornece as informações e contribui também na formação da opinião pública. Qual é a
atitude de Hegel diante da imprensa?
a) A Comunicação pública
Hegel conhece o ofício da comunicação pública. Ele trabalhou como diretor da
Gazeta de Bamberg de 1807 à 1808. Gasta sua parte da herança paterna, ele se achava
então empobrecido. Aceitou tomar a direção da Gazeta de Bamberg, emprego bem
remunerado que lhe devia garantir, provisoriamente, os recursos dos quais ele tinha
necessidade. O jornal de Bamberg tinha sido fundado em 1787 por um padre francês
emigrado, e havia mudado seis vezes de direção. Esse jornal, composto de quatro pequenas
folhas de formato in-quarto, durante o período em que Hegel tinha a responsabilidade,
aparecia todos os dias da semana, impresso de manhã e colocado a venda depois do meio-
dia. Não se considerava, entretanto, um verdadeiro jornal local; esse ofício era exercido
117
pelo Correspondente de Bamberg. A Gazeta fornecia aos cidadãos de Bamberg e também
ao distrito de Main, as informações relativas ao Estado bávaro, e também aos
acontecimentos europeus. Bamberg é um lugar importante, pois na época, aí residiam ainda
os príncipes do Império. A folha era lida para além das fronteiras da Bavária, sua difusão ia
além, ao menos do distrito de Main. O jornal publicava, inicialmente, ensaios, o que então
correspondia fazer a imprensa. Quando, porém, Hegel tomou a direção, durante mais de um
ano e meio, a Gazeta se elevou ao lugar dos mais importantes cotidianos alemães. A
atividade de Hegel se limitava a justapor informações cujas fontes eram constituídas pela
imprensa estrangeira, mas também pelos correspondentes que ele mesmo, aproveitando
suas antigas relações, se esforçava com empenho por multiplicar. Enquanto redator,
acrescentava às informações um breve comentário, destinado a orientar o leitor. No
momento em que Hegel tomou suas funções de redator, desenrolavam-se os últimos atos da
guerra franco-prussiana com o cerco de Dantzig e de Kolberg. Hegel se queixava da aflição
dos jornalistas em tempos de paz, pois o que enchia as colunas do jornal, normalmente,
eram: os transportes de tropas ou de prisioneiros que transitavam muito freqüentemente por
Bamberg, as festas organizadas na ocasião do aniversário da rainha e do rei, a entrada com
grande pompa de um príncipe bávaro, uma curiosidade científica, um cometa ou um
hermafrodita.
Hegel tinha sido instruído por um exemplo provindo da vila vizinha de
Erlangen, do que poderia acontecer a um jornalista imprudente nesses tempos de guerra. O
governador francês tinha suspendido a Gazeta de Erlangen e prendeu por oito dias o diretor
Stutzman e o censor, pois ousaram difundir, em suas publicações, falsas notícias e
comentários suscetíveis de perturbar a ordem pública. Na Bavária, a censura da imprensa
foi regulamentada por um edito promulgado em 1799, por iniciativa de Montgelas. As
questões da censura foram incumbidas a um responsável designado para este efeito pelo
comissário do distrito, enquanto funcionário provincial do mais alto grau. Até o outono de
1808, o jornal de Hegel não tinha recebido observação do Ministério dos Assuntos
Estrangeiros de Munique, donde provinham todas as requisições de censura dos governos
estrangeiros.
118
Mas no outono de 1808, o redator da Gazeta atrai, involuntariamente, a
atenção, do governo. A causa foi um artigo publicado em 19 de agosto sobre as posições
bavárias - pois se preparava a revolta austríaca. Este artigo continha um certo número de
indicações precisas sobre a disposição das tropas. Esses ensinamentos provinham,
literalmente, de uma ordem real, evidentemente tida secreta. Hegel elaborou o artigo, a
partir, de uma cópia de uma ordem militar que um dos empregados de sua gráfica lhe
entregara. Isso não podia escapar a Munique, que através do ministério dos Assuntos
estrangeiros, ordenou uma investigação para descobrir a origem do artigo. Hegel relatou o
que sabia. Na segunda metade de dezembro, uma nova requisição de informações teve
lugar a propósito deste artigo. A Gazeta de Bamberg respondeu de novo. Nós não sabemos
o que aconteceu depois disso. Mas, em 1º de novembro de 1808, um decreto do rei foi
promulgado em Munique e dirigido a todos os comissários gerais do distrito, segundo o
qual somente as informações, emanadas de fontes oficiais, poderiam ser publicadas. Quanto
as outras notícias, o decreto confiava a responsabilidade de censurá-las às pessoas
designadas pelas autoridades provinciais. Desde então, o ministério tornou-se vigilante e
Hegel se ressentia da fragilidade de sua posição. No fim deste mês de novembro assumiu a
função de professor de Filosofia em Nürnberg. Isso lhe evitou de ter de enfrentar uma
situação que se tornou bem difícil. O destino do jornal foi decidido rapidamente. Além do
último incidente - aquele que tinha conduzido Munique a intervir - a declaração de 27 de
janeiro de 1809 sob a responsabilidade dos assuntos franceses em Munique dizia que tivera,
muitas vezes, queixas do mau espírito de certas gazetas da Bavária, notadamente aquelas de
Nürnberg e de Bamberg. Depois da saída de Hegel, dois números da Gazeta de Bamberg,
tinham ainda suscitado a ira de Napoleão. E a Gazeta de Bamberg foi suspensa em 7 de
fevereiro. Enquanto esses acontecimentos se desenrolavam em Bamberg, Hegel já era,
depois de três meses, diretor e professor no liceu real de Nürnberg. Mas, com razão, ele
atribuiu a sua própria direção, a censura causadora da suspensão que atingiu seu sucessor 1.
1 . Franz Rosenzweig. Hegel e o Estado (Hegel et l‟État). Paris, PUF, 1991, p. 219-227.
119
Hegel conhecer, portanto, a experiência da censura e da suspensão do jornal
onde ele trabalhara em Bamberg, e, ao mesmo tempo, a importância da comunicação
pública, como meio de formação da opinião pública com seus problemas. Quais eram
portanto para ele a finalidade da comunicação pública, suas garantias e suas ambigüidades?
“A liberdade da comunicação pública - dos dois meios pela qual ela se faz, o
primeiro, a imprensa, vence pela sua audiência muito vasta sobre o segundo, a palavra ou
os discursos, que, ao contrário, tem sobre a outra a vantagem de ser mais viva - a satisfação
deste vivo desejo de dizer e de ter dito sua opinião, tem sua garantia direta nas disposições
legais ou ordens, que, tanto previnem, tanto punem seus excessos, mas sua garantia indireta
no seu caráter de inocuidade, que é fundado, principalmente, sobre a sabedoria da
Constituição, a estabilidade do governo e a publicidade dos debates das assembléias de
estados” 1. O pressuposto de toda comunicação pública, é a liberdade de expressão; sua
finalidade é a satisfação, isto é, o reconhecimento do direito de todo cidadão de dizer sua
opinião em público; e toda comunicação pública, seja a imprensa, seja a palavra, deve ser
garantida por meios diretos e indiretos 2. Hegel salienta, entretanto, o formalismo e a
ambigüidade destes aqui. Analisemos essas afirmações.
1 . FdD, § 319.
2 . “O mundo moderno, singularmente depois da Aufklärung, tem procedido a uma redefinição do espaço
público. O símbolo deste aqui não é mais a reunião dos cidadãos na ágora, a ecclesia, mas antes a livre
comunicação das idéias, principalmente pela via da imprensa. Dito de outro modo, o público não se confunde
mais com a política, no sentido onde esse termo designa tudo o que tem relação ao Estado. Evidentemente, a
opinião pública das sociedades modernas tem um conteúdo político; é por isso que seu estudo encontra lugar
na teoria hegeliana do Estado. A situação que ela aí ocupa é aliás instrutiva: o estudo da opinião pública
conclui a secção consagrada a “soberania interna”, e constitui o prolongamento da análise do poder legislativo
e da representação parlamentar dos “estados” (Stände), isto é dos grandes interesses sociais. Como esta
última, a opinião pública garante a mediação entre o Estado e o povo, entre “o universal em si e por si” e “o
que tem de específico e de particular a opinião da massa”. Ela tem, portanto, um caráter e um conteúdo
parcialmente extra-político, pois ela é menos o sentimento do povo, enquanto Estado, tomado como
indivíduo, que o julgamento, seguidamente crítico e por lá necessário, da sociedade civil, diverso e móvel,
sobre o Estado […]. Qualquer que seja, a opinião pública é um fato sócio-político com o qual o Estado
moderno deve contar. Não é mais suficiente ter boas leis, é necessário poder dizer se e porque elas o são, e as
colocar a prova do julgamento coletivo”. J.-F. Kervégan. Da democracia a representação. In Philosophie,
Revista trimestral, Paris, Ed. de Minuit, 1986, nº 12, p. 45-46.
120
1 - A liberdade da comunicação pública
Hegel define a liberdade como o direito de fazer tudo o que as leis permitem.
Mas ele não compreende a liberdade da imprensa simplesmente como a liberdade de dizer e
de escrever o que se quer. Sustentar isso, diz Hegel, é permanecer no estado do pensamento
grosseiro e inculto e da superficialidade da representação, e isso seria regressar em direção
à opinião subjetiva do direito abstrato. “A essência do Estado moderno consiste na união da
universalidade com a total liberdade da particularidade” 1. A liberdade, que une esses dois
elementos, ultrapassa o arbitrário subjetivista e o arbitrário despótico. A liberdade é um
pressuposto essencial da comunicação pública em todos os casos. Por exemplo, se a
expressão de uma opinião é subjetiva e, às vezes arbitrária - é sua essência mesma -, a
supressão desta liberdade não deve ser em nenhum caso, pois a liberdade subjetiva e sua
garantia são um direito objetivo no Estado, como nós veremos a seguir.
2 - A finalidade da comunicação pública
O exercício da palavra e da imprensa formam a comunicação pública. É o
espaço imediato onde se exprime a opinião pública e, ao mesmo tempo, é assim que se
forma a opinião como nas assembléias de Estado. Neste sentido, a comunicação pública é a
forma de “satisfação desta viva tendência de dizer e de ter dito sua opinião”. A
comunicação pública leva à satisfação, porque o reconhecimento é obtido. “A liberdade
concreta consiste nisso: a pessoa individual e seus interesses particulares encontram seu
desenvolvimento completo e obtêm o reconhecimento de seu direito-por-si no sistema da
família e da sociedade civil”1, mas também no Estado, pois todo cidadão deve poder
exprimir sua opinião, fazer entender suas exigências, participar das decisões universais -
por exemplo na legislação - exercer a comunicação sobre os assuntos do Estado. O Estado
moderno dá a seus cidadãos a satisfação deste vivo desejo da opinião, isto é, cada indivíduo
1 . FdD, § 260 Ad.
121
sabe que é reconhecido na sua liberdade de opinar, sabe que é membro ativo da
comunidade, sabe que é conhecido e reconhecido como tal por todos os outros e pelo
Estado na comunicação pública. É por isso que esta liberdade e esta satisfação, enquanto
reconhecimento, são o fim da comunicação pública e a razão de sua garantia.
3 - As garantias diretas e indiretas da comunicação pública
Em princípio, Hegel é partidário da liberdade da comunicação pública. Para que
isso se realize ele põe duas garantias. A garantia direta se exerce através dos dispositivos
legais ou ordens, que podem ser utilizados, antes, como prevenção, ou depois, como
punição. Outros vêem nas disposições legais ou ordens, uma censura prévia, embora Hegel
não utilize esta palavra. E nós sabemos que essa passagem é uma das mais delicadas, é aqui
que Hegel exige a abolição da censura, à qual seu livro era ainda submetido, para poder
dizer livremente - e não de um modo técnico somente - o que tem a dizer, isso que diriam
mais tarde, provavelmente, seus alunos 2. É verdade que o governo tem razão de intervir
logo que a liberdade de expressão ultrapassa certos limites. Mas a supressão pura e simples
da imprensa conduz sempre à revolta do cidadão e isso é contrário à natureza mesma da
liberdade de expressão. A garantia direta da comunicação pública deve sempre ter em conta
o fato de que a expressão livre da opinião é, em si, um direito objetivo no Estado.
As garantias indiretas são como uma espécie de auto-regulação da
comunicação livre, fundada sobre a sabedoria da Constituição, a estabilidade do governo e
a publicidade dos debates das assembléias dos estados. Hegel diz ainda uma vez que a
publicidade dos debates das assembléias, quando eles são levados com competência - logo
que se trata de um verdadeiro debate sobre os interesses do Estado - deixa poucas coisas de
1 . FdD, § 260.
2 . E. Fleschmann. A Filosofia política de Hegel. (La philosophie politique de Hegel).p. 334; J. D‟Hondt.
Teoria e Prática política junto a Hegel: o problema da censura, Hegels Philosophie des Rechts, hrsg, von D.
Henrich und R.-P Horstmann, Stuttgart, Klett-Cotta, 1982, p. 151-184. Segundo J.-F. Kervégan, a discussão
sobre esse ponto foi reanimada por K. H. Ilting, para quem Hegel teria na sua obra de 1820 disfarçado por
medo da censura a orientação liberal natural de seu pensamento, que se manifestaria bem mais livremente nos
seus cursos, in Hegel, Carl Schimitt. O político entre especulação e positividade. Paris, PUF, 1992, p. 277.
122
importância a acrescentar. Os debates das assembléias esclarecem por eles mesmo a
opinião pública, exprimem todas as potencialidades e seus interesses sobre os assuntos
públicos. O bom senso da opinião pública - “vox populi, vox Dei” - faz parte das garantias
indiretas, pois esse bom senso sabe discernir sabiamente a verdadeira comunicação pública,
da falsa, de tal modo que esta aqui é recebida com indiferença e desprezo, quando o
discurso ou a conversa é fraca ou detestável.
4 - A ambigüidade na comunicação pública
“Aliás, é da natureza mesma da coisa que, em nenhuma parte, o formalismo se
mantém com tanta obstinação e de modo assim tão insensato que nesta matéria. Pois o
objeto - a imprensa - é constituído pelo que aí tem de mais passageiro, de mais particular,
de mais contingente na opinião, com a infinita diversidade do conteúdo e dos modos de o
exprimir” 1. A ambigüidade da comunicação pública reside no formalismo e no conteúdo da
opinião, pois eles são indeterminados. A arte e a sutilidade na expressão são gerais e
indeterminados neles mesmos. Esta indeterminação inclui uma forma dissimulada e ela está
ligada a conseqüências imprevisíveis, pois é ignorado se resultam em qualquer coisa do que
foi efetivamente expresso. Ora, “o caráter indeterminado do conteúdo e da forma impede as
leis de atingirem, nesse domínio, esta precisão que se exige de uma lei e faz do julgamento
pronunciado uma decisão inteiramente subjetiva, pois o delito, a injustiça, o dano causado
tomam aqui uma figura particularmente subjetiva” 1. O dano atinge o pensamento, a
opinião, a vontade de outro como uma realidade efetiva. Como a liberdade dos outros é
atingida, é a estes que cabe decidir se a expressão ofensiva do pensamento é realmente em
ato e não uma simples opinião.
Uma outra ambigüidade vem do que se tira argumento da simples subjetividade
do conteúdo e da forma da opinião. A lei é ambígua, sua imprecisão permite estilos e
formulações particulares do pensamento, que desnaturam a lei ou fazem passar as decisões
1 . FdD, § 319 Obs.
123
da justiça para os julgamentos puramente subjetivos. Quando a expressão é considerada
como uma causa de dano, é sempre possível, sustentar que não se trata de um ato, mas
somente de uma opinião, de um pensamento ou ainda, de um modo de dizer. A
argumentação que se funda sobre a subjetividade do conteúdo e da forma da opinião pode
exigir, de uma parte, a impunidade para essas palavras ou esses pensamentos, pois se diz
que eles são insignificantes e sem importância, pois não são mais que uma simples opinião.
De outra parte, a argumentação subjetivista pode exigir o respeito de toda opinião pessoal,
pois ela é uma propriedade espiritual e, enquanto tal, a expressão e o uso do direito de
propriedade.
A comunicação pública comporta o elemento subjetivo, que, sendo dado o
caráter indeterminado de suas atividades, possui, na sua expressão, um caráter substancial,
mas que age sobre o terreno subjetivo. “O caráter indeterminado das atividades, que resulta
das modalidades de sua expressão, não suprime seu caráter substancial e não tem por
conseqüência senão o terreno subjetivo sobre o qual elas têm sido completadas [e]
determina, igualmente, a natureza da reação” 2. As ofensas feitas à honra dos indivíduos, a
calúnia, a difamação, a falta de consideração a respeito do governo, da autoridade de seus
funcionários e, em particular, a respeito do príncipe, o fato de transformar as leis em
ridicularização ou incitar a revolta são todos exemplos de crimes ou delitos da comunicação
pública, que mostram seu elemento substancial. Como o caráter substancial da
comunicação não tem por conseqüência a não ser o terreno subjetivo - é esse o terreno
subjetivo sobre o qual se coloca o delito o qual ocasiona o seu aspecto subjetivo, sua
contingência - e ele determina, igualmente, a natureza da reação. Pode ser sancionado - o
aspecto subjetivo - por uma simples medida de polícia, destinada a impedir o delito ou por
uma pena propriamente dita. De toda maneira permanece sempre o formalismo, que faz
parte da comunicação pública. A fronteira entre o elemento subjetivo e o elemento
substancial - o delito objetivo - é sempre fluido, por causa do caráter subjetivo dos delitos
1 . Ibidem.
2 . Id., § 319 Obs.
124
de opinião. Não se chega a qualificá-los objetivamente e toda condenação guarda um
caráter de apreciação subjetiva.
Nas ciências autênticas, não há ambigüidades, pois elas não se situam sobre o
terreno das opiniões subjetivas ou na categoria que constitui a opinião pública. “As
ciências, ao contrário, quando são, verdadeiras, não se situam sobre o terreno das opiniões e
do ponto de vista subjetivo. É por isso que não entram na categoria do que constitui a
opinião pública” 1. Não se pode limitar a liberdade das ciências, contrariamente àquela da
imprensa e da opinião pública; elas não podem mais ser submetidas ao controle do governo
ou a qualquer disposição jurídica, pois não estão sobre o mesmo plano que as opiniões
subjetivas, e seu modo de exposição não consiste na arte de estilos, de alusões, de
subentendidos, mas numa expressão sem equivoco, precisa e objetiva de seu conteúdo. As
ciências tiram seu direito e sua garantia daquilo que elas tratam de sua matéria própria e se
atêm a seu conteúdo.
Mas a mesma ciência, na expressão de certos sábios, pode comportar a
injustiça. Segundo Hegel, a expressão injusta pode ser permitida ou tolerada, em razão do
desprezo em que ela cai; e a parte da expressão injusta que fica sob a ação da lei, pode ser
imputada a esta sorte de Nemesis - uma das divindades primordiais gregas, personificando
a indignação, a vingança dos deuses contra o excesso, que pode agir sob duas formas. A
primeira forma de Nemesis como expressão da autoconsciência e da auto-afirmação do
talento ou da virtude superior que o oprime: Hegel compara esta Nemesis àquela dos
soldados romanos, que, por cantos irônicos a respeito de seus generais, no momento de seu
triunfo, restabeleciam o equilíbrio com eles. A função de “catharsis” que procede de suas
manifestaçõe, era uma compensação e um protesto contra o fato de que eles não tinham tido
parte nas honras do triunfo. A segunda forma de Nemesis é aquela que se inspira no ódio,
como uma pura expressão da vingança pessoal; neste caso ela é má e suscita o desprezo e a
reprovação do público.
1 . Id., § 319 Obs.
125
Hegel conclui esta análise da liberdade da comunicação pública, seja pela
imprensa, seja pela palavra, seja pela ciência, dizendo que seus efeitos próprios e os perigos
que eles apresentam para os indivíduos, a sociedade e o Estado, dependem da natureza do
terreno. O que ele entende por esta expressão “a natureza do terreno” ? Ele mesmo faz
referência ao § 218, da Filosofia do Direito, para dar o sentido. No parágrafo, ele trata do
problema do crime e de seus efeitos sobre a sociedade civil. Conclui que, na medida em que
o poder da sociedade se tornou seguro, a importância exterior da violação diminui e isso
conduz à maior clemência exterior quanto à pena. É impossível à sociedade deixar o crime
impune, pois isso seria então posto como direito, mas, como a sociedade se torna mais e
mais segura dela mesma, o crime se torna mais e mais, em relação a ela, qualquer coisa de
singular, de isolado e de instável. Enfim, diz que um Código penal é relativo
essencialmente a seu tempo, e ao estado correspondente da sociedade civil. Do mesmo
modo, os efeitos próprios e os perigos que a comunicação pública apresenta para os
indivíduos, a sociedade e o Estado dependem da “natureza do terreno”, isto é do poder da
sociedade, da evolução da sociedade civil. Tudo depende da “natureza do terreno”, da
natureza da sociedade civil, de seu desenvolvimento, e de sua capacidade de debater
publicamente.
b) A publicidade dos debates das assembléias dos estados 1
A instituição dos estados tem por função própria garantir aos membros da
sociedade civil que não participam do governo, o momento onde a liberdade formal adquire
seu direito, ou seja, a publicidade das assembléias dos estados fornece o meio do
1 . O termo “Stände” é ambíguo, pois ele pode designar os estados no sentido sócio-econômico - estados
sociais - ou os estados no sentido político. Cf. B. Bourgeois. O pensamento político de Hegel. Paris, 1992, p.
132. Robert Derathé afirma que Hegel emprega a palavra “Stände” para designar ao mesmo tempo as classes
da sociedade civil e as assembléias das ordens do reino, que se chamava outrora os “estados” ou ainda os
“estados gerais” e ele justifica a escolha de sua tradução: “É por isso que nós temos traduzido nos dois casos
“Stände” por “estados”. FdD, § 303, nota 55; cf. FdD, glossário e índice analítico das matérias, p. 355. “J.-P.
Lefebvre guarda a distinção entre “Stand” - estado social - e “Klasse” - classe social -. Kann não guarda esta
diferença e Derathé, mesmo assinalando-a, não a retém”. D. Rosenfield. op. cit., nota 90, p. 329.
126
conhecimento ou a informação sobre as deliberações e as decisões que concernem aos
negócios universais. O momento de liberdade formal encontra sua expressão pública, pois a
liberdade subjetiva formal ou a consciência pública enquanto universalidade empírica dos
pontos de vista e dos pensamentos da maioria vem a tona através da publicidade dada aos
debates das assembléias dos estados 1. A publicidade dos debates parlamentares é um
exercício que forma o conjunto dos cidadãos, pois esses debates não são o negócio
exclusivo de um grupo de indivíduos isolados do resto do povo. Contra a prática do segredo
das deliberações, Hegel sustenta o caráter público dos debates, pois a opinião pública tem o
direito de ser informada 2.
A informação sobre os debates das assembléias através da publicidade que lhe é
dada, visa a um objetivo mais geral, que é de atingir a opinião pública. Ora, esta
comunicação com a opinião pública visa a três objetivos bem determinados:
1) “A publicidade dos debates, abertos ao conhecimento de todos, tem o lado
universal que somente a opinião pública chega ao pensamento verdadeiro e à compreensão
da situação e do conceito do Estado e de seus negócios; e, assim, somente ela se torna
capaz de julgar mais racionalmente este assunto” 3. A publicidade dos debates das
assembléias dos estados tem, como primeira finalidade, garantir a qualidade substancial da
opinião pública, isto é, a tendência verdadeira, que tem por fim ocupa-se dos interesses
universais, tais que a situação e o conceito do Estado, os negócios públicos. O cidadão
adquire a capacidade, a autonomia de pensar e julgar de modo mais verdadeiro e razoável,
os grandes assuntos do Estado.
2) A opinião pública “aprendera deste modo a melhor conhecer e portanto a
apreciar as ocupações, os talentos, as virtudes, as qualidades das autoridades e dos
funcionários do Estado” 1. A opinião pública é um meio de controle das autoridades - dos
deputados - e dos funcionários que representam a sociedade civil e administram o Estado.
1 . FdD, §§ 301 e 314.
2 . “Bem longe, portanto, que as assembléias dos estados sejam o puro reflexo da opinião pública [esta aqui]
se forma enquanto informada pelos debates das assembléias, que devem ser públicas e publicadas”. B.
Bourgeois. O pensamento político de Hegel. p. 134. 3 . FdD, § 315.
127
A informação da opinião pública permitirá a transparência do poder legislativo como do
poder governamental, pois assim pode ser conhecida a competência - os talentos, as
qualidades - de seus representantes. Conhecer a competência, mas também julgar as
atividades, isto é, ver como os deputados realizam sua função de representação e sua prática
legislativa na preocupação dos interesses da sociedade civil e do Estado.
3) “Se uma tal publicidade oferece a esses talentos uma magnifica ocasião de se
desenvolver e de fazer conhecer ao público sua eminente dignidade, ela é, ao mesmo
tempo, o remédio contra a suficiência dos indivíduos e da massa, assim como um meio de
contribuir para a sua formação (política) e mesmo um dos mais importantes” 2. A
publicidade dos debates tem logo, por finalidade, a formação política, tanto das autoridades
e dos funcionários como dos indivíduos e da massa. A publicidade é um meio de formação
política para os primeiros, pois a opinião pública observará as pessoas na responsabilidade
de uma função pública em que terão assim a preocupação de desenvolver seus talentos e de
fazer conhecer ao público sua dignidade. Também para os segundos, a publicidade é um
meio de formação política e um remédio contra a suficiência dos indivíduos e da massa. É
um remédio contra a suficiência, pois uma das tendências da opinião pública é de querer
retomar todo o mundo e de falar mais do que ela entende menos. Existe o perigo de ver o
vulgar ignorante fechar-se na sua suficiência e ignorância. A informação publicitária dos
debates das assembléias mostra de uma parte a relatividade das informações para os
indivíduos e a massa, assim como a necessidade de abrir-se a outras fontes de informações.
De outra parte, a informação constitui um dos meios mais importantes de formação política
da opinião pública.
Em que consiste exatamente esta formação política? A grande finalidade da
publicidade dos debates das assembléias é a formação da opinião pública do cidadão. Esta
formação se realiza em dois tempos:
1 . FdD, § 315.
2 . Ibidem.
128
a) “O povo aprende, sobretudo ali, a descobrir a verdade sobre seus próprios
interesses” 1. A formação política ensina ao cidadão a aprender a verdade sobre seus
próprios interesses. Tal como o representa a opinião pública, tem-se a impressão geral de
que todos já sabem quais são seus próprios interesses e também o que é bom para o Estado.
Os debates das assembléias dos estados não reproduzem simplesmente tudo o que já é
conhecido? Mas Hegel diz “que na realidade, é tudo o contrário do que se produz. É nesse
momento que se desenvolvem as virtudes, os talentos, as aptidões, que deverão servir de
modelos”. Esta afirmação indica que na publicidade dos debates parlamentares, o povo
aprende a descobrir a verdade dos próprios interesses. É também no desenrolar dos debates
parlamentares que o povo aprende sobretudo a ser um cidadão, isto é vendo as sessões das
assembléias o povo encontra o modelo da vida de cidadão.
b) Se o primeiro momento da formação política do cidadão consiste em
descobrir a verdade de seus próprios interesses e a formação da cidadania, o segundo
momento será de despertar os cidadãos pelos interesses do Estado. “A publicidade dos
debates é o melhor meio de interessar os cidadãos aos interesses do Estado. A vida política
será muito mais animada num povo em que esta publicidade tem lugar, do que num povo
em que as assembléias dos estados não existem ou não são mais públicas. É fazendo
conhecer suas deliberações e suas decisões, que as câmaras se encontram em contato com o
resto da opinião pública” 1. A formação do cidadão implica o interesse pelo Estado, isto é,
pela Constituição, pela legislação, pelos negócios públicos. Mas isso exige que a opinião
pública seja informada, de que as câmaras façam conhecer suas deliberações e suas
decisões. É assim, somente, que as câmaras se encontram em contato com a opinião
pública. A publicidade dos debates, das deliberações e das decisões das assembléias são um
meio privilegiado de formar o cidadão e por conseguinte a opinião pública.
No fim da reflexão, Hegel insiste sobre a importância de participar nos debates
das assembléias: “É um momento por excelência da formação política, pois ele mostra a
diferença de nível que se encontra na discussão de uma grande assembléia. Percebe-se,
1 . FdD, § 315 Ad.
129
então, que não é a mesma coisa discutir em casa, com sua mulher ou seus amigos, e
participar nos debates de uma grande assembléia, onde os espíritos judiciosos estão
presentes” 2. A publicidade dos debates das assembléias é um grande espetáculo,
eminentemente formador para os cidadãos, pois a informação é um dos meios mais eficazes
de formação da opinião pública.
Hegel quer que a vida política chegue a um espaço de cidadania onde o
indivíduo possa se expandir e que não seja mais abafado. Participando na vida política e
exteriorizando sua opinião, a subjetividade do indivíduo forja a consciência do espírito de
um povo. Um povo bem informado é um povo que não se deixa enganar, pois o
conhecimento público dos negócios do Estado se torna um “meio de cultura” que impede a
manipulação. A publicidade dos debates oferece a todo cidadão a possibilidade de se medir
face aos que dirigem a vida do Estado. A satisfação de um povo reside no fato de que os
cidadãos reconhecem em seus dirigentes os indivíduos capazes de realizar as tarefas que lhe
são determinadas. Mas, se o processo de reconhecimento não se produz mais, então a
opinião pública tem o “direito de dizer não”, pois ela tem a capacidade de verificar e de
controlar de modo crítico seus dirigentes constituídos, enquanto representantes através do
poder legislativo.
c) O poder legislativo: a opinião mediatizada dos cidadãos
O poder legislativo elabora as leis, nesta tarefa, aperfeiçoa a Constituição,
criando novas leis, a fim de responder às novas necessidades para o desenvolvimento da
família, da sociedade e do Estado. Com efeito, o poder legislativo completa,
constitucionalmente, segundo a lei, as transformações que são necessárias a fim de que a
universalidade política seja garantida sob sua forma universal. O poder legislativo não é a
reunião de uma multidão de indivíduos, ao contrário, é a efetivação orgânica da
1 . Id., § 315 Ad.
2 . Id., § 315 Ad.
130
participação de todos, aí compreendido do príncipe e do poder governamental. As relações
entre a Constituição e o poder legislativo se ligam no movimento de pressuposição mútua,
onde a Constituição, sendo um todo firme e estruturado, põe o poder legislativo e este, por
seu lado, põe a Constituição, adaptando-a segundo as necessidades dos novos tempos.
Evidentemente, o poder legislativo não é o único intérprete das novas aspirações da opinião
pública. Entretanto, é para o mesmo que convergem o poder do príncipe e do governo 1, de
tal modo que é nele que se enuncia melhor a totalidade das novas necessidades da opinião.
Assim, a modificação do “Regime de Saúde” concerne ao poder legislativo.
Mas o poder legislativo não pode apreciar sozinho a gravidade dos problemas particulares,
pois estes tocam a vida de todos. A questão deve, portanto, ser discutida pelo poder
governamental, que conhece melhor os problemas de aplicação do universal ao particular;
depois pelo poder do príncipe, que tem a tarefa de velar pela efetivação do que é universal;
enfim, pelos diversos organismos da sociedade, que reivindicam o direito de exprimir sua
opinião sobre um tal problema; enfim, a deliberação política de um tal negócio engloba o
conjunto da opinião pública. Assim, esta deliberação exprime a participação da opinião dos
cidadãos, pois a força da deliberação política reside no reconhecimento por toda a opinião
pública que se trata de uma coisa verdadeiramente necessária. Por sua participação orgânica
nas assembléias dos estados, nas corporações, nas comunas, os cidadãos têm o direito de
ver reconhecida sua opinião. “O elemento dos estados tem a determinação, segundo a qual
o negócio universal, não somente em si, mas também por si, isto é, segundo a qual o
momento da liberdade formal subjetiva, a consciência pública como universalidade
empírica dos pontos de vista e dos pensamentos do grande número, aí vem à existência” 1.
A visão hegeliana do bicamerismo é orgânica e ela corresponde a articulação
política da divisão da sociedade em dois estados sociais. O estado universal não é
compreendido aqui, pois ele tem sua expressão política no poder governamental. O estado
substancial é representado na “câmara alta” e o estado industrial na “câmara baixa”. Hegel
quer que o poder legislativo se articule com o lado orgânico da sociedade civil e não com o
1 . FdD, § 300.
131
seu lado privado e inorgânico. Os estados são, então, um órgão de mediação que se coloca
entre o governo e o povo, sendo compostos de esferas particulares e de indivíduos
particulares. Na sua função de mediação, os estados apresentam os interesses particulares
das comunas, das corporações e dos indivíduos. E Hegel acrescenta “o que é mais
importante ainda, os indivíduos singulares, eles mesmos não se apresentam como uma
multidão ou um amontoado, tendo uma opinião e uma vontade inorgânica, e não se opõem
como um simples poder da massa ao Estado orgânico” 2. A opinião dos indivíduos não
pode apresentar-se de uma maneira inorgânica e isolada mas ela somente pode fazê-lo
através da mediação orgânica do poder legislativo. Esta visão orgânica da opinião exige que
o indivíduo participe nos órgãos da sociedade civil, onde ele pode tomar parte dizendo sua
opinião na publicidade do fórum das comunas ou das corporações. Isso se opõe a uma visão
corrente, segundo a qual a opinião das pessoas acederiam de uma maneira privada à coisa
pública ou universal, no poder legislativo. Pensa-se que a participação neste poder se
realizaria pelo indivíduo tomado isoladamente, como se o representante eleito ou cada
indivíduo dissesse sua opinião e fizesse entender seu ponto de vista nas assembléias
legislativas. Hegel se opõe, firmemente, a esta concepção atomística e abstrata da opinião,
pois a opinião pública, organicamente representada, não é a justaposição de opiniões de
indivíduos isolados, o maior número possível ou uma simples sondagem de opinião, como
hoje se chama 3. É aqui que Hegel critica a eleição que privilegia a expressão de um voto
como uma opinião individual fora das coletividades já existentes nos círculos da sociedade.
A razão de sua crítica a representação que é escolhida pela opinião privada, é que ela isola
o indivíduo de seu círculo próprio e provoca uma separação da vida civil e política no
1 . FdD, § 301, segundo a tradução de Labarrière-Jarczyk. O silogismo do poder. Paris, Aubier, 1989, p. 177.
2 . FdD, § 302.
3 . “Confunde-se com efeito sub-repticiamente duas significações do termo “povo” que a filosofia política
moderna tem constantemente distinguido: aquela da unidade política constituída (populus) e aquela da massa
inorganizada de indivíduos (vulgus, multitudo, turba). Esta distinção, que confirma a oposição do estado civil
e do estado de natureza, sublinha a especificidade do vínculo político, e mostra que uma comunidade não se
reduz a soma dos indivíduos que a compõe. Ela mede portanto a diferença da natureza que existe, em termos
rousseauistas, entre a vontade geral, que “olha somente o interesse comum”, e a vontade de todos, que “olha o
interesse privado e é apenas uma soma de vontades particulares”, isto é entre a universalidade racional da
132
interior mesmo da sociedade. O representante político no caso teria por “base somente a
singularidade abstrata da opinião e do livre arbítrio individuais, por conseguinte, o
contingente, e não um fundamento que seja em si e por si sólido e justificado” 1.
A crítica do sufrágio universal se funda sobre a distinção entre o que é a
aparência e o que é o fundamento na sociedade. O sufrágio universal responde sobre o
caráter da aparência atomística da opinião pública, que corresponde a uma concepção
abstrata da vida política e social 2. Esta concepção desconhece que o homem é,
essencialmente, atualização do que é individual no que é universal, “o indivíduo é gênero,
mas ele não tem sua realidade imanente universal, enquanto gênero próximo. É na esfera da
corporação, da comuna, que ele atinge, por conseguinte, sua destinação verdadeira e viva
para o universal” 3. Cada indivíduo condensa em si o conjunto das determinações que
fazem do cidadão um elemento mediador do todo, e a atualização do indivíduo acontece
através da participação nas esferas respectivas ao nível da sociedade civil 4. É aqui que o
indivíduo vai expressar sua opinião publicamente e, portanto, universaliza-se de um modo
orgânico. Ora, o sufrágio universal permanece numa igualdade quantitativa que depende de
uma soma de opiniões individuais que corta a efetivação do indivíduo de seu próprio
círculo social. A dificuldade de compreender a opinião do indivíduo - cf. “a liberdade
formal do opinar , acima 3.1 - reside no que ela supõe todo um movimento de figuração
vontade política objetiva e a “universalidade empírica dos pontos de vista e dos pensamentos do grande
número”. J.-F. Kervégan. op. cit. p. 287. 1 . FdD, § 303 Obs.
2 . “Esperando do eleitor que ele se pronuncie, enquanto simples indivíduo, e construindo a ficção de um
átomo político e jurídico surdo a força formadora do meio social, a representação eletiva o convence de sua
quasi-nulidade política. O que tem um duplo efeito. De uma parte, ele é tentado de se abster de tomar sua
parte na vida universal, e de recuar nas esferas sociais da existência, nas quais ele tem consciência de ser
ativo. De outra parte, o voto individual favorece as minorias ativas, e pode conduzir ao fato de uma tomada do
Estado por um partido organizado. Neste caso, a vocação mesma da política ao universal seria comprometida,
como o pressentia Rousseau condenando as “manobras”. J.-F. Kervégan. Da democracia a representação. In
Philosophie, nº 13, Paris, Ed. de Minuit, 1986, p. 63. 3 . FdD, § 308 Obs.
4 . “Contra todo democratismo abstrato, é preciso afirmar que o indivíduo não é membro do Estado, senão
sendo, inicialmente, membro de um estado, que a consciência e a vontade singular do universal não é viva e
verdadeira senão, quando ela é preenchida da particularidade que está na esfera concreta da sociedade civil, a
particularidade mediatizando de modo orgânico, racional, a singularidade e a universalidade”. B. Bourgeois.
op. cit., p. 133.
133
concretizando-se na “liberdade subjetiva de opinar” - cf. acima, 3.2 - e “ a liberdade pública
de opinar” - cf. acima, 3.3 - que efetiva o conceito do Estado e que por lá engendra a Idéia
de liberdade pública na imediatidade do mundo.
O Estado é uma universalidade concreta que exprime ao mesmo tempo o
interesse universal e o particular. O problema é de possuir o meio de intervir nos negócios
públicos. Inicialmente, todos os indivíduos podem intervir, enquanto pessoas privadas. É o
direito de a pessoa opinar, a fim de exprimir sua impaciência na defesa de seu interesse
particular. “Afirma-se que todos - e portanto todo cidadão tomado individualmente - deve
contribuir nas deliberações e nas decisões concernentes aos negócios gerais do Estado,
porque eles são todos membros deste Estado e os negócios do Estado são os negócios de
todos, nos quais eles têm o direito de participar com seu saber e seu querer” 1.
Em seguida todos os cidadãos são convidados a intervir e a efetivar a liberdade
pública de opinar, enquanto membros das estruturas que constituem a sociedade e o Estado.
A primeira forma de intervenção corresponde à opinião formal ou abstrata da democracia,
enquanto que a segunda é a opinião mediatizada pelo silogismo constitucional. Este, com
efeito, garante a representação orgânica de todas as opiniões. Os deputados que são os
membros das comunas e das corporações, defendem os interesses particulares da sociedade,
tornando-os universais, pois a representação orgânica expressa a vontade da opinião
particular, inserida no interesse geral. Hegel não é contra a democracia, mas ele é ainda
contra sua forma não racional. A democracia, fundada sobre a pessoa privada, permanece
na imediatidade dos interesses particulares e não se eleva ao universal. “A opinião, segundo
a qual todos devem tomar parte nos negócios do Estado, pressupõe, que todos têm o sentido
destes negócios, o que é uma opinião tanto absurda, quanto conhecida. Na opinião pública -
cf. § 316 - uma via é aberta a cada um pela qual ele pode expressar e fazer entender seu
ponto de vista pessoal sobre os negócios gerais” 2. Ora, a participação de todos nos
negócios públicos é garantida pela mediação política das relações que constituem a
1 . FdD, § 308 Obs.
2 . FdD, § 308 Obs.
134
sociedade civil, onde o universal não é uma adição de partes, mas o autodesenvolvimento
do todo, na estrutura mesma da particularidade.
Os deputados que compõem a “câmara baixa” são escolhidos por seu
conhecimento dos negócios públicos e por sua compreensão do que constitui o interesse
particular, por sua sensibilidade de entender de a representar “o lado móvel” da opinião
pública. Objeta-se, seguidamente, que Hegel é contra as eleições gerais e, portanto, que ele
é contra a democracia. É preciso ver a coisa de outro modo: sua preocupação é garantir uma
forma de participação de todos os membros da sociedade no seus negócios comuns,
segundo a organização efetiva desta sociedade. “Na medida em que, segundo a natureza da
sociedade civil, a deputação emana das diversas corporações - § 308 - e se a simplicidade
deste procedimento não é atrapalhada pelas abstrações e as representações atomísticas,
então as eleições se tornam qualquer coisa de supérfluo ou se reduzem a um simples jogo
da opinião e do arbitrário” 1. Seu discurso contra o sufrágio universal visa a garantir
participação mediatizada de todas as opiniões, o exercício da opinião subjetiva, na vida
política. Hegel quer uma forma de participação política, onde todos podem assegurar a
defesa dos interesses particulares, sem cair sob o controle de uma minoria, ou sob os
interesses contingentes da particularidade, que são, seguidamente, legitimados pelo jogo
das sondagens da opinião pública.
O bicamerismo concebido por Hegel tem como objetivo garantir a mediação de
toda decisão verdadeiramente política. Cabe à assembléia dos estados, a “câmara baixa”,
realizar o trabalho que consiste em mediatizar o “lado móvel” da opinião pública, ou
melhor ainda, a contradição da opinião da sociedade civil. A união da “câmara baixa” com
a “câmara alta” vai garantir que as diferentes instâncias que conduzem as deliberações
políticas possam concernir à opinião de todos os cidadãos. Este processo político que é o
resultado pensado de uma prática da liberdade, que elabora o conteúdo universal de toda
situação particular, garante as verdadeiras respostas às novas necessidades do mundo
1 . FdD, § 311.
135
moderno, evitando assim a tomada de decisões a favor da emoção da opinião pública ou de
uma circunstância passageira da atualidade política 1.
Com efeito, a exposição feita, até aqui, mostra que a mediação política da
liberdade de opinião se determina, inicialmente, através da liberdade da pessoa a dizer com
veemência e impaciência sua opinião, depois a liberdade do sujeito de afirmar segundo sua
consciência sua opinião, e enfim, a liberdade do cidadão que articula seu ato de opinar pela
mediação da esfera privada e política no espaço público. Ora, a mediação política
pressupõe o saber dialético da consciência e o movimento lógico da opinião pública, que
constituem juntos o estatuto teórico e prático da opinião, enquanto tal.
1 . D. Rosenfield. op. cit., p. 295-302.
136
- B -
O ESTATUTO TEÓRICO E PRÁTICO DA OPINIÃO PÚBLICA
Uma leitura superficial e rápida dos parágrafos 316 à 319 da Filosofia do
Direito, onde Hegel trata, especificamente, da opinião pública, poderá levar a concluir que
ele a tem desconsiderada, ao ponto de defini-la como qualquer coisa de irracional, não
efetiva e, portanto, condenada a ser desprezada e excluída do processo do conceito lógico-
político. Ao contrário, uma leitura que se quer séria compreenderá nestes parágrafos o
movimento de mediação e de efetivação da opinião pública, através dos momentos
fenomenológico, lógico e político. O conceito de efetividade - Wirklichkeit - mereceria uma
longa explicação por causa de sua complexidade, mas no quadro deste trabalho, nós nos
contentaremos de expor o seu sentido global.
Lê-se no prefácio da Filosofia do direito: “O que é racional é efetivo, e o que é
efetivo é racional”. Este aforismo exprime a posição do mundo como conceito pelo sujeito
racional. Dito de outro modo, o conceito consiste na exposição da marcha do mundo como
processo de totalização reflexiva, através do trabalho de deixar nascer o fundamento
essencial do mundo e não, simplesmente, no ato de sancionar o percurso do mundo ou de
não importa qual ordem empírica dada. O conceito, no seu movimento de tornar presente a
ele mesmo, é um crítica do que está lá como fixo ou morto. O movimento do conceito
engendra uma nova imediatidade pela mediação da opinião que é uma energia da
contradição através dos homens e das instituições, que utilizam o direito de se impacientar
e de criticar o que é simplesmente dado. A opinião imediata não é ainda a efetividade
desenvolvida; entretanto, isso não quer dizer que ela não pode tornar-se efetiva e, portanto,
racional. “A efetividade é a unidade da essência e da existência; nela a essência desprovida
da figura e o fenômeno inconsistente, ou o subsistir desprovido da determinação e a
variedade desprovida da susbsistência tem sua verdade” 1. A efetividade é a unidade posta
da reflexão e da imediatidade. Dito de outro modo, a essência se expôs no que é imediato,
1 . CdL, II, p. 227.
137
mas este imediato não tem ainda esboçado o movimento de agir sobre ele mesmo enquanto
é mediação. A efetividade é diferente da existência, pois leva em si mesma seu poder de
auto-efetivação. “O que é efetivo pode agir” 1. A efetividade não é o simples aparecer da
essência, mas o ato através do qual a reflexão se torna ativa na imediatidade do mesmo ser.
Ela realiza o processo de “suprassunção” da interioridade na exterioridade e vice-versa. A
efetividade tem seu próprio fundamento, agindo em si, uma vez que o movimento reflexivo
o habita. Assim, a reflexão é o ato de por o que deve sempre ser redesenvolvido, isto é, que
ela deve tornar-se ativa, negativa, produtiva. Tomar, conceitualmente, a realidade é o poder
de transformá-la em outra pela mediação que trabalha a imediatidade dada, efetivando-a,
conforme o seu conceito.
O real é aberto a múltiplas possibilidades e sua realização depende dos homens
e da consciência que a opinião pública tem de sua época. A vontade livre de opinar não é
fechada num determinismo imutável, mas ela se pensa e ela é capaz sempre de dizer ou de
opinar, diferentemente, sobre a realidade. “O que é efetivo é possível” 2 e portanto a
possibilidade é uma determinação da efetividade. A liberdade não é uma resignação diante
dos acontecimentos, mas a vontade consciente da opinião que faz aparecer a contradição no
interior da comunidade. A ação humana livre instaura o movimento da reflexão. Ao
contrário, a ação que não é livre, permanece prisioneira da não reflexividade, acomodando-
se à contingência das ações, dos costumes e das instituições que não querem ser livres ou
que não são ainda livres. A luta que a opinião pode instaurar, reúne as contradições de uma
época onde o inesperado das coisas é, então, também o inesperado da ação e da consciência
pública do espírito de um povo. O aspecto contingente da opinião aí tem sempre seu lugar.
A liberdade, neste sentido, é o respeito e o reconhecimento da contingência do ato de
opinar que é o movimento através do qual a necessidade do conceito se engendra na
imediatidade da opinião. “O contingente é um efetivo que ao mesmo tempo [é] determinado
somente como possível, cujo outro, ou o contrário também o é” 3. A contingência aparece
1 . CdL, II, p. 256.
2 . CdL, II, p. 249.
3 . CdL, II, p. 252-253.
138
entre a existência e a possibilidade para ela realizar-se como efetividade. A efetividade que
chega a si mesma, carrega em sua interioridade sua própria contingência. “O contingente
não tem, portanto, nenhum fundamento pela razão que ele é contingente; igualmente ele
tem um fundamento pela razão que ele é contingente” 1. O contingente pode ser o que ele
não é, enquanto que ele contém um fundamento. Isso é a contradição da opinião pública,
que busca a mediatizar-se através de seu outro - a efetividade - e que inscreve, portanto, a
opinião no movimento da reflexão. O que é contingente se torna desta maneira uma
determinação interior ao movimento de exposição da efetividade e, assim, a opinião é
mediatizada pelo fato que a efetividade desenvolve um processo de mediação da liberdade
formal, subjetiva e pública de opinar. A opinião não é qualquer coisa que deve ser
exorcisada, enquanto, aparece, imediatamente, como um fenômeno contingente e em
contradição. É graças a seu outro - os debates das assembléias dos estados, o poder
legislativo, a Constituição, o príncipe, etc. - que a contradição da opinião é inscrita no
movimento da reflexão e, portanto, no processo de mediação de seu fenômeno. Enfim, a
razão é um processo de criação pelo trabalho de aperfeiçoamento da imediatidade histórica.
Não se trata de legitimar, simplesmente, o que é imediatamente dado, através da opinião
pública, mas de elevá-lo à sua determinação lógico-política 2 começando pelo movimento
fenomenológico.
1 - A fenomenologia da opinião
A opinião pública é um fenômeno - Erscheinung -, diz Hegel que contém nela o
que é substancial e o que não é. Não quer dizer que a opinião não seja importante para o
livre funcionamento do Estado; ao contrário, a substancialidade se exprime lá sob uma
forma inadequada, pois a substância se engendra por um processo de determinação do
fenômeno. Não existe uma separação mecânica entre o que é essencial e o que não é, uma
1 . CdL, II, p. 253.
2 . D. Rosenfield. op. cit. p. 28-25.
139
vez que a essência se efetiva através da inessencialidade do fenômeno. Ora, sem a
expressão do fenômeno da opinião pública, faltaria ao Estado uma de suas determinações.
Um Estado não pode impor, simplesmente, aos cidadãos suas decisões, sem que estas aqui
sejam reconhecidas pela opinião. A opinião é crítica. Ela exige provas e a exposição das
razões, porque ela concretiza o princípio da liberdade subjetiva de opinar - cf. capítulo 2,
acima - que pede justificação de toda decisão concernente ao conjunto do corpo social. A
liberdade de expressão é menos perigosa que o silêncio forçado, pois ela é um fenômeno da
opinião que se enraíza nos costumes do mundo moderno.
Apresentemos os momentos da opinião pública na sua consciência
fenomenológica ou enquanto fenômeno:
a) A consciência do fenômeno da opinião, enquanto conteúdo verdadeiro.
A consciência da opinião pública na sua imediatidade é uma liberdade formal,
contendo “em si os princípios substanciais e eternos da justiça” e “o conteúdo verdadeiro
em si”. Ela já contém o conteúdo verdadeiro, enquanto resultado concreto desenvolvido na
Constituição, na legislação e, em geral, na situação universal, isto é, na sociedade. A
consciência possui o objeto verdadeiro em si, enquanto princípio abstrato, e por si, como
resultado substancial. O indivíduo, como pessoa, faz a experiência da liberdade que se
apropria do conteúdo de seu mundo, ele aí se interessa e quer o Bem. O cidadão dispõe da
liberdade pública em todas as esferas e sua voz é respeitada, como portadora de um
conteúdo divino, assim que a considera e a reconhece o adágio “Vox populi, vox Dei” 1.
b) A consciência do fenômeno da opinião sob a forma do bom senso.
A opinião compreende o mundo ou o objeto público sob a forma da
consciência imediata ou do bom senso. Esta forma manifesta o conteúdo verdadeiro da vida
ética, as necessidades verdadeiras e as verdadeiras tendências da efetividade a começar
pelos prejuízos. Dito de outro modo, a opinião pública é aqui o ato de perceber e de
entender o imediato do objeto público, como um jogo de forças contraditórias. O conteúdo
do fenômeno da opinião pública entra na consciência, e esta o exprime aqui, ao nível da
1 . FdD, § 317 Obs.
140
representação. A forma da representação 1 é a contingência de opinar: ela é suscetível de
desvios e de julgamento falso a respeito de acontecimentos, de necessidades sentidas ou de
ordens ou de situações do Estado. O caráter próprio da consciência imediata é o conteúdo
particular, e é opinando, a partir disso que ela estabelece um mau julgamento. Ao contrário,
o racional tem como conteúdo o universal em si e por si, é, portanto, uma consciência
mediatizada.
Aqui Hegel utiliza um adágio do pensamento subjetivo, para explicar a forma
contingente e representativa da opinião pública. “O vulgar ignorante retoma todo o mundo
e fala mais daquilo que ele menos entende” 1. O vulgar ignorante tem seu modo de julgar o
mundo. Em geral ele tem uma tendência a fazer julgamentos universais e a falar de assuntos
que ultrapassam seu domínio próprio. A figura que Hegel utiliza, ilustra bem o caráter
contingente da opinião pública que é a falta de saber, isto é, a ignorância dos negócios
públicos ou da realidade. Nessa situação de falta de saber objetivo, a tendência do
julgamento não pode ser senão subjetiva, particular e interior.
A consciência da opinião pública emite as reações particulares nas proposições
gerais: “O vulgar ignorante retoma todo o mundo”. Essas proposições gerais podem ser
elaboradas, em parte, pelo sujeito mesmo. Ou bem elas são elaboradas a partir da
objetividade; a partir de dados da realidade, das necessidades sentidas, das disposições e
das situações políticas. Essas são, portanto, as proposições gerais, formuladas pela opinião
pública e elaboradas pelo sujeito, face ao objetivo imediato. Sob essas proposições gerais,
descobre-se toda a contingência da opinião, isto é, sua falta de saber. Os julgamentos
errôneos, o fato de ver as coisas ao inverso são também uma conseqüência da contingência
e da falta de saber. Todo o problema é que a consciência, o pensamento ou o conhecimento
tem, como conteúdo, a opinião particular e a individual. “O que é mau é o que é de fato
particular e individual no seu conteúdo. Pelo contrário, o que é racional é universal em si e
1 . “ A representação é, para a inteligência, isso que é seu, ainda ligado a [uma] subjetividade unilateral,
enquanto que esse seu é ainda condicionado pela imediatidade, que não é, nele mesmo, o ser”. Enc., I, § 451,
p. 246. “As diversas formas do espírito que existem ao nível da representação são habitualmente […] olhadas
como forças ou faculdades isoladas em sua singularidade, independentes umas das outras”. Enc., I, Ad. § 451,
p. 553.
141
por si, e o que é individual é isso donde a opinião tira a vaidade” 2. As proposições gerais
da opinião pública têm, por conteúdo, o particular e o individual. As proposições gerais da
opinião pública não são, portanto, universais, por causa de sua falta de saber e de sua
contingência.
A fenomenologia da opinião expõe a experiência da liberdade da consciência,
enquanto contradição entre o conteúdo e a forma. A opinião é constituída por um conteúdo
verdadeiro ou uma “base ética” - sittliche Grundlage - que se funde sobre o solo dos
costumes e dos hábitos éticos. Esse fundo substancial, esse conteúdo verdadeiro é o
resultado das determinações da liberdade formal, da liberdade subjetiva e da liberdade
pública de opinar, que contém a esfera social, econômica e política na vida orgânica do
Estado. O conteúdo da opinião pública em si - “os princípios substanciais eternos da
justiça” - e por si - “a base ética”: os costumes, os hábitos, a Constituição, a legislação -
merece a esse nível, de ser reconhecido, como uma voz divina, conforme diz o adágio - Vox
populi, vox Dei -.
Mas, ao conteúdo verdadeiro da opinião pública, opõe-se uma forma falsa ou
contingente. A opinião expressa as “verdadeiras necessidades” ou as “justas tendências”, a
saber, as linhas fundamentais da evolução econômica e histórica da vida política, o
conteúdo profundo e substancial sob a forma do bom senso ou da representação. “Não é,
portanto, simplesmente, do fato da imperícia dos indivíduos - incapazes imediatamente de
uma posse racional e levados nas “raciocinações” - que a opinião pública é “contingente”
na forma da sua manifestação, mas porque a posse ou a presença de seu conteúdo no povo,
não pode aparecer, ao menos inicialmente, que no estado de prejuízos ou “sob a forma de
proposições gerais” - allgemeine Sätze - limitadas a esfera da representação - Vorstellung -”
3. A manifestação imediata da opinião pública é o fenômeno de aparição da oposição
“forma-conteúdo” que, logicamente, se traduz pela contradição do universal e do particular.
1 . FdD, § 317, Obs., nota 63.
2 . FdD, § 317.
3 . Bernard Mabille. O poder. Hegel e o poder da opinião pública. Paris, Vrin, 1994, p. 192.
142
2 - A lógica da opinião
A opinião pública é um fator importante da liberdade formal subjetiva dos
cidadãos. Os indivíduos tem o direito de formular seu julgamento particular sobre o
universal, como expressão de sua liberdade subjetiva. A opinião pública não é a verdade
política absoluta, mas ela guardará, sempre, a força da impaciência, para desestabilizar toda
reificação histórica dada, pois o que move o mundo, é a contradição, 1 e a opinião pública,
ela mesma, é uma contradição, que torna efetiva a paciência do conceito. “A liberdade
subjetiva, formal [que consiste nisso] que os singulares como tais, têm e exprimem seu
julgamento, opinião e conselho próprios a respeito dos negócios universais, tem seu
fenômeno no Conjunto que se chama opinião pública. O universal em e por si, o substancial
e verdadeiro, aí está ligado a seu contrário, o [ elemento] característico e particular do
opinar do grande número; esta existência é por conseguinte a contradição dela mesma
presente ali, o conhecer como fenômeno; a essencialidade tão imediata quanto à
inessencialidade” 2.
Nós temos, neste parágrafo, duas partes: uma que se refere aos momentos da
opinião e outro que mostra seu estatuto lógico, isto é a contradição. O conceito hegeliano
da opinião pública é claro: ela é a liberdade formal e subjetiva de os indivíduos
expressarem seu próprio julgamento, opinião e ponto de vista sobre os negócios públicos.
Ora, o que é a liberdade formal e subjetiva? Quando ele enumera as diferentes formas da
vontade, Hegel escreve: “Na medida em que a determinidade é a oposição formal do
subjetivo e do objetivo, como existência exterior imediata, é a vontade formal enquanto
consciência de si. Esta vontade formal, encontra diante dela um mundo exterior e, enquanto
1 . Cf. Enc., I, Ad., § 119, p. 555.
2 . FdD, § 316. Citado a partir da tradução de Labarrière-Jarczyk, op. cit., p. 205. Nós citamos também o texto
original deste parágrafo, por causa de sua importância capital para o conceito da opinião pública junto a
Hegel: “Die formelle, subjektive Freiheit, dass die Einzelnen als solche ihr eignes Urteilen, Meinen und Raten
über die allgemeinen Angelegenheiten haben und äussern, hat in dem Zusammen, welches öffentliche
Meinung heisst, ihre Erscheinung. Das an und für sich Allgemeine, das Substantielle und Wahre, ist darin mit
seinem Gegenteile, dem für sich Eigentümlichen und Besonderen des Meinens der Vielen, verknüpft; diese
Existenz ist daher der vorhandene Widerspruch ihrer selbst, das Erkennen als Erscheinung; die
Wesentlichkeit ebenso unmittelbar als die Unwesentlichkeit”.
143
singularidade, retornando ao interior de si na determinidade, é o processo que, por
mediação da atividade e de um meio, traduz o fim subjetivo em objetividade” 1. A liberdade
formal é imediata e exterior. Aqui, ela depende do entendimento e não é especulativa. A
vontade formal é o fim e a realização deste fim, mas este é, inicialmente, qualquer coisa
que nos é interior, subjetivo, mas ele deve torna-se objetivo, rejeitar o que falta à
subjetividade. A vontade formal traduz, então, o fim subjetivo em objetividade. Neste nível,
a relação da consciência a qualquer coisa de exterior imediato não constitui, senão o lado
fenomenal da vontade. A opinião pública como liberdade formal subjetiva, manifesta-se
neste nível exterior imediato e fenomenal, isto é, manifesta sua subjetividade em
objetividade. Ela se objetiva através do julgamento e do ponto de vista imediato, o qual
pronuncia uma opinião subjetiva sobre o universal. É a vontade livre que mediatiza o
objetivo e o subjetivo, e realiza a unidade da liberdade formal e subjetiva com o objeto
público. Nós temos amplamente desenvolvido esses momentos da liberdade formal e
subjetiva do opinar. Também reenviamos às partes 1 e 2 de nossa exposição.
Em segundo lugar, a matriz lógica da opinião pública, apresentada pelo
parágrafo 316, é a contradição. Nós aí descobrimos quatro indicações que reenviam à
Doutrina da Essência. Os dois primeiros concernem ao fenômeno contraditório da opinião.
O conteúdo do “universal em e por si, o substancial e verdadeiro é ligado a seu contrário”; a
opinião é “esta existência por conseguinte a contradição dela mesma presente aí”. As duas
primeiras indicações mostram a relação entre a essência e sua aparição: a opinião é “o
conhecer, enquanto fenômeno” e “a essencialidade tão imediata quanto à inessencialidade”.
A opinião é uma maneira particular para a essência de manifestar-se, como nós o temos
mostrado na fenomenologia da opinião.
Os momentos lógicos, enquanto contradição, são tratados na Ciência da Lógica,
mas nós vamos recordar, brevemente, este processo lógico, em relação com o parágrafo
316. A contradição como categoria é a analisada na Doutrina da essência no capítulo que
1 . FdD, § 8.
144
trata das determinações da reflexão: a identidade, a diferença e a contradição 1. Essas
determinações não são, somente, as categorias formais, mas o processo mesmo do ser como
essência. A contradição é uma relação dialética, mas é, inicialmente, a oposição, a saber o
universal ligado à opinião particular do grande número. Com efeito, o oposto permanece na
situação de dispersão na imediatidade, ou falta de reflexão em si, característico da
diversidade das opiniões da massa. As opiniões opostas tornam-se uma oposição verdadeira
da diversidade e da diferença. Então, a diferença está na medida de desenvolver sua
virtualidade como contradição real 2. A oposição se estabelece entre o conteúdo substancial
da opinião e sua expressão contingente. A determinação da oposição, em direção à
contradição significa que os dois elementos passam da tensão exterior à interiorização,
outrossim, cada termo interioriza seu contrário e todos os dois são os momentos de uma
mesma reflexão. Ora, a oposição entre a forma e o conteúdo da opinião pública é uma
contradição entre o conteúdo substancial e a forma contingente de sua expressão. É preciso
dizer, que ela não é uma pura irracionalidade, pois ela existe como a exteriorização sob a
forma da representação de um conteúdo em si substancial e verdadeiro.
A opinião pode ser descrita como a relação entre a essência e sua aparição.
Hegel, no início da Doutrina da essência, apresenta a dialética do essencial e do
inessencial 3, depois aquela da essência e do fenômeno
4. O processo dialético é
semelhante, levando em conta que, na primeira, a dialética se estabelece no interior da
essência e, na segunda, a relação concerne à essência e sua exteriorização. Com efeito, o ser
em sua imediatidade pressupõe, como sua própria interioridade, a essência. Esse fundo
essencial está no interior do ser mesmo. O ser, a respeito da profundidade da essência, é
como um inessencial, uma aparência vazia de essência, mas esta aparência é o aparecer da
essência mesma 5. Quando se passa da identidade da reflexão essencial à sua exteriorização,
1 . CdL, II, p. 69 s.
2 . André Doz. A lógica de Hegel e os problemas tradicionais da ontologia. Paris, Vrin, 1987, p. 97.
3 . CdL, II, p. 9.
4 . Id., p. 145.
5 . Id., p. 9-17.
145
isso não é mais uma aparência - Schein - que se tem, mas isso é o fenômeno - Erscheinung.
Aqui, o fenômeno não é uma ilusão, mas o aparecer da essência 1.
A partir de lá, pode concluir-se que o conteúdo essencial da opinião pública
aparece sob uma forma inessencial. A opinião pública, por exemplo, que toma posição em
relação às reformas sociais, conhece, freqüentemente, só algumas das medidas propostas
pelo governo e ela se opõe e faz declarações, no momento do contexto imediato da
sociedade. Essas são as inessencialidades da opinião, enquanto parecer e aparecer de fundo
essencial. Elas não são, portanto, um simples não-sentido. A opinião pública, neste caso,
não é somente verdadeira por acidente, mas é verdadeira por essência, enquanto ela
constitui o fundo das inessencialidades de seu parecer. Podemos, portanto, perguntar se a
opinião pública do ponto de vista político, uma vez perfeitamente expressa, manifesta,
segundo a forma verdadeira, a essência mesma que a constitui? Ou bem, logicamente, a
opinião pública permanece sempre uma contradição não resolvida?
A determinação lógica da opinião pública é a contradição, e conforme já
apresentamos acima, Hegel não abandona a opinião à sua finitude e à sua contingência. Ao
contrário, seguindo com coerência seu caminho lógico, ele reconhece a racionalidade
específica da opinião, no processo de mediação lógico-político da Filosofia do Direito. A
mediação lógica da opinião se efetiva através da idéia de comunicação dialética, enquanto a
mediação política se determina pela Constituição, a publicidade dos debates parlamentares,
o poder legislativo - cf. acima 3.4, “os espaços públicos da opinião” - determinam-se em
última instância através “da subjetividade como idêntica ao querer substancial”, dito de
outro modo, através da vontade do príncipe, e isso nós vamos mostrar depois. As duas
mediações são coextensivas, uma reenvia à outra, pois a mediação lógica se opera pela
participação política dos cidadãos, nas instituições da “substância ética”, e por sua parte a
mediação política da opinião pública obedece à efetivação lógica dos momentos do
conceito.
1 . Id., p. 145-147.
146
A lógica da opinião pública é, portanto, a contradição, pois o universal em si e
por si, o substancial e o verdadeiro, encontram-se ligados, ao seu contrário, o elemento
próprio e particular da opinião da multidão. O universal se encontra inicialmente “ligado” a
seu contrário o particular. Esse verbo “ligar” denota uma relação exterior, imediata e
mecânica, cuja razão de ser se torna uma relação contraditória. Esta ligação contraditória
universal-particular é inorgânica. Ela revela um nível de conhecimento da ordem da
representação ou do entendimento, portanto não ainda chegado à efetividade racional. Para
que ela se torne uma ligação orgânica - entre o universal do Estado e o particular da opinião
da multidão - e portanto um conhecimento verdadeiro, a ação da Constituição é necessária.
“A opinião pública é o modo orgânico pelo qual um povo faz saber o que ele quer e o que
ele pensa. O que pode representar um papel efetivo nos negócios do Estado deve, sem
nenhuma dúvida, agir de um modo orgânico e isso é o caso na Constituição” 1. A influência
sobre os negócios do Estado é somente possível por uma ação orgânica. Ora, isso é a
Constituição que dá a força orgânica ao Estado. “Essas instituições são os elementos cujo
conjunto forma a Constituição - isto é a racionalidade desenvolvida e realizada - na esfera
da particularidade. Elas são, em seguida, a base sólida do Estado, da confiança, da
disposição do espírito dos indivíduos a respeito do Estado, enfim, os pilares da liberdade
pública, pois nelas a liberdade particular é efetiva e racional” 1. O que constitui a realidade
efetiva do Estado, segundo Hegel, é o sentimento que os indivíduos têm de si mesmos, e
sua solidez vem da identidade dos dois fins: o universal e o particular. A inorganicidade
contraditória da opinião pública pode, portanto, encontrar sua organicidade na Constituição,
pois a Constituição realiza a identidade dos dois fins, o universal e o particular.
A Constituição realiza a distribuição do poder estatal entre diversos poderes.
Ela contém as determinações tais que, de uma parte, ela permite à vontade racional - que
nos indivíduos, não era senão a vontade geral em si - de chegar a consciência e à
determinação dela mesma; de outra parte, graças a ação do governo e de seus diferentes
ramos, de ser posta e mantida, sendo protegida, ao mesmo tempo, contra a subjetividade
1 . FdD, § 316 Ad.
147
contingente da ação governamental e a subjetividade dos indivíduos 2. Nós podemos dizer
que a opinião pública é, como uma vontade geral em si, que permanece ainda dividida entre
o universal e o particular das múltiplas opiniões inorgânicas e da subjetividade dos
indivíduos. A Constituição é a justiça viva, a liberdade efetiva que vai permitir o
desenvolvimento de todas as determinações racionais. Para o que é da opinião pública, a
Constituição, através das instituições dar-lhe-á a organicidade necessária para influenciar os
negócios do Estado e, assim, tornar-se uma determinação racional.
Antes da época moderna, sobretudo, mas mesmo até agora, era possível de
influenciar os negócios do Estado ou os poderes das instituições: pela força, pela violência,
ou ainda pelo costume e pelos hábitos. Hoje, diz Hegel, isso não é mais possível, porque,
em nossa época, o princípio da liberdade subjetiva tem uma grande importância e uma
grande significação. O que aumenta a importância da opinião pública e lhe dá um poder
considerável em nosso tempo, é, justamente, a valorização do princípio da liberdade
subjetiva. Ora, a liberdade subjetiva é a vontade ainda em si, a vontade imediata ou natural,
que postula um conteúdo imediatamente presente. Mas esse conteúdo, com suas
determinações ulteriores, não pode provir a não ser da racionalidade da vontade. Pois a
liberdade subjetiva sob esta forma da imediatidade, não atinge ainda a forma da
racionalidade 3. Mesmo se a opinião pública ganhe hoje força pela importância dada à
liberdade subjetiva, ela permanece ainda ao nível imediato e inorgânico. Se hoje a opinião
pública se constitui para determinar os negócios públicos, segundo um critério mais válido
que a violência ou a simples tradição do costume ou dos hábitos, o que, em última
instância, deve determinar sua ação orgânica, é a inteligência e a existência de sólidas
razões. Assim, é preciso referir-se à Constituição: esta aqui é a racionalidade desenvolvida
e realizada.
Em si mesmo a contradição da opinião pública não chega sozinha a uma clara
consciência de si, pois a diferença entre forma e conteúdo da opinião, continua a esconder o
1 . FdD, § 265.
2 . Cf. FdD, § 267 Ad.
3 . Cf. FdD, § 11.
148
essencial no movimento mesmo, onde ela se manifesta. Se nós reconhecemos esta
inadequação entre forma e conteúdo da opinião, isso não significa seu abandono ao
irracional, pois a opinião pública é racional, enquanto representação. E isso corresponde ao
momento do entendimento do conceito mesmo da opinião. O fundamento desta
representação da opinião pública busca-se no conflito das opiniões do entendimento com
elas mesmas. É verdade que a reflexão ultrapassa o imediato concreto e se separa dele
determinando-o, mas é preciso ser capaz de colocá-los em relação. Ora, é durante o colocar
em relação que nasce o conflito das opiniões. A elevação acima destas opiniões, que
chegam à “intelecção de seu conflito, é o grande passo negativo em direção ao verdadeiro
conceito da razão”. O entendimento das opiniões é a razão que entra em contradição
consigo. A razão reconhece que a contradição é o ato de elevar-se acima das limitações do
entendimento. O conhecimento da opinião pública descobre o que aparece no interior da
esfera do fenômeno, mesmo se isso não é a razão ou o verdadeiro em si. Tudo isso quer
dizer que a opinião conhece o fenômeno público enquanto entendimento racional. O nível
de conhecimento atingido, pela opinião já é da ordem da determinação do conceito da
razão, isto é, a razão se encontra colocada lá como entendimento: essa é a dimensão
racional do entendimento do fenômeno da opinião 1.
Mas a contradição da opinião pública - no seu elemento universal e particular -
vai manifestar seu conteúdo em formas diferenciadas, que são, se nós podemos dizer, as
duas tendências da mesma opinião. Onde está então a verdade da opinião pública?
1 . CdL, II, p. 14-15.
149
3 - O político da opinião
Os dois adágios: Vox populi, vox Dei e o vulgar ignorante retoma todo o mundo
e fala mais do que ele entende menos, encontram-se, ao mesmo tempo, misturados na
opinião pública, isto é, o conteúdo verdadeiro da vox populi está ligado à forma contingente
e à sua falta de saber, segundo as duas citações de Aristóteles e de Goethe 1, que chama a
opinião à humildade. A opinião pública contém em si a ambigüidade da verdade e do erro,
unidas estreitamente, de tal modo, diz Hegel, “que não se pode tomar verdadeiramente a
sério uma ou outra de suas afirmações”. Não se pode tomar a sério nem a afirmação
verdadeira nem aquela que é errada, se “tomarmos a expressão imediata da opinião
pública”. Na sua expressão imediata, a opinião pública não é séria, pois sua forma é um
parecer da essência. Mas ela contém os princípios substanciais, o conteúdo essencial e
verdadeiro da base ética. “O substancial é o que constitui seu elemento interno, é ele,
somente, o que existe de sério nela”. O que é o substancial? O substancial é a vida ética que
se exprime na família, na sociedade e no Estado 2. Ora, o substancial “não pode ser
conhecido, segundo a opinião pública, porque o que é substancial é o que não pode ser
conhecido senão a partir dele mesmo e por ele mesmo”. Assim, o substancial constitui o
elemento interno da opinião pública, mas não pode ser conhecido conforme a opinião
pública, pois o substancial não pode ser conhecido senão em si e por si mesmo, isto é, o
substancial é conhecido na mediação das determinações da vida ética.
Em todo caso, não se encontra na opinião pública somente o determinante sério
ou o critério verdadeiro, permitindo esclarecer uma medida a tomar ou uma decisão.
“Qualquer que seja o caráter apaixonado de uma opinião, qualquer que seja a seriedade
com que se afirme, ataque ou combata, isso não constitui um critério que permita decidir
1 . “Quando a massa pode pressionar/ Ela é então respeitável: / Logo que ela quer julgar, isso é lamentável”!
Id. Goethe. Poesias, “Sprichwörtlich”, verso 398-400, citado segundo FdD, § 317, Obs. P. 318. Labarrière-
Jarczyk traduzem: “A massa pode aprovar - Zuschlagen kann die Masse - / Lá ela é respeitável: julgar, ela aí
chega de modo miserável”. O silogismo do poder. Paris, Aubier, p. 207. 2 . Cf. Enc., III, § 487, p. 285.
150
que se tem efetivamente a fazer” 1. A opinião pública tem, aparentemente, um caráter de
seriedade na sua maneira de aparecer, “mas esta opinião não se deixa jamais convencer de
que sua seriedade aparente não é a seriedade verdadeira” 2, ou o conteúdo substancial.
Aqui, nós tocamos a questão da utilização da opinião pública. Nós sabemos que
as pessoas se baseiam sobre a opinião pública, para tomar decisões, fazer escolhas políticas,
elaborar medidas administrativas, guiar o destino de um Estado, declarar ou parar a guerra,
enfim, em todo domínio dos negócios públicos. Ora, como é possível utilizar, enquanto um
critério verdadeiro esta opinião, que não tem senão uma seriedade aparente, sob sua forma
contingente, então que seu fenômeno é somente uma aparência do conteúdo verdadeiro que
ela contém?
Se levarmos em conta as afirmações acima, como a opinião pública pode
constituir-se em critério para governar um povo? Como é possível utilizar a opinião
pública, enquanto critério de tomada de decisão na conduta de um Estado? Hegel se mostra
mais incisivo ainda, quando lembra a questão que Frederico II colocou na ocasião do
concurso da Academia de Berlim em 1778: “Pode ser útil enganar um povo”? 3 Hegel
retoma esta mesma questão e a formula assim: “É permitido enganar um povo”? Nós
constatamos que as duas questões se colocam a propósito da opinião pública. Mas elas são
diferentes na sua formulação, pois a primeira pergunta “se pode ser útil” e a segunda “se é
permitido” enganar um povo. A primeira questão coloca o problema da estratégia política.
É certo que para um político, o recurso a opinião pública ou a sondagem da opinião podem
ser muito úteis para guiar o povo. Mas a segunda questão, formulada por Hegel, coloca o
problema ético-político: ele pergunta se é permitido de enganar um povo.
“Dever-se-ia responder, escreve ele, que um povo não se deixa enganar sobre
seu fundamento substancial, sua essência e o caráter determinado de seu espírito, mas no
modo como ele conhece esse fundamento, na maneira que ele julga seus atos e os
1 . FdD, § 317, Obs.
2 . FdD, § 317, Obs.
3 . Segundo R. Derathé é esta questão que Frederico II colocou neste concurso. FdD, nota 64, p. 319.
151
acontecimentos de sua história etc., ele é enganado por ele mesmo” 1. A primeira conclusão
importante de Hegel é que um povo não se deixa enganar neste nível: sobre o fundamento
substancial, sua essência e o caráter determinante de seu espírito. Um povo não se deixa
enganar sobre seu fundamento substancial, na medida em que ele se mediatiza através das
determinações da vida ética. Um povo não se deixa enganar sobre sua essência e o caráter
determinado de seu espírito - “bestimmten Charakter seines Geistes” -. Ora, “o caráter
determinado do espírito” é o espírito do povo. “Na história, o espírito é um indivíduo de
uma natureza ao mesmo tempo universal e determinada: um povo; e o espírito com qual
nós temos relação é o espírito do povo” - Volksgeist - 2. O espírito dá a si mesmo uma
forma concreta no mundo e a matéria desta encarnação, o solo sobre o qual ela se enraíza é
a consciência geral, a consciência de um povo. Esta consciência contém e orienta todos os
fins e os interesses do povo; constitui seus costumes, seu direito, sua religião, sua opinião
pública etc. Ela forma o fundamento substancial ou a base ética do espírito de um povo. E
mesmo se os indivíduos não são conscientes, esta consciência geral pública permanece
como sua pressuposição. O indivíduo é formado neste ambiente, é rodeado e educado pelo
espírito de um povo e ele existe neste fundamento substancial 1. O espírito de um povo
determinado contém uma história no interior dele mesmo. Um povo não se deixa enganar
sobre sua essência histórica, com a condição de conhecê-la ou ter consciência da mesma. Se
o indivíduo vive inserido no espírito de seu povo e se tomou consciência de sua história ele
não se deixa enganar pela manipulação de uma opinião pública fabricada ou imposta por
sondagem ou por qualquer outra coisa. Se o indivíduo tem consciência do espírito de seu
povo, ele saberá “dizer não” e ele resistirá a toda mentira daqueles que querem aproveitar-
se da opinião pública para enganá-lo.
A segunda conclusão da observação do parágrafo 317 é que um povo não é
enganado por um terceiro ou por qualquer coisa de exterior a ele: ele engana a si mesmo.
Em que sentido ele engana a si mesmo, ou quando ele pode enganar-se a si mesmo? O povo
1 . FdD, § 317, Obs.
2 . Hegel. A razão na história. Trad. De Kostas Papaioannou. Paris, Ed. 10/18, 1993, p. 80. Cf. também Enc.,
III, § 548, p. 326.
152
pode ser enganado por si mesmo, dependendo do modo como ele julga seus atos e os
acontecimentos de sua história, isto é, na medida em que ele não é capaz de desenvolver no
interior de si mesmo sua consciência histórica. Enfim, um povo pode ser enganado por si
mesmo, quando ignora seus fundamentos e sua história.
Se o povo não se deixa enganar sobre seu fundamento substancial, como agir
sobre a opinião pública? A adição ao parágrafo 317 fala da satisfação produzida pelo
reconhecimento que pode advir da expressão da opinião pública - cf. acima 3.3, item “b”:
“O reconhecimento da opinião pública” -. “O princípio do mundo moderno exige isso: cada
um deve aceitar o que lhe apareça como algo de justificado e verificado. Mais ainda, cada
um pretende tomar parte na discussão e no debate aos quais esta verificação tem lugar. Uma
vez que cada um terá dito sua palavra e tomado sua parte de responsabilidade, ele aceitará
bem as decisões, pois sua subjetividade será satisfeita” 2. No mundo moderno o cidadão
quer participar na discussão e no debate, ele quer dar sua opinião num duplo sentido: o
cidadão participa, dizendo sua palavra e exercendo sua responsabilidade. Então, ele se sente
satisfeito, isto é, reconhecido. “No Estado, são o espírito do povo, o costume ético, a lei que
dominam. Então, o homem é reconhecido e tratado como ser racional, como livre, como
pessoa; e o [indivíduo] singular, de seu lado, se torna digno deste reconhecimento, por isso,
que ele obedece, superando a naturalidade de sua autoconsciência, em direção ao universal,
à vontade que é em e por si, à lei, - que ele se conduz assim a respeito dos outros de uma
maneira universalmente válida, - que ele os reconhece como isso, para o qual ele quer, ele
mesmo, passar, como livres, como pessoas” 3. Do que foi exposto, resulta, que o combate
para o reconhecimento constitui um momento necessário no desenvolvimento do espírito
humano, qualquer que seja seu nível. Aqui se trata do reconhecimento, através da livre
expressão na opinião pública.
Hegel refere-se ao exemplo da França, onde, conforme seu ponto de vista, a
liberdade de expressão se mostrou sempre menos perigosa que o silêncio imposto. O
1 . Id., p. 81.
2 . FdD, § 317, Ad.
3 . Enc., III, Ad. § 432, p. 533.
153
silêncio forçado “pode com efeito, fazer temer que se guarde para si as críticas que podem
suscitar um certo estado de coisas; então, deixando a cada um a liberdade de expor suas
razões, encontra-se um caminho de saída e uma certa satisfação, que permitem, por sua vez,
aos negócios continuarem mais facilmente seu caminho” 1. A liberdade de expressão dos
cidadãos como meio de expor suas razões e suas opiniões sobre os negócios públicos tem
um duplo resultado: o cidadão encontra a satisfação, ou bem o reconhecimento e ao mesmo
tempo ele ajuda a buscar uma saída para os negócios públicos para que eles possam seguir
normalmente seu desenvolvimento. A autoridade não deve ter medo da opinião pública sob
pretexto de que as críticas podem suscitar um certo estado desfavorável das coisas ou
desestabilizar o poder reinante. Ao contrário, a liberdade de expressão, segundo Hegel,
tomando o exemplo da França, é menos perigosa que o silêncio forçado.
Ao final das contas, qual é a posição política propriamente dita que Hegel
preconiza em relação à opinião pública?
Ele responde, sem ambigüidade: a independência. É a primeira condição formal
necessária, para que se possa realizar qualquer coisa no domínio da ação como naquele da
ciência. “A independência, a seu respeito, constitui a primeira condição formal necessária à
realização de qualquer coisa de grande e de racional no domínio da ação, como naquele da
ciência, pois ela não contém em si o critério da distinção - Unterscheidung - e ainda menos
a possibilidade de elevar em si o lado substancial, ao nível de um saber determinado” 1.
Como deve ser compreendida esta posição de independência? Em dois sentidos: é preciso
ser capaz de apreciar e de desprezar a opinião pública. Esta merece “ser desprezada em
razão de sua consciência e de sua expressão concreta”. A consciência da opinião expressa o
conteúdo substancial sob forma de proposições, ao nível da representação: isso é a
expressão da contingência da opinião, de sua aparência de saber, de sua tendência a ver as
coisas imediatamente e a partir dos julgamentos do entendimento. O grande homem ou o
príncipe, como se verá, não se deixa desviar pela variação da opinião, de suas tendências,
pois a decisão política não é tomada na rua. A independência da decisão, evidentemente,
1 . FdD, § 317, Ad.
154
exige mediações, a fim de evitar o jogo dos interesses somente particulares ou a
instabilidade das reivindicações sócio-econômicas, emanando de indivíduos ou de grupos
de interesses mais ou menos instáveis 2.
De um outro lado, a opinião pública merece ser apreciada ou honrada, “por
causa de seu fundamento substancial que aparece, somente, de uma maneira mais ou menos
confusa neste elemento concreto”. A opinião pública assimila os princípios substanciais, o
conteúdo verdadeiro e os resultados da Constituição, da legislação e da sociedade sob a
forma do bom senso humano. Mas esse fundamento substancial aparece de uma maneira
mais ou menos confusa na opinião pública, pois o verdadeiro e o falso aí se misturam e ela
não contém o critério de discernimento nem a possibilidade de elevar seu conteúdo
substancial ao nível de um saber determinado, ou, um saber que seja capaz de mediatizar a
forma e o conteúdo ou o universal e o particular. Como encontrar, portanto, um critério
definido, para esclarecer seu conteúdo verdadeiro? Quem é capaz de elevar o saber da
opinião à verdade que ela contém e lhe dar uma forma que corresponda a seu conteúdo?
Quem pode mediatizar, portanto, a opinião pública?
O grande homem é capaz de descobrir a parte de verdade que contém a opinião
pública. “O grande homem de sua época é aquele que expressa o que quer seu tempo e o
realiza. Pelo que faz, ele expressa o fundo e a essência de seu tempo e as realiza. Aquele
que não é capaz de desprezar a opinião pública, tal qual se ouve aqui e lá, não realizará
jamais nada de grande” 3. Hegel expôs antes que, em política como em ciência, é preciso
não deixar-se, imediatamente influenciar pela opinião pública, caso contrário não se criaria
nada de verdadeiramente grande, iria permanecer-se como cativo de prejuízos ou de
proposições gerais, o que não responde à condição formal necessária do racional e, ao
mesmo tempo, é preciso levar em conta a racionalidade que ela comporta. Ora, este é o
grande homem que é capaz de realizar esta condição racional. Mas, quem é o grande
homem?
1 . FdD, § 318.
2 . B. Mabille. op. cit., p. 198.
3 . FdD, § 318 Ad.
155
Hegel tem, inicialmente, utilizado a palavra “herói” para designar o fundador
do Estado 1. Mas o herói não aparece senão na fundação dos Estados, isto é antes do início
da história? Não, uma vez que a marcha da história, esta luta dos princípios encarnados nos
povos continua de agora em diante sob o estandarte daqueles que ele chama os grandes
homens. O grande homem é portanto o herói dos tempos modernos, aquele que exprime o
que seu tempo quer e o realiza. Ele é grande, porque ele realiza o que é, objetivamente,
segundo o conceito racional da liberdade, pois ele exprime a essência de seu tempo e a
realiza 2. O grande homem torna efetivos os princípios substanciais e desenvolve as
exigências do espírito do tempo. “Na ponta de todas as ações, e também das ações
históricas, encontram-se indivíduos, ou subjetividades que tornam efetivas a realidade
substancial. Para essas formas vivas da ação substancial do Espírito do mundo e, por lá,
imediatamente idênticas a esta ação, esta permanece uma coisa escondida que não é nem
seu objeto nem seu fim; ela não lhe vale nem honra nem gratidão, tanto da parte de seus
contemporâneos, quanto na opinião pública da posteridade, mas isso só enquanto
subjetividades formais que elas poderão receber, junto desta opinião, sua parte de glória
imortal” 3.
Uma frase polêmica conclui a adição do parágrafo 318: “Aquele que não é
capaz de desprezar a opinião pública, tal qual ela se faz ouvir aqui e lá, não realizará jamais
nada de grande”. Segundo a afirmação anterior, a opinião pública merece desprezo, em
razão de seu aspecto subjetivo e de sua expressão contingente. O grande homem saberá
desprezar esta opinião pública, e, ao contrário, valorizará o que exprime o fundamento
substancial da realidade. Enfim, o grande homem, não é aquele que despreza ou louva
automática e unilateralmente a opinião, mas é aquele que, às vezes, contra ela, “exprime
isso que quer seu tempo e o realiza”. Ele não despreza a opinião com arrogância, mas
percebe com espírito político o que expressa o fundo substancial da opinião pública 4.
1 . FdD, § 318 Ad.
2 . E. Weil. Hegel e o Estado. Paris, Vrin, 1985, p. 81-84.
3 . FdD, § 348.
4 . B. Mabille. op. cit. p. 199.
156
A opinião pública encarna em si mesma a ambigüidade. Ela comporta sempre
duas tendências, uma mistura de verdadeiro e de falso, de substancial e de contingente. Na
formação desta opinião pública, os debates das assembléias têm um papel a desempenhar, a
Constituição desenvolve sua organicidade e, finalmente, o grande homem, ou o príncipe
para Hegel, tem um papel lógico-político decisivo a desempenhar, para efetivar a opinião
pública. “A subjetividade, que tem seu fenômeno mais exterior como dissolução da vida
estatal, subsistindo no opinar e raciocinar que querem fazer valer sua contingência e se
destroem justamente de tal modo, tem sua efetividade verdadeira no seu contrário, a
subjetividade como idêntica ao querer substancial, a qual constitui o conceito do poder
principesco, e que, no que precede, não veio ainda como idealidade do todo a seu direito e
ser-aí” 1. A subjetividade aparece na opinião pública sob uma forma exterior e contingente.
Se a opinião permanece neste nível, ela mesma se destrói com a vida ética, uma vez que
não é capaz de sair de sua contradição. É o príncipe que efetiva o conceito da opinião e
resolve sua contradição, pois ele é a identidade do querer substancial. “A subjetividade,
cujo direito é o fundamento da participação dos indivíduos nos negócios públicos, no
quadro do poder legislativo, não tem assim sua verdade, senão onde é idêntica à genialidade
do grande homem, mas também, mais geralmente, pela mediação da reflexão objetiva dos
conselheiros e funcionários, na decisão racional do monarca. Esta subjetividade substancial
do príncipe é o ser-aí da unidade viva, como tal, do Estado” 2.
Segundo Bernard Bourgeois, o príncipe do Estado hegeliano tem, neste, um
papel politicamente preponderante, uma vez que exerce a primazia do poder principesco no
Estado racional. Afirma-se o príncipe constitucional num Estado, enquanto totalidade ética
racional, na qual intervêm outros poderes, igualmente indispensáveis, todos esses poderes
se atualizam como momentos orgânicos da vida, profundamente una do Estado verdadeiro.
“O poder principesco contém em si, os três momentos da totalidade, a universalidade da
Constituição e das leis, a deliberação como relação do particular ao universal, e o momento
1 . FdD, § 320, citado segundo a tradução de Jarczyk-Labarrière, op, cit., p. 217.
2 . B. Bourgeois. O pensamento político de Hegel. p. 135.
157
da decisão última, enquanto autodeterminação na qual retorna tudo o resto” 1. O
reconhecimento da unidade concreta da vida da monarquia constitucional exige que, no
centro do Estado, um poder entre todos os outros poderes seja preponderante e isso é o
sentido especulativo e político do desenvolvimento orgânico do Estado hegeliano 2. O
príncipe se autodetermina ou decide, enquanto subjetividade que se efetiva como sujeito,
pois o “decidir em comum” é uma abstração, e a conseqüência é que na “pessoa moral” -
por exemplo, a “maioria” - assim incapaz, como tal de decidir, pois a decisão é deixada às
vontades puramente particulares, às opiniões subjetivas de cada um, que permanecem a
nível de entendimento, enquanto tal, incapaz de compreender uma identidade
especulativa 3. A co-presença dos estados, dos membros do governo e do príncipe na
atividade legislativa constitui um meio de mediatizar a opinião pública e permite ao
príncipe assumir, plenamente, sua tarefa de decisão sobre o que deve ser feito no domínio
dos negócios públicos. “Ele - o príncipe - não pode, como tal, senão desejar esclarecer-se
mais pelo ponto de vista competente de cidadãos, intervindo na legislação - funcionários,
membros influentes do primeiro estado, e responsáveis dos órgãos da sociedade civil -
1 . FdD, § 275. Citado segundo a tradução de J.-F. Kervégan., nota nº 4, p. 295.
2 . Bernard Bourgeois. Estudos hegelianos. O príncipe hegeliano. Paris, PUF, 1992, p. 209. B. Bourgeois se
opõe àqueles que reduzem o papel do príncipe ao interior da vida do Estado hegeliano ou que valorizam o
poder governamental dos funcionários e desvalorizam o poder do príncipe: “Nossa tese é, portanto, oposta
àquela que foi desenvolvida, entre outras, por E. Weil na sua obra Hegel e o Estado e que se resume na
afirmação “que o príncipe não é o centro nem a engrenagem principal do Estado” - E. Weil. op. cit., p. 62 -. E.
Fleischmann considera também que Hegel constrói seu Estado “restringindo ao estrito mínimo o poder do
monarca até que ele chegue a uma definição deste aqui que lembrará a condição do monarca em alguns países
contemporâneos ou a função de Presidente da República em alguns países democráticos” - E. Fleischmann. A
filosofia política de Hegel. Paris, Plon, 1964, p. 302 -. B. Bourgeois. op. cit., nota nº 4, p. 211; cf. também
nota nº 1, p. 215. Labarrière-Jarczyk afirmam que o mais importante não é o príncipe como tal, mas o
“silogismo do poder”, isto o equilíbrio dinâmico entre os poderes. “Poder-se-ia dizer que o personagem
principal da configuração do político, segundo Hegel não é o povo, nem o príncipe ou o governo: esse é a
Constituição, entidade quase viva que desenvolve suas próprias determinações pelo jogo de assunções
reflexivas. Ora o equilíbrio constitucional se mantém, precisamente, numa certa articulação dinâmica entre os
momentos da singularidade do príncipe, da particularidade do governo e da universalidade que exprimem os
“estados”, entendidos como expressão política das engrenagens da sociedade no seu conjunto. O exercício do
poder que se desenvolve de tal sorte toma forma e figura desta articulação de tipo silogístico”. “O fundamento
constitucional, segundo Hegel, se firma nesta essencial fluidez da realidade política, cujo centro de referência
não pode ser “localizada”, mas inscrita numa relação de mediação recíproca”. O silogismo do poder. Paris,
Aubier, 1989, p. 350-351. 3 . B. Bourgeois. op. cit., p. 213.
158
associar os cidadãos a sua decisão - para cimentar a unidade do Estado, e portanto reforçar
seu poder em particular na política exterior -, e, primeiramente, formar neles a opinião
pública, essencial ao mundo moderno, concorde ao interesse do Estado” 1.
Mas que significa formar ou cultivar a opinião? Qual é o limite entre formação
e doutrinamento, entre informação e propaganda 2 ?
A publicidade dos debates das assembléias dá aos cidadãos “a ocasião de
adquirir os conhecimentos”, de informar-se a fim de que “a opinião pública chegue a
pensamentos verdadeiros e a uma visão da situação, do conceito de Estado e de seus
negócios”. Esses “pensamentos verdadeiros” não são um conteúdo imposto à opinião
pública, uma vez que o conteúdo é o fundo substancial que lhe pertence. O problema
concerne à forma de sua expressão que deve ser elevada ao pensamento verdadeiro. É o que
confirma o parágrafo 315: “A abertura desta ocasião de conhecimento tem o aspecto
universal […] e enfim uma capacidade de julgar a esse respeito de modo mais universal” 3.
Não é preciso, portanto, compreender o ato de formar “a capacidade de julgar”, por “fazer
propaganda” ou impor uma doutrina, mas a livre oferta aos cidadãos, como uma
oportunidade de realizar o conteúdo racional, já presente em potência na opinião pública, a
fim de ser suprassumido segundo a forma da verdade.
A opinião, na sua contingência, não mediatiza sua oposição num saber
verdadeiro, que poderia animar todo o corpo político. As assembléias, o governo, a
imprensa informam e formam a opinião, e o príncipe deve decidir, levando em conta esta
condição contingente da opinião pública. “A decisão do príncipe, como toda decisão, tem
um conteúdo e uma forma” 4. A determinação do conteúdo, enquanto atividade, procedendo
por análise, diferenciação ou particularização da conjuntura política e da opinião pública,
isso são os conselheiros do gabinete do príncipe que lha apresentam com o conteúdo
determinado dos negócios do Estado, a fim de que ele decida. Dito de outro de modo, ele
1 . Id. p. 226.
2 . B. Mabille. op. cit., p. 197.
3 . Citado segundo a tradução de Labarrière-Jarczyk. op. cit., p. 203.
4 . B. Bourgeois. op. cit., p. 229.
159
suprassume a contradição da opinião pública pela capacidade formal de decidir, de parar o
debate raciocinante dos conselhos ou da opinião pública, por um “sim” ou um “não” 1.
Logicamente, isso se concebe assim: O poder principesco como unidade dele mesmo - “a
subjetividade como idêntica ao querer substancial” - e da opinião pública - “a subjetividade
que tem seu fenômeno mais exterior” - como seu outro, é uma confirmação da lógica
hegeliana, segundo a qual todo ser é a unidade dele mesmo e de seu outro, o absoluto
sendo, como identidade absoluta, a identidade da identidade e da não-identidade 2.
A teoria da opinião pública é elaborada, conforme uma relação íntima com o
espírito do povo, com o Estado e em conformidade com o processo do espírito 3. O espírito
do povo expressa-se a partir do primado da pressuposição lógica do todo em relação à
posição do indivíduo. De acordo com a lógica do sistema, o espírito do povo na sua figura
analítica se diferencia, em muitos povos, como a exteriorização histórica do espírito do
mundo e, ao mesmo tempo, na sua figura sintética ele se identifica no Estado e na
Constituição como a interioridade do todo. A opinião pública, enquanto entendimento - a
liberdade formal e subjetiva, o universal e o substancial se encontram ligados a seu
contrário, o elemento particular da opinião da multidão - viu a contradição da figura
analítica do espírito do povo na sua manifestação política.
A manifestação da opinião pública encontra na razão dialética, o momento da
negação racional de sua tendência inorgânica - devida à contradição entre forma e conteúdo
- e é a razão especulativa que lhe permite determinar-se, orgânica, como positivamente
racional nas mediações da Constituição e na “subjetividade idêntica do querer substancial
do príncipe”. O Estado, como momento real do processo de reconhecimento do indivíduo,
objetiva a forma ambígua da opinião pública, na publicidade dos debates das assembléias -
o poder legislativo - e na garantia direta e indireta da liberdade da comunicação pública - a
imprensa e os discursos.
1 . Id. p. 232.
2 . B. Bourgeois. op. cit., nota nº 1, p. 229.
3 . Cf. B. Bourgeois. Enc. III, Apresentação, p. 7-89; e também do mesmo autor: Dialética e estrutura na
filosofia de Hegel. In: Hegel e a Dialética, nº 139-140 da Revista Internacional de Filosofia, Paris, PUF, 1982,
p. 163-182.
160
Enfim, a teoria da opinião pública mostra a evolução do método especulativo
que vai do exterior - do diferente, do abstrato e do menos verdadeiro e menos perfeito - em
direção ao interior - o idêntico, o concreto, o mais verdadeiro e o mais perfeito - como
processo, ele mesmo, de formação da opinião pública em que o cidadão adquire a
capacidade, a autonomia de pensar e de julgar, de modo mais verdadeiro e razoável, os
interesses do Estado, da Constituição, da legislação e dos negócios públicos.
Esta teoria hegeliana da opinião pública aparece portanto como a exposição do
espírito enquanto espírito objetivo no domínio da filosofia política. O fenômeno da opinião
pública é contraditório, e na lógica do sistema, situa-se no entendimento e não pode
encontrar uma evolução positivamente racional, senão através das mediações da liberdade
formal, subjetiva e pública de opinar.
Um povo pode ser enganado, a começar pela utilização da opinião pública, por
um político ou um governo, quando eles exploram a mesma opinião despolitizada, para
tomar decisões, fazer uma escolha política, elaborar medidas administrativas, ou guiar o
destino de um Estado. A opinião pública, em si mesma, não constitui um critério para
governar um povo ou para conduzir um Estado, como já foi dito, é contraditória e ela exige
o momento político racional do Estado a fim de encontrar seu momento sintético e,
inversamente, o Estado não pode governar “racionalmente” fora de toda referência a
opinião pública, como expressão do universal.
Ora, como um sistema que despolitiza a vida ética utiliza a opinião pública?
Isso é válido tanto para o sistema socialista, quanto para a corrente liberal. A relação do
pensamento de Hegel com a experiência do socialismo histórico exigiria um estudo que
ultrapassa o objetivo deste trabalho. Nós nos atemos, portanto, à crítica da despolitização
que conduz ao liberalismo. Segundo Carl Schmitt, “o liberalismo do último século tem
singular e sistematicamente deformado e desnaturado o conjunto das noções políticas.
Muito sistematicamente, o pensamento liberal evita ou ignora o Estado e a política, para se
mover na polaridade característica e sempre renovada de duas esferas heterogêneas: a moral
161
e a economia, o espírito e os negócios, a cultura e a riqueza” 1. O liberalismo realiza a
despolitização pela polaridade ético-econômica, de tal modo que esconde todo caráter
político a todo o sistema de conceitos. Schmitt enumera muitas operações de substituição,
que visam muito precisamente a submeter o Estado e a política de uma parte a uma moral
individualista e, portanto, do direito privado, e de outra parte, a categorias econômicas,
despojando-as de seu sentido específico. Por exemplo: “No pensamento liberal, o conceito
político de luta muda-se em concorrência do lado da economia, em debate do lado do
espírito; a clara distinção destes dois estados diferentes que são a guerra e a paz, é
substituído pela dinâmica de uma concorrência perpétua e de debates sem fim. O Estado se
torna Sociedade e esta, vista sob o ângulo da ética e do espírito, será uma imagem da
Humanidade inspirada de uma ideologia humanitária; vista sob outro ângulo, constituirá a
unidade econômica e técnica de um sistema uniforme da produção e da comunicação. A
soberania e o poder público se tornarão propaganda e sugestão das massas, no campo da
atração do espírito, elas se mudarão em controle, naquele da economia” 1. No liberalismo, a
despolitização de todos os conceitos políticos e, evidentemente, da opinião pública, e a
utilização desta mesma opinião pública contraditória e despolitizada, permanecerá sempre
ao nível do entendimento. Segundo as mediações políticas do conceito de opinião pública
hegeliana, ela não estará situada na sua verdade racional.
O conceito hegeliano de opinião pública situa-se no conjunto da política. Bem
mais, não se pode compreender a opinião pública, senão enquanto política. Toda nossa
exposição tem procurado mostrar que a opinião pública tem seu lugar lógico e legítimo na
filosofia política: Hegel analisa-a na Filosofia do Direito em sua terceira secção, que trata
do Estado. Ora, ele aí situa a opinião pública justamente no interior da Constituição, na
parte que fala do poder legislativo. O estatuto do político na sua totalidade da Filosofia do
Espírito trata de uma análise filosófica da idéia de política, portanto de sua articulação no
interior de um movimento ideal que constitui o lógico do político. Na medida onde a
1 . Carl Schmitt. A noção de Política. Teoria do partidário. França, Champs Flammarion, 1992, p. 114-115.
Ver também J.-F. Kervégan. Hegel, Carl Schmitt. O político entre especulação e positividade. Paris, PUF,
1992, p. 65-77.
162
opinião pública faz parte desta totalidade lógica do político, ela é, portanto, um conceito
político.
Se a preocupação do pensamento liberal é de deformar e de desnaturar o
conjunto dos conceitos políticos, ignorando o Estado e a política, através da polaridade
ético-econômica, Hegel realiza o contrário: ele politiza toda a realidade ética e econômica,
a partir do Estado. No caso da opinião pública, o pensamento liberal utiliza,
especificamente, a soberania e o poder público como força de propaganda e instrumento de
publicidade, sugestão e dominação das multidões. Ao contrário, a opinião pública, para
Hegel, dever ser formada, assim como temos mostrado acima, na parte que trata dos
espaços públicos da opinião. A finalidade da publicidade dos debates das assembléias, é a
formação da opinião do cidadão. A formação política do cidadão consiste em fazê-lo
descobrir a verdade de seus próprios interesses, formá-lo na cidadania e também despertá-
lo pelos interesses do Estado. A formação do cidadão implica que ele se interesse pelo
Estado, portanto pela Constituição, pela legislação, pelos negócios públicos. Por isso a
opinião deve ser informada e formada. As câmaras devem encontrar-se em contato com a
opinião pública, através da publicidade dos debates e das deliberações das assembléias,
uma vez que elas são um meio privilegiado de formar o cidadão e, por conseguinte a
opinião pública.
O pensamento liberal forjou, no último século, a fórmula do “governo de
opinião” - government by opinion - e esse governo de opinião foi praticado no quadro do
Estado liberal. Adotados na Inglaterra, desde a metade do século XVIII, esses mecanismos
foram introduzidos, pouco a pouco, na Europa continental nos sistemas das monarquias
constitucionais para se tornar o direito comum das democracias liberais.
Como se caracteriza o governo de opinião ? O governo de opinião obedece à
fórmula governamental que se acorda com os imperativos do liberalismo. No governo de
opinião, os partidos são, eles mesmos, partidos de opinião. A opinião pública utilizada por
esse governo não é feita de exigências próprias a tal ou tal categoria social, ela é expressão
1 . Carl Scmitt. op. cit., p. 116-117.
163
dos pontos de vista comuns a maioria dos governos que se pronunciam, enquanto massa. A
massa não tem um papel de iniciativa ou de participação efetiva como cidadã, mas de
controle, de tal maneira que o poder dispõe de uma larga margem de manobra em relação
aos governados. É aos governantes que compete impor uma política que o povo é somente
habilitado a ratificar ou a rejeitar, pois a fraca coerência da opinião - a opinião é
contraditória em si mesma -joga em favor dos dirigentes. A pressão da opinião pode ser
forte em certos momentos, mas a heterogeneidade de suas motivações torna-a instável. Um
governo hábil pode conciliar-se com a opinião pública, escolhendo, somente, a via que ele
deseja seguir e que seja conforme a seus interesses.
O governo de opinião, inaugurado pela Inglaterra é praticado hoje pelas
democracias liberais, como instrumento político, através do império do mass media e a
subida do conformismo. O conceito despolitizado de opinião pública é aí pressuposto. A
despolitização que o sistema teórico do liberalismo coloca em ação, é a luta contra o poder
do Estado. Por exemplo, na política interior, ele fornece uma série de métodos próprios,
para travar e controlar este poder do Estado, em proveito da liberdade individual e da
propriedade privada. Segundo Carl Schmitt, trata-se de saber se o princípio puro do
liberalismo individualista pode dar origem a uma concepção especificamente política. Para
ele, “é preciso responder pela negativa”. A negação do político implica um individualismo
conseqüente, que comanda uma práxis política de desconfiança a respeito de todos os
poderes políticos e de todos os regimes imagináveis. Mas o liberalismo não chegará jamais
a uma teoria positiva do Estado e do político. É verdade que existe uma política liberal, mas
sob uma forma de oposição polêmica, visando às restrições da liberdade individual
operadas pelo Estado, pela Igreja ou por outros poderes, sob forma de política comercial, de
política escolar e de cultos, ou da cultura 1. O liberalismo elabora um tipo de pensamento
ético-político, que tem por fim a neutralização de todas as esferas da sociedade. No caso da
1 . C. Schmitt. op. cit., p. 114-115.
164
opinião pública o conceito despolitizado é substituído pelo conceito da ética liberal da
discussão. Como se caracteriza a ética liberal da discussão 1 ?
Ela se caracteriza, de início, pela recusa da decisão ou a ausência de decisão e
seu método é uma discussão sem fim. Nós podemos representar a realização utópica da
ética da discussão sob a imagem da sociedade humana, transformada em um clube
gigantesco, onde se exerce a discussão sem violência. O princípio da discussão pública é
que a verdade procede do livre conflito das opiniões e, a partir deste princípio, foram
instauradas as bases políticas do parlamentarismo: a publicidade dos debates e o equilíbrio
dos poderes.
A publicidade é uma das reivindicações das “Luzes”, antes da aparição das
representações parlamentares. Ela teve, por fim, de opor-se ao absolutismo principesco, a
seu poder discricionário e à prática de uma política do segredo. Assim, Kant sustenta que a
publicidade é o critério formal do “jurídico” do direito público e internacional. Ele faz do
princípio da publicidade a solução formal do problema central da filosofia prática: a
articulação entre legalidade e moralidade. Enfim, o princípio da publicidade conduz a idéia
de opinião pública e à instituição do governo de opinião. “O princípio da publicidade é um
princípio cardinal do liberalismo não somente porque „a luz do caráter público é a luz das
Luzes‟, mas também, porque ele funda uma redefinição da partilha do privado e do
público” 2.
O equilíbrio dos poderes do Estado pressupõe um equilíbrio interno nos corpos
legislativo; este equilíbrio torna possível a discussão pública, que tem por suporte
institucional o sistema de partidos. O parlamento é o símbolo em ato do espaço público e de
equilíbrio entre os três poderes: o legislativo, o executivo e o judiciário. O parlamentarismo
liberal que tem por princípio a publicidade e o equilíbrio dos poderes, tem como
pressuposição comum uma ética da discussão 3, que se rege através de um processo
1 . Para responder a esta questão nós seguiremos J.-F. Kervégan no seu livro Hegel, Carl Schmitt, na sua parte
onde ele trata da “ética da discussão”, p. 118-124. 2 . J.-F. Kervégan. op. cit., p. 122.
3 . O que é a discussão propriamente dita? “A discussão significa uma troca de opiniões, dominada pelo
objetivo de convencer o adversário de uma verdade e de uma justeza com os argumentos racionais, ou de se
165
institucionalizado de argumentações e de discussões, fundado sobre as regras públicas e
reconhecidas, a fim de chegar a uma representação e a uma constituição pública da verdade.
É Jürgen Habermas que dá uma formulação atualizada da ética liberal da
discussão na “ética comunicacional” 1. Habermas projeta uma comunidade de comunicação
ideal, da qual será eliminada toda violência física ou simbólica no quadro de uma
“pragmática transcendental” do discurso prático e de condições universais das normas de
diálogo. Ele considera que a causa da degradação da legitimidade política e da
desagregação do consenso ético, que conhece o mundo pós-capitalista, reside numa falta
de racionalidade comunicacional.
Diferente é a conclusão de Carl Schmitt: “Se a situação do parlamentarismo é
atualmente crítica, isso aconteceu porque a evolução da democracia de massa moderna tem
feito da discussão política, com seus argumentos, uma formalidade vazia” 2. Schmitt não
reduz o decisionismo a uma ideologia da ditadura: “Ele a aperfeiçoa antes como a situação
limite que permite aceder a verdade do político. O que é na realidade importante nesta
fórmula, é a rejeição que ela implica dos pressupostos éticos do liberalismo. Neste sentido,
o decisionismo é, sem dúvida, menos uma política da recusa da discussão que uma recusa
da ética da discussão” 3.
O decisionismo não é a recusa da discussão, mas a tomada da decisão pública
que engaja o percurso comunicativo da opinião pública. É, portanto, um processo de
informação e de reconhecimento, de discussão teórica e prática, de aprendizagem em
direção ao consenso e, enfim, a tomada de decisão política, enquanto tal.
deixar convencer pela verdade e a justeza […]. A discussão pertence, a título de premissas, às convicções
comuns: a disponibilidade a se deixar convencer, a independência em relação aos vínculos partidários, a
imparcialidade em relação aos interesses egoístas […]. Todas as instituições especificamente parlamentares
pressupõem esse conceito determinado de discussão”. C. Schmitt. Parlamentarismo e democracia. p. 101,
transcrição segundo a citação de J.-F. Kervégan. op. cit., p. 123. 1 . “A formulação mais exata e mais elaborada da ética liberal da discussão poderia ser encontrada junto a um
pensador que, se ele leu muito atentamente Carl Schmitt, apresenta-se como o adversário mais decidido de
toda forma de decisionismo: Jürgen Habermas. Sem dúvida não é exagerado reconhecer na sua “ética
comunicacional” o desenvolvimento sistemático do que Schmitt apresentava como o coração mesmo do
liberalismo”. J.-F. Kervégan. op. cit. p. 123. 2 . C. Schmitt. Parlamentarismo e democracia. p. 101. In J.-F. Kervégan. op. cit., p. 124.
3 . J.-F. Kervégan. op. cit., p. 124; cf. B. Bourgeois. Estudos hegelianos. Razão e decisão. Paris, PUF, 1992.
166
O modelo de decisão pública baseado sobre a comunicação é, em primeiro
lugar, o processo de reconhecimento recíproco; dito de outro modo, aquele que se engaja
numa comunicação reconhece o outro como gozando dos mesmos direitos e da mesma
dignidade de exprimir sua opinião. O reconhecimento livre e recíproco é o momento de
trocas de opiniões e de informações. A abertura da discussão teórica permite refletir sobre
as vias e os meios a desenvolver, a começar pelas opiniões e pelos interesses contraditórios,
para efetivar os objetivos; a discussão prática é considerada a chegar, a partir das
necessidades, dos objetivos e dos interesses em conflito, a uma vontade comum sobre os
fins a atingir. O consenso prático e o consenso teórico não podem se obter, senão mediante
o direito de participar na decisão com interesses e opiniões particulares opostos uns aos
outros. Mas essas opiniões e interesses em contradição articulam-se, em primeiro lugar,
num processo de aprendizagem teórico, reduzindo os erros e os prejuízos, retomando
aspectos, critérios e figuras de argumentação novos, enfim, formando o julgamento da
opinião pública; e depois por um processo de aprendizagem prática dispondo-se a modificar
os interesses, as atitudes e as normas 1. Enfim, a tomada de decisão política implica a idéia
de comunicação, isto é, a mediação entre a “substância - universal - e a subjetividade -
singular -: a subjetividade não seria senão a manifestação subjetiva da essência
substancial”; e “pensar a necessidade substancial da essência como a liberdade subjetiva do
conceito” é fluidificar aquela pelo processo da comunicação da opinião pública, que se
realiza e se efetiva, precisamente, pela “decisão da liberdade criadora de seu Outro”, uma
vez que “a razão hegeliana é fundamentalmente decisão” 2. Certo, “a razão hegeliana é,
fundamentalmente, decisão”, mas isso pressupõe todo o processo que engloba o estatuto
teórico e prático da opinião pública, dito de outro modo, a consciência do saber dialético, o
movimento lógico da contradição e, enfim, a mediação política da liberdade de opinião,
como manifestação do silogismo da idéia de comunicação pública.
1 . Otfried Höffe. O Estado e a justiça. Capítulo VI: Estratégias da justiça política: a decisão pública como
processo de comunicação metódica. Paris, Vrin, 1988, p. 141 s. 2 . B. Bourgeois. Estudos hegelianos. Razão e decisão. Paris, PUF, 1992, p. 5.
167
CONCLUSÃO
Tanto histórica como sociologicamente, a opinião pública evoluiu, ao mesmo
tempo que mudava o espaço público. Mas, filosoficamente falando, constata-se que a
análise que Hegel fez, já correta no seu tempo, permanece ainda hoje muito atual e constitui
uma referência fundamental, para compreender o fenômeno da opinião pública. O
fenômeno da consciência de opinar é a experiência da consciência que, através do espírito
subjetivo, vive a oposição entre o público e o privado, enquanto desenvolvimento lógico
contraditório; pois, a consciência percorre esse desenvolvimento em termos de figuras do
espírito objetivo sócio-histórico da opinião, e enfim o espírito acede ao saber dialético da
opinião. Iniciando pelo saber da opinião, o movimento lógico da opinião pública reúne a
contradição, enquanto autodeterminação do conteúdo da opinião pública pela idéia de
comunicação dialética. Enfim, a idéia dialética libera a opinião, a fim de desenvolver as
mediações políticas, para que a opinião pública aceda à sua verdade como unidade
contraditória, isto é, a unidade mediatizada e, assim, torna-se uma força de mudança
histórica.
A teoria hegeliana da opinião pública demonstrou sua especificidade diante de
outras teorias que tratam da opinião pública. Segundo Hegel, as ciências sociais têm
desenvolvido, consideravelmente, as pesquisas e as análises tanto empíricas quanto teóricas
sobre a opinião pública, enquanto têm sido raros os estudos filosóficos que se consagraram
a refletir sobre o fenômeno da opinião. Mas, junto a Hegel, nós encontramos os pilares de
uma verdadeira teoria da opinião pública, baseada sobre o princípio da “publicidade, o
princípio da consciência do sujeito livre da modernidade, o princípio da força mediatizante
da contradição, e o princípio lógico-político da idéia de liberdade.
Hegel tem, em primeiro lugar, apresentado o princípio do sujeito livre da
modernidade como um processo do espírito em que a contradição comanda a marcha da
consciência formal subjetiva e seu conteúdo objetivo, que reside numa relação entre o
168
privado e o público. Ora, a grande matriz lógica, onde tem origem todo o movimento da
consciência é a contradição entre a consciência privada e a consciência pública, que se
manifesta na gênese do espírito público. Neste sentido, a consciência engloba os momentos
mais imediatos do fenômeno do ato de opinar, depois as manifestações psico-sociológicas
dos grupos até às opiniões sociológicas produzidas pelas instituições ou grupos sociais e
políticos, enquanto manifestações da consciência do sujeito livre, chegando ao saber
dialético da opinião.
O saber dialético se determina, enquanto mediação efetiva através da categoria
lógica da contradição. Com efeito, a contradição da opinião pública, de acordo com a
análise que nós temos feito, suprassume seu estado de imediatidade e isso pelo processo
dialético da contradição, enquanto devenir, negação e desenvolvimento impaciente da
liberdade que questiona o ser já dado; a contradição da opinião guarda sempre seu poder de
negação, que põe a diferença e a oposição essencial; a opinião do sujeito julga o objeto
público e seu ponto de vista é portador de contradição ao interior de toda realidade social
ou política. Esta força mediatizante da contradição da opinião implica que a impaciência
das reivindicações dos cidadãos faça parte do processo de engendramento da mediação da
opinião pública. A teoria hegeliana da opinião pública, através da contradição, expressa as
exigências novas do conceito, quando envelhecem as formas ou as figuras históricas da
opinião. Assim, é possível compreender que a evolução e as transformações históricas que
a esfera pública burguesa tem sofrido devido às mudanças operadas num quadro de
democracia de massa, não suprimem o princípio de publicidade. Com efeito, este, não é
anulado, uma vez que a opinião pública, como tal, guardará sempre sua reserva de energia
contraditória para fazer face a toda forma de domesticação ou de manipulação qualquer que
seja. Com efeito, nenhuma violência pode parar, indefinidamente, o poder da contradição
da opinião, imanente a todo processo lógico-histórico enquanto a Idéia de comunicação
dialética.
169
A Idéia de comunicação se efetiva, como a idéia de liberdade, e a opinião
pública encontra na determinação política a “liberdade de dizer não” e, ao mesmo tempo, a
forma e as mediações necessárias para resolver sua contradição imediata. Com efeito, “do
ponto de vista da idéia especulativa, isso é a autodeterminação desta, que, como a absoluta
negatividade ou movimento do conceito, julga e põe-se como o negativo de si mesmo” 1;
permite desenvolver a lógica própria desta imediatidade da opinião e, portanto,
compreender, no seu ato mediatizado, a dialética ou o processo do discurso hegeliano. Dito
de outro modo, o ser da opinião pública não é outra coisa que o acontecer de sua própria
mediação. Neste sentido da “absoluta negatividade”, o homem em sua liberdade de opinar,
é capaz de dizer não a toda realidade histórica dada e de enunciar um outro julgamento
sobre o mundo. A liberdade de opinar tem o direito de dizer não a isso que acontece
historicamente. Ela tem o direito e o dever de questionar e de transformar o existente pelo
poder contraditório da opinião. Tem o direito de não aceitar o que tentam lhe impor a rede
informática ou todo sistema dos meios de comunicação. A liberdade de opinião é uma
forma de atividade, não inofensiva, mas impaciente, cujo exercício leva os cidadãos a
contestar e a discutir todas as formas de culturas, estruturas sociais, enfim a vida ética. A
opinião, partindo do que está simplesmente, no espírito de um povo - as opiniões informais:
as evidências culturais, as experiência fundamentais a toda biografia pessoal e as evidências
da cultura de massa - desencadeia um processo cujo fim é fazer que este ser-aí se torne um
ser conscientemente posto no centro da liberdade pública. Dizendo não ao que é da ordem
simplesmente “histórica”, a opinião abre o caminho ao que é verdadeiramente conceitual,
ao que se realiza conforme o movimento das mediações políticas e cujo fim é efetivar a
opinião pública no presente: o que prepara o futuro.
Enfim, este estudo consagrado a tratar da teoria hegeliana da opinião pública
permite, pensamos nós, abrir muitos campos de reflexão que estão situados tanto no interior
do campo filosófico, quanto nas proximidades da filosofia e das ciências sociais. Assim, a
1 . Enc., I, § 238.
170
elaboração de uma filosofia da linguagem hegeliana 1, e, por conseguinte, sua relação com
a filosofia da linguagem analítica; o colocar em ação e a inserção do princípio da
contradição hegeliano, num quadro mais amplo da discussão prática, isto é, no horizonte da
filosofia da comunicação: a ética da discussão, a ética do debate ético ele mesmo, a ética
“procedural” da discussão etc. 2; ou ainda, a relação interdisciplinar entre uma filosofia da
comunicação dialética e a sociologia da informação e da comunicação.
1 . A este respeito, pode-se já encontrar um primeiro esboço estabelecido por J. Hyppolite no seu livro Lógica
e existência, onde, na primeira parte, ele analisa, justamente, o problema da linguagem e da lógica. “[…] esse
discurso que o filósofo faz sobre o ser é também o discurso mesmo do ser através do filósofo. Isso supõe em
primeiro lugar uma explicitação de uma filosofia da linguagem humana espalhada nos textos de Hegel. Cf. J.
Hyppolite. op. cit., Paris, PUF, 1991, p. 5-6. 2 . Cf. Jean-Marc Ferry. Filosofia da Comunicação. t. I e II. Paris, Cerf, 1994; A ética reconstrutiva. Paris,
Cerf, 1996.
171
BIBLIOGRAFIA
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Wissenschaft der Logik, I e II, Hamburg, Meiner, 1971.
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Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (edição de 1827-1830)
Hamburg, Meiner, 1969.
A - A mediação política da liberdade de opinião
a) Obras de Hegel:
HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas (trad., B. Bourgeois). t. III/A
Filosofia do espírito. Paris, Vrin, 1988.
HEGEL, G.W.F. Princípios da Filosofia do Direito (trad., R. Derathé). Paris, Vrin, 1993.
HEGEL, G.W.F. Escritos Políticos. A Constituição da Alemanha. Atas da Assembléia dos
Estados do Reino de Würtemberg em 1815 e 1816. A propósito da Reformbill
inglesa (trad., Pierre Quillet e Michel Jocob). Paris, Champ Libre, 1977.
HEGEL, G.W.F. A primeira filosofia do espírito (trad., Guy Planty-Bonjour). Paris, PUF,
1969.
HEGEL, G.W.F. A razão na história (trad., Kostas Papaioannou). Paris, Ed. 10/18, 1993.
HEGEL, G.W.F. Lições sobre a Filosofia da História (trad. J. Gibelin). Paris, Vrin, 1987.
b) Outras obras e comentários:
B. BOURGEOIS. O pensamento político de Hegel. Paris, PUF, 1992.
B. BOURGEOIS. Estudos hegelianos. Razão e Decisão. Paris, PUF, 1992.
D‟HONDT, Jacques. Hegel filósofo da história vivente. Paris, PUF, 1987.
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HYPPOLITE, Jean. Introdução à filosofia da história de Hegel. Paris, Seuil, 1983.
JARCZYK, G. e LABARRIÈRE, P.-J. O silogismo do poder. Paris, Aubier, 1989.
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Hegel. Paris, Aubier, 1984.
TAYLOR, Charles. Hegel. United Kingdom, New York, Austrália, Cambridge University
Press, 1975.
B - O estatuto teórico e prático da opinião pública
1 - A fenomenologia da opinião
a) Obras de Hegel:
HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas (trad., B. Bourgeois). t. III/ A
filosofia do espírito. Paris, Vrin, 1988.
HEGEL, G.W.F. Princípios da Filosofia do Direito (trad., R. Derathé). Paris, Vrin, 1993.
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito (trad., G. Jarczyk e P.-J. Labarrière). Paris,
Gallimard, 1993.
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito (trad., Jean Hyppolite). t. I e II. Paris, 1941.
b) Outras obras e comentários:
BLOCH, Ernst. Sujeito-Objeto. Esclarecimentos sobre Hegel (trad., Maurice de Gandillac).
Paris, Gallimard, 1977.
D‟HOND, Jacques. De Hegel a Marx. Paris, PUF, 1972.
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GUIBAL, Francis. Deus segundo Hegel. Ensaio sobre a problemática da Fenomenologia
do Espírito. Paris, Aubier, 1975.
HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Paris,
Aubier, 1946.
JARCZYK, G. e LABARRIÈRE, P.-J. De Kojève a Hegel. 150 anos de pensamento
hegeliano na França. Paris, Albin Michel, 1996.
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Paris, Gallimard, 1994.
KÜNG, Hans. Encarnação de Deus. Introdução ao pensamento teológico de Hegel
enquanto prolegômenos a uma cristologia futura. Paris, DDB, 1973.
LABARRIÈRE, P.-J. Estruturas e movimento dialético na Fenomenologia do espírito de
Hegel. Paris, Aubier, 1985.
LEFEBVRE, Jean-Pierr. Prefácio da Fenomenologia do espírito. Tradução, apresentação e
vade-mecum. Paris, GF-Flammarion, 1996.
LUKÁCS, Georges. O jovem Hegel (trad., Guy Haarscher e Robert Legros). t. I e II, Paris
Gallimard, 1981.
2 - A lógica da opinião
a) Obras de Hegel:
HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas (trad., B. Bourgeois); t. I/ A ciência
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HEGEL, G.W.F. Lógica e Metafísica (Iena 1804-1805) (trad., D. Souche-Dagues). Paris,
Gallimard, 1980.
HEGEL, G.W.F. Ciência da Lógica (trad., P.-J. Labarrière e G. Jarczyk), I (O Ser, 1972), II
(A doutrina da Essência, 1976), e III (Lógica subjetiva ou doutrina do
Conceito, 1981). Paris, Aubier.
174
b) Outras obras e comentários:
BIARD, J. et alii. Introdução à leitura da Ciência da Lógica de Hegel. Paris, Aubier, t. I
[1981], t. II [1983], t. III [1987].
BOURGEOIS, Bernard. Dialética e estrutura na Filosofia de Hegel. In Hegel e a Dialética,
Revista Internacional de Filosofia, nº 139-140, Paris, PUF, 1982, p. 163-182.
DOZ, André. A Lógica de Hegel e os problemas tradicionais da Ontologia. Paris, Vrin,
1987.
FLEISCHMANN, Eugène. A ciência universal ou a lógica de Hegel. Paris, Librairie Plon,
1968.
HYPPOLITE, Jean. Lógica e existência. Paris, PUF, 1991.
JARCZYK, Gwendoline. Sistema e liberdade na lógica de Hegel. Paris, Aubier, 1980.
LEBRUN, Gérard. A paciência do conceito. Paris, Gallimard, 1972.
LÉONARD, André. Comentário literal da Lógica de Hegel. Vrin/Louvain, Bélgica, 1974.
MARCUSE, Herbert. A ontologia de Hegel (trad., G. Raulet e H. Baatsch). Paris, Ed. de
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NUZZO, Angelica. A Lógica e a Metafísica de Hegel. Roma, La Nuova Italia Scientifica,
1993.
OPIELA, Stanislas. O Real na Lógica de Hegel. Desenvolvimento e auto-determinação.
Paris, Ed. Beauchesne, 1983.
3 - O político da opinião
Cf. a bibliografia acima: “A mediação política da liberdade de opinião”.
Obras sobre a opinião pública
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HABERMAS, Jürgen. O espaço público (trad., Marc B. de Launay). Paris, Payot, 1992.
LAZAR, Judith. A opinião pública. Paris, Ed. Sirey, 1995.
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MATTELART, Armant e Michèle. História das teorias da comunicação. Paris, La
Découverte, 1995.
MATTELART, Armant e Michèle. A invenção da comunicação. Paris, Ed. La Découverte,
1994.
PADIOLEAU, Jean. A opinião pública. Exame crítico, novas direções. Paris, Mouton,
1981.
STOETZEL, Jean. Teorias das opiniões. Paris, PUF, 1943.
TARDE, Gabriel. A opinião e a multidão. Paris, PUF, 1989.