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OS TRABALHOS DE HERCULES ARRASTADO NA TORRENTE Por AGATHA CHRISTIE «Obras Completas de Agatha Christie» estão a agrupar, por ordem cronológica, a ficção policiária da famosa escritora. Cada volume inclui sempre dois ou mais textos. Em Os Trabalhos de Hércules, Hercule Poirot desvenda doze enigmas que emparelham com as míticas proezas daquele herói da Antiguidade Clássica. Em Arrastado na Torrente, o mesmo detective soluciona o problema de um assassínio cujo autor não teria, aparentemente, motivo para matar, visto apenas sofrer prejuízos com a morte da vítima. Nestas «Obras Completas», cerca de oitenta títulos serão cuidadosamente publicados, numa edição estudada tendo em atenção a divulgação de um dos maiores artistas da ficção policiária e de um verdadeiro clássico da literatura de mistério.

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Page 1: Agatha Christie - Os Trabalhos de Hércules - Arrastado na To

OS TRABALHOS DE HERCULES

ARRASTADO NA TORRENTEPor

AGATHA CHRISTIE

«Obras Completas de Agatha Christie» estão a agrupar, por ordem cronológica, a ficção policiária da famosa escritora. Cada volume inclui sempre dois ou mais textos.

Em Os Trabalhos de Hércules, Hercule Poirot desvenda doze enigmas que emparelham com as míticas proezas daquele herói da Antiguidade Clássica.

Em Arrastado na Torrente, o mesmo detective soluciona o problema de um assassínio cujo autor não teria, aparentemente, motivo para matar, visto apenas sofrer prejuízos com a morte da vítima.

Nestas «Obras Completas», cerca de oitenta títulos serão cuidadosamente publicados, numa edição estudada tendo em atenção a divulgação de um dos maiores artistas da ficção policiária e de um verdadeiro clássico da literatura de mistério.

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obras de

AGATHACHRISTIEOS TRABALHOS DE HÉRCULESedição

LIVROS DO BRASIL Lisboa

Page 3: Agatha Christie - Os Trabalhos de Hércules - Arrastado na To

Tradução de TOMAS RIBAS

Capa de

ANTÓNIO PEDRO

Título da edição original

THE LABOURS OF HERCULES

Copyright 1989, 1940, 1944, 1945, 1947, by Agatha Christie

Reservados todos os direitos pela legislação em vigor

VENDA INTERDITA NA República Federativa DOS ESTADOSUNIDOS DO BRASIL

Lisboa Junho de 2001

Digitalização e arranjo:Fátima Chaves

Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficiência visual.

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PREFÁCIO

O apartamento de Hercule Poirot estava mobilado em estilo essencialmente moderno. Brilhava com os cromados. As poltronas, embora confortavelmente estofadas, eram de irrepreensíveis contornos.

Hercule Poirot sentava-se com elegância numa dessas cadeiras. Noutra, em frente, sentava-se o Dr. Burton, beberrícando deleitadamente um copo de Chateau Mouton fíothsild.

Não havia elegância nem esmero no Dr. Burton. Era gordo, enxovalhado e um capacete de cabelos brancos cobria a sua gorducha e bonacheira fisionomia.

Respirava ruidosamente, tendo o hábito de cobrir-se a si próprio e a tudo o que o rodeava com a cinza do tabaco. Em vão Poirot o rodeava de cinzeiros.

O Dr. Burton fez uma pergunta:

Diga-me: porque se chama Hercule?

Refere-se ao meu nome de baptismo? Um nome ousadamente cristão.

Definitivamente pagão replicou o outro. Porquê?

Era o que eu desejava saber.

Fantasia do pai? Capricho da mãe? Razões de família? Lembro-me muito bem, se bem que a minha memória já não seja o que foi, que tinha um irmão chamado Aquiles, não se lembra?

O pensamento de Poirot recuou, percorrendo todos os detalhes da carreira de Aquilles Poirot. Tinha tudo aquilo acontecido? Somente após um curto espaço de tempo, ele quebrou o silêncio,

O Dr. Burton, ajuizadamente, deixou o assunto Aquilles Poirot.

As pessoas deviam ser mais cuidadosas ao escolher o nome das crianças, penso eu.

Eu sei, tenho afilhadas. Uma delas chama-se Branca, é escura como uma cigana. Outra Dreide dos Aborrecimentos, é alegre como um bobo. Assim como a jovem Paciência, que devia ter-se chamado Impaciência. E Diana, a clássica Diana. Falam na sua gordura de cachorrinho, mas não me parece que seja assim. Quiseram chamar-lhe Helena, mas pus os pés à parede. Sabendo do que os pais e a avó gostavam. Lutei para que fosse Marta, ou Dorcas, mas sem resultado. O cura, os amigos, os parentes...

Começou a respirar suavemente e a sua pequena face gorducha contraiu-se. Poirot olhou para si próprio interrogativamente.

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Pensava numa imaginária conversação. Sua mãe e a última Sr.a Holmes, sentadas a costurar vestidos ligeiros, ou fazendo tricot. Aquilles, Hercule, Sherlock, Microft... Poirot acabou por tomar parte no divertimento do amigo.

Compreendo o que você pensa. O meu aspecto físico não se assemelha nada a Hércules, não é assim?

Os olhos do Dr. Burton percorreram Poirot de alto a baixo a sua pequena e asseada figura, o ataviado das calças listradas, o correcto casaco preto, a vistosa gravata, miraram-no desde os bem acabados sapatos de calf à cabeça calva como um ovo e ao imenso bigode que lhe adornava o lábio superior.

Francamente, Poirot, eu compreendo que você nunca tivesse tido muito tempo para estudar os clássicos.

Isso é verdade.

Foi uma pena, perdeu assim bastante. Todas as pessoas deviam ter estudado os clássicos como eu o fiz.

Poirot encolheu os ombros:

Está bem, mas tenho passado perfeitamente sem eles.

Passar sem eles, passar sem eles! Não se trata de passar sem eles! Esse é o errado ponto de vista de todos nós. Os clássicos não são como uma escada de mão para

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trepar rapidamente, semelhantes a um curso por correspondência. Não são as provas de trabalho de um homem que interessam, mas as suas horas de ócio. Esse é o erro que todos cometem. Observe-se a si próprio. Você acha-se bem, deseja sair-se bem de tudo, dominar as coisas facilmente; que vai fazer, então, nas horas de ócio? Poirot foi rápido na réplica:

Vou dedicar-me, seriamente, à cultura das abóboras.

O Dr. Burton insistiu.

Abóboras? Que quer dizer com isso? Aquelas grandes e inchadas coisas verdes que sabem a água?

Ah! exclamou Poirot com entusiasmo. Esse é o ponto que me interessa. Elas não necessitam de saber a água.

Oh! Eu sei! Salpique-as com queijo, cebola picada, ou molho branco.

Não, não, você está errado. É ideia minha que o actual sabor das abóboras pode ser modificado. Pode-lhes ser -dado um aroma.

Santo Deus, homem, isso não é vinho clarete! A palavra aroma recordou ao Dr. Burton o copo que tinha no braço da cadeira. Beberricou e saboreou.

Bom vinho, este! Muito saboroso disse movendo a cabeça aprovativamente.

Mas, sobre o negócio das abóboras você não fala a sério. Você não quer dizer que vai aviltar-se, que vai esgravatar a terra com a forquilha, estrumar, alimentá-la com fios de algodão mergulhados em água, e tudo o mais.

Você disse Poirot parece estar bem familiarizado com a cultura das abóboras.

Tenho visto os jardineiros quando estou no campo... Mas, seriamente, Poirot, que mania! Compare isso que quer fazer a uma confortável cadeira, em frente a uma lareira de boa lenha, num aposento ornamentado com estantes. Livros em toda a volta. Um cálice de Porto e um livro aberto na mão.

E traduziu:

Habilmente o piloto, num mar de vinho tinto, endireitou-se.

O veleiro, no rio, corria impelido pelo vento.

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Sem dúvida não podemos alcançar o sentido do original.

Naquele momento, tomado de entusiasmo tinha-se esquecido de Poirot.

E Poirot, observando-o, sentiu repentinamente uma dúvida, um desconfortável tormento. Era aqui, ali, qualquer coisa que tinha falhado. Alguma riqueza de espírito? A tristeza apoderou-se dele.

Sim, devia ter-se familiarizado com os clássicos... Há muito tempo. Agora, infelizmente, já era tarde.

O Dr. Burton interrompeu esta melancolia:

Você quer dizer que realmente está pensando em reformar-se?

Sim!

O outro conteve o riso.

Deseja fazer isso?

Asseguro-o. Alguns casos mais, especialmente seleccionados. Qualquer coisa que apresente, justamente, problemas que tenham especial interesse.

O Dr. Burton riu sardonicamente.

está no bom caminho. Um caso ou dois, outro mais e assim por diante. O espectáculo de despedida da prima-dona é sempre assim, Poirot.

Riu-se, e levantou vagarosamente os pés, como um gnomo.

Os seus trabalhos não são os de Hércules, mas sim trabalhos de amor... Verá se eu não tenho razão. Aposto que ainda aqui estará sossegado mais uns doze meses e as abóboras estarão sossegadas também.

Despedindo-se do amigo, o Dr. Burton deixou o austero compartimento quadrangular. Deixou estas páginas para não voltar sobre elas. Interessa-nos apenas o que ele deixou atrás de si, aquilo em que Poirot viu uma ideia.

Depois de ele ter partido, Poirot sentou-se outra vez, vagarosamente, como um homem num sonho, e murmurou:

«Os trabalhos de Hércules... Sim, é uma ideia!»

No dia seguinte Poirot pôs-se a ler um grande volume encadernado em coiro, outros trabalhos ligeiros e várias folhas de papel dactilografadas.

A sua secretária, Miss Lemon, fora encarregada de

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-coligir apontamentos a respeito de Hércules, Sem interesse, mas com impecável eficiência, Miss Lemon tinha cumprido a sua tarefa.

Hercule Poirot mergulhou num confuso mar de clássica sabedoria, com particular referência a Hércules, o celebrado herói que depois da morte foi colocado entre os deuses e recebeu honras divinas.

Durante duas horas Poirot leu diligentemente, tomando notas, franzindo o sobrolho, consultando as folhas de papel ou os livros de referência. Finalmente recostou-se na cadeira, meneou a cabeça. A sua disposição da tarde anterior tinha-se dissipado. Que povo! Escolher este Hércules, este Herói! Herói, sem dúvida! Mas uma criatura de vigorosos músculos, baixa inteligência e tendências criminosas. E Poirot recordou-se do Adolph Durant, um carniceiro que fora julgado em Lião, em 1895, uma criatura de força bovina, que tinha assassinado várias crianças. A defesa tinha sido exaltada, o juízo qual dos dois: grande mal ou pequeno mal?, tinha sido um argumento discutido durante vários dias. O Antigo Hércules, provavelmente, sofreu do grande mal. Não! Poirot abanou a cabeça; se aquilo era a ideia de um herói grego, avaliada pelos modernos padrões, certamente ele não poderia vir a ser herói. O clássico modelo chocou-o. Estes deuses e deusas parecia terem analogia com os modernos criminosos. Embriaguez, deboche, incesto, rapina, dissolução, homicídio. Na verdade, aparentavam ser definitivamente tipos criminosos. O suficiente para manter um juiz de instrução constantemente ocupado. Falta de decência na vida de família, nenhuma ordem, nenhum método, nem mesmo nos crimes,

Hércules, sem dúvida disse Poirot pondo-se em pé, desiludido, foi um criminoso.

Olhou em volta aprovativamente. Um compartimento quadrado, igual a uma boa peça de escultura moderna representando um cubo colocado sobre outro cubo, e acima disto um geométrico arranjo de fios de cobre, e no centro deste brilhante e ordenado quarto ele próprio. Aqui, então, estava um Hércules moderno, muito diferente daquele desagradável esboço de uma figura de salientes músculos, brandindo uma maça. Em vez disso, uma pequena figura sólida ataviada num correcto fato

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citadino e com um bigode um bigode como Hércules nunca sonhou possuir um bigode magnífico e bem tratado.

Contudo, havia entre o Hércules clássico e Hercule Poirot um ponto de contacto. Ambos eles, sem dúvida, tinham agido como instrumentos libertando o mundo de certas pestes. Cada um deles podia ser descrito como benfeitor da sociedade em que viviam. O que o Dr. Burton disse na última noite, quando saiu: «Os seus trabalhos não são os de Hércules...» Ah, como se enganava o velho fóssil. Aqui estariam, uma vez mais, os trabalhos de Hércules de um Hércules moderno. Um engenhoso e divertido conceito. No período que precedia a sua retirada definitiva, aceitaria doze trabalhos, nem mais nem menos. E estes doze trabalhos seriam seleccionados com especial referência aos doze trabalhos do Hércules da Antiguidade. Sim, não seria apenas divertido, seria artístico, seria espiritual.

Poirot pegou no dicionário e mergulhou uma vez mais na clássica sabedoria. Não pretendia seguir o modelo com absoluta justeza. Não haveria mulheres nem túnica de Nesso... Só os Trabalhos, os Trabalhos exclusivamente. O primeiro trabalho intitular-se-ia o do Leão de Nemeia.

«O Leão de Nemeia», repetiu, ensaiando a língua.

Naturalmente não esperava que se lhe apresentasse um caso envolvendo uma flecha e um leão ensanguentado. Seria demasiada coincidência ter de aproximar-se dos directores do jardim zoológico para resolver um problema que envolvesse um leão. Não, aqui tratava-se de um mero simbolismo. O primeiro caso devia referír-se a qualquer figura pública célebre. Devia ser sensacional e de primeira importância. Algum ás do crime ou alguém que fosse um leão aos olhos do público. Algum escritor conhecido, ou político, ou pintor, ou mesmo alguma pessoa de estirpe real. Uma pessoa real? Agradava-lhe a ideia de Realeza... Não tinha pressa; podia esperar, esperar por aquele caso de importância que seria o primeiro dos doze trabalhos que se impusera.

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1 O LEÃO DE NEMEIA

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Nada de interessante esta manhã, Miss Lemon? perguntou Poirot assim que entrou na sala, na manhã seguinte.

Confiava em Miss Lemon. Era uma mulher sem imaginação mas possuía instinto. Alguma coisa que ela lhe mencionasse como trabalho de especial importância era na verdade trabalho considerável. Era uma boa secretária.

Pouca coisa, M. Poirot. Apenas uma carta que penso poderá interessá-lo.

E de que trata? Deu um passo em frente interessado.

É de um homem que deseja investigar o desaparecimento do cão pekinois da esposa.

Poirot deteve-se ainda com o pé no ar, lançando um olhar de profunda reprovação a Miss Lemon. Ela não reparou. Começou a escrever à máquina. Escrevia com a velocidade e precisão de uma metralhadora. Poirot estava chocado. Chocado e amargurado. Miss Lemon deixava-o ficar mal. Um cão pekinois! E depois do sonho que tivera na noite anterior. Tinha deixado Buckingham Palace, depois de ter recebido agradecimentos pessoais, quando o criado chegou com o chocolate da manhã. As palavras tremiam-lhe nos lábios, satíricas e mordazes. Não as proferia, porque Miss Lemon, devido à velocidade com que escrevia, não poderia ouvi-las.

Com um gesto de aborrecimento tirou a carta do cimo

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do montão. Sim, é exactamente o que Miss Lemon disse: uma direcção na cidade, um pequeno negócio semelhante a uma grosseira reclamação. O assunto o furto de um pekinois uma destas frioleiras que preenchem os ócios de uma mulher rica.

O lábio de Poirot encrespou-se apenas leu. Nada de excepcional neste caso, nada fora do vulgar.

Mas sim, sim, um pequeno detalhe. Miss Lemon tinha razão. Num pequeno pormenor havia qualquer coisa de invulgar.

Hercule Poirot sentou-se, leu a carta vagarosa e cuidadosamente. Não era o caso que ele desejava, que tinha prometido a si próprio. Não se tratava de um importante caso sensacional, era supremamente banal. Não era propriamente um trabalho de Hércules.

Mas infelizmente ele era curioso, sim, bastante curioso.

Levantou a voz mais alto que o ruído da máquina para ser ouvido por Miss Lemon.

Telefone a Sir Joseph Hoggin ordenou. Escreva um apontamento para eu não me esquecer de ir vê-lo ao escritório, como ele pede.

Como de costume, Miss Lemon estava no bom caminho.

Sou um homem vulgar, M. Poirot disse Joseph Hoggin. Poirot fez um sinal de protesto com a mão direita. Exprimia se assim o quiserdes admiração pela cuidadosa modéstia com que Sir Joseph se referia a si próprio, ao seu sólido mérito. Podia também exprimir uma graciosa indecisão. Em qualquer dos casos não dava a menor indicação do pensamento que dominava o espírito de Hercule Poirot.

Poirot, no íntimo, pensava que Sir Joseph era um homem banal, na verdade, bastante vulgar.

Os olhos de Poirot fixaram-se pouco lisonjeiramente nas faces entumecidas, nos olhinhos de porco, no nariz achatado, nos espessos lábios de Sir Joseph.

O aspecto geral recordava-lhe alguém ou qualquer coisa, mas de momento não podia precisar o que era. Fez esforços de memória. Havia muito tempo, na Bélgica,

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alguma coisa, relacionada com sabão... Sir Joseph continuou:

Não trema por minha causa, eu não bati a mata. Muitas pessoas, M. Poirot, deixariam escapar este caso. Mas isso não é para Joseph Hoggin. Sou rico e gastar duzentas libras não é nada para mim.

Poirot interpôs suavemente.

As minhas felicitações.

Sir Joseph calou-se por minutos. Os seus olhos pequenos ficaram ainda mais pequenos. Disse asperamente:

Isto não significa que tenha o hábito de esbanjar o meu dinheiro. Desejo pagar, mas pagar o preço estabelecido, mas não mais.

Hercule Poirot perguntou:

O senhor imagina que os meus honorários são elevados?

Sim, sim, mas isto é um caso de pouca importância.

Hercule Poirot encolheu os ombros.

Não sou um negociante. Sou um perito e pelo trabalho de perito o senhor tem de pagar o que tal trabalho merece.

Sir Joseph respondeu naturalmente:

Eu sei que o senhor é um homem experimentado em assuntos desta natureza. Pedi informações e disseram-me que o senhor era a pessoa mais competente para tratar do caso. Penso chegar ao fim. Não choro o meu dinheiro. Por isso lhe pedi para vir aqui.

O senhor é um homem afortunado, excessivamente afortunado disse Poirot com firmeza. Estou, posso dizê-lo sem falsa modéstia, no cume da minha carreira. Penso aposentar-me brevemente, viver no campo, viajar de vez em quando para ver o mundo e, também, cultivar o meu jardim, experimentar com particular atenção o desenvolvimento das abóboras. São magníficos vegetais, contudo falta-lhes o sabor. Mas não se trata agora das abóboras. Desejava apenas explicar-lhe que antes de me reformar me impus a mim próprio uma tarefa. Decidi aceitar doze casos, nem mais nem menos. Impor a mim próprio os Doze Trabalhos de Hércules, se assim

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posso chamar-lhes. O seu caso. Sir Joseph, é o primeiro dos Doze Trabalhos de Hércules. Fui atraído suspirou pela sua chocante falta de importância.

Importância? perguntou Sir Joseph.

Falta de importância, foi o que eu disse. Tenho sido chamado para variadíssimos casos: investigar assassínios, mortes misteriosas, roubos, assaltos a joalharias. Foi esta a primeira vez que recorreram ao meu talento para investigar o desaparecimento de um cão pekinois..

Sir Joseph soltou um suspiro dizendo:

O senhor surpreende-me. Poderá assegurar-me que nunca foi maçado por nenhuma mulher por causa do desaparecimento de um dos seus cães de estimação?

Certamente que sim, mas é a primeira vez que sou chamado pelo marido para investigar um caso desta natureza.

Os olhinhos de Sir Joseph fecharam-se ainda mais:

Começo a perceber porque me foi recomendado. O senhor é um sujeito astuto.

Poirot murmurou:

Se o senhor dissesse agora os pormenores do caso? Quando desapareceu o cão?

Há exactamente uma semana.

E a sua esposa está, então, muito nervosa, presumo?

Sir Joseph fixou a vista dizendo:

O senhor ainda não sabe: o cão voltou.

Voltou? Então, permita-me perguntar o que tenho eu a fazer neste caso.

Sir Joseph corou:

Eu estava condenado se o cão tivesse sido roubado. Vou dizer-lhe tudo.

«O cão foi roubado nos jardins de Kensington enquanto passeava com a dama de companhia da minha mulher. No dia seguinte a minha mulher recebeu o pedido de duzentas libras. Eu pergunto: duzentas libras por um brutinho que anda sempre a arranhar tudo com as patas?»

O senhor não aprovou o pagamento de -tal soma, naturalmente?

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Sem dúvida. Não teria sido paga se eu tivesse sabido alguma coisa. Milly, minha mulher, achou que estava bem. Nada me disse. Enviou o dinheiro como

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estava estipulado, em notas de uma libra, para a direcção indicada.

E o cão foi restituído.

Sim. Nessa mesma tarde a campainha tocou e o animalejo apareceu sentado à soleira da porta. Não se viu ninguém.

Perfeitamente. Continue...

Então, Milly confessou o que tinha feito e eu perdi um pouco as estribeiras. Acalmei pouco depois. Afinal o mal estava feito e o senhor não pode esperar que uma mulher pense com senso... e, confesso, teria deixado as coisas como estavam se não tivesse sido convocado para encontrar-me com o velho Samuelson no meu clube.

Sim?

Um caso danado. Esta coisa devia ser uma autêntica chantagem. Tinha-lhe sucedido exactamente o mesmo. Trezentas libras lhe roubaram, à esposa. Era um pouco mais. Decidi que o assunto devia parar. Fui então procurá-lo.

Perfeitamente, Sir Joseph, mas não acha que um caso desses devia antes ser mandado para a polícia?

Sir Joseph coçou o nariz e disse:

O senhor é casado, M. Poirot?

Não, não tenho essa felicidade respondeu Poirot.

Eu sou casado, mas não sei nada a respeito da felicidade. Se o senhor fosse casado, saberia que as mulheres são criaturas engraçadas. Minha mulher teve um ataque de histeria quando lhe falei na polícia e meteu-se-lhe na cabeça que alguma coisa poderia acontecer ao precioso bicho se eu me dirigisse à polícia. Nem quis ouvir falar em tal. Nem teve a ideia genial de o chamar, a si. Mas eu pus os pés à parede e ela por fim consentiu. Mas lembre-se de que ela não gostou.

Hercule Poirot murmurou:

Compreendo que é uma posição muito delicada. Não seria mau que eu fosse entrevistar a senhora sua esposa. Conseguiria que ela me dissesse mais pormenores e ao mesmo tempo garantir-lhe a futura segurança do precioso cão?

Sir Joseph inclinou a cabeça e levantou-se dizendo:

Posso levá-lo no meu carro.

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Numa espaçosa, aquecida e bem mobilada sala estavam sentadas duas senhoras.

Assim que Sir Joseph e Hercule Poirot entraram, um pequeno pekinois arremessou-se ladrando furiosamente e descrevendo perigosos círculos em volta dos tornozelos de M. Poirot.

Shan Tung vem cá, vem à tua mãe, amor. Levante-se e pegue-lhe, Miss Canaby.

A segunda mulher precipitou-se para a frente e Poirot murmurou:

Sem dúvida, é um verdadeiro leão. Algum tanto desconsolada a captora de Shan Tung concordou:

Sim, sem dúvida é como um bom cão de guarda. Não se assusta com ninguém nem com coisa alguma. É, pois, um bom rapaz.

Feitas as apresentações. Sir Joseph retirou-se dizendo:

Bem, M. Poirot, deixo-o a tratar do caso e com uma ligeira vénia abandonou a sala.

Lady Hoggin era uma mulher de formas avantajadas, arrogante aparência e cabelos avermelhados. A dama de companhia, a saltitante Miss Canaby, era uma pessoa amável, que devia andar entre os quarenta e os cinquenta anos. Tratava Lady Hoggin com grande deferência e tinha-lhe muito medo.

Poirot começou:

Agora, Lady Hoggin, conte-me todas as circunstâncias deste abominável crime.

Lady Hoggin corou:

Sinto-me muito satisfeita por ouvi-lo falar assim, M. Poirot. Porque foi um crime. Os pekinois são muito sensíveis, tão sensíveis como as crianças. O pobre Shan Tung podia ter morrido de medo.

Miss Canaby concordou, com a respiração entrecortada:

Sim, foi terrível, terrível!

Por favor, conte-me os factos.

Bem, foi assim: o Shan Tung saiu com Miss Canaby para o seu passeio habitual no parque...

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Valha-me Deus, a culpa foi minha interrompeu Miss Canaby. Como pude eu ter sido tão estúpida, e descuidada!

A Sr.a Hoggin respondeu asperamente:

Não quero censurá-la, mas parece-me que podia ter sido mais atenta.

Poirot pôs-se a olhar para a dama de companhia de Lady Hoggin:

Que aconteceu?

Miss Canaby começou a falar com volubilidade e ligeiramente agitada.

Bem, foi a coisa mais extraordinária! Tínhamos estado no passeio das flores: Shan Tung, preso à trela, já tinha dado as suas habituais corridinhas na relva e íamos mesmo a voltar para casa, quando a minha atenção foi distraída por um bebé. Um bebé tão bonito! Ria-se para mim, com as bochechas rosadas. Tinha uns caracóis tão lindos! Não pude resistir ao desejo de falar com a nurse e perguntar que idade ele tinha. Dezassete meses, disse a nurse. Tenho a certeza de que só estive a falar cerca de um minuto ou dois. De repente olhei para baixo e não vi o Shan Tung. A trela acabava de ser cortada, tinha sido cortada.

Lady Hoggin interveiu:

Se estivesse com atenção aos seus deveres ninguém teria aparecido furtivamente, ninguém teria cortado a trela do Shan Tung.

Miss Canaby quase ia rompendo em lágrimas. Poirot perguntou apressadamente:

Que aconteceu, depois?

Bem, claro que procurei por toda a parte. E chamei! E perguntei ao guarda do parque se tinha visto alguém com um pekinois, mas o homem não tinha visto nada no género. Eu não sabia que fazer, e depois de baldadas tentativas para encontrar Shan Tung, é claro, tive que regressar a casa.

Miss Canaby parou, cansada. Poirot vislumbrou a cena que se seguiu e interrogou de novo:

E depois recebeu uma carta, não é verdade? A Sr.a Hoggin tomou a palavra:

Pelo primeiro correio da manhã seguinte. Dizia que se quisesse tornar a ver o Shan Tung teria que mandar

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duzentas libras em notas de uma libra, num sobrescrito sem ser registado, dirigido ao capitão Curtis, 38 Bloomsbury Road Square. Dizia que se o dinheiro fosse marcado, ou a polícia informada, Shan Tung voltaria com a cauda e as orelhas cortadas.

Miss Canaby começou a fungar.

Horrívelmurmurou.Como há gente que possa ser tão diabólica!

A Sr.a Hoggin continuou:

Dizia que se eu mandasse o dinheiro imediatamente, Shan Tung regressaria a casa são e salvo, mas que, se depois fosse à polícia, seria o Shan Tung a sofrer.

Miss Canaby, murmurou chorosa:

Oh! meu Deus! Tenho tanto medo que mesmo agora... É claro, M. Poirot não é exactamente a polícia.

Lady Hoggin disse ansiosamente:

Como vê, M. Poirot, o senhor tem de ser muito cuidadoso.

Poirot foi pressuroso em acalmá-la.

Pode estar descansada, eu não sou da polícia. Os meus inquéritos são conduzidos muito discretamente. Pode estar certa, Lady Hoggin, que Shan Tung ficará perfeitamente a salvo. Posso garantir.

As duas senhoras pareceram aliviadas pela palavra mágica de Poirot.

Tem aqui a carta?

A senhora abanou a cabeça.

Não, ela dizia que a mandasse juntamente com o dinheiro.

E a senhora fez isso?

Fiz!

Mas eu tenho ainda a correia do cão. Vou buscá-la?

Sim.

Miss Canaby deixou a sala e Poirot aproveitou a sua ausência para fazer algumas perguntas a propósito.

Miss Canaby é boa pessoa?

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É uma boa alma, embora um pouco apatetada. Tenho tido várias damas de companhia e todas têm sido completamente patetas. Mas Amy é muito devotada ao Shan Tung e ficou aborrecidíssima com tudo isto, como, aliás, era o seu dever, visto que se distraiu a conversar com desconhecidas e negligenciou o meu queridinho!

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Estas damas velhas são todas malucas com bebés. Estou certa de que ela não tem nada a ver com o caso. Não parece assim, mas como o cão desapareceu quando estava a seu cargo tem-se quase a certeza da sua sinceridade.

Há quanto tempo está ela ao seu serviço?

Quase há um ano. Tive excelentes referências a seu respeito. Esteve com a velha Sr.a Hartingfield até que ela morreu, há uns dez anos. Depois disso tomou conta de uma irmã doente. É uma excelente criatura, mas completamente parva, como disse.

Amy Canaby voltou neste momento quase sem respiração. Mostrou a correia do cão cortada, que entregou a Poirot com toda a solenidade olhando para ela na expectativa.

Poirot examinou-a cuidadosamente.

Mais oui disse ele, isto foi indubitavelmente cortado.

As duas mulheres continuaram na expectativa.

Guardo isto, disse Poirot e solenemente pôs a correia no bolso.

As duas mulheres suspiraram de alívio: Poirot tinha feito o que esperavam dele.

Era hábito de Poirot nunca deixar nenhum facto por comprovar. Embora não parecesse provável que Miss Canaby fosse mais do que a mulher apatetada que aparentava ser, Poirot arranjou maneira de entrevistar uma sobrinha da última Lady Hartingfield.

Amy Canaby disse Miss Maltravers. Pois claro, lembro-me perfeitamente dela. Era uma boa alma, e serviu muito bem a tia Julia. Devotada a cães, excelente para ler em voz alta, com imenso tacto também. Nunca contrariava um doente. Parou, e depois prosseguiu:

Que lhe aconteceu? Espero que não tenha havido nenhum aborrecimento. É que há um ano dei referências a seu respeito a uma senhora cujo nome começava por H.

Poirot explicou apressadamente que Miss Canaby ainda se conservava no seu posto.

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Houve um pequeno aborrecimento a respeito de um cão perdido.

Amy Canaby é muito dedicada a cães. A minha tia tinha um pekinois que deixou a Miss Canaby quando morreu. Miss Canaby gostava imenso do animal. Acredito que ela tivesse tido grande desgosto quando ela morreu. Sim, ela era uma boa alma, sem dúvida. Se bem que não fosse uma intelectual...

Poirot concordou.

O seu primeiro trabalho foi descobrir o guarda do jardim com quem Miss Canaby falou na fatídica tarde, o que conseguiu sem grande dificuldade. O homem recordava-se do incidente em questão:

Uma senhora de meia-idade, um pouco forte, que perdeu um cão, um pekinois. Conheço-a muito bem, de vista. Traz o cão aqui todas as tardes. Vi-a chegar com ele. Contra o costume, a senhora estava conversando quando o perdeu. Dirigiu-se logo a mim, para saber se eu tinha visto alguém com um pekinois. O jardim está cheio de cães de diversas raças: Pekes Germans, Borzois Terriers, temos aqui de todas as espécies. Não notei, não fixei um pekinois mais de que qualquer outro.

Hercule Poirot abanou a cabeça pensativamente.

Dirigiu-se ao número 38 de Bloomsbury Square.

Os números 38, 39 e 40 estavam incorporados no Balaclava Private Hotel. Poirot subiu a escada e empurrou a porta: foi saudado pela obscuridade e um cheiro de alface cozida, como reminiscência de um magro primeiro almoço. À esquerda, uma mesa de mogno com um vaso de crisântemos murchos. Por cima da mesa, uma espécie de bandeja coberta com uma flanela, dentro da qual se guardavam as cartas. Poirot estacou à porta, pensativamente, durante alguns minutos. Dirigiu-se a um compartimento onde havia pequenas mesas e algumas cadeiras com pretensões a confortáveis, forradas de cretone usado.

Três senhoras idosas e um velho mal-encarado levantaram a cabeça e fixaram o intruso com implacável desconfiança.

Poirot corou e afastou-se. Caminhou ao longo do aposento e chegou a uma escadaria. À direita abria-se um aposento que era evidentemente a sala de jantar.

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Um pouco mais longe uma porta onde estava escrito «ESCRITÓRIO». Poirot bateu. Não recebeu resposta, abriu a porta e olhou para dentro.

Havia na sala uma grande secretária coberta de papéis mas não se via ninguém. Retirou-se, fechando a porta de novo. Entrou na sala de jantar.

Uma rapariga de aspecto triste, com um avental sujo, arrastava-se com um cesto de talheres que ia colocando na mesa.

Hercule Poirot disse, energicamente:

Desculpe, posso ver a gerente da casa?

A rapariga olhou para ele com uns olhos sem brilho.

Não sei, não tenho a certeza.

Não está ninguém no escritório? perguntou Poirot.

A rapariga suspirou: aborrecidos, como ela, os dias corriam e agora ainda mais esta maçada.

Bem, vou ver o que posso fazer.

Poirot agradeceu e deslocou-se uma vez mais para a sala de entrada, para não enfrentar os olhares agressivos dos ocupantes da sala de visitas. Estacionava junto da bandeja dos papéis quando um aroma de violetas de Devonshire anunciou a chegada da gerente.

Mrs. Harte era bastante graciosa. Ao ver Poirot dirigiu-se-lhe exclamando:

Desculpe-me, não estava no escritório. Deseja algum quarto?

Não é precisamente isso o que procuro. Desejava saber se um amigo meu aqui tinha estado ultimamente. O capitão Curtis.

Curtis exclamou a gerente, capitão Curtis, esse nome não me é estranho...

Poirot não a ajudou a avivar a memória. Mrs. Harte abanou a cabeça desolada.

Não teve então nenhum capitão Curtis aqui hospedado?

Ultimamente não, por certo, mas o nome é-me, certamente, familiar. Pode descrever-me como é o seu amigo?

Será difícil disse Poirot. Penso que algumas vezes sucede serem as cartas dirigidas a pessoas que nunca aqui estiveram!

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Isso acontece, sem dúvida.

E o que fazem a essas cartas?

Bem, guardam-se durante algum tempo. Talvez signifique que a pessoa em questão chega brevemente. Sem dúvida, se as cartas se conservam sem ser reclamadas devolvem-se para o correio.

Poirot abanou a cabeça pensativamente, dizendo:

Compreendo, foi assim. Escrevi uma carta para aqui, para o meu amigo.

A face de Mrs. Harte iluminou-se:

Devia ter visto o nome no sobrescrito. Mas realmente temos aqui hospedados tantos militares afastados do serviço ou que passaram por aqui! Deixe-me ir ver.

Espreitou para a mesa.

Aqui não há nada. Devia ter voltado para o carteiro, suponho. Tenho muita pena, desculpe. Nada de importância? Espero que assim seja.

Assim que Poirot se dirigiu para a porta, Mrs. Harte perseguiu-o com o seu aroma de violetas.

E se o seu amigo chegar?

Não deve ser provável, devo estar errado.

As nossas diárias são moderadas, disse Mrs. Harte. O café a seguir ao jantar está incluído na diária. Gostava de mostrar-lhe um ou dois dos nossos quartos.

Dificilmente Poirot conseguiu escapar-se.

A sala de estar de Mrs. Samuelson era mais espaçosa, mais luxuosa e confortavelmente mobilada que a de Lady Hoggin.

Poirot abriu caminho por entre consolas doiradas e grande profusão de estatuetas.

Mrs. Samuelson era mais alta do que Lady Hoggin e de cabelo oxigenado. O seu pekinois chamava-se Nanki Poo. Os seus olhos redondos fixavam Poirot com arrogância. Miss Keble, dama de companhia de Mrs. Samuelson, era magra e, também, respirava com dificuldade. Ela também tinha ficado alarmada com o desaparecimento de Nanki Poo.

Realmente, M. Poirot, foi a coisa mais espantosa.

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Tudo sucedeu num segundo, à saída do Harrows. Uma nurse perguntou-me as horas... Poirot interrompeu:

Uma nurse, uma enfermeira?

Não, não. Uma nurse de crianças. Uma criança amorosa que dava gosto olhar. Sorridente, de adoráveis faces rosadas. Dizem que as crianças de Londres não parecem saudáveis, mas não sou da mesma opinião.

Ellen! disse Mrs. Samuelson.

Miss Keble corou, gaguejou e reduziu-se ao silêncio. Então, a Sr.a Samuelson disse com aspereza:

Enquanto Miss Keble se entretinha com um transeunte qualquer com o qual nada tinha que falar, um audacioso patife cortou a trela de Nanki Poo.

Miss Keble murmurou, por entre lágrimas:

Tudo sucedeu num segundo. Olhei em volta e o queridinho tinha desaparecido deixando a correia pendente da minha mão. Talvez gostasse de ver a correia, M. Poirot.

De modo algum disse Poirot asperamente. Não desejo coleccionar trelas de cães, cortadas. Eu sei, o cão desapareceu e a senhora depois recebeu uma carta?

Era a mesma história. Uma carta a ameaça de violência, de cortar as orelhas e a cauda do cão se o dinheiro não fosse enviado. Apenas duas coisas diferentes. A importância pedida trezentas libras e a direcção para onde devia ser enviado o dinheiro. Desta vez era para Commander Blackleigh, Harrigton Hotel, 76, Coronel Gardens, Kensington.

Mrs. Samuelson prosseguiu:

Logo que Nanki Poo regressou são e salvo fui eu própria à direcção indicada, porque trezentas libras, sempre são trezentas libras!

Certamente.

A primeira coisa que vi foi a minha carta, numa espécie de bandeja. Enquanto esperava pelos proprietários escondi-a na mala. Infelizmente...

Poirot disse:

Infelizmente, quando a abriu continha apenas folhas de papel em branco.

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Como o soube? Mrs. Samuelson virou-se para ele com respeito.

Poirot encolheu os ombros.

É natural, chère madame, o ladrão teria o cuidado de recolher o dinheiro antes de restituir o cão. Substituiu, então, as notas por papel branco e tornou a pôr a carta na bandeja antes que o seu desaparecimento fosse notado. Nenhum comandante Black tinha ali estado alguma vez.

Poirot sorriu.

Sem dúvida, o meu marido ficou aborrecidíssimo com tudo isto.

Poirot perguntou cautelosamente:

Porque não o consultou antes de mandar o dinheiro?

Poirot fez a pergunta e a senhora explicou:

Não me teria arriscado. Os homens são tão esquisitos quando se trata de dinheiro... Jack teria insistido para que se fosse à polícia. Não podia correr o risco. Tudo poderia acontecer ao meu querido Nanki Poo. E claro, tive que contar ao meu marido, tive que explicar por que razão fui levantar dinheiro ao banco.

Pois claro, pois claro murmurou Poirot.

Os homens disse Mrs. Samuelson brincando com a pulseira de diamantes e dando voltas aos anéis nos dedos. Os homens só pensam no dinheiro.

Poirot subiu no elevador e dirigiu-se ao escritório de Sir Joseph Hoggin. Mandou entregar um cartão mas disseram-lhe que Sir Joseph estava ocupado. Uma loira de aspecto altivo saiu do aposento com as mãos cheias de papéis. Deitou um olhar desdenhoso ao homenzinho.

Sir Joseph estava sentado por detrás de uma enorme secretária de mogno. Via-se uma mancha de baton no seu queixo.

Então, M. Poirot, tem algumas novidades para me dar?

Poirot respondeu:

O caso é de uma simplicidade encantadora. Ambas

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as vezes o dinheiro foi enviado para uma dessas pensões ou hotéis particulares onde não há porteiro e onde um grande número de hóspedes entra e sai, incluindo uma larga frequência de militares retirados do serviço. Nada seria mais fácil que entrar qualquer pessoa e tirar uma carta da bandeja. Depois seguir o seu caminho, ou então tirar o dinheiro e voltar a deixar a carta com as folhas de papel em branco. Todavia, em qualquer dos casos a pista termina sempre numa muralha branca.

Você quer dizer que não tem nenhuma ideia de quem seja o camarada?

Eu tenho algumas ideias, sim. Disporei de alguns dias para segui-las de perto.

Sir Joseph olhou para ele cheio de curiosidade:

Bom trabalho. Então quando tiver alguma coisa para relatar...

Relatá-la-ei em sua casa. Sir Joseph disse:

Se conseguir chegar ao fim deste caso terá realizado um trabalho interessante.

Hercule Poirot disse:

Não é questão de fracasso. Hercule Poirot nunca falha.

Sir Joseph olhou para o homenzinho e fez um trejeito.

Tem muita confiança em si próprio, não tem? perguntou ele.

Com toda a razão.

Oh, muito bem. Sir Joseph recostou-se na cadeira. O orgulho caminha à frente da queda, você sabe!

Hercule Poirot, sentado em frente do radiador eléctrico (e sentindo uma tranquila satisfação nas suas elegantes e correctas linhas) dava instruções ao criado e encarregado de todos os problemas.

Você compreende, George?

Perfeitamente, senhor.

De preferência um apartamento ou uma casa pequena. E isto pode ser dentro de certos limites. Sul

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do Parque, a oriente da igreja de Kensington, ocidente de Knitsbridge Barracks e norte de Fulham Road.

Entendo perfeitamente, senhor.

Um caso banal mas curioso. É evidente que há aqui um verdadeiro talento de organização. E isto é, sem dúvida, a surpreendente invisibilidade do principal actor o Leão de Nemeia. Sim, um casozinho interessante. Desejava sentir-me mais atraído pelo meu cliente, mas ele tem uma extraordinária semelhança com o fabricante de sabão de Liège que envenenou a mulher para casar com uma secretária loira. Um dos meus primeiros sucessos.

George abanou a cabeça e disse gravemente:

Estas loiras, senhor, são responsáveis por muitos aborrecimentos.

Tinham passado três dias quando o prestabilíssimo George disse:

É esta a direcção, senhor.

Hercule Poirot tirou-lhe o papel da mão e exclamou:

Excelente, meu bom George. E em que dia da semana?

quinta-feira, senhor.

quinta-feira. E hoje, afortunadamente, é quinta-feira. Portanto, não há necessidade de adiar.

Vinte minutos depois Poirot subia as escadas de um retirado bloco de apartamentos, aconchegado numa pequena rua, situada em frente de outra mais moderna. O n.° 10 de Rosholm Mansions ficava num terceiro andar, ao topo da escada e não tinha elevador. Poirot cansou-se a subir os inúmeros degraus de uma estreita escada em caracol. Deteve-se para retomar o fôlego, no patamar, e, vindo detrás da porta do n.° 10, um novo som quebrou o silêncio. Era o áspero ladrar de um cão.

Poirot abanou a cabeça, teve um radioso sorriso, e premiu o botão da campainha do n.° 10.

O ladrar redobrou, e uns passos aproximaram-se da porta, que foi aberta...

Miss Amy Canaby recuou apertando com a mão o seio.

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Permite-me que entre? perguntou Hercule Poirot, e foi entrando sem esperar pela resposta. Havia uma sala de visitas à direita e ele encaminhou-se para lá. Atrás dele, Miss Canaby seguia como se fosse num sonho.

O quarto era muito pequeno e atravancado. Por entre o mobiliário podia divisar-se uma pessoa, uma mulher mais velha, estendida num sofá perto do fogão de gás. Apenas Poirot chegou o cão pekinois saltou do sofá soltando alguns ásperos e suspeitos ladridos.

Ah!disse Poirot. Eis o principal actor. Os meus cumprimentos, meu amiguinho. Curvou-se para a frente estendendo a mão. O cão fungou e o seu olhar inteligente fixou-se na face do homem.

Miss Canaby murmurou timidamente:

O senhor sabe tudo? Hercule Poirot abanou a cabeça.

Sim, eu sei!Olhou para a mulher que estava deitada no sofá. É sua irmã, penso eu.

Miss Canaby respondeu maquinalmente:

Sim! Emily, apresento-te M. Poirot. Emily Canaby suspirou.

Augustus chamou Amy Canaby.

O pekinois olhou para ela, agitou a cauda e, então, recomeçou a sua investigação em volta de Poirot De novo agitou timidamente a cauda.

Gentilmente, Poirot pegou no cãozito. E sentou-se com Augustus no joelho, dizendo:

Assim capturei o Leão de Nemeia. A minha tarefa está acabada.

Amy Canaby perguntou num tom de voz duro

Na verdade, sabe tudo? Poirot abanou a cabeça:

Suponho que sim. Você organizou o caso tendo Augustus como auxiliar. Levou o cão que lhe estava confiado, para o passeio habitual, trouxe-o para sua casa e foi para o parque com Augustus. O guarda do parque viu-a com um pekinois como de costume. A nurse, se nós a encontrássemos, teria também dito que estava com um pekinois, enquanto falava com ela. Então, enquanto estavam conversando, você soltou a correia a Augustus, e este, ensinado por si, escapou-se e regressou, que nem

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uma seta, para casa. Poucos minutos depois você dava o alarme dizendo que o cão tinha sido roubado.

Fez-se um silêncio. Então, Miss Canaby avançou com certa dignidade e disse:

Sim, tudo isso é verdade. Não tenho mais nada a dizer.

A inválida, no sofá, começou a chorar em silêncio. Poirot perguntou:

Absolutamente nada, mademoiselle? Miss Canaby respondeu:

Nada! Sou uma ladra, e agora fui descoberta! Poirot murmurou:

A senhora não tem mais nada a dizer em sua própria defesa?

As faces brancas de Amy cobriram-se de rubor:

Não lastimo o que fiz. Julgo que o senhor é boa pessoa e que possivelmente compreenderá. Sabe, eu tenho tido tanto medo...

Medo?

Sim! É difícil, para um homem, compreender. Mas, como vê, eu não sou uma mulher esperta e não tenho experiência nenhuma. Estou a ficar velha e tenho tanto medo do futuro. Não tenho tido possibilidades de poupar nada. Como podia eu poupar qualquer coisa tendo a Emily a meu cargo? E como envelheço cada vez mais e cada vez me torno mais incompetente, não haverá ninguém que me queira. Só aceitam gente nova e desembaraçada. Conheço muitas pessoas nas minhas condições e ninguém as quere. Vivem num quarto sem aquecimento, sem conforto. Muitas vezes sem terem que comer, e por fim nem sequer têm para pagar a renda do quarto... Existem instituições, sem dúvida, mas é difícil entrar para lá, a não ser por intermédio de amigos influentes, e eu não os tenho.

Parou por momentos e depois prosseguiu:

Há um grande número de outras mulheres como eu: pobres damas de companhia, sem experiência, sem préstimo, sem nenhum futuro a não ser um medo pavoroso...

A sua voz tremia. Continuou, abatida:

E por isso algumas de nós juntaram-se e eu imaginei isto. Verdadeiramente foi a posse do Augustus que

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me inspirou esta ideia. Como sabe, para a maior parte das pessoas os pekinois são todos parecidos. (Como nós pensamos que os chineses o são.) Na verdade é ridículo. Ninguém que o conheça pode confundir Augustus com Nanki Poo ou Shan Tung ou qualquer outro pekinois. Ele é de longe mais inteligente do que qualquer outro e mais bonito, mas para a maior parte das pessoas um pekinois é sempre um pekinois. Augustus pôs-me esta ideia na cabeça. Isto combinado com o facto de que muitas mulheres ricas têm pekinois...

Com um sorriso desmaiado Poirot respondeu:

Deve ter sido um aproveitável truque! Quantas estão na quadrilha? Ou talvez seja melhor perguntar-lhe quantas operações se realizaram com sucesso?

Miss Canaby disse simplesmente:

Shan Tung foi a décima sexta. Poirot levantou as sobrancelhas:

Os meus parabéns. A vossa organização deve ter sido, sem dúvida, excelente!

Emily Canaby disse:

Amy foi sempre uma boa organizadora. Nosso pai, vigário em Kellington, no Essex, dizia que a Amy era um génio, para organizar. Ela arranjava sempre tudo para as festas de caridade, para os bazares, etc.

Poirot disse, com uma pequena inclinação de cabeça:

Concordo. Como criminosas, mademoiselle, estão ambas muito bem no primeiro plano.

Amy Canaby chorou:

Uma criminosa! Meu Deus! Suponho que o sou. Mas nunca senti que o era. É claro que tem razão. Foi violar a lei. Mas como posso eu explicar? Geralmente todas estas mulheres que nos empregam são muito desagradáveis. Lady Hoggin, por exemplo, o senhor nem pode supor. Há dias disse-me que o seu tónico sabia mal e praticamente acusou-me de lhe ter mexido. É realmente muito desagradável. Como não sou capaz de lhe dizer qualquer coisa ou de responder-lhe mal ainda faz pior. O senhor sabe o que eu quero dizer!

Compreendo muito bem o que a senhora quer dizer disse Poirot.

E então vendo esbanjar assim o dinheiro... Aquilo é mesmo deitá-lo à rua. E Sir Joseph costuma contar, às

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vezes, algum golpe que fez, na City. Algumas vezes qualquer coisa que me parece (é claro, eu sei que apenas tenho cérebro de mulher e não entendo de finanças) francamente desonesta. Bem, o senhor sabe, M. Poirot. Tudo isto, tudo isto me influenciou. Pensei que tomar para mim algum dinheiro desta gente a quem ele não faz falta, e que, na realidade, foi tão pouco escrupulosa na maneira de o adquirir... Tive a ousadia de pensar que não seria um crime. Poirot murmurou:

Um moderno Robin Wood. Diga, Miss Canaby, alguma vez cumpriu as ameaças que fazia nas suas cartas?

Ameaças?

Alguma vez mutilou os animais da forma que dizia?

Miss Canaby olhou-o horrorizada:

Nunca! Eu nunca sonhei fazer semelhante coisa. Aquilo era apenas, apenas um artístico truque.

Muito artístico! Deu resultado!

Já sabia que daria. Sabia o que sentiria se se tratasse de Augustus, e é claro que tinha de ter a certeza de que estas mulheres nada contariam aos maridos senão depois. O plano deu sempre óptimo resultado. Em nove casos de dez, elas davam o dinheiro às damas de companhia dentro de um sobrescrito para pôr no correio. Geralmente abríamos os sobrescritos ao vapor de água, tirávamos as notas e substituíamo-las por papel. Uma ou duas vezes uma das senhoras deitava a carta no correio. Nessa ocasião, a dama de companhia teria que ir ao hotel e tirar a carta. Mas isso era também muito simples.

E a parte da nurse? Havia sempre uma nurse?

Bem, como sabe, M. Poirot, as senhoras de idade são conhecidas por serem doidas por bebés. Por conseguinte pareceria natural que se distraíssem com o bebé e não notassem nada mais.

Poirot suspirou e disse:

A sua psicologia é excelente, a sua organização de primeira classe e a senhora é também uma finíssima actriz. O seu aprumo, no outro dia, quando entrevistei Mrs. Hoggin, foi irrepreensível. Nunca pensei que tivesse que suspeitar de si. Pode ser que a senhora seja uma

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mulher indisciplinada ou de mau feitio, mas não no que diz respeito ao seu espírito ou à sua coragem.

Miss Canaby, com um fraco sorriso, acrescentou:

E assim me têm considerado, M. Poirot.

Apenas eu. O que era inevitável. Quando entrevistei Mrs. Samuelson concluí que o furto de Shantung era um da série. Eu já sabia que lhe tinha sido deixado um pekinois e que tinha uma irmã inválida. Apenas pedi ao meu precioso criado para vigiar um pequeno apartamento, numa determinada área, ocupado por uma senhora inválida que tinha um pekinois e uma irmã que a visitava uma vez por semana no dia de saída. Era simples.

Miss Canaby disse:

O senhor é muito amável. Atrevo-me a pedir-lhe um favor. Eu sei que não posso escapar da condenação pelo que fiz. Serei enviada para a prisão, suponho eu. Mas se puder, M. Poirot, evite a publicidade. Seria uma mortificação para Emily e para os velhos amigos. Não posso ir para a prisão com um falso nome? Ou é errado pensar assim?

Penso poder fazer mais do que isso. Mas antes disso devo dizer-lhe uma coisa que tem de atender: esta história parou. Não devem desaparecer mais cães. Tudo isto acabou.

Sim! Oh, claro que sim!

E o dinheiro que extorquiu a Lady Hoggin deve ser restituído.

Amy Canaby atravessou a sala, abriu a gaveta da secretária e voltou com um maço de notas, que passou para as mãos de Poirot.

Vou devolver isto ainda hoje!

Poirot pegou nas notas, contou-as e levantou-se.

Penso ser possível, Miss Canaby, persuadir Sir Joseph a não proceder.

Oh! M. Poirot!

Amy Canaby juntou as mãos, Emily soltou um grito de alegria. Augustus ladrou e agitou a cauda.

Quanto a ti, meu amigo disse Poirot, dirigindo-se ao cão há uma coisa que eu desejo e que não me podes dar. É do teu manto de invisibilidade que eu necessito. Ninguém suspeita que em todos estes casos está

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envolvido um segundo cão. Augustus possuía a pele de invisibilidade do Leão.

Sem dúvida, M. Poirot; segundo a lenda, os pekinois outrora foram leões. E ainda têm coração de leões.

Augustus é, suponho, o cão que lhe foi deixado por Lady Hartingfield. Nunca teve medo que ele viesse para casa só, no meio de tanto tráfico?

Oh! Não, M. Poirot. Augustus é muito esperto. Treinei-o o mais cuidadosamente possível. Foi sempre instruído nas ruas principais.

Nesse caso disse Hercule Poirot ele é superior a muitas pessoas.

Sir Joseph recebeu Poirot no seu estúdio:

Muito bem, M. Poirot. Realizou já o seu trabalho?

Deixe-me, primeiro, fazer-lhe uma pergunta disse Poirot e sentou-se. Já sei quem é o criminoso e penso possuir provas suficientes para o convencer. Mas nesse caso duvido de que alguma vez possa recuperar o seu dinheiro.

Não trouxe o meu dinheiro? Sir Joseph tornou-se escarlate.

Hercule Poirot continuou:

Mas eu não sou um polícia. Estou actuando neste caso, somente no seu interesse. Posso, penso eu, recuperar o seu dinheiro intacto se o senhor não proceder.

Eh! disse Sir Joseph. Preciso pensar um pouco. Rigorosamente falando, suponho que deve proceder no interesse público. A maioria das pessoas diria isso.

«Eu desafio-os a dizerem o que quiserem, continuou Sir Joseph asperamente. Não será o dinheiro deles que desaparece. Se alguma coisa detesto é ser logrado. Jamais alguém me logrou e se foi embora.»

Bem, então, que decide?

Sir Joseph bateu na mesa com o punho:

Que ninguém diga que se foi embora com duzentas libras do meu dinheiro.

Hercule Poirot levantou-se, dirigiu-se para a secretária,

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assinou um cheque de duzentas libras e passou-o ao outro homem, dizendo:

Bem, estou condenado. Quem é este diabo de camarada?

Poirot abanou a cabeça:

Se aceitou o dinheiro não deve fazer perguntas. Sir Joseph dobrou o cheque e meteu-o no bolso.

É uma pena, mas o dinheiro é que interessa. E quanto lhe devo eu, M. Poirot?

Os meus honorários não são elevados. Trata-se, como lhe disse, de um caso de pouca importância. Fez uma pausa e acrescentou. Presentemente, quase todos os meus casos são casos de assassínio.

Sir Joseph estremeceu ligeiramente e disse:

Deve ser interessante!

Algumas vezes é bastante curioso. O senhor recorda-me um dos meus primeiros casos passados na Bélgica, há muitos anos. O principal protagonista parecia-se muito consigo. Era um bom preparador de sabão. Envenenou a mulher, para ficar livre e casar com a secretária. Sim, a semelhança é notável.

Um fraco som saiu dos lábios de Sir Joseph. Tornou-se azul, toda a cor lhe desapareceu das faces. Com os olhos dilatados encarou Poirot. Resvalou um pouco na cadeira. Então remexeu na algibeira. Tirou o cheque e colocou-o em cima da mesa.

Está tudo acabado, vê? Considera isto o seu pagamento?

Mas, Sir Joseph, o meu pagamento não pode ser assim tão elevado.

Está bem, guarde-o.

Enviá-lo-ei para fins de caridade.

Poirot inclinou-se para a frente e disse:Julgo necessário fazer-lhe notar, Sir Joseph, que na sua posição, deveria ser excessivamente cuidadoso.

Sir Joseph respondeu com voz quase inaudível:

Não é preciso aborrecer-se, serei cuidadoso. Hercule Poirot deixou a sala. Enquanto descia os degraus ia dizendo para com os seus botões:

Greta pode deslizar. Não vou arriscar o meu pescoço por qualquer loira platinada.

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Oh! Amy Canaby contemplou incredulamente o cheque de duzentas libras que tinha na mão e gritou:

Emily, Emily, olha para isto.

Cara Miss Canaby

Permita-me incluir a contribuição para a sua Fundação antes que esteja definitivamente esgotada.

Seu dedicado Hercule Poirot.

Amy disse Emily Canaby, foste incrivelmente afortunada. Pensa onde poderias estar agora: em Wormwood Scrubbs ou Holloway murmurou Emily.

Mas tudo isso passou, não é verdade, Augustus? Não haverá mais passeios no parque com a mãe ou as suas amigas e uma pequena tesoura.

Olhou fixamente e suspirou:

Sim, eu tinha razão.

Lady Hoggin disse para o marido:

É engraçado, este tónico tem um sabor diferente. Porque será que já não amarga tanto?

Sir Joseph resmungou:

Coisas dos farmacêuticos, que às vezes são pouco cuidadosos. De cada vez preparam as coisas de sua maneira.

Lady Hoggin, pensativamente, concluiu:

Suponho que deve ser isso.

Que outra coisa poderia ser?

O homem encontrou alguma pista a respeito de Shan Tung?

Sim, restituiu-me o dinheiro!

Quem foi?

Não disse. Hercule Poirot é muito reservado. Mas não te aborreças. É um tipo curioso, não é?

Sir Joseph teve um ligeiro estremecimento e dirigiu

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o olhar para todos os lados, como se sentisse a invisível presença de Hercule Poirot por detrás do ombro direito.

É um diabinho danado e esperto!

Querido Augustus, até faz pena! É tão esperto... Tudo se lhe pode ensinar, tudo aprende!

II A HIDRA DE LERNA

Hercule Poirot olhou encorajadoramente para o homem sentado no lado oposto.

O Dr. Charles Oldfield era um homem de cerca de quarenta anos. Tinha um bonito cabelo, brilhante e grisalho nas fontes e uns olhos azuis de expressão macerada. Parou um pouco e os seus modos eram excitantes. Parecia ter dificuldade em entrar no assunto.

Balbuciando disse:

Vim procurá-lo, M. Poirot, com extraordinário interesse e agora, que estou aqui, parece-me um caso sem saída. Porque vejo muito bem, é uma coisa em que não há nada a fazer.

Quanto a isso cabe-me a mim julgar.

Não sei porquê, penso que talvez... Parou de falar. Hercule Poirot terminou a frase:

Que talvez eu possa ajudá-lo? Está bem, talvez consiga. Conte-me o seu problema.

Oldfield ficou embaraçado.

Poirot notou como ele estava pálido. Oldfield começou a falar e na sua voz havia um tom de desespero:

O senhor vê, não vale a pena ir à polícia... Eles não podem fazer nada. E cada dia as coisas vão de mal a pior.

Que é o pior?

Os rumores... Oh, é muito simples, M. Poirot. Há justamente um ano a minha mulher morreu. Era uma inválida há muitos anos e toda a gente diz que a envenenei!

Olá! exclamou Poirot. E envenenou-a?

M. Poirot! O Dr. Oldfield deu um salto.

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Acalme-se disse Hercule Poirot, e sente-se outra vez. Partamos do princípio que não envenenou a sua

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mulher. A sua clínica, suponho, está situada numa terra de província.

Sim. Market Loughborough, no Berkshire. Sempre pensei que era um lugar onde o povo criticava tudo, mas nunca imaginei que chegasse a este ponto! Desviou a cadeira um pouco para trás.

M. Poirot, não faz ideia do que eu tenho feito. A princípio nada sabia acerca do que corria. Notei apenas que o povo parecia menos amável, mas não fiz grande reparo. Mas depois o caso tornou-se mais notado. Na rua, as pessoas afastavam-se a distância para evitar falar-me. A minha clínica começou a decair. A toda a parte onde chego me apercebo dos mais baixos rumores, dos olhares hostis, das maliciosas línguas que espalham sobre mim o seu imenso veneno. Recebi uma ou duas cartas com coisas vis.

Depois de uma pausa continuou:

E... e não sei o que hei-de fazer. Não sei como lutar contra este emaranhado de mentiras e suspeitas. Como pode alguém refutar o que não lhe é dito abertamente, cara a cara? Estou arrasado, apanhado numa armadilha e lenta e cruelmente sendo destruído.

Poirot abanou pensativamente a cabeça dizendo:

Sim, um boato é sem dúvida a Hidra de Lerna que não podia ser exterminada, porque assim que se lhe cortava uma cabeça logo outra crescia no seu lugar.

O Dr. Oldfield concordou: é isso mesmo. Não há nada que eu possa fazer, nada. Procurei-o como último recurso, mas não penso nem um minuto que alguma coisa o senhor possa fazer.

Hercule Poirot calou-se por momentos e então disse:

Não tenho a mesma certeza. O seu problema interessa-me. Agradava-me destruir a hidra de sete cabeças. Antes de mais nada, diga-me qualquer coisa mais a respeito das circunstâncias que deram origem a esse malicioso boato. Disse-me que a sua esposa tinha morrido justamente há um ano. Qual foi a causa da morte?

Úlcera gástrica.

Fizeram autópsia?

Não! Havia muito tempo que ela sofria de perturbações gástricas.

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Os sintomas da inflamação gástrica e do envenenamento pelo arsénico são absolutamente iguais. Toda a gente sabe isso hoje em dia. Nos últimos dez anos tem havido vários casos de assassínio, e em cada um deles a vítima tem sido enterrada com certificado de úlcera gástrica. Sua esposa era mais velha ou mais nova que o senhor?

Era cinco anos mais velha.

Há quantos anos estavam casados?

Há quinze anos.

Ela tinha fortuna?

Sim, era uma mulher abastada. Deixou cerca de trinta mil libras. Uma boa soma.

Deixou-as ao Dr. Oldfield?

Sim!

O senhor e a sua mulher davam-se bem?

Certamente.

Nem discussões, nem brigas?

Bem Charles Oldfield hesitou. Minha mulher era o que se chama uma pessoa difícil. Era uma inválida, muito preocupada com a saúde e inclinada a ser rabugenta e difícil de contentar. Havia dias em que nada estava bem para ela.

Poirot abanou a cabeça dizendo:

Ah, sim, eu conheço o género. Mrs. Oldfield queixava-se possivelmente de que era abandonada, mal compreendida, que o marido estava cansado dela e que ficaria satisfeito com a sua morte.

A expressão do Dr. Oldfield confirmava a verdade de que Poirot desconfiava.

Disse com um sorriso forçado:

O senhor compreendeu bem o que eu quero dizer. Poirot continuou:

Teve uma enfermeira para a tratar, uma dama de companhia, ou uma criada dedicada?

Uma enfermeira muito sensível e competente.

Sempre as enfermeiras sensíveis e competentes têm sido boas línguas mas, Deus me valha, nem sempre empregam as línguas como deve ser. Não tenho

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dúvida de que a enfermeira falou, que as criadas falaram, que toda a gente falou. Têm aqui todos os dados para a origem

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de um delicioso escândalo de aldeia. Agora, pergunto-lhe mais uma coisa: Quem é a senhora?

Não o compreendo!O Dr. Oldfield corou de raiva.

Poirot insistiu amavelmente:

Julgo que me entende. Qual é a senhora a quem o seu nome anda associado? O Dr. Oldfield levantou-se. A sua face estava lívida e fria:

Não há nenhuma mulher no caso. Lamento ter-lhe tomado tanto tempo.

E dirigiu-se para a porta.

Eu também lamento respondeu Hercule Poirot, mas o seu caso interessa-me. Contudo não posso fazer nada enquanto não souber toda a verdade.

Eu disse-lhe toda a verdade.

Não...

O Dr. Oldfield estacou, depois rodou nos calcanhares:

Porque insiste em dizer que existe uma mulher ligada ao caso?

Mon cher docteur!

Pensa, então, que eu não conheço a mentalidade feminina? A tagarelice das terras pequenas é baseada sempre nas relações dos sexos. Se um homem envenenou a sua mulher para ir passear para o Pólo Norte ou para levar vida de solteiro, isso não interessa, não interessa aos camaradas de aldeia, nem um minuto sequer. É apenas porque estão convencidos de que o assassínio foi cometido para que o homem case com outra mulher que o assunto cresce e se espalha. Isto é psicologia elementar. Não sou responsável pelo que um grupo de linguareiras possa pensar.

É claro que não! Poirot continuou:

Então, sente-se outra vez e responda à pergunta que acabo de lhe fazer.

Vagarosamente, quase com relutância, Oldfield voltou atrás e, corando até às orelhas, começou:

É possível que se tenha falado a respeito de Miss Jane Moncrieffe. É a minha governanta e sem dúvida uma rapariga muito fina.

Há quanto tempo ela trabalha para si?

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Há três anos!

E a sua esposa gostava dela?

Bem, não! Não gostava lá muito.

Ela era ciumenta?

Era uma coisa absurda! Poirot sorriu e disse:

O ciúme das mulheres é proverbial. Tenho experiência, por isso posso dizê-lo. No ciúme, por mais inverosímeis e extraordinárias que as desconfianças pareçam têm quase sempre um fundo de verdade. Não diz um ditado que o cliente tem sempre razão? Pois bem, o mesmo acontece com o ciúme do marido ou da mulher. Pequenos indícios podem ser, são fundamentalmente certos.

O Dr. Oldfield ripostou energicamente:

Talvez, mas isso não altera a verdade do que eu afirmei!

Poirot inclinou-se para a frente; a sua voz era rápida, persuasiva:

Dr. Oldfield: vou fazer tudo que puder para resolver o caso. Mas devo usar para consigo de toda a franqueza sem atender a conveniências nem aos seus sentimentos pessoais. É ou não verdade que deixou de tratar da sua mulher algum tempo antes dela morrer?

Oldfield calou-se, por momentos.

Este assunto mata-me. Mas devo ter esperança. Seja como for, eu sinto que o senhor seria capaz de fazer alguma coisa por mim. Serei franco. Eu não me importava muito com minha mulher. Fui o que se chama um bom marido, mas nunca um marido apaixonado.

E essa Miss Jane?

Pequenas gotas de suor cobriram a fronte do Dr. Oldfield, que suspirou:

A rapariga... Ter-lhe-ia pedido para se casar comigo senão fosse este escândalo das más-línguas.

Finalmente começamos a entrar nos factos verdadeiros! Eh bien, Dr. Oldfield, encarregar-me-ei do seu caso. Mas lembre-se disto: é a verdade que eu desejo esclarecer.

Oldfield murmurou:

Não é a verdade que me causa dano. Hesitou e disse: Encarei a possibilidade de uma acção, por

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difamação! Se eu pudesse na verdade apanhar alguém, estaria justificado? Umas vezes penso isso... Outras penso que ainda seria pior. Dar maior publicidade ao caso poderia ter como resultado o povo vir a dizer: Não há fumo sem lume. Olhou para Poirot:

Diga-me, francamente. Existe algum meio de me libertar deste pesadelo?

Há sempre uma saída!concluiu Poirot.

Vamos para o campo disse Poirot ao criado.

De verdade, senhor?

E o fim da nossa jornada é destruir um monstro com sete cabeças.

Isso é assim? Alguma coisa parecida com o monstro de Lockness?

Menos acessível do que ele. Não me referi a nenhuma flecha nem a nenhum monstro ensanguentado, George.

- Não o compreendo, senhor.

Seria mais fácil se fosse isso. Nada há mais intangível, mais difícil de prender do que a origem de um rumor.

Oh, sim, isso é verdade. É difícil saber como as coisas aparecem, muitas vezes.

Exactamente!

Hercule Poirot não se alojou em casa do Dr. Oldfield. Preferiu a estalagem da terra. Na manhã seguinte à sua chegada teve a primeira entrevista com Jane Moncrieffe.

Era uma rapariga alta de cabelos acobreados e resolutos olhos azuis. Ela deitou em volta um olhar desconfiado como de alguém que quer pôr-se em guarda.

Então o Dr. Oldfield chamou-o?... Já sabia que ele Pensava fazer isso.

Havia pouco entusiasmo no seu tom de voz.

A senhora não aprova?

Os seus olhares encontraram-se e ela perguntou friamente:

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Que pode o senhor fazer?

Posso encontrar um caminho para resolver a situação.

Ah! abençoada franqueza!

Serei franca como deseja. Quando tive conhecimento de que o povo dizia que Charles se tinha desembaraçado da mulher para casar comigo, pareceu-me que se nos casássemos iríamos dar-lhe razão. Esperava que as más-línguas, não vendo nenhum casamento, acabassem com o escândalo.

Mas não foi assim?

Não, tal não aconteceu.

Na verdade disse Poirot, isso é singular. Jane acrescentou com tristeza:

Eles não têm aqui muito com que se divertir.

E deseja casar com o Dr. Oldfield? A rapariga respondeu com frieza:

Sim, desejo. É o meu desejo desde que o conheci.

Então a morte da esposa foi conveniente para si?

Mrs. Oldfield era uma mulher muito desagradável. Francamente, fiquei radiante quando ela morreu.

Sim disse Poirot, a senhora é verdadeiramente sincera!

Ela teve o mesmo sorriso insolente.

Tenho uma sugestão a fazer disse Poirot.

Sim?

São necessárias medidas drásticas. Sou de opinião que alguém, talvez a senhora, deve escrever ao Home Office.

Que quer dizer com isso?

Quero dizer que o melhor processo de acabar com esta história de uma vez para sempre é conseguir que o corpo seja exumado e feita uma autópsia.

Ela recuou um passo. Abriu os lábios mas não chegou a falar. Poirot observava-a:

Então, mademoiselle?

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Que ideia!a rapariga falava com aspereza. Pensa acercar-se de todas estas maldosas velhas faladoras e dizer-lhes: Façam favor de se calar com isso. Vejam que é muito prejudicial para o pobre Dr. Oldfield. Elas não lhe responderiam:Na verdade nós nunca acreditámos nessa história! E o pior de tudo é que elas

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não diriam: Meu caro, ocorreu-lhe alguma vez que a morte da Sr.a Oldfield não foi bem como pareceu? Não, elas diriam: Meu caro: não acreditamos nessa história a respeito do Dr. Oldfield e da mulher. Temos a certeza de que ele não fez uma coisa dessas, se bem que seja verdade que nos últimos tempos a abandonou um pouco. Não parece lá muito bem ter uma rapariga tão nova como governanta, mas isso não quer dizer que exista alguma coisa de mal entre eles. Oh, não! Temos a certeza de que tudo está muito bem.

Parou de falar, corou e o peito arfou-lhe mais rapidamente.

Poirot exclamou:

A senhora parece estar muito bem informada do que andam a dizer.

Eu sei tudo respondeu ela com aspereza.

E qual é a sua solução? Miss Moncrieffe respondeu:

O melhor que ele tinha a fazer era passar a clínica e recomeçar noutro lado qualquer.

Não pensa que a história pode segui-lo? Miss Moncrieffe encolheu os ombros:

Ele deve correr o risco.

Poirot conservou-se calado durante alguns minutos. Depois disse:

Vai casar-se com o Dr. Oldfield, Miss Moncrieffe?

Ele não me pediu em casamento!

Porque não?

Os seus olhares encontraram-se outra vez por segundos e então ela respondeu:

Porque eu recusei!

Jane Moncrieffe, mudando de assunto, disse calmamente:

Não concordo consigo!

Mas porque não? Um veredicto de morte natural não poderia fazer calar todas as más-línguas?

Se se conseguisse esse veredicto, sim!

Sabe o que está insinuando, mademoiselle?

Eu sei o que digo. O senhor está. pensando no envenenamento pelo arsénico. Pode-se provar que ela não foi envenenada pelo arsénico. Mas há outros venenos, os alcalóides vegetais. Duvido que passado um ano

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possa encontrar algum vestígio destes, se eles tiverem sido usados. Eu sei o que são estes peritos oficiais. São capazes de fazer um relatório, um veredicto, dizendo que não podem apresentar nada que tivesse causado a morte. E então os boatos podiam ir ainda mais longe.

Hercule Poirot calou-se por um ou dois minutos, dizendo depois:

Qual é, na sua opinião, a mais perversa língua da terra?

Penso que a velha Miss Leatheran; é a pior ovelha do rebanho.

Ah! Poderia apresentar-ma de uma maneira natural, se fosse possível?

Nada mais fácil. Todas estas velhas mexeriqueiras a esta hora da manhã, andam por aí fazendo compras. Basta apenas descermos à rua principal.

Tal como Jane dissera não houve dificuldades a este respeito. Junto do edifício do correio Jane parou e falou a uma mulher de meia-idade, alta, magra, de nariz comprido e penetrante olhar.

Bom dia, Miss Leatheran.

Bom dia, Jane. Está um dia muito bonito não é verdade? E olhou cheia de curiosidade para o companheiro de Miss Jane Moncrieffe.

Permita-me que lhe apresente M. Poirot, que vem aqui passar uns dias.

Debicando delicadamente um scone e equilibrando uma chávena de chá nos joelhos, Hercule Poirot permitiu-se entrar em confidências com Miss Leatheran. Esta tinha sido amável ao ponto de convidá-lo para tomar chá. Tinha decidido saber o que andava a fazer no seu meio aquele pequeno estrangeiro.

Durante algum tempo aparou-lhe os golpes com destreza, para lhe aguçar a curiosidade. E quando julgou o momento oportuno inclinou-se para a frente dizendo:

Ah, Miss Leatheran, já vi que a senhora é muitíssimo esperta! Já descobriu o meu segredo. Desloquei-me até aqui requisitado pelo Home Office. Peço-lhe o favor e baixou a voz de não fazer uso disto.

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É claro, é claro Miss Leatheran estava lisonjeada. O Home Office não quer dizer que se trata da pobre Mrs. Oldfield?

Poirot abanou vagarosamente a cabeça mais de uma vez e disse:

Bem, Miss Leatheran... e pôs nesta única palavra a mais agradável emoção. É um assunto muito delicado, a senhora compreende... Fui requisitado para averiguar se é ou não necessário fazer uma exumação.

Miss Leatheran exclamou:

Vai desenterrar a pobre criatura? É terrível!

Se em vez de terrível ela tivesse dito é esplêndido a sua voz teria tido a mesma entoação.

Qual é a sua opinião, Miss Leatheran?

Bem, sem dúvida que tem havido grande falatório. Mas eu nunca dou atenção ao que se diz. Os boatos quando correm aumentam sempre muito as coisas. É verdade que o Dr. Oldfield tem andado com estranhas maneiras desde que isto aconteceu, mas eu tenho dito repetidas vezes que não necessitamos de atribuir o facto a uma consciência culpada. Pode ser o desgosto. É certo, sem dúvida, que ele e a mulher não se entendiam muito bem. Isto sei eu de fonte segura. A enfermeira Harrison que estava com Mrs. Oldfield há três anos, conhecia a intimidade do casal. Eu sempre pensei que nurse Harrison tinha as suas suspeitas. Não que alguma vez ela tenha dito qualquer coisa, mas não é verdade que se podem tirar deduções das maneiras de qualquer pessoa?

Poirot disse com tristeza:

Isso não basta!

Sim, eu sei que não é suficiente, mas se o corpo for exumado, então o senhor ficará sabendo!

Sim concordou Poirot, então nós saberemos tudo.

Tem havido casos, é claro... continuou Miss Leatheran, dilatando as narinas com agradável excitação. Armstrong, por exemplo, e outro homem, de cujo nome não me recordo, e Crippen, é claro! Sempre tive curiosidade de saber se Ethel Le Neve estava ou não com ele. É claro, Jean Moncrieffe é uma boa rapariga, tenho a certeza... E não posso dizer que ela o tenha levado a isso, mas os homens costumam fazer-se parvos com as

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raparigas, não é verdade? E, é claro, eles eram vistos muitas vezes juntos! Poirot não falava. Olhava para ela com uma inocente expressão de curiosidade, com o fim de arranjar mais um assunto para a conversa.

Interiormente divertia-se contando o número de vezes que ela empregava a expressão é claro.

E, é claro, com uma exumação e tudo o mais, muitas coisas viriam à superfície. Os criados e tudo. Os criados sabem sempre muitas coisas, não é assim? E, é claro, é impossível impedi-los de falar. A criada Beatriz foi despedida logo a seguir ao funeral. Sempre me pareceu que era estranho, com a falta de criadas que há hoje em dia. Parece que o Dr. Oldfield receava que ela soubesse de qualquer coisa.

Certamente parece haver bases suficientes para um inquérito concluiu Poirot solenemente.

Miss Leatheran fez um trejeito de relutância:

Não posso pôr isso na ideia. A nossa pacata terra posta em foco nos jornais. Toda a publicidade!

Isso vai afectá-la? perguntou Poirot.

Um pouco. O senhor sabe, sou uma pessoa antiga.

E, como a senhora diz, tudo isto, provavelmente, não passa de um boato.

Bem, eu não posso conscienciosamente afirmá-lo. Penso no ditado que diz: Não há fumo sem lume.

Eu penso exactamente o mesmo replicou Poirot. Levantou-se.

Conto com a sua discrição, mademoiselle.

Oh, é claro. Eu não direi uma palavra seja a quem for.

Poirot sorriu e despediu-se.

No patamar da escada disse à criadita que lhe segurava a gabardina e o chapéu:

Eu vim aqui para fazer um inquérito sobre a morte de Mrs. Oldfield e fico-lhe muito agradecido se não disser isto a ninguém.

Gladys, a criada de Miss Leatheran, recuou quase ao ponto de esbarrar com o bengaleiro. Ficou excitadíssima:

Então, o doutor fez isso?

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Pensam assim de há um tempo para cá, não é verdade?

Bem, senhor, não sou eu. Foi Beatriz. Ela estava em casa do Dr. Oldfield quando a senhora morreu.

E ela pensa então que tenha sido... Poirot usou uma voz dramática...assassinada?

Sim, ela diz isso. Assim como também diz a mesma coisa a enfermeira Harrison que estava lá nessa altura. Miss Harrison estava bastante aflita quando Mrs. Oldfield morreu. E Beatriz sempre disse que ela sabia alguma coisa, porque era incorrecta para o doutor e não o seria, certamente, se não soubesse alguma coisa, não é verdade?

Onde está a enfermeira Harrison, agora?

Está cuidando da velha Miss Bristow. No fim da povoação. Não tem que errar. Basta seguir pelas colunas do pórtico.

Pouco tempo depois Hercule Poirot encontrava-se sentado em frente da mulher que mais coisas devia saber a respeito das circunstâncias que tinham dado origem aos boatos que corriam.

A enfermeira Harrison era ainda uma bela mulher com cerca de quarenta anos. Tinha o aspecto de uma madona de grandes olhos escuros. A enfermeira olhou para Poirot com atenção e paciência, dizendo vagarosamente:

Sim, eu sei que correm desagradáveis histórias. Fiz tudo que podia para conseguir que se calassem, mas sem resultado. Como sabe, o povo gosta de coisas que o excitem. Mas deve ter havido qualquer coisa para dar origem a esses boatos.

Notava-se que ela tinha uma expressão de profunda tristeza.

Talvez sugeriu Poirot o Dr. Oldfield e a esposa não se dessem bem na intimidade e isso deu origem ao boato.

A enfermeira Harrison abanou a cabeça com decisão:

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Oh, não! O Dr. Oldfield foi sempre muito amável e paciente para a esposa.

Ele gostava realmente dela? A enfermeira hesitou:

Não, eu não digo bem isso. Mrs. Oldfield era uma mulher muito difícil. Nada a contentava e exigia constantes manifestações de simpatia que nem sempre se justificavam.

Parece-lhe que ela exagerava a sua situação? A enfermeira concordou:

Sim, a sua falta de saúde era muitas vezes produto da sua imaginação.

E todavia disse Poirot gravemente ela morreu...

Oh, eu sei, eu sei...

Olhou para ela durante um ou dois minutos, para a sua perturbada perplexidade, para a sua palpável incerteza.

Eu penso, tenho a certeza de que a senhora sabe o que em princípio deu origem a que se levantassem todas estas histórias.

A enfermeira Harrison corou:

: Bem, posso talvez fazer uma suposição. Convenço-me de que foi a criada Beatriz que levantou todos estes rumores e penso saber por que razão isto se lhe meteu na cabeça.

Sim?

O senhor vê, sucedeu algumas vezes eu surpreender fragmentos de conversação entre o Dr. Oldfield e Miss Moncrieffe, e tenho quase a certeza de que Beatriz também os escutou. Somente suponho que ela não admite que se diga isso.

Que espécie de conversação?

A enfermeira fez uma pausa como que para concentrar na memória os acontecimentos. Depois respondeu:

Foi cerca de três semanas antes do último ataque, que matou Mrs. Oldfield. Eles estavam na sala de jantar. Eu vinha a descer as escadas quando ouvi Miss Moncrieff dizer: E daqui a quanto tempo isso poderá ser? Não posso esperar por muito mais tempo! E o doutor respondeu: Agora já falta pouco, querida. E ela disse outra vez: Eu não posso suportar esta demora. Pensas

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que tudo correrá bem? E ele disse-lhe: Sem dúvida, nada pode correr mal. Desta vez, dentro de um ano estaremos casados. Foi o primeiro aviso que eu tive, M. Poirot, de que entre o doutor e Miss Moncrieffe alguma coisa existia. Sabia que ele a admirava, que eram bons amigos, mas nada mais. Voltei para trás. Isto tinha-me chocado, mas não reparei que a porta da cozinha estava aberta e que Beatriz poderia estar escutando. E o senhor sabe muito bem que esta conversa poderia ser tomada em dois sentidos. Podia significar que o Dr. Oldfield conhecia muito bem o estado em que a esposa se encontrava e que não poderia durar muito tempo; não duvido que assim fosse. Mas para uma pessoa como Beatriz as coisas podiam ser interpretadas de maneira diferente. Podia parecer que o doutor e Jane estavam planeando acabar definitivamente com Mrs. Oldfield.

E a senhora o que pensa a esse respeito?

Nada, sem dúvida. Nada...

Poirot olhou para ela interrogativamente:

Enfermeira Harrison, a senhora sabe mais alguma coisa? Mais alguma coisa que não me tenha dito?

Ela corou intensamente:

Não, não! Certamente que não. Que mais poderia saber? Não sei, mas penso que poderia ser alguma coisa...Abanou a cabeça e parecia novamente perturbada.

Hercule Poirot disse:

É possível que o Home Office mande exumar o corpo de Mrs. Oldfield.

Oh, não! A enfermeira estava horrorizada. Que terrível coisa!

A senhora pensa que seria má ideia?

Eu penso que seria terrível! Penso nas críticas a que isso poderia dar origem. Penso que seria terrível para o pobre Dr. Oldfield.

E não pensa que poderia ser uma coisa boa para ele?

Porquê?

Porque se ele está inocente... a sua inocência pode ser provada.

Calou-se. Reparou que este pensamento criava raízes no espírito de Miss Harrison, viu-a franzir as sobrancelhas

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e depois desanuviar-se-lhe a fronte e suspirar profundamente e olhar para ele.

Não tinha pensado em tal. Sem dúvida é a única coisa a fazer!

Então, ouviu-se uma série de pancadas no tecto. Nurse Harrison levantou-se.

É a senhora. Despertou da sesta. Tenho de ir instalá-la confortavelmente antes que lhe tragam o chá, depois vou dar o meu habitual passeio. Sim, penso, M. Poirot, que o senhor está na razão. Uma autópsia pode acabar de vez com toda esta história. Pode esclarecer-se o caso e acabar com todos estes rumores contra o Dr. Oldfield.

Apertaram as mãos e Poirot precipitou-se para fora do aposento.

Hercule Poirot encaminhou-se para o correio e fez uma chamada telefónica para Londres. Respondeu-lhe uma voz petulante:

Parece-lhe que deve fazer barulho com esse assunto, meu caro Poirot? Tem a certeza de que é um caso que possa interessar-nos? Você sabe que grande parte dos boatos das terras pequenas são coisas sem importância.

Este disse Hercule Poirot é um caso especial.

Muito bem! É você quem o diz. Você tem o aborrecido hábito de ser recto. Mas se isso não passa de um pesadelo, não ficaremos satisfeitos consigo, já sabe.

Poirot sorriu e murmurou:

Serei eu o único a ficar satisfeito.

Que está dizendo? Não consigo ouvir!

Nada, absolutamente nada!

E desligou. Entrando no correio inclinou-se para o balcão e disse no mais aliciante tom de voz:

Pode, por acaso, dizer-me, madame, onde está agora uma rapariga chamada Beatriz, que foi criada do dr. Oldfield?

Beatriz King? Depois disso já esteve em duas casas. Agora está com Mrs. Marley, por cima do edifício do banco.

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Poirot agradeceu. Comprou dois postais, um livro de selos e uma peça de louça regional.

Durante a compra conseguiu introduzir na conversa o assunto da morte de Mrs. Oldfield.

Rapidamente percebeu a expressão particular que apareceu na face da empregada do correio.

Foi de repente, não foi? Isso deu origem a grande falatório.

Um clarão de interesse brilhou nos olhos da empregada:

É por isso que deseja ver Beatriz King? Todos nós achámos estranho ela ter saído tão depressa. Toda a gente pensa que ela sabe alguma coisa. E pode ser que saiba. Ela fez algumas insinuações bem claras.

Beatriz King era uma rapariga baixa. Aparentava sólida estupidez, mas o olhar era mais inteligente do que havia a esperar do seu aspecto. Parecia, todavia, que não se podia tirar nada de Beatriz King.

Eu não sei nada, nada... Não me compete falar no assunto... Não sei o que possa o senhor pensar de uma conversa que surpreendi entre o doutor e Miss Moncrieffe. Não sou pessoa que espreite às portas. Não sei nada.

Nunca ouviu falar em envenenamento por meio de arsénico?

Um furtivo interesse aflorou à face rabugenta da rapariga:

Era isso que estava na garrafa do remédio?

Qual garrafa de remédio?

Uma garrafa de medicamento que Miss Moncrieffe trouxe para Missus. A enfermeira deitou-a fora. Isso vi eu. Provou, cheirou e depois deitou na pia e encheu a garrafa com água da torneira. Era um medicamento branco que parecia água. E uma vez, quando Miss Moncrieffe trouxe uma chávena de chá para Missus, a enfermeira atirou-o fora, dizendo que não tinha sido feito com água a ferver e fez outro de novo.

E gostava de Miss Moncrieffe, Beatriz?

Nem posso pensar nela... Um bocado orgulhosa. Sem dúvida, eu sempre percebi Quanto ela era amável

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para com o doutor. E vi a maneira como ela olhava para ele.

Outra vez Poirot abanou a cabeça, e retirou-se para a hospedaria.

O Dr. Allan Garcia, o analista do Home Office, esfregou as mãos e piscou os olhos a Poirot, dizendo:

Bem, isto agrada-me Poirot, você é o homem que tem sempre razão. Que é que o meteu nisto? Algum boato?

É como diz: um boato espalhado por muitas línguas.

No dia seguinte Poirot, uma vez mais, tomou o carro para Market Loughborough.

Market Loughborough zumbia como um enxame de abelhas. Estava assim agitado desde que se procedera à exumação. Agora que os resultados da autópsia eram conhecidos a excitação tinha chegado ao mais alto grau.

Poirot estava na hospedaria havia mais de uma hora e tinha justamente acabado um suculento almoço de bifes e pudim, regado com cerveja, quando lhe disseram que uma senhora estava esperando por ele.

Era a enfermeira Harrison. O seu rosto estava pálido e abatido quando se aproximou de Poirot.

É verdade, é realmente verdade, M. Poirot?

Sim, foi encontrado arsénico mais do que suficiente para provocar a morte.

A enfermeira chorava:

Eu nunca pensei, nem por um momento e debulhou-se em lágrimas.

Soluçando perguntou:

E vão prendê-lo?

Faltava provar muita coisa: Oportunidade. Qual o veneno. A maneira como foi ministrado.

Mas suponha, M. Poirot, que não há nada a fazer, nada.

Nesse caso Poirot encolheu os ombros, ele será detido.

Há ainda uma coisa, alguma coisa suponho, que

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eu devia ter dito primeiro, mas não pensava que interessasse. Era muito estranho...

Eu sabia que ainda havia mais alguma coisa. Será melhor dizer tudo agora.

Não é muito. Justamente um dia em que fui à despensa Miss Moncrieffe estava a fazer uma coisa muito singular.

Sim?

Pareceu-me uma porcaria. Estava enchendo a caixa de pó-de-arroz.

Sim?

Mas não a estava enchendo com pó-de-arroz. Estava-lhe pondo qualquer coisa tirada de uma das garrafas que estão no armário dos venenos. Quando me viu parou, fechou a caixa de pó-de-arroz e escondeu-a na mala. Depois colocou a garrafa apressadamente no armário de forma a que eu não pudesse ver o que era. Isto pode não significar nada, mas agora que eu sei que Mrs. Oldfield foi envenenada...

Poirot perguntou: Dá-me licença?

Foi lá fora e telefonou para o detective Sargent Grey, de Berkshire Police.

Poirot fixava a face de uma rapariga de cabelos avermelhados e ouvia uma voz clara, dizendo: Eu não concordo: Jane Moncrieffe não desejava a autópsia. Tinha dado uma desculpa bastante plausível mas o facto permanecia. Uma rapariga cativante, activa, resoluta. Apaixonada por um homem que estava cansado de uma esposa inválida que podia viver ainda alguns anos. Segundo a enfermeira Harrison, ela tinha qualquer relação com o caso.

Hercule Poirot assinalou o facto.

E, agora, que está pensando? perguntou a enfermeira.

Que tudo isto é para lamentar.

Não acredito, nem por um momento, que ele soubesse alguma coisa.

Poirot interrompeu-a:

Não! Tenho a certeza de que não.

A porta abriu-se e o detective Sargent Grey apareceu trazendo na mão um objecto embrulhado num lenço

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de seda. Desembrulhou-o cuidadosamente. Era uma caixa esmaltada de compacto cor-de-rosa vivo.

É a mesma que eu vi disse a enfermeira. Grey disse:

Encontrei isto no fundo da gaveta do lado direito da secretária de Miss Moncrieffe. Dentro de um sachet para lenços. Tanto quanto eu pude ver não há marca de dedos mas serei cuidadoso. Cobrindo a mão com o lenço premiu a mola, a caixa abriu-se e Grey disse:

Isto não é pó-de-arroz.

Mergulhou um dedo e provou ligeiramente com a ponta da língua.

Não tem nenhum sabor especial. O arsénico branco não sabe a nada.

Então, Poirot, interveio:

Será analisado e olhou para a enfermeira.

Pode jurar que é o mesmo?

Sim, positivamente. É a mesma caixa que eu vi na despensa, na mão de Miss Moncrieffe, uma semana antes da morte de Mrs. Oldfield.

Sargent Grey tomou nota. Olhou para Poirot e abanou a cabeça. Este tocou a campainha.

A senhora identificou este pó compacto como sendo o que viu na posse de Miss Moncrieffe há um ano! Ficará surpreendida por saber que esta caixa foi comprada há umas semanas no Woolworth e que, se bem que tenha o mesmo modelo e a mesma cor, foi manufacturada apenas há três meses.

A enfermeira abriu a boca num suspiro e sobressaltou-se olhando para Poirot com os seus olhos escuros.

Já tinha visto antes esta caixa, George?

Sim, senhor. Vi a enfermeira Harrison comprar esta caixa no Woolworth, na sexta-feira passada, dia 18. Segui esta senhora no caminho. Tomou um autocarro para Darnington no dia que eu mencionei e comprou este compacto. Levou-o para casa. Depois, no mesmo dia, foi à casa onde está alojada Miss Moncrieffe. Segundo as suas instruções eu já lá me encontrava. Vi-a entrar no quarto de cama de Miss Moncrieffe e esconder a caixa na parte de trás da gaveta da secretária. Vi perfeitamente pela fechadura da porta. Depois retirou-se convencida de que ninguém a observara.

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Poirot voltou-se para a enfermeira e num tom de voz áspero e insidioso perguntou:

Pode explicar estes factos, enfermeira Harrison? E insistiu:

Não havia arsénico na caixa quando saiu da loja, mas havia quando a deixou em casa de Mrs. Bristow.

Finalmente acrescentou:

Não era prudente conservar uns restos de arsénico em seu poder. A enfermeira escondeu a face nas mãos e confessou em voz baixa e lenta:

É verdade! É tudo verdade! Matei-a. £ tudo... Por nada, nada... Eu estava doida!

Jane Moncrieffe, contritamente pediu:

Peço-lhe que me perdoe, M. Poirot. Fui muito áspera para si, terrivelmente áspera.

Foi assim que principiei. Isto parece-se com a velha lenda da Hidra de Lerna. Cada vez que se lhe cortava uma cabeça duas nasciam em seu lugar. Assim eu principiei com isto. Os rumores cresceram e multiplicaram-se. Mas, veja que a tarefa dos meus Trabalhos de Hércules foi enriquecida com a primeira cabeça. Quem tinha levantado este boato? Não demorei muito em descobrir que a origem da história era a enfermeira Harrison. Fui procurá-la. Apareceu-me como se fosse uma mulher agradável, inteligente e simpática. Mas logo de entrada ela cometeu um erro: repetiu-me a conversa que se tinha passado entre a senhora e o doutor, e que nessa conversa havia mal. Foi pouco psicológica. Se a senhora e o doutor tivessem combinado matar Mrs. Oldfield, por menos inteligentes e de cabeça no ar que fossem, não iam ter tal conversa num compartimento com a porta aberta e podendo ser ouvidos por qualquer pessoa que estivesse na escada ou na cozinha. E as palavras que lhe atribuiu não condiziam nada com a sua mentalidade. Eram palavras de uma mulher mais velha e de diferente temperamento. Eram as palavras que podiam ser ditas por ela própria nas mesmas circunstâncias.

Parou, e depois prosseguiu:

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Reparei ainda que todo o assunto era muito simples. A enfermeira Harrison era nova e ainda bastante aproveitável. Tinha vivido perto do Dr. Oldfield durante três anos. Ele nunca a procurou nem lhe deu provas de especial simpatia. E ela teve a impressão de que se Mrs. Oldfield morresse ele poderia provavelmente casar com ela. Em vez disso ela soube que depois da morte de Mrs. Oldfield ele casaria consigo. Levada pela inveja e pelo ciúme levantou o boato de que o Dr. Oldfield tinha envenenado a esposa.

E, após nova pausa, continuou:

Foi assim que de início eu encarei os factos. Mas a velha frase não há fumo sem lume veiu-me à ideia. Então pensei se acaso a enfermeira Harrison teria feito mais alguma coisa do que espalhar um boato. Certas coisas que ela contou pareceram-me estranhas. Disse-me que a doença de Mrs. Oldfield era em parte imaginária, que ela não sofria tanto como queria fazer acreditar. Mas o próprio doutor não tinha dúvidas acerca dos reais sofrimentos da esposa. Ele não tinha ficado surpreendido com a sua morte. Além disso tinha chamado outro médico à pressa, pouco antes de ela morrer, e o outro tinha confirmado a gravidade do caso.

«A título de experiência falei na possibilidade de uma exumação... A enfermeira Harrison ficou chocadíssima com a ideia. Mas, quase ao mesmo tempo, deixou-se dominar pela inveja e pelo ciúme. Deixá-los encontrar arsénico: nenhuma suspeita recairia sobre ela. Seriam o doutor e Miss Moncrieffe a sofrer com isso.

«Era a única esperança. Levar a enfermeira Harrison a denunciar-se a si própria. E se houvesse a felicidade de Jane poder escapar, veio-me à ideia que a enfermeira empregaria todos os esforços para a envolver no crime. Dei instruções ao meu prestável George, o último dos homens de quem ela poderia desconfiar. E, assim, tudo acabou bem.»

Jane Moncrieffe, entusiasmada, exclamou:

O senhor foi maravilhoso! E o Dr. Oldfield concordou:

Sem dúvida! Nunca me passou pela cabeça que fosse tão extraordinário. Que cego que eu estava!

Poirot, então, perguntou cheio de curiosidade?

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Ouviu-se outra pancada, uma pancada diferente e Poirot disse:

Entre!

E aprovou com o olhar o jovem que ali estava, embaraçadamente, torcendo o boné.

Aqui, pensou ele, está um dos mais belos especímenes da humanidade, um jovem simples com o aspecto de um deus grego.

O rapaz disse numa voz baixa e áspera:

É acerca do carro, senhor; já o trouxemos e descobrimos o mal. É caso para uma hora de trabalho.

Poirot perguntou:

Qual é o mal?

O rapaz entrou arrebatadamente em detalhes. Poirot abanava a cabeça gentilmente mas não o ouvia. Um físico perfeito era uma coisa que ele admirava. Pensou consigo mesmo: sim, um deus grego, um jovem pastor da Arcádia.

O rapaz calou-se abruptamente. Poirot franziu as sobrancelhas por alguns segundos. A sua primeira reacção foi estética, depois mental.

Compreendo; sim, compreendo. Fez uma pausa e acrescentou: O meu motorista disse a mesma coisa que o senhor acaba de me dizer.

Viu um rubor subir às faces do outro e os dedos apertarem o boné nervosamente. O rapaz gaguejou:

Sim, senhor; eu sei!

Hercule Poirot continuou calmamente:

Mas pensou em vir você mesmo dizer-me isso.

É verdade senhor, pensei que o devia fazer.

Isso disse Poirot foi muito consciencioso da sua parte. Obrigado!

Havia na sua voz um tom fraco mas compreensível de despedida. No entanto, não esperava que o outro se fosse embora e acertou.

O rapaz não se moveu. Mas os seus dedos moveram-se convulsivamente amarrotando o boné enquanto dizia numa voz ainda mais baixa e embaraçada:

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Desculpe-me, senhor, mas é verdade que o senhor é um detective? É verdade que é M. Hercule Poirot? Pronunciou o nome cuidadosamente.

É verdade! respondeu Poirot.

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O rapaz corou de novo e disse:

Eu li um artigo a seu respeito, no jornal.

Sim?

O rapaz fez-se novamente escarlate. Havia tristeza no seu olhar, tristeza e ansiedade. Hercule Poirot foi em seu auxílio, dizendo gentilmente:

Que deseja perguntar-me?

As palavras saíam-lhe num tom de voz rouca; apesar disso o rapaz disse:

Receio que seja atrevimento da minha parte. Mas a sua chegada aqui foi uma felicidade. É demasiado bom para que me tenha enganado. Nada melhor do que poder dirigir-me directamente a si. Não faz mal falar-lhe aqui?

Hercule Poirot levantou a cabeça perguntando:

Deseja que o ajude nalguma coisa?

O outro abanou a cabeça respondendo com uma voz áspera e embaraçada:

É a respeito de uma senhora jovem. Se... se pode procurá-la.

Procurá-la? Então ela desapareceu?

É verdade, senhor!

Poirot acomodou-se melhor na cadeira e respondeu:

Posso ajudá-lo, talvez! Mas era preferível ter-se dirigido à polícia. Isso faz parte das suas atribuições e a polícia tem mais recursos que aqueles de que eu posso aqui dispor.

O rapaz respondeu com tristeza:

Não posso fazer isso, senhor. Prefiro falar consigo. Poirot olhou-o com atenção e indicou-lhe uma cadeira.

Eh, bien, então sente-se; como se chama?

Williamson! Ted Williamson!

Sente-se, Ted, e conte-me tudo!

Obrigado! O rapaz aproximou-se da cadeira e sentou-se à beira, cuidadosamente.

Poirot disse com amabilidade:

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Então, conte lá.

Ted Williamson soltou um suspiro e, depois, começou:

Bem, senhor! O caso passou-se assim. Só a tinha visto uma vez. Mas tudo isto me parece singular! A minha carta voltou para trás...

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Comece pelo princípio, e não se enerve. Conte-me justamente tudo o que ocorreu.

Bem... Talvez o senhor conheça Grasslawn, aquela casa grande que se encontra quando se desce o rio, depois da ponte.

Não conheço.

Pertence a Sir George Sanderfield. Serve-se dela no Verão, para fins-de-semana. Tem dado ali grandes festas, com actrizes e tudo. Bem, no passado mês de Junho mandou-me chamar para ver a instalação eléctrica, que não estava boa.

Poirot abanou a cabeça.

Eu fui lá. Sir George não estava, fora para o rio. A cozinheira e o cozinheiro e todas as criadas tinham ido com o patrão para servir as bebidas e o almoço. Só ficara em casa uma rapariga. Era a criada de uma das visitas. «Deixe-me entrar e mostre-me o quadro eléctrico e deixe-se ficar aqui enquanto trabalho», disse-lhe. E começámos a falar um com o outro. Chamava-se Nita, segundo me disse. E era criada de uma bailarina russa que ali estava também. «Qual é a sua nacionalidade, inglesa?», perguntei-lhe. E ela respondeu: «Não. Sou francesa, penso eu.» Tinha um sotaque muito engraçado, mas falava correctamente o inglês. Ela era muito amável e passado um bocado perguntei-lhe se podia ir comigo, naquela noite, ao cinema. Mas ela disse que a senhora podia precisar dela. No entanto, disse-me que de tarde podia sair mais cedo uma vez que tinham ido todos para o rio e lá ficariam até tarde. Não lhe perguntei mais nada e fomos dar um passeio ao longo do rio.

Calou-se e um sorriso assomou-lhe nos lábios. O olhar tornou-se-lhe sonhador. Poirot perguntou:

Ela era bonita, não é verdade?

Era a coisa mais bonita que se pode imaginar. O cabelo parecia ouro e levantado dos lados como asas. Tinha uma graciosa maneira de andar. Eu, eu... bem, pensei logo nela com as melhores intenções. Não pretendia mais nada.

Poirot abanou a cabeça. O rapaz continuou:

Ela disse-me que a senhora ausentar-se-ia, outra vez, dentro de quinze dias e combinámos novo encontro. Fez uma pausa. Mas não voltou mais. Esperei por ela

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até ao prazo que me tinha marcado mas nem sinais dela. Por último tomei coragem e fui procurá-la. Perguntei por ela. A senhora russa ainda ali estava e a criada também, foi o que me disseram. Foram chamá-la mas quando ela apareceu vi que não era Nita. Pelo contrário, era uma rapariga que parecia um gato preto e com maneiras provocantes. Chamava-se Maria. «Você deseja ver-me?», perguntou com um sorriso afectado. Devia ter notado que não fiquei satisfeito.

«Disse-me que era criada da senhora russa e mais algumas coisas, a seu respeito, afirmando que não era aquela a primeira vez que me via. Então, pôs-se a rir e disse-me que a última criada tinha sido despedida de repente. «Despedida? Por que motivo?», perguntei. Encolheu os ombros e esfregou as mãos dizendo: «Como posso eu saber? Eu não estava aqui!» Bem... Isto chocou-me e naquele momento nada me ocorreu para dizer. Mas depois enchi-me de coragem, procurei essa Maria outra vez e pedi-lhe que me desse a direcção de Nita. Que Nita não a tinha deixado e ela não sabia qual era o seu último nome. Prometi-lhe uma lembrança se ela satisfizesse o meu pedido. Era da qualidade de só fazer alguma coisa por interesse. Bem, ela deu-me uma morada no norte de Londres. Escrevi para aí mas pouco depois a carta veio devolvida por intermédio do correio tendo escrito no sobrescrito: esta morada não existe aqui.»

Ted Williamson calou-se. Os seus olhos, aqueles olhos azuis tão profundos e doces, olharam para Poirot. Depois disse:

Está o senhor a ver como as coisas se passaram? Isto é caso para polícia. Mas eu desejo encontrá-la. E não sei que fazer para isso. Se... se o senhor pudesse encontrá-la por mim... empalideceu um pouco: Eu, eu tenho pouco dinheiro, mas posso dispor de cinco ou dez libras.

Poirot disse gentilmente:

Não há necessidade de discutir, agora, esse assunto. Primeiro reflicta neste ponto: essa rapariga, essa tal Nita, não sabia o seu nome nem o lugar onde você trabalha?

Oh, sim, sabia muito bem.

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Podia ter comunicado consigo se desejasse fazê-lo?

Sim.

Então, não pensa que talvez... Ted interrompeu-o:

O senhor quer dizer é que eu gosto dela mas ela não gosta de mim? Pode ser uma razão... Mas ela gosta de mim. Ela gosta de mim! Isto não foi uma brincadeira para ela... E eu tenho pensado que talvez haja outra razão para tudo isto ter acontecido assim. Pode estar metida em qualquer coisa desagradável. O senhor sabe o que eu quero dizer.

Você quer dizer que ela está para ter alguma criança?

Ted corou.

Não se passou nada de mal entre nós.

Poirot olhou para o rapaz pensativamente e murmurou:

E se isso que você sugere for verdade, ainda deseja encontrá-la?

O rapaz tornou a corar.

Sim, isso é indiscutível. Desejo casar-me com ela e não há nada que possa fazer-me mudar de ideias. Se o senhor a procurasse, se tentasse encontrá-la.

Poirot sorriu murmurando para consigo próprio: «Cabelo semelhante a asas douradas! Sim, creio

que é o terceiro Trabalho de Hércules... Recordo-me

muito bem, passou-se na Arcádia...»

Hercule Poirot olhou pensativamente para a folha de papel na qual Ted Williamson tinha escrito com dificuldade um nome e uma direcção: Miss Valetta, 17, Upper Renfrew Lane, n.° 15.

Poirot desejou saber se ele tinha alguns dados mais sobre esta direcção. Não sabia nada. A direcção era a única indicação que Ted podia prestar-lhe.

Acima de Renfrew Lane fica uma rua barulhenta mas bem frequentada. Uma mulher forte de olhos claros veio abrir a porta quando Poirot bateu.

Miss Valetta?

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Há muito tempo que se foi embora! respondeu a mulher.

Talvez possa dar-me a sua direcção.

Não sei se posso, não tenho a certeza; ela não a deixou quando se foi embora.

Quando é que se foi embora?

No Verão passado!

Pode dizer-me exactamente quando?

O agradável ruído de duas coroas na mão direita de Poirot puseram a mulher com mais amável disposição. O seu olhar claro tornou-se mais suave, tornou-se gracioso até.

Bem, não tenho a certeza de poder ajudá-lo. Deixe-me ver. Agosto, talvez Julho. Sim deve ter sido por essa altura. Cerca da primeira semana de Julho. Saiu muito à pressa. Regressou à Itália, creio eu.

Era, então, italiana?

Isso mesmo, senhor!

E não era uma das criadas de uma bailarina russa?

Era, sim! Madame Semoulina ou outro nome qualquer. Dançava no Thespineste Ballet aonde vai toda a gente. Era uma das estrelas.

Sabe porque é que Miss Valetta abandonou o lugar?

Não sei, não tenho a certeza.

Foi despedida, não foi?

Bem, creio que houve qualquer coisa pouco limpa. Mas Miss Valetta não se preocupou muito com isso. Ela era daquelas que deixam correr as coisas... Ao princípio parecia muito irritada com isto. Com o temperamento que tinha: uma verdadeira italiana. Tinha uns olhos negros e perfurantes como se fossem punhais. Não gostava de me encontrar com ela quando ela estava mal disposta.

E tem a certeza de que não sabe a nova direcção de Miss Valetta?

As moedas soaram outra vez encorajadoramente. A mulher falava com sinceridade:

Desejava poder dizer-lha, mas ela saiu de uma maneira tão precipitada!

Poirot pensou:

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Sim, deve ser assim...

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Ambrose Vandel, distraído do entusiasmo que punha nos cenários de um ballet que estava para aparecer brevemente, prestou informações com toda a facilidade:

Sanderfield, George Sanderfield? O Cavalo Preto? Homem sem vergonha! Nadando em dinheiro mas um depravado! Negócios com uma bailarina? Sem dúvida, meu caro, teve entendimentos com Katrina, Katrina Samousenka. O senhor já deve ter ouvido falar nela. Grande artista! Não viu o Swan of Tuoela? Devia ter visto! Decoração minha. E a outra coisa de Debussy e Manine: La Biche au Bois? Devia ter visto. Dançava com Michael Noving. Ele também é maravilhoso, não é verdade?

E é amiga de George Sanderfield?

Sim, costuma passar os fins-de-semana com ele na sua casa de campo. Creio que ele dá festas maravilhosas.

Seria possível, meu caro, apresentar-me a Mademoiselle Samousenka?

Mas, ela já há muito tempo que aqui não está. Partiu para Paris ou para outro lado qualquer repentinamente. Sabe? Diziam que ela era uma espia bolchevista ou qualquer coisa no género. Nunca acreditei, mas sabe como é o povo para inventar estas coisas. Katrina sempre pretendeu dar a entender que era russa branca e que o pai era um grão-duque ou um príncipe. A história de sempre.

Vandel fez uma pausa e voltou ao assunto:

Agora, é como quem diz, se deseja alcançar o espírito de Betsabé encaminhe-se para as tradições semíticas. Parece que me faço compreender concluiu alegremente.

A entrevista que Hercule Poirot conseguiu de Sir George Sanderfield, não começou muito auspiciosamente.

O Cavalo Preto, como Ambrose Vandel lhe tinha chamado, era difícil de tratar. Sir George era um homem baixo e atarracado, de cabeleira preta e com uma prega de gordura no pescoço.

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Finalmente perguntou:

Bem, M. Poirot, que posso eu fazer por si? Nunca nos tínhamos encontrado antes, penso eu.

Não, nunca nos tínhamos encontrado.

Bem, de que se trata? Confesso, estou cheio de curiosidade!

Oh, é muito simples. Trata-se apenas de pedir uma informação.

O outro teve um sorriso contrafeito.

Deseja que lhe dê alguns esclarecimentos, ah? Não sabia que se interessava por finanças.

Não se trata de negócios, trata-se de uma certa senhora.

Oh, uma mulher! Sir George enterrou-se na cadeira de braços. A sua voz tomou um tom mais ligeiro.

Poirot disse:

O senhor conhece, suponho, Mademoiselle Katrina Samousenka?

Sanderfield riu-se:

Sim. É uma criatura encantadora! É pena que tenha deixado Londres.

Por que razão deixou ela Londres?

Meu caro amigo, não sei. Brigou com o empresário, creio eu. Tinha temperamento, sabe! Era uma verdadeira russa. Tenho pena de não poder auxiliá-lo mas não faço a mais pequena ideia do lugar em que ela se encontra. Não soube mais nada a respeito dela.

Havia um tom contrafeito na sua voz. Pôs-se de pé. Ao mesmo tempo Poirot disse:

Mas não é Mademoiselle Samousenka que eu estou ansioso por encontrar.

Não?

Não! Trata-se da criada desta.

A sua criada? Sanderfield estacou. Poirot prosseguiu:

Talvez o senhor se lembre dela.

Toda a frieza de Sanderfield voltou; por isso disse:

Santo Deus! Como posso eu lembrar-me? Mas, sim, lembro-me que ela tinha uma criada; por sinal não era nada boa. Posso dizer-lhe que era curiosa e gostava de espreitar. Se eu estivesse no seu lugar não daria crédito a nada do que ela me dissesse. É muito mentirosa!

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Poirot murmurou:

O senhor agora já se lembra dela muito bem! Sanderfield respondeu duramente:

Apenas uma impressão, eis tudo... Já não me lembro sequer do seu nome. Deixe-me ver: Maria ou qualquer coisa assim parecida. Não, tenho receio de não poder prestar-lhe informações úteis acerca dela... Desculpe!

Poirot respondeu com amabilidade:

Já tinha conhecimento do nome de Marie Helin. Soube-o no Thespian Teatro. E a direcção. Mas eu refiro-me, Sir George, à criada que Mademoiselle Samousenka teve antes dessa. Refiro-me a Nita Valetta.

Sanderfield estacou dizendo:

Não me lembro nada. Maria é a única de que eu tenho ideia. Uma rapariga morena de olhar duro.

A rapariga a que eu me refiro esteve na sua casa de Grasslawn em Julho passado.

Sanderfield disse com impaciência:

Bem, posso dizer-lhe que não me lembro nada. Penso que o senhor está enganado.

Marie Helin deitou um rápido olhar a Poirot. Com os seus olhos inteligentes disse num tom calmo e suave:

Mas eu lembro-me perfeitamente, senhor. Eu fui contratada por Mademoiselle na última semana de Junho. A criada antecedente tinha saído à pressa.

Ouviu dizer alguma coisa acerca do motivo por que ela se foi embora?

Ela saiu de repente, é o que toda a gente sabe. Talvez fosse doença, ou qualquer coisa parecida. A madame não disse nada.

E a sua senhora era fácil de aturar? A rapariga encolheu os ombros:

Tinha uns ares de grande dama. Chorava e ria alternadamente. Algumas vezes estava tão desanimada que não falava nem comia. Outras vezes estava muito alegre. São assim mesmo estas bailarinas. É o seu temperamento!

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E Sir George?

A rapariga olhou desconfiada. Uma expressão desagradável inundou-lhe os olhos.

Ah, Sir George Sanderfield? O senhor deseja saber alguma coisa a seu respeito? Talvez seja o que na realidade o senhor quer saber. Ah, Sir George? Posso contar-lhe algumas coisas curiosas a seu respeito.

Poirot interrompeu:

Não é necessário!

Ela estacou de boca aberta, mostrando, no olhar desapontado, um leve despeito.

Eu sempre disse que o senhor sabia alguma coisa, Alex Pavlivitch. Poirot murmurou estas palavras com a mais lisonjeira entoação. Reflectiu que este trabalho de Hércules exigia mais deslocações e mais entrevistas do que ele tinha pensado. Este simples assunto da saída de uma criada era um dos mais complicados e difíceis problemas que lhe tinham aparecido. Cada investigação, bem examinada, em nada adiantava.

Naquela tarde tinha ido ao Restaurante Samovar, em Paris, cujo proprietário, o conde Alexis Samousenka, se mostrara muito orgulhoso por saber tudo o que se passava no meio artístico de todo o mundo. Abanava a cabeça complacentemente e dizia:

Sim, sim, meu amigo. Eu sei, eu sempre soube. Pergunta-me para onde foi a pequena Samousenka, a esquisita bailarina? Ah, ela era um autêntico valor, essa pequena. E beijou a ponta dos dedos. Que fogo, que abandono! Poderia ter ido longe, poderia ter sido a primeira bailarina dos nossos dias! E então, subitamente, calou-se, para pouco depois prosseguir: Poderia muito bem ter vencido, vencido em toda a parte, e cedo! Ah, tão cedo que a esqueceram!

Onde está ela, então? perguntou Poirot.

Na Suíça! Em Vagray-les-Alpes. É para aí que vão todos aqueles que têm uma tosse seca e emagrecem cada vez mais. Pode morrer, sim, ela pode morrer. E traz consigo a fatalidade. Sim, ela morrerá.

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Poirot pigarreou para acabar com o trágico assunto:

Desejo uma informação. Pode, por acaso, lembrar-se da criada que ela tinha? Uma criada chamada Nita Valetta?

Valetta? Valetta? Eu lembro-me de ter visto uma vez uma criada, quando Katrina deixou Londres. Era uma italiana de Pisa, não era? Uma italiana que ela mandara vir de Pisa. Sim, tenho a certeza!

Poirot suspirou. Nesse caso tenho, agora, de viajar até Pisa! ]

Poirot parou no cemitério de Pisa, em frente de uma sepultura.

Sim, era ali que aquele caso terminava: um humilde monte de terra! Ali repousava a alegre criatura que tinha inflamado o coração do jovem mecânico inglês.

Era esse, talvez, o melhor remate para aquele breve romance.

Agora, a rapariga viveria sempre na memória daquele jovem que a tinha visto, naquela encantadora tarde de Junho. O embate de nacionalidades opostas, de diferentes hábitos, a desilusão, tudo tinha acabado para sempre.

Hercule Poirot abanou a cabeça com tristeza. Recordou a conversação com a família de Valetta. A mãe, com a sua larga face de camponesa: o pai, direito, com um ar pesaroso; a irmã, de lábios grossos.

Foi de repente, foi inesperadamente. Penso que há mais de quinze anos que ela sofria daquelas dores... O médico deu-nos a escolher. Disse que ela devia ser operada de urgência à apendicite. Levou-a para o hospital então, e aqui... Sim. Sim, morreu sob a acção do anestésico. Nunca mais recuperou a consciência!

A mãe soluçava murmurando:

Branca era uma rapariga muito esperta. Foi pena que tivesse morrido tão nova...

Sim, ela morreu muito nova...

Era esta a mensagem que ele teria de levar ao jovem que tão confiadamente lhe tinha pedido que o ajudasse:

Ela não é para si meu amigo, ela morreu!

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O seu inquérito tinha terminado ali onde se desenhava a silhueta da torre inclinada e as flores da Primavera ainda pálidas com a promessa de alegria e vida que estava para vir.

Era o aparecer da Primavera que o fazia sentir com tanta revolta este final veredicto? Ou era alguma coisa mais? Alguma coisa que surgia no fundo do seu cérebro palavras, uma frase, um nome? Poderia isto terminar tão singelamente, tão rapidamente?

Hercule Poirot assentou: devia dispor de um dia mais para saber todas as coisas que lhe fosse possível saber. Devia ir a Vagray-les-Alpes.Aqui, pensou ele, é o verdadeiro fim do mundo! Estes montes de neve, estes pavilhões espalhados, abrigando cada um deles um sensível ser humano, lutando com uma insidiosa morte!

Assim, conseguiu chegar junto de Katrina Samousenka. Quando a viu ali deitada, com as faces encovadas e em cada uma delas uma vermelha roseta de febre, as mãos pálidas e descarnadas saindo da colcha, agitou-se-lhe a memória. Ele não se lembrava do nome mas tinha-a visto dançar, tinha ficado suspenso e arrebatado por aquela suprema arte que não se podia esquecer jamais. Recordou Michael Moving, o caçador saltando e dando voltas naquela majestosa e fantástica floresta que o cérebro de Ambrose Vandel tinha concebido. E recordou a graciosa corça eternamente perseguida, eternamente desejável, uma belíssima criatura dourada, com chifres na fronte e brilhantes pés de bronze. Recordava a queda final, alvejada e ferida, e Michael Noving desorientado com o corpo da corça morta nos braços.

Katrina Samousenka olhava para ele com curiosidade:

Nunca o tinha visto pessoalmente. Que deseja de mim?

Hercule Poirot inclinou-se levemente:

Em primeiro lugar, madame desejo agradecer-lhe

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a sua arte, que foi para mim, uma vez, a revelação da beleza.

Ela teve um fraco sorriso.

Mas também estou aqui por motivos de serviço. Procuro, há muito tempo, uma certa criada que teve, chamada Nita.

Nita?

Katrina estacou. O seu olhar era sobressaltado:

Que deseja saber a respeito de Nita?

Posso dizer-lhe.

Poirot, então, falou-lhe da tarde em que o carro se tinha avariado e em que Ted Williamson, amarrotando o boné entre os dedos, lhe contara a sua paixão e a sua dor. Ela ouviu-o com profunda atenção e disse quando ele terminou:

Faz ternura, não é verdade?

Poirot concordou, com um sinal de cabeça.

Sim disse ele, é uma história da Arcádia. Que pode a senhora dizer-me a respeito desta rapariga?

Eu tive uma criada, Juanita. Era muito gentil, alegre, de bom coração. Aconteceu-lhe o que acontece muitas vezes àqueles que os deuses favorecem. Morreu jovem.

Tinham sido palavras de Poirot, palavras definitivas, irrevogáveis. Agora ele ouvia-as de novo e insistia perguntando:

Ela morreu?

Sim, morreu!

Hercule Poirot calou-se por minutos, dizendo a seguir:

Ainda há uma coisa que eu não compreendo. Perguntei por esta rapariga a Sir George e ele pareceu-me assustado. Por que razão?

Uma expressão de desgosto apareceu na face da bailarina.

O senhor falou-lhe numa das minhas criadas e ele pensou que se referia a Maria, que esteve ao meu serviço depois de Juanita. Procurava aborrecê-lo sempre que ele se aproximava. Era uma rapariga odiosa. Muito curiosa, sempre a olhar para as cartas e para as gavetas.

Juanita morreu de uma operação de apendicite, em Pisa, não é verdade?

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Notou a hesitação da bailarina, antes de esta curvar a cabeça em sinal de assentimento. Sim, é verdade! Poirot perguntou imediatamente:

Há ainda uma pequena coisa: a gente da sua terra chama-lhe Branca e não Juanita.

A bailarina encolheu os ombros dizendo:

Branca ou Juanita que é que isso importa? Creio que na realidade se chama Branca, mas ela achou que o nome de Juanita era mais romântico e resolveu adoptá-lo.

Ah, a senhora pensa isso? Para mim existe outra explicação.

Qual?

Poirot inclinou a cabeça para a frente, dizendo:

A rapariga que Ted Williamson viu tinha o cabelo como ele descreve, semelhante a umas asas douradas. E o seu dedo tocou as duas ondas do cabelo brilhante da bailarina. Depois, novamente, prosseguiu:

Asas de oiro? Chifres de oiro? Se a senhora é o que aparenta qualquer pessoa pode ver em si um anjo ou um demónio. Ou são apenas os chifres doirados da corça amedrontada?

Katrina murmurou:

A corça amedrontada? E a sua voz era a voz de alguém que tinha perdido a esperança.

Poirot acrescentou:

A descrição de Ted Williamson aborreceu-me, trouxe qualquer coisa ao meu espírito que por vezes me parece ser a senhora dançando com os brilhantes pés de bronze, através da floresta. Dir-lhe-ei o que penso, mademoiselle! Penso que havia uma semana que não tinha criada, e que foi sozinha para Grasslawn, por Branca Valetta ter regressado à Itália e ainda não ter arranjado outra. Que já começava a sentir a doença que viria a atacá-la, quando os outros foram todo o dia para a excursão ao longo do rio. Bateram à porta, a senhora foi abrir e viu, poderei dizer-lhe o que viu? Viu um jovem simples como uma criança e formoso como um deus. E a senhora inventou para ele uma rapariga não Juanita, mas Incógnita

e durante algumas horas passeou com ele na Arcádia... Fez-se um silêncio. Então Katrina disse em voz baixa e rouca:

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Numa coisa, aliás, eu disse-lhe a verdade. Contei-lhe o fim da história. Nita morrerá jovem.

Eh, non! Hercule Poirot estava transtornado. Bateu com o punho na mesa. Tornou-se, de repente, prosaico, mundano, prático, dizendo:

Isso não é necessário. Não necessita de morrer. Não pode lutar pela sua vida como qualquer outra pessoa?

Ela abanou a cabeça com tristeza e desesperadamente:

Que vida é agora a minha?

Não a vida do teatro, bien entendu. Mas pense: há outra vida! Diga-me, mademoiselle, seja sincera, o seu pai é na realidade um príncipe, um grão-duque ou mesmo algum general?

Ela riu-se e respondeu:

Meu pai conduzia uma camioneta em Leninegrado!

Muito bem! E porque não há-de ser a esposa de um mecânico numa terra de província? E ter filhos tão bonitos como deuses e talvez com pés que possam um dia dançar como a senhora dançou?

Katrina susteve a respiração.

Mas essa ideia é fantástica!

Todavia disse Hercule Poirot satisfeito consigo próprio; eu creio que vai tornar-se uma realidade!

IV O JAVALI DE ERIMANTO

Como o final do terceiro trabalho de Hercule Poirot o levou à Suíça, decidiu ele que, já que ali estava, visitaria aquela região desconhecida para ele.

Passou dois dias agradáveis em Chamonix. Esteve um ou dois dias em Montreux e depois foi até Aldematt de que vários amigos seus já lhe tinham falado. Aldematt, contudo, desagradou-lhe. Estava situada no fundo de um vale rodeado de montanhas de neve. Por isso sentia, sem razão, que lhe era difícil respirar!

Impossível ficar aqui disse Poirot para si mesmo. Nesse momento o seu olhar fixou-se no funicular. Decididamente, tenho que subir!

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O funicular observou ele subiu primeiro a Lês Avines, depois a Caurouchet e finalmente a Rochers Neiges, a dez mil pés de altitude.

Poirot não se propunha subir tão alto. Até Lês Avines seria suficiente.

Mas, ali, não contou com aquele elemento de chance que tão grande importância tem na vida. O funicular tinha começado a mover-se quando o condutor se aproximou de Poirot para lhe pedir o bilhete. Depois de ter furado o bilhete devolveu-lho, fazendo uma vénia. Ao mesmo tempo, Poirot sentiu um pequeno papel introduzido na mão juntamente com o bilhete.

As sobrancelhas de Poirot ergueram-se um pouco. Vagarosamente desdobrou o papel. Via-se que tinha sido escrito a lápis, apressadamente.

Impossível confundir-se esses bigodes. Cumprimento-o, caro colega. Se quiser pode prestar-me um grande auxílio. Tem, sem dúvida, ouvido falar acerca daquele caso Salley? Acredita-se que o assassino, Marrascaud, tem uma entrevista marcada com os membros do seu bando em Rochers Neiges. Pode ser mentira, mas podemos fiar-nos em quem nos informou. Há sempre um que atraiçoa, não é verdade? Assim, tenha os olhos abertos, meu amigo. Ponha-se em contacto com o inspector Drouet, que se encontra aqui. É importante, meu amigo, que Marrascaud seja apanhado, mas vivo. Não é um homem, é um javali selvagem, um dos mais perigosos assassinos destes tempos. Não se arrisque a falar comigo em Aldemaud, porque podia ser observado e você terá mais facilidades se pensarem que é um turista vulgar. Boa caçada. Seu velho amigo LEMENTEUIL.»

Pensativamente, Poirot acariciou o bigode. Sim, na verdade era impossível esquecer o bigode de Hercule Poirot! Que vinha a ser toda aquela história? Tinha lido, nos jornais, o caso Salley, assassínio, a sangue-frio, do conhecido parisiense apostador nas corridas de cavalos. Marrascaud era membro de uma quadrilha muito conhecida, que andava metida em assuntos de corridas de cavalos. Era suspeito por ser o autor de outros assassínios, mas desta vez a sua culpabilidade provara-se completamente. Tinha saído de França, mas toda a polícia da Europa estava alerta.

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Assim, Marrascaud dissera ter uma reunião em Rochers Neiges... Hercule Poirot abanou a cabeça vagarosamente. Estava embaraçado. Rochers Neiges era acima da linha de neve. Havia, ali, um hotel, mas comunicava com o mundo apenas por meio do funicular, parando numa estreita cadeia de rochedos sobranceira ao vale. O hotel abria em Junho, mas não era frequentado por ninguém antes de Julho ou Agosto. Era um lugar com poucas entradas e saídas e se um homem fosse apanhado ali cairia numa armadilha. Parecia um lugar escolhido para as reuniões de um bando de criminosos.

E se acaso a informação de Lementeuil fosse digna de confiança, Lementeuil devia ter razão. Hercule Poirot respeitava o comissário da Polícia Suíça; tinha-o na conta de um homem são e de confiança.

Alguma razão desconhecida tinha levado Marrascaud àquele lugar tão distante da civilização. Hercule Poirot suspirou. Esta caçada a um criminoso célebre não era o que mais lhe agradava para um período de descanso. Estar meditando numa cadeira de braços, reflectiu, era muito mais agradável que ter de apanhar um javali selvagem no cume de uma montanha.

Um javali selvagem fora o termo que Lamenteuil usara. Era certamente uma coincidência... Pensando, disse para consigo: Eis que se me depara o quarto Trabalho de Hércules: O Javali de Erimanto.

Sossegadamente, sem dar nas vistas, tomou nota dos seus companheiros de funicular.

No lugar oposto sentava-se um turista americano. Desde o modelo do fato, da gabardina e do saco, até ao seu amável interesse e à sua ingénua absorção na paisagem, sempre com o guia na mão, tudo indicava tratar-se de um americano da província que visitava a Europa pela primeira vez. Poirot pensou que dentro de poucos minutos o americano quebraria o silêncio. A expressão do seu olhar, de cão meigo e atento, não podia enganar.

No outro lado da carruagem, um homem alto, de distinta aparência, cabelo grisalho e nariz aquilino, lia um livro alemão. Tinha os dedos ágeis e fortes de um músico ou de um cirurgião. Um pouco mais longe sentavam-se três homens com o mesmo tipo. Homens com as pernas arqueadas e uma indescritível sugestão de

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estarem familiarizados com cavalos. Jogavam as cartas. Naquele momento, talvez sugerissem que o estrangeiro tomasse parte no jogo. Primeiro, o estrangeiro ganharia. Depois, a sorte virar-se-ia ao contrário.

Nada de especial acerca destes três homens. A única coisa estranha era o local onde se encontravam.

Qualquer deles podia ser visto no comboio, a caminho das corridas, ou num paquete de segunda categoria. Mas num funicular quase vazio, não!

Havia, ainda, outro ocupante da carruagem; era uma mulher. Tinha uma cara bonita, uma cara que podia expressar uma gama de emoções mas que, em vez disso, estava gelada numa estranha indiferença.

Nessa altura, como Poirot esperava, o americano começou a conversar. Segundo disse, chamava-se Schwartz. Era a sua primeira visita à Europa. Ficara verdadeiramente impressionado com o castelo de Chillon. Não pensava grande coisa a respeito de Paris de renome exagerado, tinha estado no Follies Bergères, no Louvre e em Notre-Dame e tinha notado que nenhum dos restaurantes e cafés de Paris tocaria jazz com o necessário calor. Pensava que os Campos Elísios eram um bonito lugar, e gostou das fontes, especialmente quando estavam iluminadas.

Nenhum dos passageiros saiu em Lês Avines ou no Caurouchet. Era claro que todos os ocupantes do funicular se dirigiam a Rochers Neiges.

Mr. Schwartz explicou as suas razões. Sempre desejara ver a mais alta montanha de neve. Ouvira dizer que àquela altitude era difícil cozer um ovo. Na inocente franqueza do seu coração, Mr. Schwartz esforçou-se por entabular conversa com o homem alto de cabelos grisalhos, mas este olhou-o friamente por cima das lunetas e continuou a ler o livro.

Mr. Schwartz, então, propôs à senhora morena trocarem os lugares. Ela, assim, poderia ver melhor a paisagem, explicou ele. Era duvidoso crer que a senhora entendesse o inglês. Fosse como fosse, ela apenas abanou a cabeça e encolheu-se agasalhando-se na gola de peles do casaco.

Mr. Schwartz murmurou para Poirot:

Não me parece bem ver uma senhora viajar só,

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sem ter alguém que lhe tome conta das coisas. Uma senhora necessita de muitas atenções quando viaja.

Lembrando-se de certas americanas que tinha encontrado no continente, Poirot concordou.

Mr. Schwartz suspirou. Achava a humanidade muito pouco amável. E os seus olhos diziam o mesmo. Havia algum mal em espalhar em volta um pouco de afabilidade?

Ser recebido pelo gerente de um hotel, enfarpelado numa sobrecasaca e de brilhantes sapatos de cabedal, pareceu-lhe ridículo naquele lugar fora do mundo, ou melhor, acima do mundo.

O gerente era um homem perfeito, com ares de importância. Era muito enfatuado.

Tão cedo, nesta estação!... O sistema de aquecimento ainda não está em ordem... Estas coisas levam tempo a arranjar... Naturalmente farei o que puder... Que ainda não tinha o pessoal suficiente... Estava bastante confuso com tão grande número de visitantes.

E continuou expondo tudo aquilo com profissional urbanidade. Mas pareceu a Poirot que por detrás daquela amável fachada espreitava um clarão de expectante ansiedade. Aquele homem, com todo o seu desembaraço, não estava à vontade. Estava preocupado com qualquer coisa.

O almoço foi servido numa grande sala que dava para o vale. O criado, conhecido pelo nome de Gustavo, era hábil e correcto. Andava de um lado para o outro informando a ementa, mostrando a lista dos vinhos. Os três cavaleiros sentaram-se na mesma mesa. Riam e falavam em francês, erguendo a voz.

Bom velho Joseph! E o que há acerca de Denise, mon vieux? Lembram-se daquele ordinário cavalo que nos deitou abaixo em Auteuil?

Tudo aquilo era chocante, falho de elegância e incompatível com o lugar.

A mulher bonita sentou-se só, a uma mesa do canto. Não olhava para ninguém.

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A seguir, como Poirot tivesse ido sentar-se na sala, o gerente dirigiu-se-lhe, dizendo em confidência:

O senhor não deve julgar muito mal do hotel. Estamos fora da estação. Ninguém costuma vir antes do fim de Julho. Aquela senhora, não reparou nela, talvez? Essa vem aqui todos os anos nesta época. O marido morreu, numa escalada, há três anos. Tem-lhe sido bastante devotada. Vem aqui, sempre, antes de começar a estação, para ficar mais tranquila. É uma peregrinação sagrada. Aquele senhor mais velho é o famoso Dr. Karl Lutz, de Viena. Vem aqui, segundo diz, para estar sossegado e repousar.

Isto é sossegado concordou Poirot. E, ali, aqueles senhores? E indicou os três cavaleiros. Também necessitam de repouso, não lhe parece?

O gerente encolheu os ombros. De novo lhe apareceu no olhar uma expressão de aborrecimento. Disse vagamente:

Ah, turistas, desejam sempre uma experiência nova... A altitude, este isolamento, é uma nova sensação.

Não é, pensou Poirot, uma sensação muito agradável. A altitude fazia-lhe acelerar o bater do coração.

As rimas que vira escritas numa nurserie ocorreram-lhe estupidamente ao espírito. Up above the world so high, Like a tea tray in sky (tão alto acima do mundo, semelhante a um tabuleiro de chá no céu).

Schwartz foi para a sala. Os olhos brilharam-lhe quando viu Poirot e aproximou-se logo dele.

Estive a conversar com o doutor. Fala inglês à sua maneira. É judeu, escorraçado da Áustria pelos nazis. Convenço-me cada vez mais de que aquele povo é muito estúpido. Este Dr. Lutz é um grande homem, um especialista de doenças nervosas, um psicanalista. Que raça de gente!

Os seus olhos dirigiram-se para a mulher alta que estava olhando pela janela, para as montanhas. Soube o nome dela pelo criado:

É Madame Grandier. O marido morreu quando escalava a montanha. É por isso que ela aqui vem. Há uma coisa que o senhor, que todos nós devemos fazer: Procurar distraí-la.

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Poirot disse:

Eu, no seu lugar, não me metia nisso.

Mas a amabilidade de Schwartz era infatigável. Poirot viu-o fazer várias avançadas, viu o caminho ingrato em que se tinha metido. Os dois ficaram de pé, por minutos; a sua silhueta desenhava-se contra a luz. A mulher era mais alta que Schwartz. Virou a cabeça para trás e a sua expressão era fria e hostil.

Poirot não ouviu o que ela lhe disse, mas viu Schwartz voltar para trás, com um ar desanimado.

Nada feito disse ele. E acrescentou sentenciosamente: Parece-me que se todos somos seres humanos, não há razão para nos tratarmos com menos amabilidade. Não concorda, senhor...? Ainda não sei o seu nome.

O meu nome disse Poirot é Poirot. E acrescentou: Sou negociante de sedas, em Lião.

Aqui tem o meu cartão, e se for alguma vez a Fountain Springs, asseguro-lhe que será bem recebido.

Poirot aceitou o cartão, introduziu a mão na algibeira e murmurou:

Tenho muita pena, mas neste momento não tenho comigo os meus cartões.

Naquela noite, quando foi para a cama, Poirot tornou a ler a carta de Lementeuil, voltando a colocá-la cuidadosamente dobrada dentro da pasta. Meteu-se na cama dizendo para consigo próprio:

É curioso... Admirava-me se...

Gustavo, o criado, levou a Poirot o pequeno-almoço: café e pão de rosca. E pôs-se a falar com ênfase a respeito do café:

O senhor não repare, mas nesta altitude é difícil conseguir ter o café bem quente. Infelizmente ferve muito depressa mas logo arrefece.

Poirot contestou:

Devemos aceitar com filosofia estes caprichos da natureza.

Gustavo perguntou:

O senhor é filósofo?

Dirigiu-se para a porta, mas em vez de deixar o quarto, deitou uma olhadela para fora, fechou a porta de novo e voltou para o lado da cama, dizendo:

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EM. Poirot? Eu sou Drouet, inspector da polícia.

Ah disse Poirot, já o havia suspeitado, há muito.

Drouet baixou a voz:

M. Poirot, aconteceu qualquer coisa de muito grave. Deu-se um acidente no funicular.

Poirot saltou da cama:

Um acidente? Que espécie de acidente?

Ninguém foi atingido. Foi durante a noite. Teve origem, talvez, em causas naturais, uma pequena avalanche que deitou abaixo fragmentos de rocha. Mas é possível que ali houvesse a mão do homem. Ninguém sabe. Em qualquer dos casos, o resultado é que levará muitos dias a reparar. E neste espaço de tempo ficaremos aqui encurralados. Nesta altura da estação, quando a neve ainda está tão espessa, é impossível comunicar com o vale.

Hercule Poirot disse com volubilidade:

Isso é muito interessante! O inspector concordou:

Sim, isto prova-nos que as informações do nosso comissário eram certas. Calou-se, e pouco depois, no mesmo tom de voz, acrescentou: Marrascaud tem aqui uma reunião, e fez tudo para que essa reunião não seja interrompida.

Poirot exclamou com impaciência:

Mas isso é fantástico!

Concordo! O inspector Drouet esfregou as mãos. Isto não faz sentido, não tem senso comum, mas é assim. Este Marrascaud, o senhor sabe, é uma criatura fantástica! Eu penso, para mim, que ele é doido.

Poirot disse:

Um doido e um assassino! Drouet, irritado, corroborou:

Concordo que isto não é nada divertido! E Poirot acrescentou vagarosamente:

Mas se ele tem uma reunião, aqui, nesta cadeia de rochedos, no topo do mundo e cobertos de neve, então, segue-se que o próprio Marrascaud já aqui esteve, visto que as comunicações estão cortadas.

Drouet respondeu calmamente:

Eu sei!

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Os dois homens calaram-se por minutos. Depois, Poirot perguntou:

O Dr. Lutz? Será que ele seja o Marrascaud? Drouet respondeu:

Não sou dessa opinião! Deve ser o verdadeiro Dr. Lutz. Tenho visto fotografias dele, nos jornais. Um homem distinto e muito conhecido. E aquele homem parece-se exactamente com o mesmo das fotografias.

Poirot murmurou:

Se Marrascaud for artista no disfarce pode representar com sucesso este papel.

Sim, mas terá ele essa habilidade? Nunca ouvi falar nele a esse respeito. Não tem a astúcia nem a habilidade de uma serpente. É um javali selvagem, feroz, terrível, que ataca às cegas.

Poirot, naturalmente, disse:

São todos o mesmo... Drouet concordou imediatamente:

Sim, é um fugitivo da justiça. Portanto é obrigado a disfarçar-se. De facto, deve estar, mais ou menos disfarçado.

Sabe como ele é?

O outro encolheu os ombros.

Ligeiramente apenas. As fotografias e as medidas de Bertillon devem ser-me enviadas hoje. Sei apenas que é um homem excêntrico, perto dos trinta anos, um pouco acima da estatura mediana e de tipo moreno. Não tem sinais particulares.

Poirot encolheu os ombros.

Isso pode aplicar-se a qualquer pessoa. E que pensa acerca do americano Schwartz?

Eu ia precisamente perguntar-lhe o mesmo. Falei com ele e tenho convivido muito com americanos e ingleses. À primeira vista parece ser o vulgar turista americano. Tem o passaporte em ordem. É, talvez, estranho que tivesse escolhido este ponto, mas os americanos quando viajam são originais. E que pensa o senhor?

Poirot abanou a cabeça, indeciso, e disse:

Superficialmente, aparenta ser um homem simples, ingenuamente amável. Pode ser um bandido, mas parece difícil considerá-lo perigoso. E continuou: Mas, há aqui ainda, mais três visitantes.

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O inspector mostrou-se curioso:

Sim, ainda aqui está o tipo que nós estamos vigiando. Aposto, M. Poirot, que estes três homens pertencem ao bando de Marrascaud. É gente que aposta nas corridas e quem sabe se um deles não será o próprio Marrascaud!

Poirot reflectiu e recordou aquelas três caras. Um tinha as faces redondas, as sobrancelhas arqueadas e uma barbela de gordura. Uma cara grosseira, bestial. Outro era magro e curvado, de rosto esguio e olhar duro. O terceiro era um indivíduo de face balofa e ares de dandy. Sim, um deles podia muito bem ser Marrascaud; mas, nesse caso, qual deles era? Por que razão outros dois membros do seu bando tinham subido juntos até à montanha? Podiam reunir-se num lugar menos estranho, numa estação de caminho-de-ferro, num cinema concorrido, num jardim público ou em qualquer lado em que as saídas fossem fáceis, não ali, no cimo do mundo, numa solidão coberta de neve! Aquilo era fantástico, não tinha o menor senso!

Drouet, aborrecido, disse:

Também podemos fazer uma segunda suposição. Estes homens fazem parte do bando de Marrascaud e vêm aqui encontrar-se com ele. Mas nesse caso quem é Marrascaud?

Poirot perguntou:

E o pessoal do hotel?

Não há ninguém que desperte suspeitas. Uma velha cozinheira e o marido, velho também. Já aqui estão há quinze anos, penso eu. Há, ainda, o criado do hotel, cujo lugar eu tomei.

Poirot perguntou:

O gerente sabe sem dúvida quem o senhor é?

Naturalmente! Necessitei da sua colaboração!

Não reparou que ele parece aborrecido?

Este reparo pareceu impressionar Drouet, que disse pensativamente:

Sim, isso é verdade!

Pode ser que seja apenas por susto, por se ver envolvido em assuntos com a polícia. Mas creio que pode ser mais do que isso. Não pensa que ele possa saber alguma coisa? Ocorreu-me isto, eis tudo!

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Drouet disse sombriamente:

Estou admirado!

Fez uma pausa e continuou:

Será fácil saber por ele alguma coisa?

Parece-me que será melhor respondeu Poirot não lhe dar a conhecer as nossas suspeitas e mantê-lo sob vigilância.

Drouet dirigiu-se para a porta.

Não tem nenhuma ideia, M. Poirot? Conheço a sua reputação. O senhor é bem conhecido em todo o nosso país.

Poirot respondeu perplexo:

De momento não me ocorre nenhuma sugestão. Há uma razão que não compreendo: esta reunião neste lugar.

Dinheiro disse Drouet secamente.

Ele, então, roubou e assassinou o pobre Salley?

Sim, desapareceu uma larga soma de dinheiro.

E a reunião será com o fim de fazerem a partilha! É isto que o senhor pensa?

Talvez seja uma ideia acertada! Poirot abanou a cabeça pouco satisfeito:

Sim, mas por que razão aqui? Precisamente aqui, o pior lugar para uma reunião de criminosos! Esta terra é o local ideal para um encontro com uma mulher!

Drouet deu um passo para a frente, arrebatado, e perguntou com excitação:

O senhor pensa que...?

Eu penso disse Poirot que Madame Grandier é uma bonita mulher. E penso que qualquer pessoa pode subir a esta altitude por sua causa. Isto é, se ela pudesse sugerir tal ideia.

Sabe que isso é interessante? Nunca pensei em qualquer relação que ela possa ter com o caso. Afinal, ela vem aqui há muitos anos.

Poirot insinuou:

Sim, e por isso a sua presença não pode dar origem a comentários. Talvez seja esta a razão por que Rochers Neige tenha sido o lugar escolhido?

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O senhor teve uma bela ideia disse Drouet excitado. Temos que ponderar esse aspecto do caso.

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O dia passou-se sem incidentes. Afortunadamente o hotel estava bem fornecido. O gerente explicou que não havia razão para preocupações. A alimentação estava assegurada.

Hercule Poirot procurou entabular conversa com o Dr. Karl Lutz, mas teve mau acolhimento. O doutor disse claramente que era um profissional em psicologia e que não perdia tempo a discutir com amadores. E sentou-se a um canto, lendo um grande livro alemão sobre o subconsciente ao mesmo tempo que fazia anotações.

Poirot saiu e rondou em volta da cozinha. Meteu conversa com o velho Jacques, que era seguramente um desconfiado. A mulher, a cozinheira, felizmente era mais acessível. Explicou a Poirot que existia uma larga reserva de conservas mas que ela não dava nada pelas comidas em latas. Era bastante dispendiosa, e que podia alimentar? O bom Deus nunca tinha aconselhado as pessoas a viverem de latas.

A conversação encaminhou-se para o pessoal do hotel. Que no princípio de Julho costumavam chegar as criadas de quarto e os criados de fora. Mas que nas três semanas que se seguiam não haveria ninguém ou quase ninguém. Que a maior parte das pessoas só almoçava e depois ia-se embora. Ela, Jacques, e mais uma criada, poderiam encarregar-se de tudo sem dificuldade.

Poirot, então, perguntou:

Mas não estava aqui um criado, antes de Gustavo?

Sim, uma espécie de criado. Sem habilidade nem experiência, não tinha classificação.

Há quanto tempo Gustavo está a substituí-lo?

Apenas há poucos dias, cerca de uma semana! Naturalmente foi despedido. Nós não nos admirámos.

Ele não reclamou?

Ah, não, ele saiu muito calmo. Que tinha ele a esperar? Isto é um hotel de primeira classe e-temos de ter aqui pessoal competente.

Para onde foi ele? perguntou Poirot.

O senhor refere-se ao Roberto? A mulher

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encolheu os ombros. Sem dúvida que regressou ao obscuro café de onde tinha vindo.

E foi no funicular?

Ela olhou para ele com curiosidade:

Naturalmente, senhor! Que outro caminho podia tomar?

Poirot perguntou:

Alguém o viu partir?

Ambos olharam fixamente para Poirot.

Ah, então parece-lhe possível que alguém tivesse ido assistir à partida de semelhante animal? Ir alguém despedir-se dele! Cada um de nós tem mais que fazer!

Precisamente! rematou Poirot.

Afastou-se vagarosamente parando a olhar as construções. Um grande hotel presentemente apenas com uma ala a funcionar. Nas outras alas havia mais quartos fechados nos quais ninguém podia entrar...

Deu uma volta a um dos cantos do hotel e aproximou-se do quarto dos três jogadores de cartas. Viu o homem da face balofa. Este olhou para Poirot sem expressão. Apenas entreabriu os lábios deixando ver uns dentes que pareciam de cavalo. Poirot passou por ele e continuou a andar.

Viu, em frente, a graciosa figura de Madame Grandier e dirigiu-lhe a palavra.

Este acidente do funicular é muito aborrecido! Espero, madame, que isto não lhe traga inconvenientes.

É-me indiferente disse ela, numa profunda voz de contralto.

Nem sequer olhou para Poirot. E, afastando-se, entrou para o hotel por uma pequena porta lateral.

Hercule Poirot foi cedo para a cama. Pouco depois da meia-noite ainda estava acordado. Alguém remexia com uma chave na fechadura. No mesmo instante a fechadura cedeu e a porta abriu-se. Apareceram três homens, os três jogadores de cartas. Estavam, pensou Poirot, completamente embriagados. Notou que a expressão dos

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seus rostos era desvairada e maldosa. E viu o brilho de uma navalha de barba.

O homem gordo avançou dizendo com uma voz mal-humorada:

Maldito porco de detective! Bah!

Saiu-lhe dos lábios uma torrente de blasfémias. O terceiro deles avançou propondo-se defender o homem que estava na cama.

Nós podemos trinchá-lo, rapazes. Eh!, cavalinhos! Esfaquearemos monsieur detective com lealdade. Não é o primeiro, esta noite!

E avançaram operando, propositadamente... A navalha de barba brilhava... E então, elevando-se com o seu acento estranho, uma voz disse:

Suspendam!

Os homens olharam em volta. Schwartz, vestido com um garrido pijama de cores, surgiu na soleira da porta. Na mão segurava uma automática.

Suspendam, rapazes! Eu gosto de uma boa caçada. Premiu o gatilho e uma bala zumbiu perto do ouvido do homem mais alto e foi alojar-se no caixilho de madeira da janela.

Três pares de mãos se ergueram repentinamente. Schwartz disse:

Venho incomodá-lo, M. Poirot?

Poirot saltou da cama como uma flecha. Rapidamente, o outro recolheu as três brilhantes armas ofensivas e passou as mãos pelo corpo dos três homens para se assegurar de que eles não tinham mais nenhuma arma.

Agora marchar!

Havia um grande armário ao longo do corredor. Mas nenhuma janela; só o armário. Obrigou-os a entrar e fechou-os à chave. Girou em volta de Poirot, dizendo com a voz velada de emoção:

Sabe, M. Poirot, que houve pessoas em Fountain Springs que se riram de mim quando lhes disse que trazia comigo uma arma? Para onde pensa você que vai?, Perguntavam eles. Embrenhar-se na selva? Mas eu disse-lhes que isso era cá comigo. Já viu um molho de brutos tão feio?

Poirot encarou-o e respondeu:

Meu querido Schwartz, você apareceu precisamente

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no momento oportuno. Isto podia ter sido um grande drama. Tenho para consigo uma grande dívida.

Não me deve nada. Onde vamos agora? Temos de entregar estes rapazes à polícia; é o que nós devemos fazer. É um problema embaraçoso. Talvez seja melhor consultar o gerente.

Hercule Poirot disse:

Ah, o gerente! Penso que é melhor consultar o criado, o Gustavo, aliás inspector Drouet. Sim, Gustavo é realmente um detective.

Schwartz encarou Poirot:

Aqui está a razão por que aqueles fizeram isto!

Que foi que eles fizeram?

Este molho de brutos tinha-o posto a si em segundo lugar na lista. Já tinham esfaqueado o Gustavo.

Que diz?

Venha comigo! O médico está junto dele, neste momento.

O quarto de Gustavo era um pequeno quarto no topo do edifício. O Dr. Lutz, vestido num roupão, ligava o rosto ferido do homem. Virou a cabeça quando os outros dois entraram.

Ah, é o senhor, Mr. Schwartz? Um negócio sujo, este. Que carniceiros, que monstros desumanos!

Drouet estava deitado, lamentando-se num tom de voz fraca.

Está em perigo? perguntou Schwartz.

Não morrerá disto se é isso o que estão pensando. Mas não devemos falar aqui para não o excitar. Desinfectei as feridas; assim, não poderá haver risco de infecção.

Os três homens saíram juntos. Schwartz voltou-se para Poirot e perguntou:

O senhor disse que Gustavo pertencia à polícia? Poirot abanou a cabeça, em sinal de assentimento.

Mas, então, que estava ele a fazer aqui em Rochers Neiges?

Estava encarregado de prender um perigoso assassino.

Em poucas palavras Poirot explicou a situação. O Dr. Lutz disse:

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Marrascaud? Eu li qualquer coisa a esse respeito

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no jornal. Gostava de encontrar esse homem. Há nele qualquer coisa de profundamente anormal! Gostava de conhecer determinadas particularidades acerca da sua infância.

Quanto a mim, gostava de saber onde ele se encontra neste momento disse Poirot.

Schwartz aproximou-se e perguntou:

Será algum daqueles que se encontram no armário?

Poirot respondeu pouco satisfeito:

É possível, mas eu, eu não tenho a certeza... Tenho uma suspeita de que...

Interrompeu-se espreitando para debaixo do tapete que era de brilhante pele curtida mas tinha profundas marcas de ferrugem castanha. E, pausadamente, elucidou:

Pegadas. Pegadas aqui marcadas com sangue e que partem da ala desabitada do hotel. Venham! Temos de ir depressa.

Os outros seguiram-no através de uma porta e ao longo de um sujo corredor. Contornaram o ângulo, sempre seguindo as marcas dos passos, até se lhes deparar uma porta entreaberta. Poirot empurrou a porta e entrou. Soltou uma estridente e horrorizada exclamação. Era um quarto de cama. A cama estava desfeita e em cima da mesa via-se um tabuleiro com comida. No meio do chão estava estendido o corpo de um homem. Era de estatura média e tinha sido atacado com selvagem e incrível ferocidade. Schwartz soltou uma vociferação abafada e voltou para trás com medo de se sentir mal.

O Dr. Lutz também gritou horrorizado.

Quem é este homem? perguntou Schwartz com voz fraca. Ninguém o conhece!

Suponho disse Poirot que era aqui conhecido como Roberto, um criado desajeitado e incompetente...

Lutz aproximou-se mais, inclinando-se para o corpo. E apontou com o dedo. Havia um papel espetado com um alfinete no peito do homem. Tinha algumas palavras rabiscadas:

Marrascaud não matará mais, nem roubará mais os seus amigos!

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Marrascaud! Então este era Marrascaud. Mas o que o trouxe a este lugar? E porque disse ele chamar-se Roberto? perguntou Schwartz.

Estava mascarado de criado. E era um mau criado!

Tão mau que ninguém ficou surpreendido quando ele se foi embora. O tipo saiu, naturalmente, para voltar para Andermatt. Mas ninguém o viu sair.

Lutz disse numa voz baixa e abafada:

Então, que pensa que sucedeu? Poirot respondeu:

Penso que temos aqui a explicação daquelas expressões de aborrecimento do rosto do gerente. Marrascaud deve ter-lhe oferecido um grande suborno para lhe permitir que se conservasse na parte desabitada do hotel... E acrescentou pensativamente: Mas o gerente não se sentia nada feliz com este estado de coisas.

E Marrascaud continuou a viver na parte desabitada do hotel sendo o gerente o único a saber?

Assim parece! Pode ser muito possível. O Dr. Lutz, então perguntou:

E porque foi ele morto? E quem o matou? Foi Schwartz quem lhe respondeu:

Isso é fácil de supor: ele veio aqui para repartir o dinheiro com o seu bando. No entanto, não procedeu assim. Veio para aqui porque pensava que era o único lugar onde poderia estar sossegado. Pensou que era o único lugar do mundo onde não seria descoberto. Mas enganou-se. Os outros foram avisados por qualquer pessoa e seguiram-no. Tocou com a ponta do sapato no corpo do homem e prosseguiu: E apanhou a sua conta como se está vendo.

Poirot, reflectindo, acrescentou:

Sim, era a espécie de reunião que nós suspeitávamos.

O Dr. Lutz disse irritado:

Estes comos e porquês podem ser muito interessantes, mas eu refiro-me à nossa actual posição. Temos aqui um homem morto. Eu tenho um homem doente a meu cargo e uma limitada reserva de medicamentos. E estamos afastados de todo o mundo! Por quanto tempo?

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Schwartz acrescentou:

E temos três assassinos fechados num armário. Isto é o que se chama uma situação interessante!

Que vamos, então, fazer? perguntou o Dr. Lutz. Poirot respondeu-lhe:

Primeiro vamos prender o gerente. Não é um criminoso, mas apenas um homem ávido de dinheiro, e um cobarde também. Pode fazer alguma coisa. O meu amigo Jacques e a mulher também podem ajudar-nos. Os nossos três bandidos podem ser colocados aqui e nós podemos mantê-los em segurança, enquanto não vier qualquer auxílio. E penso que a automática de Mr. Schwartz será eficaz para efectuarmos os planos que estamos combinando.

O Dr. Lutz, fixando-o, perguntou-lhe:

E eu? Que faço eu?

O senhor tem de fazer tudo o que lhe for possível pelo seu doente. E os restantes serão mantidos em incessante vigilância. E esperemos.

Não há mais nada que se possa fazer.

Passados três dias um grupo de homens apareceu em frente do hotel, nas primeiras horas da manhã.

Foi Hercule Poirot quem lhes abriu a porta da frente do hotel.

Seja bem-vindo, mon veux! Monsieur Lementeuil, comissário da polícia, apertou ambas as mãos de Poirot:

Ah, meus amigos, que estupendos acontecimentos, que grandes emoções por que passámos! E nós, lá em baixo, a nossa ansiedade, o nosso susto, sem sabermos de nada, receando tudo. Nem sequer a rádio, nenhum meio de comunicação! O heliógrafo foi um golpe de génio da nossa parte!

Não, não! Poirot esforçava-se por parecer modesto. Depois de tudo, quando falham os inventos do homem, recorre-se à natureza. Há, sempre, sol no céu.

O pequeno grupo entrou no hotel. Lementeuil disse:

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Não éramos esperados? O seu sorriso era um pouco cruel.

Poirot sorriu também:

Mas não acreditávamos que o funicular fosse reparado tão depressa!

Lementeuil olhou-o comovido:

Ah, este é um grande dia! Mas pensa que este é realmente Marrascaud? Venham comigo, por favor!

Subiram as escadas. Abriu-se uma porta e Schwartz apareceu em roupão. Estacou quando viu os homens.

Eu ouvi vozes explicou. Quem são e que é isto?

Hercule Poirot respondeu grandiloquentemente:

O auxílio chegou! Acompanhe-nos senhor. Este é um grande momento!

Deteve-se no outro lanço das escadas. Schwartz perguntou:

Vai ver Drouet? Como está ele, vai melhor?

O Dr. Lutz diz que ele passou melhor a noite passada.

Chegaram à porta do quarto de Drouet. Poirot precipitou-se para abri-la e anunciou:

Aqui está o nosso javali selvagem, meus senhores. Tomem-no vivo e vejam que ele não engana a guilhotina.

O homem que estava deitado na cama, com a face ligada, levantou-se. Mas os agentes da polícia seguraram-no pelos braços e não o deixaram mover-se.

Schwartz gritou excitadíssimo:

Mas este é Gustavo, o criado, o inspector Drouet.

É Gustavo, sim, mas não é Drouet. Drouet era o primeiro criado, o criado Roberto que estava preso na parte não habitada do hotel, e que Marrascaud matou na mesma noite em que eu fui atacado.

Durante o almoço Poirot faz-se explicar ao desorientado americano:

O senhor compreende, há certas coisas que nós sabemos... sabemos, em virtude da nossa profissão.

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Qualquer de nós sabe, por exemplo, a diferença que existe entre um detective e um assassino! Gustavo não era criado; suspeitei-o logo de entrada, mas também não era um polícia. Logo, na primeira vez que o vi fiquei desconfiado. Nessa tarde não bebi o café. Fui prudente. Mais tarde o homem foi ao meu quarto, fazer-me confidências. Parou e foi-se abeirar do americano.

Espreitou para os meus papéis e viu a carta que eu tinha ali deixado propositadamente para ele ver. Na manhã seguinte voltou ao meu quarto, com o café. Saudou-me pelo meu nome e procedeu com toda a segurança. Mas andava cheio de ansiedade, porque na polícia tinham dado com o seu refúgio. Sabiam onde ele estava e isto seria para ele um grande desastre. Seria caçado como um rato numa ratoeira.

Schwartz, então, disse:

Mas que condenável loucura ele ter vindo para aqui! Porque teria ele feito isso?

Não foi tão louco como parece! Necessitava urgentemente de um lugar retirado, longe de tudo, onde pudesse encontrar uma certa pessoa e onde um determinado acontecimento poderia ter lugar.

Que pessoa?

O Dr. Lutz. É também um artifício?

O Dr. Lutz é na verdade Dr. Lutz, mas não é um especialista de doenças nervosas. É um cirurgião especializado em cirurgia facial. Está pobre e está exilado da sua terra. Ofereceram-lhe uma alta quantia para se encontrar aqui com um homem e modificar-lhe o aspecto por meio de uma operação de cirurgia estética. Pode ter descoberto que o homem é um criminoso, mas nesse caso ele fechou os olhos. Realizar isso, não se arriscava ele a fazê-lo numa enfermaria, num país estrangeiro. E então, aqui, onde nesta estação do ano ninguém aparece a não ser por acaso e com um gerente de hotel facilmente subornável era o lugar ideal para realizar tal trabalho.

Mas as coisas correram-lhe mal. Marrascaud foi traído. Os três homens, os seus guarda-costas que deviam encontrar-se aqui com ele ainda não tinham chegado, mas Marrascaud tratou logo de agir. O oficial da polícia que pretendia ser um criado foi assassinado e

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Marrascaud tomou o seu lugar. O bando tratou de avariar o funicular. Na manhã seguinte Drouet foi assassinado e espetaram-lhe um papel no corpo para mostrar que era Marrascaud. Esperavam que antes das comunicações estarem restabelecidas com o resto do mundo o corpo de Drouet fosse queimado, como sendo o de Marrascaud. Mas um homem tinha de ser reduzido ao silêncio: Hercule Poirot! Foi essa a razão por que eles me atacaram. Obrigado, meu amigo! E Poirot inclinou-se graciosamente para Schwartz, que disse:

Então, o senhor é, na realidade, Hercule Poirot?

Precisamente!

E o senhor não se deixou enganar? Sabia que aquele corpo não era o de Marrascaud?

Claro que sim!

Então porque fez isso?

A face de Poirot tornou-se de repente severa:

Porque queria estar seguro de apanhar o verdadeiro Marrascaud na presença da polícia.

E murmurou baixinho:

Capturar vivo o javali selvagem de Erimanto.

V OS ESTÁBULOS DE AUGIAS

A situação é extremamente delicada, M. Poirot. Um leve sorriso perpassou pelos lábios de Poirot e

quase que disse:

É sempre assim!

Em vez disso compôs a expressão, mostrando uma discrição extrema. Sir George Cornway prosseguiu gravemente. As palavras saíam-lhe com facilidade a posição do governo extremamente delicada, os interesses do público, a solidariedade do partido, a necessidade de apresentar uma frente unida, o poder da Imprensa, o bem-estar do País...

Tudo soava bem mas nada significava. Hercule Poirot sentia aquela dor peculiar nos queixos que se sente quando alguém tem vontade de bocejar e a boa educação não permite. Tinha sentido o mesmo, lendo os debates

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parlamentares, mas nessa ocasião não tivera necessidade de conter os bocejos.

Decidiu encher-se de paciência. Sentia, ao mesmo tempo, simpatia por Sir George Cornway. O homem, evidentemente, queria dizer-lhe qualquer coisa, mas tinha o hábito de exprimir-se com simplicidade. As palavras haviam-se tornado, para ele, um meio de obscurecer os factos e não um meio de os esclarecer. Era um mestre na arte da frase útil, isto é, da frase que soa bem ao ouvido mas que nada significa.

As palavras surgiam-lhe naturalmente. Sir George, tornou-se bastante corado e deitou um olhar desesperado ao outro homem sentado na cabeceira da mesa.

Edward Ferrier disse:

Está bem, George, eu conto-lhe.

Hercule Poirot desviou os olhos do secretário do ministro do Interior para o primeiro-ministro. Sentiu um interesse profundo por Edward Ferrier, interesse despertado por uma frase dita ao acaso por um homem de oitenta anos. O Professor Fergus Mac Leod, depois de discorrer sobre uma dificuldade química na determinação de um assassínio, deteve-se, por um momento, na política. Quando da reforma do famoso e bem amado John Hammett (agora Lorde Cornorth, seu genro) pediram a Edward Ferrier que formasse um gabinete.

O Professor Mac Leod disse:

Ferrier foi um dos meus alunos. É um homem competente!

Foi tudo o que ele disse, mas para H. Poirot aquilo representava bastante. Se Mac Leod dizia que um homem era capaz, é porque o era.

Isto coincidia, na verdade, com a convicção do público: Edward Ferrier era considerado competente; só isso, mas não brilhante-nem eloquente ou um especial orador; era um homem profundamente capaz, um homem profundamente sabedor. Um homem educado na tradição. Um homem que tinha casado com a filha de John Hammett que tinha sido o braço direito de John Hammett um homem a quem podia ser confiado o encargo do governo do país, mantendo as mesmas tradições de John Hammett. Porque John Hammett era particularmente estimado pelo povo e pela Imprensa de Inglaterra. Representava

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todas as qualidades que são caras aos ingleses. O povo dizia dele: Toda a gente sente que Hammett é honesto. Contavam-se anedotas acerca da simplicidade da sua vida doméstica, da sua paixão pela jardinagem. Correspondente ao cachimbo de Baldwin e ao guarda-chuva de Chamberlain, havia o impermeável de Hammett. Usava-o sempre como um ornamento. Permanecia como o símbolo do clima inglês, da prudência da raça inglesa, do seu amor pelas velhas tradições. Contudo, à firme maneira inglesa, John Hammett era um orador. Falava devagar, pronunciando com facilidade, apresentando aqueles quadros simples e sentimentais que profundamente impressionam o coração inglês. Os estrangeiros muitas vezes criticavam-no como sendo hipócrita e insuportavelmente nobre. Hammett não se importava de maneira alguma em ser nobre; era-o de uma maneira desportiva e agarotada.

Era um homem de aparência distinta. Alto, aloirado, de olhos azuis. Sua mãe era dinamarquesa e ele mesmo tinha sido durante muito tempo Lorde do Almirantado, o que lhe valeu a alcunha de O Viking.

Quando, porém, foi obrigado a retirar-se por falta de saúde, sentiu um profundo mal-estar:

Quem é que lhe sucederia? O brilhante Lorde Charles Delafield? (Brilhante de mais, mas a Inglaterra não precisa de brilho.) Evan Whitter? (Inteligente, mas talvez pouco escrupuloso.) John Potter? (Aquela espécie de homem que se julga um ditador, mas nós não queremos ditadores.) Suspirou-se aliviado quando o sossegado Edward Ferrier assumiu a chefia. Edward Ferrier estava bem. Tinha sido treinado pelo velho e tinha casado com a filha do velho. Ferrier saberia o que havia de fazer.

Hercule Poirot estudou aquele homem de feições calmas e voz baixa, agradável. Edward Ferrier dizia:

Talvez M. Poirot conheça aquele periódico semanal, o X-RayNews!

Por alto disse Poirot, corando ligeiramente.

Então sabe, mais ou menos, do que é que ele trata disse o primeiro-ministro. Parágrafos curtos aludindo a pequenas histórias secretas! Algumas verdadeiras,

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outras insignificantes, mas todas... Calou-se e depois disse com a voz um pouco alterada:

Ocasionalmente, mais alguma coisa?

H. Poirot não respondeu. E Ferrier continuou dizendo:

Há duas semanas que se vêm fazendo alusões a um grande escândalo que está para rebentar, envolvendo pessoas da mais alta categoria no meio político. Sensacionais revelações de corrupção...

Poirot disse, encolhendo os ombros:

Uma partida vulgar! Quando as revelações são feitas usualmente desapontam muitíssimo os curiosos.

Ferrier replicou:

Estas não desapontarão.

Então de que revelações se trata?

Ferrier fez uma pausa e depois começou a falar. Cuidadosamente, metodicamente, contou a história.

Não era uma história edificante. Acusação de vergonhosa chicana, de escamoteação e desfalque dos dinheiros do partido. As acusações eram contra o último primeiro-ministro, John Hammett. Apresentavam-no como um patife desonesto que se aproveitara da posição para se enriquecer.

A voz clara do primeiro-ministro calou-se finalmente. O secretário explodiu:

É monstruoso, monstruoso! O homem que edita estas porcarias devia ser fuzilado!

Poirot perguntou:

E essas assim chamadas revelações vão ser publicadas no X-RayNews?

Vão!

Que medidas tenciona tomar a esse respeito?

Elas constituem um particular ataque contra Hammett. Espera-se que ele leve o jornal aos tribunais, por difamação.

Fará isso?

Não! Ferrier disse:

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Porque isso seria muito do agrado do X-Ray News por causa da publicidade que isto lhe -traria. A defesa deles resumir-se-ia a comentários honestos e o que tinham publicado seria verdade. Esse processo seria exaustivo!

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Mesmo que o processo fosse contra eles, os estragos seriam pesados!

Ferrier acrescentou vagarosamente:

Talvez o caso não fosse contra eles.

Porquê?

Sir George respondeu:

Eu realmente acho...

Mas Sir Edward interrompeu-o:

Porque o que eles tencionam publicar é a verdade. Sir George soltou um irritado queixume, ultrajado

por esta franqueza tão pouco parlamentar. E gritou:

Edward, meu querido camarada, não te admitimos, seguramente...

A aparência de um sorriso passou pela face cansada de Ferrier, que disse:

Infelizmente, George, há ocasiões em que a verdade pura tem de- ser contada e esta é uma delas.

Sir George exclamou:

Compreende, M. Poirot, que tudo isto é estritamente confidencial. Nem uma palavra a este respeito deve ser divulgada.

Ferrier interrompeu-o, dizendo:

M. Poirot, entende. O que ele não pode entender é isto: todo o futuro do Partido Popular está comprometido. John Hammett, M. Poirot, representava o partido do povo. Manteve-se, porque ele representa o povo de Inglaterra. Manteve-se pelo que ele representava para o povo inglês: Decência e Honestidade! Ninguém nos considerou brilhantes. Temos tropeçado e lutado com dificuldades. Mas temo-nos mantido pela tradição de cada um fazer o melhor que é possível. Temo-nos conservado também por sermos fundamentalmente honestos. O nosso desastre é este: o homem que era a nossa figura principal, o honesto Homem do Povo, saiu um dos mais pervertidos tipos da nossa geração.

Sir George soltou outro gemido. Poirot, então perguntou:

O senhor não sabia nada a respeito disto?

Outra vez uma amostra de sorriso surgiu no seu rosto triste. E Ferrier disse:

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Pode não acreditar, M. Poirot, mas eu, como todas as outras pessoas, fui completamente enganado.

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Nunca tinha compreendido a curiosa atitude de reserva de minha mulher para com o pai. Compreendo agora. Ela conhecia o seu verdadeiro carácter. Suspendeu-se e, depois, continuou:

Quando a verdade começou a vir à luz eu fiquei horrorizado, incrédulo. Insistimos com o meu sogro para que se retirasse com a desculpa da sua precária saúde. E começámos a trabalhar para limpar o lodaçal... Como direi?

Sir George gemeu uma vez mais:

Os Estábulos de Augias! Poirot estremeceu. E Ferrier disse:

Confesso que me assusta esta tarefa verdadeiramente hercúlea para nós. Uma vez os factos tornados públicos pode levantar-se uma onda de revolta em toda a nação. O governo pode cair. Pode haver uma eleição geral com todas as possibilidades de Everhard e o seu partido voltarem para o poder. Conhece a política de Everhard?

Sir George murmurou por entre os dentes:

Um revolucionário, um verdadeiro revolucionário! Ferrier acrescentou gravemente:

Everhard tem habilidade, mas é negligente, conflituoso e desprovido de tacto. Os seus adeptos são inaptos e excitantes. Isto pode, praticamente, vir a ser a Ditadura.

Hercule Poirot abanou a cabeça. Sir George murmurou:

Se tudo isto pudesse ser abafado... Vagarosamente, o primeiro-ministro abanou a cabeça. Era um movimento de derrota.

Não acredita que isso possa ser abafado? perguntou Poirot.

Fui procurá-lo, M. Poirot disse Ferrier, como a última esperança. Na minha opinião este assunto é demasiado importante; muitas pessoas estão já inteiradas dele para que possa ser cancelado com êxito.

«Os dois únicos meios que se apresentam para abafar este escândalo, que são o emprego da força ou o suborno, não estou seguro de que dêem resultado. O secretário do ministro compara a nossa tarefa com a limpeza dos Estábulos de Augias. É necessária a vigilância da corrente

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de um rio, o concurso das grandes forças da natureza, nada menos, de facto, que um milagre.»

Necessita, na verdade, de um Hércules disse Poirot, abanando a cabeça com uma expressão de deleite. E acrescentou: Lembre-se de que o meu nome é Hercule!

Poderá o senhor fazer milagres, M. Poirot? perguntou Ferrier.

Não foi para isso que me procuraram? Por pensar que eu posso fazer milagres?...

Isso é verdade... Imaginei que, se há salvação possível, ela só pode vir de alguma fantástica e sobrenatural sugestão. M. Poirot poderá calcular a situação? John Hammett foi um patife. A lenda de Hammett deve explodir. Pode alguém construir uma boa casa sobre maus alicerces? Eu não sei! Mas sei que quero tentar. Sorriu com subtil amargura. Os políticos desejam conservar-se no seu posto. É sempre assim!

Poirot levantou-se dizendo:

Monsieur, a minha experiência na polícia não me permitiu ter uma ideia muito lisongeira a respeito dos políticos. Se John Hammett estivesse no seu posto não levantaria um dedo, nem sequer o dedo mínimo. Eu, se sei alguma coisa a respeito disso, foi-me dito por um homem que é realmente grande, um dos maiores cientistas e cérebros dos nossos dias. Sei que o senhor é um homem são. Farei tudo o que puder. Inclinou-se e deixou a sala.

Sir George explodiu:

Bem! Danado homem este! Mas Edward Ferrier, ainda sorrindo, acrescentou:

Foi um cumprimento! Quando descia a escada, Poirot foi abordado por uma senhora alta, de cabelo loiro, que lhe pediu:

Por favor, venha à minha sala, M. Poirot.

Poirot inclinou-se e acompanhou-a.

A senhora fechou a porta, indicou-lhe uma cadeira e sentou-se no lado oposto, dizendo calmamente:

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O senhor acaba de estar com meu marido que lhe falou a respeito do meu pai.

Poirot olhou para ela com atenção. Era uma mulher alta, ainda bonita, mostrando inteligência e carácter. Mrs. Ferrier era uma figura muito conhecida. Como esposa de um primeiro-ministro era, naturalmente, uma pessoa de destaque. Como filha de seu pai, a sua popularidade era ainda maior. Dagmar Ferrier representava o ideal popular de uma senhora inglesa. Era uma esposa devotada e uma mãe extremosa e partilhava com o marido do amor pela vida do campo. Interessava-se por todos os aspectos da vida pública que fazem parte das actividades femininas. Vestia bem mas sem pormenores exagerados. Dedicava grande parte do tempo a obras de caridade e tinha fundado uma organização de auxílio às mulheres dos desempregados. Toda a nação tinha os olhos postos nela e era considerada como um dos mais valiosos esteios do partido.

Poirot disse:

Deve estar terrivelmente preocupada, madame!

Oh, nem o senhor calcula quanto estou preocupada. Há muitos anos que receava qualquer coisa.

Não tem nenhuma ideia do que se possa fazer?

Não, não tenho nenhuma ideia! Apenas soube que meu pai não era aquilo que todos supunham. Desde criança que penso que ele era aquilo a que se chama um embusteiro.

Poirot disse com calma:

Tem alguns inimigos, madame? Ela olhou para ele surpreendida.

Inimigos? Penso que não!

E Poirot afirmou convictamente:

Eu... creio que os tem! E continuou:Tem coragem, madame? Há uma grande campanha em movimento contra seu marido e contra a senhora. Deve preparar-se para se defender por si própria.

Por mim não me importa, é somente por Edward que me apoquento!

Um inclui o outro. Lembre-se, madame, que é a esposa de César disse Poirot.

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E viu-a perder a cor. Inclinou-se para a frente e perguntou:

Que pretende dizer-me?

Percy Perry, o editor do X-RayNews, estava sentado por detrás da secretária, fumando. Era um homem baixo com cara de doninha. Com uma voz melíflua, untuosa, dizia:

Damos-lhe a porcaria, vão ver o tiro esplêndido. O seu principal subordinado, um jovem magro e de

óculos, perguntou pouco à vontade:

O senhor não está nervoso? Não espera uma luta forte? Não deles. Eles não têm garra. Nem lhes daria nenhum proveito. Nem mesmo da maneira como os controlámos neste país, no continente e na América!

Acha que eles farão alguma coisa?

Hão-de mandar alguém com falinhas mansas!

A campainha do telefone tocou e ele levantou o auscultador:

Quem? Ele? Mande-o entrar!

Perry pousou o auscultador e sorriu-se:

Eles chamaram o belga para fazer o serviço. Quer saber se jogámos a bola.

Hercule Poirot entrou. Vinha impecavelmente vestido e trazia uma camélia na lapela. Percy Perry disse-lhe, ao vê-lo:

Muito prazer em vê-lo, M. Poirot. Vai até às corridas de Ascot, não?

Sinto-me lisonjeado, e ainda mais: importante disse Poirot. O seu olhar fixou a face do editor.

Perry, então, perguntou friamente:

Que deseja de mim?

Poirot inclinou-se para a frente, bateu-lhe no joelho e com um sorriso aberto disse:

Chantagem.

Que diabo quer você dizer com isso?

Ouvi dizer a uma avezinha que tem havido ocasiões em que você esteve para publicar coisas muito desagradáveis no seu jornal. Consta-me que há certos

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aumentos agradáveis na sua conta do banco para que essas coisas desagradáveis não cheguem a ser publicadas. Poirot recostou-se abanando a cabeça satisfeito.

Sabe que o que está sugerindo significa falso testemunho para prejudicar a reputação de uma pessoa?

Poirot sorriu confidencialmente:

Tenho a certeza de que não leva a mal.

Levo a mal, sim senhor! E no que respeita a chantagem não há prova de jamais ter feito chantagem com alguém.

Não, não estou certo disso. Você compreendeu-me mal. Eu não o estava ameaçando, estava apenas a guiá-lo a uma simples pergunta: quanto é?

Não sei de que está a falar disse Percy Perry.

Um assunto de importância nacional, Mr. Perry. Este e o seu secretário trocaram um olhar significativo. Após uma breve pausa, Percy disse:

Eu sou um aposentado, M. Poirot. Desejo apenas uma política limpa. Oponho-me à corrupção. Sabe qual é o estado da política neste país? Nem mais nem menos como os Estábulos de Augias.

Tiens disse Poirot você também usa a mesma frase, a mesma expressão!

E o que é preciso continuou o editor para limpar esses estábulos é a inundação purificadora da opinião pública.

Poirot levantou-se e disse:

Aplaudo os seus sentimentos! É pena que não tenha falta de dinheiro.

Percy, vendo-o erguer-se, disse apressadamente:

Espere um segundo. Eu não disse isso exactamente...

Mas Poirot já tinha desaparecido.

Dashwood, o alegre jovem do pessoal do Branch, deu uma amigável palmada nas costas de Poirot:

Isto é lodo, só lodo meu amigo!

Não sabia que estava a par das coisas de Percy Perry.

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Aquele danado vampiro! É uma nódoa na nossa profissão. Todos estamos dispostos a aniquilá-lo, se pudermos.

Sucede que estou empenhado neste momento em limpar um escândalo político.

Limpar os Estábulos de Augias!disse Dashwood. Mas isso é demasiado para você, amigo. Apenas espero que isso possa divertir o Times e lavar, de caminho, as Casas do Parlamento.

Você é cínico disse H. Poirot.

Eu conheço o mundo, eis tudo!

Você disse Poirot é justamente o homem que eu procuro. Tem óptima disposição, é bom desportista e aprecia tudo o que é fora do vulgar. E concorda com tudo!

Parou por um instante e, depois, acrescentou:

Tenho um pequeno programa para executar. Se as minhas suposições não estão erradas, há aqui uma sensacional conspiração a desmascarar. Isto, meu amigo, será um golpe para o seu jornal.

Pode ser disse Dashwood alegremente.

Pode envolver uma grosseira conspiração contra uma mulher.

Ainda melhor. O assunto sexo é sempre bem sucedido.

Então, sente-se e preste-me atenção.

O povo murmura... Desde Goose a Frealhers e Little Wimplingto.

Bem, eu acredito. John Hammett foi sempre um homem honesto! Nada pior que estas intrigas políticas.

É o que dizem de todos os tratantes antes de essas intrigas serem descobertas.

Dizem que ele se abotoou com aquele negócio da Palestina Oil. É o que se chama um grande espertalhão!

Fala-se em muitos negócios escuros. Cada um deles o mais sujo possível.

Oh! Você não se convence que Edward tenha feito isso. É um dos da velha escola.

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Sim, mas também não acredito que John Hammett seja um homem menos sério. Não posso acreditar no que dizem todos esses jornais.

A mulher de Ferrier era filha dele. Já ouviu o que se diz a respeito dela?

Atribuem-lhe coisas não menos graves que as do X-Ray News. Neste género:

A mulher de César? Chegou-nos aos ouvidos que uma certa dama altamente colocada na política foi vista no outro dia em lugares muito estranhos acompanhada por o seu gigolô. Oh, Dagmar, Dagmar, como podes ser tão estúpida? Uma voz do povo então disse: Mrs. Ferrier não é dessa qualidade. Isso é uma calúnia indecente. E outra voz diz: Não podemos contar com as mulheres. Nenhuma delas se aproveita.

O povo fala.

Mas, querida, eu acredito que isso seja absolutamente verdade. Isto soube-se por Paul e a este foi-lhe contado por Anddy. Ela é completamente depravada.

Mas portou-se sempre correctamente na abertura dos bazares.

Não passava de disfarce, minha querida. Ela é uma ninfomaníaca. Isto vem tudo no X-Ray News. Verdade ou não, pode ler-se nas entrelinhas.

Não sei como eles descobriram essas coisas.

O que pensa de todo este escândalo político? Dizem que o pai desviava os dinheiros do partido.

O povo fala.

Eu não quero pensar nisto e isto é um facto, Mrs. Rogers. Penso e sempre pensei que Mrs. Ferrier era, na realidade, uma mulher irrepreensível.

. E convence-se de que todas essas coisas terríveis são verdadeiras?

Como estou dizendo, eu nem quero pensar uma

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coisa semelhante a respeito dela. Porque ela abriu um bazar em Pelchester, no passado mês de Junho. Eu estava tão próxima dela como estou deste sofá. E ela tem um sorriso muito agradável.

Sim, mas o que eu lhe digo é que não há fumo sem lume.

Sem dúvida, isso é verdade! Oh, minha querida, isto quer dizer que não podemos acreditar em ninguém.

Edward Ferrier, pálido e abatido, disse para Poirot: Vou pôr uma acção contra tão vil calúnia.

Não concordo com isso disse Poirot.

Mas temos de acabar com estas danadas mentiras.

Está certo de que são mentiras?

Claro que sim!

Que diz a isto a sua esposa?

Por momentos Ferrier olhou surpreendido.

Diz que é melhor não fazer caso... Mas eu não posso proceder assim. Todas as pessoas falam.

Sim, na verdade andam todos a falar nisso! corroborou Poirot.

Então começaram a aparecer pequenas notícias soltas nos jornais. Mrs. Ferrier teve uma ligeira crise de nervos. Foi convalescer para a Escócia. Conjecturas, boatos e informações positivas de que Mrs. Ferrier não estava na Escócia, nunca tinha estado na Escócia, começaram a circular. Histórias escandalosas, histórias segundo as quais Mrs. Ferrier realmente era...

E outra vez o povo falou.

Digo-lhe que Anddy a viu num lugar suspeito! Estava embriagada ou tinha tomado qualquer droga. Estava com um gigolô argentino Ramon. Fique sabendo.

Mais ainda: que Mrs. Ferrier fugira com um bailarino argentino. Tinha sido vista em Paris sob a acção de qualquer droga. Havia muitos anos que ela tomava estupefacientes. Bebia como uma esponja.

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Lentamente, o espírito severo da Inglaterra, ao princípio incrédulo, começou a hostilizar Mrs. Ferrier. Parecia que neste crescente rumor alguma coisa devia existir. Aquela espécie de mulher não devia ser a esposa de um primeiro-ministro. Uma Jezabel é o que ela era. Sim, nada menos que uma Jezabel.

E então vieram os testemunhos da máquina fotográfica: Mrs. Ferrier, num clube nocturno de Paris, recostada, com os braços familiarmente passados sobre os ombros de um rapaz moreno, de pele cor de azeitona e vicioso aspecto. Mas havia mais. Havia outras fotografias que a mostravam seminua, numa praia, com a cabeça recostada nos ombros do aventureiro. E por baixo ostentando, com destaque, legendas deste género:

Mrs. Ferrier tem umas boas férias...

Dois dias mais tarde uma acção por difamação foi posta contra o X-Ray News.

A audiência foi aberta por Sir Mortimer Inglewood, K. C. Ele próprio estava indignado. Mrs. Ferrier era vítima de uma infame conspiração. Uma conspiração que merecia ser comparada a The Queen’s Necklace. Uma conspiração familiar aos leitores de Alexandre Dumas. Aquela conspiração tinha sido congeminada para rebaixar Maria Antonieta aos olhos da populaça. E esta tinha também sido congeminada para desacreditar uma nobre e virtuosa senhora, que no país desempenhava o papel de esposa de César. Mortimer atacou os fascistas e os comunistas, os quais pensavam abalar a Democracia com as mais grosseiras maquinações. E, então, começou a chamada das testemunhas.

A primeira foi o bispo de Nortúmbria.

O Dr. Henderson, bispo de Nortúmbria, era uma das figuras de maior destaque da Igreja Inglesa, um homem de grande santidade e integridade de carácter. Era desempoeirado, tolerante e um distinto pregador. Era amado e reverenciado por todos os que o conheciam.

Encaminhou-se para o lugar e jurou que entre as datas mencionadas Mrs. Ferrier tinha estado no Palácio com

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ele e com a esposa. Pelas suas actividades e boas obras tinha-lhe sido recomendada como um perfeito auxiliar. A sua visita tinha-se conservado em segredo para evitar alguma maçada da Imprensa.

Ao bispo seguiu-se um médico de grande nomeada que afirmou ter ordenado a Mrs. Ferrier, um completo repouso e nada de preocupações.

Um funcionário ao serviço do bispo declarou que, com efeito, tinha atendido Mrs. Ferrier no palácio.

A testemunha que se seguiu chamava-se Thelma Anderson. Um estremecimento agitou o tribunal quando ela se dirigiu para o lugar reservado às testemunhas. Todos notaram a sua extrema semelhança com Mrs. Ferrier.

O seu nome é Thelma Anderson?

Sim!

A senhora é dinamarquesa?

Sim! Tenho a minha casa em Copenhaga!

E anteriormente trabalhou aqui num cabaret?

Assim é!

Diga-nos sem rodeios o que sucedeu no dia 18 de Março passado.

Um senhor encaminhou-se para a minha mesa, um senhor inglês. Disse-me que trabalhava num jornal inglês, o X-Ray News.

Tem a certeza de que ele disse X-RayNews?

Sim, tenho a certeza porque primeiro até pensei tratar-se de uma revista de medicina. Mas não, parece que não é. Então, ele disse-me que estava aqui uma artista de cinema que desejava encontrar uma figurante e que eu era precisamente o tipo. Vou poucas vezes ao cinema e não conhecia o nome que ele nomeou. E contou-me que ela, a tal actriz, tinha grande fama. Que não se sentia bem e que procurava uma pessoa que a substituísse nos lugares públicos e que por isso me pagaria bastante dinheiro.

Que importância lhe ofereceu esse homem?

Quinhentas libras em dinheiro inglês. A princípio não acreditei, pensei tratar-se de alguma fraude. Mas ele entregou-me, logo ali, metade do dinheiro.

E a história continuava no mesmo tom. Ela fora a Paris para fornecer-se de vestidos elegantes e voltara

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acompanhada por uma «escolta». Um belo argentino, muito respeitador, muito bem educado. Era claro que a mulher se tinha divertido. Voara sobre Londres e frequentara aqui algumas boites com o seu argentino de pele cor de azeitona. Fora fotografada em Paris com ele. Alguns dos lugares onde esteve com ele não eram na verdade (e ela concordou) muito recomendáveis. E algumas das fotografias tiradas também não eram muito próprias. Mas estas coisas, segundo lhe tinham dito, eram necessárias para a publicidade. O próprio Sr. Ramon tinha sido muito respeitador.

Em resposta ao interrogatório, a dinamarquesa declarou que o nome de Mrs. Ferrier nunca fora pronunciado e nunca lhe passou pela ideia ligarem a isto o nome dessa senhora. Ela não tinha praticado nenhum mal. Identificou certas fotografias que lhe mostraram com as que lhe tinham sido tiradas em Paris e na Riviera.

Havia uma nota de absoluta honestidade em tudo o que Thelma dizia. Era bastante simpática mas muito estúpida. A sua segurança em tudo aquilo provinha do facto que ela conhecia o assunto, era concludente para todos.

A defesa não foi convincente. Desconfiavam de que tivesse havido negócios com Thelma Anderson. As fotografias foram trazidas para o tribunal de Londres e acreditava-se que eram autênticas. Mas o remate do discurso de Mortimer fez crescer o entusiasmo. Descreveu todas estas coisas como uma grosseira conspiração política para desacreditar o primeiro-ministro e a esposa. Então, toda a simpatia, se estendeu sobre a infortunada Mrs. Ferrier. O veredicto foi lido no meio de cenas inesquecíveis. O casal difamado foi considerado irrepreensível. Mrs. Ferrier, o marido e o pai saíram do tribunal saudados por uma delirante multidão.

Edward Ferrier apertou com calor a mão de Poirot, dizendo:

Agradeço-lhe, M. Poirot, agradeço-lhe milhares de vezes. Bem, isto acabou com o X-RayNews, um grosseiro jornaleco! Estão completamente arrasados. Servem-se

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dele para cozinhar estas nojentas conspirações. Até contra Dagmar, a mais amável criatura do mundo. Agradeço a Deus o facto de o senhor ter podido manejar todas estas coisas de maneira a conseguir que os malvados fossem deitados por terra... Como lhe surgiu a ideia de que eles podiam ter usado uma double?

Não foi ideia nova! Foi empregada com êxito no caso de Jeanne de la Motte, quando encarnou Maria Antonieta.

Eu sei. Tenho de reler The Queen’s Necklace. Mas como encontrou, agora, a mulher que eles empregaram?

Procurei-a na Dinamarca e encontrei-a.

Porquê na Dinamarca? Porque a avó de Mrs. Ferrier era dinamarquesa e ela própria tem esse tipo. E há ainda, outras razões.

A semelhança é chocante. Que diabólica ideia! Poirot sorriu mas nada disse.

Eu pensei isto!...

Edward Ferrier olhou para ele:

Não compreendo. Que quer dizer?

Temos de recuar até à velha história. Desde The Queen’s Necklace até à limpeza dos Estábulos de Augias. Hércules empregou um rio, que é uma das grandes forças da natureza. Modernizando a história: que é a grande força da natureza? O sexo, não é verdade? É o assunto sexo que engendra histórias, que cria novidades. Demos ao povo um escândalo relacionado com o sexo e isso desperta mais interesse que todas as fraudes e chicanas da política. Parou, e depois continuou:

Et bien, essa foi a minha tarefa. Primeiro pôr as minhas próprias mãos na lama como fez Hércules para erguer um dique que pudesse desviar o curso do rio. Um jornalista meu amigo auxiliou-me. Pesquisou na Dinamarca até que encontrou uma pessoa que pudesse encarnar a pessoa que se desejava. Casualmente aproximou-a do X-Ray News esperando que ela pudesse produzir o efeito necessário. Assim foi!

«E, assim, que sucedeu? Lodo, uma grande quantidade de lodo! A mulher de César foi enlameada com ele. Muito mais interessante para todos que os escândalos políticos. E o resultado foi a reabilitação. A reacção! A virtude

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vingada! A mulher pura reabilitada! Uma grande corrente de Romance e Sentimento limpando os Estábulos de Augias.

«Se todos os jornais do país publicassem, agora, notícias dos desfalques de John Hammett ninguém os acreditaria. E podemos deitar abaixo outra conspiração política de descrédito para o governo.»

Edward Ferrier soltou um fundo suspiro. No primeiro momento Poirot esteve perto de ser fisicamente assaltado como nunca o tinha sido:

Minha mulher! O senhor atreveu-se a usar dela... Felizmente que Mrs. Ferrier entrou na sala naquele momento.

Dagmar, tinhas conhecimento do assunto?

Ela sorriu com um gentil e maternal sorriso de devotada esposa.

Nunca me disseste nada!

Mas, Edward, tu não terias consentido que M. Poirot fizesse isto.

É claro que não.

Pois foi isso que nós pensámos.

Nós?

Eu e M. Poirot.

Sorriu para Hercule Poirot e para o marido, acrescentando:

Tive umas boas férias e excelente repouso na companhia do meu querido bispo. Sinto-me, agora, cheia de energia. Querem que vá baptizar o novo navio, em Liverpul, no próximo mês. Penso que teria grande popularidade fazendo-o!

VIAS AVES DO ESTINFALO. Harold Waring foi o primeiro a vê-las regressar do lago. Estava sentado no hotel, no outro lado do terraço. O dia estava bonito e o lago muito azul brilhava sob o sol. Harold, fumando cachimbo, pensava que o mundo é um lugar bastante agradável. As suas preocupações políticas caminhavam bem. Uma secretária com a idade de

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trinta anos era uma coisa prudente. Tinham-lhe contado que o primeiro-ministro dissera a alguém:O jovem Waring irá longe. Harold seria, muito naturalmente, eleito. Era novo, tinha boa aparência, uma boa situação e possuía aquilo que se chama senso prático.

Tinha resolvido gozar umas férias em Hersoslavakia, a fim de estar, em forma para lutar e também para descansar. O hotel de Lake Stempka, ainda que pequeno, era confortável e pouco frequentado. A maioria dos hóspedes compunha-se de estrangeiros. Os únicos ingleses eram uma senhora de idade e a filha casada, Mrs. Clayton. Harold gostava de ambas. Elsie Clayton era bonita, embora um tanto antiquada. Era gentil e um pouco acanhada. Mrs. Rice era o que se chama uma mulher de carácter. Alta, com uma voz profunda e de maneiras dominadoras, tinha um belo senso de humor e era uma boa companhia. Estava muito ligada à filha.

Harold passou algumas horas agradáveis na companhia da mãe e da filha, mas elas não procuravam monopolizá-lo e as relações mantinham-se fáceis e agradáveis entre eles. Havia mais outros hóspedes no hotel mas Harold não dava por eles. De uma maneira geral eram corredores ou membros de um clube de automóveis. Apenas ficavam uma ou duas noites para, depois, se irem embora. Até àquela tarde Harold não tinha visto mais ninguém.

Elas vinham do lago, caminhando vagarosamente. Sucedeu que no momento preciso em que Harold deu por elas uma nuvem encobriu o Sol. Sentiu um pequeno arrepio. Demoradamente, então, fixou-as. Na verdade havia qualquer coisa de estranho naquelas duas mulheres. Ambas tinham um nariz aquilino; pareciam aves e os seus rostos, que eram curiosamente semelhantes, tinham uma expressão parada.

Harold pensou para consigo: parecem aves! E acrescentou: aves de mau augúrio.

As mulheres chegaram ao terraço e passaram junto dele. Não eram novas; talvez andassem pelos quarenta ou cinquenta anos e a semelhança entre ambas era tão nítida que aparentemente pareciam ser irmãs. O olhar não tinha expressão. Quando passaram junto de Harold fixaram-no por um instante com um olhar curioso, investigador,

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quase inumano. A impressão que Harold tinha da sua perversidade tornou-se mais forte. Reparou nas mãos de uma delas: uma mão comprida, semelhante a garras... Apesar de o sol ter voltado, arrepiou-se de novo e pensou: Horríveis criaturas, parecem aves de rapina!...

Afastou tais pensamentos com a chegada de Mrs. Rice. Levantou-se e foi buscar uma cadeira. Com uma palavra de agradecimento, a senhora sentou-se e, segundo o costume, começou a tricotar vigorosamente.

Harold perguntou-lhe, então:

Viu aquelas duas senhoras que acabaram de entrar no hotel?

Metidas numas capas? Sim, passei por elas.

Extraordinárias criaturas, não lhe parece?

Bem! Na verdade são um pouco estranhas! Chegaram ontem, julgo eu. São muito parecidas, devem ser gémeas.

Harold, pouco depois, disse:

Posso estar a fantasiar, mas sinto nitidamente que existe nelas qualquer coisa de funesto.

É curioso! Fixei-as melhor e concordo consigo! Poderemos saber pelo porteiro quem elas são.

Não são inglesas, penso eu.

Oh, não!

Mrs. Rice fixou os olhos em Waring:

Estamos na hora do chá. Se o senhor fosse andando e tocasse a campainha?

Certamente, Mrs. Rice!

E assim fez. Quando voltou para o lugar perguntou à senhora:

Onde se meteu a sua filha, esta tarde?

Elsie? Fomos dar um passeio juntas. Rodeámos o lago e voltámos pelo pinhal. Foi muito agradável.

Aproximou-se um criado e Waring ordenou-lhe que trouxesse o chá. Mrs. Rice continuou tricotando vigorosamente.

Elsie recebeu uma carta do marido. Ela, agora, não pode descer para o chá.

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-Do marido? Harold estava admirado. Sabe? Sempre pensei que ela fosse viúva.

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Mrs. Rice lançou-lhe um olhar agressivo e disse secamente:

Não, Elsie não é viúva! E acrescentou com ênfase: Infelizmente!

Harold ficou chocado. Mrs. Rice, abanando a cabeça, disse friamente:

A bebida é responsável por muitas infelicidades, Mr. Waring.

Ele bebe?

Sim, e há muitas outras coisas mais. Não é saudável. É ciumento e tem um singular temperamento irascível. É uma pessoa difícil. Quero muito a Elsie; é a minha única filha. Vê-la infeliz custa a suportar!

Harold disse com sentida emoção:

Ela deve ser uma pessoa muito dócil.

Demasiadamente dócil, talvez,

A senhora quer dizer?...

Uma criatura feliz é mais arrogante! A docilidade de Elsie vem-lhe, penso eu, do senso do fracasso. A vida não tem sido boa para ela.

Harold perguntou com ligeira hesitação:

Como pôde ela casar com um homem assim? Mrs. Rice respondeu-lhe calmamente:

Philip Clayton era uma pessoa atraente. Tinha, e ainda tem, grande charm. Tinha algum dinheiro e não houve ninguém que nos elucidasse acerca do seu verdadeiro carácter. Há muitos anos que sou viúva. Duas mulheres vivendo sós não poderão ser os melhores juizes do carácter de um homem.

Isso é verdade!

Sentiu-se invadido por uma onda de indignação e piedade. Elsie Clayton devia ter vinte e cinco anos, o máximo. Harold recordou a sua amabilidade, os seus olhos azuis, o suave desenho da sua boca. E imaginou, de repente, que este interesse por ela ia além da amizade.

E ela estava ligada a um bruto!

Naquela tarde juntou-se à mãe e à filha, depois do jantar. Elsie envergava um ligeiro vestido cor-de-rosa-

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-escuro. As pálpebras, segundo Harold notou, estavam vermelhas. Elsie tinha chorado, certamente. Mrs. Rice disse com vivacidade:

Descobri quem são as suas duas harpias, Mr. Waring. São polacas, educadas e de boa família. Assim me disse o porteiro.

Harold olhou para a sala onde as duas polacas estavam sentadas. Elsie disse com interesse.

Aquelas duas mulheres que ali estão? Com o cabelo tinto de henne? Parecem-me horríveis, não sei porquê.

Harold acrescentou com uma expressão de triunfo:

É isso, justamente, o que eu penso! Mrs. Rice disse com um sorriso:

Eu penso que ambos estão sendo absurdos. Não podemos julgar as pessoas por aquilo que elas aparentam.

Elsie riu e disse:

Tem razão. Em todo o caso, parecem-me dois abutres.

Arrancando olhos dos homens mortos! acrescentou Harold.

Oh! não! gritou Elsie. Harold disse imediatamente:

Desculpe-me!

Mrs. Rice, com um sorriso, disse naturalmente:

De qualquer modo não me parece que elas se atravessem no nosso caminho.

Elsie acrescentou:

Nós não temos segredos criminosos.

Talvez Mr. Harold tenha disse Mrs. Rice piscando os olhos.

Harold riu inclinando a cabeça para trás.

Não tenho segredos, a minha vida é um livro aberto.

E como um relâmpago atravessou-lhe o espírito um estranho pensamento:

«Que loucos, aqueles que saem do bom caminho! Uma consciência limpa é do que todos necessitam, na vida. Sem essa consciência não podemos enfrentar o mundo e dizer a qualquer pessoa que implique connosco

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que vá para o diabo.» Depois sentiu-se, de repente, muito mais alegre, muito forte e mais senhor do seu destino.

Harold Waring, tal como os outros ingleses era um mau linguista. O seu francês era estropiado e com uma entoação inglesa. De italiano e alemão não sabia nada. Até àquele momento, essa falta de habilidade para as línguas não lhe tinha trazido aborrecimentos. Na maior parte dos hotéis do continente tinha sempre encontrado qualquer pessoa que falasse o inglês. Porque havia, pois, de estar aborrecido?

Mas naquele lugar, onde a linguagem dos naturais do país era uma espécie de eslovaco e onde o porteiro apenas falava alemão, era mortificador para Harold ser-lhe necessário que uma das duas senhoras lhe servisse de intérprete. Mrs. Rice, que era apaixonada por línguas, sabia falar um pouco de eslovaco.

Harold decidiu aprender alemão. Resolveu comprar alguns livros alemães e gastava um par de horas todas as manhãs no estudo dessa língua...

A manhã estava bonita. Depois de escrever algumas cartas Harold olhou para o relógio e viu que ainda tinha tempo para vaguear um bocado antes do almoço. Encaminhou-se para o lago, e depois desviou-se enveredando pelo pinhal. Tinha andado talvez uns cinco minutos quando ouviu um som inconfundível. Não muito longe dali, uma mulher soluçava. Harold deteve-se um minuto e, depois, tomou a direcção do som. A mulher era Elsie Clayton e estava sentada numa árvore derrubada; tinha a face escondida entre as mãos e os ombros estremeciam-lhe com a violência da dor.

Harold hesitou um momento e, depois, dirigiu-se para ela dizendo ternamente:

Mrs. Clayton? Elsie?

Ela estacou de repente e olhou para ele. Harold sentou-se a seu lado e disse com verdadeira simpatia:

Posso fazer alguma coisa por si?

Não! Não! Você é muito amável. Mas ninguém pode fazer nada por mim.

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Harold perguntou timidamente:

É alguma coisa acerca do seu marido?

Ela abanou a cabeça. Limpou os olhos e pegou na caixa do pó compacto, tentando dominar-se. Com uma voz tremida disse:

Não quis aborrecer a mãe. Ela fica fora de si quando me vê infeliz. Por isso vim para aqui, para chorar à vontade. Eu sei que é uma estupidez. Chorar não resolve nada. Mas, há momentos em que sentimos que a vida é quase intolerável.

Sinto muito a sua dor disse Harold.

Ela lançou-lhe um olhar agradecido e disse apressadamente:

A culpa foi toda minha. Casei com Philip por minha livre vontade. Deu mau resultado. Apenas me acuso a mim própria.

É muito penoso para si esse estado de coisas disse Harold.

Elsie abanou a cabeça:

Não, eu não me lamento! Não sou corajosa. Sou terrivelmente cobarde. É isso, principalmente, a origem dos meus aborrecimentos com Philip. Fico aterrorizada, absolutamente aterrorizada, quando ele está com as suas fúrias.

A senhora deve deixá-lo! Porque não se divorcia?

Não me atrevo. De resto, ele não me deixaria. E acrescentou:Além disso não tenho razões para tal. Encolheu os ombros. Depois, prosseguiu: Não, tenho de suportar. Como sabe, dedico muito tempo a minha mãe. Philip não pode pensar nisso. Especialmente quando sai fora do normal acrescentou subindo-lhe um rubor às faces. O senhor veja: é que ele é incuravelmente ciumento. Se eu falo com outro homem um pouco mais faz cenas terríveis.

Harold indignou-se. Tinha ouvido muitas mulheres lamentarem-se do ciúme dos maridos; embora lhes manifestasse simpatia, guardava para si a opinião de que os maridos estavam inteiramente justificados. Mas Elsie não era uma mulher assim. Nunca lhe tinha dirigido nem um simples olhar de flirt. Elsie afastou-se dele com um ligeiro tremor. E fixou os olhos no céu:

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Está muito frio. Deve estar próximo da hora do jantar. Com efeito o Sol escondia-se.

Levantaram-se e caminharam na direcção do hotel. Tinham andado, talvez, um minuto quando viram um vulto caminhando na mesma direcção. Reconheceram-no pela capa que usava. Era uma das irmãs polacas.

Passaram por ela. Harold inclinou-se ligeiramente. A mulher não correspondeu, mas os seus olhos fixaram-se neles durante alguns minutos e havia tal expressão de malícia nesse olhar que Harold sentiu subir-lhe um calor às faces. Receou que a mulher o tivesse visto sentado ao lado de Elsie. Se assim fosse, ela provavelmente poderia pensar...

Bem, ela olhou e pensasse o que pensasse... Uma onda de indignação apoderou-se dele. Que mesquinho espírito têm algumas mulheres! Era estranho que a mulher tivesse começado a olhar para eles na altura em que o Sol desaparecera e eles começavam a tremer...

Fosse como fosse, Harold sentiu-se um pouco contrafeito.

Naquela noite Harold foi para o quarto um pouco antes das dez. Tinha chegado o correio de Inglaterra e tinha recebido grande número de cartas algumas das quais necessitavam de imediata resposta.

Vestiu o pijama e um roupão e sentou-se à secretária para se ocupar da correspondência. Tinha escrito três cartas e ia principiar a quarta quando a porta se abriu e Elsie Clayton entrou, cambaleando, no quarto.

Harold saltou sobressaltado. Elsie empurrou a porta e agarrou-se à cómoda. O peito agitava-se-lhe com os suspiros e o rosto estava branco como a cal. Parecia aterrada como se tivesse visto a morte.

O meu marido! Chegou inesperadamente. Creio que vai matar-me. Ele vem para aqui. Não, não o deixe ver-me.

Deu um ou dois passos para a frente movendo-se tão devagar que quase não se sentia. Harold amparou-a com o braço.

Nesse mesmo momento a porta escancarou-se e um

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homem apareceu à entrada. Era um indivíduo de média estatura, espessas sobrancelhas e cabelo preto e liso. Trazia na mão, uma chave de parafusos. Elevou a voz e pôs-se a falar furiosamente. Quase gritava:

A polaca tinha razão. Andas metida com este rapaz!

Não, não, Philip! Isso não é verdade! Não tens razão!

Harold colocou-se entre a Elsie e o marido. Philip avançou para eles e gritou:

Estou enganado? Mas se te encontro neste quarto! Hei-de matar-te!

E com um ligeiro movimento afastou o braço de Harold. Elsie, com um grito, desviou-se para o outro lado e deu uma volta procurando a saída. Mas Philip tinha apenas uma ideia: alcançar a mulher. Por isso dirigiu-se para ela. Elsie, aterrorizada, fugiu do quarto. Philip foi atrás dela e Harold, sem um momento de hesitação, seguiu-os. Elsie precipitou-se para o seu quarto, ao fundo do corredor. Harold ouviu a chave girar na fechadura mas não chegou a tempo de evitar que Philip entrasse. Antes que a fechadura corresse, Philip deu um empurrão na porta. A porta abriu-se e o homem fechou-se no quarto. Harold ouviu os gritos aflitivos de Elsie. Repentinamente entrou, também, no quarto e precipitou-se para eles. Elsie estava encostada à janela. Entretanto Philip avançava para ela brandindo a chave de parafusos. Ela lançou um grito de terror e, então, agarrando um pesado pisa-papéis que estava na secretária, atirou-lhe com ele.

Clayton caiu redondamente no chão como um cepo. Elsie soltou um gemido. Harold estacou petrificado à entrada da porta. A rapariga caiu de joelhos ao lado do marido e ali se conservou.

Lá fora, no corredor, ouviu-se correr a lingueta de uma fechadura.

Elsie ergueu-se e correu para Harold:

Por favor, por favor, volte para o seu quarto. Temo que alguém surja e o encontre aqui suplicou.

Harold abanou a cabeça. Viu claramente a situação; de momento Philip Clayton estava fora de combate. Mas O grito de Elsie podia ter sido ouvido. Se ele fosse encontrado no quarto o facto podia causar embaraço e dar

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origem a algum mal-entendido. Tanto por Elsie como por si próprio não devia suscitar um escândalo. Fazendo o menor ruído possível saiu para o corredor e regressou ao seu quarto. Apenas o tinha alcançado ouviu o ruído de uma porta que se abria.

Sentou-se no quarto, cerca de uma hora, esperando. Não se atrevia a sair. Mais cedo ou mais tarde tinha a certeza de que Elsie apareceria. Ouviu uma ligeira pancada na porta. Correu a abri-la. Não era Elsie mas sim a mãe. Harold ficou surpreendido. Subitamente Mrs. Rice envelhecera alguns anos. O seu cabelo grisalho estava esguedelhado e tinha profundos círculos negros em volta dos olhos.

Harold levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira. A senhora sentou-se respirando com custo.

A senhora está com muito mau parecer. Posso ser-lhe útil nalguma coisa? perguntou Harold.

Ela abanou a cabeça.

Não! Não se trata de mim! Eu estou bem. Foi apenas o choque. Mr. Waring, sucedeu uma coisa terrível!

Clayton está gravemente ferido? Ela comprimiu o seio:

Pior do que isso! Está morto!

Sentiu que o quarto andava à roda. Uma sensação de água gelada correndo-lhe pela espinha, tornou Harold incapaz de falar por um momento.

Morto? perguntou finalmente. Mrs. Rice abanou a cabeça:

Morto! E a sua voz tinha o tom apagado do mais completo cansaço. O canto do pisa-papéis de mármore bateu-lhe nas têmporas e ele caiu para trás e bateu com a cabeça no fogão de ferro. Não sei o que o matou, mas sei que está morto. Já vi a morte as vezes suficientes para a conhecer bem.

Desastre, era a palavra que acudia incessantemente ao espírito de Harold. Desastre, desastre, desastre... Por isso disse com veemência:

Foi um acidente... Vi como tudo se passou:

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Mrs. Rice disse secamente:

É claro, foi um acidente! Eu sei isso. Mas, mais alguém poderá acreditar? Estou francamente perplexa, Harold! Não estamos em Inglaterra.

Harold disse vagarosamente:

Eu posso confirmar o depoimento de Elsie. Mrs. Rice disse:

Sim, e ela pode confirmar o seu, Harold.

O espírito de Harold vivo e cauteloso, mediu a situação. Reviu toda a história e viu a fraqueza da sua posição. Ele e Elsie tinham sido vistos juntos por uma das polacas no pinhal, o que comprometia um tanto as coisas. As polacas não falavam inglês mas podiam compreender alguma coisa. A mulher podia ter compreendido o significado das palavras ciúme, marido se tivesse escutado a conversação. De qualquer modo, era claro que ela tinha dito a Clayton qualquer coisa que lhe despertara o ciúme. Quando Clayton morreu, ele, Harold, estava no quarto de Elsie. Não havia nada que provasse que ele não tinha deliberadamente agredido Clayton com o pisa-papéis. Nada para provar que o marido ciumento os não tinha encontrado juntos. Havia apenas a palavra de Elsie. Poderiam acreditá-la?

Um arrepio de susto percorreu-lhe o corpo. Seguramente, naquele caso uma acusação de assassínio podia levantar-se contra eles. Mas se fossem acusados de culpabilidade haveria um inquérito que seria publicado em todos os jornais.

Um Homem e Uma Mulher Acusados Marido Ciumento A Ascensão de Um Político. Sim, isto poderia significar o fim da sua carreira política. Não poderia sobreviver a um tal escândalo.

Mas não poderemos desembaraçar-nos do corpo? Colocá-lo em qualquer lado?

O olhar atónito e altivo de Mrs. Rice fê-lo corar. Incisivamente, a senhora disse:

Meu caro Harold, isto não é uma história de detectives! Contar com uma coisa dessas é... seria muito estúpido.

Também penso que sim gemeu Harold. Que poderemos, então, fazer? Meu Deus? Que poderemos fazer?

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Mrs. Rice abanava a cabeça desesperadamente. Estava acabrunhada e o seu espírito trabalhava com dificuldade.

Não há nada que possamos fazer? Nada que evite este espantoso desastre? perguntou Harold.

Olharam um para o outro. Mrs. Rice disse com a voz rouca:

Elsie, a minha filhinha! Eu não posso fazer nada. Isto pode matá-la! Ver-se envolvida numa coisa destas! E acrescentou: E o senhor também! A sua carreira, todas as coisas!

Harold tentou acalmá-la dizendo:

Não se preocupe comigo.

Mas, na realidade, ele não pensava assim. Mrs. Rice continuou com amargura:

É tudo tão injusto! Tão completamente falso! Nada houve entre os dois. Eu sei muito bem!

Harold sugeriu:

A senhora poderá dizer que as nossas relações eram perfeitamente correctas.

Mrs. Rice disse com amargura:

Sim, se eles me acreditarem. Mas, o senhor sabe como é este povo!

Harold concordou tristemente. Para o espírito continental haverá, sem dúvida, uma culpada combinação entre mim e Elsie, e todas as afirmações de Mrs. Rice serão tomadas como as de uma mãe que tenta tudo para salvar a filha.

Sim, não estamos na Inglaterra, pouca sorte concordou Harold.

Ah! disse Mrs. Rice, erguendo a cabeça. Isso é verdade... Isto não é a Inglaterra! Não creio que alguma coisa se possa fazer.

Sim? perguntou Harold olhando impacientemente para ela.

Quanto dinheiro tem o senhor, Harold? perguntou Mrs. Rice abruptamente.

Não muito, comigo. Mas posso telegrafar e pedir dinheiro, é claro.

Mrs. Rice disse com crueldade:

Podemos necessitar de uma grande quantia, mas penso que vale a pena experimentar.

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Qual é a sua ideia? perguntou Harold. Mrs. Rice disse com decisão:

Não temos a felicidade de considerar para nós esta morte natural mas há a esperança de fazê-la acreditar oficialmente.

Harold estava esperançado mas ligeiramente incrédulo.

Sim, o gerente do hotel pode estar do nosso lado. Para ele é melhor assim. É minha opinião que nestas pequenas e afastadas regiões dos Balcãs podemos subornar todos e tudo. E a polícia está talvez ainda mais corrompida do que qualquer outra pessoa.

Creio que a senhora tem razão. Mrs. Rice continuou:

Afortunadamente, penso que ninguém ouviu nada. Quem está no quarto a seguir ao de Elsie, do outro lado do seu?

As duas polacas! Mas não podem ter ouvido nada. Philip chegou tarde. Ninguém o viu, a não ser o porteiro da noite. Sabe, Harold, eu acredito ser possível calar tudo isto e arranjar um certificado de morte natural. É uma questão de gratificá-los muito bem e encontrar o homem que nos faz falta; provavelmente, o chefe da polícia.

Harold, sorrindo contrafeito, disse:

Isto é um pouco Ópera Cómica, não é? Bem, apesar de tudo podemos tentar.

Mrs. Rice era a energia personificada. Primeiro, foi subornado o gerente. Harold permaneceu no quarto, afastado de tudo. Ele e Mrs. Rice tinham concordado que a história a contar não devia passar de uma das habituais brigas entre marido e mulher. A juventude e a beleza de Elsie podiam conseguir mais simpatia.

Na manhã seguinte chegaram ao hotel vários oficiais da polícia. Mostraram-lhes o quarto de Mrs. Rice. Saíram ao meio-dia. Harold telegrafou para Londres a pedir dinheiro; além disto não tomou parte nos acontecimentos. Claro que ele não poderia fazer mais nada, porque estas Personagens oficiais não falavam inglês.

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Às doze horas Mrs. Rice foi ao seu quarto. Mostrava-se pálida e cansada, mas badalava-lhe no rosto uma expressão de alívio que denunciava a sua convicção:

Está tudo arranjado!

Graças ao céu! A senhora foi realmente maravilhosa! Parece incrível!

Mrs. Rice disse pensativamente:

Pela facilidade com que tudo correu pode pensar que tudo isto foi normal. Praticamente, eles puseram tudo no bom caminho! E calou-se. No entanto, é lamentável, realmente! acrescentou.

Não é ocasião para nos preocuparmos com a corrupção dos serviços públicos. Quanto custa? perguntou Harold.

O preço é um tanto elevado!

E Mrs. Rice leu a lista dos figurantes.

O chefe da polícia.

O comissário.

O agente.

O médico.

O gerente do hotel.

O porteiro da noite.

Harold fez apenas um simples comentário:

O porteiro da noite não deve ter recebido muito, não é verdade?

Mrs. Rice explicou:

O gerente do hotel sugeriu que a morte não devia ter-se dado no hotel. A história oficial é que Philip teve um ataque de coração no comboio. Ia ao longo do corredor para tomar ar nós sabemos como eles sempre deixam algumas portas abertas e caiu à linha. É maravilhoso o que a polícia pode fazer quando quer!

Bem disse Harold. Graças a Deus que a nossa polícia não é semelhante a esta.

E com a sua superior serenidade britânica desceram para o almoço.

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Depois do almoço, Harold, habitualmente, juntava-se a Mrs. Rice e à filha para tomar o café. Decidiu não alterar

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os seus hábitos. Era esta a primeira vez que via Elsie depois da noite anterior. A rapariga estava pálida e era evidente que ainda se ressentia do choque, mas fazia esforços por tornar-se natural, dizendo pequenos lugares-comuns a respeito do tempo e da paisagem. Comentavam um novo hóspede que acabara de chegar, tentando descobrir a sua nacionalidade. Harold pensava que um bigode semelhante àquele devia ser francês. Elsie dizia alemão e Mrs. Rice pensava que podia ser espanhol.

Não havia mais ninguém no terraço além das duas polacas, que estavam sentadas no outro extremo, ambas distraindo-se com um trabalho de fantasia. Como sempre sucedia quando as via, Harold sentiu um arrepio de apreensão passar por ele. Aquelas faces paradas, aquelas narinas arredondadas, aquelas compridas mãos que pareciam garras...

Um groom foi dizer a Mrs. Rice que a procuravam. A senhora levantou-se e acompanhou-o. À entrada do hotel, viu vir ao seu encontro um oficial da polícia em grande uniforme.

Elsie conteve a respiração.

Acha que alguma coisa de mal vai suceder? Harold animou-a rapidamente:

Oh, não, não! Nada disso!

Mas ele próprio sentiu um súbito receio.

A sua mãe tem sido maravilhosa disse Harold.

Eu sei... A mãe é uma grande lutadora. Nunca se conforma com uma derrota. Elsie estremeceu. Mas tudo isto é horrível, não é?

Agora não pensemos mais nisso. Já está tudo resolvido.

Mas não posso esquecer que fui eu que o matei disse Elsie em voz baixa.

Harold interrompeu-a imediatamente:

Não pense mais dessa forma. Foi um acidente. Sabe que assim foi, na realidade.

Ela pareceu sentir-se um pouco mais feliz. E Harold acrescentou:

Tudo isso já lá vai. O passado é o passado. Procure não pensar nisso outra vez.

Mrs. Rice voltou. Pela expressão do seu rosto viram que tudo correra bem.

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Meteu-me um pequeno susto disse ela quase alegremente. Mas tratava-se apenas de umas formalidades, por causa de uns papéis. Tudo corre como deve ser, meus filhos. Saímos da sombra. Penso que podemos mandar vir qualquer licor para nos reconfortarmos.

Chamaram o criado e pediram-lhe que lhes servisse licores. Pouco depois eram servidos. Levantaram os copos e olharam-se:

Pelo futuro! disse Mrs. Rice. Harold sorriu para Elsie e disse:

Pelas suas felicidades!

Elsie sorriu para ele e disse, enquanto levantava o copo.

E por você, pelo seu êxito. Estou certa de que vai ser um grande homem.

Sentiam-se alegres, quase que divertidos. A sombra tinha passado. Tudo estava bem...

Ao fundo do terraço as duas mulheres semelhantes a aves levantaram-se. Enrolaram o trabalho cuidadosamente e encaminharam-se em direcção ao outro grupo. Com uma pequena vénia, sentaram-se perto de Mrs. Rice. Uma delas começou a conversar. A outra olhava para Harold e para Elsie. Nos lábios esboçava-se-lhes um ligeiro sorriso. Não era, pensou Harold, um sorriso muito agradável... E olhou para Mrs. Rice, que estava prestando atenção a uma das polacas; e, se bem que ele não compreendesse uma única palavra, a expressão de Mrs. Rice era bastante clara. Toda a passada angústia e todo o desespero tinham desaparecido. Atendia-as e dizia-lhes breves palavras.

As duas polacas levantaram-se e com pequenas e afectadas vénias entraram no hotel.

Harold inclinou-se para a frente e perguntou gravemente:

Que aconteceu?

Mrs. Rice respondeu-lhe com uma entoação cheia de desespero:

Aquelas duas mulheres estão a fazer chantagem. Ouviram qualquer coisa a noite passada. E agora para se calarem exigem bastante dinheiro; custa-nos isto mil libras mais...

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Harold Waring encaminhou-se para o lago. Havia mais de uma hora que caminhava febrilmente, procurando com este dispêndio de energia física abafar o clamor de desespero que o dominava.

Chegou, por fim, ao local onde tinha visto pela primeira vez as duas velhas medonhas, que nas suas diabólicas mãos tinham a sua vida e a de Elsie.

Malditas sejam! Danado par de diabólicos vampiros.

O rumor ligeiro de tosse obrigou-o a voltar-se. Encontrou-se em face do estrangeiro de bigode farto, que tinha justamente acabado de sair da sombra das árvores.

Harold não soube que dizer. Este homenzinho tinha, certamente, escutado as suas últimas palavras.

Harold disse de uma forma quase ridícula:

Oh, sim, boa tarde!

O outro replicou num inglês correcto:

Mas para si, parece-me que não é uma tarde muito boa?

Bem! Sim, eu... Harold estava outra vez em dificuldades.

O senhor, segundo penso, tem qualquer coisa que o incomoda. Posso prestar-lhe algum serviço? disse o homenzinho.

Oh, não, obrigado, obrigado! Estava apenas falando à toa. Compreende?

O outro, gentilmente, acrescentou:

Mas eu penso, saiba o senhor, que posso ajudá-lo. Acaso me enganarei se disser que os seus cuidados têm relação com as duas senhoras que estavam sentadas no terraço agora mesmo?

Harold, espantado, olhou para ele:

O senhor sabe alguma coisa a respeito delas? E acrescentou: Quem é o senhor?

Como se confessasse o nascimento de uma pessoa de sangue real, Poirot disse modestamente:

Eu sou Hercule Poirot. Poderemos passear um pouco no bosque enquanto o senhor me conta a sua história? Como estou dizendo, penso que posso ajudá-lo.

Até hoje Harold nunca soube o que o tinha levado a

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contar toda a sua história a um homem a quem falara pela primeira vez apenas alguns minutos antes. Talvez uma força superior. A verdade é que contou a Poirot toda a história.

Este olhava-o em silêncio. Uma ou duas vezes abanou a cabeça com gravidade. Quando Harold fez uma pausa o outro disse sonhadoramente:

As Aves do Estinfalo, com bicos de ferro, que comem carne humana e que habitam no lago Estinfalo... Sim, isto concorda muito bem!

Eu peço perdão disse Harold detendo-se. «Talvez», pensou ele, «este curioso homenzinho seja doido.»

Hercule Poirot sorriu:

Estou reflectindo, eis tudo! Na minha profissão tenho de olhar para as coisas. Agora é o seu caso. O senhor está numa posição muito desagradável.

Não preciso que me diga isso! retorquiu Harold com impaciência.

É um caso muito sério, chantagem. Essas harpias querem forçá-lo a pagar, pagar e pagar outra vez!

E se o senhor as afronta que é que podia acontecer? insistiu Poirot.

Harold respondeu com amargura:

Tudo se acumula! A minha carreira arruinada e uma desgraçada rapariga que nunca fez mal a ninguém pode ser condenada! E Deus sabe como tudo isto acabará!

Portanto disse Poirot, alguma coisa deve fazer-se.

Mas o quê perguntou secamente.

Poirot inclinou-se para trás. Com os olhos semicerrados (e outra vez uma dúvida a respeito do seu perfeito juízo atravessou o espírito de Harold) disse:

É o momento das castanholas de bronze.

O senhor está maluco? perguntou Harold. O outro abanou a cabeça respondendo:

Mais non. Empenho-me apenas em seguir o exemplo do meu grande predecessor, Hércules. Tenha paciência durante algumas horas, meu amigo. Talvez amanhã eu possa livrá-lo dos seus perseguidores.

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Harold Waring desceu ao terraço na manhã seguinte e foi encontrar Poirot só, sentado no terraço. A despeito de si próprio, Harold tinha ficado impressionado com as promessas de Hercule Poirot.

Aproximou-se dele e perguntou ansiosamente:

Bem?

Hercule Poirot olhou para ele radiante:

Está bem!

Que quer dizer com isso?

Cada coisa se tem resolvido por si própria, satisfatoriamente.

Mas que sucedeu?

Hercule Poirot disse com um ar sonhador:

Empreguei as castanholas de bronze. Ora, na moderna conversação eu usei fios de metal para enganar. Abreviando: recorri ao telégrafo. As suas Aves do Estinfalo, monsieur, serão enviadas para lugar onde não possam empregar a sua ingenuidade durante estes tempos mais próximos.

Foram apanhadas pela polícia? Foram detidas?

Precisamente!

Harold soltou um profundo suspiro.

Como é maravilhoso! Não pensava que isto pudesse acontecer. Levantou-se. Tenho de procurar Mrs. Rice e Elsie e contar-lhes tudo.

Elas sabem tudo, já!

Oh, bem! Harold sentou-se outra vez. Obriga-me precisamente o que...

Poirot interrompeu-o:

Regressando do lago estavam duas figuras de capas agitadas pelo vento e perfil de aves de rapina.

O senhor quer dizer que elas foram apanhadas quando fugiam?

Hercule Poirot olhou-o de relance:

Oh, aquelas senhoras? Elas são verdadeiramente inofensivas; polacas de boas famílias, como disse o porteiro. A sua aparência não é talvez muito agradável, mas é assim.

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Mas, eu não compreendo!

Não, o senhor não compreende! As outras senhoras

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é que foram apanhadas pela polícia: a resoluta Mrs. Rice e a lacrimosa Mrs. Clayton. Elas é que são aves de rapina muito conhecidas. Duas que vivem de chantagem, mon cher!

Harold teve a sensação de que o mundo girava à sua volta. Num fraco tom de voz perguntou:

Mas o homem, o homem que foi assassinado?

Ninguém foi assassinado, não havia nenhum homem!

Mas eu vi-o!

Oh, não! A voz alta e profunda de Mrs. Rice permitia-lhe com facilidade fazer papéis masculinos. Era ela que representava o marido, sem a sua cabeleira grisalha e só com um maquillage apropriado para a ocasião. Poirot inclinou-se para a frente e deu uma palmada nos joelhos do outro:

Deve caminhar na vida não sendo tão crédulo, meu amigo. Fez uma pausa e prosseguiu:

A polícia da região não é tão facilmente subornada. Provavelmente nunca foi subornada; é claro que não, quando se trata de um assassínio. Estas duas mulheres exploram a ignorância que a média dos ingleses tem das línguas estrangeiras. Como fala francês e alemão, é sempre Mrs. Rice que se dirige ao gerente do hotel e toma a cargo o negócio. Mas, que se passa na realidade? O senhor não sabe! Talvez ela diga que perdeu um broche ou qualquer coisa parecida. Uma desculpa para conseguir que a polícia venha e de modo que os ingénuos possam ver. De resto, que sucedeu agora? O senhor telegrafou a pedir dinheiro, uma grande quantia, e passou-o para as mãos de Mrs. Rice que é a encarregada de todas as negociações. Depois de uma pausa, Poirot prosseguiu:

E isto é assim. Mas são ávidas de dinheiro estas duas aves de rapina. Viram que o senhor tinha, sem razão, tomado aversão às duas senhoras polacas. As senhoras em questão aproximaram-se e tiveram com ela uma inocente conversa e Mrs. Rice não pôde resistir e continuou a caçada. Ela sabia que o senhor não podia entender o que diziam.

Harold soltou um fundo suspiro e perguntou:

E Elsie? Elsie?

Hercule Poirot abriu-lhe os olhos:

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Elsie desempenha muito bem o seu papel. Faz sempre assim. É uma experimentada actriz. Em todas as outras coisas é pura, muito inocente.

Ela não desperta o sexo, mas a sensibilidade.

Isto dá sempre resultado com os homens ingleses disse Poirot pensativamente.

Vou tratar de aprender as línguas da Europa. Ninguém me tomará por parvo, nunca mais! disse Harold com um suspiro.

VII O TOURO DE CRETA

Hercule Poirot olhou pensativamente para aquela visitante. Viu uma face pálida com um queixo proeminente, uns olhos mais cinzentos que azuis, uma cabeleira negro-azulada que tão raramente se vê: tinha toda a aparência de uma grega dos tempos antigos.

Reparou no vestido bem cortado mas fora de moda, no tecido da região, no saco de mão já muito usado e naquela arrogância de maneiras que deixa antever uma rapariga nervosa.

Ah, sim, deve ser uma condessa, mas sem dinheiro. E deve passar-se alguma coisa que não corre bem que a trouxe aqui pensou Poirot.

Diana Marbely. A sua voz era um pouco sacudida. Eu... eu, não sei se pode ou não ajudar-me, M. Poirot. Trata-se, isto é: é uma extraordinária situação!

Está bem! Conte-me o caso, por favor. Diana Marbely, então disse:

Procurei-o porque não sei o que hei-de fazer. Nem sei mesmo se alguma coisa se pode fazer.

Permite-me que seja o juiz do caso? Subitamente o rosto da rapariga tornou-se vermelho:

Eu procurei-o porque o homem de quem eu estava noiva há um ano quebrou o seu compromisso. Fez uma pausa e olhou para ele com desconfiança: O senhor vai pensar que eu sou completamente estúpida!

Vagarosamente Poirot abanou a cabeça:

Pelo contrário, mademoiselle, não tenho dúvidas

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de que é extremamente inteligente. Certamente não faz parte do meu metier encarregar-me de questões amorosas. E sei perfeitamente que a senhora está bem informada a esse respeito. Acontece, todavia, que há qualquer coisa fora do vulgar nesse rompimento, não é assim?

A rapariga abanou a cabeça e disse com uma voz clara, precisa:

Hugh quebrou o seu compromisso porque julga que vai endoidecer. E pensa que as pessoas doidas não devem casar.

Hercule Poirot levantou as sobrancelhas:

E a senhora não concorda?

Não sei... Que é ser doido, afinal? Toda a gente é um pouco louca!

É isso o que se diz, concordou Poirot, cautelosamente.

Apenas porque uma pessoa começa a pensar que tem um ovo cozido ou qualquer coisa no género, não é razão para que a fechem a sete chaves.

Mas o seu noivo não chegou a esse ponto, pois não?

Não tenho razões para ver qualquer coisa de mau em Hugh. Ele está no uso das suas faculdades, eu sei. É uma pessoa de confiança.

Porque pensa ele então que pode endoidecer? Existe, talvez, algum caso de loucura na família?

Com relutância, Diana abanou a cabeça em sinal de assentimento:

A avó dele era doida! E algumas das suas tias-avós também. Mas eu sei que em quase todas as famílias existem casos semelhantes. Umas vezes trata-se de mentalidade atrasada, outras vezes de demasiada inteligência.

Os seus olhos pareciam suplicar qualquer coisa. Poirot olhou-a e disse tristemente:

Sinto muito o seu caso, mademoiselle. A rapariga gritou:

Eu não quero que o senhor me lamente, quero apenas que o senhor faça alguma coisa.

Que deseja que eu faça?

Não sei, mas há nisto qualquer coisa que não está certa.

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Pode contar-me tudo a respeito do seu noivo, mademoiselle?

Diana, então, pôs-se a contar rapidamente:

Chama-se Hugh Chandler. Tem vinte e quatro anos. O pai é almirante, o almirante Chandler. Vivem em Lyde Manor. Pertence à família Chandler desde o tempo da rainha Isabel. Hugh é filho único. Ingressou na armada. Todos os Chandlers são marinheiros. É uma espécie de tradição, desde que Sir Gilbert Chandler embarcou com Sir Walter Raleigh. Hugh foi para a marinha, é claro. Nem o pai quereria ouvir falar noutra coisa qualquer. E todavia foi o pai que insistiu para que ele saísse da marinha.

Quando foi isso?

Há cerca de um ano. Foi inesperadamente!

Hugh Chandler sentia-se feliz na sua profissão?

Absolutamente!

Não houve nenhum escândalo?

Acerca de Hugh? Absolutamente nada! Ele ia muito bem. Hugh não pode entender o pai.

Que razões apresentou o almirante? Diana disse vagarosamente:

Na realidade nunca deu nenhuma razão. O almirante apenas disse que era necessário que Hugh aprendesse a administrar as propriedades, mas isto era apenas um pretexto. George Frobisher também sempre assim pensou.

Quem é George Frobisher?

É o coronel Frobisher. O mais velho amigo do almirante e padrinho de Hugh. Passa a maior parte do seu tempo em Manor.

E que pensou o coronel da decisão do almirante acerca do filho sair da armada?

Ficou confundido! Não pôde compreender. Ninguém compreende!

Nem o próprio Hugh?

Diana não respondeu logo. Poirot esperou um minuto; depois, ela continuou:

Naquela ocasião, possivelmente também ficou surpreendido. Mas agora? Depois?

Não disse nada, absolutamente nada? Diana murmurou com má vontade:

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Hugh, há talvez uma semana, disse que o pai tinha razão, pois que era a única coisa a fazer.

Perguntou-lhe porquê?

Sem dúvida! Mas ele não quis dizer-me.

Tem havido algum procedimento estranho da sua parte desde há um ano para cá? Qualquer coisa que tenha levantado alguma intriga local ou qualquer desconfiança?

Não sei o que o senhor quer dizer com isso! Poirot disse calmamente mas com autoridade na voz:

Será melhor contar-me tudo.

Que deseja que eu lhe conte? Não há nada absolutamente nada do género que o senhor pensa.

Que há então?

Parece-me que o senhor é simplesmente odioso! Nas fazendas acontecem muitas vezes coisas singulares. É a vingança do povo estúpido ou de qualquer pessoa.

Que pessoa, então?

Houve uns rumores acerca de uns carneiros... uns carneiros que apareceram degolados. Oh, foi horrível! Mas todos eles pertenciam a um homem que era muito ríspido. A polícia pensou que era alguma vingança contra ele.

E não puderam apanhar a pessoa que fez isso?

Não! respondeu a rapariga. E acrescentou altivamente: Mas se o senhor pensa...

A senhora não sabe o que eu penso. Diga-me, o seu noivo alguma vez consultou o médico?

Não tenho a certeza de que o tenha feito!

Talvez que isso fosse o melhor que ele tinha a fazer!

Certamente não quereria. Ele detesta os médicos disse Diana.

E o pai?

Penso que o almirante também não acredita muito nos médicos. Diz que eles são comerciantes e embusteiros.

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E que pensa acerca do almirante? Ele está bem? É feliz?

Diana respondeu em voz baixa:

Está terrivelmente envelhecido!

De há um ano para cá?

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- Sim! É um farrapo, uma espécie de sombra do que era.

- E aprovava o noivado do filho?

- Oh, sim! A terra da minha família é próxima da sua. Ficou muito satisfeito quando Hugh e eu resolvemos casar.

- E agora? Que diz ele do rompimento do vosso noivado?

A voz da rapariga tornou-se um pouco balbuciante:

- Encontrei-o ontem de manhã. Parecia um espectro. Segurou uma das minhas mãos nas suas e disse: É muito duro para ti minha filha, mas o rapaz tem razão. É a única coisa que ele poderia fazer.

- E só por isso a senhora vem procurar-me?

- Acaso poderá o senhor fazer alguma coisa?

- Não sei! Mas posso tentar ver com os meus próprios olhos o que se passa.

Hugh Chandler impressionou Hercule Poirot mais do que qualquer outra pessoa. Era alto, moreno, bem proporcionado, tinha o queixo voluntarioso, os ombros largos e uma esplêndida cabeça. Desprendia-se dele um ar de força e virilidade. Apenas Poirot chegou a casa de Diana esta telefonou imediatamente ao almirante Chandler e logo ambos se puseram a caminho de Lyde Manor onde o chá os esperava num espaçoso terraço; e não apenas o chá mas também três homens. Um era o almirante Chandler, com os seus cabelos brancos, dando-lhe mais idade do que na realidade tinha, os ombros curvados como se tivesse de suportar o peso do mundo, olhos escuros e sonhadores. Num contraste com ele, o seu amigo coronel Frobisher era um homenzinho seco, duro, de cabelo avermelhado e a branquear nas fontes. Um irrequieto e irascível homenzinho, semelhante a um terrier mas possuidor de uns olhos extremamente penetrantes. Tinha o hábito de franzir as sobrancelhas e baixar a cabeça inclinando-a para a frente, ao mesmo tempo que, com os seus olhos perfurantes, estudava as pessoas. O terceiro homem era Hugh.

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Um belo exemplar, hem? disse o coronel Frobísher. E falou em voz baixa, notando que Poirot observava o homem.

Hercule Poirot abanou a cabeça. Ele e Frobisher estavam sentados junto um do outro. Os três restantes convivas estavam no lado mais afastado da mesa e conversavam todos de uma forma animada mas artificial.

Sim, é magnífico! É um touro jovem, poder-se-ia dizer que é o touro consagrado a Posídon... Um perfeito espécimen da beleza masculina!

Parece-me bastante bem, não é Frobisher suspirou. Os seus pequenos olhos pareciam dirigir-se para todos os lados, porém, fixavam Poirot:

Sei quem o senhor é! disse o coronel.

Não é nenhum segredo. Não procuro passar por incógnito e o seu gesto parecia dizer: Não viajo incógnito!

Após um momento de silêncio Frobisher perguntou:

A rapariga pediu-lhe que tratasse deste assunto, não é?

Que assunto?

Acerca do jovem Hugh... Sim, vejo que sabe tudo acerca deste caso. No entanto não consigo compreender porque é que ela se dirigiu a si... Pensava que isto não era do seu ramo.

Todas as coisas são do meu ramo... Não se admire!

O que eu quero dizer, é que não sei o que ela espera.

«Só aparece de tempos a tempos murmurou. Às vezes passa uma geração ou duas. O avô de Hugh foi o último.»

Poirot lançou um rápido olhar na direcção dos outros três. Diana mantinha uma boa conversação, rindo e troçando de Hugh. Poderia dizer-se que os três não tinham a mais pequena preocupação na vida.

De que género era a loucura desse avô de Hugh? perguntou Poirot.

O velho tornou-se um louco furioso no fim da vida. Até aos trinta anos, foi perfeitamente normal, tanto quanto era possível. Depois começou a tornar-se um pouco estranho. Durante algum tempo ninguém notou.

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até que se começou a murmurar. Porém nada contou publicamente. Mas, bem...e o coronel encolheu os ombros, e... acabou doido varrido. Pobre diabo! Homicida? Teve que se lhe arranjar um certificado médico. Parou por momentos e acrescentou:

Ainda viveu muito tempo... Disso é que Hugh tem medo, claro. É essa a razão porque ele não quer ser observado por um médico. Ele tem medo de que o fechem numa casa de saúde por muitos anos. Não o reprovo; eu faria o mesmo!

É o que pensa o almirante Chandler?

Ficou bastante chocado! Gostava muito do filho, não é verdade? É louco pelo rapaz. A esposa morreu num acidente de barco quando Hugh tinha apenas dez anos. Desde então só viveu para a criança.

E o almirante era muito dedicado à esposa?

Adorava-a. Toda a gente a adorava. Ela foi uma das mais bonitas mulheres que eu conheci. Fez uma pausa e perguntou abruptamente:

Gostava de ver um retrato dela?

Gostaria imenso!

Frobisher levantou-se e disse em voz alta:

Vou mostrar a M. Poirot uma coisa em que ele é perito.

O almirante esboçou um gesto vago. Frobisher dirigiu-se ao terraço e Poirot seguiu-o. Por um momento o rosto de Diana perdeu a sua máscara de alegria e ficou com uma expressão angustiada. Hugh também levantou a cabeça e olhou fixamente o homenzinho de grandes bigodes pretos. Poirot seguiu Frobisher através da casa. Porque vinha de fora, onde o sol brilhava, o interior parecia-lhe tão escuro que mal podia distinguir uma coisa da outra. Mas percebeu que a casa estava cheia de coisas belas e antigas.

O coronel Frobisher seguiu para a galeria dos quadros. Nas paredes cobertas de painéis viam-se retratos dos Chandlers já mortos. Faces sérias e risonhas, homens envergando fatos de corte e uniformes da marinha. Mulheres vestidas de cetim e adornadas com pérolas. Por fim, Frobisher parou em frente de um retrato que estava no fundo da galeria.

Pintado por Orpen disse bruscamente. Os dois

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homens pararam, depois, a olhar para o retrato de mulher alta que segurava pela coleira um cão de caça. Era uma mulher de cabelo castanho e radiante vitalidade.

O rapaz é exactamente a imagem dela, não acha?

perguntou Frobisher.

Em algumas coisas, sim!

Não tem a sua delicadeza, a sua feminilidade, claro. Mas é uma edição masculina do que nela havia de essencial. Calou-se de repente. E depois prosseguiu:

Foi pena ele ter herdado dos Chandlers a única coisa que era dispensável...

Ficaram ambos silenciosos. Havia um ar de melancolia em todos aqueles retratos, como se todos aqueles Chandlers suspirassem pela mancha que havia no seu sangue e que de tempos a tempos aparecia...

Hercule Poirot voltou a cabeça para olhar o companheiro. George Frobisher estava ainda contemplando a bonita mulher que estava na parede. E Poirot perguntou suavemente:

O senhor conheceu-a bem? Frobisher respondeu sacudidamente:

Éramos da mesma idade. Fui como subalterno para a índia quando ela tinha dezasseis anos... Quando regressei ela tinha casado com Charles Chandler!

E também o conhecia bem?

Charles é um dos meus amigos mais antigos. E o meu melhor amigo.

Viu-os muitas vezes depois do casamento?

Costumava passar aqui todas as férias. Como se esta fosse a minha segunda casa; Charles e Carolina tinham sempre o meu quarto preparado... Encolheu os ombros atirando a cabeça para a frente. É por isso que eu estou agora aqui. Julgo que precisam da minha presença. Charles necessita de mim, eu aqui estou.

Outra vez uma sombra de tragédia passou por ele.

E o que pensa de tudo isto? perguntou Poirot. Frobisher conservou-se calado. Uniu as sobrancelhas e disse:

Para ser franco, não vejo o que o senhor poderá fazer neste caso, M. Poirot. Não vejo porque Diana recorreu ao senhor e o trouxe aqui.

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Sabe que o noivado de Diana com Hugh foi desfeito?

Sim, eu sei isso!

E sabe qual foi a razão? Frobisher replicou apagadamente:

Não sei nada a esse respeito. A gente nova resolve essas coisas entre si. Não tenho nada a ver com o assunto.

Poirot interrompeu-o:

Hugh disse a Diana que não deviam casar-se, porque sentia que ia endoidecer.

Poirot notou que a transpiração humedecia a fronte do coronel Frobisher.

Falávamos acerca daquele terrível assunto! Que pensa sobre a decisão do rapaz?

Hugh fez o que era acertado, pobre diabo! Ele não tem culpa, é um caso de hereditariedade, as células do cérebro... Mas ao mesmo tempo, ele soube que o melhor que tinha a fazer era desfazer o noivado. E foi isso precisamente o que fez.

Se eu pudesse convencer-me disso...

Confie em mim! Acredite-me, porque é assim!

Mas o senhor não me disse nada de particular...

Eu disse-lhe que não desejava falar a esse respeito.

E por que razão o almirante Chandler obrigou o filho a deixar a armada?

Porque era a única coisa que tinha a fazer!

Porquê?

Frobisher abanou obstinadamente a cabeça. Insinuosamente, Poirot insistiu:

Isso tinha alguma relação com a história dos carneiros mortos?

Já ouviu dizer alguma coisa a esse respeito? perguntou Frobisher.

Diana contou-me!

Aquela rapariga tinha feito melhor se ficasse calada.

Ela não pensa que isso seja concludente.

Ela não sabe nada.

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Que é que ela não sabe?

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De má vontade, sacudida e irritadamente, Frobisher disse:

Bem... Uma vez que o senhor tem de saber... Chandler ouviu um ruído, uma noite. Pensou que alguém podia ter entrado em casa e por isso foi lá fora investigar. Viu luz no quarto do rapaz. Chandler entrou. E viu o filho na cama, vestido e profundamente adormecido, mas com sangue no vestuário. A bacia do quarto estava cheia de sangue. O pai não conseguiu acordá-lo. Na manhã seguinte ouviu dizer que tinham sido encontrados uns carneiros com o pescoço cortado. Interrogou Hugh. O rapaz não sabia de nada a esse respeito. Não se lembrava de ter saído, mas os seus sapatos estavam do outro lado da porta, todos cobertos de lama. Não pôde explicar a existência de sangue na bacia. Não soube explicar nada. O pobre não sabia. Compreende? Frobisher calou-se e pouco depois prosseguiu:Charles procurou-me e falou-me no assunto. Queria saber o que é que se devia fazer. E o caso sucedeu novamente, três noites depois. Que se poderia fazer? Depois disto, está a ver, o rapaz deixou o serviço. Se ele estivesse aqui, perto de Charles, poderia ser vigiado. Mas não era prudente arriscar-se a um escândalo na armada. Sim, a única coisa que havia a fazer era abandonar a marinha.

E de então para cá? perguntou Poirot. Frobisher contestou asperamente:

Não respondo a mais nenhuma pergunta. Não lhe parece que Hugh sabe melhor que ninguém os assuntos que lhe interessam?

Poirot não respondeu. Era sempre contrário a admitir que alguém soubesse mais que Hercule Poirot.

Quando chegaram ao hall, encontraram o almirante Chandler, que vinha do terraço. O velho parou por um momento e a sua silhueta escura destacou-se contra a luz de fora. Reparando nos outros dois homens disse numa voz baixa e áspera:

Oh, estão ambos aqui! M. Poirot, desejo trocar

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uma palavra consigo. Quer acompanhar-me ao meu escritório?

Frobisher saiu pela porta que estava aberta e Poirot seguiu o almirante. Este indicou a Poirot uma das grandes e confortáveis cadeiras do aposento e sentou-se na outra. Poirot tinha ficado impressionado com o nervosismo, a impaciência e a irritabilidade de Frobisher sinais de perturbação de espírito. Com o almirante Chandler experimentou uma sensação de intenso, calmo e profundo desespero...

Com um suspiro Chandler começou a falar:

Aborrece-me que Diana o tenha envolvido neste caso... Pobre criança! Eu sei quanto isto é duro para ela. Mas, bem! Isto são tragédias que só a nós dizem respeito, e o senhor deve compreender, M. Poirot, que não desejamos ver pessoas estranhas metidas no assunto.

Compreendo muito bem os seus sentimentos, é claro!

Diana, pobre criança, não se convence... Eu a princípio também não me convenci. Neste momento, se não tivesse visto tudo, provavelmente não acreditava.

Fez uma pausa e, depois, prosseguiu:

Sabe o que é? É que isto está no sangue. A tara, quero eu dizer.

E o senhor concorda ainda com o noivado? O almirante Chandler corou.

Quer dizer que não pus os pés à parede? Mas, naquela altura, eu não fazia ideia disto. Hugh parecia-se com a mãe. Não tem nada que lhe recorde os Chandlers. Esperava que ele se parecesse com ela em tudo. Desde a infância até agora nunca manifestou o mais ligeiro sintoma de anormalidade. Eu não podia desconfiar que houvesse nele traços de anormalidade, como nos seus antepassados.

Poirot disse com brandura:

E nunca consultou um médico? Chandler respondeu, carrancudo:

Não, não o faço. O rapaz está a salvo junto de mim. Posso olhar por ele. Não consinto que o fechem entre quatro paredes, como se fosse um animal selvagem...

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Ele está a salvo aqui, diz o senhor. E a segurança das outras pessoas?

Que quer dizer com isso?

Poirot não respondeu. Fixou, apenas, os olhos escuros e tristes do almirante Chandler, que continuou:

Cada homem tem a sua tarefa. O senhor encarrega-se dos criminosos! O meu filho não é um criminoso!

Ainda não o é!

Que pretende insinuar?

Estas coisas aumentam... Aqueles carneiros... de início...

Quem lhe falou nos carneiros?

Diana Marbely! E também o seu amigo, o coronel Frobisher.

George teria feito melhor conservando-se calado!

Ele é um velho amigo, não é verdade?

É o meu melhor amigo respondeu o almirante, taciturno.

E era amigo de sua esposa, também? Chandler sorriu:

Sim, George esteve apaixonado por Carolina, creio eu. Quando ela era muito nova. Ele nunca se casou. Penso que foi essa a razão. Ah, eu fui mais feliz, pensava eu. Casei com ela unicamente para perdê-la, depois.

Suspirou e encolheu os ombros.

O coronel Frobisher estava consigo quando a sua esposa se afogou?

Chandler abanou a cabeça.

Sim, ele estava connosco, em Cornwall, quando isso sucedeu. Ela e eu estávamos juntos, no bote. Por acaso, George estava aqui em casa naquele dia. Nunca compreendi como o barco se virou... Deve ter tido um rombo de repente. Tínhamos saído da baía e a corrente era muito forte. Segurei-a enquanto me foi possível... Calou-se emocionado. O seu corpo foi encontrado a boiar dois dias mais tarde. Graças a Deus que nesse dia não tínhamos levado o pequeno Hugh connosco. Foi o que eu pensei. Agora penso que talvez tivesse sido melhor para Hugh se ele estivesse connosco, pobre diabo. Tudo, teria acabado então...

Soltou um desesperado suspiro e continuou:

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Éramos os últimos Chandlers, M. Poirot. Não

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haveria mais Chandlers em Lyde, se todos tivéssemos morrido. Quando Hugh ficou noivo de Diana, eu esperava... Bem, é melhor não falar nisso, agora. Graças a Deus que eles não casaram. É tudo o que eu posso dizer!

Hercule Poirot estava sentado no jardim. Ao seu lado sentava-se Hugh Chandler. Diana tinha acabado de deixá-los. O rapaz virou a sua bela e torturada face para H. Poirot e disse:

O senhor tem de a levar a compreender, M. Poirot. Calou-se por uns minutos e depois continuou: Como o senhor vê, ela é uma lutadora. Não aceita isto. Não se convence de que é melhor para ela conformar-se. Acredita que eu estou no meu perfeito juízo.

Enquanto que o senhor tem a certeza de que está doente?

O rapaz fez uma careta e disse:

Presentemente não sinto nada, mas sei que vou piorando. Diana não sabe, isso feri-la-ia. Ela só me vê quando eu estou bem.

E quando tem as crises, que sucede? Hugh Chandler respirou fundo. Depois disse:

Sonho. E quando sonho estou doido. A noite passada, por exemplo. Eu já não era um homem. Principiei por ser um boi, um boi doido, correndo e saltando ao sol com a boca a saber a lama e sangue, a lama e a sangue... Depois era um cão, um grande cão cheio de baba. As crianças batiam-me, fugiam quando eu me aproximava. Os homens procuravam matar-me. Uma pessoa qualquer levou-me um grande balde com água mas eu não consegui beber. Eu não consegui beber... Calou-se por instantes para prosseguir: Depois acordei. E soube que era verdade. Encaminhei-me para o lavatório. Sentia a garganta queimada e muito seca, terrivelmente seca. Eu estava a arder. Mas não podia beber, não podia engulir... Oh, meu Deus, eu não podia beber...

Hercule Poirot apenas fez um aceno. Hugh continuou. As suas mãos apertavam os joelhos. Tinha a cabeça

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inclinada para a frente, os olhos semicerrados como se visse alguma coisa a dirigir-se para ele.

Há coisas que não são sonhos. Coisas que eu vejo quando estou bem acordado. Fantasmas, formas horríveis troçando de mim. Algumas vezes sou capaz de voar, deixo a minha cama e vou através do ar, cavalgando o vento. £ as minhas companhias são demónios!

Tcha, tcha... fez Poirot.

Hugh Chandler virou-se para ele e disse:

Não há dúvida nenhuma. Isto está no meu sangue. É a herança da minha família. Não posso escapar. Graças a Deus descobri a tempo, antes de ter casado com Diana. Suponha que teríamos um filho e que lhe transmitíamos esta terrível coisa.

Hugh pôs a mão no braço de Poirot e implorou:

Tem que fazer com que ela compreenda. Deve dizer-lhe. Ela tem forçosamente que se esquecer. Qualquer dia encontrará outra pessoa. Há o jovem Steve Graham. Está louco por ela e é muito bom rapaz. Ela seria feliz com ele e estaria em boas mãos. Eu quero que ela seja feliz. Graham é um bocado duro assim como a sua família, mas quando eu desaparecer eles ficarão bem.

A voz de Hercule interrompeu-o:

Porque é que eles ficarão bem quando você desaparecer?

Hugh Chandler sorriu e disse:

Há o dinheiro da minha mãe. Como sabe, ela deixou-me uma grande herança. Esse dinheiro que eu recebi da minha mãe deixo-o a Diana.

Porrot recostou-se na cadeira.

Ah!suspirou. Depois disse: Mas o senhor ainda pode viver muitos anos, Mr. Chandler!

Hugh abanou a cabeça e disse com amargura:

Não, M. Poirot, não viverei muitos anos. Então encolheu-se de repente com um arrepio.

Meu Deus! Olhe!E apontou para o ombro de Poirot. Ai, ao pé de si... Um esqueleto, com os ossos a chocalhar. Chamando por mim, acenando-me...

Com as pupilas muito dilatadas fixava a luz do Sol. Inclinou-se para o lado como se tivesse um colapso. Depois, voltando-se para Poirot, perguntou numa voz quase acriançada:

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Não viu nada?

Vagarosamente, Poirot sacudiu a cabeça em sinal de negativa. E logo Hugh Chandler disse com voz rouca:

Eu não me importo muito de ver tais coisas, O sangue é que me aterroriza. O sangue no meu quarto, no meu fato... Nós tivemos, em tempos, um papagaio. Uma manhã apareceu no meu quarto com o pescoço cortado. Eu estava deitado com a navalha de barba na mão, húmida do sangue do animal.

Aproximou-se mais de Poirot e continuou:

Mesmo ultimamente têm aparecido muitas coisas mortas. Em toda a parte, na povoação e nos campos. Ovelhas e cordeirinhos e um cão de gado. O meu pai fecha-me, sempre, à noite, mas às vezes, às vezes a porta está aberta de manhã. Creio que tenho uma chave escondida em qualquer sítio mas não sei onde. Não sei. Não sou eu quem comete esses crimes mas alguém que entra dentro de mim, que me domina, que transforma um homem num monstro raivoso que quer sangue e que não pode beber água...

De repente escondeu a cara entre as mãos. Passado um minuto ou dois Poirot perguntou:

Ainda não compreendi porque é que não consultou um médico.

Hugh Chandler abanou a cabeça e disse:

Não comprende, realmente? Fisicamente sou forte. Tão forte como urn touro. Eu posso viver por muitos e muitos anos, mas fechado dentro de quatro paredes. Isso não posso suportar! Seria melhor acabar de uma vez... Há maneiras, o senhor sabe. Um acidente, o limpar de uma arma... qualquer coisa desse género. Diana comprenderia... É o caminho a seguir.

Olhou em ar de desafio para Poirot, mas este não respondeu. Em vez disso perguntou com brandura:

Que é que você come e bebe?

Hugh Chandler atirando a cabeça para trás riu muito alto:

Pesadelos depois de indigestão? É essa a sua ideia?

Poirot repetiu a pergunta:

Que é que você come e bebe?

O mesmo que todos.

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Nenhum remédio especial? Comprimidos? Pílulas?

Valha-me Deus, não! Pensa realmente que as pílulas curariam as minhas perturbações? perguntou com um sorriso amargo. Não poderá, então, socorrer um espírito doente?

Poirot respondeu secamente:

É o que estou tentando! Há alguém, nesta casa, que sofre da vista?

Hugh fixou Poirot com espanto:

O meu pai sofre bastante dos olhos. E vai várias vezes ao oftalmologista.

Ah! Poirot meditou por um momento ou dois, depois perguntou: O coronel Frobisher passou muito tempo da sua vida na índia, não é verdade?

Sim, esteve no Exército da índia. Conhece profundamente a índia. Fala muito a respeito das tradições nativas e de outras coisas.

Ah! murmurou Poirot outra vez. Depois observou: Vejo que se cortou no queixo.

É verdade, foi um golpe fundo. O meu pai, uma vez, assustou-me quando eu me barbeava. Tenho andado um pouco nervoso, estes dias. Tenho o queixo e o pescoço cheios de cortes. Torna o barbear difícil.

Poirot, calmamente, disse:

Devia usar um creme.

Oh, eu uso. O meu padrinho George deu-me um creme. Mudou de tom e sorrindo disse: Falamos como se estivéssemos num instituto de beleza feminina. Loções, cremes, pílulas, doenças de olhos. Que é que isso quer dizer? Onde quer chegar, M. Poirot?

Poirot respondeu calmamente:

Estou tentando fazer o que posso por Diana Marbely.

Os modos de Hugh modificaram-se. A sua expressão tornou-se grave. Pondo uma mão no braço de Poirot, pediu:

Sim, faça o que poder por ela. Diga-lhe que tem de esquecer tudo. Diga-lhe que não tenha esperanças... Diga-lhe algumas das coisas que eu lhe disse, M. Poirot... Diga-lhe, oh, diga-lhe que por amor de Deus se afaste de mim. É tudo o que ela pode fazer por mim, agora. Afastar-se e tentar esquecer!

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Tem coragem, mademoiselle? Muita coragem? Precisará dela.

Diana gritou aflita:

Então, é verdade? É verdade? Ele está doido? Hercule Poirot respondeu:

Eu não sou um alienista, mademoiselle. Não sou eu quem poderá dizer se Hugh é um homem doido ou um homem são.

Diana aproximou-se dele:

O almirante Chandler pensa que Hugh está doido. O coronel Frobisher também pensa que Hugh está doido. O próprio Hugh pensa que está doido.

E a mademoiselle que pensa?

Eu? Eu digo que ele não está doido. Foi por esse motivo que...

Parou de falar e Poirot perguntou:

Foi por isso que me procurou?

Sim. Não podia ter mais nenhuma razão para procurá-lo, não acha?

Isso disse Poirot é exactamente o que eu tenho perguntado a mim próprio, mademoiselle.

Não o compreendo!

Que é Steve Graham? A rapariga estacou.

Steve Graham? Ah, sim, é uma pessoa qualquer disse. Depois agarrou-se ao braço de Poirot e, ansiosamente, perguntou: Que tem na sua ideia? Que está pensando a esse respeito? O senhor está aqui para me ajudar, para me esclarecer, mas cala-se, cala-se e não me diz nada. O senhor está a meter-me medo, um medo horrível. Porque está o senhor a meter-me medo?

Talvez disse Poirot porque eu também estou assustado!

Diana arregalou os olhos fixando-os, espantada, em Poirot; num abafado murmúrio insistiu:

Que é que receia?

Poirot suspirou profundamente, dizendo:

É mais fácil apanhar um assassino do que prever um assassínio.

A rapariga gritou:10-VAMP. G. 24

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Um assassínio? Não empregue essa palavra!

Não obstante, emprego-a!

Poirot alterou a voz. Depois disse rápida e autoritariamente:

Mademoiselle, é necessário que nós, eu e a senhora, passemos a noite em Lyde Manor. É a minha opinião. Não pode arranjar as coisas nesse sentido?

Eu, sim, suponho que sim. Mas porquê?

Porque não há tempo a perder! Disse-me que.era corajosa. É agora a altura de mostrar a sua coragem. E nem uma palavra a este respeito! Ela fez um sinal de assentimento com a cabeça; não disse uma palavra e afastou-se.

Poirot seguiu-a até casa. Ouviu a sua voz na biblioteca e as vozes dos três homens. Subiu a larga escadaria. Não havia ninguém no andar superior.

Encontrou facilmente o quarto de Hugh. Ao centro do quarto via-se um lavatório com água quente e fria canalizada. Por cima, numa prateleira de vidro, vários tubos, boiões e frascos. Hercule Poirot deitou-se ao trabalho com rapidez e destreza...

O que ele tinha a fazer não demoraria muito tempo. Tinha acabado de descer as escadas quando viu Diana saindo da biblioteca; pareceu-lhe corada e contrariada.

Tudo está arranjado disse a rapariga.

O almirante Chandler levou Poirot para a livraria e fechou a porta.

Ouça, M. Poirot. Eu não gosto disto! disse secamente.

De que não gosta, almirante Chandler?

Diana insistiu para que o senhor e ela passassem aqui a noite. Eu não desejo ser pouco hospitaleiro... mas...

Não é uma questão de hospitalidade!

Como digo, eu não quero ser pouco hospitaleiro, mas, francamente, eu não gosto disto, eu não quero isto! E não compreendo o motivo por que desejam aqui ficar. Que utilidade resultará daí?

Dir-lhe-ei que vou fazer uma experiência?

Que espécie de experiência?

Isso, desculpe mas não lhe diz respeito, senhor almirante!

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Mas repare, M. Poirot, eu não lhe pedi para vir

aqui.

Poirot interrompeu-o:

Acredite-me, almirante Chandler, eu aprecio e entendo muito bem o seu ponto de vista. Estou aqui única e simplesmente por causa da teimosia de uma rapariga apaixonada. O senhor contou-me algumas coisas. O coronel Frobisher contou-me outras. O próprio Hugh também me contou algumas coisas. Agora, eu desejo ver com os meus próprios olhos o que há de concreto acerca de todo este assunto.

Sim, mas ver o quê? Digo-lhe que aqui não há nada para ver! Mando fechar Hugh à chave no quarto, todas as noites, eis tudo!

E todavia ele diz que algumas vezes a porta não está fechada de manhã.

E o que significa isso?

Nunca encontrou a porta sem estar fechada à chave?

Chandler estava carrancudo.

Sim, mas supunha sempre que me tivesse esquecido de fechá-la. Mas que quer dizer com isso?

Onde deixa o senhor a chave? Na fechadura?

Não! Deixo-a na secretária, ao lado. Eu ou George ou Withees, o criado, tiramo-la dali na manhã seguinte. Dissemos a Withers que Hugh é sonâmbulo e passeia de noite, por isso é que o fechamos... Desconfio que ele sabe mais alguma coisa, mas é um rapaz de confiança. Está em minha casa há muitos anos.

Existe mais alguma chave?

Não, que eu saiba.

Alguém pode ter mandado fazer outra.

Mas quem?

O seu filho pensa que ele próprio tem uma chave escondida em qualquer lado mas ignora onde.

O coronel Frobisher vindo do outro extremo do aposento disse:

Não me agrada isto, Charles... A rapariga... O almirante Chandler disse rapidamente:

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Justamente o que eu estava pensando! A rapariga não deve voltar consigo. Venha só o senhor, se quiser.

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Porque não deseja que Miss Marbely passe aqui a noite?

Nestes casos, bem vê...

Calou-se e Poirot aproveitou o silêncio para dizer:

Seu filho quer muito a Miss Diana Marbely.

É justamente por isso! Diabos levem esta história. Tudo se transtorna quando se trata de um doido. O próprio Hugh sabe isto. Diana não deve aqui vir.

No que respeita a isso Diana deve decidir por si própria disse Poirot saindo da biblioteca.

Diana esperava-o lá fora.

Iremos buscar o que precisarmos para a noite e estaremos aqui à hora de jantar.

Enquanto corriam ao longo da estrada, Poirot repetiu a conversa que tivera com o almirante e o coronel Frobisher. Ela riu ironicamente:

Eles pensam que Hugh pode ferir-me?

Como resposta Poirot perguntou-lhe se podiam parar numa farmácia: tinha-se esquecido de pôr na mala a escova de dentes.

A farmácia ficava a meio da rua principal de uma pacata povoação. Diana esperou-o dentro do carro admirando-se que Poirot levasse tanto tempo para escolher uma escova de dentes.

No enorme quarto decorado com pesada mobília de carvalho da época isabelina, Hercule Poirot sentou-se disposto a esperar. Não havia mais nada a fazer do que esperar. Tudo estava devidamente preparado.

Era quase madrugada quando se desenrolaram os acontecimentos. Ouvindo passos lá fora, Poirot correu a fechadura e abriu a porta. Viu dois homens no corredor, dois homens de meia-idade que aparentavam ser muito mais velhos. O almirante mostrava uma expressão severa e terrível. O coronel arrepelava-se e tremia.

Chandler disse simplesmente:

Pode vir connosco, M. Poirot?

Uma figura estranha caída do lado de fora do quarto de Diana Marbely. A luz incidiu numa cabeça esguedelhada,

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de face morena. Hugh Chandler jazia no chão, respirando com dificuldade. Estava de roupão e chinelas. Na mão direita brilhava uma navalha curva, bem afiada. Mas nem toda ela brilhava; aqui e acolá estava coberta de manchas vermelhas.

Hercule Poirot exclamou abafadamente:

Mon Dieu

Frobisher disse com dureza:

Ela está bem. Ele não lhe tocou. Levantou a voz e chamou: Diana! Somos nós, deixa-nos entrar!

Poirot ouviu o almirante gemer e murmurar quase sem fôlego:

Meu rapaz! Meu pobre rapaz!

Ouviu-se correr uma lingueta. A porta abriu-se e Diana apareceu pálida de morte. Gaguejou:

Que foi que aconteceu? Senti qualquer pessoa tentando entrar. Senti e ouvi empurrar a porta, experimentando, arranhando as almofadas... Oh, era terrível... semelhante a um animal...

Frobisher disse secamente:

Dê graças a Deus por estar fechada!

M. Poirot disse-me que me fechasse.

Subam e levem-no para dentro.

Os dois homens pararam e levantaram o rapaz, que estava inconsciente. Diana comprimiu o peito, com um suspiro de agonia.

Hugh? Este é Hugh? O que é isto que tem na mão? As mãos de Hugh Chandler estavam crispadas e humedecidas e mostravam umas manchas vermelho-acastanhadas.

Isto é sangue? perguntou Diana suspirando. Poirot olhou interrogadoramente para os dois homens.

O almirante abanou a cabeça e disse:

Não é sangue humano, graças a Deus! Um gato! Encontrei-o lá em baixo no hall com o pescoço cortado. Hugh, depois, deve ter-se dirigido para aqui.

Para aqui? Diana estava horrorizada. Para mim? Na cadeira Hugh mexeu-se e gemeu. Todos o olharam

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fascinados. Depois levantou-se e começou a pestanejar.

Hallo; a sua voz era pesada, rouca. Que aconteceu? Quem sou eu? Reparou na navalha que conservava

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ainda apertada na mão e disse numa voz baixa, enfraquecida:

Que fiz eu?

O seu olhar percorreu todas as pessoas. Por último, deteve-se em Diana, que estava encolhida contra a parede. Perguntou vagarosamente:

Ataquei Diana?

O pai abanou a cabeça e Hugh pediu submissamente:

Contem-me o que aconteceu!

Eles contaram-lhe de má vontade, atabalhoadamente. Essa calma teimosia punha o rapaz fora de si.

Lá fora o Sol subia. Hercule Poirot afastou as cortinas. A claridade entrou no aposento.

A face de Hugh tinha-se recomposto. A voz tornou-se normal. Compreendo... disse com tristeza.

Então levantou-se. Sorriu e espreguiçou-se. A voz era quase natural quando disse:

Está uma bonita manhã, não está? Apetece-me ir para o bosque caçar qualquer coelho.

Saiu do quarto e todos ficaram a olhá-lo. Então o almirante arremeçou-se para a frente. Frobisher segurou-lhe o braço tentando impedi-lo de seguir o filho.

Não, Charles, não. É o melhor caminho a seguir. Para ele, pobre diabo, e para as outras pessoas.

Diana, soluçando, deixou-se cair em cima da cama. O almirante Chandler, com voz sumida, disse:

Tens razão, George! Eu sei que tens razão! O rapaz está decidido...

Frobisher, com a sua voz igualmente abafada, disse:

Ele é um homem!

Fez-se um momento de silêncio e Chandler, depois, exclamou:

Diabos levem isto! Onde está aquele maldito estrangeiro?

Na sala de armas Hugh tinha tirado a espingarda do suporte e estava a carregá-la quando sentiu no ombro a mão de Poirot.

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Hercule Poirot disse num estranho acento de autoridade:

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Não!

Hugh olhou-o espantado e disse com voz fraca e ao mesmo tempo irritada:

Tire as mãos de cima de mim. Não se meta neste assunto. Tem de acontecer um acidente, digo-lhe eu! É o único caminho a seguir.

Outra vez Poirot repetiu a mesma ordem autoritária:

Não!

Não imagina que acidente poderia ter acontecido se a porta do quarto de Diana não estivesse fechada. Tinha-lhe cortado a garganta. A garganta de Diana, com esta navalha!

Imagino que nada disso aconteceria. Você não mataria Miss Marbely.

Não matei eu o gato?

Não! Você não matou o gato, você não matou o papagaio, você não matou as ovelhas!

Hugh olhou espantado para ele e perguntou:

O senhor é que está doido ou sou eu? Poirot replicou:

Nenhum de nós está doido!

Nesse momento o almirante Chandler e o coronel entraram, seguidos de Diana.

Hugh disse numa voz fraca e abafada:

Este rapaz diz que eu não estou doido... Poirot acrescentou:

Tenho a felicidade de lhe dizer que você está inteira e completamente em seu perfeito juízo.

Hugh riu. Era o riso de um doido vulgar.

Isto é diabolicamente engraçado. Estar são e cortar o pescoço dos carneiros e de outros animais? Estava são quando matei o papagaio e quando matei o gato?

Garanto-lhe que não matou os carneiros, nem o papagaio, nem o gato.

Quem foi então?

Alguém que tem trazido no coração o desejo de fazê-lo passar por doido. Alguém que lhe tem dado um narcótico muito enérgico. E a faca

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ensanguentada ou a navalha de barba têm sido postas na sua mão por alguém que depois se lava na sua bacia.

Com que fim?

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Para que você fizesse aquilo que ia fazer quando eu o fiz parar.

Hugh ficou espantado! Poirot virou-se para o coronel Frobisher e disse:

Coronel Frobisher, o senhor viveu muitos anos na índia. Nunca encontrou casos em que as pessoas se tornam completamente enlouquecidas pela administração de drogas?

A face do coronel Frobisher iluminou-se ao responder:

Nunca encontrei nenhum caso desses, mas ouvi falar repetidas vezes. A intoxicação com datura acaba por enlouquecer as pessoas. Exactamente! Bem, o princípio activo da datura é muito semelhante, senão é o mesmo, ao do alcalóide atropina que é também extraído da beladona. Os compostos de beladona são vulgares e o próprio sulfato de atropina é livremente receitado no tratamento dos olhos. Duplicando a receita e aviando-a em lugares diferentes, pode obter-se grande quantidade de atropina sem despertar suspeitas. O alcalóide pode ser extraído e então misturado, por exemplo, a um creme de barbear. Aplicado externamente, pode causar efusão de sangue e ardor enquanto se faz a barba, e assim a droga está continuamente entrando no organismo. Pode produzir certos sintomas, como secura da boca, dificuldade de engolir, alucinação, visão dupla, todos os sintomas, de facto, que Mr. Chandler tem apresentado.

Virou-se para o rapaz e continuou:

E para lhe tirar todas as dúvidas do espírito, posso dizer-lhe que isto não é uma suposição mas um facto. O seu creme de barbear está fortemente impregnado de sulfato de atropina. Examinei uma bisnaga e tirei a prova.

Pálido, chocado, Hugh perguntou:

Quem fez isso? Poirot respondeu:

É o que eu estou investigando desde que aqui cheguei. Tenho estado a procurar qual a razão para um assassínio. Diana Marbely lucraria financeiramente com a sua morte, mas eu não a considero suspeita.

Hugh teve um impulso.

Eu não poderia esperar tal coisa!

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Encarei outra hipótese aceitável. O eterno triângulo: dois homens e uma mulher. O coronel Frobisher estava apaixonado por sua mãe...

O almirante interrompeu-o e pôs-se aos gritos:

George? George? Eu não acredito uma coisa dessas!

Hugh, com um aceno de incredulidade, perguntou:

Quer dizer que o seu ódio podia atingir um filho? Em certas circunstâncias, sim! respondeu Poirot. Frobisher gritou, alucinadamente:

É uma danada mentira! Não o acredites, Charles. Chandler esquivou-se e murmurou para consigo:

A datura... índia! Sim, eu vejo... E eu nunca tinha suspeitado de veneno. Não, com a loucura na família...

Mais oui! A voz de Poirot ergueu-se alta e cortante. Loucura na família! Um louco dominado pelo desejo de vingança, hábil, como os loucos são, escondeu esta loucura durante anos. Girou em volta de Frobisher e continuou; Mon Dieu O senhor devia saber, o senhor deve ter suspeitado que Hugh era seu filho. Porque nunca lhe disse isso?

Frobisher, sufocado, começou a gaguejar:

Eu não sabia, eu não tinha a certeza... Bem vê, Carolina procurou-me uma vez, estava magoada com qualquer coisa, estava numa grande aflição. Eu não sei, eu nunca soube de que se tratava. Ela e eu perdemos a cabeça. Depois de termos prevaricado uma vez, continuámos, continuámos a encontrar-nos. Eu, bem! Eu suspeitava, mas não tinha a certeza. Carolina nunca me disse nada que fizesse suspeitar que Hugh era meu filho. E então, quando esta manifestação de loucura apareceu, tudo estava regulado, pensei.

Poirot disse:

Sim, tudo estava regulado! Mas nunca notou na expressão do rapaz, na maneira de franzir as sobrancelhas no mesmo jeito herdado de si. Mas Charles Chandler viu. Viu há anos e ficou conhecendo a traição da esposa. Penso que ela tinha medo do marido, tinha começado a dar indícios de loucura. E foi isso o que a levou para os seus braços. Para os braços de quem ela sempre gostou. Charles Chandler planeou a vingança. A esposa morreu num acidente de barco. Ambos estavam sós no barco e

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ele soube como o acidente se deu. Então, começou a alimentar o seu ódio concentrado contra o rapaz que usava o seu nome mas que não era seu filho. As suas histórias da índia puseram-lhe na ideia o envenenamento com datura. Hugh, lentamente, tornar-se-ia louco. Levado ao mesmo estado a que o desespero da sua vida o tinha levado a ele. Foi Chandler quem matou os carneiros nos campos. Mas seria Hugh a sofrer a condenação. Calou-se. Pouco depois prosseguiu:

Sabe quando é que eu suspeitei? Quando o almirante se mostrou tão contrário a que o filho fosse observado pelo médico. Em Hugh a relutância em ser observado era compreensível. Mas o pai! Podia haver um tratamento que salvasse o filho; havia, portanto, milhares de razões para que ele consultasse o médico. Mas não, não devia ser permitido ao médico ver Hugh porque podia descobrir-se que Hugh estava são!

Hugh disse muito calmamente:

São... Eu estou são? E encaminhou-se para Diana.

Você é perfeitamente normal. Não há taras na família disse Frobisher.

Hugh... exclamou Diana.

O almirante Chandler pegou na espingarda de Hugh e disse:

Tudo isto é uma série de disparates! Vou dar uma volta pelo bosque e tentar apanhar algum coelho!

Frobisher atirou-se para a frente mas Poirot segurou-o:

O senhor disse, há pouco ainda, que era o melhor caminho...

Hugh e Diana saíram da sala dando-se as mãos.

Os dois homens, o inglês e o belga, viram o último dos Chandlers atravessar o parque e encaminhar-se para o bosque.

Então, eles ouviram um tiro...

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VIII OS CAVALOS DE DIOMEDESO telefone tocou.

Hercule Poirot, é o senhor?

Hercule Poirot reconheceu a voz do jovem Dr. Stoddart. Poirot gostava de Michael Stoddart, gostava da tímida fraqueza do seu rir sardónico, divertia-se com o ingénuo interesse que ele dedicava aos assuntos de crime. E respeitava-o como trabalhador incansável e intransigente nas coisas da sua profissão.

Eu não queria incomodá-lo... a sua voz era hesitante.

Mas há alguma coisa que o apoquente? sugeriu Poirot.

Exactamente! A voz de Michael Stoddart parecia alterada. Há qualquer coisa!

He bien! Que posso, então, fazer por si, meu amigo?

A voz de Stoddart soava desconfiada. Gaguejava um pouco quando respondeu:

Eu suponho que deve ser uma coisa importante. Para me levar a pedir-lhe que passe por aqui a esta hora da noite... Mas estou um tanto atrapalhado.

Certamente irei. Está em sua casa?

Não! Na verdade, estou em Mews, que fica um pouco mais longe. Conningby Mews. Número 17. Pode na verdade aqui chegar? O meu reconhecimento será eterno!

Vou imediatamente respondeu Poirot.

Hercule Poirot caminhava ao longo da sombria Mews, olhando para cima, para os números das portas. Passava da uma hora da manhã e a maior parte dos habitantes de Mews parecia ter ido para a cama; apenas havia luz numa ou duas janelas.

Assim que alcançou o número 17, a porta abriu-se e o Dr. Stoddart apareceu olhando para fora.

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Bom amigo! disse ele. Tenha a bondade de subir, sim?

Um pequeno lance de degraus semelhante a uma escadaria dava acesso ao andar superior. Aqui, à direita, havia uma grande e confortável sala com divãs, maples triangulares, almofadas prateadas e uma grande quantidade de copos e garrafas.

Reinava certa confusão e por toda a parte se viam pontas de cigarros e muitos copos partidos.

Ah! disse Poirot. Mon cher Watson, deduzo que houve aqui uma grande reunião!

Foi uma boa reunião disse Stoddart contrafeito. Uma reunião que eu lhe contarei!

O senhor então não fazia parte?

Não! Estou aqui unicamente no uso da minha profissão.

Que sucedeu?

Esta casa pertence a uma mulher chamada Patience Grace, Mrs. Patience Grace.

Isso lembra disse Poirot um encantador nome antigo, oriental.

Não há nada de encantador ou de oriental em Mrs. Grace. Ela tem boa aparência, sob certo aspecto. Já teve dois maridos e agora vive com um rapaz que ela desconfia que procura abandoná-la. Começaram esta reunião bebendo e terminaram com a droga cocaína, para empregar a expressão apropriada. Cocaína é a substância que começa por fazer que as pessoas se sintam grandes e que tudo se passa num agradável jardim. Excita as pessoas e estas sentem-se com uma capacidade duplicada. Tomada em grandes doses, a cocaína provoca grande excitação mental, desilusões e delírio. Mrs. Grace teve uma violenta questão com o rapaz, aliás um tipo antipático chamado Hawker. Resultado: ele deixou-a naquela altura e ela debruçou-se da janela e alvejou-o com um revólver que qualquer pessoa teve a imprevidência de deixar em casa dela.

Hercule Poirot franziu as sobrancelhas.

E atingiu-o?

Não! A bala foi parar a umas jardas de distância, posso dizer-lhe. Atingiu um miserável vagabundo que ia subindo Mews e que andava a remexer nos barris do

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lixo. Apenas na parte superior do braço. Levantou-se um burburinho, é claro! A multidão empurrou-o para aqui impressionada com o sangue que jorrava do braço do homem e veio procurar-me.

Sim?

Tratei de fazer-lhe logo um penso. Não era nada de gravidade. Então um ou dois dos convidados de Mrs. Grace encarregaram-se do assunto e no fim o homenzito consentiu em aceitar um par de notas e disse que não pensaria mais no caso. O pobre diabo lá seguiu... Foi uma grande sorte!

E o senhor?

Eu tive mais algum trabalho a fazer. Mrs. Grace estava, naquela altura, com um autêntico ataque de histerismo. Encarreguei-me dela e levei-a para a cama. Havia ainda outra rapariga, muito nova, que também tive de tratar. Mas nessa altura qualquer pessoa saiu furtivamente o mais depressa que pôde. Fez-se um silêncio.

Então disse Poirot o senhor teve tempo para pensar na situação.

Exactamente disse Stoddart. Se se tratasse de uma vulgar pândega de bêbados não podia terminar assim. Mas com a droga é diferente!

O senhor está bem seguro dos factos?

Oh, absolutamente! Não há que errar. É por certo cocaína. Encontrei alguma numa caixa de laca. Eles cheiram-na, assim, o senhor sabe. A questão é saber de onde ela vem. Recordo-me do senhor me ter dito, no outro dia, que uma nova onda de cocainómanos aumentou os adeptos da droga.

Hercule Poirot acrescentou:

A polícia deve ter interesse em saber da reunião desta noite.

Michael Stoddart disse desanimado:

É justamente isso...

Poirot olhou para ele, subitamente interessado, e disse:

Mas o senhor não está lá muito ansioso que a polícia tome conta do caso?

Michael Stoddart murmurou:

Podem ser envolvidas pessoas que estão inocentes... Seria muito desagradável para elas!

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É Mrs. Patience Grace que o preocupa tanto?

Santo Deus, não! Ela é tão sabida como aparenta sê-lo!

É, então, a outra rapariga? perguntou Poirot. Stoddart respondeu:

É claro, ela é também experiente, de certo modo! Parece-me que ela se descreve a si própria como muito sabida. Mas é ainda muito nova. Um pouco selvagem, isto é, precisamente uma loucura de rapariga.,. Meteu-se numa embrulhada destas por pensar que era original ou moderno ou qualquer coisa parecida.

Um ligeiro sorriso acudiu aos lábios de Poirot, que disse:

E o senhor já tinha encontrado essa rapariga alguma vez antes desta noite?

Michael Stoddart abanou a cabeça. Parecia muito embaraçado:

Andei atrás dela, em Mertonshire. No Hunt Ball. O pai é um general reformado, de carácter irascível, sempre a falar como se fosse um grande senhor. Tem quatro filhas e são todas um pouco selvagens. Guiadas por um pai desta natureza era o que se podia esperar. E vivem num distrito mau, perto de uma fábrica de munições, uma terra cheia de dinheiro e sem nenhum dos antigos sentimentos da gente que trabalha: uma população rica e em grande parte cheia de vícios. As raparigas têm vivido num mau ambiente!

Poirot olhou pensativamente para ele durante alguns minutos e depois disse:

Percebo agora porque é que o senhor deseja a minha presença. Deseja que me encarregue do assunto?

Pode fazê-lo? Sinto que devia fazer qualquer coisa a este respeito mas, confesso, gostava de conservar Sheila Grant afastada da publicidade, caso pudesse ser.

Poderei ver a rapariga?

Venha comigo!

Encaminharam-se para o quarto. Uma voz agitada e vinda da porta da frente chamava:

Doutor, pelo amor de Deus, doutor, sinto que vou endoidecer.

Stoddart entrou no quarto. Poirot acompanhou-o. O quarto de cama era um verdadeiro caos: pó-de-arroz

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espalhado pelo chão, boiões e frascos por toda a parte, os vestidos em desordem... Na cama estava uma mulher de cabelos loiros pintados, com um ar vago e um rosto vicioso. Uma mulher que gritava:

Tenho insectos a rastejarem por cima de mim... Tenho! Juro que tenho! Vou ficar doida. Pelo amor de Deus, dê-me qualquer coisa.

O Dr. Stoddart conservou-se junto da cama. Poirot saiu sossegadamente do quarto. Em frente havia outra porta. Abriu-a e entrou. Era um quarto pequeno, atravancado de mobília. Na cama, uma esbelta e juvenil figura, jazia emocionada. Poirot, nos bicos dos pés, aproximou-se da cama e olhou para a rapariga: tinha uma cabeleira negra, um rosto comprido e pálido e era nova, muito nova. Um raio de luz bateu nas pálpebras da rapariga. Abriu os olhos espantados, assustados. Olhou fixamente, sentou-se e sacudiu a cabeça esforçando-se por atirar para traz a espessa juba dos seus cabelos negros. Parecia uma potra assustada. Encolheu-se um pouco como costumam fazer os animais selvagens quando receiam que qualquer estranho lhes tire a comida.

Quem é o senhor? perguntou a rapariga. E a sua voz era fria e sacudida.

Não se assuste, mademoiselle.

Onde está o Dr. Stoddart?

Este entrou no quarto. Ao mesmo tempo a rapariga disse com uma expressão de alívio na voz:

Oh, você está aqui! Quem é este homem?

É um dos meus amigos, Sheila. Como se sente agora?

Terrivelmente! Muito quebrada... Para que tomei eu aquela droga?

Eu, no seu lugar, não tornaria a fazer tal coisa disse o médico.

Eu... eu não tornarei! Poirot perguntou-lhe então:

Quem lhe deu aquilo a tomar?

A rapariga abriu mais os olhos; o lábio superior franziu-se um pouco:

Estava aqui, na reunião. Todos experimentámos. A princípio foi maravilhoso.

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Mas quem trouxe isso para aqui? insistiu Poirot.

Ela abanou a cabeça:

Não sei... Pode ter sido Tony, Tony Hawker. Mas na realidade não sei nada a esse respeito.

Foi a primeira vez que tomou cocaína? perguntou Poirot amavelmente.

Ela abanou a cabeça em sinal afirmativo.

E será melhor que seja a última disse bruscamente Stoddart.

Sim! Suponho que sim, mas foi maravilhoso.

Agora repare nisto, Sheila Grant disse o Dr. Stoddart. Eu sou médico e sei o que estou dizendo. Uma vez que esta droga tome conta de si você tornar-se-á inacreditavelmente miserável. Tenho visto muitos a quem tal aconteceu. A cocaína arruina as pessoas; arruina-lhes o corpo e a alma. O álcool não passa de um simples piquenique comparado com essa droga. Acabe com isso imediatamente! Acredite-me; isto não tem graça nenhuma. Que pensa que poderá dizer a seu pai quando ele souber da história desta noite?

O pai? A voz de Sheila Grant elevou-se. O pai? E começou a rir. Estou a ver a cara do pai. Ele não deve saber nada disto que se passou esta noite.

Está muito bem disse Stoddart.

Doutor, doutor a voz queixosa de Mrs. Grace vinha do outro quarto.

Stoddart murmurou para consigo qualquer coisa pouco amável e saiu do quarto.

Sheila Grant fixou novamente Poirot. Estava confundida:

Quem é na verdade o senhor? Não estava na reunião?

Não, não estava na reunião! Sou amigo do Dr. Stoddart!

O senhor é médico, também? Não parece um médico!

O meu nome disse Poirot, diligenciando, como de costume, tornar esta simples declaração semelhante ao levantar do pano no teatro, na primeira representação o meu nome é Hercule Poirot!

Esta apresentação não produziu o seu efeito. Poirot

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entristeceu por ver que esta insensibilizada geração nova nunca tinha ouvido falar a seu respeito.

Mas era evidente que a rapariga já tinha ouvido falar nele. Estava espantada, emudecida. E fixava-o, fixava-o.

Costuma dizer-se, com ou sem justificação, que todas as pessoas têm um tio no Brasil.

Também se diz que todas as pessoas têm um primo em Mertonshire. Mertonshire fica a uma razoável distância de Londres; é um sítio onde se pode caçar e pescar e é perto de várias povoações pitorescas mas sossegadas; tem um bom sistema de redes de caminho-de-ferro e novas estradas que facilitam o tráfego automobilístico. Os criados arranjam-se, aqui, mais facilmente que em qualquer outro ponto rural das Ilhas Britânicas. Resultado: é praticamente impossível viver em Mertonshire se não se tiver um grande rendimento.

Hercule Poirot, porque era estrangeiro, não tinha nenhum primo na região, mas já tinha adquirido um grande círculo de amigos e não lhe era difícil ser convidado para visitar aquela parte do país. Tinha escolhido para se hospedar a casa de uma senhora amiga, cujo principal deleite era exercitar a língua falando dos vizinhos. O único inconveniente era que Poirot tinha de ouvir grandes histórias de pessoas que nada o interessavam antes de ouvir falar daquelas em que estava interessado.

As Grants? Oh, sim, são quatro. Quatro raparigas. Suponho que o pobre general não pode ter mão nelas. Que pode um homem fazer com quatro filhas? Lady Carnichel falava com eloquência.

Claro, que pode ele fazer? perguntou naturalmente Poirot.

Era um grande disciplinador, no exército, segundo ele diz. Mas estas raparigas derrotam-no. Não era assim, quando eu era nova. O velho coronel Sandys pediria reforços, para umas raparigas assim. Fez uma grande dissertação sobre as raparigas de Sandys e outras pessoas da sua juventude.

Penso disse Lady Carnichel voltando ao161

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primeiro tema isto é, não sei de qualquer coisa que haja realmente de mal a respeito destas raparigas. Suponho que são espíritos desempoeirados e que vão contra as convenções. Não é o que se costuma usar aqui. Nesta região não há aquilo a que se costuma chamar a sociedade da região. É tudo dinheiro, dinheiro, dinheiro! Não se pensa em mais nada nos nossos dias. E ouvem-se as histórias mais esquisitas! O que diz o senhor? Anthony Hawker? Oh, sim, conheço-o! É o que se chama uma pessoa muito desagradável. Mas aparentemente nadando em dinheiro. Costuma aqui vir caçar e oferece reuniões, reuniões muito caras e outras reuniões particulares, também... se é de acreditar no que se diz. Não que eu acredite, porque penso que o povo é muitas vezes mal-intencionado.

Parou por alguns segundos e, depois, prosseguiu:

Sempre se acredita o pior. O senhor sabe, tornou-se quase moda dizer que uma pessoa bebe ou toma drogas. Uma pessoa disse-me, no outro dia, que as raparigas se embriagavam. Na verdade, penso que não é bonito dizer-se isso. E se alguém tem uma maneira de ser diferente ou original diz-se logo que toma droga; ora, isto, também é antipático. Dizem isso a respeito de Mrs. Larkin. Se bem que eu não me interesse com a criatura, acho que isto não é senão falta de senso. Ela é uma grande amiga de Mr. Anthony Hawker. É íntima das Grants dizem que elas vampirizam os homens. Acredito que andem um pouco atrás dos homens, porque não? Isso é natural! E são todas elas umas interessantes raparigas!

Poirot fez uma pergunta:

Mrs. Larkin?

Meu caro senhor, não deve perguntar-me quem ela é. Quem é qualquer pessoa hoje em dia? Dizem que ela se diverte muito e que lhe correm bem os negócios. O marido era qualquer coisa na City. Morreu, não se divorciou. Não há ainda muito tempo que ela para aqui veio. Foi logo a seguir às Grants. Nós sempre pensámos que ela...

A velha Lady Carnichel interrompeu-se. Abriu a boca e os seus olhos cintilaram. Inclinando-se para a frente bateu nos nós dos dedos de Poirot com um aguçado

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corta-papéis que segurava na mão. E não se importando com a expressão de dor que o homem fez exclamou excitadamente:

É essa a razão, sem dúvida! É por isso que o senhor aqui está. O senhor não tem vergonha, o senhor é uma grosseira criatura. Insisto em que me conte tudo a esse respeito.

Mas que posso eu contar a esse respeito?

Lady Carnichel ia novamente agredir os dedos de Poirot que se livrou desviando-se para o lado.

Não se faça parvo, Hercule Poirot! Bem vejo o seu bigode tremer. Sem dúvida, é um crime que o traz aqui. E o senhor está a sondar-me vergonhosamente. Agora deixe-me ver, quem será o assassinado? Quem foi que morreu ultimamente? Apenas a velha Luísa Gimmore. Tinha oitenta anos e também uma hidropisia. Não pode ser essa. O pobre Leo Staverson? Esse partiu o pescoço numa caçada e estava metido em gesso. Esse não pode ser! Talvez não haja assassínio. Que pena! Não posso lembrar-me de nenhum especial roubo de jóias, ultimamente... Talvez o senhor ande na pista de algum criminoso... Será Beryl Larkin? Terá ela envenenado o marido? Talvez seja o remorso que a traz tão aérea!

Madame, madame gritou Poirot. A senhora vai muito depressa. Espere um pouco.

O senhor veio aqui por qualquer coisa, Hercule Poirot!

A senhora está familiarizada com os clássicos, mad ame?

Que têm os clássicos a ver com isto?

Estão bastante relacionados com isto tudo. Eu invejo o meu grande predecessor. Hércules. Um dos Doze Trabalhos de Hércules consistiu em domar os Cavalos Selvagens de Diomedes.

Não me diga que vem aqui para treinar cavalos. Na sua idade e ainda por cima com os seus belos sapatos de cabedal! Não posso pensar que alguma vez na vida o senhor tenha sido um cavaleiro!

Os cavalos são simbólicos, madame! Foram os cavalos selvagens que comeram a carne humana.

Até que ponto esses clássicos eram desagradáveis...

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Sempre tenho pensado que estes antigos Gregos e Romanos eram muito antipáticos. Não posso compreender porque é que os padres são tão apaixonados pelos clássicos uma gente que nunca se entende o que querem dizer e que sempre me tem parecido ser um assunto muito impróprio para os clérigos. Tanto incesto, tantas estátuas nuas isso a mim não faz diferença mas o senhor sabe como os padres são: ficam muito transtornados se as raparigas vão para a igreja sem meias. Deixe-me ver... Onde é que eu ia? Ora esta! Não estou bem certa!

Suponho, se não estou em erro, que a senhora estava justamente a contar-me que Mrs. Larkin tinha assassinado o marido! Ou talvez que Anthony Hawker seja o assassino de Birghton?

A velha olhou para Poirot cheia de esperança, mas a face deste conservou-se impassível:

Poderia ser alguma falsificação! Vi Mrs. Larkin no banco, uma destas manhãs, e notei que tinha justamente acabado de rebater um cheque de cinquenta libras. Pareceu-me, ao mesmo tempo, que havia muito dinheiro em caixa. Oh! Não! Não, isto não está certo; se ela fosse uma falsária teria que pagar por isso, não é verdade? Hercule Poirot, se o senhor continua aí sentado a olhar para mim como um mocho e sem dizer nada atiro-me a si.

Deve ter um pouco de paciência disse Poirot.

Ashley Loddge, a residência do general Grant, não era uma casa muito grande. Ficava situada na encosta de um monte, tinha bons estábulos e um jardim afastado e um pouco ao abandono.

No interior, era aquela espécie de casa a que se pode chamar bem mobilada. Budas de pernas cruzadas olhavam de revés de dentro dos seus nichos; tabuleiros de bronze de Benares e mesas atravancavam o espaço. Elefantes em fila guarneciam o friso da lareira e bronzes mais trabalhados adornavam as paredes. No meio desta mistura anglo-indiana, o general estava recostado, com

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o fato um pouco em desalinho, numa grande cadeira de braços, com uma perna envolvida em ligaduras repousando a outra numa cadeira.

Gota explicou ele. Sempre tive gota, Poirot. Provoca um grande mal-estar! Tudo por culpa de meu pai. Toda a vida bebeu vinho do Porto, e o meu avô a mesma coisa. E quem paga sou eu. Deseja uma bebida? Toque a campainha para um dos criados o vir servir.

Um criado de turbante apareceu. O general dirigiu-se-lhe em hindu e mandou vir whisky e soda. Quando Abdul chegou serviu-lhe uma larga dose o que fez protestar Poirot.

Não posso acompanhá-lo, M. Poirot, tenho medo. Era para o general o suplício de Tântalo. O médico diz que isto é um veneno que me entra no organismo. Suponho que ele não percebe de nada. Os médicos são uns ignorantes chapados. Só lhes agrada privar um homem de todo o seu ali mento e das suas bebidas e obrigá-lo a comer papas para ficar como um arenque fumado. Peixe fumado puh!

Na sua indignação, o general, sem reparar, moveu o pé doente o que o fez soltar um grito de dor acompanhado de uma expressão magoada.

Desculpando-se, na sua linguagem, disse:

Não passo de um urso! Um urso com a cabeça partida é o que sou! As minhas filhas tratam-me muito bem quando estou com a gota. Não tenho de que censurá-las! Não conhece nenhuma delas?

Já tive o prazer de conhecer uma delas. O senhor tem várias filhas, não tem?

Tenho quatro respondeu tristemente o general. Nem sequer um rapaz! Acrescentou piscando os olhos. É uma preocupação, nos dias que correm, só ter filhas!

Ouvi dizer que eram todas encantadoras.

Não são de todo mal, lá isso não! Imagine o senhor: nunca sei o que elas fazem. É muito difícil controlar as raparigas, hoje em dia. Há muita condescendência, demasiada condescendência por toda a parte. Que pode um homem fazer? Não posso fechá-las à chave, não é assim?

Elas são muito populares na vizinhança, creio eu.

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Alguns desses velhos vizinhos não gostam delas. Um homem tem de ser cauteloso. Uma grande quantidade de lobos vestidos de cordeiros ronda por aqui. Uma destas viúvas de olhos azuis quase me ia apanhando. Costuma aparecer por aqui e rosnar como um gatinho: Pobre general Grant, deve ter tido uma vida muito interessante! O general pestanejou e comprimiu o nariz com o dedo. Isto é muito claro, M. Poirot. Bem, suponho que não há pior lugar no mundo. Isto é muito adiantado e barulhento para o meu gosto. Gostava do campo quando ele era campo: sem motores, sem jazz, sem esta infernal e eterna rádio. Nunca desejei ter rádio em casa, e as raparigas sabem isso muito bem. Um homem tem o direito de ter um pouco de paz na sua própria casa.

Habilmente, Poirot levou a conversa a incidir sobre Anthony Hawker.

Hawker? Não conheço! Oh! Sim! Parece-me que sim! Um rapaz de aspecto grosseiro, com os olhos muito junto do nariz? Nunca confiei num homem que baixe o olhar quando nos fala.

É um dos amigos de sua filha, não é?

Não estava ao facto disso! As raparigas nunca me disseram nada!

As suas espessas sobrancelhas uniram-se por cima do nariz e os seus perfurantes olhos azuis cravaram-se no rosto de Poirot.

Diga-me, M. Poirot: que há a esse respeito? Desconfio que o senhor veio aqui para me contar qualquer coisa.

Poirot disse vagarosamente:

Será difícil dizer! Talvez eu também não o saiba. Apenas posso afirmar-lhe isto: a sua filha Sheila, talvez todas as suas filhas, têm alguns amigos pouco recomendáveis.

Estão indo por mau caminho? Já receava isso! Ouvia aqui uma palavra, ali outra. Olhou impressionado para Poirot. Mas que devo eu fazer, M. Poirot, que devo eu fazer?

Poirot abanou a cabeça perplexo. E o general continuou:

Qual é o mau caminho que elas seguem? Poirot respondeu com outra pergunta:

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Já reparou, general Grant, se alguma das suas filhas tem andado de mau humor, excitada ou deprimida, nervosa, de temperamento desigual?

Diabos o levem! O senhor está a falar como se fosse um médico! Não! Não notei nada do que diz!

Isso é uma felicidade disse Poirot gravemente.

Que diabo significa tudo isto?

Drogas!

O quê? a pergunta saiu-lhe num rugido. Poirot naturalmente, cadenciadamente, continuou:

Houve alguém que tentou tornar sua filha Sheila numa adepta das drogas. O hábito da cocaína adquire-se rapidamente. Uma semana ou duas é o bastante. Uma vez adquirido é-se capaz de tudo, paga-se tudo. para ter sempre um fornecimento de cocaína. E é fácil imaginar que grande negócio a pessoa que fornece esta droga poderá fazer.

Poirot ouviu em silêncio as terríveis e coléricas blasfémias que saíam dos lábios do velho. Era como se deitasse a casa abaixo com a descrição do que ele, general, seria capaz de fazer se encontrasse o tratante que tentara viciar Sheila nos estupefacientes.

Poirot interrompeu-o para dizer:

O que nós temos a fazer, primeiro, como diz a sua admirável Mrs. Beaton, é caçar a lebre. Uma vez que tenhamos apanhado o fornecedor de cocaína enviar-lho-emos com todo o prazer, general.

Levantou-se, e depois de ter tropeçado numa das mesas e de ter retomado o equilíbrio, fez uma mesura ao general e murmurou:

Mil perdões! E peço-lhe, general, peço-lhe que não diga a suas filhas, seja o que for a este respeito.

O quê? Vou mas é arrancar-lhes a verdade! É o que eu vou fazer!

É isso exactamente o que não deve fazer. Elas nunca lhe dirão a verdade.

Mas, que diabo...

Asseguro-lhe, general Grant, que tem de se dominar. Isso é vital! Compreende? Vital!

Bem! Entrego isso ao seu cuidado resmungou o general.

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Estava vencido mas não convencido, Hercule Poirot caminhou com cuidado por entre os bronzes de Benares e saiu.

A sala de Mrs. Larkin estava cheia de gente.

Mrs. Larkin preparava um cocktail numa mesa lateral. Era uma mulher alta, de cabelo castanho-claro enrolado atrás, sobre o pescoço. Os olhos eram cinzento-azulados, com grandes pupilas negras. Movia-se com agilidade, com uma espécie de graça sinistra. Parecia ter apenas entrado na casa dos trinta. Porém, uma demorada observação descobriria as rugas aos cantos dos olhos, provando que ela era dez anos mais velha do que aparentava. Hercule Poirot fora ali levado por uma animada senhora de meia-idade, amiga de Mrs. Carnichel. Poirot serviu-se de um cocktail e depois ofereceu outro a uma rapariga que estava sentada à janela. A rapariga era pequena e bonita; no seu rosto rosado pairava uma expressão de desconfiada ingenuidade. Poirot notou que a rapariga estava desconfiada.

Continua bem disposta, mademoiselle? perguntou Poirot.

A rapariga abanou a cabeça e bebeu. Depois perguntou secamente:

Conhece a minha irmã?

A sua irmã? Então, a senhora é uma das Miss Grants?

Sou Pamp Grant!

E onde está a sua irmã?

Foi à caça. Deve regressar cedo!

Conheci sua irmã em Londres.

Eu sei!

Ela contou-lhe?

Pamp abanou a cabeça, e perguntou com dureza:

Sheila estava nalgum aperto?

Então ela não lhe contou tudo? A rapariga perguntou:

Tony Hawker também lá estava?

Antes de Poirot responder a porta abriu-se e Hawker

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e Sheila entraram na sala. Envergavam trajes de caça e Sheila tinha o queixo salpicado de lama.

Hallo, minha gente! Chegámos a horas de uma bebida? A garrafa de Tony está seca.

Poirot murmurou:

Falai no anjo... Pamp Grant acrescentou:

No demónio, é o que o senhor quer dizer!

Acha que Hawker é um demónio? Beryl Larkin aproximou-se dizendo:

Você já está aqui, Tony? Veio da mata de Gelert? Aproximou-se do rapaz e levou-o habilmente para um sofá, junto da lareira. Poirot viu-o virar a cabeça e dirigir um olhar para Sheila antes de acompanhar Mrs. Larkin. Sheila já tinha visto Poirot. Hesitou um minuto e depois dirigiu-se para a janela, perguntando abruptamente:

Então foi o senhor quem esteve ontem lá em casa?

O seu pai falou-lhe nisso?

Abdul fez-me a sua descrição. E eu adivinhei.

O senhor foi ver o meu pai? perguntou Pamp.

Fui, sim. Temos alguns amigos comuns.

Não acredito isso! retorquiu Pamp secamente.

Porque não acredita que seu pai e eu possamos ter amigos comuns?

A rapariga corou.

Não seja estúpido! Desconfio que na verdade não foi essa a razão. Voltou-se para a irmã e perguntou-lhe:

Porque não dizes nada, Sheila? Sheila sobressaltou-se e disse:

Não... não é nada com Tony Hawker, pois não?

Que poderia ser? perguntou Poirot.

Sheila corou e encaminhou-se para a sala onde estavam os outros convivas.

Pamp disse com súbita veemência mas baixando a voz:

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Eu não gosto de Tony Hawker! Há, nele, qualquer coisa de sinistro. Nele e também em Mrs. Larkin, quero eu dizer. Olhe agora para eles.

A cabeça de Tony estava junto da de Mrs. Larkin. Parecia que estavam discutindo. A voz dela elevou-se por um momento:

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...mas eu não posso esperar. Preciso disso. agora!

Poirot comentou com um sorrizinho:

Lês femmes! Seja o que for, elas sempre querem isso agora, não é assim?

Pamp não respondeu. A sua face mudou de expressão. Nervosamente, a rapariga amarrotava a camisola de tweed.

Poirot, num tom de conversa, disse-lhe:

A senhora é muito diferente de sua irmã, mademoiselle!

Pamp virou a cabeça impacientada com aquela banalidade e perguntou:

M. Poirot, que é que Tony deu a Sheila? Porque é que ela se está a tornar assim tão diferente?

Poirot olhou-a de frente:

Nunca tomou cocaína. Miss Grant? Ela abanou a cabeça:

Oh, não! Então aquilo é...? Cocaína? Mas isso não é muito perigoso?

Sheila Grant encaminhou-se para eles com um copo de bebida fresca na mão:

O que é que é perigoso?

Falávamos dos efeitos da cocaína, essa droga que lentamente mata a inteligência e o espírito destruindo tudo o que há de verdadeiro e de bom no ser humano.

Sheila Grant susteve a respiração. A bebida caiu-lhe da mão e espalhou-se no soalho. Poirot continuou:

O Dr. Stoddart explicou-lhe claramente, penso eu. que isso é a morte em vida. É muito fácil de experimentar mas muito difícil de nos libertarmos quando se adquire o vício. A pessoa que deliberadamente se aproveita da miséria e da degradação das outras pessoas é pior que um vampiro ávido de carne e de sangue.

Poirot virou as costas. Atrás de si ouviu a voz de Pamp dirigindo-se a Sheila. E ouviu um murmúrio, um fraco murmúrio de Sheila Grant. Mas tão baixo que dificilmente pôde entender a frase inteira.

O frasco...

Poirot despediu-se de Mrs. Larkin e encaminhou-se para a sala de entrada. Em cima da mesa via-se um frasco juntamente com uma peça de caça e um chapéu.

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Levantou-o para ver. Tinha as iniciais: A. H. Poirot murmurou para consigo:

O frasco de Tony está vazio!

Sacudiu-o com cuidado mas não ouviu o menor som de qualquer líquido. Tirou a tampa.

O frasco de Tony não estava vazio, estava cheio de um pó branco...

Hercule Poirot estava no terraço de Lady Carnichel e conversava com uma rapariga.

Você é muito nova, mademoiselle. Quer parecer-me que você e as suas irmãs não sabem o que têm estado a fazer. Tal como os cavalos de Diomedes. têm estado a alimentar-se de carne humana.

Sheila encolheu os ombros e começou a soluçar:

Tudo isto foi horrível. O que o senhor me diz é horrível! E ainda por cima é verdade. Eu nunca tinha pensado nisso antes daquela noite em que o Dr. Stoddart me falou. Ele estava tão grave e foi tão sincero! Só então vi que terrível coisa estava fazendo... Nunca tinha pensado o que isso era. Oh! Era como beber de mais! Algumas pessoas pagam tudo por isso mas eu sinto que não é coisa que faça grande falta.

E agora? perguntou Poirot. Que pensa fazer?

Agora farei o que o senhor diz. Falarei com os outros. Não pensava que o Dr. Stoddart voltasse de novo a falar-me.

Pelo contrário! Tanto eu como o Dr. Stoddart estamos dispostos a ajudá-la a entrar no bom caminho. Pode acreditar-nos. Mas uma coisa terá de fazer-se. Há uma pessoa que deve ser eliminada, totalmente destruída, e só a senhora e as suas irmãs podem destruí-la. Esta é a sua verdade e só a sua verdade pode convencê-lo.

Refere-se a meu pai?

Não a seu pai, mademoiselle. Eu não lhe disse que Hercule Poirot sabe mais qualquer coisa? A sua fotografia foi facilmente reconhecida nos arquivos oficiais. E a senhora é Sheila Kelly, uma persistente contrabandista de cocaína que foi enviada para um reformatório

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há alguns anos. Quando voltou do reformatório aproximou-se de um homem que se chamava a si mesmo coronel Grant e ofereceu-lhe este posto, o lugar de uma filha. Ficariam cheios de dinheiro e poderiam desfrutar de uma bela vida. Todo o seu trabalho era introduzir a droga entre os seus amigos, fazendo sempre crer que qualquer outra pessoa lha tinha dado a si. As suas irmãs estão no mesmo caso. Fez uma pausa e continuou: Ouça agora, mademoiselle. Esse homem deve ser denunciado e condenado!

Sim, e depois?

Poirot tossiu e disse com um sorriso:

A senhora poderá dedicar-se ao serviço de Deus...

Michael Stoddart fixou Poirot e disse cheio de espanto:

O general Grant? O general Grant?

Precisamente, mon cher. Toda aquela mise-enscène, sabe, foi qualquer coisa verdadeiramente fantástica. Mas demasiado frágil. Os Budas, os bronzes de Benares, o criado indiano! E a gota também! Já ninguém sofre de gota. É velho, um velho que tem gota mas não é pai de raparigas de dezanove anos. Calou-se, sorriu e, depois, acrescentou:Todavia, andei acertadamente. Quando saía tropecei propositadamente no pé que sofria de gota e ele nem deu por isso. Oh, sim! É fantástico este general! Tout de même: é uma ideia brilhante! O bem conhecido general reformado do exército anglo-indiano, uma figura cómica que dizia sofrer do fígado e de temperamento irascível, não procurou fixar-se junto dos outros oficiais reformados do exército da índia! Oh! Claro! Foi para um meio afastado, muito mais dispendioso do que o meio onde costumam viver os oficiais reformados, um meio de gente rica, gente de Londres, por isso um bom local para o mercado. E quem suspeitaria das suas atraentes filhas? Se alguma coisa acontecesse, elas seriam consideradas vítimas, pela certa!

Qual foi exactamente a sua ideia quando foi ver esse miserável? Desconfiou dele?

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Sim! Eu apenas queria ver o que sucedia. Não foi preciso esperar muito tempo. As raparigas tinham os seus agentes. Anthony Hawker, uma das vítimas, era um intermediário. Sheila falou-me do frasco que estava no hall. Ela não podia dedicar-se àquilo, sozinha, nem a outra rapariga que rogou a praga e ficou zangada. A própria Sheila se atrapalhou:

Michael Stoddart, passeando de um lado para o outro, disse:

Não desejo perder de vista aquela rapariga. Tenho uma muito pessoal teoria a respeito das tendências criminosas dos adolescentes. Se encontrarem um bom ambiente familiar poderão emendar-se.

Poirot interrompeu-o dizendo:

Meu amigo, tenho o mais profundo respeito pela sua ciência e não duvido de que as suas teorias possam dar resultado no que diz respeito a Sheila Kelly, mas...

Com as outras também!

Com as outras, talvez! Pode ser! A única de quem estou certo que conseguiria alguma coisa é com Sheila. Pode domesticá-la, não duvido. Na verdade ela já está nas suas mãos...

Corando, Michael Stoddart disse:

Que falta de senso com que você fala, Poirot!

IX O CINTURÃO DE HIPÓLITAUma coisa leva a outra», como costuma dizer Hercule Poirot sem muita originalidade. Ele diz, também, que nunca houve coisa que confirmasse mais esta teoria do que o caso do Rubens roubado.

Poirot nunca se interessou muito por esse caso. Primeiro porque Rubens não é um pintor que ele aprecie, depois porque as circunstâncias do roubo foram bastante vulgares. Encarregou-se do assunto para ser agradável a Alexandre Simpson de quem iria ser amigo. E também por uma razão pessoal ligada com os clássicos!

Após o roubo, Alexandre Simpson mandou chamar Poirot e queixou-se. Aquele Rubens fora descoberto

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recentemente. Era uma obra-prima desconhecida mas de cuja autenticidade não havia dúvidas. Estava em exposição nas Galerias Simpson e tinha sido roubado em pleno dia. O caso dera-se quando os desempregados andavam prosseguindo na táctica de se deitarem nas encruzilhadas das ruas ou penetrarem no Ritz. Um grupo deles entrara nas Galerias Simpson empunhando o slogan impresso: A arte é uma luxúria. Alimentem os esfomeados! A polícia fora chamada, pois muita gente se aproximara com grande curiosidade; e foi, apenas, quando os manifestantes foram levados pelo braço da polícia, que se notou que o novo Rubens tinha sido inteligentemente cortado da moldura e também fora levado.

Era uma pintura pequena explicou Mr. Simpson. Um homem podia metê-la debaixo do braço e sair enquanto toda a gente olhava para aqueles miseráveis idiotas. Os homens em questão tinham pago pela parte inocente que tomaram no roubo. Tinham sido presos nas Galerias Simpson mas de nada souberam senão depois. Poirot achou aquilo uma partida engraçada, mas não viu o que poderia fazer. A polícia, declarou ele, devia ser encarregada de tratar de um roubo honesto.

Ouça-me Poirot disse Simpson eu sei quem roubou o quadro e para onde este vai.

Segundo o dono das Galerias Simpson, o quadro tinha sido roubado por uma quadrilha de bandidos internacionais no interesse de um milionário que compra trabalhos de arte a preços ridiculamente baixos. O Rubens iria para França secretamente e passaria a fazer parte das riquezas do tal milionário. A polícia inglesa e a francesa estavam de atalaia, mas Simpson era da opinião que elas podiam falhar e uma vez o quadro em poder desse imundo cão reavê-lo seria mais difícil. Os homens ricos têm que ser tratados com respeito. É nesta altura que você entra. A situação vai ser delicada e você é o homem que serve para isto.

Finalmente, mas sem entusiasmo, Hercule Poirot aceitou o caso. Concordou em seguir imediatamente para França. Não estava muito interessado nesta perseguição, mas devido a ela veio a ligar-se ao caso da estudante desaparecida, que na verdade o interessava bastante.

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A primeira opinião que ele ouviu sobre o caso foi a do inspector-chefe Japp, precisamente quando exprimia a sua aprovação na maneira do seu criado fazer as malas.

Ah disse Japp a caminho da França, não é verdade?

Meu caro disse Poirot, vocês na Scotland Yard estão sempre muito bem informados.

Japp riu-se com prazer e disse:

Nós temos os nossos espiões. Simpson apanhou-o para tratar do caso Rubens. Parece que ele não confia em nós. Bem, isso não tem importância. Mas o que eu quero que você faça é muito diferente. Como você, de qualquer maneira, vai a França achei que de uma cajadada poderia matar dois coelhos. O inspector-detective Ream trabalha em conjunto com os franceses. Você conhece o Heam! É bom rapaz, mas talvez sem grande imaginação. Gostava de ter a sua opinião sobre o assunto.

Mas de que assunto fala?

Uma criança que desapareceu! A notícia veio publicada nos jornais da tarde. Parece que foi raptada. É filha de um pastor que vive em Cranchester. O seu nome é Winnie King.

O inspector, depois, contou a história: Winnie ia a caminho de Paris para se matricular na selecta escola para crianças inglesas e americanas pertencente a Miss Pope. Winnie partiu de Cranchester no primeiro comboio e foi entregue ao cuidado de um membro da sociedade Elder Pisters, que estava encarregado de levar raparigas de uma estação para a outra. Foi entregue na estação de Victoria a Miss Brusham, a mão direita de Miss Pope, e na companhia de mais dezoito crianças que partiam da estação de Victoria. Dezanove crianças atravessaram o canal, passaram a alfândega em Calais, entraram no comboio para Paris e almoçaram no vagão-restaurante. Mas quando, perto de Paris, Miss Brusham as contou descobriu que somente dezoito estavam presentes.

Ah! fez Poirot movendo a cabeça: O comboio parou nalgum sítio?

Parou em Amiens, mas nessa altura as raparigas estavam no vagão-restaurante e todas afirmavam queWinnie estava com elas. Perderam-na de vista, conforme dizem, quando voltaram aos compartimentos.

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Isto é, ela entrou com as outras cinco raparigas na carruagem que compartilhavam. Não suspeitaram nada de anormal. Pensaram que ela tivesse ficado nalguma das outras carruagens reservadas.

Poirot perguntou:

Assim, quando foi, exactamente, a última vez que foi vista?

Cerca de dez minutos depois de o comboio ter deixado Amiens. E Japp tossiu suavemente. A última vez que foi vista foi quando entravam para o toilette.

Poirot murmurou:

Muito natural! E continuou: Mais alguma coisa?

Sim, uma coisa. A cara de Japp tornou-se severa. O chapéu da pequena foi encontrado ao lado dos carris, numa paragem aproximadamente a catorze milhas de Amiens.

Mas sem nenhum corpo?

Nenhum corpo!

E o que é que você pensa? perguntou Poirot.

É difícil saber o que pensar. Como não há sinais do corpo dela, ela não podia ter caído do comboio.

O comboio não parou em mais nenhum lugar depois de ter deixado Amiens?

Não! Afrouxou uma vez por causa de um sinal mas não parou. Não creio que o comboio tivesse afrouxado o bastante para alguém ter saltado sem se magoar. Está a pensar que a pequena se tomou de pânico e tentou fugir? Era o seu primeiro período escolar e, na verdade, podia ter sentido saudades da casa e da família. Mas, por outro lado, ela tinha quinze anos e meio, uma idade sensata. Além disso esteve de muito bom humor durante toda a viagem, falando sempre.

O comboio foi revistado?

Oh, sim! Revistaram-no de lés a lés, antes de chegar à estação Norte. A rapariga não estava no comboio, sem dúvida alguma! Calou-se, e depois, desesperado, acrescentou: Ela desapareceu no ar! Não faz sentido, Poirot. É de endoidecer!

Que espécie de rapariga era ela?

Vulgar, tipo normal, tanto quanto posso imaginar.

Eu quero dizer: como era ela?

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Tenho aqui uma fotografia. Não é, exactamente, uma beleza.

Passou o retrato a Poirot que o estudou em silêncio. A fotografia mostrava uma rapariga alta e magra, com duas tranças espetadas. Certamente não estivera em pose para ser fotografada; fora apanhada desprevenida. Estava a comer uma maçã. A sua boca aberta mostrava os dentes ligeiramente saídos, seguros com um aparelho.

Japp disse:

Parece-me uma criança simples, vulgar. Nestas idades elas são sempre bonitas. Ontem fui ao dentista. Vi, no Sketch, uma fotografia de Mareia Grant, a beleza desta estação. Lembro-me dela aos quinze anos, quando estive em Castle por causa daquele assalto nocturno. Sardenta, envergonhada, com os dentes saídos e os cabelos despenteados. Tornou-se uma beleza numa noite. Não sei como foi isso. Pareceu-me um milagre!

Poirot sorriu:

As mulheres são um sexo milagroso! Mudou de tom e perguntou:

Que sabe acerca da família da pequena? Há alguma coisa que interesse?

Japp abanou a cabeça:

Nada que possa ajudar. A mãe é inválida. O pobre reverendo Canon King é bastante velho. Jurou que a filha estava contentíssima em ir para Paris. Sempre desejou ir a Paris. Queria estudar pintura e música. As alunas de Miss Pope aprendem arte com A maiúsculo. Como você sabe a escola de Miss Pope é muito conhecida. Muitas raparigas da alta sociedade vão para lá. Miss Pope é restrita, muito careira um dragão! e bastante exigente na escola.

Poirot suspirou:

Eu conheço o género. E sobre Miss Brusham, a que se encarregou de levar as crianças para Inglaterra?

Não é muito inteligente! Atemoriza-se porque Miss Pope lhe põe todas as desculpas em cima.

Poirot disse pensativamente:

Não há nenhum rapaz no caso? Japp apontou para a fotografia.

Parece-lhe que pudesse ter um namorado?

Não! No entanto, apesar da sua aparência pode

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ter um coração romântico. Quinze anos não é cedo de mais!

Bem disse Japp. Se um coração romântico a levou a atirar-se do comboio, dedicar-me-ei à leitura de novelas para senhoras! Disse isto e olhou esperançadamente para Poirot. Depois, fixando-o, perguntou:

Nada lhe chama a atenção? Poirot abanou a cabeça e disse:

Por acaso não se encontraram os sapatos da rapariga perto dos carris, não?

Sapatos? Não! Porquê os sapatos? Poirot murmurou:

Era uma ideia!

Hercule Poirot descia para tomar um táxi quando o telefone tocou. Dirigindo-se ao aparelho, levantou o auscultador:

Sim?

Ouviu-se a voz de Japp:

Ainda bem que o apanhei.

Acabou tudo, caro amigo. Tinha um recado na Scotland Yard quando lá cheguei. A rapariga apareceu. Na estrada principal, a quinze milhas de Amiens. Está assombrada e não conseguem tirar-lhe uma história coerente. O médico diz que ela foi narcotizada. Contudo, está bem!

Poirot, vagarosamente, perguntou:

Então, já não precisa dos meus serviços?

É verdade! De facto, lamento tê-lo maçado! Japp riu-se e desligou.

Poirot não riu. Pousou o auscultador vagarosamente. Tinha um ar preocupado.

O inspector-detective Heam olhou curiosamente para Poirot e disse:

Oh! Nunca pensei que estivesse tão interessado!

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Poirot perguntou-lhe:

O inspector-chefe Japp comunicou-lhe que eu o consultaria sobre este assunto, não é verdade?

Heam concordou:

Disse-me que o senhor veio a Paris para tratar de outros assuntos e que nos daria uma ajuda neste mistério. Mas não esperei que viesse agora, pois já está tudo esclarecido. Pensei que estivesse atarefado com os seus próprios trabalhos.

Os meus assuntos podem esperar. É este assunto que me interessa. Você chamou-lhe um mistério e diz que já está esclarecido. Mas o mistério ainda continua.

Bem, senhor, encontrámos a pequena. E não está ferida, que é a principal coisa.

Mas isso não resolve o problema de como vocês a encontraram. Que é que ela diz? Foi observada por um médico, não é verdade? Qual é a opinião dele?

Diz que a rapariga foi narcotizada. Ainda estava com as ideias bastante confusas. Aparentemente não se recorda de quase nada depois que deixou Cranchester. O que aconteceu depois varreu-se-lhe da memória. O médico pensa que ela poderia ter tido leves contusões. Tem uma nódoa negra na cabeça. O médico diz que disso poderia resultar uma falta de memória completa.

O que é muito conveniente para alguém! O inspector Heam disse numa voz duvidosa:

Não acha que ela está a fingir?

E você?

Não tenho a certeza disso. É uma criança, um pouco infantil para a sua idade. Não! Não está a fingir.

Poirot abanou a cabeça:

Mas eu gostaria de saber como foi que ela saiu do comboio. Queria saber quem é o responsável disso e porque o fez.

Quanto ao porquê eu diria que foi uma tentativa de rapto. Eles pensaram em conservá-la para resgate. Não o fizeram. Perderam a cabeça quando deram o alarme e deitaram-na à estrada.

Poirot perguntou cepticamente:

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E que espécie de resgate conseguiriam eles de um padre da igreja de Cranchester?

Os dignitários da igreja inglesa não são milionários.

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O inspector-detective replicou jovialmente:

Na minha opinião foi um trabalho muito pobre.

Ah, é essa a sua opinião?

Heam, corando levemente, perguntou:

E qual é a sua?

Eu quero saber como é que a levaram do comboio.

A cara do polícia toldou-se.

Realmente, isso é um mistério. Estava na carruagem tagarelando com as companheiras e cinco minutos mais tarde desapareceu como por encanto.

Precisamente, como por encanto. Quem mais havia na carruagem? Onde estavam os compartimentos reservados para Miss Pope?

O inspector Heam abanou a cabeça:

Aí é que está o importante. É particularmente importante porque era na última carruagem do comboio e assim que todas as pessoas voltaram da carruagem-restaurante as portas que dividem as carruagens foram fechadas, precisamente para impedir que as pessoas se juntassem no restaurante a conversar e a pedir o chá antes de terem arrumado a louça do almoço. Winnie voltou para a carruagem com as outras colegas. A escola tinha reservado três compartimentos.

E acerca das pessoas dos outros compartimentos da carruagem, que sabe?

Heam puxou do seu livro de notas:

Miss Jordan e Miss Butter, duas solteironas de meia-idade em viagem para a Suíça. Nada há contra elas. Muito respeitáveis e muito conhecidas no Hampshire, onde vivem. Dois caixeiros-viajantes franceses, um de Lião outro de Paris. Ambos respeitáveis homens de meia-idade. Um jovem, James Elliot, acompanhado da mulher, bastante interessante. Ele tem má reputação. A polícia suspeita que ande metido em más transacções, mas nada referente a raptos. Contudo, o seu compartimento foi rebuscado e nada se encontrou na bagagem que mostrasse qualquer cumplicidade neste rapto. Nem vejo mesmo como é que ele poderia estar envolvido nisto. Um outro passageiro: uma senhora americana, Mrs. Van Suyder, que viajava para Paris. Não se sabe nada a seu respeito. Parece boa pessoa. E é tudo!

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Poirot, então, perguntou:

E há absoluta certeza de que o comboio não parou em sítio algum depois de ter deixado Amiens?

Absoluta! Parou apenas uma vez, mas não o tempo suficiente para permitir que alguém saltasse sem se magoar ou correr o risco de ser morto.

Hercule Poirot murmurou:

Isso é que torna o problema interessante. A rapariga desaparece no ar justamente antes de Amiens e reaparece do ar justamente depois de Amiens. Mas onde esteve ela durante esse tempo?

O inspector Heam abanou a cabeça:

O assunto posto dessa maneira soa bastante mal. A propósito: disseram-me que você tinha perguntado qualquer coisa acerca dos sapatos. Os sapatos da rapariga. Ela tinha-os calçados. Mas encontraram um par de sapatos nos carris. O sinaleiro encontrou-os e levou-os consigo pois pareciam estar em boas condições. Eram uns sapatos pretos, fortes.

Ah! exclamou Poirot. Deve ter ficado bem contente! O inspector Heam disse com curiosidade:

Não percebo isso dos sapatos. Acha que tem qualquer significado?

Confirmam uma teoria disse Hercule Poirot. Uma teoria de como tudo isto aconteceu por encantamento.

O colégio de Miss Pope, como muitos outros estabelecimentos do mesmo género, estava situado em Neully. Hercule Poirot, observando a fachada respeitável do edifício, foi subitamente envolvido por uma onda de raparigas que saía das aulas. Contou vinte e cinco raparigas vestindo da mesma maneira: casaco e saia azul-escuros, típicos chapéus ingleses de feltro azul, com o distintivo escolhido por Miss Pope em vermelho-dourado. Variavam entre os catorze e os dezoito anos. Gordas e magras, loiras e morenas, desengraçadas e engraçadas. No fim, acompanhada por uma das mais novas, vinha uma senhora espalhafatosa, de cabelo grisalho, que Poirot

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classificou como sendo Miss Brusham. Poirot parou por um momento, seguindo-as com o olhar. Depois, tocou a campainha e perguntou por Miss Pope quando lhe abriram a porta.

Miss Lavinia Pope era uma pessoa muito diferente de Miss Brusham. Miss Pope tinha personalidade. Miss Pope inspirava medo.

O seu cabelo grisalho estava penteado com distinção; o seu vestido era severo, mas chique. Miss Pope era competente e omnisciente. A sala em que Poirot foi recebido era a de uma mulher de cultura. Estava graciosamente mobilada. Jarras com flores e fotografias das alunas que se haviam distinguido na sociedade. Nas paredes viam-se penduradas reproduções de obras-primas dos melhores artistas e também bons quadros e aguarelas. Toda a sala se apresentava esmeradamente arrumada e limpa.

Miss Pope recebeu Poirot com a competência daqueles que raramente falham.

M. Hercule Poirot? Conheço o seu nome, sem dúvida. Suponho que veio aqui por causa daquele infeliz e penoso acontecimento de Winnie King! Foi um acidente bastante desagradável! Miss Pope parecia muito preocupada.

Aceitava o desastre como ele devia ser aceite, tratando-o competentemente e daí reduzindo-o a uma quase insignificância.

Tal coisa nunca tinha acontecido disse secamente. No entanto, parecia querer dizer: E não acontecerá outra vez!

Hercule Poirot perguntou-lhe polidamente:

Era o primeiro período que Winnie passaria neste colégio, não é verdade?

Sim! Exactamente o primeiro período.

A senhora teve, por acaso, previamente alguma entrevista com Winnie e os pais?

Não, recentemente! Há dois anos, passei uns dias perto de Cranchester, em casa do bispo. Durante a minha estada ali conheci os King. Mrs. King, coitada, é uma inválida. Foi nessa altura que conheci Winnie. É uma criança muito bem educada e com vocação para a arte. Eu disse a Mrs. King que seria muito feliz em receber

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aqui a pequena logo que ela terminasse os estudos gerais. O nosso ensino incide na arte e na música. Levamos as alunas à Ópera e à Comédie Française. Assistem frequentemente a prelecções no Louvre. Têm os melhores mestres de música e pintura. O nosso intento é dar-lhes a melhor cultura possível. Miss Pope lembrando-se, de repente, que Poirot não era o pai de uma das suas alunas perguntou abruptamente:

Em que posso ajudá-lo, M. Poirot?

Eu gostava de saber qual é a situação presente de Winnie.

O reverendo King veio a Amiens para levá-la consigo. Foi a melhor coisa que havia a fazer depois do golpe que a pequena sofreu.

Miss Pope, após uma breve pausa, continuou:

Não aceitamos crianças débeis. Não temos pessoal especial para olhar pelas alunas doentes de espírito. Eu própria disse ao reverendo que, na minha opinião, ele faria bem em levar a filha para casa.

Poirot perguntou explicitamente:

Na sua opinião, Miss Pope, que pensa que aconteceu?

Não faço a menor ideia, M. Poirot. Pelo que me contaram, tudo parece inacreditável. Não posso ver de que forma a pessoa encarregada das raparigas possa ser culpada. Excepto, talvez, em que podia ter dado pela falta da aluna mais cedo.

Recebeu uma visita da polícia, não? perguntou Poirot.

Um leve arrepio estremeceu o corpo de Miss Pope que respondeu friamente:

M. Lefarge, da Prefeitura, visitou-me, para saber se eu o poderia ajudar. É claro que não pude. Ele. depois, pediu-me para ver a mala de Winnie, que veio junta com as das outras raparigas. Eu disse-lhe que a mala já tinha sido vista por outro senhor da polícia. Pouco depois, telefonou para cá insistindo em que eu não lhe tinha dado todas as coisas de Winnie. Fui bastante breve com ele, acerca disso. As pessoas não se devem deixar intimidar pela polícia.

Poirot respirou profundamente, dizendo:

Tem uma natureza espirituosa! Admiro-a por isso,

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mademoiselle. Pensa que a mala de Winnie foi desfeita quando chegou?

Miss Pope pareceu um pouco embaraçada:

Rotina! replicou. Nós vivemos numa verdadeira rotina. As malas das alunas são desfeitas quando chegam e as suas coisas arrumadas como eu acho que devem ser. As coisas de Winnie foram tiradas da sua mala, assim como as das outras alunas. Naturalmente a mala foi outra vez feita e devolvida exactamente como tinha vindo.

Exactamente? perguntou Poirot olhando Miss Pope e encaminhando-se, depois, para a parede. Este quadro é, com certeza, a famosa Cranchester Bridge, com a catedral ao fundo.

Acertou, M. Poirot. Winnie pintou, certamente, esse quadro para me oferecer como uma surpresa. Estava na sua mala embrulhado e tinha escrito: Para Miss Pope, da Winnie. Muito amável da parte da pequena.

Ah! disse Poirot. £ o que é que pensa dela como pintora?

Poirot tinha visto muitos quadros da Cranchester Bridge. Era um motivo que se encontrava todos os anos exposto na Academia. Umas vezes a óleo, outras a aguarelas. Já o tinha visto bem pintado, mediocremente pintado e mal pintado. Mas nunca o tinha visto tão mal pintado como o que estava na sua frente.

Miss Pope, sorrindo com indulgência, disse:

Nunca devemos desencorajar as pequenas, M. Poirot. Winnie será estimulada e acabará por fazer melhor trabalho, claro está!

Não seria mais natural se ela o tivesse pintado com aguarelas?

Concordo! Não sabia que ela estivesse tentando pintá-lo a óleo.

Ah! fez Poirot. Dá-me licença, mademoiselle? Desprendeu o quadro e levou-o até à janela. Examinou-o, por uns momentos e, depois, disse:

Peço-lhe, mademoiselle, que me dê este quadro.

Realmente, M. Poirot?

Não pode pretender dizer-me que gosta deste quadro, pois é abominável.

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Concordo que não é muito artístico mas é o trabalho de uma aluna.

Asseguro-lhe, mademoiselle, que é o quadro mais impróprio para ter pendurado nesta sala.

Não compreendo porque diz isso, M. Poirot.

Eu procuro apenas... E tirando do bolso uma garrafa, uma esponja e alguns trapos, acrescentou:

Primeiro vou contar-lhe uma história, mademoiselle. Parece-se com aquela história do Patinho Feio que se transformou num Cisne.

E começou a esfregar afanosamente o quadro. Enquanto trabalhava, o cheiro a terebintina enchia a sala.

Não vai muito às revistas teatrais?

Na verdade, não. Acho-as muito triviais, respondeu Miss Pope.

Triviais, é certo, mas às vezes instrutivas. Eu vi uma artista teatral mudar de personalidade da maneira mais espantosa. Primeiro aparecia como uma cantora de cabaret, encantadora e cheia de charme. Dez minutos depois fazia de criança anémica, vestida com um fato de ginástica, para logo dez minutos depois, ser uma cigana esfarrapada e lendo a sina.

Muito interessante, sem dúvida, mas não vejo...

Estou a mostrar-lhe, a tentar mostrar-lhe apenas o que deve ter acontecido no comboio.

Que aconteceu no comboio?

Winnie, a estudante com as suas tranças loiras, os seus óculos e aquele aparelho nos dentes vai ao toilette. Um quarto de hora mais tarde reaparece como para usar as palavras do inspector-detective Heam uma boa peça de carne. Meias de nylon, sapatos de salto alto, um casaco de peles para tapar o uniforme, um chapéu e uma outra cara. Sim, uma outra cara. Rouge, pó, baton. Quais serão as verdadeiras feições dessa artista tão rápida no disfarce? Realmente, só Deus sabe. Mas a senhora já percebeu como é que aquela desengraçada escolar se transformou quase milagrosamente numa atraente e elegante mulher?

Miss Pope ficou pasmada:

Quer dizer que Winnie se disfarçou em...

Não! Winnie King, não! Winnie foi raptada na sua passagem por Londres. A nossa rápida artista tomou o

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seu lugar. Miss Brusham nunca tinha visto Winnie King: como poderia ela saber que aquela estudante de trança e aparelho nos dentes era Winnie King? Até essa altura está tudo muito bem, mas a impostora não podia de maneira nenhuma chegar até aqui, pois a senhora conhecia a verdadeira Winnie. Assim, num abrir e fechar de olhos, Winnie desapareceu do toilette e aparece como esposa de um homem chamado Jim Elliot, cujo passaporte inclui a esposa. As loiras tranças, os óculos, as peúgas e o aparelho dos dentes são coisas que ocupam pouco espaço. Mas os desengraçados sapatos e o chapéu, o inconfundível chapéu inglês, têm que ser postos noutro sítio qualquer: vão pela janela fora. Mais tarde, a verdadeira Winnie é trazida. Ninguém procura uma criança meio doente e narcotizada que foi levada de Inglaterra para França e deixada na estrada principal. Se lhe foi dada ascopolamina ela lembrar-se-á muito pouco do que aconteceu.

Miss Pope, pasmada, olhando Poirot perguntou:

Mas porquê? Qual seria a razão de uma coisa assim sem senso?

Poirot respondeu gravemente:

A bagagem de Winnie! Essa gente queria-passar qualquer coisa de Inglaterra para França, qualquer coisa pela qual todos os empregados das alfândegas estavam alerta. Na verdade, tratava-se de algo que merecia ser roubado. Mas qual o lugar mais seguro do que a mala de uma estudante? A senhora é muito conhecida, Miss Pope, e o seu famoso colégio também. Na gare do Norte a bagagem das pequeninas estudantes são vistas em conjunto. Pertencem ao bem conhecido colégio inglês de Miss Pope. E depois do rapto nada seria mais natural do que mandar buscar a bagagem da criança dizendo ostensivamente que era da parte da Prefeitura que a solicitavam.

Poirot calou-se e, depois, sorrindo, prosseguiu:

Mas, felizmente, há a rotina de desmanchar as malas quando as alunas chegam ao colégio. Na mala de Winnie vinha um presente para si, Miss Pope, mas não era o mesmo que a pequena Winnie meteu na sua mala.

Fixando Miss Pope, Hercule Poirot acrescentou:

A senhora deu-me este quadro! Observe-o, agora.

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e tem que admitir que não é próprio para a sua selecta escola!

Poirot mostrou a tela. Como por magia a ponte de Cranchester tinha desaparecido. Em seu lugar via-se uma cena clássica a cores escuras e vivas.

Poirot disse suavemente:

O Cinturão de Hipólita! Hipólita dá o seu cinturão a Hércules, um quadro pintado por Rubens. Uma grande obra de arte, mas, de toda a maneira, impróprio para uma sala de desenho de um colégio de meninas.

Miss Pope corou um pouco. E Poirot prosseguiu:

Hipólita tem o cinturão na mão e não usa mais nada. Está nua. Hércules veste uma pele de leão sobre os ombros. A carne de Rubens é rica, voluptuosa...

Miss Pope recuperando a voz disse:

Uma bela obra de arte... Mas, como o senhor disse, há a considerar a susceptibilidade dos pais das alunas. Alguns deles são um pouco obtusos... Compreende o que quero dizer, certamente.

Foi justamente quando Poirot deixava o edifício da escola que o assalto se deu. Sentiu-se rodeado por uma multidão de raparigas magras, gordas, feias e bonitas.

Mon Dieu murmurou ele. Isto é, sem dúvida, um ataque das amazonas.

Uma rapariga alta e loira gritou:

É Hercule Poirot!

Houve um rumor e as raparigas apertaram mais o cerco. Poirot estava completamente cercado. Desapareceu numa onda de jovens e vigorosas raparigas e apenas ouviu vinte e cinco vozes, gritando, cada uma no seu tom a mesma frase:

M. Poirot escreva o seu nome no meu livro de autógrafos.

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X O REBANHO DE GÉRION

Desculpe-me, M. Poirot, se sou intrometida... Miss Canaby fazia girar as mãos em volta do saco

e inclinava-se para a frente, olhando ansiosamente para Poirot.

Hercule Poirot ergueu as sobrancelhas.

Lembra-se de mim? perguntou ela com ansiedade.

Os olhos de Poirot cintilaram:

Lembro-me de si como uma das criminosas com mais sucesso que tenho encontrado!

Oh! Meu caro M. Poirot! Pode realmente dizer uma coisa dessas? O senhor foi tão amável para mim! Emily e eu falamos muitas vezes de si e quando vemos alguma coisa no jornal a seu respeito fazemos um recorte e guardamo-lo num livro. Para Augustus imaginamos uma nova trapaça. Nós dizemos: Morre por Sherlock Holmes, morre por Henry Merivale, morre por Mr. Fortune, morre por M. Poirot e ele deita-se e fica como um cepo, sem se mexer até lhe dirigirmos a palavra novamente.

Estou muito reconhecido disse Poirot. E como passa ce cher Auguste»?

Miss Canaby voltou as mãos e tornou-se eloquente em louvor de Augustus, o seu pekinois:

Oh! Está mais esperto do que nunca! Percebe tudo! Quer ouvir? No outro dia, eu estava a olhar para um bebé que estava num carrinho quando subitamente senti um puxão. Era Augustus tentando quebrar a trela e passar à frente. Isto não é ser esperto?

Parece que Augustus partilha das suas tendências criminosas!

Miss Canaby não riu. Em vez disso a sua face gorducha tornou-se pesada e triste. Numa espécie de suspiro disse:

Oh! M. Poirot, estou tão aborrecida! Poirot, amavelmente, perguntou-lhe:

De que se trata?

Oh! M. Poirot, estou com medo. estou realmente

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com medo de ser uma miserável criminosa se me é lícito usar tal termo. Ideias que me vêm à cabeça!

Que espécie de ideias?

As mais extraordinárias ideias! Por exemplo, ontem: um dos mais práticos processos para roubar uma estação de correio entrou-me na cabeça. Eu não pensava nisso, mas foi justamente isso que idealizei! E também imaginei outro engenhoso processo para furtar-me ao pagamento de direitos... Estou convencida de que pode ser um bom trabalho!

Provavelmente pode disse secamente Poirot. É esse o perigo das suas ideias.

Estou aborrecida, M. Poirot, muito aborrecida. Tendo sido educada nos mais severos princípios (e isto é mais perturbador que ilegal) sinto-me aborrecida por tais ideias me acudirem ao espírito. A perturbação é, em parte, penso eu, por ter estado ociosa muito tempo. Deixei Lady Hoggin e fui contratada por uma velha senhora para lhe escrever e ler cartas todos os dias. As cartas escrevem-se depressa e mal eu começo a lê-las a senhora adormece, de modo que fico ali sentada com o espírito ocioso. E nós bem sabemos que uso o Demónio faz da ociosidade!

Uhn! Uhn!fez Poirot.

Recentemente li um livro, um livro moderno traduzido do alemão. Lança a mais interessante luz a respeito das tendências criminosas. Cada um deve, segundo depreendi, sublimar os próprios impulsos. E é por isso, realmente, que eu o procuro.

Sim? disse Poirot.

Penso, M. Poirot, que não é uma grande fraqueza ser-se presa de uma excitação. A minha vida tem sido, infelizmente, monótona como um tambor. Levando os pekinois a passear ao campo, muitas vezes penso que é esse o único tempo em que realmente tenho vivido. Muito repreensível, sem dúvida, mas o meu livro diz que ninguém deve recuar em face da verdade. Procurei-o porque espero que seja possível sublimar esta insaciável excitação, empregando-a, se acaso puder seguir esse caminho, ao lado dos anjos.

Ah! É então como uma colega que a senhora se me apresenta?

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Miss Canaby corou:

É uma grande presunção da minha parte, eu sei! Mas o senhor foi tão amável!

Calou-se. Os seus olhos, os seus cansados olhos azuis, diziam alguma coisa, tinham como que a expressão de um cão que espera ser levado a passear.

É uma ideia sim disse Poirot vagarosamente.

É claro, eu não sou esperta explicou Miss Canaby. Mas o meu poder de dissimulação é bom. E acontece, aliás, que qualquer pessoa quando quiser pode deixar o lugar de dama de companhia. E já tenho pensado que o facto de uma pessoa se apresentar sempre como estúpida em geral dá bom resultado.

Hercule Poirot sorriu e disse:

A senhora encanta-me, mademoiselle!

Oh, meu caro M. Poirot, o senhor é muito amável. Então encoraja a minha esperança? Sucede que recebi um legado muito pequeno mas que nos permite, a minha irmã e a mim, mantermo-nos de uma maneira frugal e sem estarmos absolutamente dependentes do que eu possa ganhar.

Deve considerar onde os seus talentos podem ser melhor empregados. A senhora já tem uma ideia, suponho!

Penso que o senhor é que deve julgar das minhas aptidões. Tenho estado preocupada, ultimamente, com uma das minhas amigas. É sobre isso que venho consultá-lo. É claro, o senhor pode dizer que é uma fantasia de mulher velha, pura imaginação. Eu sei que se é propenso, talvez, a exagerar e a ver desígnios onde há apenas coincidências.

Não creio que a senhora possa exagerar, Miss Canaby. Diga-me o que tem na ideia?

Bem, eu tenho uma amiga, uma amiga muito querida, se bem que não a tenha visto muitas vezes nos últimos anos. Chama-se Emmeline Clegg. Casou com um homem no Norte da Inglaterra que morreu há poucos anos, deixando-lhe uma boa fortuna. Ela sente-se infeliz depois da morte do marido e eu receio que ela esteja um pouco louca ou seja uma fanática. A religião pode ser um grande auxílio e amparo, mas para o que eu penso da religião ortodoxa...

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Refere-se à Igreja Grega? perguntou Poirot. Miss Canaby olhou-o chocada:

Oh! Não, sem dúvida! À Igreja de Inglaterra. Se bem que eu não concorde com os católicos, eles são, em todo o caso, reconhecidos, bem considerados. E os Wesleianos e congregacionalistas são todos conhecidos, igualmente, como pessoas respeitáveis. Mas refiro-me a certas seitas que dia a dia aumentam. São uma espécie de apelo ao sentimento, mas tenho dúvidas que por detrás disso exista uma religião sincera.

E a senhora pensa que a sua amiga está sendo vítima de uma dessas seitas?

Sim, certamente que sim! A do Rebanho do Pastor, como eles lhe chamam. A sua sede principal é em Devonshire, uma agradável estância perto do mar. Os que aderem vão ali para fazer um retiro por um período de quinze dias com serviços religiosos e rituais. Têm três grandes festas no ano. A Chegada do Pasto, a Abundância do Pasto e a Ceifa do Pasto!

A última é estúpida, porque ninguém ceifa o pasto

disse Poirot.

Tudo é estúpido disse Miss Canaby com calor.

Todos os aderentes se concentram em volta do chefe do movimento, o Grande Pastor como lhe chamam, um tal Dr. Andersen. Um homem muito bonito, com muito boa presença, creio eu.

O que constitui um atractivo para as mulheres, não é?

É isso que eu receio suspirou Miss Canaby. O meu pai era um homem muito belo e era a pessoa mais difícil da paróquia. Rivalidades na maneira de vestir e a divisão do trabalho da igreja...

A maior parte dos membros do Rebanho do Pastor são mulheres?

Pelo menos três quartos! Os homens que ali estão são todos eles amimados. E é das mulheres que dependem o sucesso do movimento e os fundos para que ele se mantenha.

Ah! disse Poirot, agora entramos no assunto. Francamente, pensa que isso é uma burla?

Francamente, penso que sim. Não acha? Mas há mais. Uma outra coisa me aborrece. Sucede que a minha

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amiga está tão enfronhada na religião que recentemente fez um testamento deixando ao movimento todas as suas propriedades.

Poirot perguntou secamente:

Quer dizer que ela foi sugestionada?

Completamente, não! Isso já estava na sua ideia. O Grande Pastor mostrou-lhe um novo rumo de vida. Assim, tudo o que ela tem será depois da sua morte para o movimento. O que, na verdade, me aborrece é que...

Sim, continue!

Várias mulheres muito saudáveis têm estado entre as devotas. No último ano, três delas, nada menos, morreram.

Deixando à seita tudo o que possuíam?

Sim, exactamente!

E as pessoas das suas relações não protestaram? Penso que deveria ter havido qualquer coisa semelhante a um litígio.

Bem vê, M. Poirot, são, em geral, mulheres sós, que pertencem a esta associação. Pessoas que não têm nem parentes próximos nem amigos.

Poirot abanou a cabeça pensativamente. Miss Canaby apressou-se a dizer:

É claro, eu de modo algum estou insinuando qualquer coisa. Pelo que eu tenho ouvido não há nada de mal nessas mortes. Uma morreu de pneumonia depois de uma gripe e a outra foi atribuída uma úlcera gástrica. Morreram em circunstâncias absolutamente normais o que quer dizer que as mortes não foram em Green Hills Sanctuary, mas nas suas próprias casas. Não tenho dúvida de que tudo está bem, mas, da mesma maneira, eu... Bem, eu não queria que sucedesse qualquer coisa semelhante a Emmie.

Esfregou as mãos e olhou suplicante para Poirot. Poirot calou-se por alguns minutos. Depois falou e a sua voz tinha-se tornado grave e profunda:

A senhora pode dar-me os nomes e as direcções dos membros da seita que morreram ultimamente?

Sem dúvida, M. Poirot.

Mademoiselle, eu penso que a senhora é uma mulher de grande coragem e decisão. Possui grandes

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recursos de cinismo. Pode encarregar-se de tomar a seu cargo um trabalho que pode ser considerado de grande perigo.

Será isso o que eu mais gostarei disse a aventureira Miss Canaby.

Poirot fez uma advertência:

Veja que pode correr um grave risco. A senhora compreende. Se isso é um asilo de mistificadores, é uma coisa muito séria. Acho que é necessário a senhora tornar-se membro do Grande Rebanho. Deve exagerar a importância do legado que acaba de herdar. Deve fazer o papel de uma mulher que não tem nenhum fim na vida. Deve discutir com a sua amiga que a religião que ela adoptou é-um contra-senso. Assim, ela ficará desejosa de convertê-la. A senhora então deixa-se persuadir e entra para o Green Hills. E será uma vítima do poder de persuasão do Dr. Andersen. Penso que posso, com segurança, confiar-lhe esta missão.

Miss Canaby sorriu com modéstia:

Julgo que poderei manejar tudo muito bem!

Bem, meu amigo, tem alguma coisa para mim? O inspector Japp olhou pensativamente para o homem

que lhe fazia a pergunta e tristemente disse:

Nada do que desejava ter, Poirot. Detesto estes sujeitos religiosos de cabelo comprido, são como o veneno. Metem as mulheres em grandes embrulhadas. Mas este camarada deve ser cuidadoso. Não há nada que se lhe possa apontar. Tudo parece um pouco escuro, mas sem prejuízo!

Ouviu alguma coisa a respeito deste Dr. Andersen?

Era um químico que prometia, mas foi corrido de uma universidade alemã. Parece que a mãe era judia. Dedicou-se sempre com entusiasmo ao estudo dos mitos e das religiões orientais e empregava todo o tempo que tinha livre escrevendo vários artigos a esse respeito; alguns deles pareciam-me muito estúpidos.

Assim, é possível que seja um genuíno fanático?

Atrevo-me a dizer que é qualquer coisa muito semelhante a isso.

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E o que há a respeito dos nomes e das direcções que eu lhe entreguei?

Nada feito, ainda! Miss Everit morreu de uma colite ulcerosa. Sabe-se, é positivo, que o médico, neste caso, não se meteu em embrulhadas. Mrs. Loyd morreu com uma broncopneumonia. Lady Western morreu de tuberculose. Já sofria disso há muitos anos, muitos anos antes de se ter dedicado a esta religião. Miss Lie morreu de febre tifóide atribuída a qualquer salada que comeu no Norte de Inglaterra. Três outras adoeceram e morreram nas suas casas. E Mrs. Loyd morreu num hotel, no Sul da França. Pela distância a que estas mortes se deram não há notícia de que estejam relacionadas com o Grande Rebanho ou com o Dr. Andersen, de Devonshire. Deve ser pura coincidência. Tudo absolutamente O. K. e de acordo com o Cocker.

Hercule Poirot suspirou dizendo:

E apesar disso, mon cher, eu sinto que isto é o décimo Trabalho de Hércules, que o Dr. Andersen é o monstro Gérion e que a minha missão é destruí-lo.

Japp olhou para ele ansiosamente: Olhe para isto, M. Poirot. O senhor não tem lido ultimamente nenhum livro original, pois não? Poirot respondeu com dignidade:

As minhas observações são sempre verdadeiras, rectas e precisas.

O senhor pode iniciar uma nova religião de st próprio disse Japp com o credo: Não há ninguém tão esperto como Hercule Poirot. Amen D. C.

É a paz deste lugar que eu acho maravilhosa disse Miss Canaby suspirando profundamente.

Eu digo o mesmo Amy disse Emmeline Clegg. As duas amigas estavam sentadas na encosta de um monte de onde se abrangia, com a vista, o mar profundo e azul. A relva era verde-vivo; a terra, os penhascos e o vale pareciam avermelhados. A pequena estância agora conhecida por Green Hills Sanctuary era um promontório com cerca de seis hectares. Apenas uma estreita

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língua de areia o ligava à terra, de modo que era quase uma ilha.

Mrs. Clegg murmurou com sentimento:

A terra vermelha, a terra de alegria e promessa onde o tríplice destino será cumprido!

Miss Canaby suspirou profundamente e disse:

Eu penso que o Senhor fez tudo isto tão belo só para mostrar o seu poder.

Espera disse-lhe a amiga pelo festival desta noite: a Abundância do Pasto! Poderás ter uma maravilhosa experiência espiritual.

Miss Canaby tinha chegado ao santuário na semana anterior. A sua atitude à chegada tinha sido: Não é isto tudo um contra-senso? Realmente, Emmie, uma mulher sensível como tu, etc., etc. Até à entrevista preliminar com o Dr. Andersen ela tinha conscienciosamente tornado a sua atitude muito clara.

Não desejo sentir que estou aqui com falsas pretensões, Dr. Andersen. Meu pai era um clérigo da Igreja de Inglaterra e eu nunca me afastei da minha fé. Nunca me amparei às doutrinas pagãs.

O corpulento homem de cabelos cor de oiro sorriu para ela com um sorriso incompreensível. Olhou com indulgência para a sua figura rechonchuda, um pouco agressiva, tão honestamente sentada na cadeira e disse:

Minha querida, Miss Canaby, a senhora é amiga de Mrs. Clegg e como tal bem-vinda. E, acredite-me, as nossas doutrinas não são pagãs! Aqui, todas as religiões são bem recebidas e igualmente dignas de respeito.

Não, não o podem ser! disse a resoluta filha do reverendo Thomas Canaby.

Inclinando-se para trás, na cadeira, o mestre murmurou com a sua voz profunda:

Na casa de meu Pai há todas as moradas. Lembre-se disso, Miss Canaby!

Assim que ele se afastou, Miss Canaby disse:

Ele é realmente um homem muito belo e bonito!

Sim disse Emmeline Clegg e maravilhosamente espiritual!

Miss Canaby concordou. Ela própria tinha sentido uma aura de espiritualidade...

Porém, dominou-se a si própria. Ela não estava ali

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para ser presa da fascinação espiritual ou qualquer outra do Grande Pastor. Invocou a visão de Hercule Poirot. Pareceu-lhe muito distante e curiosamente terrena...

Amy disse Miss Canaby para si própria. Tem cautela contigo. Lembra-te do que estás aqui fazendo. Mas, à medida que os dias corriam, sentia-se facilmente dominada pelo encanto de Green Hills. A paz, a simplicidade, a alimentação deliciosa apesar de simples, a beleza dos serviços religiosos com os seus cânticos de Amor e de Adoração, o simples pronunciar das palavras do Mestre invocando tudo o que existia de melhor e de mais elevado na Humanidade... tudo ali a fazia pensar que a luta e a fealdade do mundo ficavam longe. Ali havia unicamente Paz e Amor... E naquela noite seria a grande festa do Verão, a Festa da Abundância do Pasto. E com isto, ela, Amy Canaby, estava quase a tornar-se uma iniciada, uma do Rebanho.

O festival teve lugar numa branca, resplandecente e sólida construção a que os iniciados chamavam o Sagrado Estábulo. Ali se reuniam os devotos antes de se sentarem ao sol. Usavam capas de pele de carneiro e sandálias nos pés. Os braços estavam descobertos. No centro do Estábulo, numa plataforma mais alta, sentava-se o Dr. Andersen. O grande homem de cabelos cor de oiro, barba brilhante e belo perfil nunca tinha parecido mais arrebatador. Estava vestido com um roupão verde e segurava um cajado de pastor, todo de oiro.

Levantou-se e um profundo silêncio se fez na assembleia.

Onde estão as minhas ovelhas? A multidão respondeu:

Estamos aqui, Pastor!

Elevai os vossos corações com alegria e agradecimento. Esta é a Festa da Alegria.

A Festa da Alegria e nós estamos alegres!

Não haverá mais aborrecimentos para vós. Não haverá mais dor. Tudo isto é alegria!

Tudo é alegria...

Quantas cabeças tem o Rebanho?

Três cabeças: uma cabeça de oiro, uma cabeça de prata, uma cabeça de cobre sonoro.

Quantos corpos tem o Rebanho?

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Três corpos: um corpo de carne, um corpo de corrupção, um corpo de luz.

Como podereis entrar no Rebanho?

Pelo sacramento do sangue!

Estais preparados para o Sacramento?

Estamos!

Tapem os olhos e levantem, inclinando para a frente, o braço direito!

A multidão, obediente, tapou os olhos com vendas verdes, fornecidas para esse fim. Miss Canaby, assim como as outras, levantou o braço e inclinou-o para a frente.

O Grande Pastor caminhou ao longo das filas do seu Rebanho. Ouviram-se gemidos e lamentos de dor ou de êxtase.

Miss Canaby disse para si própria, altivamente:

É a maior das blasfémias, tudo isto. Esta espécie de histeria religiosa é deplorável. Conservar-me-ei absolutamente calma e observarei as reacções das outras pessoas. Não posso seguir este caminho! Não posso! O Grande Pastor aproximou-se dela. Sentiu que lhe pegava no braço e erguendo-o sentiu uma dor fina e aguda, como que a picada de uma agulha. Ouviu-se, então, a voz dos Pastores murmurar:

O Sacramento do Sangue, que traz Alegria...

O Grande Pastor afastou-se para, mais de longe, dar uma ordem:

Desvendem-se e gozem os prazeres do espírito! O Sol acabava de descer. Miss Canaby olhou em volta. Com as outras saiu vagarosamente do rebanho. Sentiu-se, de repente, elevada, feliz. Deixou-se cair num macio banco de relva. Porque tinha ela sempre sentido que era uma mulher de meia-idade, abandonada, só? A vida era maravilhosa, afinal. Ela própria era maravilhosa. Tinha o poder do pensamento, do sonho. Não havia nada que ela não pudesse realizar! Uma onda de alegria passou por ela. Observou as devotas que a rodeavam: pareciam ter atingido repentinamente, uma elevada estatura.

Semelhantes a árvores caminhando...disse Miss Canaby para si, com reverência, e ergueu o braço: era um gesto de comando com o qual ela podia dominar o mundo.

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César, Napoleão, Hitler pobres, miseráveis criaturinhas! Eles não pensavam o que ela era capaz de fazer. Amanhã poderia conseguir a Paz no Mundo, a Fraternidade Internacional. Não mais a Guerra, não mais a Pobreza, não mais a Doença! Ela, Amy Canaby, poderia construir e comandar um novo mundo. Mas não havia necessidade de se aborrecer. O tempo era infinito: a um minuto seguia-se outro minuto, a uma hora seguia-se outra hora! Miss Canaby sentia as pernas pesadas, mas o seu espírito estava deliciosamente livre. Podia percorrer todo o universo. Dormiu mas enquanto dormiu, sonhou. Grandes espaços, vastas construções. Um mundo novo e maravilhoso...

Gradualmente, o mundo encolheu. Miss Canaby bocejou. Moveu as pernas dormentes. Que tinha sucedido desde ontem? Na última noite tinha sonhado... Havia lua! Por isso, Miss Canaby pôde distinguir as horas no relógio. O Sol sabia ela que se tinha posto às oito e dez, e faltava um quarto para as dez. Havia apenas uma hora e trinta e cinco minutos? Impossível! É ainda muito para estranhar disse Miss Canaby para si.

Hercule Poirot disse:

A senhora deve obedecer às minhas instruções com muito cuidado. Compreende?

Oh! Sim, M. Poirot, o senhor pode confiar em mím.

Falou das suas intenções de beneficiar o culto?

Sim, M. Poirot. Disse ao Mestre... desculpe-me, ao Dr. Andersen. Disse-lhe, muito emocionada, que uma maravilhosa revelação de tudo me tinha sido feita... tinha começado por zombar e acabava por crer.

«A mim, realmente, parecia-me muito natural dizer estas coisas. O Dr. Andersen, sabe?, tem um magnético encanto!»

Sim, eu percebo disse Poirot secamente.

As suas maneiras são convincentes. Qualquer pessoa sente que ele não liga muita importância ao dinheiro. «Dá o que quiser disse ele com o seu maravilhoso sorriso. Se não pode dar nada não tem importância.

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A senhora será da mesma forma uma das ovelhas do Rebanho.» «Oh, Dr. Andersen disse eu não estou assim tão mal. Acabei de herdar uma soma considerável de um parente próximo e se bem que não me seja possível tocar no dinheiro antes de cumprir as formalidades legais, há uma coisa que desejo fazer imediatamente.» E então expliquei que faria um testamento e que deixaria tudo à Irmandade. Disse-lhe que não tinha parentes próximos.

E ele, graciosamente, aceitou o legado?

Mostrou-se muito desprendido. Disse-me que até lá ainda deveriam passar muitos anos, que eu estava destinada para uma longa vida de alegria e deleite espiritual. Ele realmente falava de uma forma tocante.

Falou-lhe na sua saúde? perguntou Poirot secamente.

Sim, M. Poirot. Disse-lhe que tinha sofrido de uma lesão pulmonar, e que isso me tinha acontecido mais do que uma vez mas que com um tratamento radical, feito há uns anos num sanatório, me considerava curada.

Excelente!

Ainda é necessário dizer que sou muito sensível e que os meus pulmões têm o som de uma campainha que eu não posso ver?

É necessário afirmar isso. E mencionou a sua amiga?

Sim! Disse-lhe confidencialmente que a querida Emmily, ao lado da fortuna que recebera do marido, herdaria brevemente uma soma ainda mais importante, de uma tia que lhe era profundamente dedicada.

Eh bien, isso deve conservar a sua amiga a salvo durante esse tempo.

Oh! M. Poirot, o senhor realmente, pensa que há nisto qualquer coisa que não está bem?

É isso que vou procurar descobrir. Encontrou Mr. Cole no Santuário?

Havia lá um Mr. Cole a última vez que eu lá estive; um homem vulgar. Usava shorts verdes, cor de relva e só comia alface. Era um crente exaltado.

Eh bien, tudo caminha bem. Os meus parabéns pelo trabalho que tem feito. Tudo está agora destinado para o Festival do Outono.

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Miss Canaby, apenas um momento...

Mr. Cole agarrou-se a Miss Canaby. Os seus olhos estavam brilhantes e febris.

Tive uma visão, a mais extraordinária visão! Realmente devo contar-lha.

Miss Canaby suspirou. Estava um pouco assustada com Mr. Cole e as suas visões. Havia momentos em que ela estava verdadeiramente convencida de que Mr. Cole era doido. Achava que estas visões eram muitas vezes embaraçosas. Recordavam-lhe certas passagens daquele moderno livro alemão sobre o subconsciente que ela tinha lido antes de ir para Devon.

Mr. Cole, de olhar brilhante e lábios trémulos, começou a falar excitadamente.

Tenho estado a meditar, a reflectir na Abundância da Vida. Na Suprema Alegria da Unidade! E então, sabe a senhora, os meus olhos abriram-se e eu vi...

Miss Canaby concentrou-se e esperou que a visão de Mr. Cole não fosse como a que ele tinha tido da última vez, que tinha sido aparentemente um casamento ritual na antiga Sumer, entre um deus e uma deusa.

Eu vi! Mr. Cole inclinou-se para ela respirando com dificuldade (e os seus olhos, realmente, pareciam os de um doido). Eu vi o Profeta Elias descendo do Céu num carro de quatro rodas, brilhante como fogo.

Miss Canaby soltou um suspiro de alívio. Elias era muito melhor, não podia ser Elias.

Em baixo continuou Mr. Cole eram os altares de Baal, centos e centos deles. Uma voz gritou para mim: Olha escreve e confirma o que vais ver!

Fez uma pausa e Miss Canaby perguntou polidamente:

Sim?

Nos altares estavam as vítimas desamparadas, esperando pela faca. Virgens! Virgens! Centenas de virgens, jovens, belas, virgens nuas!

Mr. Cole uniu os lábios num beijo. Miss Canaby corou.

Então, chegam os corvos de Odin, voando do norte. Encontraram os corvos de Elias. Todos juntos, descrevem

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círculos no céu, precipitam-se sobre a presa, arrancam os olhos das vítimas que estavam metidas entre paredes e rangiam os dentes. E a voz gritou: Cumpra-se o Sacrifício! Naquele dia Jeová e Odin assinaram a fraternidade do sangue. Então, os sacerdotes caíram sobre as vítimas, levantaram as facas e mutilaram as vítimas!

Dificilmente Miss Canaby conseguiu livrar-se do maçador que se babava numa espécie de sádico fervor.

Dê-me licença, por um momento! desculpou-se ela.

Apressadamente aproximou-se de Lipscomb, o homem que ocupava o cubículo que dava acesso a Green Hills e que providencialmente abriu a passagem.

Desejava saber disse ela se encontrou um broche. Devo tê-lo deixado cair no chão.

Lipscomb, um homem nada influenciado pela suavidade e beleza de Green Hills, apenas resmungou que não tinha visto nenhum broche. Não fazia parte das suas atribuições olhar por essas coisas. Tentou libertar-se de Miss Canaby, mas ela acompanhava-o, continuando a murmurar a respeito do broche, até alcançar uma distância considerável entre ela e o fervor de Mr. Cole.

Naquele momento, o Mestre em pessoa chegou; saía do Grande Estábulo. Miss Canaby, animada pelo seu benévolo sorriso, aventurou-se a falar-lhe, a dizer o que pensava de Mr. Cole. Pensava que Mr. Cole não estava bem, muito bem.

O mestre pôs-lhe a mão no ombro:

A senhora deve expulsar o medo disse ele... O Perfeito Amor não tem medo...

Mas eu creio que Mr. Cole está doido. Aquelas visões que ele tem...

São devidas ao facto de ele ainda ver imperfeitamente... através do espelho da sua Natureza Carnal. Mas chegará o dia em que ele há-de poder encarar a Espiritualidade face a face.

Miss Canaby estava confundida. Sem dúvida, era caso para isso. Animou-se a fazer um pequeno protesto:

E realmente disse ela Lipscomb tem necessidade de ser tão abominavelmente rude?

Outra vez o Mestre teve o seu Celestial Sorriso:

Lipscomb disse ele é um fiel cão de guarda.

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É rude e tem uma alma primitiva, mas é fiel, totalmente fiel.

Deu umas passadas largas. Miss Canaby viu-o parar e pôr a mão no ombro de Cole. Esperava que a influência do Mestre pudesse alterar a maneira de ele compreender futuras visões.

De qualquer modo, só faltava, agora, uma semana para o Festival do Outono.

Na tarde que precedia o Festival, Miss Canaby encontrou-se com H. Poirot numa pequena casa de chá na sonolenta cidadezinha de Newton Woodley. Miss Canaby estava corada e ainda mais ofegante que de costume. Sentou-se sorvendo o chá e partindo uma fatia de bolo de queijo com os dedos.

Poirot fez-lhe várias perguntas a que ela respondeu com monossílabos. Depois, Poirot, perguntou-lhe:

Quantos testamentos haverá por altura do Festival?

Penso que uns cento e vinte. Emmeline está aqui sem dúvida. E Mr. Cole, realmente, tem estado bastante esquisito, ultimamente. Tem visões. Descreveu-me algumas delas. Mas eu espero, espero que ele não esteja doente. Haverá, agora, uma quantidade de novos membros, cerca de vinte novos membros que acabam de aderir.

Bem! A senhora sabe o que tem a fazer?

Fez-se um silêncio antes que Miss Canaby respondesse com uma voz estranha:

Eu sei o que o senhor me disse, M. Poirot...

Três bien!

Então, ”Miss Canaby, disse claramente e distintamente:

Mas não vou fazer isso. A sua voz tornou-se apressada e histérica. O senhor enviou-me para espiar o Dr. Andersen. Suspeita dele coisas de toda a espécie. Mas ele é um homem maravilhoso, um grande professor. Acredito nele com alma e coração! e não vou ser sua espia, M. Poirot. Já sou uma das Ovelhas do Pastor.

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O Mestre tem uma nova mensagem para o mundo e desde então eu pertenço-lhe de corpo e alma. E deixe-me pagar o chá, faça favor.

Com este espectacular desacordo, Miss Canaby colocou na mesa um xelim e três pence e saiu da sala de chá.

Non, d’un nom disse Poirot.

A criada disse-lhe duas vezes, antes que ele percebesse, que lhe estava apresentando a conta. Poirot fixou o olhar interessado de um homem que estava na mesa a seguir, corou, pagou a conta e saiu.

Ia furioso.

Mais uma vez o rebanho estava reunido no Grande Estábulo. Tinham sido cantadas as Perguntas e Respostas Rituais.

Estão preparadas para o Sacramento?

Estamos.

Vendem os olhos e levantem o braço direito!

O Grande Pastor, imponente no seu roupão verde, movia-se entre as filas dos que esperavam. O comedor de alface, o visionário Mr. Cole, a seguir. Miss Canaby, soltou um grito de dorido êxtase como se uma agulha lhe tivesse espetado a carne.

O Grande Pastor parou perto de Miss Canaby. Com as mãos tocou-lhe no braço...

Não, o senhor não faz isso! Nada disso... Eram palavras inacreditáveis, sem precedentes. Ouviu-se um rugido de raiva. As vendas verdes foram tiradas dos olhos para verem uma coisa inacreditável: o Grande Pastor debatendo-se nas garras do homem da pele de carneiro, Mr. Cole, auxiliado por outra devota.

Com um rápido assento profissional o ex-Mr. Cole disse:

Tenho aqui ordem para o prender. E devo avisá-lo de que alguma coisa que o senhor diga pode ser usada como prova no julgamento. Apareceram, então, mais figuras à porta do Grande Rebanho, figuras de uniforme azul. Alguém, então, gritou: É a polícia! Levam o Mestre! Prenderam o Mestre!

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Todas as pessoas estavam chocadas, horrorizadas... Para elas o Grande Pastor era um mártir, sofrendo como sofrem todos os grandes mestres vítimas da ignorância que por toda a parte os rodeia...

Entretanto, o inspector-detective Cole cuidadosamente embrulhava a seringa hipodérmica que tinha caído das mãos do Grande Pastor.

Minha distinta colega!

Poirot apertou calorosamente a mão de Miss Canaby e apresentou-a ao inspector-chefe Japp.

Um trabalho de primeira classe Miss Canaby disse o inspector. Teria sido impossível realizá-lo sem a sua colaboração, é um facto.

Oh! não! Miss Canaby estava transtornada. É uma grande amabilidade dizer isso. Tenho medo, sabe, tenho medo de ter realmente gostado de tudo aquilo. Senti tal excitação ao representar o meu papel! Estive quase convencida algumas vezes. Realmente sentia que era uma daquelas mulheres enlouquecidas.

Foi nisso que se baseou o seu êxito disse Japp. A senhora foi real. E só assim se podia apanhar aquele senhor! É um astucioso patife!

Miss Canaby virou-se para Poirot:

Foi um momento terrível, na casa de chá. Eu não sabia o que fazer. Tinha chegado ao ponto culminante.

A senhora foi magnífica disse Poirot com entusiasmo. Por momentos pensei que a senhora ou eu tínhamos perdido o juízo. Pensei por um minuto o que a senhora mistificava.

Foi um choque disse Miss Canaby. Justamente quando eu ia fazer-lhe confidências, vi no espelho aquele Lipscomb que guarda a entrada do Santuário. Estava sentado na mesa ao lado da minha. Não sabia se tinha sido por acaso ou se ele me tinha seguido. Como digo, fiz o melhor que podia no momento culminante e espero que possa entender-me.

Poirot sorriu:

Eu compreendi! Havia só uma pessoa sentada

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suficientemente perto para poder ouvir o que dizíamos e assim que deixei a loja consegui arranjar as coisas para poder segui-lo quando ele saiu. Quando se aproximou do Santuário compreendi que podia confiar em si e que a senhora não me deixaria ficar mal. Mas estava assustado porque o perigo para si era cada vez maior.

Mas... mas havia realmente algum perigo? O que é que estava na seringa?

Japp perguntou a Poirot:

Quer você explicar-lhe ou explico-lhe eu? Poirot disse gravemente:

Mademoiselle, este Dr. Andersen tem aperfeiçoado um esquema de exploração e assassínio, assassínio científico. A maior parte da sua vida foi dedicada a investigações bacteriológicas. Com um nome diferente, tem um laboratório em Sheffield. Faz culturas de vários bacilos. E uma das práticas dos festivais é injectar nos seus adeptos uma pequena mas suficiente dose de Cannabis Indica, que é também conhecida pelo nome de haxixe ou bhang e proporciona a ilusão de grandes e indiscritíveis alegrias. É isso o que atrai os devotos para ele. São as Alegrias Espirituais que ele promete.

A mais extraordinária disse Miss Canaby, na verdade a mais extraordinária das sensações!

É uma personalidade dominadora e poderosa. Isso constitui um grande êxito: uma personalidade dominadora, o poder de criar a histeria em massa e as reacções produzidas por esta droga. Mas tem em vista um segundo desígnio. As mulheres sós, no seu grande fervor e gratidão, fazem testamento deixando o seu dinheiro ao Culto. Uma a uma as mulheres vão morrendo. Morrem nas suas próprias casas em circunstâncias normais. Sem ser técnico vou tentar explicar-lhe. É possível fazer culturas intensificadas de determinadas bactérias. Os bacilos Com communis, por exemplo, provoca a colite ulcerosa. O bacilo da febre tifóide pode ser introduzido no organismo. Do mesmo modo, o Pneumococus. Existe também a tuberculina, que é inofensiva para uma pessoa saudável, mas que estimula uma lesão tuberculosa antiga. Percebe a esperteza do homem? Estas mortes podem dar-se em diferentes partes da região com médicos diferentes tratando do doente sem correr o risco de provocar suspeitas.

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Ele usava também, penso eu, uma substância que tem o poder de intensificar a acção de bacilos escolhidos.

É um demónio, se os demónios ainda existem disse Japp.

Poirot continuou:

Segundo as minhas ordens a senhora disse-lhe que fora uma tuberculosa. Era tuberculins que ele tinha na seringa quando Cole o deteve. A senhora é uma pessoa saudável, por isso teria sido uma picada inofensiva, e foi essa a razão por que eu insisti para lhe falar na tuberculose. Andava até horrorizado não fosse ele escolher outro bacilo, mas respeitava a sua coragem e deixei-a correr o risco.

Oh, tudo correu bem disse Miss Canaby, polidamente. Eu não penso em perigos. Apenas tenho medo dos touros no campo e coisas assim parecidas. Mas tem absoluta certeza de poder condenar esta terrível criatura?

Japp fez uma careta.

Absoluta evidência. Apreendemos, no laboratório, as culturas e tudo o que lá estava. Poirot acrescentou:

Pode-se dizer que ele já cometeu assassínios em larga escala e que não foi por a mãe ser judia que foi demitido daquela universidade, na Alemanha. Fez disso apenas uma história para contar quando aqui chegou e ganhar as simpatias. De resto, segundo penso, é um ariano de puro sangue.

Miss Canaby suspirou.

Ouest-ce qu’il y a? perguntou Poirot.

Estava pensandodisse Miss Canaby, no maravilhoso sonho que eu tive na noite do Primeiro Festival. Era haxixe, suponho. Tinha arranjado um mundo tão bonito! Nem guerra, nem pobres, nem doenças, nem fealdade...

Deve ter sido um belo sonho disse Japp com inveja.

Miss Canaby levantou-se:

Tenho de regressar a casa. Emily deve estar ansiosa. E o querido Augustus tem sentido muito a minha falta.

Hercule Poirot disse com um sorriso:

Receia talvez que, assim como ele, a senhora tivesse ido morrer por Hercule Poirot!

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XI AS MAÇAS DAS HESPÉRIDES

Hercule Poirot olhou pensativamente para o rosto do homem que estava sentado por detrás da secretária de mogno. Reparou nas suas sobrancelhas espessas, no seu queixo voluntarioso, nos seus penetrantes olhos sonhadores. Compreendeu, pelo olhar daquele homem, porque é que ele se tinha tornado o grande potentado das finanças que era. E olhando as suas delicadas e bem modeladas mãos, compreendeu, também porque é que Emery Power tinha atingido tanto renome como grande coleccionador e era conhecido, além Atlântico, como um profundo entendedor de obras de arte. A sua paixão pela arte foi-se desenvolvendo ao mesmo tempo que a sua paixão pela história. Não era suficiente, para ele, que uma dada peça fosse bela; exigia, também, que tivesse consigo uma tradição.

Emery Power expunha as suas ideias. A sua voz era calma, era uma voz distinta mas mais directa do que muitas de grande volume.

Sei que o senhor agora não se encarrega de muitos casos, mas penso que poderá tomar conta do meu.

É, então, um caso de muita urgência?

É de grande urgência para mim.

Poirot conservava-se numa atitude de curiosidade; assim, com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, parecia um pintarroxo pensativo.

O outro continuou:

Trata-se de recuperar uma obra de arte. Para ser exacto, uma taça dourada da Renascença. Parece que essa taça foi usada pelo papa Alexandre VI, Rodrigo Bórgia, que às vezes a apresentava a algum dos seus convidados para beber. Esse convidado, M. Poirot, habitualmente morria.

Uma bonita história disse Poirot.

Ao seu passado associava-se, sempre, a violência. Foi roubada mais do que uma vez. A morte acompanhava-a desde sempre. Uma onda de sangue seguiu-a através das idades.

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Por causa do seu intrínseco valor ou por qualquer outra razão?

O seu valor intrínseco é, na verdade, considerável. O seu lavrado é raro; diz-se ter sido feito por Benevenuto Cellini. O desenho representa uma árvore em volta da qual se enrola uma serpente de pedrarias e as maçãs que pendem da árvore são formadas por belas esmeraldas.

Poirot murmurou com um crescente interesse:

Maçãs?

As esmeraldas são, particularmente, finas; só há rubis na serpente, mas o verdadeiro valor da taça é a sua real associação com os factos históricos. Foi posta à venda pelo Marchese di San Veratino, em 1929. Os coleccionadores cobriam os lances uns dos outros e eu finalmente segurei-a pela quantia de trinta mil libras.

Poirot levantou as sobrancelhas e murmurou:

Sem dúvida, uma soma principesca! O Marchese di San Veratino esteve com sorte.

Quando eu desejo uma coisa tenho posses para pagá-la, M. Poirot disse Emery.

Poirot retorquiu naturalmente:

O senhor, sem dúvida, conhece aquele provérbio espanhol que diz: Toma aquilo que desejares e paga por isso, disse Deus.

Por momentos, o milionário franziu a testa. Um clarão de raiva iluminou-lhe o olhar ao mesmo tempo que disse friamente:

O senhor está a caminho de ser filósofo, M. Poirot!

Cheguei à idade da reflexão, monsieur.

Sem dúvida, mas não é a reflexão que me restitui a taça.

Pensa que não?

Creio que deve ser necessário agir. Poirot abanou a cabeça placidamente:

Muitas pessoas laboram no mesmo erro. Mas, peço-lhe perdão, Mr. Power, se me afastei do assunto para que fui chamado. O senhor disse que comprou a taça no Marchese de San Veratino?

Exactamente! O que tenho a dizer é que foi roubada antes de estar na minha posse.

Como sucedeu isso?

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O Palácio do Marquês foi assaltado de noite e oito ou dez peças de considerável valor, incluindo a taça, foram roubadas.

E que fizeram para resolver o caso?

A polícia, é claro, encarregou-se disso. O roubo foi considerado como trabalho de um conhecido bando internacional. Dois elementos desse bando, segundo creio: um francês chamado Dublay e um italiano chamado Ricovetti, foram apanhados e condenados. Algumas das coisas de valor roubadas foram encontradas na posse deles.

Mas não a taça do Bórgia?

A taça do Bórgia, não! Há, tanto quanto a polícia pode descobrir actualmente, três homens ligados ao roubo. Dois deles, justamente, mencionaram um terceiro, um irlandês chamado Patrik Casey. Este último era um esperto ladrão nocturno. Foi ele que disse que tinham roubado as coisas. Dublay era o cérebro do bando e planeava os golpes. Ricovetti conduzia o carro e esperava pelas coisas que iam descendo para ele.

E as coisas roubadas repartiam-nas em três partes?

Possivelmente! Os artigos que foram recuperados eram os de menor valor. Parece-lhe possível que as peças mais notáveis tenham sido levadas para longe daqui?

E o terceiro homem, Casey, nunca foi entregue à Justiça?

Não, no sentido que quer dizer. Já não era muito novo. Os seus músculos estavam mais cansados do que em forma. Duas semanas mais tarde caiu do quinto andar de uma construção e teve morte instantânea.

Onde estava ele?

Em Paris! Estava a preparar-se para roubar a residência de um banqueiro milionário.

E a taça nunca mais foi vista?

Exactamente, nunca mais foi vista!

E nunca foi posta à venda?

Estou convencido de que não. Posso dizer que não só a polícia mas também alguns agentes particulares têm estado alerta.

Que dinheiro pagou?

O Marchese é uma pessoa muito escrupulosa.

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Ofereceu-se para restituir o dinheiro visto que a taça fora roubada da sua casa!

Mas o senhor não aceitou?

Não!

E porquê?

Eu lhe digo: porque prefiro encarregar-me eu próprio do assunto.

Quer dizer que se tivesse aceitado a oferta do Marchese, a taça recuperada tornar-se-ia propriedade dele, ao passo que assim, é realmente sua?

Exactamente!

Que motivos o levaram a tomar essa atitude? Com um sorriso, Emery Power respondeu:

Vejo que o senhor aprecia esse ponto. Bem, M. Poirot, é simples! Pensei que sabia quem tinha a taça em seu poder naquela ocasião.

É curioso! E quem a tinha?

Sir Reuben Rosenthal! Ele não era apenas um coleccionador, era nessa altura meu inimigo pessoal. Fomos rivais em vários negócios e em todos eu sempre me saí melhor. A nossa rivalidade chegou ao ponto culminante na disputa da taça do Bórgia. Cada um de nós estava decidido a possuí-la. Era mais ou menos um ponto de honra! Os nossos representantes no leilão cobriam os lances um do outro.

E o último lance do seu representante conquistou o tesouro...

Não precisamente! Tomei a precaução de ter um segundo agente. Escolhi ostensivamente o representante de um negociante de Paris. Nenhum de nós, compreende, desejava ceder ao outro, mas permitir a uma terceira pessoa adquirir a taça era um assunto muito diferente.

De facto, une petite deception!

Exactamente! Mas mal terminou o leilão Sir Reuben descobriu que tinha sido enganado.

Poirot sorriu. Era um sorriso revelador:

Agora compreendo a sua situação. Julga que Reuben, resolvido a não ser derrotado, determinou deliberadamente o roubo?

Emery Power levantou uma das mãos:

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Oh! Não, não! Não seria tão imprevidente como isso. O caso resume-se nisto: pouco depois, Sir Reuben

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teria comprado uma taça da Renascença de origem não especificada...

Cuja descrição teria sido conhecida pela polícia?

A taça não tinha sido colocada completamente à vista da assistência.

Julga que teria sido suficiente para Sir Reuben saber que a possuía?

Sim! Além do que, se eu tivesse aceitado a oferta do Marchese, teria sido possível a Sir Reuben fazer um arranjo particular com eles permitindo assim que a taça passasse legalmente para a sua posse.

Parou um minuto e continuou:

Mas, iludindo a propriedade legal, haveria ainda possibilidade de reaver a minha propriedade?

Poirot disse abstractamente:

Quer dizer: o senhor teria arranjado as coisas de maneira a que a taça fosse roubada a Sir Reuben?

Roubada, não, M. Poirot. Tentaria apenas recuperar o que era meu.

Depreendo que não teve êxito.

Por uma razão muito simples: a taça nunca esteve em poder de Rosenthal.

Como é que sabe?

Houve recentemente uma luta de interesses num negócio de óleo. Os meus interesses e os de Rosenthal, agora coincidem. Somos aliados e não inimigos. Eu falei-lhe abertamente sobre o assunto e ele disse-me que a taça nunca havia estado em seu poder.

E o senhor acredita nele?

Acredito!

Poirot perguntou pensativamente:

Então, há quase dez anos que têm lutado sem razão para tal?

O outro respondeu com amargura:

É o que nós temos feito!

E agora: vão recomeçar? O outro assentiu.

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É aqui que eu entro em acção? Sou o cão que o senhor põe numa pista já muito velha!

Emery Power respondeu com secura:

Se o assunto fosse fácil não teria sido necessário

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mandá-lo chamar. Claro, se pensa que é impossível acertou na palavra.

Poirot levantou-se e disse:

Não conheço a palavra impossível, monsieur. Pergunto apenas a mim próprio: é este assunto suficientemente importante para que eu me encarregue dele?

Emery Power, sorrindo outra vez, disse:

Tem, pelo menos, este interesse: peça o que quiser pelo seu trabalho.

O homenzinho olhou para o homenzarrão:

Tem assim tanto empenho nessa obra de arte? Certamente que não!

Ponha o caso desta maneira: assim como você, eu não aceito a derrota.

Poirot inclinou-se e disse:

Sim! Posto dessa maneira... eu compreendo!

O inspector Wagstaffe estava interessado.

A taça Veratrino? Sim, lembro-me disso! Estive encarregado desse assunto. Falo um pouco de italiano e fui à Itália para me avistar com os Macarronis. Nunca mais apareceu, até hoje, uma coisa tão estranha.

Qual é a sua opinião? Uma compra particular? Wagstaffe abanou a cabeça:

Duvido! Mas, claro, é vagamente possível!...

Não na minha opinião. É muito mais simples do que isso. A coisa foi escondida e o único homem que sabia onde se encontrava está morto.

Refere-se a Casey?

Sim, a esse mesmo!

Talvez a tivesse escondido algures na Itália ou pode ter sucedido tê-la levado para fora do país às escondidas. Mas escondeu-a, e onde quer que foi posta ainda lá se encontra.

Poirot suspirou:

É uma teoria romântica. Pérolas escondidas em moldes de gesso. Qual é a história? O Busto de Napoleão, não é verdade? Mas neste caso não são jóias! É uma

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taça de oiro, sólida e grande. Difícil de esconder, não acha?

Wagstaffe disse vagamente:

Não sei, mas suponho que era fácil de esconder. Debaixo do soalho, ou coisa parecida.

O Casey tinha casa própria?

Sim, em Liverpul! disse Wagstaffe, com um trejeito. E ali não encontraram nada debaixo do soalho. Assegurei-me disso.

E a respeito da família?

A mulher era uma senhora decente e estava tuberculosa. Muito preocupada com a vida que o marido levava. Era muito religiosa, uma fervorosa católica, mas nunca se decidiu a deixá-lo. Morreu há um par de anos. A filha seguiu-lhe os passos, fez-se freira. Com o filho foi diferente. Tal pai tal filho! A última vez que ouvi falar dele causava êxito na América.

Poirot escreveu no caderno de notas a palavra América e disse:

Será possível que o filho de Casey saiba onde é o esconderijo?

Não acredito que ele o soubesse. Já se teria descoberto se assim fosse.

A taça podia ter sido derretida. Mas não sei. O seu grande valor para os coleccionadores... Há uma grande quantidade de negócios estranhos com os coleccionadores.

Às vezes disse Wagstaffe acho que os coleccionadores não têm moral de espécie alguma.

Ah! fez Poirot. Você surpreender-se-ia se Sir Reuben estivesse implicado nisto a que você chama negócios estranhos?

Wagstaffe fez um trejeito e respondeu:

Não me surpreenderia. Ele não é muito escrupuloso quando se trata de obras de arte.

E sobre os restantes membros do bando, que sabe o senhor?

Ricovetti e Dublay sofreram grandes penas. Imagine que eles só devem ser soltos por estes dias.

Dublay é francês não é?

É! Era o cérebro do bando.

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Havia mais algum membro no bando?

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Havia uma rapariga conhecida por Red Kate! Arranjou emprego como criada de uma senhora de idade, descobriu tudo acerca de um roubo em que os objectos tinham sido escondidos. Após uma breve pausa acrescentou: Creio que foi para a Austrália.

Mais alguém?

Um rapaz chamado Hugh Heam, também suspeito de pertencer ao bando. É comerciante. Tem a sede principal do seu negócio em Istambul mas não tem nenhuma loja em Paris. Não há nada provado contra ele. Mas ele é um freguês difícil.

Poirot suspirou. Olhou para o seu livrinho de notas onde havia escrito as palavras América, Austrália, França, Turquia... e murmurou:

Pode pôr uma facha em volta do mundo.

Perdão? disse o inspector Wagstaffe.

Estava a pensar disse Poirot que uma volta ao mundo parece estar indicada.

Era hábito de Poirot discutir os casos com o seu competente criado George. Quer dizer que Poirot deixava escapar certas observações às quais George podia replicar com a sabedoria que tinha adquirido no decorrer da sua carreira, de servidor de um senhor.

Se tivesses de enfrentar a necessidade de fazer investigações em cinco partes diferentes do mundo que é que tu farias?

Bem senhor, pelo ar vai-se mais depressa, se bem que algumas pessoas digam que provoca o enjoo... Por mim, não posso dizer nada.

Qualquer pessoa pergunta a si próprio disse Hercule Poirot o que teria feito Hércules?

O senhor refere-se ao homem da bicicleta?

Ou... prosseguiu Poirot uma simples pergunta: que fez ele? E a resposta, George, é que ele viajou energicamente. Mas foi forçado, no fim, para obter informações como hoje se costuma dizer umas de Prometeu outras de Nero.

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Ah! Sim? Nunca ouvi falar desses senhores. É alguma agência de viagens, M. Poirot?

Hercule Poirot, encantado com o som da própria voz, continuou:

O meu cliente Emery Power exige apenas uma coisa: acção! Mas é inútil dispensar energia numa acção desnecessária. Há uma regra doirada na vida, George: nunca faças tu mesmo o que os outros podem fazer por ti. Especialmente acrescentou Poirot levantando-se e caminhando para a estante quando não se olha a despesas!

Tirou da estante um maço de papéis marcados com a letra D e abriu na palavra:Agência de Detectives Dignos de Confiança.

O moderno Prometeu! continuou Hercule Poirot. Agradeço-te, George, que copies para mim alguns nomes e direcções: Messers Hankerton; Messers Laden and Bosher, Sidney; Signor Giovanni Mezzi, Roma; M. Nahum, Istambul; Messers Roger et Franconard, Paris. Agora, faz-me o favor de ver quais são os comboios para Liverpul.

Sim, senhor; o senhor vai a Liverpul?

Posso ter de ir de um momento para o outro. É possível que vá, até, mais longe. Mas não por enquanto!

Três meses mais tarde Hercule Poirot estava sentado na ponta de um rochedo, olhando o oceano Atlântico. As gaivotas levantavam-se e mergulhavam com gritos prolongados e melancólicos. O ar estava leve e húmido.

Hercule Poirot tinha sentido, o que é frequente naqueles que vêem pela primeira vez a Inishgowlan, que tinha alcançado o fim do mundo. Nunca, na sua vida, tinha imaginado uma coisa tão remota, tão abandonada, tão desolada. Tinha beleza, melancolia, calma; a beleza de um longínquo e inacreditável passado. Aqui, no Oeste da Irlanda, os romanos nunca tinham marchado tramp, tramp, tramp: nunca tinham fortificado um campo, nunca tinham construído uma estrada boa e útil. Uma terra onde o

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senso prático e o caminho ordenado da vida eram desconhecidos.

Hercule Poirot olhou para a biqueira dos seus sapatos de coiro e suspirou. Sentiu-se desamparado e completamente só. A vida que estava habituado a fazer não era apreciada neste lugar.

Os seus olhos percorreram, uma vez mais, a desolada linha da costa e, depois, viraram-se para o mar. Aqui ou ali, segundo rezava a tradição, ficavam as ilhas de Blest, a Terra da Juventude...

A macieira, a canção e o oiro... disse de si para consigo.

E repentinamente acordou. Tinha-se quebrado o sortilégio. Era outra vez Poirot, com os seus sapatos de cabedal e o seu fato cinzento-escuro de gentleman.

Não muito longe ouviu o som de uma campainha. Reconheceu aquela campainha. Era um som que lhe tinha sido familiar desde a infância. Começou a caminhar ao longo do rochedo. Passados dez minutos avistou uma construção. Estava cercada por uma parede alta com um grande portão de madeira. Hercule Poirot aproximou-se do portão e bateu. Havia uma grande aldraba de ferro. Então, puxou cautelosamente um arame de ferro ferrugento e o som áspero de uma campainha ouviu-se lá dentro.

Um postigo abriu-se para o lado e apareceu um rosto. Era um rosto desconfiado, emoldurado numa touca branca e engomada. Tinha um pequeno bigode no lábio superior, mas a voz era de mulher, voz que Hercule Poirot classificou como sendo de uma femme formidable.

É aqui o Convento de Santa Maria de Todos os Santos?

A femme formidable respondeu com dureza:

E que outra coisa poderia ser?

Hercule Poirot não tentou responder e disse:

Gostaria de ver a madre superiora.

A criatura não estava muito resolvida mas no fim cedeu. Afastaram-se as trancas, a porta abriu-se e Poirot foi conduzido a uma sala vazia onde os visitantes eram recebidos.

Uma freira sorriu-lhe sem razão, balançando o rosário que tinha preso à cintura.

Hercule era um católico de nascença. Compreendia

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o ambiente em que se encontrava. Quando a madre superiora apareceu, Poirot disse-lhe:

Peço desculpa pela maçada, ma mère, mas deve estar aqui uma religieuse que no mundo se chamava Kate Casey.

A madre superiora concordou fazendo um sinal com a cabeça e disse:

A irmã Mary Ursula, em religião. Poirot, então, explicou:

Há certas coisas que precisam de ser esclarecidas. Julgo que a irmã Mary Ursula me poderá ajudar. Ela tem informações que podem ser valiosas.

A madre superiora abanou a cabeça. Com a sua face tranquila, com a sua voz calma e remota disse:

A irmã Ursula não poderá ajudá-lo!

Mas eu asseguro-lhe que... Poirot parou de repente.

Então a madre superiora disse:

A irmã Mary Ursula morreu há dois meses!

No bar do hotel de Jimmy Donovan, Poirot sentava-se desconfortavelmente com as costas encostadas à parede. Não se poderia chamar a isto um hotel. A cama estava partida e a janela do quarto tinha também dois vidros partidos, deixando entrar aquele ar da noite que Poirot detestava. A água quente que pediu estava morna e a refeição que havia comido causava-lhe curiosas e dolorosas sensações no estômago.

Havia mais cinco homens no bar; falavam sobre política. Poirot não compreendia a maior parte das coisas que eles diziam. De resto, também não se interessava. De repente, sentiu um deles sentar-se ao seu lado. Era de uma classe um pouco diferente dos outros. Tinha a marca de um homem da cidade.

Com muita dignidade, o homem disse:

Afirmo-lhe que o cavalo Pride de Pegeen não tem nenhuma probabilidade de ganhar. Acredite-me... toda a gente devia acreditar no que eu digo. Sabe quem eu sou? Atlas é o meu nome, Atlas do Dublin Sun... Levei toda a

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temporada a dizer que o cavalo não ganharia... Não ganhei no cavalo Girl de Larry? Vinte e cinco libras contra uma! Siga o que Atlas diz e não poderá errar!

Poirot olhou para ele com uma estranha reverência e, depois, disse com a voz trémula:

Mon Dieu Será um presságio?

Tinham passado algumas horas. A Lua mostrava-se de tempos a tempos espreitando coquetemente por detrás das nuvens, Poirot e o seu novo amigo já tinham caminhado algumas milhas. O primeiro coche. Atravessou-lhe o espírito a ideia de que havia sapatos melhores que os seus de cabedal, para caminhar no campo. George tinha-lhe dado a entender que uns sapatos grossos eram mais apropriados para andar no campo. Porém, Poirot não fizera caso. Gostava de ver os pés bem calçados. Mas agora, caminhando ao longo deste carreiro pedregoso, convenceu-se de que havia outros sapatos.

É este o caminho que o padre me indicaria? Não terei eu um pecado mortal na minha consciência?

Você está somente restituindo a César o que é de César disse Poirot.

Tinha chegado ao muro do convento. Atlas preparava-se para fazer a sua parte. Com um gemido exclamou que estava completamente arrasado!

Hercule Poirot falou-lhe com autoridade:

Esteja calado. Não é o peso do mundo que você vai suportar, é apenas o peso de Hercule Poirot.

Atlas, olhando fixamente duas notas novas de cinco libras disse cheio de esperança:

Talvez amanhã de manhã já me lembre como as ganhei. Receio que o padre O’Reily me repreenda.

Esqueça-se de tudo, meu amigo. Amanhã o mundo será seu.

Atlas murmurou:

E em que cavalo apostarei eu? No Working Lad! É um grande cavalo, um bonito cavalo. Em Sheila Royne! Aposto nela sete contra um. Calou-se e, depois, acrescentou:

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É fantasia minha ou ouvi-o mencionar o nome de um deus pagão? Hercule, disse o senhor? Deus seja louvado! Realmente há um cavalo de nome Hercule que corre amanhã.

Meu amigo disse Poirot, aposte o seu dinheiro nesse cavalo. Eu digo-lhe que Hercule não poderá falhar!

E foi certo, no dia seguinte, inesperadamente, o vencedor foi o cavalo Hercule, de um tal Mr. Rosslyn.

Hercule Poirot desfez o pacote que estava elegantemente embrulhado. Primeiro o papel castanho, depois o algodão e por fim o papel de seda. Na secretária, em frente de Emery Power, colocou uma reluzente taça de oiro. Gravada nela via-se uma árvore com maçãs de esmeraldas. O milionário suspirou profundamente e disse:

Os meus parabéns, M. Poirot.

Hercule Poirot inclinou-se. Emery Power estendeu a mão acariciando a taça com os dedos e num tom de voz profundo exclamou:

Minha!

Hercule Poirot concordou:

Sua!

O outro suspirou. Recostou-se e perguntou:

Onde a encontrou?

Encontrei-a num altar respondeu Poirot. Emery Power fixou-o pasmado e Poirot continuou:

Uma filha de Casey era freira. Estava para tomar os últimos votos quando o pai morreu. Era uma rapariga ignorante, mas devota. A taça estava escondida em casa do pai, em Liverpul. Levou-a para o convento como penitência pelos pecados do pai. Ofereceu-a para ser usada em glória de Deus. Acho que as freiras nunca descobriram o seu valor. Tomaram-na, provavelmente, como uma relíquia de família, aos seus olhos era um cálice e como tal a usavam.

Emery Power, entusiasmado, exclamou:

Que história extraordinária! Que é que o levou ao convento?

Poirot encolheu os ombros:

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Talvez, um processo de eliminação. E havia ainda o facto extraordinário de que ninguém tentou jamais desfazer-se da taça. Isso dava a entender que ela se encontrava num lugar onde as coisas materiais não tinham valor. Lembrei-me que a filha de Patrick Casey era freira e...

Bem, dou-lhe outra vez os meus parabéns disse Power com alegria. Diga-me quanto lhe devo e passo-lhe um cheque.

Hercule Poirot respondeu:

Não me deve nada!

O outro fixou-o, pasmado.

Que significa isso?

Quando era pequeno leu, alguma vez, contos de fadas? Nelas o rei dizia sempre: Pede-me o que quiseres!

Então sempre pede qualquer coisa.

Sim, mas não dinheiro! apenas um simples favor!

Bem! E que é? Quer uma informação sobre a bolsa?

Não, isso seria também dinheiro, mas de outra forma. O meu pedido é mais simples do que isso.

Que é, então?

Hercule Poirot colocou as mãos sobre a taça:

Devolva isto ao convento!

Fez-se um silêncio. Depois Emery Power perguntou:

Está doido?

Poirot abanou a cabeça:

Não, não estou doido! Veja, eu mostro-lhe uma coisa...

Levantou a taça e com o dedo carregou nas maxilas da cobra que estava enrolada na árvore. O fundo da taça deslocou-se mostrando o pé oco.

Vê? Esta era a taça em que o papa Bórgia bebia. Através deste buraco o veneno passava para a bebida. Você mesmo disse que a história desta taça era diabólica. Violência e sangue e paixões diabólicas acompanharam sempre quem a possuía. Talvez alguma desgraça lhe aconteça.

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Superstição!

Possivelmente! Mas porque tem tanto empenho em possuir esta peça? Certamente que não é só pela sua

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beleza. Nem pelo seu valor. O senhor tem uma centena, talvez um milhar de coisas belas e raras. Quere-a para satisfazer o seu orgulho. O senhor estava resolvido a não ser derrotado, Eh bien, não foi derrotado. Ganhou! A taça está em seu poder. Mas porque não há-de ter agora um gesto grande, um gesto supremo? Mande-a para onde há dez anos ela tem estado em sossego. Deixe que a sua maldição seja ali purificada. Pertenceu uma vez à Igreja, deixe-a voltar para a Igreja. Deixe-a mais uma vez sobre o altar, purificada e absolvida como nós esperamos que as almas dos homens sejam também purificadas e absolvidas dos seus pecados.

Inclinou-se para a frente e, após uma breve pausa, prosseguiu:

Permita-me que lhe descreva o lugar onde a encontrei: o Jardim da Paz, dando para o mar ocidental, para um esquecido Paraíso de Juventude e Eterna Beleza. E continuou, descrevendo em simples palavras o remoto encanto de Inishgowlan.

Emery Power recostou-se, com a mão sobre os olhos, e disse finalmente:

Nasci na cosia ocidental da Irlanda. Deixei a terra quando era rapaz para ir para a América...

Poirot, gentilmente, interrompeu-o:

Eu sei!

O milionário levantou-se. Os seus olhos voltaram a ter a mesma expressão de astúcia. E, então, um fraco sorriso lhe assomou nos lábios:

Você é um homem estranho, M. Poirot. Faço-lhe a vontade. Leve a taça para o convento como oferta minha. Um presente bastante caro. Trinta mil libras. E que terei em troca?

Poirot respondeu gravemente:

As freiras rezarão missas por sua alma.

O sorriso do ricaço abriu-se era um sorriso ávido, faminto:

No fundo, pode ser uma colocação de dinheiro. Talvez a melhor que eu tenha feito até hoje!

No locutório do convento, Hercule Poirot contou a sua história e restituiu o cálice à madre superiora.

Diga-lhe que agradecemos e que rezaremos por ele disse a religiosa.

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Ele precisa das vossas preces respondeu Poirot.

Então, é um homem infeliz? Poirot respondeu:

Tão infeliz que já se esqueceu o que significa a palavra felicidade. Tão infeliz que não sabe que é infeliz.

A freira murmurou suavemente:

Ah! É um homem rico!...

Poirot nada disse pois sabia que não havia mais nada a dizer...

XII A CONQUISTA DE CÉRBERO

Hercule Poirot, balançando de um lado para outro, no metropolitano, atirado ora de encontro a um corpo ora a outro, pensava para si que havia pessoas a mais no mundo! Certamente, havia pessoas a mais no mundo subterrâneo de Londres àquela hora da tarde, às seis e meia da tarde. Calor, barulho multidões, proximidade os desagradáveis apertos de mãos, braços, corpos, ombros... Cercado e apertado por estranhos, pensava ele desgostoso um lote de estranhos simples e desinteressantes. A humanidade vista assim, em massa, não era atraente. Poucas vezes se via uma cara brilhando de inteligência, poucas vezes se via une femme bien. Que fúria atacava as mulheres para assim tricotarem num comboio cheio de gente? Mas as mulheres conseguiam fazê-lo! Se acontecia arranjarem lugar, aparecia logo uma linha cor de camarão e imediatamente se ouvia o clique-clique das agulhas.

Nem repouso, pensava Poirot, nem graça feminina. O seu espírito antiquado revoltava-se contra o esforço e a pressa do mundo moderno. Todas estas jovens que o cercavam, eram tão iguais e sem encanto, tão faltas de feminilidade rica e sedutora! Ah! Ver uma femme du monde cherie simpática, spirituelle, uma mulher com curvas amplas, uma mulher extravagantemente vestida! Antigamente havia dessas mulheres... Mas, agora, agora...

O comboio parou numa estação. Uma onda de pessoas saiu, empurrando Poirot contra um par de agulhas

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de tricot. Uma outra onda entrou, apertando ainda mais. O comboio pôs-se novamente em marcha com um esticão. Poirot foi atirado contra uma mulher gorda, carregada de embrulhos pesados; disse Pardon e chocou com um homem cuja mala o magoou. Sentiu que o seu bigode começava a tremer. Quel enter! Felizmente sairia na estação seguinte. Cerca de mais umas cem pessoas saíram também nessa estação que era Picadilly Circus. Como uma onda enorme tivesse inundado a plataforma, Poirot encontrou-se outra vez apertado na escada que o levaria à superfície da terra. Eis-me fora pensou Poirot das regiões infernais... Doía-lhe o joelho que tinha apanhado com uma mala quando subia as escadas.

Nesse momento uma voz pronunciou o seu nome. Poirot levantou os olhos. Nas escadas que desciam deparou-se-lhe uma figura do passado. Uma mulher de formas cheias. Na cabeça, de farta cabeleira ruiva, usava um chapéu enfeitado de pequenos pássaros e peles exóticas cobriam-lhe os ombros; tinha a boca vermelha, completamente aberta e a sua voz estrangeirada ecoou com fragor. Tinha bons pulmões.

-É isso! gritou! Mas é isso! Mon cher Hercule Poirot! Devemos encontrar-nos novamente, insisto. Mas o destino é menos inexorável que o comportamento de duas escadas movendo-se em sentido contrário. Firmemente, sem demora, Hercule Poirot tinha sido levado para cima enquanto a condessa Vera Rossakoff era levada para baixo. Torcendo-se para o lado, inclinando-se na balaustrada, Poirot gritou desesperadamente:

Chère madame... Onde poderei encontrá-la?

A resposta chegou fracamente, vinda das profundezas. Parecia, naquele momento, estranhamente distante:

No Inferno!

Poirot pestanejou e tornou a pestanejar. De repente cambaleou. Sem dar por isso tinha alcançado o andar superior e tinha-se esquecido de seguir como devia ser. A multidão passava apressada a seu lado. Um pouco mais adiante outra multidão comprimia-se na escada que descia. Poderia juntar-se-lhe? Que tinha querido dizer a condessa? Sem dúvida que viajar nas entranhas da terra, àquela hora de movimento, era o Inferno. Se tinha sido

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isso o que a condessa queria dizer não podia deixar de concordar com ela...

Resolutamente, Poirot introduziu-se na multidão que descia e desceu outra vez às profundezas. No princípio da escada nem sinal da condessa. Poirot ficou sem saber que cor de luz devia seguir.

Tinha a condessa optado pela Bakerloo Line ou pela Picadilly Line? Poirot foi a todas as plataformas em volta. Andou no meio das multidões que deixavam ou tomavam os comboios, mas em lado nenhum descobriu a vistosa figura russa, a condessa Vera Rossakoff.

Cansado, derrotado e desanimado, Hercule Poirot, uma vez mais, subiu à superfície e embrenhou-se na multidão de Picadilly Circus. Chegou a casa numa excitação terrível. O infortúnio dos homens pequenos a desejarem mulheres grandes e vistosas! Nunca tinha conseguido escapar à fascinação fatal que a condessa exercia sobre ele. Embora quase vinte e cinco anos tivessem passado desde a última vez que a tinha visto ainda sentia a sua magia. Embora a pintura que ela agora usava fizesse recordar o pôr do Sol de um cenário, para Poirot ela representava ainda a mulher sumptuosa e atraente que ainda fazia ferver o sangue do pequeno burguês. A maneira hábil dela roubar as jóias ressuscitou a velha admiração que sempre tivera por ela: encontrara-a outra vez e de novo a perdera!

No Inferno, tinha ela dito. Os seus ouvidos não o teriam enganado? Teria ela mesmo dito isso?

Que quereria ela significar com aquela palavra? Referia-se aos metropolitanos de Londres? Ou deveriam tomar-se as suas palavras no sentido religioso? Mesmo que o seu modo de vida a destinasse ao Inferno, a sua cortesia russa não devia sugerir-lhe que Hercule Poirot também estivesse destinado a ir para o mesmo lugar. Não! Ela devia referir-se a qualquer coisa muito diferente. Hercule Poirot estava pasmado. Que mulher tão misteriosa! Outra qualquer teria gritado: no Ritz ou no Claridge! Mas Vera Rossakoff tinha gritado acerbamente: Inferno!

Poirot suspirou, mas não se considerou derrotado. Apesar da sua perplexidade, adoptou, na manhã seguinte,

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o caminho mais fácil e directo; e aconselhou-se com a sua secretária, Miss Lemon.

Miss Lemon era inacreditavelmente feia mas muito eficiente. Poirot, para ela, não era ninguém em particular, era simplesmente o seu patrão.

Miss Lemon apresentava-lhe sempre um trabalho impecável. Os seus pensamentos e sonhos particulares estavam agora concentrados num novo sistema de arquivo que ela vagarosamente aperfeiçoava no interior do seu espírito.

Miss Lemon, posso fazer-lhe uma pergunta?

Certamente, M. Poirot! Mios Lemon parou de escrever e aguardou atentamente.

Se uma amiga lhe pedisse para se encontrarem no Inferno, que faria você?

Miss Lemon como de costume não pensou. Sabia, como é hábito dizer, responder a todas as perguntas.

Acho que seria aconselhável telefonar para lhe reservarem uma mesa.

Poirot olhou-a abismado. E, gaguejando, perguntou:

Telefonaria para lhe arranjarem uma mesa? Miss Lemon assentiu e puxou o telefone para junto de si:

Para hoje à noite? E tomando o silêncio de Poirot como assentimento, marcou o número rapidamente:

Temple Bar 14578? Fala do Inferno? Faz favor de reservar uma mesa para dois. M. Hercule Poirot. Onze horas.

Poisou o auscultador e os seus dedos tocaram nas teclas da máquina. Notava-se uma fraca expressão de impaciência nas suas feições. Já fiz o que devia parecia dizer a sua expressão. Agora, o patrão podia deixá-la continuar o trabalho. Mas Hercule Poirot precisava de uma explicação:

Mas, no fim de contas, que quer dizer isso do Inferno? perguntou ele.

Miss Lemon mostrou-se surpreendida:

Oh!, não sabe, M. Poirot? É um clube que está na moda, dirigido por uma russa. Posso arranjar tudo muito facilmente para o tornar sócio, ainda hoje.

Em vista de ter perdido bastante tempo (na sua opinião) atirou-se às teclas da máquina com rapidez.

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Às onze daquela noite, Poirot entrou num clube sobre cuja porta se via um anúncio luminoso. Foi recebido por um homem de farda vermelha que tomou conta do seu sobretudo. Indicou-lhe umas escadas que conduziam ao andar inferior. Em cada degrau estava escrita uma frase. A primeira dizia:

A minha intenção foi boa... A segunda:

Limpa bem a ardósia e começa de novo. A terceira:

Posso desistir quando quiser.

Eram as boas intenções que suavizavam o caminho para o Inferno. Hercule Poirot murmurou: C’est bien imagine, ca!

Desceu as escadas. Ao fim destas havia um tanque com água e lilazes escarlates. Sobre o tanque havia uma ponte em forma de barco pela qual Poirot passou. À sua esquerda, numa espécie de caverna de mármore sentava-se o maior, o mais feio e o mais preto cão que Poirot jamais tinha visto. E estava sentado, muito direito, esmagriçado e imóvel. Talvez não fosse real, pensou Poirot cheio de esperança. Mas naquele momento o cão virou a cabeça terrível e feroz e do fundo das entranhas saiu-lhe um gemido baixo e prolongado.

Era um gemido aterrorizador.

Poirot viu, então, um cesto enfeitado com biscoitos para cães, no qual se lia: Sopas para Cérbero! Os olhos do cão estavam fixos nos biscoitos. Mais uma vez se ouviu o seu rugido. Poirot, apressadamente, tirou um biscoito e atirou-o ao cão. Abriu-se uma boca cavernosa ouvindo-se, então, um estalido quando os poderosos maxilares do animal tornaram a fechar-se. Tinha aceitado a sopa. Poirot continuou o seu caminho. A sala não era grande. Havia umas mesinhas espalhadas e um espaço no meio para se dançar. Era uma sala iluminada por lâmpadas verdes e com quadros nas paredes e, ao fundo, uma grande grelha sobre a qual cozinheiros vestidos de diabo, com caudas e chifres, faziam os seus cozinhados.

Poirot reparou nisto tudo antes que a condessa Vera Rossakoff, com a sua natureza impulsiva de russa, aparecesse com um resplandecente vestido de noite escarlate e lhe estendesse as mãos.

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Ah!, sempre veio, meu querido meu muito querido amigo. Que alegria em vê-lo outra vez! Depois de tantos anos quantos? Não falemos nisso! Para mim, parece-me que foi ainda ontem. Você não mudou, não mudou nada!

Nem você, chère amie, disse Poirot curvando-se

sobre a mão da condessa.

No entanto, ele tinha, agora, a consciência de que vinte anos são vinte anos... A condessa Rossakoff podia ser descrita como uma ruína, mas como uma ruína espectacular. Ainda conservava a exuberância e o vigor pelos prazeres da vida. E sabia, melhor que ninguém, como lisongear um homem.

Levou Poirot para a sua mesa, onde se sentavam mais duas pessoas.

O meu amigo, o meu célebre amigo Hercule Poirot anunciou ela. É o terror dos malfeitores. Eu, uma vez, também tive medo dele, mas agora levo uma vida da mais virtuosa e extrema estupidez. Não é verdade? O homem velho e alto a quem ela se dirigia replicou:

Não diga isso, condessa.

O professor Liskeard, anunciou a condessa. Aquele que sabe tudo a respeito do passado e que me deu valiosas sugestões para estas decorações.

O arqueólogo teve um leve arrepio.

Se eu soubesse o que você pretendia fazer! murmurou ele. O resultado é apavorante!

Poirot observou os quadros com mais atenção. Olhando de frente, Orfeu com a sua banda de jazz, tocava, enquanto Eurídice olhava esperançadamente para a grelha. Na parede oposta viam-se Osíris e ísis destroçando um barco de recreio egípcio. Na parede da frente, alguns jovens nus divertiam-se tomando banho.

O País dos Jovens, explicou a condessa, e acrescentou no mesmo sopro e completando as apresentações: E esta é a minha pequenina Alice.

Poirot curvou-se para o segundo ocupante da mesa, uma jovem grave vestindo saia e casaco. Usava óculos com aros de tartaruga.

Ela é muito, muito esperta, disse a condessa Rossakoff. É formada em psicologia e sabe a razão por

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que todos os lunáticos são lunáticos. Não, como você pensaria, porque são malucos. Não, há muitas outras explicações. Eu acho isso muito estranho!

A jovem chamada Alice sorriu amável mas um pouco desdenhosamente. Numa voz firme perguntou ao professor se gostaria de dançar. Este pareceu lisongeado mas hesitante:

Minha jovem senhora, só sei dançar valsas!

Isto é uma valsa disse Alice pacientemente. Levantaram-se e dançaram, mas não dançavam bem. A condessa Rossakoff suspirou. Seguindo o fio dos seus pensamentos murmurou:

Sim, ela não é realmente feia...

Não tira partido de si mesma respondeu Poirot sentenciosamente.

Francamente disse a condessa não percebo a juventude desta época. Já não procuram agradar. Na minha mocidade sempre escolhia as cores que me iam bem. Fazia salientar o peito, apertava bem a cintura, tingia o cabelo com um tom mais interessante.

Puxou a madeixa que caía sobre a testa: era inegável que ela, pelo menos, tentava, e bastante, agradar.

Contentarmo-nos com o que a natureza nos dá é estúpido. E também arrogante! A pequena Alice escreve palavras compridas a respeito do sexo, mas quantas vezes me pergunto se um homem a convida para ir passar, um fim-de-semana a Brighton! O que escreve não passa de palavras compridas acerca do trabalho e do bem-estar dos trabalhadores e do futuro do Mundo. Tem muito valor mas pergunto: É divertido? E veja em que estado esta juventude tem posto o mundo! Tudo regulamentos e proibições. Não era assim, na minha juventude!

Agora me lembro: como está o seu filho, madame?

No último momento substituiu «filho» por «rapazinho», lembrando-se que já tinham passado vinte anos. A face da condessa iluminou-se num entusiasmo maternal:

O anjo amado! Tão crescido, tão jeitoso! Está na América. Constrói pontes, barcos, hotéis, armazéns, caminhos-de-ferro, tudo o que os americanos apreciam.

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Poirot parecia um pouco surpreendido:

Que é ele, então? Engenheiro ou arquitecto?

Que importância tem isso? perguntou a condessa. Ele é adorável! Só trabalha com vigas de ferro, maquinismos, e outras coisas importantes. Coisas que eu nunca compreendi. Adoramo-nos um ao outro. E por causa dele, adoro Alice. Sim, estão noivos. Encontraram-se num avião, num barco ou num comboio, amaram-se e tudo no meio de conversas sobre o bem-estar dos trabalhadores. Quando ela vem a Londres vem ver-me e eu aperto-a nos braços. A condessa cruzou os braços no seu amplo seio. E eu digo: Você e Niki amam-se, por isso eu também a amo, mas se o ama porque o deixa na América? Ela fala sobre o seu «emprego» e sobre o livro que está a escrever, a sua carreira e, francamente, eu não compreendo, mas digo sempre: deve ser-se tolerante! E acrescentou num só fôlego: E que pensa, mon cher, de tudo isto que eu imaginei?

É muito bem imaginado disse Poirot olhando com aprovação à sua volta. É muito chic!

A sala estava cheia e sentia-se aquele ar de sucesso que não podia ser negado. Viam-se casais lânguidos em fatos de gala, boémios com calças de bombazina, senhoras com fatos práticos. Os músicos vestidos de diabo tocaram languidamente. Não havia dúvida, aquilo era o Inferno.

Temos aqui todas as espécies disse a condessa. Está como deve ser, não é verdade? Os portões do Inferno estão abertos para todos!

Excepto, naturalmente, para os pobres sugeriu Poirot. A condessa riu: Não nos ensinaram que é difícil para um rico entrar no Reino dos Céus? Naturalmente deverá ter prioridade no Inferno.

O professor e Alice voltaram para a mesa, A condessa levantou-se:

Tenho que falar com Aristides.

Trocou algumas palavras com o chefe dos criados, um Mefistófeles magro, e, depois, foi de mesa em mesa falando com os convidados.

O professor limpando a testa e sorvendo um golo de vinho observou:

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A condessa tem personalidade, não tem? Sente-se que tem!

Desculpou-se e foi a outra mesa falar a um amigo. Poirot, só, ao lado da severa Alice, sentiu-se um pouco embaraçado quando encontrou os seus olhos azuis e frios. Achou-a bonita mas pouco acessível:

Ainda não sei o seu último nome murmurou ele.

Cunningham! Dr.a Alice Cunningham! Creio que conhece Vera há muito.

Há, talvez vinte anos!

Como é natural, acho-a um caso interessante disse Alice Cunningham. Naturalmente interesso-me por ela porque é a mãe do homem com quem vou casar, mas ela também me interessa sob o ponto de vista profissional.

Na verdade?

Sim! Estou a escrever um livro sobre psicologia criminal. Acho a vida nocturna deste lugar muito inspiradora. Há alguns tipos de criminosos que vêm aqui regularmente. Discuti com eles a sua vida passada! Sem dúvida que conhece todas as tendências criminosas de Vera. Bem, quero, quero dizer que ela rouba!

Sim, eu sei isso respondeu Poirot um pouco surpreendido.

Como sabe, ela rouba sempre coisas brilhantes. Nunca rouba dinheiro. Rouba, sempre, jóias. Em criança foi muito amimada e tratada com indulgência mas muito vigiada. A sua vida era terrivelmente estúpida, estúpida e sã. A sua natureza pedia drama, pedia castigo. Isso é a raiz da sua indulgência para com o roubo. Quer a importância, a notoriedade de ser punida!

A sua vida não deve ter sido sã e estúpida como membro do ancien regime na Rússia, durante a revolução objectou Poirot.

Uma expressão divertida passou pelos olhos azuis de Miss Cunningham:

Ah, um membro do ancien regime? Ela disse-lhe isso?

Sim, ela é indiscutivelmente uma aristocrata disse Poirot firmemente lutando contra certas desagradáveis

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recordações acerca das extravagantes aventuras da juventude da condessa, contadas por ela própria.

Uma pessoa só acredita no que deseja acreditar

observou Miss Cunningham, deitando-lhe um olhar profissional.

Poirot sentiu-se alarmado. Sentiu, num momento, que ela ia dizer-lhe qual era o seu complexo. Decidiu levar a guerra para o campo do inimigo. Apreciava a convivência da condessa Rossakoff, em parte devido à sua origem aristocrática e não ia estragar o seu prazer por causa de uma rapariguinha de óculos, com olhos de ganso cozido e um diploma de doutora em psicologia!

Sabe o que eu acho espantoso? perguntou ele. Alice Cunningham não admitia em palavras o que não sabia. Contentou-se em esperar pela sua explicação com um olhar aborrecido e indulgente. Poirot continuou:

Admira-me que você, que é jovem e que podia parecer bonita, se desse a esse trabalho. Bem, o que admira é que você não se dá realmente a esse trabalho. Usa um casaco grosso e uma saia com bolsos grandes, como se fosse jogar o golfe. Mas isto aqui não é campo de golfe. Além disso na cave subterrânea a temperatura é de sete graus Fahrenheit. O seu nariz está quente e brilha, mas não lhe põe pó. O baton que põe nos lábios não acentua as suas curvas! Você é uma mulher, mas não chama a atenção para o facto de ser uma mulher. E eu pergunto-lhe: Porque não? É uma pena!

Por um momento, Poirot teve a satisfação de ver Alice Cunningham com um ar humano. Viu mesmo um brilho de zanga nos seus olhos, mas reganhou imediatamente a sua atitude de desprezo.

Meu querido M. Poirot, receio que esteja fora da moderna ideologia. O verdadeiro é que interessa e não os enfeites.

Levantou os olhos quando um rapaz bonito e moreno se dirigiu para eles.

Este é o tipo mais interessante que conheço disse ela com entusiasmo. Paul Varesco! Vive à custa de mulheres e tem os mais depravados desejos. Quero que ele me diga mais alguma coisa sobre a nurse que tomou conta dele quando tinha três anos.

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Um momento depois Alice dançava com o rapaz, que, aliás, dançava divinalmente.

Quando ambos passaram perto da mesa. Poirot ouviu-a dizer:

E depois do Verão em Bognor ela deu-lhe como brinquedo um guindaste...

Um guindaste? Sim? Isso é muito sugestivo! Permitiu-se especular dizendo que esperava que o interesse de Miss Alice Cunningham pelos criminosos tivesse um dia como resultado que o seu corpo mutilado fosse encontrado num bosque solitário. Não gostava de Alice, mas era suficientemente honesto para compreender que o motivo do seu desagrado era devido ao facto de ela não se ter deixado impressionar por Hercule Poirot.

Então, viu qualquer coisa que momentaneamente afastou Alice do seu espírito. Numa mesa oposta à sua sentava-se um rapaz loiro. Vestia casaca e as suas maneiras mostravam que tinha um vida fácil e de prazeres. Em frente dele sentava-se uma rapariga de aspecto caro. Olhava para ela de uma maneira estúpida e enfatuada. Quem olhasse para ele diria: «Que rico mandrião.» No entanto, Poirot sabia muito bem que o rapaz não era rico nem mandrião. Era, de facto, o detective inspector Charles Stevens e pareceu a Poirot que ele estava ali em serviço.

Na manhã seguinte Poirot fez uma visita à Scotland Yard, ao seu velho amigo inspector Japp. A reacção de Japp às suas perguntas foi inesperada.

Sua velha raposa disse Japp com afecto. Surpreende-me a maneira como você consegue essas coisas!

Mas eu, asseguro-lhe, que não sei nada, nada mesmo. É apenas uma pergunta frívola.

Japp disse que Poirot podia dizer isso aos marinheiros.

Deseja saber tudo a respeito da boite Inferno? Bem, aparentemente é igual às outras. Devem estar a fazer muito dinheiro, embora as despesas sejam elevadas. Quem ostensivamente dirige aquilo é uma russa, chama-se a si própria condessa de qualquer coisa.

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Estou relacionado com a condessa Rossakoff disse Poirot friamente. Somos velhos amigos!

Mas ela não é senão um boneco disse Japp. Não empregou ali nenhum dinheiro. Deve ser o chefe dos criados, Aristides Papopoulo, quem tem ali interesse, mas nós não acreditamos que aquilo realmente lhe pertença. De facto, não sabemos a quem pertence.

E o inspector Stevens vai lá para descobrir isso?

Oh, você viu o Stevens? Um felizardo fazendo um trabalho daqueles à custa do contribuinte. Ele já descobriu alguma coisa!

Suspeitam que haja alguma coisa para descobrir?

Estupefacientes! Drogas em larga escala! E os estupefacientes são pagos não com dinheiro, mas em pedras preciosas.

Ah, sim?

A coisa é assim: Lady Blank, ou a condessa de qualquer coisa, encontra-se em dificuldades financeiras, mas em qualquer dos casos não quer tirar grandes somas de dinheiro do banco. Mas ela tem jóias, talvez herança de família! Estas são levadas para um lugar qualquer para serem limpas ou colocadas. Então, ali, as jóias são tiradas do estojo e substituídas por diamantes falsos. As pedras verdadeiras são vendidas aqui ou no Continente. É tudo muito simples: não há nem roubo nem queixas. Ou melhor: mais tarde descobre-se que uma tiara ou um colar são falsos. Lady Blank é toda inocência e medo. Não pode compreender como ou quando foi feita a substituição. O colar nunca esteve fora das suas mãos! Manda a polícia atrás de criadas despedidas, das mulheres-a-dias ou dos limpa-janelas duvidosos. Mas nós não somos assim tão estúpidos como estas aves da sociedade pensam. Tivemos vários destes casos uns a seguir aos outros. E encontrámos um factor comum todas as mulheres mostravam sinais de estupefacientes, nervos, irritabilidade, contorções, pupila dos olhos dilatada, etc. Assim a pergunta era: De onde conseguiam elas as drogas e quem estava à cabeça de tudo isto?

E, pensa, que a resposta é a boite Inferno?

Julgámos que aí é que é o quartel-general. Já descobrimos o lugar onde fazem a substituição das pedras uma casa chamada Golconda, Ltd. É aparentemente

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respeitável: imitações de pedras valiosas. E há um tal chamado Paul Varesco... Ah, vejo que o conhece!

Vi-o no Inferno.

Aí é que eu gostaria de o ver, no próprio lugar. O tipo não é tão mau como o fazem! Mas as mulheres, mesmo as mulheres decentes, comem da sua mão! Ele tem qualquer relação com a Golconda, Ltd., e tenho a certeza de que ele é o homem que está por detrás do Inferno. É o ideal para os seus fins: toda a gente ali vai, mulheres de sociedade, criminosos profissionais.. É o melhor lugar para encontros!

Pensa que a troca de jóias por estupefacientes se faz ali?

Sim! Nós sabemos a parte que a Golconda toma nisto, mas queremos, também, saber a outra, a parte dos estupefacientes. Queremos saber quem fornece a droga e de onde vem.

E tem alguma ideia sobre o caso?

Eu, penso que é a mulher russa, mas não temos provas. Há algumas semanas atrás pensávamos que tínhamos descoberto qualquer coisa. Varesco foi à Golconda escolher umas pedras e voltou direito para o Inferno. Stevens vigiava mas não o viu passar, a droga. Quando Varesco saiu agarrámo-lo, mas não encontrámos nele as pedras. Fizemos uma rusga ao clube, revistámos toda a gente. Resultado: nem pedras nem estupefacientes.

Um fiasco, não? Japp fez uma careta:

íamos quase metendo-nos num sarilho, mas felizmente, na rusga, apanhámos Peverel, o assassino de Battersea. Uma sorte. Suspeitava-se que ele tivesse fugido para a Escócia. Um dos nossos agentes reconheceu-o pelas fotografias. Tudo está bem quando acaba bem. Nós ficámos mal e a boite desde aí tem tido mais enchentes do que nunca.

Mas isso não avança na questão dos estupefacientes. Talvez haja um esconderijo no edifício!disse Poirot.

Deve haver mas nós não conseguimos encontrá-lo. Revistámos o lugar de alto a baixo. E aqui entre nós: houve uma busca não oficial. Não tivemos também

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sucesso nesta rusga. O homem ia sendo despedaçado por aquele maldito cão que dorme no edifício.

Ah, Cérbero?

Sim. Estúpido nome para um cão. Ir buscar o nome a um pacote de sal!

Cérbero murmurou Poirot pensativamente.

Porque não investiga o problema, Poirot? sugeriu Japp. É difícil, mas vale a pena. Detesto esse mercado de drogas, destrói o corpo e a alma das pessoas. Aquilo realmente é o Inferno!

Poirot murmurou pensativamente:

Sim, eu darei uma volta. Sabe qual foi o décimo segundo Trabalho de Hércules?

Não faço ideia.

A Captura de Cérbero. É apropriado, não é?

Não sei de que está a falar, meu amigo, mas lembre-se: cão que come homens!

Japp recostou-se e riu estrondosamente.

Queria falar-lhe muito a sério disse Poirot.

Era cedo e o clube estava quase vazio. A condessa e Poirot sentavam-se numa mesa perto da porta.

Mas eu não me sinto capaz disso protestou ela. La petite Alice, está sempre séria e, entre nous, acho isso bastante aborrecido. Meu pobre Niki, que alegria irá ele ter? Nenhuma.

Eu tenho por si muita afeição continuou Poirot firmemente. Não a quero ver no que se chama um sarilho.

Mas é absurdo o que você está para aí a dizer! Tenho o mundo na mão. O dinheiro entra facilmente.

É a dona deste clube?

Os olhos da condessa tornaram-se um pouco evasivos:

Certamente! replicou ela.

Mas tem um sócio... Não tem?

Quem lhe disse isso? perguntou a condessa asperamente.

O seu sócio é Paul Varesco?

Oh! Paul Varesco! Que ideia!

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Ele tem um recorde de crimes muito grande. Sabe que há criminosos que frequentam este lugar?

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A condessa rebentou a rir.

Oh, bon bourgeois! Sei isso perfeitamente! Então não vê que isso é metade dos atractivos deste lugar? Estes jovens de Mayfair cansam-se de ver sempre pessoas da sua qualidade à volta deles. Eles veem cá só para ver os criminosos: o ladrão, o chantagista, talvez mesmo o assassino, o homem que estará nos jornais de domingo na próxima semana. É excitante que eles pensem que vêem a vida! O mesmo faz o comerciante próspero, que vende durante a semana ceroulas, meias e coletes! E, então, o mais excitante é que ali a uma mesa, cofiando os bigodes, está o inspector da Scotland Yard. O inspector é um inspector com cauda.

Então, sabia isso disse Poirot suavemente. Os seus olhos encontraram os dele e ela sorriu:

Mon cher ami, não sou tão simples como supõe!

Também negoceia aqui em estupefacientes?

Ah, canoir E a condessa acrescentou rispidamente: Isso seria a abominação!

Poirot olhou-a por uns momentos e depois suspirou:

Acredito-a disse. Mas nesse caso é ainda mais importante do que nunca que me diga a quem pertence realmente este clube.

Pertence-me a mim respondeu ela bruscamente.

Nos jornais, sim! Mas há alguém por trás de si!

Sabe, mon ami, que o acho muito curioso? Não o achas muito curioso, Dou Dou?

A sua voz tornou-se um arrulho quando disse as últimas palavras e atirou o osso de pato do seu prato ao enorme cão negro, que o apanhou num fechar de maxilares.

Que é que você chama a esse animal? perguntou Poirot divertido.

C’est mon petit Dou Dou!

Mas isso é um nome ridículo!

Mas ele é adorável! É um cão-polícia e faz tudo, tudo! Olhe...

Vera levantou-se, olhou à sua volta e agarrou de repente um prato com um bife suculento e que tinha sido posto naquele momento numa mesa ao lado. Dirigiu-se para a casota de mármore, pôs o prato em frente do cão

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e ao mesmo tempo disse algumas palavras em russo. Cérbero olhou em frente. O bife parecia não existir.

Não são coisas de minutos! Se for preciso ele ficará assim horas e horas.

Nesse momento, disse uma palavra e, como um relâmpago, Cérbero baixou o comprido pescoço e o bife desapareceu como por encanto.

Vera Rossakoff abraçou o cão afectuosamente e, voltando-se para Poirot, disse:

Veja como ele é meigo. Eu, a Alice e os amigos, sim, os seus amigos fazem o que quiserem dele. É só dizer-lhe uma palavra e presto! Asseguro-lhe que rasgaria um polícia, por exemplo, em pedaços. Sim, em pedacinhos! E rebentou a rir.

Poirot interrompeu-a apressadamente. Enganou-se no senso de humor da condessa. O inspector Stevensons podia realmente estar em perigo.

O professor Liskeard quer falar consigo.

Tirou-me o bife queixou-se ele. Porque é que me tirou o bife? Era um bom bife!

Quinta-feira à noite, amigo disse Japp. É quando o balão vai ao ar. É o pombo do Andrews, claro está! É o corpo da polícia encarregado dos narcóticos, mas ele ficará satisfeito que você se junte a ele.

Não, obrigado, não quero nenhum desses seus xaropes. Tenho que tomar conta do meu estômago. Aquilo ali é uísque? A isto é que se chama uma bebida!

Pousando o copo continuou:

Penso que já resolvemos o problema. O clube tem outra saída e nós encontrámo-la!

Aonde?

Atrás do fogão. Parte dele desloca-se!

Mas certamente vocês a veriam.

Não, meu amigo. Quando a rusga começou as luzes apagaram-se. Alguém mexeu no contador. Ainda levámos alguns minutos para as acender outra vez. Ninguém saiu pela porta principal que estava a ser vigiada, mas agora está esclarecido que alguém podia ter saído pela passagem secreta durante a rusga. Examinámos a casa que está nas traseiras e aí está como descobrimos o truque.

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E o que se propõem fazer? Japp piscou o olho:

Isso estará de acordo com o plano: a polícia aparece, as luzes apagam-se e alguém estará à espera do outro lado da passagem secreta, para ver quem sai. Desta vez apanhámo-los!

Mas porquê quinta-feira? Japp piscou novamente o olho:

 Golconda está muito bem fornecida, agora. Na quinta-feira, irão entrar lá as esmeraldas de Lady Carrigron.

Permite-me disse Poirot que eu faça um ou dois pequenos arranjos?

Sentado na sua habitual mesa perto da entrada, Poirot, na noite de quinta-feira estudava os arredores. Como de costume o Inferno estava cheio.

A condessa apresentava-se, como sempre, provocante e mais pintada do que o usual, se possível fosse. Estava muito russa naquela noite; batia as mãos e ria às gargalhadas. Paul Varesco já tinha chegado. Envergava um casaco estreito e tinha um cachecol ao pescoço. Parecia vicioso e atraente. Afastando-se de uma mulher gorda, de meia-idade, carregada de diamantes, inclinou-se para Alice Cunningham, que sentada a uma mesa, escrevia atarefadamente num pequeno caderno de notas e convidou-a para dançar. A mulher gorda deitou um olhar zangado a Alice e olhou para Varesco com adoração. Não havia adoração nos olhos de Alice: brilhavam com um puro interesse científico e Poirot apanhou alguns fragmentos da sua conversa, quando passaram, dançando, por ele. Já tinha passado o assunto da nurse e agora pedia informações acerca da matrona da escola preparatória de Paul. Quando a música parou, sentou-se ao pé de Poirot parecendo feliz e excitada.

Muito interessante disse ela. Varesco será dos casos mais curiosos do meu livro. O simbolismo é acertado. Você pode dizer que ele é um tipo acabado de criminoso, mas pode curar-se.

Poder regenerar um libertino tem sido sempre uma das mais queridas aspirações da mulher.

Alice Cunningham olhou-o friamente:

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Não há nada de pessoal nisto, M. Poirot.

Nunca há disse Poirot nada de pessoal! É um desinteressado altruísmo que me anima, mas o objecto é sempre um membro atraente do sexo oposto. Está, por acaso, interessada em saber qual foi a minha escola ou qual foi a atitude da matrona para mim?

Você não é um criminoso disse Alice.

Sabe distinguir o tipo criminal quando vê algum?

Certamente que sei!

O Prof. Liskeard juntou-se a eles e sentou-se ao pé de Poirot.

Estão a falar a respeito de criminosos? Devia estudar o código penal de Hammurabi, M. Poirot. 1800 anos a. C. É interessante, mesmo muito interessante. O homem que é apanhado a roubar durante um incêndio será atirado ao fogo.

Olhou com prazer para o fogão eléctrico.

E há outras leis sumárias mais antigas. Se uma mulher casada diz ao marido: vós não sois meu marido, será atirada ao rio. Mais barato e mais fácil do que ir com uma acção de divórcio para os tribunais. Mas se um marido diz à mulher que ele só tem que lhe pagar uma certa quantidade de dinheiro ninguém o atira ao rio...

A mesma história de sempre, Alice. Uma lei para o homem e outra para a mulher.

As mulheres, sem dúvida, apreciam mais o valor monetário, disse o professor pensativamente. Sabe acrescentou ele, gosto deste lugar. Venho aqui todas as noites. Não tenho que pagar. A condessa arranjou-me isto muito amável da parte dela em consideração ao meu conselho sobre as decorações. Não tenho nada a ver com isto. Não tive a mínima ideia porque ela me fazia perguntas. Ela e o artista compreenderam mal. Espero que ninguém saiba jamais que tive a mais pequena ligação com estas coisas horríveis. Nunca seria capaz de suportá-lo. Ela é uma mulher encantadora, muito parecida com uma babilónia. As babilónias sabiam de negócios!

As palavras do professor morreram num barulho inesperado. Ouviu-se a palavra polícia. As mulheres levantaram-se e houve uma confusão de barulho. As luzes e o fogão eléctrico apagaram-se. A voz do professor

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continuou tranquilamente a recitar vários trechos das leis de Hammurabi.

Quando as luzes reapareceram, Poirot já estava a meio caminho dos degraus. Os polícias que estavam à porta saudaram-no, saiu para a rua e encaminhou-se para a esquina. Mesmo ao virar da esquina, encostado à parede, estava um homenzinho malcheiroso, de nariz encarnado que lhe segredou ansioso:

Estou aqui, chefe. Já posso fazer o meu trabalho?

Sim, vai!

Há uma quantidade de polícias por aqui!

Não faz mal, já lhes falei a teu respeito.

Espero que eles não interfiram.

Eles não interferirão. Tens a certeza de que és capaz de fazer o que te foi dito? O animal em questão é grande e feroz.

Ele não será feroz para mim disse o homenzinho confiadamente. Não, com o que eu tenho aqui qualquer cão me seguirá até ao Inferno por isso.

Nesse caso murmurou Poirot, tenho que pôr-te fora do Inferno.

Logo de manhã o telefone tocou. Poirot levantou o auscultador.

A voz de Japp disse:

Você pediu-me que lhe telefonasse.

Pois, eh bien?

Nenhuma droga, mas apanhámos as esmeraldas.

Aonde?

No bolso do professor Liskeard.

O professor Liskeard?

Também se surpreende? Francamente, não sei o que pensar. Ele parecia tão admirado como um miúdo. Fixou as pedras pasmado e disse que não tinha a menor ideia de como é que elas tinham ido parar ao seu bolso, e, com os diabos, acredito que ele dizia a verdade. Varesco podia tê-las lá posto facilmente quando as luzes se apagaram. Não concebo que um homem como o velho Liskeard esteja ligado a negócios desta espécie. A única coisa em que ele gasta dinheiro é em livros, a maior parte deles em segunda mão. Não enquadra nesta história. Começo a pensar que estamos errados nisto tudo e que nunca houve nenhum estupefaciente naquele clube.

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Houve sim, meu amigo. Eles estiveram lá nessa noite. Diga-me, passou alguém pela passagem secreta?

Sim, o príncipe Henry de Scandenberg e o seu intendente. Só ontem chegou a Inglaterra. Vitamian Evans, o ministro do Gabinete. O diabo é ser ministro, tem que se ter cuidado. Lady Beatrice Viner foi a última. Está para casar depois de amanhã com o vaidoso duque de Leomnister. Não acredito que algum destes nobres estivesse envolvido nisto.

Você, pensa acertadamente. No entanto, a droga esteve no clube, alguém conseguiu tirá-la de lá.

Quem?

Eu, mon ami disse Poirot suavemente. Pousou o auscultador cortando a voz de Japp, quando a campainha tocou. Foi abrir a porta. A condessa Rossakoff entrou.

Se não fôssemos amigos e já velhos era comprometedor eu vir cá exclamou. Como vê aqui estou, como dizia no seu bilhete. Suponho que um polícia anda atrás de mim, mas ele pode ficar na rua. E agora, meuamigo, que deseja?

Poirot amavelmente ajudou-a a tirar o casaco de peles.

Porque pôs aquelas esmeraldas no bolso do professor Liskeard? perguntou ele. Ce n’est pas gentille cê que vous avez fait lá!

Os olhos da condessa abriram-se muito.

A minha intenção foi pôr as esmeraldas no seu bolso.

No meu bolso?

Certamente! Dirigia-me apressadamente para a mesa onde você habitualmente se senta, mas as luzes apagaram-se e suponho que por inadvertência as pus no bolso do professor.

E porque queria pôr as esmeraldas roubadas no meu bolso?

Pareceu-me, compreende, que tinha que pensar rapidamente a melhor coisa a fazer!

Realmente, Vera, você é ímpagable!

Mas, meu querido amigo, pense. A polícia chega, as luzes apagam-se e uma mão tira a minha carteira da mesa. Eu puxei-a e senti através do veludo que havia

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qualquer coisa dura dentro. Meti a mão e pelo tacto vi que eram jóias e compreendi, num instante, quem lá as tinha posto. Ah, compreende? Pois claro, é aquele lagarto, aquele monstro, aquele embusteiro, aquele miserável filho de um porco do Paul Varesco.

O homem que é seu sócio no Inferno?

Sim! Sim, é esse, e é ele quem levanta o dinheiro. Até hoje nunca o traí. Eu confiava! Mas agora que esse duas-caras experimentou embrulhar-me com a polícia, ah!, agora, posso dizer o seu nome:Sim, conto tudo!

Acalme-se disse Poirot, e venha comigo para a outra sala.

Abriu a porta. Era uma sala pequena e parecia por momentos estar cheia com o cão. Cérbero, já parecia grande nas salas espaçosas do Inferno. Na sala de trabalho aconchegada de Poirot, parecia que não havia mais nada senão Cérbero. Estava lá também o homenzinho malcheiroso.

De acordo com o plano, aqui estamos, chefe, disse o homenzinho numa voz rouca.

Dou Dou! gritou a condessa. Cérbero abanou a cauda mas não se moveu.

Deixe-me apresentá-la a Mr. Williams Higgs. Um mestre na sua profissão. Durante o brouhaha de ontem à noite continuou Poirot, o Sr. Higgs induziu Cérbero a segui-lo, para fora do Inferno.

Você induziu-o? A condessa olhou incredulamente para o homenzinho.

Mas como?, como?

Higgs baixou os olhos corando.

Não gostaria de dizê-lo em frente de uma senhora. Mas há coisas a que os cães não resistem. Um cão pode seguir-me onde quer que eu deseje. Claro está, que não daria o mesmo resultado com cadelas. Isso é diferente. A condessa voltou-se para Poirot:

Mas porquê?

Poirot respondeu vagarosamente:

Um cão, treinado para esse fim, levará qualquer pacote até que lhe seja ordenado que o deixe. Conservá-lo-á, se for preciso, muitas horas.

É capaz de dizer ao seu cão que deixe cair o que ele segura?

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Vera Rossakoff olhou, voltou-se e disse duas palavras rápidas. Os grandes maxilares de Cérbero abriram-se. Então é que foi realmente alarmante. A língua de Cérbero parecia querer sair-lhe da boca.

Poirot adiantou-se e apanhou um pacotinho que estava dentro de uma caixa de borracha. Desembrulhou e dentro havia pó branco.

Que é isso? perguntou a condessa rapidamente. Poirot respondeu:

Cocaína. Uma pequena quantidade no valor de milhares de libras para quem tivesse vontade de as dar... O suficiente para trazer a ruína e a miséria a centenas de pessoas.

Vera parou de respirar e gritou:

E o senhor pensa que eu... Mas isto não é assim! Juro-lhe que isto não é verdade! Há muitos anos divertia-me tirando jóias, bibelots e pequenas curiosidades. Tudo ajuda qualquer pessoa a viver, compreende? Era a minha tendência, porque não? Porque deverá uma pessoa fazer uma coisa de preferência a outra?

A senhora distingue o bem do mal, disse Poirot. Ela continuou:

Mas drogas... isso, não! Porque isso causa miséria, dor, degeneração! Não tinha ideia, não tinha a mais pequena ideia que o meu encantador, tão inocente, tão agradável Inferno, fosse usado para aquele fim!

Eu concordo consigo a respeito do estupefaciente disse Mr. Higgs. Narcotizar um cão é uma porcaria, isso é! Nunca tinha encontrado nada neste género!

Mas, diga-me que me acredita, meu amigo implorou a condessa.

Mas sem dúvida, eu acredito-a! Não me incomodei eu bastante para condenar o principal organizador deste comércio de estupefacientes? Não realizei eu o décimo segundo Trabalho de Hércules e não trouxe Cérbero do Inferno para provar o meu caso? Porque, digo-lhe, não gosto de ver os meus amigos acusados sem razão. Sim acusados sem razão, porque seria a senhora a sofrer as consequências se as coisas corressem mal! Claro que as esmeraldas teriam sido encontradas no seu saco de mão se alguém (assim como eu) não tivesse sido suficientemente esperto para suspeitar de um esconderijo

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na boca de um cão selvagem. Eh bien, o cão é seu não é? Acontece que ele aceita la petite Alice, ao ponto de obedecer às suas ordens, também! Sim, a senhora podia ter aberto os olhos! Desde o primeiro dia antipatizei com aquela rapariga, com a sua gíria científica, a sua capa e a sua camisola com grandes bolsos. Sim, bolsos. É pouco natural que qualquer mulher possa desdenhar assim a sua aparência! E o que me indicou nela que era uma acusação fundamental, fundamental para mim, foram os bolsos. Bolsos em que ela podia tirar jóias, uma pequena troca facilmente realizada enquanto dançava com o cúmplice, que ela pretendia considerar apenas como um caso psicológico. Mas que truque! Ninguém suspeitava da seriedade da cientista, com uma formatura em medicina e aqueles óculos. Ela pode fazer contrabando da droga e induzir os seus ricos pacientes a adquirirem o hábito e realizar o dinheiro suficiente para um clube e arranjar que ele seja dirigido por alguém, como diremos, com uma pequena fraqueza no seu passado. Mas ela não despista Hercule Poirot; pensa que pode enganá-lo com as conversas sobre nurses e vestuário! Eh bien, fui ensinado por ela. As luzes apagaram-se. Rapidamente, levantei-me da mesa e fui colocar-me perto de Cérbero. Na escuridão ouvia-a chegar. Abriu a boca do cão e introduziu-lhe o pacote e eu, delicadamente, sem ela dar por isso, com uma tesourinha cortei um pedacinho de uma das suas mangas.

Dramaticamente mostrou um pedaço do tecido.

Veja o senhor é o mesmo material. E posso dá-la a Japp para ele o adaptar ao lugar de onde foi tirado, fazer a captura e mostrar uma vez mais a esperteza da Scotland Yard.

A condessa fixou Poirot estupefacta. De repente soltou um lamento semelhante a um grito de socorro no nevoeiro.

Mas, o meu Niki, o meu Niki! Isto será terrível para ele! Fez uma pausa e depois perguntou:

O senhor não crê isso?

Há muitas raparigas na América disse Hercule Poirot. E acrescentou:

E a não ser por a senhora sua mãe poder estar na prisão na prisão com os cabelos cortados sentada numa cela e cheirando a desinfectante!

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Ah, mas o senhor é maravilhoso, maravilhoso! Atirando-se para a frente apertou Poirot nos braços,

abraçou-o com fervor verdadeiramente eslavo. Mr. Higgs olhava. O cão Cérbero batia com a cauda no soalho.

No meio desta cena de alegria ouviu-se o tocar de uma campainha.

Japp! exclamou Poirot desembaraçando-se dos braços da condessa.

Seria melhor talvez passar à outra sala disse a condessa.

Escapou-se pela porta de comunicação. Poirot encaminhou-se para o lado da porta da entrada.

Meu Deus suspirou ansiosamente Mr. Higgs. é melhor ver-se ao espelho, não acha?

Poirot assim fez e recuou. Baton e rouge ornamentavam-lhe a face, numa mistura fantástica.

Se é Mr. Japp da Scotland Yard pode pensar o pior seguramente disse Mr. Higgs.

Enquanto a campainha retinia de novo e Poirot tentava febrilmente tirar o baton das pontas do bigode acrescentou:

O que tenho eu a fazer? Veja isto, também. O que se há-de fazer a este cão do Inferno?

Se bem me lembro disse Poirot, Cérbero voltou para o Inferno.

Justamente como quiser disse Mr. Higgs. De facto, eu tive uma ideia a seu respeito... Todavia, não é ainda o género de coisas de que eu gosto de me encarregar. E penso no que esse bicho pode custar-me em ossos ou carne de cavalo. Come muito mais do que um leão pequeno, creio eu.

Do Leão de Nemeia à Captura de Cérbero murmurou Poirot. Está completo.

Uma semana mais tarde Miss Lemon apresentou uma conta ao patrão:

Desculpe, Mr. Poirot. Devo pagar Isto? Leonora, Florista. Rosas Vermelhas. Onze libras, seis

xelins e seis pence. Enviado para a Condessa Vera Rossakoff, Inferno 13, End. St. W. C.

Como as rosas, vermelhas estavam as faces de Hercule Poirot. Corou, corou até às meninas dos olhos.

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Perfeitamente em ordem, Miss Lemon. Um pequeno, sim, um pequeno tributo para uma ocasião.

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O filho da condessa acaba de ficar noivo, na América, da filha do patrão, um magnate do aço. Rosas vermelhas, se bem me recordo, são as flores que ela prefere.

Muito bem disse Miss Lemon. São muito caras nesta época do ano!

Há momentos disse Poirot em que não se devem fazer economias.

Cantarolando, encaminhou-se para a porta. O seu andar era alegre, vivo. Miss Lemon esqueceu a sua habitual maneira de ser. Todo o seu instinto feminino despertou.

Deus louvado murmurou ele. Eu pasmo... Realmente, na sua idade!... Certamente que não...

FIM

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, obras de AGATHAARRASTADO NA TORRENTE

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Tradução de MASCARENHAS BARRETOCapa de ANTÓNIO PEDRO

Título da edição original TAKEN AT THE FLOOD

Copyright (g) 1948, by Agatha Christie Mallowan

Reservados todos os direitos pela legislação em vigor

VENDA INTERDITA NA REPÚBLICA FEDERATIVA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL

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(ANTEPRÓLOGO)

Cada homem tem na vida uma maré que, ao sabor da corrente, aproveitada, pode levá-lo à fortuna; descuidada, toda a viagem da sua vida terá por fim, só baixios e misérias. Em tal maré, vamos à tona de água. Temos de aproveitar uma corrente favorável ou perderemos a desejada ventura.

SHAKESPEARE

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PRÓLOGO

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Há em todos os clubes um sócio maçador. O Coronation Club não constituía excepção, e o facto de, naquele momento, estar a decorrer um ataque aéreo não alterava de forma alguma o procedimento habitual desse sujeito.

O major Porter, antigo oficial do Exército da índia, agitou ruidosamente o jornal e pigarreou. Todos os circunstantes lhe evitaram o olhar, mas isso de nada lhes valeu.

Vejo que o Times publica a notícia da morte de Gordon Cloadecomentou.Discretamente, já se sabe. No dia 5 de Outubro, em consequência de um ataque inimigo. Não indicam morada. Na realidade, morava na casa da esquina logo a seguir à minha modesta residência. Um desses grandes edifícios ao cimo de Campden Hill. Confesso-lhes que me chocou bastante. Como sabem, sou um Warden Cloade tinha acabado de regressar dos Estados Unidos. Tinha lá ido por causa desse assunto de Compras do Governo. Casou-se, enquanto lá esteve, com uma viúva nova... tão nova que podia ser filha dele. Mrs. Underhay. Na realidade, conheci o seu primeiro marido na Nigéria.

O major Porter fez uma pausa. Ninguém se mostrou interessado ou lhe pediu que continuasse. Os jornais mantinham-se persistentemente erguidos em frente dos rostos, mas isso não bastava para desencorajá-lo. Tinha

Corpo militar de Vigilantes.

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sempre longas histórias para contar, na maioria das vezes, acerca de pessoas que ninguém conhecia.

É interessante prosseguiu o major Porter, com firmeza e com o olhar absorto, fito num par de sapatos de verniz, exageradamente pontiagudos, tipo de calçado esse que desaprovava profundamente. Como já disse, sou um Warden. Um caso curioso o dessa bomba. Nunca se sabe o que provoca. Introduziu-se na cave e rebentou com o telhado. O primeiro andar ficou praticamente intacto. Estavam seis pessoas dentro de casa. Três criados um casal e uma governanta Gordon Cloade, a mulher e o irmão desta. Estavam todos na cave com excepção deste último um tipo que pertenceu aos Comandos que preferiu o confortável quarto de cama, no primeiro andar, e caramba! escapou apenas com algumas contusões. A explosão matou os três criados; Gordon Cloade ficou soterrado e, embora tivessem conseguido tirá-lo cá para fora, morreu a caminho do hospital; a mulher também foi atingida pela explosão e ficou sem um farrapo em cima do corpo! Mas não morreu e têm esperanças de que se salve. Será uma viúva rica... Gordon Cloade devia valer para cima de um milhão.

O major Porter tornou a fazer uma pausa. O seu olhar percorrera um caminho ascensional desde os sapatos de verniz... às calças de riscas... ao casaco preto... até à cabeça em forma de ovo e aos bigodes colossais. Estrangeiro, certamente! Isso explicava os sapatos. «Este Clube...» pensava o major Porter... «onde é que irá parar?... Nem aqui conseguimos livrar-nos dos estrangeiros.» Esta linha independente de pensamentos correu paralelamente à sua narrativa.

O facto de o referido estrangeiro parecer prestar a máxima atenção à narrativa, não diminuiu, de forma alguma, o antagonismo do major Porter.

Não pode ter mais do que vinte e cinco anos prosseguiu. É viúva pela segunda vez. Ou, pelo menos... é isto o que ela julga...

Fez nova pausa, esperando alguma demonstração de curiosidade... um comentário. Apesar de ver contrariados os seus desejos, prosseguiu obstinadamente:

Na realidade, tenho cá as minhas ideias pessoais acerca disso. Um caso estranho. Como já lhes disse,

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conheci o seu primeiro marido, Underhay. Um tipo estupendo que foi comissário de distrito na Nigéria. Um tipo competentíssimo no seu cargo... um tipo de primeira categoria. Casou com esta rapariga na Cidade do Cabo. onde ela se encontrava de passagem numa tournée teatral. A sorte não a favorecia, era bonita, estava desamparada na vida, etc. Ouviu o bom do Underhay tecer elogios ao seu Distrito, ao espaço imenso e livre... e suspirou «Maravilhoso! Como eu gostaria de fugir de tudo isto». Pois bem, casou com ele e fugiu de tudo aquilo. Ele estava apaixonadíssimo, coitado... mas a coisa correu mal logo desde o princípio. Ela detestava o mato, os nativos aterrorizavam-na e sentia-se terrivelmente aborrecida. Apenas desejava ir à cidade, encontrar-se com gente de teatro e falar de assuntos profissionais. Solitude à dieux, na selva, não era o seu prato favorito. Embora possa parecer-lhes espantoso, nunca a vi... soube tudo isto pelo pobre Underhay. Foi para ele um golpe muito duro. Fez a única coisa decente que tinha a fazer: mandou-a para casa e concordou em conceder-lhe o divórcio. Foi exactamente depois disso que o conheci. Achava-se num estado de grande nervosismo e na disposição de alguém que tem necessidade de falar para desabafar. Sob certos aspectos, era um homem antiquado e curioso era um católico romano e resolveu não lhe conceder o divórcio. Disse-me assim «Há outros modos de concedermos a liberdade a uma mulher». «Mas ouça lá, meu velho», intervim eu, «não cometa nenhuma loucura. Não há no mundo mulher alguma que mereça que metamos uma bala na cabeça».

«Respondeu-me que, de modo algum, era essa a sua ideia. «Mas sou um homem só», continuou, «Não tenho parentes que se preocupem comigo. Se publicarem a notícia da minha morte, Rosaleen será considerada viúva, que é exactamente o que ela quer». «E você?», perguntei. «Ora!» respondeu-me. «É possível que um certo Mr. Enoch Arden surja em qualquer ponto da terra, a umas mil milhas daqui e recomece vida nova». «Isso ainda poderá, qualquer dia, vir a ser desastroso para ela», observei-lhe. «Oh, não!», assegurou-me, «jogarei a partida até final. Não haverá dúvidas quanto à morte de Robert Underhay».

«Bem, nunca mais voltei a pensar naquilo, mas, seis

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meses depois, ouvi dizer que Underhay tinha morrido,com febres, em qualquer ponto do interior. Os nativos eram de confiança e regressaram com um relato pormenorizado e plausível, trazendo as últimas palavras de Underhay, escritas pelo seu próprio punho, dizendo que todos tinham feito o possível por salvá-lo, que estava convencido de que não escaparia e que queria louvar o chefe da tribo. Este era-lhe muito dedicado assim como todos os outros. Seriam capazes de jurar o que ele lhes dissesse que jurassem. Portanto, aqui têm... Pode ser que Underhay esteja enterrado no seio da África Equatorial, mas também pode ser que não... e, neste caso, Mrs. Gordon Cloade ainda algum dia pode ter uma grande sensaboria. E acho que seria bem feito! Arruinou a vida ao pobre Underhay. É uma história interessante.»

O major Porter olhou em volta, ansiosamente, procurando ver esta declaração confirmada. Encontrou dois olhares fixos, perscrutadores e desconfiados: o olhar um tanto oblíquo do jovem Mr. Mellon e a atenção cortês de M. Hercule Poirot.

Depois, um jornal fez barulho e um homem de cabelo grisalho e de rosto singularmente impassível levantou-se calmamente da poltrona ao canto da chaminé e saiu do aposento.

O queixo do major Porter descaiu e o jovem Mr. Mellon soltou um assobio baixinho.

Fê-la bonita! exclamou. Sabe quem era?

Valha-me Deus!proferiu o major Porter, muito sobressaltado. Certamente que sim. Não o conheço intimamente, mas já fomos apresentados... Jeremy Cloade, o irmão de Gordon Cloade! Palavra de honra, que azar o meu! Se eu tivesse sonhado...

É solicitador esclareceu o jovem Mr. Mellon. Aposto que vai processá-lo por tentativa de difamação de personalidade ou qualquer coisa assim.

O jovem Mr. Mellon tinha prazer em provocar o alarme e a consternação em lugares daquele género, pois a Defesa do Acto do Reino não o proibia.

O major Porter repetiu, consternado:

Que azar! Que terrível azar!

Esta noite já todo Warmsley Heath o saberá

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atormentou-o Mr. Mellon... É onde os Cloades moram. Ficarão reunidos até tarde a discutir a medida a tomar.

Nesse momento, soou o sinal de «Passou o perigo» e o jovem Mr. Mellon, pondo ponto final às suas malícias, conduziu suavemente o seu amigo Hercule Poirot para a rua. Terrível atmosfera a destes clubes comentou. É a mais completa colecção de velhos maçadores, mas Porter é de longe o pior de todos. A sua descrição do truque indiano da corda leva três quartos de hora e, ainda por cima, conhece toda a gente que passou por Puna! (1)

Isso foi em Outubro de 1944. Foi no fim da Primavera de 1946 que Hercule Poirot recebeu uma visita.

Hercule Poirot estava sentado a uma elegante secretária, numa agradável manhã de Maio, quando o seu criado George se aproximou e murmurou deferentemente:

Está lá fora uma senhora que deseja falar-lhe.

Que espécie de senhora? informou-se prudentemente Poirot, que apreciava sempre a meticulosa precisão das descrições de George.

Deve andar entre os quarenta a cinquenta anos. Pouco arranjada, com um aspecto muito artístico. Uns bons sapatos práticos, grossos. Um casaco de tweed e uma saia... mas a blusa é de renda. Umas discutíveis contas egípcias e um lenço azul ao pescoço.

Poirot encolheu levemente os ombros.

Creio que não estou interessado em recebê-la disse.

Devo dizer-lhe que está indisposto? Poirot olhou-o pensativamente.

Suponho que já lhe disseste que estou ocupado com um assunto importante e que não posso ser incomodado, não é verdade?

George voltou a tossicar.

Declarou-me que viera da província propositadamente para falar-lhe e que não se importava de esperar.

Cidade indiana.

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Poirot suspirou.

Nunca se deve lutar contra o inevitável filosofou. Se uma senhora de meia-idade, que usa contas egípcias falsas, decidiu falar ao famoso Hercule Poirot

e se deslocou da província com esse fim, nada a demoverá desse propósito. Ficará sentada lá fora, no átrio, até conseguir o seu intento. Manda-a entrar, George. George retirou-se para voltar daí a pouco tempo, anunciando cerimoniosamente: j

Mrs. Cloade. A silhueta de tweed coçado e de lenço azul de pontas flutuantes entrou no aposento com uma expressão radiosa. Dirigiu-se a Poirot de mão estendida e com todos os colares de contas oscilando e tinindo.

M. Poirot começou vim procurá-lo guiada por uma indicação espírita.

Poirot pestanejou levemente. à

Sim, madame? Talvez deseje sentar-se e contar-me... |

Não prosseguiu.

Ambas as coisas, M. Poirot. Com a escrita automática e a tábua ouija. Foi na penúltima noite. Madame Elvary é uma mulher maravilhosa e eu estávamos a consultar a tábua. Saíram-nos as mesmas iniciais repetidas vezes. H. P. H. P. H. P. Já se sabe que, não compreendi imediatamente o verdadeiro significado. Leva algum tempo, compreende. Neste plano terrestre, não se pode ver claramente. Torturei os miolos a pensar nalguém com essas iniciais. Calculei que se relacionasse com a sessão anterior, uma sessão realmente muito lancinante, mas levei algum tempo a compreender isso. Comprei depois um exemplar do Picture Post outra indicação espírita, bem vê, porque geralmente compro o New Statesman e lá vinha o senhor... um retrato seu com uma descrição da sua pessoa e uma relação do que tem feito.

É maravilhoso, não acha, M. Poirot, como tudo tem um propósito? Muito nitidamente, o senhor é a pessoa apontada pelos Guias para esclarecer este assunto. Poirot observava-a pensativamente. Por muito estranho que pareça o que lhe chamou realmente a atenção foi o facto de possuir uns olhos azul-claros, extraordinariamente

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astutos. Tal como eram, acentuavam o seu modo incoerente de aproximação.

E que tem isso, Mrs... Cloade? franziu o sobrolho. Parece-me ter ouvido este nome há algum tempo...

Ela acenou veementemente com a cabeça, em sinal de concordância.

O meu pobre cunhado... Gordon. Imensamente rico e muitas vezes mencionado na Imprensa. Morreu num bombardeamento há mais de um ano... foi um duro golpe para todos nós. O meu marido era o seu irmão mais novo. Í médico. O Dr. Lionel Cloade... Evidentemente acrescentou, baixando a voz que não faz a menor ideia de que vim consultá-lo. Não o aprovaria. Acho que os médicos têm uma maneira muito prosaica de ver as coisas. Parece que odeiam estranhamente o lado espiritual. Põem a sua fé na Ciência, mas o que eu digo é isto... o que é a Ciência... de que serve?

Hercule Poirot achou que para aquela pergunta não haveria qualquer resposta que não fosse uma descrição meticulosa e cuidada que abrangesse Pasteur, Lister, a lâmpada de segurança de Humphrey Davy... a comodidade da electricidade em casa e várias centenas de outros temas afins. Mas isso não era naturalmente a resposta que Mrs. Lionel Cloade queria. Na realidade, a sua pergunta, tal como muitas outras perguntas, não era exactamente uma pergunta. Era uma simples figura de retórica.

Hercule Poirot contentou-se em inquirir, optando por uma atitude prática:

De que modo espera que possa ajudá-la, Mrs. Cloade?

Acredita realmente no mundo espírita, M. Poirot?

Sou um bom católico respondeu Poirot, prudentemente.

Mrs. Cloade pôs de parte a fé católica com um sorriso de comiseração.

Cega! A Igreja é cega... cheia de preconceitos, e louca... em não querer aceitar a realidade e a beleza do mundo que existe por trás deste.

Tenho uma entrevista importante marcada para as doze horas preveniu Hercule Poirot.

Foi uma observação oportuna. Mrs. Cloade inclinou-se para a frente.

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Tenho então de abordar o assunto imediatamente. Ser-lhe-á possível, M. Poirot, encontrar uma pessoa desaparecida?

Poirot ergueu o sobrolho.

Bem... talvez replicou acauteladamente. Mas a polícia, minha querida Mrs. Cloade, poderia fazê-lo com muito mais facilidade do que eu, pois dispõe de toda a engrenagem necessária para isso.

Mrs. Cloade pôs de parte a polícia como já o fizera à Igreja Católica.

Não, M. Poirot... foi para si que fui guiada... por esses que estão por trás do véu. Ora, ouça. O meu irmão Gordon casou-se, umas semanas antes da sua morte, com uma viúva jovem... uma Mrs. Underhay. O seu primeiro marido pobre pequena, teve um desgosto tão grande! foi dado como morto em África. Uma região misteriosa... a África.

Um continente misterioso corrigiu Poirot. É possível. Em que parte...

Ela antecipou-se:

Na África Central. A zona do Vúdú do Zombi...

O Zombi fica nas índias Ocidentais. Mrs. Cloade prosseguiu:

... da magia negra... de práticas estranhas e secretas... uma região onde um homem pode desaparecer para nunca mais se ouvir falar dele.

É possível, é possível admitiu Poirot mas verifica-se o mesmo em Piccadilly Circus.

Mrs. Cloade pôs de parte Piccadilly Circus.

Mais tarde, M. Poirot, recebemos por duas vezes uma comunicação de um espírito que diz chamar-se Robert. A mensagem foi a mesma de ambas as vezes. Não morri... Ficámos intrigadas pois não conhecíamos nenhum Robert. Pedimos-lhe mais explicações e conseguimos isto: «R. U. R. U. R. U.» e depois «Prevenir R.». «Prevenir Robert?», inquirimos. «Não, de Robert. R. U.» «Para que é o U»? Foi então, M. Poirot, que recebemos a resposta mais significativa ”Little Boy Blue. Little Boy Blue. Ha ha ha!» Está a compreender?

Não respondeu Poirot, não compreendo.

Cultos espirituais primitivos. (N. do T.)

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Ela olhou-o, cheia de comiseração.

A cantiga para crianças Little Boy Blue, «Under the Hay cock fast asleep» Underhay compreende?

Poirot acenou que sim com a cabeça. Absteve-se de perguntar por que razão, se o nome Robert podia ser soletrado, o mesmo não se verificava com o nome Underhay e por que fora necessário recorrer a uma linguagem de Serviço Secreto tão rudimentar.

E a minha cunhada chama-se Rosaleen terminou triunfantemente Mrs. Cloade. Compreende? Todos estes RR causam confusão, mas o significado é muito claro. «Prevenir Rosaleen de que Robert Underhay não morreu.

Ah! E disse-lho?

Mrs. Cloade pareceu levemente embaraçada.

Hum... bem... não. Compreende, isto é... bem, as pessoas são tão cépticas... Tenho a certeza de que Rosaleen não é uma excepção. E de resto, pobre pequena, isso poderia sobressaltá-la... perguntando-se, compreende, onde ele estava... e o que estaria a fazer.

Além de projectar a sua voz através do éter? Muito bem. Um método curioso, evidentemente, de participar a sua incolumidade?

Ah, M. Poirot, vejo que não é um iniciado. E como sabemos nós que circunstâncias são? O pobre capitão Underhay ou major Underhay pode estar prisioneiro em qualquer parte do misterioso interior de África. Mas se pudesse ser encontrado, M. Poirot! Se pudesse ser devolvido à sua querida e jovem Rosaleen! Pense na felicidade dela! Oh, M. Poirot, eu fui-lhe enviada... Certamente, certamente não recusará a ordem do mundo espírita.

Poirot olhou-a pensativamente.

Os meus honorários são muito elevados observou suavemente. Devo dizer até tremendamente elevados! E o trabalho que acaba de sugerir-me não seria fácil.

Oh... mas certamente... é uma imensa pouca sorte. Eu e meu marido estamos em muito má situação... muito má, efectivamente. Na realidade, a minha ainda é pior do que ele julga. Levada por uma indicação espírita, comprei algumas acções que, por ora, só me têm desapontado...

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para dizer a verdade, chegaram até a alarmar-me. Desceram muito e creio que agora são praticamente invendáveis.

Mirava-o com uns olhos azuis consternados.

Não me atrevi a confessá-lo a meu marido. Digo-lho unicamente a si, para explicar-lhe a minha situação. Mas, meu caro M. Poirot, não acha que reunir um marido jovem à mulher... é uma missão tão nobre...

A nobreza, chère madame, não me pagará passagens por barco, por caminho-de-ferro e por avião; nem tão-pouco cobrirá o custo de extensos telegramas e de mensagens por cabo submarino, nem os interrogatórios de testemunhas.

Mas se o encontrar... se o capitão Underhay for encontrado vivo, bem... então... bem, acho que posso garantir-lhe que, uma vez realizado esse trabalho, não... não haverá qualquer dificuldade em... hum... em reembolsá-lo.

Ah, então, esse capitão Underhay é rico?

Não. Bem, não... mas posso garantir-lhe... posso dar-lhe a minha palavra... de que... de que a situação financeira não apresentará dificuldades.

Poirot abanou lentamente a cabeça numa resposta negativa.

Lamento, madame. A resposta é Não.

Teve uma certa dificuldade em fazê-la aceitar essa resposta.

Quando por fim Mrs. Lionel Cloade se retirou, ficou mergulhado em divagações, de sobrolho franzido.

Lembrava-se agora do motivo por que o nome de Cloade lhe era familiar. Ocorreu-lhe a conversa no clube, no dia do ataque aéreo. O matraquear incomodativo da voz do major Porter, narrando, num tagarelar ininterrupto, uma história que ninguém queria ouvir.

Lembrou-se do ruído de um jornal e do súbito descair de queixo do major Porter aliado a uma expressão de profunda consternação.

Mas o que o importunava era a impressão que lhe deixara a impaciente senhora de meia-idade que acabara de deixá-lo. A fluente tagarelice espírita, a indeterminação, o lenço de pontas flutuantes, os colares e amuletos pendurados à volta do pescoço... e finalmente, em leve

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contraste com tudo isso, um imprevisto brilho astuto, num par de olhos azul-pálidos.

Por que motivo exacto veio procurar-me? perguntou-se. Gostava de saber o que teria acontecido em

olhou para o cartão de visita, pousado sobre a secretária Warmsley Vale?

Tinham decorrido exactamente cinco dias quando leu um pequeno parágrafo de um jornal da noite que se referia à morte de um homem chamado Enoch Arden, ocorrida em Warmsley Vale, pequena e antiga aldeia, a cerca de três milhas do conhecido Campo de Golfe de Warmsley Heath.

Hercule Poirot disse com os seus botões:

Gostava de saber o que teria acontecido em Warmsley Vale...

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LIVRO l

Capítulo 1

Warmsley Heath compreende um campo de golfe, dois hotéis, algumas moradias modernas e muito caras, fronteiras ao campo de golfe, uma série de construções que, antes da guerra, tinham sido lojas luxuosas, e uma estação de caminho-de-ferro.

Ao sair-se desta, encontra-se, à esquerda, uma estrada principal que conduz a Londres... e, à direita, um estreito caminho recortado através do campo, com o poste indicativo de Atalho para Warmsley Vale.

Warmsley Vale, encaixado em colinas arborizadas, é muitíssimo diferente de Warmsley Heath. É, em essência, uma microscópica e antiga cidade-mercado, agora degenerada em aldeia. Tem uma rua principal entre casas jorgianas, várias tabernas, algumas lojas antiquadas e parece estar distanciada de Londres cento e cinquenta milhas, em vez de vinte e oito.

Pelos arredores, espalham-se casas encantadoras rodeadas por jardins. Foi a uma dessas casas, a White House, que Lynn Marchmont regressou no princípio da Primavera de 1946. quando da sua desmobilização das Wrens f).

Na terceira manhã do seu regresso a Warmsley Vale, postada à janela do seu quarto de cama, aspirava com

Corpo militar feminino.

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delícia o ar fresco enquanto espraiava o olhar pelo relvado descuidado, em frente à casa, e pelos ulmeiros do prado mais além. Era uma manhã suave, pardacenta, impregnada do aroma de gleba molhada. Era um cheiro que não aspirara durante os dois últimos anos e meio.

Era maravilhoso estar de novo em casa; maravilhoso estar ali no seu quartinho de cama que tantas vezes recordara, cheia de nostalgia, enquanto estivera no ultramar; maravilhoso também ter despido o uniforme, poder enfiar uma saia de tweed e uma camisola de lã embora as traças tivessem sido excessivamente diligentes durante os anos de guerra!

Era bom ter saído das Wrens e voltar a ser uma mulher livre, apesar do serviço que prestara no ultramar lhe ter agradado muitíssimo. Fora um trabalho bastante interessante, entremeado de saraus e de muitos outros divertimentos, mas a que também não faltara o tédio da rotina e a sensação deprimente de «andar em rebanho» com as companheiras. Fora uma sensação que, algumas vezes, lhe fizera sentir uma desesperada ânsia de fugir.

Fora durante esse longo e abrasador Verão passado no Oriente, que relembrara tão veementemente Warmsley Vale, a agradável casa fresca e velha e a querida Mamã. Lynn amava sua mãe tanto quanto se irritava com ela. Longe de casa, continuara a amá-la, esquecendo as irritações ou recordando-as apenas com uma adicional dor nostálgica. Era uma Mamã adorável que, por vezes, conseguia pô-la fora de si! Mas quanto não teria dado para ouvi-la enunciar um cliché na sua voz doce e queixosa! Oh, estar de novo em casa e nunca, nunca mais ter de deixá-la!

E agora ali estava, desmobilizada, livre, de regresso à White House. Havia apenas três dias que regressara e já uma curiosa e insatisfeita inquietação a invadia. Era sempre a mesma coisa quase chegava a entediar a casa, a Mamã, Rowley, a granja e a família. A única coisa que era diferente e que o não devia ser era ela própria...

Querida... o grito estrídulo de Mrs. Marchmont subiu as escadas. Posso levar à cama da minha menina, um apetitoso tabuleiro?

Lynn gritou vivamente:

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Certamente que não. Desço já.

«Por que razão a Mamã», pensou, «há-de dizer minha menina? É tão tolo!»

Desceu rapidamente as escadas e entrou na casa de jantar. Não se tratava de um excelente pequeno-almoço. Presentemente, Lynn compreendia como se perdia tanto tempo e era preciso lutar para arranjar comida. Com excepção de uma mulher-a-dias, um tanto incerta, que lá aparecia, quatro vezes por semana, Mrs. Marchmont vivia sozinha em casa, azafamando-se a cozinhar e nas limpezas diárias. Quando Lynn nascera, contava quase quarenta anos e a sua saúde não era boa. Lynn também notou, com certa consternação, quanto a situação financeira de ambas mudara. O pequeno mas suficiente rendimento fixo que lhes permitira viver confortavelmente, antes da guerra, achava-se agora quase reduzido a metade, em consequência do aumento de impostos. Preços e despesas, tudo aumentara.

«Oh! Admirável mundo novo!», pensou Lynn sombriamente. Os seus olhos percorreram rapidamente as colunas do jornal. Ex-W. A. A. F. procura emprego que requeira iniciativa e energia.» ”Antiga W. R. E. N. procura lugar que requeira capacidade organizadora e austeridade.»

Empreendimento, iniciativa, comando, eram os préstimos oferecidos. Mas do que precisavam? Pessoas que soubessem cozinhar, fazer limpezas ou tivessem um conhecimento decente de estenografia; gente laboriosa, especializada num trabalho rotineiro.

Ora, isso não lhe respeitava. O seu rumo estava bem traçado. O casamento com seu primo Rowley Cloade. Tinham ficado noivos sete anos antes, exactamente antes do rebentar da guerra. Que se lembrasse, sempre fizera tenção de casar com Rowley cuja escolha de uma vida rural fora do seu inteiro e pronto acordo. Uma boa vida. Talvez não fosse excitante e exigisse imenso trabalho árduo, mas ambos gostavam do ar livre e de tratar de animais.

Não queria isso dizer que o futuro agora apresentado

Corpo militar feminino.

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fosse o mesmo que fora tempos antes. O tio Gordon sempre prometera...

A voz de Mrs. Marchmont soou em tom lamentoso:

Como te disse numa das minhas cartas, foi um golpe tremendíssimo para todos nós, querida Lynn. Gordon chegara a Inglaterra dois dias antes. Nem sequer o tínhamos visto. Se, ao menos, não tivesse ficado em Londres e tivesse vindo directamente para aqui...

Sim! Se, ao menos...

Lynn recebera o choque, longe de casa, e magoara-a muito a notícia da morte do tio, mas só agora começava a avaliar o seu verdadeiro significado.

Desde que era capaz de recordar-se, a sua vida, todas as suas vidas tinham dependido de Gordon Cloade. Este homem rico, que não tivera filhos, tomara completamente a seu cargo todos os parentes.

Desse modo, Rowley... Rowley e o seu amigo Johnnie Vavasour tinham entrado de sociedade na quinta. Dispunham de pequeno capital, mas sentiam-se animados por uma enorme esperança e energia. E Gordon Cloade aprovara.

A ela, porém, dissera mais:

Não se pode começar a cultivar a terra sem se dispor de capital. Porém, tornava-se necessário descobrir se esses rapazes tinham realmente vontade e energia para fazer qualquer coisa. Ainda que agora os financiasse, não o saberia... antes de vários anos decorridos. Se tiverem dentro deles as qualidades necessárias e se eu me der por satisfeito, então, Lynn, não terás que preocupar-te. Financiá-los-ei na devida escala. Por conseguinte, não esmoreças, minha filha. És exactamente a mulher de que Rowley precisa. Mas guarda segredo do que acabo de dizer-te.”

Ela assim fizera, mas Rowley sentira por si próprio o benevolente interesse do tio. Competia-lhe provar ao velhote que ele e Johnnie eram um bom emprego de capital.

Sim, todos eles tinham dependido de Gordon Cloade. Não quer dizer que qualquer membro da família tivesse sido explorador ou mandrião. Jeremy Cloade era sócio-

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-chefe de uma firma de solicitadores e Lionel Cloade era médico.

Mas, por trás da vida laboriosa de todos os dias, havia a reconfortante certeza de dinheiro. Nunca tinham tido necessidade de economizar ou de poupar. O futuro estava assegurado. Gordon Cloade, viúvo e sem filhos, velaria por isso. Ele próprio o dissera a todos mais de uma vez.

A irmã, Adela Marchmont, também viúva, continuara na White House, quando talvez lhe tivesse sido possível mudar-se para uma casa mais pequena, que exigisse menos trabalho. Lynn frequentara os melhores colégios. Se a guerra não tivesse estalado, poderia ter seguido qualquer curso dispendioso que lhe tivesse apetecido. Os cheques do tio Gordon choviam com uma regularidade confortante, que permitia pequenos luxos.

Tudo fora tão firme, tão seguro. Depois verificara-se o casamento completamente imprevisto de Gordon Cloade.

Como é natural, querida prosseguiu Adela todos nós ficámos surpreendidíssimos. Se alguma coisa parecia absolutamente certa era Gordon nunca mais voltar a casar. Não foi por não ter muitos laços familiares.

«Sim», pensou Lynn, «muita família. Às vezes, possivelmente, até demasiada família.»

Foi sempre tão bom prosseguiu Mrs. Marchmont embora, por vezes, fosse talvez um nadinha tirânico. Nunca gostou do hábito de jantar numa mesa sem toalha. Insistia sempre em ver a uso as antigas toalhas de mesa e, quando esteve em Itália, chegou a mandar-me uma toalha maravilhosa em renda de Veneza.

Certamente compensou-te por acederes aos seus desejos observou Lynn secamente, e acrescentou com certa curiosidade. Como conheceu... a segunda mulher? Nunca mo disseste nas tuas cartas.

Oh, minha querida, num barco, num avião ou noutro sítio qualquer. Ia da América do Sul para Nova Iorque, creio eu. Depois de todos aqueles anos! E depois de todas aquelas secretárias, dactilógrafas, governantas e tudo o mais!

Lynn sorriu. Desde que conseguia lembrar-se, as secretárias, as governantas e o pessoal de escritório de

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Gordon Cloade tinham sido submetidos ao mais severo exame.

Inquiriu com curiosidade?

Tem boa aparência, não?

Bem, querida respondeu Adela, eu acho que tem uma cara bastante tola.

Mas tu não és homem, Mamã!

Certamente prosseguiu Mrs. Marchmont que a pobre rapariga estava aparvalhada, tinha sofrido o choque da explosão e estava na realidade terrivelmente mal e tudo o mais e, na minha opinião, ainda não se refez completamente. Está num feixe de nervos, não sei se compreendes o que quero dizer. E, na realidade, às vezes, parece absolutamente parva. Não creio que pudesse ter sido uma boa companheira para o pobre Gordon.

Lynn sorriu. Duvidava que Gordon Cloade tivesse casado com uma mulher alguns anos mais nova do que ele para encontrar nela uma companheira intelectual.

Além disso, minha querida Mrs. Marchmont baixou a voz, custa-me dizê-lo, mas ela não é de forma alguma uma senhora!

Que expressão, Mamã! Hoje em dia, que importância tem isso?

Na província, ainda tem, minha querida respondeu Adela, tranquilamente. Quero simplesmente exprimir que não é exactamente do nosso meio!

Pobre rapariga!

Francamente, Lynn, não sei o que queres dizer com isso. Todos nós tivemos o maior cuidado em sermos amáveis e delicados para com ela e, em atenção a Gordon, acolhemo-la com simpatia.

Está então em Furrowbank? perguntou Lynn com curiosidade.

Sim, naturalmente. Para que outro sítio podia ter ido depois de sair da casa de saúde? Os médicos recomendaram-lhe que saísse de Londres. Está em Furrowbank com o irmão.

Que tal é ele? interessou-se Lynn.

Um rapaz novo, detestável! Mrs. Marchmont fez uma pausa e depois acrescentou com uma boa dose de intensidade. Arrogante.

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Um momentâneo rasgo de simpatia cruzou o espírito de Lynn, que pensou: «Aposto que no seu lugar, também seria arrogante.»

Como se chama? inquiriu.

Hunter. David Hunter. É irlandês, segundo creio. Não são, evidentemente, gente conhecida. Ela era viúva... uma Mrs. Underhay. Não é ter vontade de ser-se cruel, mas uma pessoa não pode deixar de perguntar-se que espécie de viúva teria tido o capricho de ir viajar pela América do Sul, em tempo de guerra? Compreendes, não se pode deixar de sentir a impressão de que andava à caça de marido rico.

Nesse caso, não o fez em vão observou Lynn. Mrs. Marchmont suspirou.

É um caso tão extraordinário! Gordon foi sempre um homem tão perspicaz! Imagino quantas mulheres tê-lo-iam já anteriormente tentado. Aquela penúltima secretária, por exemplo. Na realidade, era muito intrometida. Era muito eficiente, segundo creio, mas ele teve de desembaraçar-se dela.

Suponho que, na vida, há sempre um Waterloo.

Sessenta e dois comentou Mrs. Marchmont, uma idade muito perigosa. E, na minha opinião, uma guerra é tão desnorteante! Mas não sei descrever-te o choque que tivemos ao recebermos a sua carta de Nova Iorque.

Que dizia exactamente?

Escreveu a Francês... Na realidade, não consigo imaginar porquê. Talvez tivesse pensado que, devido à sua educação, fosse mais compreensiva. Dizia que provavelmente ficaríamos surpreendidos ao saber que tinha casado; que fora tudo muito repentino, mas que tinha a certeza de que pouco tempo depois de conhecermos Rosaleen todos nós gostaríamos muito dela. É um nome muito teatral, não achas, minha querida? Quero dizer, muito fictício. Tivera uma vida muito triste, dizia ele, e que embora fosse ainda muito nova já passara por muitas agruras da vida; que fora realmente maravilhoso o modo corajoso como enfrentara a vida.

Um ardil muito conhecido murmurou Lynn.

Oh, bem sei. Concordo inteiramente. Já se ouviu contar isso tantas vezes. Mas, na realidade, é-se levado a pensar que Gordon, apesar de toda a sua experiência,

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também caiu. Ela tem uns olhos enormes, azul-escuros, cercados por grandes olheiras.

Atraente?

Sim, é sem dúvida alguma muito bonita. Mas não é o género de beleza que eu admiro.

Nunca o é observou Lynn, com um sorriso forçado.

Não, querida. Na realidade, os homens... bem não se trata de homens. Até os mais ajuizados cometem as loucuras mais incríveis! A carta de Gordon dizia ainda que, nem por um só instante, deveríamos pensar que o seu casamento significasse qualquer perda dos antigos laços. Continuava a considerar-nos a todos sob a sua especial responsabilidade.

Mas, depois do casamento, não fez nenhum testamento?

Mrs. Marchmont sacudiu negativamente a cabeça.

O último testamento que fez data de 1940. Não conheço nenhum dos seus pormenores, mas, nessa altura, Gordon deu-nos a entender que, se alguma coisa lhe acontecesse, ficávamos todos garantidos. Já se sabe que esse testamento ficou anulado pelo seu casamento. Estou convencida de que teria feito outro, quando estivesse na pátria... simplesmente, não teve tempo para isso. Praticamente, morreu mal desembarcou neste país...

E, por conseguinte, ela... Rosaleen... herda tudo?

Sim. O antigo testamento ficou invalidado pelo casamento.

Lynn ficou calada. Não era mais mercenária do que a maioria das pessoas, mas não teria sido humana se não tivesse lamentado a nova situação. Sentia que não era de maneira nenhuma isso o que Gordon Cloade desejaria. Possivelmente teria deixado à jovem esposa a parte principal da sua fortuna, mas teria certamente tomado algumas disposições a favor da família que habituara e encorajara a viver na sua dependência. Recomendara-lhes repetidas vezes que não poupassem, que não amealhassem para o futuro. Ouvira-o dizer a Jeremy «Quando eu morrer, serás um homem rico» e à mãe, muitas vezes «Não te preocupes, Adela. Olharei sempre por Lynn... bem sabes isso e custar-me-ia muito que deixasses esta casa... é a tua casa. Manda-me todas as contas de consertos».

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A Rowley, encorajara-o a dedicar-se ao cultivo da terra. Empenhara-se em que Anthony, o filho de Jeremy, entrasse nos Guards e concedera-lhe sempre uma agradável mesada. Animara Lionel Cloade a prosseguir em certas pesquisas médicas, que não eram imediatamente proveitosas e a deixar diminuir a sua clientela.

Os pensamentos de Lynn foram interrompidos. Dramaticamente e com um lábio trémulo, Mrs. Marchmont apresentou-lhe um maço de contas.

Olha para isto tudo gemeu. Que hei-de fazer? Que coisa hei-de fazer, Lynn? O gerente do banco só esta manhã me escreveu a prevenir que estou sem crédito. Não posso compreender como isso é possível. Tenho sido tão cuidadosa! Mas parece que os meus empregos de capital não estão a render o que costumavam. Aumento de impostos, diz ele. E todas essas coisas horríveis, War Damage Insurance (2) ou qualquer coisa parecida é-se obrigado a pagar-lhes quer se queira quer não.

Lynn pegou nas contas e deu-lhes uma rápida vista de olhos. Nenhuma delas resultara de qualquer gasto extravagante. Diziam respeito à colocação de placas de ardósia no telhado; ao conserto de cercas; à substituição da caldeira rota da cozinha... a um novo cano de água. O seu montante perfazia uma quantia considerável.

Mrs. Marchmont lastimou-se:

Creio que terei de mudar-me daqui. Mas para onde poderei ir? Não se encontra em parte alguma uma casa pequena... é coisa que não existe. Oh, não quero preocupar-te com tudo isto, Lynn, tanto mais que regressaste a casa há tão pouco tempo. Mas não sei que fazer. Na realidade, não sei.

Lynn olhou para a mãe. Tinha mais de sessenta anos. Nunca fora uma mulher muito forte. Durante a guerra, hospedara refugiados de Londres, cozinhara e tratara da casa, cooperara com o W. V. S. (3), fizera compota, ajudara no serviço das refeições escolares. Trabalhara catorze horas por dia, em contraste com a vida agradável que levara antes da guerra. Achava-se agora, como Lynn via,

(1) Corpo de elite do exército inglês. (N. do T.)

(2) Seguro contra danos causados pela guerra. (N. do T.)

(3) Corpo militar feminino.

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à beira de um esgotamento de forças; estava extenuada e preocupada quanto ao futuro.

Uma cólera surda e lenta cresceu dentro de Lynn. Perguntou vagarosamente:

Essa Rosaleen não poderia... ajudar? Mrs. Marchmont enrubesceu.

Não temos direito a nada... a nada absolutamente. Lynn objectou:

Acho que a mãe tem um direito moral. O tio Gordon ajudou sempre.

Mrs. Marchmont sacudiu negativamente a cabeça e acrescentou:

Não seria muito agradável, minha querida, implorar favores... a uma pessoa de que não gostamos muito. Em qualquer dos casos, o irmão nunca lhe consentiria que largasse um centavo!

E acrescentou, permitindo que o heroísmo cedesse lugar a maldade puramente feminina.

Se realmente é irmão dela, é bom que se diga!

Capítulo 2

Francês olhou pensativamente para o marido, sentado no lado oposto da mesa.

Francês tinha quarenta e oito anos. Era uma dessas mulheres magras e esgalgadas a quem os tweeds ficam bem. O rosto onde, além do baton, aplicado um pouco descuidadamente, não se notava o mínimo artifício, conservava ainda sinais de uma antiga beleza, um tanto altiva. Jeremy Cloade tinha sessenta e três anos. Era um homem magro, de cabelo grisalho, de rosto seco e inexpressivo.

Nessa noite, ainda estava mais inexpressivo do que habitualmente.

A mulher registou o facto num rápido relance de olhos.

Uma rapariga de quinze anos arrastava os pés em volta da mesa, apresentando as travessas. O seu olhar angustiado pousava-se em Francês. Se esta franzia o sobrolho, quase deixava cair o que tivesse nas mãos, mas, se lhe via um olhar aprovativo, exultava de contentamento.

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Observava-se invejosamente em Warmsley Vale que, se havia alguém que tivesse criadas, esse alguém era Francês Cloade. Não as subornava com salários extravagantes e era exigente no serviço mas a sua afectuosa aprovação do esforço e a sua corajosa energia e autoridade tornavam o serviço doméstico algo de criador e de pessoal. Durante toda a sua vida fora tão acostumada a ser servida que aceitava o facto naturalmente, inconscientemente, e nutria a mesma consideração quer por uma boa cozinheira ou criada de fora quer por um Dom pianista.

Francês Cloade fora a única filha de Lorde Edward Trenton, que criara os seus cavalos nas vizinhanças de Warmsley Heath. A final a bancarrota de Lorde Edward foi considerada pelos entendidos como uma fuga misericordiosa a coisas piores. Tinham corrido boatos relacionados com cavalos que, em momentos inesperados, não tinham correspondido ao que deles se esperara e ainda outros de inquéritos realizados pelos administradores do Jockey Club. Mas Lorde Edward conseguira escapar com a reputação apenas levemente manchada e conseguira um acordo com os seus credores que lhe permitia viver muitíssimo confortavelmente no Sul da França. Essas inesperadas dádivas tinha de agradecê-las à astúcia e diligências especiais do seu solicitador, Jeremy Cloade. Cloade fizera muito mais do que geralmente um solicitador faz por um cliente e chegara a dar garantias pessoais. Fora bem explícito em declarar que nutria uma profunda admiração por Francês Trenton, e oportunamente, depois dos negócios do pai terem ficado satisfatoriamente arrumados, Francês tornou-se Mrs. Jeremy Cloade.

Nunca ninguém conhecera as suas emoções a esse respeito. Tudo quanto podia dizer-se era que cumprira admiravelmente o seu lado do contrato. Fora uma esposa eficiente e leal para Jeremy, uma mãe extremosa para o filho, activara os interesses do marido em todos os sentidos e nunca por uma palavra ou acção sugerira que o casamento fora qualquer coisa mais do que um impulso da sua livre vontade.

Em contrapartida, a família Cloade votava a Francês um profundo respeito e admiração. Orgulhava-se dela,

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submetia-se ao seu parecer... mas na realidade nunca se sentira muito da sua intimidade.

O que Jeremy Cloade pensou deste casamento ninguém o soube porque nunca ninguém sabia o que Jeremy Cloade pensava ou sentia. É um «pau seco», diziam as pessoas, referindo-se ao marido de Francês. A sua reputação quer como homem quer como advogado era esplêndida. Cloade, Brunskill e Cloade nunca se encarregavam de qualquer assunto de legalidade duvidosa. Não eram considerados brilhantes, mas fruíam de toda a confiança. A firma prosperara e os Jeremy Cloades viviam numa boa casa jorgiana, à saída da Praça do Mercado, rodeada por um grande jardim murado onde, na Primavera, as pereiras formavam um mar de flores brancas.

Foi para um quarto dando para o jardim que marido e mulher se dirigiram, quando, acabado o jantar, se levantaram da mesa. Edna, a rapariguita de quinze anos, serviu-lhes o café, ali, respirando excitada e ofegantemente.

Francês verteu um pouco de café para dentro da chávena. Era forte e quente. Virando-se para Edna, proferiu em modo conciso e aprovador:

Excelente, Edna.

A pequena enrubesceu de prazer e retirou-se, espantando-se todavia com o gosto de algumas pessoas. Na opinião de Edna, o café devia ter uma cor creme-pálido, ser sempre muito doce e levar uma grande quantidade de leite.

No quarto que dava para o jardim, os Cloades beberam o seu café sem leite e sem açúcar. Durante o jantar, tinham falado vagamente de encontros com pessoas conhecidas, do regresso de Lynn, das perspectivas do cultivo da terra no futuro próximo; porém, depois de ficarem sozinhos, mantiveram-se calados.

Francês recostou-se na cadeira, observando o marido. Este não reparou no seu olhar. Com a mão direita afagava o lábio superior. Sem que Jeremy Cloade o soubesse, esse seu gesto era característico e coincidia com alguma preocupação íntima. Francês não o notara muitas vezes. De uma delas, quando Anthony o filho do casal estivera, em criança, gravemente enfermo; de outra, quando aguardava o veredicto de um júri; ainda de uma outra, quando do estalar da guerra, esperando ouvir as

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irrevogáveis palavras transmitidas pelo rádio e finalmente na véspera do embarque de Anthony.

Antes de falar, Francês esteve durante alguns momentos a pensar. A sua vida de casados tinha sido feliz, mas nunca tinham sido íntimos nas suas conversas. Respeitara as reservas de Jeremy e o marido as dela. Nem sequer quando o telegrama lhes anunciara a morte de Anthony, no serviço activo, qualquer deles cedera.

Jeremy abrira-o e depois olhara-a. Francês perguntara:

É a...?

Ele baixara a cabeça, depois persignara-se e metera-lhe o telegrama na mão estendida.

Tinham ficado calados durante um momento. Depois, Jeremy dissera:

Gostaria... de poder confortar-te, querida.

Mas ela respondera em voz firme, retendo as lágrimas, consciente apenas de um terrível vazio e de um indizível sofrimento:

Tu também sofres.

Ele dera-lhe uma pancadinha no ombro.

Sim confessara, sim.

Depois, dirigira-se para a porta, cambaleando um pouco, mas teimosamente, subitamente envelhecido, e dizendo:

Não há nada a dizer... não há nada a dizer...

Ela ficara-lhe grata, imensamente grata, por uma compreensão tão grande e sentira o coração confranger-se cheio de comiseração ao vê-lo tornar-se subitamente velho. Com a perda do filho, algo endurecera no seu íntimo extinguira-se certa bondade natural. Era mais eficiente, mais enérgica do que nunca e, às vezes, as pessoas chegavam a assustar-se com o seu cruel senso prático...

O dedo de Jeremy Cloade voltou a deslizar sobre o lábio superior irresolutamente, indecisamente. Francês cortou o silêncio:

Passa-se alguma coisa, Jeremy?

O marido sobressaltou-se. Quase deixou cair da mão a chávena de café. Recompôs-se e pousou-a firmemente na bandeja. Depois, encarou a mulher.

Que queres dizer. Francês?

Pergunto se se passa alguma coisa?

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Que coisa havia de passar-se?

Seria tolice deitar-me a adivinhar. Preferia que mo dissesses.

Falava sem denotar a mínima emoção, indiferentemente.

Jeremy respondeu de um modo não convincente:

Não se passa nada...

Ela não respondeu... Limitou-se a esperar inquiridoramente. Arquivou a sua negação como inatendível. Ele olhou-a hesitantemente.

Por um momento apenas, a imperturbável máscara escorregou-lhe do rosto sombrio e ela surpreendeu-lhe uma nota de uma tão viva angústia que quase deixou escapar uma exclamação. Foi apenas por um breve instante, mas não lhe deixou dúvidas quanto ao que vira.

Insistiu calmamente sem trair qualquer emoção na voz:

Acho que farias melhor em dizer-mo... Ele suspirou... profundamente, tristemente.

Certamente que, mais tarde ou mais cedo, terás de sabê-lo.

E depois acrescentou uma frase que a deixou atónita:

Receio que tenhas feito um mau negócio. Francês. Desistiu de uma dedução que não foi capaz de fazer,

para atacar factos positivos:

O que é perguntou, dinheiro?

Não saberia explicar porque se lembrara de dinheiro em primeiro lugar. Até então, não tinha havido quaisquer sinais especiais de apuro financeiro que não fossem naturais nos tempos que corriam. No escritório, lutava-se com falta de pessoal e havia mais trabalho do que era possível realizar, mas acontecia o mesmo em toda a parte e no último mês tinham readmitido antigos empregados que já tinham sido desmobilizados do Exército. Era possível também que lhe escondesse qualquer doença ultimamente, andava com má cor e exausto, devido ao excesso de trabalho. Mas, apesar disso, o instinto de Francês indicou-lhe dinheiro e parecia que não se enganara.

O marido acabou por confirmar as suas suspeitas com um aceno de cabeça.

Compreendo ficou calada durante um momento a pensar.

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Pelo que lhe dizia respeito, não se preocupava realmente com o dinheiro... mas sabia que Jeremy era absolutamente incapaz de compreender isso. Para ele o dinheiro significava um mundo perfeito... estabilidade... obrigações... uma situação definida na vida.

Para ela o dinheiro era um brinquedo que se recebia e que servia para brincar. Nascera e fora criada numa atmosfera de instabilidade financeira. Conhecera épocas maravilhosas, enquanto os cavalos tinham correspondido ao que deles se esperara e conhecera também tempos difíceis, quando os lojistas tinham retirado o crédito a Lorde Edward e este se vira obrigado a vergonhosos expedientes para evitar os beleguins à porta. Certa vez, tinham estado a pão seco durante uma semana e tinham despedido todos os criados; de outra vez, ainda Francês era uma criança, tinham tido os beleguins dentro de casa, durante três semanas.

Se uma pessoa estava sem dinheiro, apropriava-se de bens alheios ou ia para o estrangeiro ou vivia à custa de amigos e de parentes, durante algum tempo. Ou alguém a ajudava com um empréstimo... Mas, ao mesmo tempo que contemplava o marido, Francês compreendia que, no mundo dos Cloades, esse género de coisas não se fazia. Não se mendigava, nem se pedia emprestado, nem tão-pouco se vivia à custa de outras pessoas. Por conseguinte, não se podia esperar que mendigassem, pedissem emprestado ou vivessem à custa alheia!

Francês sentiu uma profunda pena de Jeremy. Sentiu-se também um pouco culpada por estar tão imperturbável. Procurou refúgio na conversa.

Temos de vender tudo? A firma vai falir? Jeremy Cloade estremeceu de dor e Francês percebeu que fora demasiado positivista.

Meu querido disse-lhe meigamente, conta-me o que há. Não posso continuar a deitar-me a adivinhar.

Cloade declarou firmemente:

De há dois anos para cá, temos atravessado uma crise péssima. O Williams, como deves lembrar-te, safou-se! Tivemos algumas dificuldades para conseguirmos voltar a endireitar-nos. Depois, surgiram certas complicações relacionadas com a nossa posição no Extremo Oriente, depois da queda de Singapura...

Ela interrompeu-o:

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Não te preocupes com as razões... importam tão pouco. Ficaste numa situação embaraçosa. E não conseguiste sair-te dela?

Contava com Gordon... Gordon teria endireitado as coisas.

Ela soltou um breve suspiro impaciente.

Certamente. Não quero censurar o pobre homem... no fim de contas, é próprio da natureza do homem perder a cabeça com uma rapariga bonita. E por que diabo não havia de voltar a casar se lhe apetecesse? Mas, não há dúvida, que foi um azar ter morrido nesse ataque aéreo, antes de ter feito um testamento ou regulado os seus assuntos. A verdade é que, por muito perigo que uma pessoa corra, nunca lhe passa pela cabeça que vai morrer. A bomba nunca lhe é destinada; é sempre para outra pessoa!

Eu gostava muito dele... e também me orgulhava dele disse o irmão mais velho de Gordon Cloade. Para mim a sua morte foi uma catástrofe. Deu-se numa altura...

Interrompeu-se.

É a bancarrota? inquiriu Francês com um interesse inteligente.

Jeremy Cloade olhou-a quase desesperadamente. Embora a mulher não o compreendesse, ele teria enfrentado com muito mais facilidade as suas lágrimas e a sua aflição. Aquele seu interesse calmo e desprendido derrotava-o completamente.

Declarou em voz rouca:

É muito pior do que isso...

Ele observou-a, enquanto, sentada, muito calma, ponderava a resposta. Pensou: «Daqui a pouco, terei de dizer-lho. Saberá então o que eu sou... Terá de sabê-lo. A princípio, é capaz de não acreditar.»

Francês Cloade suspirou e endireitou-se na enorme poltrona.

Compreendo disse, por fim. Fraude. Se não é este o termo próprio, outro no género... Como o caso do Williams.

Sim. mas, desta vez não compreendes? o responsável sou eu! Servi-me de depósitos que me foram confiados. Até aqui, tenho coberto os meus levantamentos...

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Mas agora vai descobrir-se tudo?

A não ser que consiga arranjar o dinheiro necessário... rapidamente.

A vergonha que sentia era a pior que sentira em toda a sua vida. Como aceitaria a mulher a notícia?

Naquele momento, aceitava-a muito calmamente. Pensou que Francês seria incapaz de fazer uma cena. Nunca lho censuraria ou lho lançaria em cara.

Com o rosto apoiado na mão, Francês franzia o sobrolho.

É tão estúpido disse eu não ter dinheiro meu...

Jeremy Cloade lembrou a custo:

Há o teu dote de casamento, mas...

Mas suponho que esse também já se sumiu conjecturou a mulher, absortamente.

Ele ficou calado e depois acrescentou com dificuldade, na sua voz seca:

Lamento muito, Francês. Mais ainda do que sou capaz de exprimir. Fizeste um mau negócio.

Ela olhou-o perscrutadoramente.

Já, há pouco, disseste o mesmo. Que queres significar com isso?

Jeremy respondeu com firmeza:

Visto teres levado a tua bondade ao ponto de condescenderes em casar comigo, tinhas direito a esperar... bem, integridade... e uma vida isenta de sórdidas ansiedades.

Ela olhou-o com profundo espanto.

Francamente, Jeremy! Por que diabo pensas tu que casei contigo?

Ele sorriu levemente.

Foste sempre uma esposa tão leal e dedicada quanto é possível, minha querida, mas dificilmente me pode ocorrer o pensamento lisongeiro que me aceitasses em... hum... diferentes circunstâncias.

Ela olhou-o pasmada e subitamente pôs-se a rir às gargalhadas

Mas que grande cómico me saíste! Que maravilhoso espírito novelista deves esconder por trás dessa fachada leal! Pensas então que casei contigo para salvar o pai dos lobos... ou dos administradores do Jockey Clube, etc.?

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Tu gostavas muito de teu pai, Francês.

Eu era dedicada ao papá! Era terrivelmente encantador e era um companheirão! Mas compreendi sempre que não tinha cabeça. Se julgas que fui capaz de vender-me ao solicitador da família para salvá-lo dos seus apuros, então nunca compreendeste a coisa mais importante a meu respeito. Nunca!

Olhou-o com espanto. Era extraordinário, pensava, que duas pessoas pudessem estar casadas durante mais de vinte anos sem se conhecerem uma à outra. Mas como seria isso possível tratando-se de espíritos tão diferentes um do outro? Um espírito romântico, certamente, bem disfarçado, mas essencialmente romântico. Pensou: «Com todas aquelas velhas novelas amorosas no seu quarto de cama, eu já devia ter percebido! Que tolo querido!»

Em voz alta, declarou-lhe:

Casei contigo porque estava apaixonada por ti, evidentemente.

Apaixonada por mim? Mas que encontravas em mim?

Se me perguntas isso, Jeremy, devo dizer-te que, na realidade, não sei. Eras uma mudança tão diferente de todas as relações do pai. Nunca falavas a respeito de cavalos. Não calculas como estava farta de cavalos... e das possibilidades que havia de ganhar a Taça de Newmarket! Uma noite, foste jantar connosco lembras-te? Fiquei sentada a teu lado e perguntei-te o que era o bimetalismo e tu explicaste-mo... explicaste-mo realmente! Foi uma explicação que durou todo o jantar seis pratos. Naquela altura, estávamos com dinheiro e tínhamos um cozinheiro-chefe!

Deve ter sido extremamente incomodativo! disse Jeremy.

Foi fascinante! Nunca ninguém me tinha tratado tão a sério. Foste tão delicado e, no entanto, não davas a parecer que me olhavas, que me achavas bonita ou qualquer coisa assim. Isso excitou-me o amor-próprio. Jurei que havia de obrigar-te a reparares em mim.

Jeremy confessou-lhe em tom melancólico:

Reparei muito bem em ti. Nessa noite, fui para

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casa e não consegui pregar olho. Tinhas um vestido azul com espigas de trigo...

Seguiu-se um leve silêncio que Jeremy quebrou pigarreando:

Hum... tudo isso foi há tanto tempo...

Ela procurou pressurosamente pôr fim ao seu embaraço.

E agora somos um casal de meia-idade, à procura da melhor solução para um apuro.

O que acabaste de dizer-me, Francês, torna mil vezes pior esta... esta desgraça...

Ela interrompeu-o.

Por favor, vamos esclarecer as coisas. Estás a ser apologético porque violaste a lei. Podes ser processado... ir para a prisão ele estremeceu. Não quero que isso aconteça. Lutarei como ninguém para evitá-lo, mas não me julgues indignada devido a qualquer preconceito moral. Não te esqueças de que na minha família há poucos. O pai, apesar de todo o seu encanto, comportou-se muitas vezes como um escroque. E Charles... o meu primo. Disfarçaram o caso, conseguiram que não fosse processado e mandaram-no para as colónias. O meu primo Gerald também... esse falsificou um cheque em Oxford. Mas entrou na guerra e ganhou uma V. C. póstoma por feito de alta bravura, dedicação aos seus homens e resistência super-humana. O que eu quero dizer com isto é que as pessoas são assim nem muito más, nem muito boas. Não me julgo a mim própria particularmente recta tenho-o sido porque até aqui ainda não se me deparou nenhuma tentação que me fizesse ser de modo diferente. Mas o que tenho é muita coragem e sorriu-lhe sou leal!

Querida! levantou-se e, aproximando-se da mulher, curvou-se e pousou-lhe os lábios no cabelo.

E agora disse a filha de Lorde Edward Trenton, sorrindo-lhe que vamos fazer? Há qualquer meio de conseguirmos dinheiro?

O rosto de Jeremy endureceu.

Não vejo como.

Hipotecar esta casa. Ah, sim acrescentou rapidamente

Victoria Cross. Alta condecoração militar britânica.

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já o fizeste. Estou estúpida. Evidentemente que já fizeste todas as coisas óbvias. É então uma questão de tacto? A quem podemos nós recorrer? Creio que há apenas uma possibilidade. A viúva de Gordon... a triste Rosaleen!

Jeremy abanou duvidosamente a cabeça.

Seria necessária uma grande quantia... que ela não pode levantar do capital. O dinheiro está depositado e ela. enquanto viver, só tem direito ao seu rendimento.

Não tinha percebido isso. Julgava que podia dispor dele inteiramente. O que acontecerá quando ela morrer?

Reverte a favor dos parentes mais chegados de Gordon. Quer dizer, é dividido entre mim, Lionel, Adela e o filho de Maurice, Rowley.

Reverte a nosso favor...proferiu Francês lentamente.

Alguma coisa pareceu atravessar o quarto uma corrente de ar frio-o espectro de um pensamento... Francês observou-lhe:

Não me tinhas explicado isso... Julgava que lhe pertencia incondicionalmente... que podia deixá-lo a quem quer que lhe apetecesse.

Não. De acordo com o estatuto de 1925 relativo à falta de testamento...

É questionável que Francês tenha ouvido a explicação do marido. Quando a voz deste se calou, disse:

Pessoalmente, isso pouco nos interessa, pois, quando ela for uma mulher de meia-idade, já nós estamos enterrados há muito tempo. Que idade tem ela? Vinte e cinco... vinte e seis? Provavelmente viverá até aos setenta.

Jeremy, Cloade lembrou duvidosamente.

Podemos pedir-lhe um empréstimo... alegando o grau de parentesco? Pode ser que seja uma rapariga generosa. Na realidade, sabemos tão pouco a seu respeito...

Seja como for, mostrámo-nos bastante gentis para com ela... e não antipáticos como Adela. É capaz de aceder.

O marido acrescentou preventivamente:

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Não podemos de modo algum dar a entender que temos... hum... uma grande urgência.

Francês replicou impacientemente:

Evidentemente que não! A dificuldade está em que não é propriamente com a rapariga que temos de tratar. Ela está inteiramente debaixo da influência do irmão.

Um rapaz nada simpático comentou Jeremy Cloade.

O rosto de Francês iluminou-se com um súbito sorriso.

Oh, não retorquiu. É simpático, é até muitíssimo simpático. Com bastante falta de escrúpulos também, suponho. Mas, quanto a isso, eu também não os tenho!

O seu sorriso endureceu-se. Olhou para o marido.

Não seremos derrotados, Jeremy afiançou-lhe. Hei-de achar algum meio... ainda que tenha de assaltar um banco!

Capítulo 3

Dinheiro! exclamou Lynn.

Rowley Cloade confirmou com um aceno de cabeça. Era um rapaz alto e espadaúdo, de tez corada, com a tonalidade do tijolo, de pensativos olhos azuis e de cabelo muito louro. Era dotado de uma lentidão que mais parecia propositada do que inveterada. Usava a reflexão tal como as outras pessoas a rapidez da réplica.

Sim confirmou, hoje em dia parece que tudo se resume a dinheiro.

Mas eu julgava que os agricultores tinham tirado lucros, durante o tempo da guerra.

Sim, efectivamente... mas isso não nos proporciona um bem permanente. Dentro de um ano, voltaremos ao ponto em que estávamoscom salários aumentados, trabalhadores mal-encarados, toda a gente insatisfeita e sem saber o que quer. A não ser, já se sabe, que se possa cultivar a terra em grande escala. O velho Gordon sabia-o Era isso o que ele tencionava fazer.

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E agora...? perguntou Lynn. Rowley arreganhou os dentes num sorriso.

E agora Mrs. Gordon vai a Londres e gasta duas mil libras num bonito casaco de vison.

É... é imoral!

Oh, não... Rowley fez uma pausa e acrescentou. Gostaria muito de dar-te um casaco de vison, Lynn...

Como é ela, Rowley?

Lynn queria ouvir uma opinião contemporânea.

Vê-la-ás esta noite, na festa do tio Lionel e da tia Kathie.

Sim, bem sei. Mas quero que tu mo digas. A Mamã diz que é estúpida.

Rowley ponderou.

Bem, não digo que o seu lado forte seja o intelectual, mas estou convencido de que parece parva simplesmente porque tem sido tão exageradamente cuidadosa.

Cuidadosa? Cuidadosa em quê?

Oh, simplesmente cuidadosa. Principalmente, no sotaque tem um forte sotaque irlandês, na maneira de estar à mesa e nas citações literárias mais vulgares.

Então, na realidade, não tem... muita... bem, educação?

Rowley sorriu.

Bem, não é uma senhora, se é isso o que queres dizer. Tem uns olhos encantadores e uma pele muito bonita... Acho que foi por esses predicados que o velho Gordon se deixou prender e também pelo seu ar extraordinariamente ingénuo. Não acredito que seja fingido... embora, evidentemente, quem vê caras não vê corações. Parece muito calada e deixar-se guiar por David.

David?

É o irmão. Acho que não deve haver muita coisa acerca de «expedientes» que ele desconheça! Rowley acrescentou, passado um momento. Não simpatiza muito connosco.

Por que havia de simpatizar? inquiriu Lynn desabridamente, e acrescentou ao vê-lo olhá-la, surpreendido. Acho que tu não gostas dele.

Certamente que não. E tu também não. Não é da nossa classe.

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Sabes lá de quem eu gosto ou não, Rowley!284

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nestes últimos três anos, tenho corrido muito mundo e visto muita coisa. Creio... creio que os meus pontos de vista se alargaram.

Tens visto mais deste mundo do que eu, lá isso é verdade.

Declarou isto calmamente... mas Lynn olhou-o perscrutadoramente.

Por trás daquela entoação calma... escondia-se alguma coisa.

Ele aguentou-lhe firmemente o olhar, não deixando transparecer no rosto a menor emoção. Lynn recordou-se de que nunca fora fácil saber-se exactamente o que Rowley pensava.

Como o mundo era estranho e estava mudado, pensava Lynn. Os homens é que costumavam ir para a guerra e as mulheres é que ficavam em casa. Mas, no caso de ambos, as situações tinham-se invertido.

Dos dois rapazes, Rowley e Johnnie, um tivera de ficar na granja. Tinham atirado uma moeda ao ar para decidir qual deles seria e Johnnie Vavasour fora o que partira. Tinha morrido quase imediatamente... na Noruega. Durante todos os anos de guerra, Rowley nunca se distanciara de casa mais do que uma milha ou duas.

Em contrapartida, ela, Lynn, estivera no Egipto, no Norte de África, na Sicília. Estivera debaixo de fogo por mais de uma vez.

Perguntou-se subitamente se ele se teria importado...

Soltou uma pequena gargalhada nervosa.

Às vezes, as coisas parecem um pouco às avessas, não achas?

Não sei respondeu Rowley, contemplando absortamente a paisagem. Depende.

Rowley ela hesitou, importas-te... quero dizer... Johnnie...

O seu olhar calmo e frio fê-la calar-se.

Deixa Johnnie em paz! A guerra acabou e eu tive sorte.

Por sorte queres dizer... não teres sido forçado a ir...? calou-se, hesitando.

Uma sorte fantástica, não achas?

Lynn não soube muito bem como interpretar aquilo.

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A voz do rapaz era calma, mas com entoações ásperas. Rowley acrescentou com um sorriso:

Ora, certamente que tu e todas as outras raparigas que prestaram serviço na guerra hão-de ter dificuldade em readaptar-se à vida do lar.

Ela retorquiu-lhe irritadamente:

Oh, não sejas estúpido, Rowley.

Mas, por que estava irritada? Ora... só se as palavras do rapaz tivessem ferido qualquer nervo tenso da verdade.

Bem disse Rowley, creio que, apesar disso, ainda podemos considerar-nos noivos, ou já mudaste de ideias?

Evidentemente que não mudei de ideias. Por que teria mudado?

Ele respondeu vagamente:

Nunca se sabe.

Queres dizer que me achas Lynn fez uma pausa

diferente?

Não particularmente.

Talvez tu tenhas mudado de ideias.

Oh, não, eu não mudei de ideias. Sabes, na granja houve poucas mudanças.

Pois sim contemporizou Lynn, embora consciente de um certo antagonismo então casemos. Para quando queres?

Junho ou proximidades?

Está bem.

Ficaram calados. Estava assente. Sem querer, Lynn sentia-se terrivelmente deprimida. Todavia, Rowley era Rowley... tal como sempre fora. Afectuoso, calmo, cuidadosamente dado a narrações incompletas.

Amavam-se um ao outro, sempre se tinham amado. Nunca tinham falado muito a respeito do seu amor... portanto, por que haviam de começar a fazê-lo agora?

Casar-se-iam em Junho e viveriam em Long Willows

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um nome que Lynn sempre achara bonito e ela nunca mais voltaria a partir, isto é, a partir, no sentido que as palavras agora tinham para ela. A excitação do erguer de pranchas de desembarque, o rodopiar de uma hélice de navio, a emoção sentida ao descolar de um avião e na subida cada vez mais alta deixando a Terra

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em baixo; ver uma costa desconhecida tomar vulto e feitio; aspirar o cheiro a pó quente, a parafina, a alho a algazarra e a algaravia de idiomas estrangeiros; flores exóticas, poinséttias vermelhas, destacando-se altivamente no meio de um jardim cheio de poeira... Fazer as malas, desmanchar as malas... sempre com destino desconhecido.

Tudo isso acabara. A guerra findara. Lynn Marchmont regressara a casa Home is the sailor, home from the sea... Mas eu não sou a mesma Lynn que partiu, pensou.

Ergueu o olhar e viu que Rowley a observava...

Capítulo 4

Os saraus da tia Kathie eram sempre a mesma coisa. Havia neles uma nota de superficialismo característica da personalidade da hospedeira. O Dr. Cloade dava sempre a impressão de refrear a custo a sua irritabilidade. Mostrava-se invariavelmente cortês para com os seus hóspedes, mas estes percebiam que essa cortesia era forçada.

No aspecto, Lionel Cloade não diferia de seu irmão Jeremy. Era magro e de cabelo grisalho porém, destituído da imperturbabilidade do advogado. O seu temperamento era brusco e impaciente e a sua irritabilidade nervosa chegara a ofender muitos dos seus doentes não os deixando perceber a sua verdadeira perícia e bondade. Os seus verdadeiros interesses residiam nas pesquisas e o seu passatempo favorito era o uso de ervas medicinais sem conta. Era dotado de um intelecto preciso e dificilmente arranjava paciência para aturar as extravagâncias da mulher.

Conquanto Lynn e Rowley tratassem sempre Mrs. Jeremy Cloade por «Francês», para eles Mrs. Lionel Cloade era invariavelmente a «Tia Kathie». Gostavam dela, mas achavam-na muito ridícula.

Esse «sarau», realizado ostensivamente para celebrar.

Canção inglesa O marinheiro regressa a casa, vindo domar.287

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o regresso de Lynn, era simplesmente uma festa familiar.

A tia Kathie cumprimentou afectuosamente a sobrinha.

Que bonita e queimada que estás, minha querida. Acho que é do Egipto. Leste o livro que te mandei sobre as profecias das Pirâmides? É tão interessante! Na realidade, explica tudo, não achas?

A entrada de Mrs. Gordon Cloade, acompanhada de seu irmão Oavid, evitou a Lynn o embaraço de uma resposta.

Minha sobrinha Lynn Marchmont, Rosaleen. Lynn olhou para a viúva de Gordon Cloade com uma curiosidade discretamente velada.

Sim, de facto, essa rapariga que casara por dinheiro com o velho Gordon Cloade era encantadora. Tal como Rowley dissera, tinha um ar de ingenuidade. Cabelo preto em ondas largas, uns olhos azuis, muito límpidos, cercados por olheiras... lábios entreabertos.

O resto era ostensivamente caro vestido, jóias, capa de peles, mãos cuidadas. Uma bonita figura que, na realidade, não sabia usar roupas caras. Não as usava como Lynn Marchmont saberia usá-las se tivesse essa possibilidade. «Mas nunca a terás», disse-lhe uma voz interior.

Muito prazer disse Rosaleen Cloade. Virou-se hesitantemente para o homem que estava atrás dela e apresentou-o.

Este... este é meu irmão.

Muito prazer disse David Hunter.

Era um rapaz magro, de cabelo e olhos escuros. Tinha um rosto sombrio, provocante, levemente insolente.

Lynn compreendeu imediatamente por que razão os Cloades antipatizavam tanto com ele. No estrangeiro, conhecera homens daquele tipo. Homens que eram temerários e até perigosos. Homens em quem não se podia confiar. Homens que faziam as suas próprias leis e escarneciam do universo. Homens que, num apuro, valiam quanto pesavam em ouro... mas que, em tempo de paz, eram uma preocupação para os seus oficiais superiores.

Lynn dirigiu, em ar natural, a palavra a Rosaleen

Gosta de viver em Furrowbank?

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Acho que é uma casa maravilhosa respondeu Rosaleen.

David Hunter soltou uma gargalhada levemente escarninha.

O pobre Gordon tratava-se bem comentou não olhava a despesas.

Era literalmente a verdade. Quando Gordon resolvera instalar-se em Warmsley Vale, ou antes, decidira passar ali uma parte da sua vida atarefada, preferira mandar construir uma casa. Era demasiado individualista para satisfazer-se com uma casa que estivesse impregnada da vida de outras pessoas.

Confiara a obra a um jovem arquitecto modernista e dera-lhe carta branca. Metade de Warmsley Vale achava Furrowbank uma casa horrível, detestando a sua quadratura branca, o mobiliário, as portas de correr, as mesas de vidro e as cadeiras. A única parte da casa que realmente admiravam com toda a sinceridade eram os quartos de banho.

Rosaleen dissera a medo «É uma casa maravilhosa» e o riso de David fizera-a corar.

Você é a Wren que regressou, não é? perguntou David a Lynn.

Sou.

Os olhos do rapaz examinaram-na de alto a baixo aprovativamente... e sem saber porquê Lynn corou.

A tia Kathie reapareceu inesperadamente. Parecia materializar-se no espaço. Talvez tivesse adquirido essa faculdade nas sessões de espiritismo a que assistia.

Ceia anunciou, um tanto arquejante, e acrescentou pateticamente: Acho que é melhor chamar-lhe assim em vez de jantar. As pessoas já não esperam grande coisa. Está tudo muito difícil, não é verdade? Mary Lewis afiançou-me que paga ao peixeiro dez xelins de quinze em quinze dias. Eu acho isso imoral.

O Dr. Lionel Cloade soltou a sua Irritante gargalhada nervosa enquanto falava com Francês Cloade.

Ora, vamos, Francês dizia-lhe. Não pensa que eu acredite nisso... Entremos.

Entraram na casa de jantar, puída e bastante feia. Jeremy e Francês, Lionel e Katherine, Adela, Lynn e Rowley. Uma festa familiar dos Cloades com dois intrusos,

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pois Rosaleen, embora usasse o mesmo apelido, não se tornara uma Cloade, tal como Francês e Katherine o tinham conseguido.

Era uma estranha que não se sentia à vontade, que estava nervosa. E David... David era o proscrito. Por necessidade, mas também por vontade. Lynn pensava nestas coisas, enquanto ocupava o seu lugar à mesa.

Sentiam-se no ar ondas emotivas uma forte corrente eléctrica de... de que seria? Ódio? Seria realmente ódio?

Em todo o caso, alguma coisa... destruidora.

Subitamente, Lynn pensou «Mas em toda a parte acontece o mesmo. Tenho-o notado desde que regressei à pátria. É a marca deixada pela guerra. Má vontade. Maus instintos. Por todo o lado. Nos caminhos-de-ferro, nos autocarros, nas lojas, entre os operários e os funcionários e até trabalhadores agrícolas. E suponho que nas minas e nas fábricas ainda é pior. Má vontade. Mas aqui é mais do que isso. Aqui é especial. É significativa!

E, chocada com essa descoberta, pensou ainda «Será possível que odiemos tanto estes estranhos que ficaram com o que supomos nosso?»

E depois... «Não, ainda não. Pode ser que sim... mas ainda não. Não, eles é que nos odeiam.»

Pareceu-lhe uma descoberta tão deprimente que ficou calada a pensar nela, esquecendo-se de dirigir a palavra a David Hunter, sentado a seu lado.

Pouco depois, este perguntou-lhe:

Está a fazer alguma descoberta?

Era uma voz muito afável, levemente divertida, mas que a atingiu em cheio. David devia esperar que ela lhe replicasse rudemente.

Desculpe, Estava a pensar no estado do mundo. David comentou calmamente:

Que falta de originalidade!

Sim, tem razão. Hoje em dia, somos todos tão sinceros! E não me parece que isso traga algum benefício.

Geralmente, é mais prático desejar praticar o Mal. Nestes últimos anos, inventámos uma ou duas engenhocas bastante práticas para esse efeito incluindo essa piece de resistance da Bomba Atómica.

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Era nisso que eu estava a pensar... Não me refiro à Bomba Atómica. Queria dizer Má Vontade. Inimizade prática e precisa.

Inimizade certamente, mas eu prefiro não empregar a palavra prática. Na Idade Média tomavam-na mais à letra.

Como? perguntou-lhe Lynn.

Magia negra, geralmente. Mau-olhado. Figuras de cera. Sortilégios na mudança de lua. A morte do gado do vizinho. A morte do próprio vizinho.

Certamente não crê que uma coisa dessas fosse magia negra? inquiriu Lynn, incredulamente.

Talvez não. Mas, em todo o caso, devem tê-lo tentado. Hoje em dia, bem... encolheu os ombros. Apesar de toda a inimizade que reina no mundo, você e a sua família não podem fazer-nos muito mal, a Rosaleen e a mim, pois não?

Lynn endireitou a cabeça, bruscamente. Mas, sentiu-se divertida e replicou:

É já um pouco tarde.

David Hunter riu-se. Também ele parecia divertir-se.

Para impedir que fujamos com a presa? Sim, realmente temo-la bem segura.

E goza imenso com isso!

Com o facto de termos muito dinheiro? Certamente que sim.

Não me referia apenas ao dinheiro. Referia-me a nós outros.

Por lhes termos ganho a partida? Bem, talvez. Todos vocês se teriam mostrado delambidos e condescendentes quanto ao dinheiro do velhote. Consideravam-no já praticamente na vossa algibeira.

Lynn observou-lhe:

Não deve esquecer-se de que fomos habituados a pensar assim, durante anos. Habituados a não poupar, a não pensar no futuro... encorajados até a darmos largas a toda a espécie de planos e projectos.

Rowley, pensava ela, Rowley e a granja.

Com efeito, só não aprenderam uma coisa observou David prazenteiramente.

O que foi?

Que nada é seguro.

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Lynn gritou a tia Katherine, inclinando-se para

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a frente, no seu lugar, à cabeceira da mesa, um dos guias de Mrs. Lester é um sacerdote da quarta dinastia. Contou-nos coisas maravilhosas. Tu e eu, Lynn, temos de ter uma longa conversa. Acho que o Egipto deve ter-te afectado psiquicamente.

O Dr. Cloade interveio desabridamente:

Lynn teve coisas mais importantes a fazer do que interessar-se por toda essa baboseira supersticiosa.

És tão torto, Lionel censurou-o a mulher. Lynn sorriu à tia e depois deixou-se ficar calada com o refrão das palavras de David no ouvido.

Nada é seguro...»

Havia pessoas que viviam num mundo dessa natureza pessoas para as quais tudo era perigoso. David Hunter era uma dessas pessoas... Não era o mundo em que Lynn fora criada... e, no entanto, era um mundo que a atraía.

Pouco depois, David prosseguiu no mesmo tom baixo e divertido:

Continuamos em boas relações?

Certamente.

Belo. Continua a invejar a Rosaleen e a mim o nosso injusto acesso à riqueza?

Sim redarguiu Lynn com espírito.

Esplêndido. Que conta então fazer?

Comprar cera e praticar magia negra! Ele riu-se.

Oh, não, não fará isso. Não é dessas pessoas que confiam em velhos métodos, postos fora de prática. Os seus métodos serão modernos e provavelmente muito eficientes. Mas não ganhará.

Por que pensa que haverá luta? Não aceitámos já, nós todos, o inevitável?

Comportaram-se lindamente. É muito divertido.

Por que nos odeia? perguntou-lhe Lynn em voz baixa.

Algo fulgurou naqueles olhos escuros e insondáveis.

Não conseguiria fazê-la compreender-me.

Pois eu acho que sim retorquiu Lynn.

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David permaneceu calado por um momento e depois perguntou em tom natural:

Por que vai casar com Rowley Cloade? É um imbecil.

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Ela reagiu vivamente:

Você nada sabe a esse respeito... nem a respeito dele. Nem tem nada com isso!

Sem parecer mudar de conversa, David inquiriu:

Que pensa de Rosaleen?

Acho-a encantadora.

Que mais?

Não me parece sentir-se divertida.

Exactamente disse David. Rosaleen é muito estúpida. Sente-se amedrontada. Sente-se sempre amedrontada. Arranja complicações e depois não sabe sair-se delas sozinha. Posso falar-lhe de Rosaleen?

Se isso lhe agrada replicou Lynn delicadamente.

Agrada. Começou por interessar-se pela vida de teatro e foi para o palco. Não deu nada, já se sabe. Entrou para uma companhia de terceira categoria que estava para partir em tournée para a África do Sul. A companhia desembarcou na Cidade do Cabo. Depois, casou com um funcionário do Governo em serviço na Nigéria. Não gostou da Nigéria e não creio que tivesse gostado muito do marido. Se ele tivesse sido um tipo vulgar que se embriagasse e a espancasse, tudo teria corrido bem. Mas era um homem muito intelectual, que tinha uma enorme biblioteca no mato e que gostava de dissertar sobre metafísica. Por conseguinte, voltou para a Cidade do Cabo. O tipo portou-se muito bem e passou-lhe uma mesada adequada. Por um lado, não se importava de conceder-lhe o divórcio e, por outro, não podia fazê-lo porque era católico; mas, seja como for, felizmente morreu com febres e Rosaleen ficou com uma pequena pensão. Depois a guerra rebentou e ela meteu-se num barco com rumo à América do Sul. Esta não lhe agradou muito e, por conseguinte, tornou a embarcar. Foi então que conheceu Gordon Cloade e lhe contou toda a sua triste vida. Em consequência disso, casaram em Nova Iorque e viveram felizes durante quinze dias. Pouco tempo depois uma bomba matou o velho e ela ficou senhora de uma enorme quantidade de jóias valiosas e de um avultado rendimento.

É agradável que o romance tenha tido um fim feliz comentou Lynn.

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Sim concordou David Hunter. Embora destituída de qualquer parcela de inteligência, Rosaleen foi sempre uma rapariga de sorte^. até nisto. Gordon Cloade era um homem velho, mas forte. Tinha sessenta e dois anos. Poderia facilmente ter vivido mais vinte. Até mais. Isso não teria sido muito divertido para Rosaleen, não acha? Quando casou com ele tinha vinte e quatro anos. Agora tem apenas vinte e seis.

Parece mais nova.

David olhou para o lado oposto da mesa. Rosaleen Cloade estava entretida a esmigalhar um pedacinho de pão. Parecia uma criança nervosa.

Pois parece concordou ele pensativamente. Deve-se isso a uma completa ausência de pensamentos, segundo creio.

Coitada! exclamou Lynn inesperadamente. David franziu o sobrolho.

A que vem essa comiseração? inquiriu desabridamente. Eu tomarei Rosaleen a meu cuidado. Quem tentar humilhá-la terá de haver-se comigo! Conheço muitas maneiras de fazer guerra... e algumas delas não são estritamente ortodoxas.

Agora vai contar-me a história da sua vida? inquiriu Lynn friamente.

Em edição muito reduzida sorriu. Quando a guerra rebentou, não vi qualquer razão para combater pela Inglaterra. Sou irlandês. Mas, como todos os irlandeses, gosto de combater. Os Comandos tinham para mim uma fascinação irresistível. Diverti-me um pouco, mas infelizmente tive de retirar-me com uma perna muito ferida. Depois fui para o Canadá onde fui contratado para treinar uns tipos. Achava-me com a corda na garganta, quando recebi o telegrama de Rosaleen de Nova Iorque, dizendo que ia casar-se! Na realidade, não me participava que se tratava de um bom negócio, mas sou muito hábil a ler nas entrelinhas. Voei até lá, apresentei-me ao ditoso par e vim com ele para Londres. E agora «Home is the sailor, home from the sea. Aí tem! And the Hunter home from the Hill (1). Que se passa?

Nada respondeu Lynn.

E o caçador regressa do monte. (Hunter é também o apelido de David.)

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Levantou-se com os outros convivas. Quando entraram na sala de estar, Rowley disse-lhe:

Parecias muito entretida com David Hunter. De que estavam a falar?

De nada em especial respondeu Lynn.

Capítulo 5

David, quando voltamos para Londres? Quando vamos para a América?

Do outro lado da mesa do pequeno-almoço, David Hunter lançou a Rosaleen um rápido olhar surpreendido.

Não há pressa, pois não? Há nesta casa qualquer coisa que não te agrade?

Lançou um rápido olhar apreciativo em volta do quarto onde estavam a tomar o pequeno-almoço. Furrowbank situava-se na encosta de uma colina e das suas janelas gozava-se um extenso panorama da adormecida paisagem campestre inglesa. Na vertente arrelvada, tinham sido plantados milhares de dálias. Estavam agora quase todas mortas, mas formavam ainda um lençol de flores douradas.

Desfazendo em migalhas a torrada que estava no prato, Rosaleen murmurou:

Prometeste que íamos para a América... em breve. Logo que fosse possível.

Sim... mas na realidade, não é possível fazê-lo tão facilmente. Temos que contar com a prioridade de passagens. Nem tu nem eu temos razões de negócios a alegar. Depois de uma guerra, as coisas são sempre difíceis.

Enquanto falava, sentia-se levemente irritado consigo próprio. As razões que alegava, embora fossem bastante genuínas, soavam como desculpas. Tê-las-ia assim considerado a rapariga que estava em sua frente? Por que estaria tão interessada em ir para a América?

Rosaleen murmurou:

Disseste que ficaríamos cá apenas pouco tempo. Não disseste que iríamos viver aqui.

Que te desagrada em Warmsley Vale... e em Furrowbank?

Nada. São eles... todos eles!

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Os Cloades?

Sim.

É exactamente com eles que gozo disse David. Gosto de ver-lhes os rostos delambidos, roídos de inveja e de maldade. Não me tires este prazer, Rosaleen.

Ela confessou em voz baixa e perturbada:

Gostava que não sentisses isso. Não me agrada.

Ânimo, rapariga. Tu e eu já vivemos bastante tempo aos baldões da sorte. Os Cloades têm levado uma boa vida... uma boa vida à custa do mano Gordon. Detesto esse género... sempre o detestei.

Ela retorquiu, chocada:

Não gosto de odiar os outros. É pecado.

- Julgas que eles não te detestam? Foram gentis para contigo... amistosos?

Ela respondeu hesitantemente:

Não foram desagradáveis. Nunca me fizeram mal.

Mas gostariam de fazê-lo, meu anjinho. Gostariam de fazê-lo riu-se, despreocupadamente.Se não tivessem tanto cuidado com o próprio pêlo, aparecerias, numa linda manhã, com uma faca nas costas.

Ela estremeceu.

Não digas essas coisas horríveis.

Bem... talvez não fosse com uma faca. Estricnina na sopa.

Ela olhou-o, pasmada, com a boca trémula.

Estás a brincar... Ele voltou a ficar sério.

Não te preocupes, Rosaleen: cuidarei de ti. Têm de haver-se comigo.

Ela propôs, gaguejando:

Se é verdade o que disseste... que nos detestam... que me detestam... por que não vamos para Londres? Aí, estaríamos seguros... longe de todos eles.

O campo faz-te bem, minha pequena. Bem sabes que te faz mal estares em Londres.

Page 353: Agatha Christie - Os Trabalhos de Hércules - Arrastado na To

Isso era quando havia bombardeamentos... estremeceu e fechou os olhos. Nunca esquecerei... nunca...

Esquecerás, sim agarrou-a delicadamente pelos ombros e sacudiu-a com brandura. Esquece isso, Rosaleen. Ficaste terrivelmente impressionada, mas agora

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tudo isso já passou. Já não há mais bombas. Não penses nisso. Não o recordes. O médico recomendou-te ar e vida do campo durante bastante tempo. É por isso que quero conservar-te afastada de Londres.

É realmente por isso? David? Pensei... que talvez...

Que pensaste?

Rosaleen respondeu vagarosamente:

Pensei que talvez fosse por causa dela que querias estar aqui...

Dela?

Bem sabes a quem me refiro. À rapariga da outra noite. À que esteve nas Wrens.

Subitamente, o rosto de David endureceu-se e tornou-se carrancudo.

Lynn? Lynn Marchmont?

Tu interessas-te por ela, David.

Lynn Marchmont? É a noiva de Rowley. Do bom Rowley «Que-ficou-em-casa». Esse imbecil bem-parecido.

Observei-te enquanto conversaste com ela, naquela noite.

Oh, por amor de Deus, Rosaleen!

E, desde então para cá, tens voltado a vê-la, não tens?

Encontrei-a uma destas manhãs, perto da granja, quando saí a cavalo.

E tornarás a encontrá-la.

Certamente que estarei sempre a encontrá-la. Isto é uma terra pequena. Não se pode dar dois passos sem esbarrarmos com um Cloade. Mas, se julgas que estou apaixonado por Lynn Marchmont, enganas-te. É uma rapariga desagradável e orgulhosa sem a mínima noção de civismo na cabeça. Apresento as minhas congratulações ao velho Rowley. Não, Rosaleen, minha querida, não é o meu tipo.

Tens a certeza? inquiriu ela, duvidosa.

Certamente que sim.

Ela acrescentou, com certa timidez:

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Bem sei que não gostas que eu deite as cartas... Mas elas dizem a verdade... acertam realmente. Havia uma rapariga portadora de aborrecimentos e de tristezas... uma rapariga que chegaria por mar. Havia também

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um estrangeiro desconhecido que apareceria nas nossas vidas e portador de perigo. Havia a carta da morte e...

Tu e os teus estrangeiros desconhecidos! David riu-se. Que monte de superstições tu és! Não traves relações com nenhum estrangeiro desconhecido, é o que te aconselho.

Saiu de casa, rindo-se, mas depois de ter percorrido uma certa distância, o rosto ensombrou-se-lhe e franziu o sobrolho, murmurando:

Que pouca sorte a tua, Lynn! Voltares do estrangeiro e transtornares os projectos!

Compreendeu, nesse mesmo instante, que seguia propositadamente um caminho em que lhe era possível encontrar a rapariga que acabara de apostrofar tão desagradavelmente.

Rosaleen viu-o atravessar o jardim e transpor a pequena cancela que dava para o atalho que atravessava os campos. Depois foi ao seu quarto de cama e contemplou os vestidos que se alinhavam no guarda-fatos. Sentia sempre prazer em apalpar e sentir o casaco de vison. Pensar, que possuía um casaco desses... Custava-lhe a convencer-se de que assim era. Estava ainda no quarto, quando a criada subiu a participar-lhe a chegada de Mrs. Marchmont,

Adela achava-se sentada na sala de estar, com os lábios apertados e o coração pulsando com o dobro da velocidade habitual. Durante vários dias, estivera a ganhar coragem para pedir auxílio a Rosaleen; mas, em verdade, a sua natureza fora morosa. Ficara também desnorteada ao ver que a atitude de Lynn mudara inconcebivelmente e que a filha se mostrava rigidamente contrária a que a mãe procurasse alívio para as suas aflições num empréstimo à viúva de Gordon.

Contudo, uma outra carta do gerente do banco, recebida nessa manhã, decidira Mrs. Marchmont a entrar em acção. Não podia prolongar esse estado de coisas por mais tempo. Lynn saíra muito cedo e Mrs. Marchmont avistara David percorrendo o atalho... o caminho estava, pois, desimpedido. Tinha um interesse especial em encontrar-se a sós com Rosaleen, pensando com razão que a ausência de David tornaria a proposta muito mais fácil.

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Apesar disso, sentiu-se terrivelmente nervosa, durante aqueles momentos em que esperava, na sala de estar, assoalhada. Sentiu-se, porém, levemente melhor quando Rosaleen entrou com o que Mrs. Marchmont sempre chamara o seu «aspecto tolo», mais acentuado do que nunca.

«Gostaria de saber», pensou Adela, «se foi em consequência da explosão ou se ela foi sempre assim.»

Rosaleen gaguejou:

Oh, b-b-om dia. Que se passa? Sente-se.

Que bela manhã! exclamou Mrs. Marchmont com entusiasmo. Todas as minhas túlipas já abriram. E as suas?

A rapariga fitava-a pasmada, absortamente.

Não sei.

Por onde começar, pensou Adela, com uma pessoa que não sabia falar de jardinagem, de cães... enfim, de qualquer tema de conversa rural?

Sem ser capaz de dominar uma nota de acidez na voz, desculpou:

É natural, tem tantos jardineiros... que tratem de tudo isso...

Estamos com falta de pessoal. O velho Mullard diz que precisa de mais dois homens. Mas parece que ainda há uma terrível falta de mão-de-obra.

As palavras brotavam-lhe da boca como uma espécie de dicção papagueada um tanto como uma criança que repete o que ouviu dizer a uma pessoa crescida.

Sim, era como uma criança. Seria isso, pensou Adela, o seu encanto? Teria sido isso que atraíra o perspicaz e activo homem de negócios, Gordon Cloade. cegando-o a ponto de não o deixar notar a estupidez e falta de educação? No fim de contas, não podia tratar-se apenas de aparências. Já anteriormente muitas mulheres atraentes tinham procurado baldadamente «caçá-lo».

Mas, para um homem de sessenta e dois anos de idade, a infantilidade podia constituir uma atracção. Seria, poderia ser, real ou seria uma pose, uma pose que resultara e desse modo se tornara uma segunda natureza?

Rosaleen dizia:

David saiu... e as palavras fizeram Mrs. Marchmont voltar a si. David podia voltar. Não podia perder

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aquela oportunidade. As palavras ficaram-lhe presas na garganta, mas conseguiu soltá-las.

Gostava de saber se poderia ajudar-me?

Ajudá-la?

Rosaleen parecia surpreendida, não compreendia.

Eu... as coisas estão muito difíceis... compreende, a morte de Gordon fez-nos a todos uma grande diferença.

«Idiota, imbecil», pensava. «Tens necessidade de estar a olhar para mim boquiaberta? Bem sabes o que quero dizer! Deves saber o que quero dizer. No fim de contas, tu própria já foste pobre...»

Nesse momento, detestava Rosaleen. Detestava-a porque ela, Adela Marchmont, estava ali sentada pedinchando dinheiro. Pensou: «Não posso... não posso.»

Por um breve instante, todas as longas horas de meditação, de preocupação e de planos vagos, perpassaram-lhe pelo espírito.

Vender a casa (Mas mudar-se para onde? Não havia casas pequenas... nem certamente casas baratas.) Arranjar hóspedes... (Mas não se conseguia arranjar pessoal... e ela sozinha não podia... não podia tratar da cozinha e do arranjo da casa. Se Lynn ajudasse... mas Lynn ia casar com Rowley.) Ir viver com Rowley e Lynn? (Não, nunca o faria!) Arranjar um emprego. Que emprego? Quem aceitaria uma mulher exausta, de meia-idade e inexperiente?

Ouviu a própria voz, beligerante, porque se desprezava a si própria.

Quero dizer dinheiro esclareceu.

Dinheiro? repetiu Rosaleen.

Parecia ingenuamente surpreendida, como se a palavra dinheiro fosse a última coisa que esperasse ouvir.

Adela prosseguiu obstinadamente, sacando a custo as palavras:

Estou sem dinheiro no banco e tenho contas a pagar... consertos da casa... e os salários também ainda não foram pagos. Compreende, tudo ficou reduzido a metade... isto é, o meu rendimento. Suponho que é por causa dos impostos. Gordon costumava ajudar-nos... na casa, quero dizer. Fez todos os consertos; telhados, pinturas e coisas no género. E também me dava uma pensão. Pagava-a no banco todos os trimestres. Dizia sempre que

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não nos preocupássemos e, já se sabe, que nunca o fiz. Isto é, foi assim enquanto ele viveu, mas agora...

Calou-se. Sentia-se envergonhada... mas, ao mesmo tempo, aliviada. No fim de contas, o pior já passara. Se a rapariga recusasse, recusava e pronto.

Rosaleen parecia muito desolada.

Oh, coitada disse. Não sabia. Nunca pensei eu... bem, certamente, pedirei a David...

Agarrando-se desesperadamente aos braços da cadeira, Adela perguntou:

Não poderia passar-me um cheque... agora...

Sim... sim, suponho que sim. Rosaleen, parecendo assustada, levantou-se e dirigiu-se à escrivaninha. Rebuscou em vários escaninhos e finalmente retirou uma caderneta de cheques.

Devo... quanto?

Poderiam... poderiam ser quinhentas libras... Adela calou-se.

Quinhentas libras escreveu Rosaleen obedientemente.

Das costas de Adela escorregou um pesado fardo. No fim de contas, fora fácil! Ficou consternada ao ocorrer-lhe que sentia mais do que gratidão um leve desprezo pela facilidade da vitória obtida. Rosaleen era, sem dúvida alguma, extraordinariamente ingénua.

A rapariga levantou-se da escrivaninha e aproxímou-se dela. Estendeu-lhe desajeitadamente o cheque. Agora o embaraço parecia estar inteiramente do seu lado.

Espero que esteja bem. Na realidade, tenho muita pena...

Adela pegou no cheque. A escrita infantil e irregular espraiava-se no papel cor-de-rosa.

Mrs. Marchmont. Quinhentas libras. 500 libras. Rosaleen Cloade.

É muita bondade sua, Rosaleen. Obrigada.

Oh, por favor... quero dizer... eu devia ter pensado...

Muita bondade minha querida.

Com o cheque na mala, Adela Marchmont sentia-se

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outra mulher. A rapariga fora realmente muito compreensiva. Seria embaraçoso prolongar a entrevista. Despediu-se e retirou-se. Passou por David no caminho do jardim, deu-lhe amavelmente um «bom-dia» e seguiu num passo apressado.

Capítulo 6

Que veio cá fazer aquela Marchmont? perguntou David, mal entrou.

Oh, David, tinha uma necessidade terrível de dinheiro. Nunca tinha pensado que...

E deste-lho, suponho.

Olhou-a com um desespero meio divertido.

Não podes ficar sozinha, Rosaleen.

Oh, David, não pude recusar. No fim de contas...

No fim de contas... o quê? Quanto? Em voz baixa, Rosaleen murmurou:

Quinhentas libras.

Ouviu, com grande alívio, David rir-se.

Uma simples picadela de pulga!

Oh, David, é imenso dinheiro!

Não para nós actualmente, Rosaleen! Na realidade, nunca mais te compenetras de que és uma mulher muito rica. Em todo o caso, visto que pediu quinhentas, ter-se-ia dado inteiramente por satisfeita com duzentas e cinquenta. Tens de aprender a linguagem dos empréstimos!

Ela murmurou:

Desculpa, David!

Minha querida pequena! No fim de contas, o dinheiro é teu.

Não é. Na realidade não é.

Bem. Não comeces outra vez com isso. Gordon Cloade morreu antes de ter tempo de fazer um testamento. A isto é que se chama a sorte do jogo. Nós ganhámos, tu e eu. Os outros... perderam.

Não me parece... bem.

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Ora deixa-te disso, minha linda mana. Não gostas de tudo isto? Uma casa grande, criados... jóias? Não é um sonho realizado? Não achas? Deus seja louvado, às vezes penso que vou acordar e ver que é tudo um sonho.

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Ela riu-se também e David Hunter, depois de observá-la atentamente, ficou satisfeito. Sabia como lidar com Rosaleen. Era incómodo, pensou, que ela tivesse remorsos, mas isso não se podia evitar.

É uma grande verdade, David, parece um sonho, ou qualquer história de cinema. Tudo me agrada. Tudo, tudo!

Mas o que temos, não o largamos advertiu-a.

Nada de mais presentes aos Cloades, Rosaleen. Qualquer deles tem muito mais dinheiro do que, antes, tu e eu tivemos na vida.

Sim, acho que sim.

Onde esteve Lynn esta manhã? inquiriu David.

Creio que foi a Long Willows.

A Long Willows ver Rowley, esse imbecil, esse estúpido! A sua boa disposição desvaneceu-se. Afinal continuava decidida a casar com esse tipo.

Saiu de casa pensativamente, caminhou através de maciços de azalias e transpôs a pequena cancela ao cimo da colina. Desse ponto, o atalho descia ao longo da encosta e passava pela granja de Rowley.

Quando ali chegou, viu Lynn Marchmont subir a encosta, vindo da quinta. Hunter hesitou por um momento, depois cerrou belicosamente os maxilares e desceu o atalho ao seu encontro. Encontraram-se, por assim dizer, exactamente a meio da subida.

Bom dia saudou David. Quando é o casamento?

Já me perguntou isso retorquiu ela. Sabe muito bem quando é. Em Junho.

Está resolvida?

Não sei o que quer dizer, David.

Sabe, sim soltou uma gargalhada desdenhosa.

Rowley... O que é Rowley?

Um homem melhor do que você... ataque-o, se se atreve disse ela, alegremente.

Não tenho qualquer dúvida de que seja um homem melhor do que eu... mas atrevo-me a isso. Por si, atrever-me-ia a qualquer coisa.

Ela ficou calada por um momento e, passado este, disse:

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Você não compreende que amo Rowley?

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Duvido.

Ela teimou veementemente:

Amo-o, sim, digo-lho eu. David olhou-a perscrutadoramente.

Todos nós vemos o retrato de nós próprios de nós próprios como desejamos ser. Você vê-se apaixonada por Rowley, casando com ele, vivendo aqui contente,. sem nunca querer ir-se embora. Mas isto não é o seu «eu» verdadeiro, pois não, Lynn?

Ah, sim, então qual é o meu eu verdadeiro? Qual é o seu, já agora? O que é que você quer?

Eu queria segurança, bonança depois da tormenta, calma depois de mares tempestuosos. Mas não sei. Às vezes, suspeito, Lynn, de que tanto você como eu queremos... agitação acrescentou pensativamente. Desejava que você nunca para aqui tivesse voltado. Até você vir, senti-me extraordinariamente feliz.

E agora não se sente feliz?

Olhou-a. Ela sentiu nascer dentro de si uma estranha excitação. A sua respiração tornou-se mais rápida. Nunca antes sentira tão fortemente a estranha atracção fantástica de David. Ele estendeu rapidamente uma mão, agarrou-a por um ombro e fê-la virar-se...

Depois, subitamente, sentiu o seu aperto afrouxar. Olhava fixamente, por cima do seu ombro, para um ponto superior da colina. Virou a cabeça para ver o que lhe atraíra a atenção.

Naquele momento, uma mulher ia a transpor a pequena cancela acima de Furrowbank. David perguntou vivamente:

Quem é aquela?

Parece ser Francês.

Francês Hunter franziu o sobrolho.

Que quer ela?

Minha querida Lynn! Só aqueles que querem alguma coisa vão visitar Rosaleen. Sua mãe já lá foi hoje.

A mãe? Lynn recuou e franziu o sobrolho. Que queria ela?

Não sabe? Dinheiro!

Dinheiro? Lynn retesou-se.

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E conseguiu-o acrescentou David. Esboçava

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agora aquele sorriso cruel e frio que lhe ficava tão bem ao rosto.

Um momento antes, tinham estado próximos um do outro, mas agora achavam-se separados por muitas milhas, divididos por um vivo antagonismo.

Lynn gritou:

Oh, não, não, não! Ele imitou-a:

Sim, sim, sim!

Não acredito. Quanto?

Quinhentas libras. Ela inspirou vivamente.

David acrescentou contemplativamente:

Pergunto a mim mesmo quanto é que Francês irá pedir. Na realidade, é pouco seguro deixar Rosaleen sozinha, ainda que seja apenas por cinco minutos. A pobre rapariga não sabe dizer não.

Foi lá... quem mais? David sorriu trocistamente.

A tia Kathie contraíra certas dívidas oh, não muito, umas simples duzentas e cinquenta libras bastariam mas estava com medo que isso chegasse aos ouvidos do médico! Como resultaram de pagamentos a médiuns, ele podia não gostar. Ela não sabia, certamente acrescentou David, que o próprio médico já contraíra um empréstimo.

Lynn murmurou:

O que você deve pensar de nós... o que você deve pensar de nós! depois, apanhando-o de surpresa, virou-se e desceu precipitadamente a encosta, a caminho da granja.

David franziu o sobrolho ao vê-la afastar-se.

Não, Francês disse para consigo. Creio que escolheste um mau dia e subiu resolutamente a encosta.

Transpôs a cancela e desceu o atalho por entre as azaleas, atravessou o relvado e entrou silenciosamente em casa pela porta envidraçada da sala de estar, no momento em que Francês Cloade dizia:

...gostava de saber explicar-me melhor. Mas, compreende, Rosaleen, é realmente muito difícil de explicar...

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Uma voz atrás dela, disse:

Ah, sim?

Francês Cloade virou-se com vivacidade. Ao contrário de Adela Marchmont, não procurara propositadamente encontrar-se a sós com Rosaleen. A quantia requerida era suficientemente elevada para levar a crer que seria pouco natural que Rosaleen lha entregasse sem primeiramente consultar o irmão. Na realidade, Francês preferiria até discutir o assunto na presença de David para que este não pensasse que ela procurava extorquir dinheiro à irmã, na sua ausência.

Não o ouvira entrar, de absorta que estava na exposição de um caso plausível. A interrupção sobressaltara-a e compreendera também que, por qualquer razão, David Hunter estava numa disposição notavelmente má.

Oh, David exclamou com à vontade ainda bem que veio! Estava a expor o caso a Rosaleen. A morte de Gordon deixou Jeremy num terrível aperto e lembrei-me de perguntar-lhe se ela poderia vir em nossa salvação. É isto...

As palavras fluíam rapidamente, a avultada quantia em causa, a protecção de Gordon, prometida verbalmente, as restrições do governo, hipotecas...

Uma certa admiração fulgurou na escuridão do espírito de David. Que tremenda mentirosa era aquela mulher! Toda a história era plausível. Mas não verdadeira. Não, era capaz de jurá-lo. Não era verdadeira. Mas, perguntou-se, qual era a verdade? Estaria Jeremy com a corda na garganta? Devia tratar-se de uma situação desesperada para Francês ali ir, pois era uma mulher altiva...

Dez mil? inquiriu David Hunter. Rosaleen murmurou numa voz temerosa:

Isso é muito dinheiro. Francês interveio pressurosamente.

Oh, bem sei que sim. Não teria cá vindo se não se tratasse de uma quantia tão difícil de obter. Mas Jeremy nunca se teria metido neste negócio se não tivesse contado com a protecção de Gordon. A morte dele, inesperadamente, foi uma desgraça tão grande...

Deixando-os a todos desprotegidos? a voz de David soou desagradavelmente. Depois de uma vida abrigada sob as suas asas.

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Pelos olhos de Francês perpassou um leve fulgor, quando lhe observou:

Tem uma maneira deveras pitoresca de considerar as coisas!

Como deve saber, Rosaleen não pode tocar no capital. Apenas nos rendimentos. Mas ela paga cerca de dezanove xelins e seis dinheiros de imposto por cada libra de rendimento.

Oh, bem sei. Hoje em dia, os impostos são terríveis. Mas poderia arranjar-se isso, não é verdade? Nós pagaríamos...

Ele interrompeu-a:

Poderia arranjar-se. Mas não se arranja! Francês virou-se rapidamente para Rosaleen.

Rosaleen, tem tão bom coração... A voz de David cortou-lhe o discurso.

O que é que vocês, os Cloades, julgam que Rosaleen seja... uma vaca leiteira? Pela frente, todos lhe fazem sugestões, pedem, imploram... E pelas costas? Troçam dela, arrogam-se ares protectores, lastimam-na, detestam-na, desejam-lhe a morte...

Isso não é verdade! gritou Francês.

Ai não? Estou farto de vocês todos! Ela está farta de vocês todos. Não nos apanharão dinheiro algum. Por conseguinte, é melhor deixar de vir cá pedinchá-lo. Compreendeu?

Tinha o rosto rubro de cólera.

Francês levantou-se de rosto duro e inexpressivo. Calçou absortamente uma luva, mas como se fosse um acto significativo.

Foi muito claro, David declarou-lhe. Rosaleen murmurava:

Desculpe. Tenho realmente pena...

Francês não lhe deu atenção. Era como se Rosaleen não estivesse naquele quarto. Deu um passo para a porta envidraçada e parou, para encarar David.

Disse que desprezo Rosaleen. Isso não é verdade. Não desprezo Rosaleen... mas por si... nutro um profundo desprezo.

Que quer dizer? Olhava-a ameaçadoramente.

As mulheres têm de viver. Rosaleen casou com

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um homem riquíssimo, muitos anos mais velho do que ela. Por que não? Mas você? Você vive à custa de sua irmã, anda à boa vida, vive à grande... à custa dela.

Interponho-me entre ela e as harpias. Fitaram-se firmemente. Apercebeu-se da raiva dela e,

num relâmpago, compreendeu que Francês Cloade era um inimigo perigoso, um inimigo que poderia ser ousado e sem os menores escrúpulos.

Quando Francês abriu a boca para falar, Hunter chegou a sentir um momento de apreensão. Mas o que ela disse foi singularmente inocente:

Lembrar-me-ei do que me disse, David. Deixou-o e transpôs a porta envidraçada.

David perguntava-se por que se sentia tão firmemente convicto de que aquelas palavras representavam uma ameaça.

Rosaleen chorava.

Oh, David, David... não lhe devias ter dito essas coisas. Ela foi, de entre todos, uma das pessoas mais simpáticas para mim.

Cala-te, minha parva! gritou-lhe furiosamente. Queres que te saltem em cima e te deixem sem um vintém?

Mas o dinheiro... se... se não me pertence de direito...

Emudeceu perante o olhar que ele lhe lançou.

Não... não era isso que eu queria dizer, David.

Espero que não.

«O remorso», pensou Hunter, «era o pior!»

Não contara com a consciência de Rosaleen. De futuro, dificultar-lhe-ia terrivelmente as coisas.

O futuro? Franziu o sobrolho enquanto a olhava e deu livre curso aos seus pensamentos. O futuro de Rosaleen... o seu... Sempre soubera o que queria... compreendia agora... Mas Rosaleen? Que futuro seria o de Rosaleen?

Ao ver-lhe o rosto tornar-se sombrio... ela gritou... começando subitamente a tremer:

Oh! Alguém caminha sobre a minha sepultura! Hunter olhou-a com curiosidade e disse:

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Já te convenceste de que isso pode acontecer?

Que queres dizer, David?

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Quero dizer que cinco... seis... sete pessoas

fazem tenção de te mandarem para a cova antes de chegar a tua hora!

Não queres dizer... assassínio... a sua voz estava horrorizada. Julgas que essas pessoas seriam capazes de um assassínio... mas, boa gente como os Cloades, não.

Não estou certo de que exactamente boa gente como os Cloades não possa cometer um assassínio. Mas, enquanto eu aqui estiver a velar por ti, não conseguirão matar-te. Primeiramente, terão de desembaraçar-se de mim. Mas, se conseguirem fazê-lo... então... tem cuidado contigo!

David, não digas essas coisas horríveis!

Ouve disse-lhe, agarrando-a por um braço. Se eu te faltar, tem cuidado contigo, Rosaleen. A vida não é segura, não te esqueças... é perigosa, terrivelmente perigosa. E tenho ideia que é especialmente perigosa para ti.

Capítulo 7

Rowley, podes emprestar-me quinhentas libras? Rowley olhou pasmado para Lynn. Estava ali, parada,

sem fôlego por ter corrido, com o rosto pálido e a boca cerrada.

Disse-lhe meigamente e um pouco como se falasse a um cavalo:

Aí, aí, calma, minha filha. Que se passa?

Preciso de quinhentas libras.

Lá por isso, também eu.

Mas Rowley, é sério. Não me podes emprestar quinhentas libras?

Estou nas lonas. Esse novo tractor...

Sim, sim... põe de parte os pormenores da granja. Mas, em todo o caso, poderias arranjar dinheiro... se precisasses de fazê-lo, não é verdade?

Para que o queres, Lynn? Estás nalguma aflição?

Quero-o para ele... lançou a cabeça para trás, para a grande casa quadrada, na colina.

Hunter? Por que diabo...

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Foi a Mamã. Foi pedir-lhe dinheiro emprestado. Ela está... está um bocado atrapalhada de dinheiro.

Sim, creio que sim Rowley mostrou-se compreensivo. Está numa terrível situação. Gostava de poder ajudá-la um pouco... mas não posso.

Não posso admitir que ela tenha pedido dinheiro emprestado a David!

Calma, pequena. Na realidade, quem tem de largar o dinheiro é Rosaleen. E, no fim de contas, por que não?

Por que não? Tu dizes «Por que não?», Rowley?

Não vejo por que razão Rosaleen não há-de ajudar, uma vez por outra. O velho Gordon deixou-nos a todos numa bela alhada, indo para o outro mundo, sem ter deixado testamento. Se a situação for apresentada claramente a Rosaleen, ela própria deverá compreender que lhe compete dar uma ajuda, de vez em quando.

Tu já lhe pediste dinheiro emprestado?

Não... bem... é diferente. Não me ficaria muito bem ir procurar uma mulher para pedir-lhe dinheiro. É uma coisa bem pouco agradável.

Não compreendes que não me agrada ser... ser devedora de David Hunter?

Mas não és. O dinheiro não é dele.

Mas, na realidade, dele é que é. Rosaleen está completamente sob a sua mão.

Oh, admito que sim, mas, legalmente, não é dele.

Então tu não... não podes... emprestar-me o dinheiro?

Ouve lá, Lynn... se vocês estivessem em verdadeiro apuro... chantagem ou dívidas... poderia vender terras ou acções... mas isso seria um procedimento assaz desesperado. Estou simplesmente a considerar as coisas com calma. E sem sabermos o que este maldito Governo fará a seguir sempre a tramar-nos a vida com uma quantidade de impressos para preencher, com que, às vezes, estou até à meia-noite... é demasiado para um homem só.

Lynn exclamou amargamente:

Oh, bem sei! Mas se Johnnie não tivesse morrido...

Ele gritou:

Johnnie não é cá chamado. Não fales disso!

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Ela fitou-o, atónita. O rosto dele estava rubro e congestionado. Parecia fora de si com raiva.

Lynn virou-lhe as costas e regressou vagarosamente a White House.

Não podes devolvê-lo, Mamã?

Realmente, querida Lynn! Fui com ele direita ao banco. Além disso, paguei a Arthurs, a Bodgham, a Knebworth. Este último estava a tornar-se muito insolente. Oh, minha querida, que alívio! Estive noites seguidas sem conseguir dormir. Na realidade, Rosaleen foi muitíssimo comprensiva e amável.

Lynn conjecturou com amargura:

Suponho que agora vais lá voltar mais vezes.

Espero que não seja necessário, minha querida. Procurarei ser muito económica, bem sabes. Mas, hoje em dia, é tudo tão caro... E está tudo cada vez pior...

Sim, e nós iremos de mal a pior. Numa pedinchice contínua.

Adela enrubesceu.

Não me parece que seja uma maneira bonita de considerar as coisas, Lynn. Como já expliquei a Rosaleen, sempre dependemos de Gordon.

Não devíamos tê-lo feito. O erro está aí e acrescentou. Ele tem direito a desprezar-nos.

Quem é que nos despreza?

Esse odioso David Hunter.

Realmente disse Mrs. Marchmont, com dignidade não vejo que importância tenha o que David pense. Felizmente, esta manhã não estava em Furrowbank... caso contrário, acho que poderia ter influenciado essa rapariga. Ela está, sem dúvida alguma, inteiramente na mão dele.

Lynn descansou o peso do corpo sobre o outro pé.

O que querias dizer, Mamã, quando disseste... naquela manhã depois de eu ter regressado: «Se é irmão dela»?

Oh, isso mesmo Mrs. Marchmont pareceu levemente embaraçada. Bem, tem corrido um certo burburinho, já se sabe.

Lynn limitou-se a esperar, inquiridoramente. Mrs. Marchmont tossicou.

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Esse género de mulheres... o tipo da aventureira... evidentemente que o pobre Gordon ficou completamente iludido... têm geralmente, secretamente, um rapaz. Suponhamos que ela diz a Gordon que tem um irmão... telegrafa-lhe para o Canadá ou para onde ele está. Esse homem surge. Como pode Gordon saber se é ou não irmão da mulher? Pobre Gordon, absolutamente baboso por ela, e acreditando, sem dúvida, em tudo quanto ela lhe dissesse. E, por conseguinte, o «irmão» vem com eles para Inglaterra... Pobre Gordon, sem suspeitar de nada.

Lynn gritou ferozmente:

Não acredito. Não acredito!

Mrs. Marchmont levantou as sobrancelhas.

Realmente, minha querida...

Ele não é desse género. E ela... ela também não. Ela talvez seja uma imbecil, mas é boa... Sim, é realmente boa. As pessoas é que têm ideias loucas. Não acredito, já lhe disse.

Mrs. Marchmont observou com dignidade:

Na realidade, não há necessidade de gritares.

Capítulo 8

Uma semana depois, o comboio das cinco horas e vinte minutos entrou na estação de Warmsley Heath, dando saída a um homem alto e bronzeado, transportando uma mochila às costas.

No cais oposto, um grupo de golfistas esperava o comboio para Londres. O homem alto e barbado, da mochila, apresentou o bilhete e saiu da estação. Parou, indeciso, por um momento... e depois reparou no poste de sinalização: Atalho para Warmsley Vale. Dirigiu então os seus passos nesse sentido, com viva decisão.

Em Long Willows, Rowley Cloade acabara de preparar uma chávena de chá, quando uma sombra se espraiou pela mesa da cozinha e o fez erguer o olhar.

Se, por um momento, pensara que a rapariga parada do lado de dentro da porta era Lynn, o seu desapontamento

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transformou-se em surpresa quando viu que se tratava de Rosaleen Cloade.

Envergava um vestido leve, de um tecido rústico, às riscas largas e garridas, cor de laranja e verdes, cuja simplicidade artificial custara mais dinheiro do que Rowley teria julgado possível.

Até ali, sempre a vira com vestidos caros e um tanto citadinos, que ela usava com um ar artificial pensara ele, como um manequim apresentaria os vestidos da firma em que estivesse empregado.

Nessa tarde, com aquele vestido de largas riscas rústicas de cores alegres, Rowley tinha a sensação de ver uma nova Rosaleen Cloade. A sua origem irlandesa, o cabelo escuro ondulado e os encantadores olhos azuis levemente rodeados por olheiras eram mais notórios. Também a sua voz possuía um sotaque irlandês mais suave em vez das inflexões cuidadosas e um tanto afectadas com que geralmente falava.

Está uma manhã tão bonita observou que a aproveitei para dar um passeio.

Acrescentou:

David foi a Londres.

Disse-o quase culposamente; depois corou e tirou de dentro da mala uma cigarreira. Ofereceu um cigarro a Rowley, que o declinou com um movimento de cabeça e que depois olhou em volta à procura de um fósforo com que acender o cigarro da rapariga. Esta procurava baldadamente fazer funcionar um pequeno e caro isqueiro de ouro. Rowley tirou-lho da mão e com um movimento rápido acendeu-o. Quando a rapariga se inclinou para que ele lhe acendesse o cigarro, Rowley reparou como eram longas e escuras as pestanas que lhe sombreavam a face, e pensou: «O velho Gordon sabia o que estava a fazer...»

Rosaleen recuou um passo e comentou apreciativamente:

Que linda vitelinha você tem no campo lá de cima!

Atónito com aquele interesse, Rowley começou a falar-lhe da granja. O interesse da rapariga surpreendeu-o, pois era obviamente genuíno e não fictício e com

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grande surpresa verificou que tinha muitos conhecimentos sobre a vida de uma granja.

Mais parece que foi mulher de um lavrador, Rosaleen observou ele sorrindo.

Tínhamos uma quinta... na Irlanda... antes de vir para aqui... antes...

Antes de ir para o teatro?

Respondeu ansiosamente e um pouco achou Rowley culposamente.

Não foi há muito tempo... Lembro-me de tudo muito bem acrescentou de repente. Se quisesse, podia ir agora mungir-lhe as vacas, Rowley.

Era uma Rosaleen completamente diferente. Teria David Hunter aprovado essas referências casuais a um passado agrícola? Rowley estava convencido de que não. Velha classe média irlandesa, era a impressão que David procurava infundir. Achou que a versão de Rosaleen se aproximava mais da verdade. Vida agrícola primitiva, depois a tentação do palco, a tournée à África do Sul, o casamento... o isolamento na África Central... a fuga... uma lacuna... e finalmente o casamento com um milionário em Nova Iorque...

Sim, Rosaleen Hunter viajara muito desde a última vez que ordenhara uma vaca Kerry. Contudo, ao olhá-la, custava-lhe a acreditar que já alguma vez tivesse representado. O seu rosto tinha aquela expressão ingénua, levemente tola; era o rosto de uma pessoa que não tem história. E parecia tão nova... muito mais nova do que vinte e seis anos.

Havia nela algo de suplicante; tinha a mesma nota fatídica das vitelas que, nessa manhã, levara ao carniceiro. Olhava para a rapariga como olhara para os animais. Coitaditas, pensara, era uma lástima terem de matá-las...

Uma expressão de alarme surgiu nos olhos de Rosaleen. Perguntou embaraçadamente:

Em que está a pensar, Rowley?

Gostaria de visitar a herdade e a vacaria?

Oh, sim, muito!

Divertido com o interesse da rapariga, mostrou-lhe toda a granja. Mas, quando por fim lhe sugeriu tomarem

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uma chávena de chá, voltou a ver-lhe no olhar a mesma expressão alarmada.

Oh, não... obrigada, Rowley... prefiro ir para casa

consultou o relógio de pulso. Oh, como é tarde!

David chega no comboio das cinco e vinte. Quererá saber onde estou. Tenho... tenho de apressar-me acrescentou, timidamente. Gostei muito, Rowley.

Isso, pensou o rapaz, era verdade. Tinha gostado. Pudera ser natural... ser da sua própria categoria social sem qualquer artificialismo. Tinha medo do irmão, não havia dúvida. David era o mandão da família. Ora, ao menos uma vez, tivera uma tarde de folga... sim, era isso mesmo, uma tarde de folga, tal como uma criada! A rica Mrs. Gordon Cloade!

Sorriu estranhamente, junto à cancela, enquanto a via subir apressadamente a encosta, a caminho de Furrowbank. Quando ia a chegar à vedação da propriedade, um homem transpô-la. Rowley perguntou-se se seria David, mas tratava-se de um homem mais alto, mais forte. Rosaleen recuou para deixá-lo passar, depois passou desembaraçadamente por cima dela e caminhou com um passo que quase era corrida.

Sim, tivera uma tarde de folga... e ele, Rowley, perdera mais de uma hora de tempo precioso! Ora, talvez não se tivesse desperdiçado. Parecia-lhe que Rosaleen tinha simpatizado com ele. Isso poderia ser útil. Uma rapariguita bonita; as vitelas dessa manhã também

eram bonitas... coitaditas.

Absorto nos seus pensamentos, ficou sobressaltado ao ouvir uma voz e ergueu vivamente a cabeça.

Um homenzarrão, com um chapéu de feltro de abas largas e uma mochila às costas, estava parado em frente à cancela.

É este o caminho para Warmsley Vale?

Como Rowley o fitasse pasmado, repetiu a pergunta. Com um esforço, Rowley reuniu os seus pensamentos e respondeu:

Sim, continue pelo atalho... através do campo seguinte. Vire para a esquerda quando chegar à entrada e são uns três minutos até chegar à aldeia.

Respondera já dúzias de vezes a essa mesma pergunta com palavras semelhantes. As pessoas ao saírem

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da estação metiam pelo atalho, seguiam-no pela encosta acima e julgavam terem seguido um caminho errado, quando desciam a encosta oposta sem avistarem qualquer sinal do seu destino, pois Blackwell Copse ocultava Warmsley Vale à vista. Ficava encaixado numa depressão, mostrando apenas o cimo da torre da igreja.

A pergunta seguinte não foi muito corrente, mas Rowley respondeu-lhe sem ter de pensar muito.

O «Stag» ou os «Bells & Motley». O «Stag» de preferência. São ambas igualmente boas... ou más. Acho que conseguirá arranjar quarto.

A pergunta fê-lo olhar mais atentamente para o seu interlocutor. Nos tempos correntes, as pessoas reservavam geralmente um quarto com antecedência para qualquer sítio para onde fossem...

O homem era alto, de rosto bronzeado, com barba e olhos muito azuis. Devia ter cerca de quarenta anos e não tinha mau aspecto, apesar da indumentária rude e um tanto atrevida. Não tinha talvez um rosto muito agradável.

Chegado de qualquer ponto do ultramar, pensou Rowley. Havia ou não um leve sotaque colonial na sua voz? Sob certo aspecto coisa curiosa! aquele rosto não lhe era desconhecido...

Onde o vira já, ou um outro muito parecido?

Enquanto se debatia baldadamente com aquele problema, o desconhecido espantou-o, ao perguntar-lhe:

Poderia dizer-me se existe, aqui perto, uma casa chamada Furrowbank?

Rowley respondeu lentamente:

Há, sim. Lá em cima, na colina. Teve de passar perto dela... isto é, se seguiu pelo atalho, desde que saiu da estação.

Sim... foi o que fiz. Vírou-se para olhar para a parte superior da colina. Por conseguinte, foi aquela... aquela casa nova grande e branca.

Sim, essa mesmo.

Uma casa dispendiosa comentou o homem. Deve custar uma data de dinheiro a manter, não?

«Muito», pensou Rowley. «E dinheiro nosso...» Um ímpeto de raiva fê-lo esquecer, por um momento, o sítio onde estava...

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Com um sobressalto acalmou-se e viu o desconhecido contemplar a parte superior da colina com uma expressão especulativa no olhar.

Quem vive ali? perguntou. É... uma Mrs. Cloade?

Exactamente respondeu Rowley. Mrs. Gordon Cloade.

O desconhecido ergueu o sobrolho. Parecia levemente divertido.

Ah exclamou, Mrs. Gordon Cloade. Tem uma linda casa!

Depois acompanhou a frase com um rápido movimento de cabeça, confirmativo.

Obrigado, amigo!agradeceu e, ajeitando a mochila, encaminhou-se para Warmsley Vale.

Rowley regressou lentamente ao pátio da propriedade. O seu espírito continuava intrigado com alguma coisa.

Onde diabo vira já aquele indivíduo?

Por volta das nove e meia dessa noite, Rowley pôs de lado um montão de papéis que tinham estado espalhados sobre a mesa da cozinha e levantou-se. Olhou distraidamente para o retrato de Lynn, colocado sobre a escarpa da chaminé, depois franziu o sobrolho e saiu de casa.

Dez minutos depois, empurrou a porta do salão de bar do «Stag». Beatrice Lippincott, por trás do balcão das bebidas, lançou-lhe um sorriso de boas vindas. Mr. Rowley Cloade, pensava ela, era uma bonita figura de homem. Com uma ponta de azedume, Rowley trocou, com os circunstantes, as observações habituais que incluíram um comentário desfavorável ao Governo, ao tempo e às várias colheitas.

Momentos depois, desviando-se um pouco, Rowley pôde dirigir-se a Beatrice, numa voz calma:

Está cá hospedado um desconhecido? Um homem alto? Com chapéu rústico?

Exactamente, Mr. Rowley. Chegou por volta das seis horas. É esse que diz?

Rowley respondeu com um aceno de cabeça afirmativo.

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Passou pela minha granja. Perguntou-me o caminho.

Sim, sim. Parece estrangeiro.

Gostava de saber quem é confessou Rowley. Olhou para Beatrice e sorriu. A rapariga retribuiu-lhe o sorriso.

É fácil, Mr. Rowley, já que quer saber.

Passou por baixo do balcão e voltou daí a pouco com um enorme volume de coiro onde estavam anotadas as chegadas.

Abriu-o na página que mostrava as entradas mais recentes. A última dizia o seguinte:

Enoch Arden. Cidade do Cabo. Britânico.

Capítulo 9

Estava uma bela manhã. Os pássaros cantavam e Rosaleen, ao descer para tomar o pequeno-almoço, no seu vestido caro e rústico, sentia-se feliz.

As dúvidas e receios, que ultimamente a tinham acabrunhado, pareciam ter desaparecido. David andava bem disposto, rindo-se e metendo-se com ela. A sua visita da véspera a Londres fora satisfatória. O pequeno-almoço estava bem cozinhado e bem apresentado. Tinham precisamente acabado de tomá-lo, quando chegou o correio.

Havia sete ou oito cartas para Rosaleen. Contas, pedidos esmolares, alguns convites locais... nada de interesse especial.

David pôs de parte duas contas pequenas e abriu o terceiro sobrescrito. Tanto o conteúdo como a face do sobrescrito estavam escritos à máquina.

Caro Mr. Hunter:

Acho melhor dirigir-me a si do que a sua irmã, «Mrs. Cloade», por poder dar-se o caso do conteúdo desta carta representar um choque para ela. Em resumo, tenho notícias do capitão Robert Underhay que talvez ela gostasse

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de ouvir. Estou hospedado no «Síag» e, se quiser vir visitar-me esta noite, terei muito gosto em falar nesse assunto consigo. Muito sinceramente,

Enoch Arden

Um som sufocado soltou-se da garganta de David. Rosaleen ergueu o olhar, sorrindo, mas depois o seu rosto adquiriu uma expressão de alarme.

David... David... que se passa?

Em silêncio, Hunter estendeu-lhe a carta. Ela agarrou-a e leu-a.

Mas... David... não compreendo... que significa isto?

Sabes ler, não sabes? Ela olhou-o receosamente.

David... quer dizer... que vamos fazer?

Ele estava de sobrolho franzido... fazendo planos, rapidamente, no seu espírito célere e calculador.

Deixa lá, Rosaleen, não há razão para preocupações. Tratarei disto...

Mas quer dizer que...

Não te preocupes, rapariga. Deixa o caso comigo. Escuta o que tens a fazer: vai imediatamente para Londres. Mete-te no apartamento... e deixa-te lá estar até teres notícias minhas. Compreendido?

Sim. Sim, está claro que compreendo, mas, David...

Faz o que te digo, Rosaleen sorriu-lhe. Mostrava-se afectuoso, tranquilizador. Vai fazer a mala. Levar-te-ei no carro à estação. Podes apanhar o comboio das dez horas e trinta e dois minutos. Diz ao porteiro que não queres receber ninguém; que, se perguntarem por ti, diga que não estás em Londres. Dá-lhe uma libra. Compreendido? Que não permita que ninguém vá visitar-te a não ser eu.

Oh! levou as mãos às faces e olhou-o com os olhos encantadores um pouco assustados.

Não há perigo, Rosaleen... mas requer astúcia. Não estás muito habituada a este género de coisas, pois não? Eu estou de atalaia. Quero-te fora do caminho, para ter o pulso livre, nada mais.

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Não posso cá ficar, David?

Não, evidentemente que não, Rosaleen. Vê se tens um pouco de juízo. Tenho de ter o pulso livre para me haver com esse tipo, seja ele quem for...

Julgas que seja... que seja... Hunter respondeu com ênfase:

Neste momento, não julgo nada. A primeira coisa a fazer é pôr-te fora do caminho. Depois, poderei ver em que águas navegamos. Vamos... sê boa rapariga, não discutas.

Ela virou-se e saiu do quarto.

David franziu o sobrolho ao olhar de novo a carta que segurava na mão.

Nada comprometedora... cortês... bem redigida... deve significar qualquer coisa. Podia tratar-se de uma genuína solicitude numa situação desastrosa e podia ser também uma ameaça velada. Estudou demoradamente cada uma das frases... «Tenho notícias do capitão Robert Underhay...» «Acho melhor dirigir-me a si...» «Terei muito gosto em falar nesse assunto consigo...» «Mrs. Cloade». Com os diabos, não gostava daquelas aspas: ” Mrs. Cloade...»

Olhou para a assinatura. Enoch Arden. Alguma coisa lhe perpassou pelo espírito... alguma recordação poética... um verso.

Quando, nessa noite, David entrou no vestíbulo do «Stag» não havia ali, como habitualmente, ninguém. Uma porta à esquerda tinha o indicativo «Café» e uma outra à direita «Antecâmara». Mais ao longe uma outra porta estava marcada restritivamente «Reservado aos hóspedes». Um corredor à direita conduzia ao bar, de onde se escoava um leve murmúrio de vozes. Um pequeno cubículo com caixilhos de vidro tinha o letreiro «Escritório» e um botão de campainha colocado convenientemente ao lado da janela corrediça.

Às vezes, tal como David sabia por experiência, tinha de tocar-se quatro ou cinco vezes antes que alguém se dignasse atender. Com excepção feita para o curto período das horas da refeição, o vestíbulo do «Stag» estava sempre tão deserto como a ilha de Robinson Crusoe.

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Dessa vez, a terceira campainhada de David trouxe Miss Beatrice Lippincott pelo corredor de acesso ao bar, ajeitando a cabeleira de um louro pompadour. Deslizou para dentro do cubículo de vidro e cumprimentou-o com um sorriso gracioso.

Boa noite, Mr. Hunter. Está um tempo muito frio para esta época do ano, não acha?

Sim... acho que sim. Está cá hospedado um tal Mr. Arden?

Ora, deixe-me ver disse Miss Lippincott, preferindo fingir não o saber exactamente, procedimento esse que sempre adoptava com o propósito de aumentar a importância do «Stag». Ah, sim, Mr. Enoch Arden. N.° 5. No primeiro andar. Dá logo com ele, Mr. Hunter. Suba as escadas e não percorra o corredor; vire logo à esquerda e desça três degraus.

Cumprindo essas complicadas directivas, David bateu à porta do n.° 5 e uma voz respondeu: «Entre».

Entrou, fechando a porta atrás de si.

Ao sair do escritório, Beatrice chamou «Lily». Uma rapariga obesa, com um riso falso e uns pálidos olhos de groselha fervida respondeu ao apelo.

Podes ficar aqui por um momento, Lily? Tenho de ir tratar de umas roupas.

Sim, Miss Lippincott respondeu Lily com um risinho e acrescentou, suspirando profundamente. Mr. Hunter é sempre tão interessante, não acha?

Oh, durante a guerra, vi muitos homens daquele tipo disse Miss Lippincott com um ar desiludido da vida jovens pilotos e outros elementos dos corpos de combate. Nunca se podia ter confiança nos seus cheques. Muitas vezes tinham uma tal maneira de conseguir o que queriam que, sem querermos, lhes fiávamos as coisas. Mas, já se sabe, sou exigente a esse respeito, Lily, do que eu gosto é de classe. Dêem-me sempre classe. Aquele que eu disser que é um cavalheiro, é um cavalheiro ainda que vá a guiar um tractor.

E, com essa enigmática declaração, Beatrice deixou Lily e subiu as escadas.

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No quarto n.° 5, David Hunter parou do lado de dentro da porta e olhou para o homem que se assinara Enoch Arden.

Um quarentão, bastante estragado, com aspecto de se ter degradado na escala social em resumo, um freguês difícil. Foi isto o que David resumiu. À parte isso. não era fácil de sondar-se; era reservado.

Arden cumprimentou:

Viva... é Hunter? Belo. Sente-se. Que quer tomar? Whisky?

David notou que se pusera à vontade. Uma modesta fila de garrafas... um fogo a arder na grade da chaminé, naquela fria noite de Primavera. Roupas de corte estrangeiro, mas usadas. Tal como um inglês as usa. O homem devia ser também daquela idade...

Obrigado disse David, tomarei um pouco de whisky.

Mande parar!

Pare. Pouca soda.

Assemelhavam-se um pouco a cães, manobrando para tomarem as suas posições... rodeando-se mutuamente, arqueando os dorsos, eriçando os pêlos, prontos a tornarem-se amigos ou a rosnarem e a morderem.

À sua saúde! desejou Arden. À sua!

Pousaram os copos e descontraíram-se um pouco. O primeiro round acabara.

O homem que se intitulava Enoch Arden perguntou:

Ficou surpreendido ao receber a minha carta?

Sinceramente respondeu David não a compreendo.

N-não... n-não... bem, talvez não.

Sei que conheceu o primeiro marido de minha irmã. Robert Underhay disse David.

Sim, conheci Robert muito bem. Arden sorria, soprando nuvens de fumo negligentemente para cima. Tão bem, talvez, como ninguém melhor pudesse conhecê-lo. Nunca o viu, pois não, Hunter?

Não.

Oh, talvez seja bom.

Que quer dizer com isso? perguntou David vivamente.

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Arden respondeu com simplicidade:

Meu caro amigo, isso torna tudo mais fácil... É tudo. Peço-lhe desculpa de ter-lhe pedido que viesse aqui, mas achei realmente melhor fez uma pausa deixar Rosaleen fora de tudo. Não há precisão nenhuma de mortificá-la desnecessariamente.

Importa-se de ser explícito?

Evidentemente, evidentemente. Bem, já alguma vez suspeitou... como direi? de que havia algo de... bem... de suspeito... na morte de Underhay?

Que diabo quer dizer?

Bem, não sei se sabe que Underhay tinha umas ideias bastante peculiares. Pode ter sido cavalheirismo... também é possível que tenha sido por uma razão inteiramente diferente... mas admitamos que, há alguns anos, em certa altura, Underhay tenha tido certas vantagens em ser considerado morto. Sabia lidar com os nativos... sempre o soube. Não teve qualquer dificuldade em conseguir fazer circular uma história plausível, recheada de uma certa quantidade de pormenores corroborativos. Tudo quanto Underhay teve a fazer, foi surgir a umas mil milhas de distância... com outro nome.

Parece-me uma suposição muitíssimo fantástica declarou Hunter.

Sim? Realmente? Arden sorriu. Inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha no joelho de David. E se for verdade, Hunter? Hem? E se for verdade?

Exigiria uma prova irrefutável.

Sim? Bem, evidentemente que não existe qualquer prova superirrefutável. O próprio Underhay poderia aparecer aqui... em Warmsley Vale. Que tal acharia esta prova?

Pelo menos, seria conclusiva respondeu David secamente.

Oh, sim, conclusiva... mas um nadinha embaraçosa... para Mrs. Gordon Cloade, claro está. Porque, nesse caso, evidentemente que não seria Mrs. Gordon Cloade. Desastroso. Tem de admitir que seria bastante desastroso, não acha?

Minha irmã replicou tornou a casar-se de Perfeita boa fé.

Certamente que sim, meu caro amigo. Certamente

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que sim. Não discuto isso nem por um segundo. Qualquer juiz diria o mesmo. Nenhuma censura poderia atingi-la.

Juiz? exclamou David com vivacidade.

O outro explicou-se como que apologeticamente:

Estava a pensar em bigamia.

Aonde quer chegar exactamente? inquiriu David de modo selvagem.

Não se excite, meu rapaz. Queremos apenas considerar juntos o caso e ver qual a melhor solução... melhor para sua irmã, claro está. Ninguém deseja uma quantidade de publicidade sórdida. Underhay... bem, Underhay foi sempre um tipo cavalheiresco. Arden fez uma pausa. Ainda o é...

É? inquiriu David vivamente.

Foi isso o que eu disse.

Diz que Robert Underhay está vivo? Onde pára ele agora?

Arden inclinou-se para a frente... a sua voz tornou-se confidencial.

Quer realmente sabê-lo, Hunter? Não seria preferível não o saber? Pelo que você e Rosaleen sabem, Underhay morreu em África. Muito bem e se Underhay está vivo, não sabe que a mulher voltou a casar, não faz a mínima ideia a esse respeito, porque, evidentemente, se ele o soubesse, teria aparecido... Rosaleen, bem vê, herdou do segundo marido uma enorme porção de dinheiro ora, já se sabe que não tem direito algum a qualquer parte desse dinheiro... Underhay é dotado de um sentido de honra muito sensível. Não gostaria que ela herdasse dinheiro sob falsas pretensões fez uma pausa. Mas é possível evidentemente que Underhay nada saiba do seu segundo casamento. Está em mau estado, coitado... em muito mau estado.

Que quer dizer com muito mau estado? Arden abanou a cabeça solenemente.

Tem a saúde arruinada. Carece de vigilância médica... de tratamentos especiais... tudo infelizmente muito caro.

A última palavra foi proferida delicadamente como que com uma categoria muito própria. Era a palavra por que David esperara inconscientemente.

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Caro? inquiriu.

Sim... infelizmente tudo custa dinheiro. Underhay, coitado, está praticamente na penúria acrescentou. Praticamente nada tem, mas o que o aguenta...

Por um momento, os olhos de David percorreram todo o quarto. Reparou na mochila, sobre uma cadeira. Não se via qualquer mala de viagem.

Gostava de saber disse David numa voz que não era agradável se Robert Underhay é realmente o indivíduo cavalheiresco que descreve.

Foi-o em tempos assegurou-lhe o outro mas a vida, compreende, é capaz de tornar um homem cínico fez uma pausa e acrescentou baixinho. Gordon Cloade era realmente um homem incrivelmente rico. O espectáculo de muita riqueza desperta os mais baixos instintos de uma pessoa.

David Hunter levantou-se.

Tenho uma resposta a dar-lhe. Vá para o Inferno. Sem se perturbar, Arden respondeu, sorrindo:

Sim, já esperava que dissesse isso.

Você é um maldito chantagista, sem tirar nem pôr.

«Publique-o e vá para o Inferno»? Um sentimento admirável. Mas você não gostaria que eu o «publicasse». Não quer dizer que o faça. Se não quiser comprar, tenho outra porta aonde ir bater.

Que quer dizer?

Os Cloades. Suponha que vou procurá-los. «Desculpem-me, mas acaso estariam interessados em saber que o falecido Robert Underhay está vivo?» Ora, homem, a notícia havia de fazê-los pular.

David retorquiu com desdém:

Não conseguiria nada deles. Estão todos arruinados.

Ah, mas existem combinações práticas. No dia em que se provar que Underhay está vivo, que Mrs. Gordon Cloade continua a ser Mrs. Robert Underhay e que, consequentemente, o testamento de Gordon Cloade, feito antes do seu casamento, continua válido...

Durante um momento, David ficou calado e depois Perguntou rudemente:

Quanto?

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A resposta chegou no mesmo modo rude: Vinte mil. ]|

Está fora de questão! Minha irmã não pode tocar || no capital, tem apenas uma renda vitalícia.

Então, dez mil. Pode consegui-los facilmente. Tem jóias, não tem?

David continuou calado e depois, inesperadamente, respondeu:

Está bem.

Por um momento, o outro pareceu rendido. Era como se a facilidade da vitória o tivesse surpreendido.

Não aceito cheques especificou. Têm de ser pagas em notas de banco!

Terá de dar-nos tempo, para arranjarmos o dinheiro...

Dou-lhes quarenta e oito horas...

Isso quer dizer até terça-feira.

Exactamente. Trar-me-á o dinheiro aqui e acrescentou, antes que David pudesse falar. Não irei ter consigo a nenhuma mata solitária... nem à margem deserta de um rio; portanto, pode já pôr essas ideias de parte. Trar-me-á o dinheiro aqui... ao «Stag»... às nove horas da noite da próxima terça-feira.

Um tipo desconfiado, hem?

Conheço-me e conheço o seu género.

Então, seja como disse.

David saiu do quarto e desceu as escadas. O seu rosto estava lívido de raiva.

Beatrice Lippincott saiu do quarto marcado com o n.° 4. Havia uma porta de comunicação entre o n.° 4 e o n.° 5, embora esse facto dificilmente pudesse ser apercebido por um ocupante do n.° 5, visto existir neste um guarda-fatos que a encobria.

Miss Lippincott tinha as faces coradas e os olhos iluminados por uma excitação agradável. Com mão trémula alisou para trás a cabeleira pompadour.

Capítulo 10

Shepherd’s Court, no bairro de Mayfair, era um enorme edifício de apartamentos luxuosos. Mantido ileso, apesar dos estragos causados pela acção inimiga,326

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conseguira, apesar de tudo, conservar o seu cunho de antes da guerra. Contudo, o serviço não era tão bom como o desses tempos! Onde houvera dois porteiros fardados, havia agora apenas um. O restaurante continuava a fornecer todas as refeições, mas, com excepção do pequeno-almoço, não as serviam nos apartamentos.

O apartamento alugado por Mrs. Gordon Cloade ficava no terceiro andar. Compunha-se de uma sala de visitas com um bar para cocktails, de dois quartos de cama com armários de parede e de uma casa de banho estupendamente apetrechada, reluzente de azulejos e de cromados.

Na sala de visitas, David Hunter andava a passadas largas de um lado para o outro, enquanto Rosaleen, sentada numa enorme poltrona estofada, o observava. Tinha um aspecto pálido e assustado.

Chantagem! resmungou por entre dentes. Chantagem! Meu Deus, serei do tipo que permite que lhe façam chantagem?

Ela abanou a cabeça, confusa, perturbada.

Se eu soubesse dizia David. Se simplesmente eu soubesse!

Rosaleen soltou um pequeno soluço. Ele prosseguiu:

É trabalhar no escuro... trabalhar às cegas... virou-se subitamente.

Levaste essas esmeraldas à Bond Street, ao velho Greatorex?

Sim.

Quanto?

A voz de Rosaleen tremia ao responder:

Quatro mil. Quatro mil libras. Disse-me que, se não lhas vendesse, deviam ser resseguradas.

Sim... as pedras preciosas duplicaram de valor. Oh, sim, podemos conseguir o dinheiro. Mas ainda que assim seja, isso é apenas o princípio... significa que seremos sugados até à última... sugados, Rosaleen, completamente sugados!

Ela gritou:

Oh, partamos de Inglaterra... fujamos... não poderíamos ir para a Irlanda... para a América... para qualquer parte?

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Ele virou-se e olhou-a.

Não tens espírito combativo, pois não, Rosaleen? Largar e fugir é o teu mote.

Ela gemeu:

Nós não temos razão... tudo isto foi mal feito... muito mal feito.

Não me venhas agora com piedades! Não o suporto. Estávamos bem instalados na vida, Rosaleen. Pela primeira vez, desde que nasci, estava bem instalado na vida... e não vou deixar escapar tudo isso, estás a ouvir? Se simplesmente não estivesse a trabalhar às cegas! Compreendes, não é verdade, que tudo deve ser bluff... apenas bluff? Underhay está provavelmente bem enterrado em África, como sempre pensámos que estivesse.

Ela estremeceu.

Não digas isso, David. Assustas-me.

Ele olhou-a, viu-lhe o pânico no rosto e subitamente mudou de atitude. Aproximou-se dela, sentou-se a seu lado e agarrou-lhe nas mãos, que estavam geladas.

Não tens que preocupar-te disse-lhe. Deixa o caso comigo... e procede como eu te disser. Podes fazê-lo, não é verdade? Procede exactamente como eu te disser.

Sempre assim faço, David. Ele riu-se.

Sim, sempre assim fazes. Bem, põe de parte esses medos. Acharei maneira de alvejar esse Mr. Enoch Arden.

Não havia um poema, David... qualquer coisa a respeito de um homem que regressava...

Sim interrompeu-a. É isso exactamente o que me preocupa... Mas deixa estar que irei ao âmago das coisas. -

É na terça-feira, à noite... que lhe levas o dinheiro?

Ele confirmou com um gesto.

Cinco mil. Dir-lhe-ei que não posso arranjar o resto de repente. Mas tenho de evitar que vá aos Cloades. Julgo que foi apenas uma ameaça, mas não tenho a certeza.

Calou-se e os olhos tornaram-se-lhe sonhadores,328

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distantes. Por trás deles, trabalhava o espírito, considerando e rejeitando possibilidades.

Depois riu-se. Era um riso alegre e descuidado. Havia homens, já mortos, que o teriam reconhecido...

Era o riso de um homem que entrasse em acção numa empresa perigosa e arriscada. Havia nele prazer e desafio.

Confio em ti, Rosaleen. Graças a Deus, posso confiar inteiramente em ti!

Confiar em mim? ela ergueu uns enormes olhos inquiridores. Para fazer o quê?

Ele voltou a sorrir.

Para fazeres exactamente o que eu te disser. É esse o segredo de uma operação feliz, Rosaleen.

Riu-se e acrescentou:

Operação Enoch Arden.

Capítulo 11

Rowley abriu o enorme sobrescrito cor de malva, sentindo alguma surpresa. Quem diabo poderia escrever-lhe num artigo daquele género e, fosse quem fosse, como conseguira arranjá-lo? Esses artigos de fantasia tinham certamente desaparecido durante a guerra.

Leu:

Caro, Mr. Rowley:

Espero que não tome a mal esta minha liberdade em escrever-lhe desta forma, mas, se me permite, devo dizer-lhe que se passam factos de que deve ter conhecimento.

Reparou no sublinhado com um olhar intrigado.

Vem isto em continuação da nossa conversa da outra noite em que veio cá informar-se a respeito de uma certa pessoa. Se pudesse vir ao «Stag», teria muito gosto em contar-lhe tudo quanto sei a esse respeito. Todos aqui compreendemos a vergonha terrível que foi ter o seu tio

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morrido e ter levado o dinheiro o caminho que levou. Esperando que não se zangará comigo e crendo realmente que deve saber o que se passa,

Sua

Beatrice Lippincott

Rowley fitou essa missiva, pasmado, com o espírito perdido em conjecturas. De que diabo se trataria? A boa Bee. Conhecia Beatrice desde sempre. Comprara tabaco na loja do pai e passara dias com ela atrás do balcão. Fora uma bonita rapariga. Lembrava-se de, quando criança, ter ouvido uns boatos a seu respeito, durante um tempo em que estivera ausente de Warmsley Vale. Ausentara-se durante cerca de um ano e toda a gente dissera que saíra da terra para dar à luz uma criança ilegítima. Talvez sim, talvez não. Mas, em todo o caso, agora era certamente muito respeitável e polida. Uma profusão de tagarelice e de risinhos, mas uma correcção quase laboriosa.

Rowley ergueu o olhar para o relógio. Iria imediatamente ao «Stag». Para o diabo com todos aqueles impressos. Queria ouvir o que Beatrice estava tão ansiosa por contar-lhe.

Passava um pouco das oito horas quando empurrou a porta do salão do bar. Tiveram lugar os cumprimentos habituais, acenos de cabeça, «Boa noite, sir”. Rowley aproximou-se do bar e pediu um Guiness. Beatrice dirigiu-se-lhe imediatamente.

Que prazer em vê-lo, Mr. Rowley.

Boa noite, Beatrice. Obrigado pelo seu bilhete. Ela lançou-lhe um rápido olhar.

Já lhe dou atenção, Mr. Rowley.

Ele baixou a cabeça em sinal de assentimento... e bebeu pensativamente o seu copo, observando ao mesmo tempo Beatrice, que acabara de servir um freguês.

Gritou por cima do ombro de Rowley e, pouco depois, apareceu a pequena Lily, que a substituiu. Beatrice murmurou:

Quer vir comigo, Mr. Rowley?

Conduziu-o através de um corredor e transpuseram

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uma porta marcada «Privado». O aposento que ficava do lado interior desta era muito pequeno e estava atravancado com poltronas de pelúcia, um estrondoso aparelho de rádio, uma profusão de adornos de porcelana e um boneco pierrot, de aspecto um tanto danificado, recostado no espaldar de uma cadeira.

Beatrice Lippincott apagou o aparelho de rádio e indicou-lhe uma cadeira de pelúcia.

Dá-me sempre muito gosto quando cá vem, Mr. Rowley, e espero que não tenha levado a mal que lhe tenha escrito... mas tenho andado a reflectir nisso durante todo este fim-de-semana... e acabei por chegar à conclusão de que o senhor devia saber o que se passa.

Parecia feliz e importante, nitidamente satisfeita da sua pessoa.

Rowley inquiriu com moderada curiosidade:

O que se passa?

Bem, Mr. Rowley, conhece aquele cavalheiro que cá está hospedado... Mr. Arden, aquele por quem cá veio fazer perguntas.

Sim?

Foi exactamente na noite seguinte. Mr. Hunter veio cá perguntar por ele.

Mr. Hunter?

Rowley endireitou-se, cheio de interesse.

Sim, Mr. Rowley. «N.° 5», disse eu, e Mr. Hunter baixou a cabeça e subiu. Devo confessar que fiquei intrigada, pois Mr. Arden não nos tinha dito que conhecia alguém de Warmsley Vale e eu estava convencida de que era aqui um desconhecido e que não conhecia ninguém da terra. Mr. Hunter parecia muito mal disposto, como se alguma coisa tivesse acontecido que o transtornasse; mas evidentemente que naquela altura, não liguei.

Fez uma pausa para tomar fôlego.

Rowley ficou calado, à espera que ela continuasse. Nunca apressava as pessoas. Se estas gostavam de levar o seu tempo, ele não se importava com isso.

Beatrice continuou com dignidade:

Foi um pouco depois que tive ocasião de subir ao n.° 4 para verificar as toalhas e a roupa da cama. Fica ao lado do quarto n.° 5 e, por acaso, existe uma porta de comunicação mas do n.” 5 não se vê porque

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fica oculta por um grande guarda-fatos e, portanto, ali não sabem da sua existência. Evidentemente que está sempre fechada, mas, por acaso, dessa vez, estava um nadinha entreaberta... embora eu não faça a mínima ideia de quem a abriu.

Ainda desta vez, Rowley não fez qualquer comentário, limitando-se a acenar compreensivamente com a cabeça.

Intimamente, estava certo de que fora Beatrice quem a abrira. Levada pela curiosidade, subira propositadamente ao n.° 4 para descobrir o que pudesse.

E aqui tem, Mr. Rowley, como não pude deixar de ouvir o que se passava.

Ouviu, com um rosto impassível, quase asmático, o relato sucinto da conversa que Beatrice surpreendera. Depois de acabado, ela ficou à espera, ansiosa.

Decorreu um longo momento antes que Rowley despertasse do seu êxtase. Depois levantou-se.

Obrigado, Beatrice disse ele. Muito obrigado. E, dito isso, saiu do quarto. Beatrice sentiu-se muito desiludida. Achou realmente, disse com os seus botões, que Mr. Rowley devia ter dito alguma coisa.

Capítulo 12

Quando Rowley saiu do «Stag», os seus passos levaram-no automaticamente para casa, mas, depois de ter percorrido algumas centenas de metros, parou e retrocedeu.

O seu espírito apreendia lentamente as coisas e o primeiro espanto que lhe haviam causado as revelações de Beatrice só agora começava a dar lugar a uma verdadeira apreciação do seu significado. Se a versão do que surpreendera era correcta e não duvidava de que substancialmente assim fosse então criara-se uma situação que dizia respeito intimamente a todos os membros da família Cloade. A pessoa mais indicada para tratar do caso, era obviamente seu tio Jeremy. Como solicitador, Jeremy Cloade saberia qual a melhor maneira de utilizar essa surpreendente informação e exactamente que passos dar.

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Embora Rowley tivesse gostado de tratar directamente o caso, compreendeu um tanto de má vontade que seria muito melhor confiar o assunto a um advogado sagaz e experiente. Quanto mais cedo Jeremy fosse posto ao corrente dessa informação, tanto melhor e, consequentemente, Rowley dirigiu os seus passos para a casa de Jeremy, na High Street.

A criadita que lhe abriu a porta informou-o de que Mr. e Mrs. Cloade estavam ainda à mesa. Prontificou-se a levá-lo à casa de jantar, mas Rowley recusou e disse que esperaria no gabinete de Jeremy, até que acabassem. Não estava particularmente interessado em incluir Francês no colóquio. Na realidade, quanto menos pessoas estivessem a par do assunto tanto melhor.

Percorreu continuamente de um lado para o outro o gabinete de Jeremy. Sobre o tampo da secretária estava uma caixa de latão rotulada Sir William Jessamy (Falecido). As prateleiras continham uma colecção de tomos de legislatura. Havia uma fotografia antiga de Francês em fato de noite e uma do pai, Lorde Edward Trenton, em trajo de cavaleiro. Sobre a secretária via-se a fotografia de um rapaz fardado o filho de Jeremy, Anthony, morto na guerra.

Rowley recuou e afastou-se. Sentou-se numa cadeira e concentrou o olhar na fotografia de Lorde Edward Trenton.

Na casa de jantar, Francês disse ao marido:

Que quererá Rowley? Jeremy respondeu com enfado:

Provavelmente, está desesperado com alguma medida do Governo. Nenhum lavrador compreende mais do que a quarta parte desses impressos que têm de preencher. Rowley é um tipo consciencioso. Anda preocupado.

É simpático disse Francês mas terrivelmente lento. Sabes, tenho um pressentimento de que as coisas entre ele e Lynn não correm bem.

Jeremy murmurou distraidamente:

Lynn... ah, sim, certamente. Perdoa-me, eu... eu não sou capaz de concentrar-me. A tensão...

Francês interveio pressurosamente:

Não penses nisso. Tudo correrá bem, vais ver.

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Às vezes, assustas-me, Francês. És tão terrivelmente destemida! Não compreendes...

Compreendo tudo e não tenho medo. Sabes, na realidade, Jeremy, até me acho um pouco divertida...

É isso exactamente, minha querida confessou Jeremy, que me põe assim tão ansioso.

Ela sorriu e disse-lhe:

Vamos lá. Não deves fazer esperar muito tempo esse bucólico rapaz. Vai ajudá-lo a preencher o impresso1199 ou lá o que é.

Mas, quando iam a sair da casa de jantar, a porta da rua fechou-se com estrondo. Edna veio dizer-lhes que Mr. Rowley declarara que não esperaria mais e que não se tratava de nada realmente importante.

Capítulo 13

Na tarde dessa terça-feira, Lynn Marchmont fora dar um longo passeio a pé. Consciente de um crescente desassossego e de um íntimo descontentamento consigo própria, sentiu necessidade de ponderar os factos.

Havia já alguns dias que não via Rowley. Depois daquela separação um tanto tempestuosa, na manhã em que fora pedir-lhe quinhentas libras emprestadas, tinham voltado a encontrar-se com a mesma assiduidade. Lynn compreendia que o seu pedido fora excessivo e que Rowley tivera razão em não aceder. Contudo, a moderação nunca fora uma qualidade própria dos namorados. Exteriormente as coisas entre ambos continuavam na mesma, mas intimamente Lynn não tinha a mesma certeza. Achara os últimos dias intoleravelmente monótonos e, contudo, custava-lhe a admitir que a súbita partida para Londres de David Hunter com a irmã pudesse ter qualquer relação com essa monotonia. Admitia tristemente que David era uma pessoa atraente...

Quanto aos seus parentes, naquele momento, achava-os a todos dolorosamente suportáveis. Sua mãe andava na melhor das disposições e, ao almoço desse dia, aborrecera-a anunciando-lhe o propósito de arranjar um ajudante de jardineiro.

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Na verdade, o velho Tom não pode aguentar sozinho o trabalho do jardim.

Mas, querida, não podemos permitir-nos isso! exclamara Lynn.

Tolice! Estou certa, Lynn, de que Gordon ficaria terrivelmente desolado se visse como o jardim tem sido desprezado. Era sempre tão cuidadoso com a sua ornamentação, com o corte da relva e o bom estado dos caminhos... e o estado em que ele está agora... Tenho a certeza de que Gordon havia de querer arranjá-lo.

Ainda que para isso tenhamos de pedir dinheiro emprestado à sua viúva.

Já te disse, Lynn, que Rosaleen não podia ter sido mais gentil. Estou realmente convencida de que ela compreendeu o meu ponto de vista. Depois de pagas todas as contas, ainda fiquei com um belo saldo no banco. Além disso, estou convencida de que um ajudante de jardineiro seria uma economia. Pensa nas hortaliças suplementares que poderíamos cultivar.

Poderíamos comprar uma quantidade de hortaliças suplementares por muito menos do que esse acréscimo de três libras por semana.

Talvez pudéssemos arranjar alguém por menos dinheiro, querida. Há agora homens que estão a ser desmobilizados e que andam à procura de emprego. O jornal assim o diz.

Lynn observou secamente:

Duvido que os encontre em Warmsley Vale... ou em Warmsley Heath.

Contudo, embora o assunto tivesse ficado nesses termos, Lynn sentia-se mortificada pela tendência de sua mãe para considerar Rosaleen uma fonte regular de recurso. Reavivava-lhe a recordação das palavras desdenhosas de David.

Sentindo-se, por conseguinte, desgostosa e enfadada, saiu a arejar a má disposição.

Esta não melhorou com um encontro com a tia Kathie, junto à estação dos correios. A tia Kathie mostrava-se excitada.

Creio, querida Lynn, que, em breve, receberemos boas notícias.

Que quer dizer, tia Kathie?

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Mrs. Cloade meneou a cabeça, sorriu e pareceu discreta.

Tenho recebido as comunicações mais espantosas que podes calcular... realmente espantosas. Um desfecho feliz para todas as nossas ralações. Tive uma contrariedade, mas desde então para cá, tenho recebido a mensagem «Tenta, tenta várias vezes. Se, a princípio, não fores bem sucedida, etc...» Não trairei quaisquer segredos, querida Lynn, e a coisa que menos desejo fazer é despertar prematuramente falsas esperanças, mas tenho a maior fé em que as coisas acabarão todas muito bem, dentro em breve. E muito a tempo também. Estou verdadeiramente preocupada com teu tio. Trabalhou excessivamente durante a guerra. Precisa realmente de reformar-se e dedicar-se aos seus estudos especializados... mas evidentemente que não poderá fazê-lo sem um rendimento adequado. E, às vezes, tem uns ataques nervosos tão estranhos que me sinto realmente preocupada com ele. Anda de facto muito estranho.

Lynn meneou a cabeça pensativamente. Não lhe passara despercebida a mudança operada em Lionel Cloade nem tão-pouco as suas estranhas mudanças de disposição. Suspeitava de que ocasionalmente recorresse a estupefacientes para se estimular e perguntava-se se não seria, em certa escala, um viciado. Isso explicaria a sua irritabilidade extremamente nervosa. Perguntava-se até que ponto iria o conhecimento ou as suspeitas da tia Kathie. Esta, pensava Lynn, não era tão tola como parecia.

Ao descer a High Street, viu de relance o tio Jeremy a entrar em casa. Lynn achou que, durante essas três últimas semanas, o seu aspecto parecia muito mais velho.

Apressou o passo. Queria sair de Warmsley Vale, subir aos montes, alcançar os espaços desafogados. Pouco tempo depois de ter caminhado com passo rápido, sentiu-se melhor. Percorreria umas boas seis ou sete milhas para meditar seriamente nos factos. Durante toda a vida, fora uma pessoa resoluta e esclarecida. Sempre soubera o que queria e o que não queria. Nunca antes sentira prazer em andar ao acaso...

Sim, era isso exactamente! Andar ao acaso! Um método de vida, à ventura, sem desígnio, e por que336

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sempre ansiara desde que fora desmobilizada. Sentiu-se invadida por uma vaga de nostalgia ao lembrar-se desses dias da guerra. Dias em que os deveres estavam claramente definidos, em que a vida estava traçada e ordenada em que fora aliviada da responsabilidade das decisões individuais. Mas, todavia, ao formular essa ideia, sentiu-se horrorizada consigo própria. Seria isso realmente o que as pessoas sentiriam secretamente em toda a parte? Seria isso o que a guerra fizera ultimamente? Não eram os perigos físicos as minas no mar, as bombas lançadas do ar, o ping seco de uma bala passando por uma vereda deserta. Era sim o perigo espiritual de saber como a vida era muito mais fácil quando se deixava de pensar... Ela, Lynn Marchmont, já não era a rapariga inteligente, decidida e esclarecida que partira. A sua inteligência fora especializada, canalizada em sentidos bem definidos. Agora, de novo senhora de si e da sua vida, sentia-se aterrada com a relutância do seu espírito em agarrar-se e prender-se aos seus problemas pessoais.

Com um súbito sorriso forçado, Lynn pensou que agora as mulheres tinham de planear, de pensar e de improvisar, de utilizar a mínima parcela de engenho de que eram dotadas e de desenvolver uma habilidade que ignoravam possuir! Somente essas podiam manter-se direitas, sem o auxílio de muletas, ser responsáveis por si próprias e por outros. E ela, Lynn Marchmont, bem educada, inteligente, que desempenhara um lugar que requerera cérebro e intensa aplicação, achava-se agora à deriva, incapaz de uma resolução... sim, essa palavra odiosa, ao acaso...

As pessoas que tinham ficado na pátria, Rowley por exemplo...

Mas subitamente, o espírito de Lynn abandonou a generalidade vaga para considerar o assunto pessoal imediato, ela e Rowley. O problema, o verdadeiro problema era esse. Queria realmente casar com Rowley?

Lentamente, as sombras foram-se espraiando, trazendo o crepúsculo e a escuridão. Lynn estava sentada, imóvel, com o queixo metido entre as mãos, na orla de um pequeno souto, na encosta da colina, a contemplar o vale estendido a seus pés. Perdera a noção do tempo,

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mas apercebia-se da sua enorme relutância em regressar a White House. A seus pés, ao longe e para a esquerda, ficava Long Willows. Long Willows, o seu lar, se casasse com Rowley.

Se! Lá voltava ao mesmo... se... se... se!

Um pássaro fugiu da mata, soltando um grito assustado, semelhante ao de uma criança zangada. Uma nuvem de fumo que se soltava de um comboio subia para o céu, formando um gigantesco ponto de interrogação.

Devo casar com Rowley? Quero casar com Rowley? Já alguma vez quis casar com Rowley? Seria capaz de não casar com Rowley?

O comboio afastou-se subindo o vale, e o seu fumo agitou-se e desvaneceu-se; mas o mesmo não aconteceu no espírito de Lynn ao ponto de interrogação.

Antes de se ter ausentado da pátria, amara Rowley. «Mas voltei mudada», pensava. «Não sou a mesma Lynn.»

Um verso ocorreu-lhe ao espírito.

A vida, o mundo e eu própria estamos mudados...

E Rowley? Rowley não mudara.

Sim, era isso. Rowley não mudara. Rowley estava tal como ela o deixara, quatro anos antes.

Queria casar com Rowley? Se não queria, que queria então?

Ouviu um estalido de ramos partidos na mata e uma voz de homem praguejar, enquanto abria caminho.

David! exclamou.

Lynn! pareceu espantado, ao aproximar-se, fazendo estalar pequenos rebentos. Que diabo está aqui a fazer?

Correra e estava um pouco ofegante.

Não sei. Estava a pensar... aqui, sentada, a pensar... riu-se, embaraçadamente. Creio... que é muito tarde.

Não faz ideia das horas?

Olhou vagamente para o relógio de pulso e respondeu:

Está outra vez parado. Eu desarranjo os relógios.

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Não só os relógios! declarou David. Você tem electricidade dentro de si. Vitalidade. Vida!

Aproximou-se de Lynn e esta, levemente perturbada, levantou-se apressadamente.

Está a fazer-se noite. Tenho de ir já para casa. Que horas são, David?

Nove e um quarto. Terei de correr como uma lebre. Quero apanhar o comboio das nove e vinte para Londres.

Não sabia que tinha cá voltado!

Fui buscar umas coisas a Furrowbank mas não posso perder este comboio. Rosaleen está sozinha no apartamento... e tem um medo enorme de ficar sozinha de noite, em Londres.

Num apartamento de hotel? perguntou Lynn, com voz trocista.

David respondeu desabridamente:

O medo não conhece a lógica. Quando se foi vítima de uma explosão...

Lynn sentiu-se subitamente envergonhada... contrita e desculpou-se:

Perdão, tinha-me esquecido. Com súbita amargura, David gritou:

Sim, tudo se esquece depressa! De regresso à tranquilidade! De regresso ao sítio em que estávamos quando eclodiu a manifestação sangrenta! Arrastamo-nos para dentro das nossas choças carunchosas e voltamos a sentir-nos seguros. Você, também, Lynn... você é tal e qual como os outros.

Ela gritou:

Não. Não sou, David. Estava agora exactamente... a pensar...

Em mim?

A sua ânsia sobressaltou-a. Tomou-a nos braços e segurou-a de encontro ao peito enquanto que os seus lábios, ardentes e sequiosos, beijavam os dela.

Rowley Cloade? perguntou-lhe. Esse imbecil? Meu Deus, Lynn, pertences-me.

Depois, tão subitamente como a agarrara, largou-a, quase a repelindo.

Vou perder o comboio. Correu pela encosta abaixo.

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David...

Virou a cabeça e gritou-lhe:

Telefonarei quando chegar a Londres...

Ela ficou a vê-lo correr através da escuridão que se adensava, ágil. atlético, cheio de garbo natural.

Depois, emocionada, com o coração estranhamente excitado, com o espírito num estado caótico, encaminhou-se lentamente para casa.

Hesitou um pouco antes de entrar. Retraía-se antecipadamente perante o afectuoso acolhimento que a mãe lhe faria, perante as suas perguntas...

Sua mãe pedira quinhentas libras emprestadas a pessoas que ela detestava...

«Não temos o direito de detestar Rosaleen e David», pensou Lynn, enquanto se dirigia sem fazer barulho para o andar superior. «Somos exactamente iguais. Faríamos qualquer coisa... qualquer coisa por dinheiro.»

Parou no quarto de cama, contemplando curiosamente a imagem do seu rosto reflectido no espelho... Era, pensou, o rosto de uma desconhecida...

E depois, de repente, sentiu-se dominada pela cólera.

«Se Rowley me amasse realmente», pensou, «teria arranjado essas quinhentas libras de qualquer maneira. Sim... teria. Não teria consentido que eu ficasse humilhada tendo de aceitá-las de David... David...»

David dissera que lhe telefonaria logo que chegasse a Londres.

Desceu as escadas, caminhando como que num sonho...

Os sonhos, pensava, podiam ser perigosos...

Capítulo 14

Ah, cá estás, Lynn a voz de Adela soou viva e aliviada. Não te ouvi entrar, querida. Chegaste há muito tempo?

Sim, há imenso. Estava lá em cima.

Peço que me previnas quando chegas, Lynn. Fico sempre nervosa quando andas sozinha lá por fora, depois do anoitecer.

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Francamente, Mamã, não achas que estou já em boa idade de tomar conta de mim?

Ora, ultimamente, os jornais têm relatado coisas terríveis. Todos esses soldados desmobilizados... atacam raparigas.

Suponho que as raparigas não desejam outra coisa.

Sorriu... de um modo um tanto forçado. Sim, as raparigas procuravam o perigo... No fim de contas, quem se preocupava realmente com segurança?...

Lynn, querida, estás a ouvir-me?

Lynn despertou das suas divagações com um sobressalto.

A mãe estava a falar.

Que disseste, Mamã?

Estava a falar das tuas damas de honor. Suponho que poderão apresentar os seus cupões. Tens sorte em teres todos os que recebeste depois de teres sido desmobilizada. Tenho, na realidade, muita pena das raparigas que hoje em dia se casam dispondo apenas dos cupões vulgares. Quero dizer, não podem comprar nada de novo. De roupa exterior, está claro, pois da qualidade que a roupa interior é, nestes tempos, está sempre a ser necessário comprar mais. Sim, Lynn, tens realmente muita sorte.

Oh, muita sorte.

Andava à volta do quarto, ao acaso, pegando em coisas para largá-las logo em seguida.

Tens de estar assim tão terrivelmente desassossegada, querida? Pões-me sobressaltada!

Desculpa, Mamã!

Passa-se alguma coisa?

Que coisa havia de passar-se? retorquiu Lynn com vivacidade.

Bem, não precisas de zangar-te. Mas, quanto às damas de honor, acho que devias convidar a Macrae. Não te esqueças que a mãe dela foi a minha melhor amiga e estou certa de que se magoará se...

Detesto a Joan Macrae e sempre a detestei.

Bem sei, querida, mas que importância tem isso realmente? Tenho a certeza de que a Marjorie ficaria magoada...

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Mas o casamento é meu, Mamã, não é verdade?

Sim, bem sei, Lynn, mas...

Se é que haverá casamento!

Não quisera dizer aquilo. As palavras saltaram-lhe da boca sem ter pensado nelas. Gostaria de retê-las, mas era já demasiado tarde. Mrs. Marchmont olhava-a, pasmada, alarmada.

Lynn, querida, que queres dizer?

Oh, nada, Mamã.

Tu e Rowley zangaram-se?

Não, certamente que não. Não te inquietes, Mamã, tudo corre bem.

Mas Adela observava a filha, sentindo-se realmente alarmada e sensível à perturbação que se escudava por trás da expressão carrancuda de Lynn.

Sempre pensei que ficarias com um futuro tão seguro, casando-te com Rowley disse lastimosamente.

Que importa estar-se seguro? inquiriu Lynn desdenhosamente. Virou-se depois vivamente e inquiriu. Foi o telefone?

Não. Porquê? Esperas alguma chamada?

Lynn sacudiu negativamente a cabeça. Era humilhante estar à espera que o telefone tocasse. David prometera telefonar-lhe nessa noite: Fá-lo-ia. «És louca», disse a si própria. «Louca.»

Por que a atraía tanto aquele homem? A recordação do seu rosto moreno e sombrio apresentou-se-lhe ao espírito. Procurou bani-la, procurou substituí-la pelo semblante aberto e agradável de Rowley. O seu sorriso estúpido, o seu olhar afectuoso. Mas Rowley, perguntou-se, preocupar-se-ia realmente com ela? Certamente que, se se tivesse preocupado com ela, tê-la-ia compreendido nesse dia em que o procurara e lhe pedira quinhentas libras emprestadas. Tê-la-ia compreendido em vez de ser tão desesperadamente razoável e prático. Casar com Rowley, viver na granja, nunca mais partir, nunca mais ver céus desconhecidos, aspirar aromas exóticos... nunca mais ser livre...

O telefone tocou estridentemente. Lynn inspirou fundo, atravessou o vestíbulo e pegou no auscultador.

Com o choque de um murro, a voz da tia Kathie chegou-lhe debilmente através do fio.

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Lynn? És tu? Oh, estou tão contente. Sabes, receio ter feito uma confusão... acerca da reunião no Instituto.

A voz fina e palpitante prosseguiu. Lynn ouvia, interpolava comentários, proferia palavras tranquilizadoras, recebia agradecimentos.

Oh, Lynn, é um consolo tão grande seres assim tão gentil e prática. Não consigo compreender realmente como faço estas confusões.

Lynn também não conseguia compreender. A capacidade da tia Kathie para confundir as coisas mais simples chegava a ser praticamente genial.

Mas sempre te digo terminou a tia Kathie que, de repente, tudo nos corre mal ao mesmo tempo. O nosso telefone está avariado e tive de vir telefonar a uma cabina e agora estou aqui sem ter mais moedas para falar... tenho de ir pedir...

Por fim, deixou de ouvir-se, Lynn pousou o auscultador no seu lugar e voltou para a sala de estar. Adela Marchmont, alerta, inquiriu:

Era...e fez uma pausa.

A tia Kathie apressou-se Lynn a responder.

Que queria ela?

Oh, foi simplesmente uma das suas confusões.

Lynn voltou a sentar-se com um livro na mão e deitando um olhar ao relógio. Sim... fora demasiado cedo. Não era de esperar que lhe telefonasse tão cedo. Às onze horas e cinco minutos, o telefone voltou a tocar. Foi lentamente atendê-lo. A essa hora, ainda não podia ser... provavelmente, era outra vez a tia Kathie...

Mas não.

Warmsley Vale 34? Miss Lynn Marchmont pode atender uma chamada particular de Londres?

O coração pulsou-lhe violentamente.

Fala Miss Lynn Marchmont.

Faça o favor de atender.

Esperou... ruídos confusos... depois, silêncio. O serviço telefónico estava cada vez pior... Esperou. Por fim, apertou encolerizadamente o auscultador. Uma outra voz feminina, indiferente, fria, desinteressada:

Desligue, por favor. Voltarei a chamar. Desligou, voltou para a sala de estar e o telefone

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tornou a tocar quando já tinha a mão na porta. Apressou-se a atendê-lo.

Está?

Uma voz de homem perguntou:

Warmsley 34? Uma chamada particular de Londres para Miss Lynn Marchmont.

É a própria.

Um momento, por favor depois, debilmente. Fale, Londres, está ligado...

E depois, subitamente, a voz de David:

Lynn és tu?

David!

Precisava de falar-te.

Sim...

Ouve, Lynn, acho que será melhor eu fugir...

Que queres dizer?

Fugir de Inglaterra. Oh, é muito fácil. Disse a Rosaleen que o não era... simplesmente porque não queria sair de Warmsley Vale. Mas de que serve isso? Tu e eu... não ligaríamos bem. És uma bela rapariga, Lynn... e, quanto a mim, sou um grande escroque, sempre o fui. Pensava que talvez... mas não daria nada. Não, é melhor casares com esse cavador do Rowley. Enquanto viveres, ele nunca conseguirá dar-te um dia de excitação.

Ela continuava segurando o auscultador, sem dizer nada.

Lynn, ainda aí estás? Sim, estou.

Não disseste nada.

Que hei-de dizer?

Lynn?

Sim?...

Era estranho como, apesar de toda aquela distância que os separava, podia sentir a sua excitação, a sua pressa...

Hunter praguejou em voz baixa e depois gritou desabridamente:

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Oh, que o Diabo carregue isto tudo! e desligou. Mrs. Marchmont, ao sair da sala de estar, perguntou:

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Quem foi?...

Foi engano respondeu Lynn e subiu rapidamente as escadas.

Capítulo 15

No «Stag» era costume acordar os hóspedes à hora que pedissem pelo simples processo de vibrar uma forte pancada na porta, acompanhada da informação gritada «Oito e meia, sir ou «Oito horas», consoante o caso. Levavam-lhes o chá, se assim fora estipulado, o qual era deposto com um barulho de louça de barro no capacho exterior à porta.

Na manhã dessa quarta-feira, a jovem Gladys fez uso da forma habitual do quarto n.° 5, gritando do lado de fora «Oito e quinze, sir» e pousando a bandeja tão bruscamente que entornou leite da leiteira. Depois continuou o seu caminho, acordando mais pessoas e desempenhando-se de outras das suas obrigações.

Só às dez horas reparou que o chá do n.° 5 continuava no capacho.

Vibrou mais algumas pancadas fortes na porta, não obteve resposta, e, em vista disso, entrou.

O ocupante do n.° 5 não era o género de cavalheiro que dormisse muito e lembrava-se de que, do lado de fora da janela, havia um telhado, facilmente alcançável. Era até possível, pensava Gladys, que o do n.° 5 se tivesse eclipsado sem pagar a conta.

Mas o homem registado com o nome de Enoch Arden não se eclipsara. Estava estendido de bruços, no meio do quarto, e Gladys, embora não possuísse qualquer conhecimento de medicina, não teve a menor dúvida de que estava morto.

A rapariga atirou a cabeça para trás, gritou e, sem parar de fazê-lo, precipitou-se para fora do quarto e pelas escadas abaixo.

Ai, Miss Lippincott... Miss Lippincott... Ai...

Beatrice Lippincott achava-se no seu quarto onde o Dr. Lionel Cloade lhe ligava uma mão golpeada. Este último largou a ligadura e virou-se irritadamente quando a rapariga irrompeu pelo aposento.

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Ai, menina!

O doutor cortou-lhe a palavra:

O que é? O que é?

O que é, Gladys? perguntou Beatrice.

É o senhor do n.° 5, menina. Está lá em cima, estendido no chão, morto.

O médico olhou espantado para a rapariga e depois para Miss Lippincott. Esta olhou pasmada para Gladys e depois para o médico.

Por fim, o Dr. Cloade disse indecisamente:

Que tolice!

Morto e bem morto! afiançou Gladys e acrescentou com certo prazer. Tem a cabeça toda num bolo.

O médico olhou para Miss Lippincott.

Talvez seja melhor eu...

Sim, por favor, Dr. Cloade. Mas realmente... Custa-me a crer... parece tão extraordinário!

Subiram ao andar de cima, precedidos de Gladys. O Dr. Cloade lançou um olhar, ajoelhou-se e inclinou-se sobre o corpo estendido.

Ergueu o olhar para Beatrice. A sua atitude mudara. Era brusca, autoritária.

É melhor telefonar para a esquadra disse. Beatrice Lippincott saiu, seguida de Gladys, Esta perguntou num sussurro aterrado:

Oh, menina, julga que seja um assassínio? Beatrice alisou a cabeleira loura com mão trémula.

Cala-te, Gladys ordenou-lhe vivamente. Dizer que é assassínio antes de saber que é assassínio é uma calúnia e corre-se o risco de ir a tribunal por causa disso. O «Stag» nada terá a ganhar se começarem por aí a correr boatos acerca disso e acrescentou como que numa graciosa concessão. Podes ir tomar uma chávena de chá. Deves precisar dela.

Sim, menina. Cá por dentro estou toda revolvida! Vou trazer-lhe uma também!

Beatrice não teve coragem de dizer Não.

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Capítulo 16

O superintendente Spence considerou pensativamente Beatrice Lippincott, sentada do lado oposto da mesa e cujos lábios se apertavam numa delgada linha.

Obrigado, Miss Lippincott agradeceu. É tudo de quanto se lembra? Dar-lhe-ei o depoimento a ler depois de passado à máquina, e, nessa altura, se não se importar de assiná-lo...

Oh... espero não ter de responder num tribunal de polícia.

O superintendente Spence sorriu-lhe tranquilizadoramente.

Oh, não devemos chegar a tanto disse falsamente.

Deve ser suicídio sugeriu Beatrice esperançosamente.

O superintendente Spence absteve-se de dizer que, na generalidade dos casos, um suicida não despedaça a nuca com um par de tenazes... Em vez disso, replicou com a mesma atitude calma:

Nunca há vantagem em tirar conclusões apressadas. Obrigado, Miss Lippincott. Foi muita bondade sua vir aqui tão prontamente prestar essa declaração.

Depois de a terem acompanhado até à porta, passou mentalmente em rápida revista o seu depoimento. Conhecia muito bem Beatrice Lippincott e sabia, portanto, até que ponto podia contar com a sua exactidão, no que respeitasse a uma conversa genuinamente ouvida por casualidade e recordada. Um certo floreado a mais por causa da excitação e ainda porque o crime fora cometido no quarto n.° 5. Mas, pondo os «a mais» de parte, o que restava era repugnante e sugestivo.

O superintendente Spence olhou para a mesa à sua frente. Sobre esta via-se um relógio de pulso com o vidro quebrado, um pequeno isqueiro de ouro com iniciais gravadas, um baton para os lábios num estojo dourado e um par de fortes tenazes de aço, cuja cabeça maciça tinha uma mancha de um castanho ferrugento.

O sargento Graves espreitou para dentro do gabinete e disse que Mr. Rowley Cloade estava à espera.

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Spence fez um aceno afirmativo e o sargento mandou entrar Rowley.

Do mesmo modo como sabia tudo acerca de Beatrice Lippincott, o superintendente sabia tudo a respeito de Rowley Cloade. Se Rowley viera à esquadra, era porque tinha algo a dizer e esse algo devia ser sólido, seguro e despido de imaginação fértil. Efectivamente, devia ser digno de ouvir-se. Por outro lado, sendo Rowley uma pessoa circunspecta, esse algo requeria algum motivo para ser dito. E não se podiam apressar pessoas do tipo de Rowley Cloade. Fazendo-o, tornavam-se desconcertadas, repetiam-se, e geralmente levavam o dobro do tempo...

Bom dia, Mr. Cloade. Muito prazer em vê-lo. Pode lançar alguma luz sobre este nosso problema? O homem que foi assassinado no «Stag».

Para surpresa de Spence, Rowley começou com uma pergunta. Inquiriu abruptamente:

Já identificou o homem?

Não respondeu Spence lentamente. Ainda não. Assinou o registo com o nome Enoch Arden; mas nada do que possuía prova que fosse Enoch Arden.

Rowley franziu o sobrolho.

Não acha isso... um pouco estranho?

Era terrivelmente estranho, mas o superintendente Spence não se propunha discutir com Rowley Cloade até que ponto achava o caso estranho. Em vez disso, lembrou gentilmente:

Não se esqueça, Mr. Cloade, que sou eu quem faz as perguntas. Foi procurar o morto na noite passada. Por quê?

Conhece Beatrice Lippincott, superintendente? Do «Stag».

Sim, certamente. E acrescentou o superintendente, julgando vibrar um pequeno golpe já ouvi o seu relato. Veio contar-mo.

Rowley pareceu aliviado.

Bom. Receava que ela não quisesse ficar metida num caso da polícia. Às vezes, essas pessoas são esquivas.

O superintendente meneou a cabeça compreensivelmente. Rowley prosseguiu:

Ora. Beatrice contou-me o que tinha ouvido por

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casualidade e pareceu-me... não sei se a si também... verdadeiramente suspeito. O que quero significar é que... somos, também, partes interessadas.

O superintendente voltara a menear a cabeça compreensivamente. Tomara um vivo interesse local na morte de Gordon Cloade e, em comum com a opinião geral da terra, achava que a família de Gordon fora mal tratada. Partilhava da opinião comum de que Mrs. Gordon Cloade «não era uma senhora» e que o irmão de Mrs. Gordon Cloade era um daqueles jovens e brilhantes Comandos que, embora tivessem tido a sua utilidade em tempo de guerra, deviam ser olhados com desconfiança, em tempo de paz.

Não creio ser necessário explicar-lhe, superintendente, que, se o primeiro marido de Mrs. Gordon ainda está vivo, isso constituirá uma grande diferença para todos nós, de sua família. Esta história de Beatrice, foi a primeira insinuação que tive de que poderia dar-se tal caso. Nunca sonhara com isso. Pensei que fosse realmente viúva. E devo confessar que me senti profundamente chocado. Precisei de algum tempo para compreender. Sabe, tive de dar tempo ao tempo.

Spence voltou a acenar compreensivamente. Imaginava Rowley ruminando lentamente o assunto, dando-lhe voltas e reviravoltas no espírito.

Primeiro do que tudo, pensei pôr meu tio ao corrente... o advogado.

Mr. Jeremy Cloade?

Sim; e, portanto, fui a casa dele. Deve ter sido um pouco depois das oito. Estava ainda a jantar e fiquei à espera do velho Jeremy, sentado no seu escritório, sem deixar de continuar a dar voltas à cabeça.

Sim?

E finalmente cheguei à conclusão de que seria melhor não pôr o meu tio a par da coisa. Os advogados, superintendente, são todos os mesmos, pensei. Muito prudentes, muito cautelosos, e têm de certificar-se absolutamente dos factos antes de entrarem em acção. A informação que eu recebera chegara-me de um modo um tanto secreto... e perguntei-me se o velho Jeremy não hesitaria em actuar de acordo com ela. Resolvi ir ao «Stag» e procurar o tipo por minha conta.

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E fê-lo?

Sim, voltei ao «Stag»...

A que horas foi isso? Rowley ponderou.

Deixe-me ver, devo ter chegado a casa do Jeremy por volta das oito e vinte... cinco minutos, mais ou menos... bem, não posso dizê-lo exactamente, Spence... depois das oito e meia... talvez cerca das vinte para as nove.

Sim, Mr. Cloade?

Eu sabia onde o sujeito estava... a Bee tinha mencionado o número do quarto... portanto, fui lá directamente e bati à porta. Ele disse «Entre» e eu assim fiz.

Rowley fez uma pausa.

Apesar de tudo, creio que não tratei do caso muito bem. Quando lá entrei, pensei que era eu que estava em situação vantajosa. Mas o homem devia ser um tipo inteligente. Não pude apanhá-lo em nada de concreto. Julguei que se assustaria quando o acusasse de ter feito chantagem, mas isso até pareceu diverti-lo. Perguntou-me que insolente! se eu também queria comprar. «Comigo não pode fazer o seu jogo sórdido», disse-lhe eu «nada tenho a esconder.» Respondeu-me bastante asquerosamente que não era isso que ele queria dizer. A questão estava, disse ele, em que tinha uma coisa para vender e queria saber se eu era um comprador. «Que quer dizer?» perguntei-lhe. Respondeu-me: «Quanto me pagaria ou a família em geral pela prova definitiva de que Robert Underhay, dado como morto em África, está realmente vivo?» Perguntei-lhe por que diabo havíamos de pagar-lhe fosse o que fosse. Riu-se e respondeu: «Porque esta noite vou receber a visita de um cliente que certamente me pagará uma quantia muito substancial pela prova positiva de que Robert Underhay está morto.» Depois... bem, depois, creio que perdi a calma e que lhe disse que a minha família não estava habituada a esse género vil de negócios. Se Underhay estava realmente vivo, disse eu, o facto devia ser muito fácil de provar. Dito isso, ia a retirar-me quando ele se riu e disse num tom muito estranho: «Não creio que o provem sem a minha cooperação.» Disse aquilo de um modo estranho.

E depois?

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Bem, sinceramente, voltei para casa, bastante perturbado. Com a sensação, compreende, de que embrulhara as coisas. Desejava ter confiado o caso ao velho Jeremy, pois, no fim de contas, um advogado está acostumado a lidar com clientes duvidosos.

A que horas saiu do «Stag»?

Não faço ideia. Um momento. Deve ter sido pouco antes das nove, porque quando ia a passar pela aldeia ouvi o sinal do noticiário... através de uma das janelas.

Arden disse quem esperava? O nome do «cliente»?

Não. Fiquei convencido de que era David Hunter. Que outra pessoa podia ser?

Não parecia alarmado de qualquer modo com a perspectiva?

O tipo estava inteiramente satisfeito da sua pessoa e muito importante.

Spence indicou com um gesto débil as pesadas tenazes de aço.

Notou-as na grade da chaminé, Mr. Cloade?

Essas? Não... não me parece. O lume não estava aceso franziu o sobrolho procurando imaginar o cenário. Na grade, havia vários utensílios do género, tenho a certeza, mas não posso dizer que tenha reparado quais eram acrescentou. Foi isso o que...

Spence respondeu afirmativamente, com um aceno de cabeça.

Arrombaram-lhe o crânio. Rowley franziu o sobrolho.

Estranho. Hunter é um tipo de fraco arcabouço... Arden era um homem grande, robusto.

O superintendente disse numa voz inexpressiva:

O parecer médico diz que foi derrubado pelas costas e que os golpes dados com a cabeça das tenazes foram desferidos de cima.

Rowley disse pensativamente:

Não há dúvida de que se tratava de um sujeito absolutamente seguro... mas, em todo o caso, eu não teria virado as costas a um tipo com quem estivesse a sós num quarto, a quem procurasse extorquir dinheiro e que, durante a guerra, se desempenhara de missões difíceis. Arden não era um tipo muito prudente.

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Se o tivesse sido, é muito provável que ainda estivesse vivo observou secamente o superintendente.

Preferia sinceramente que o tivesse sido declarou Rowley com fervor. Sinto que atrapalhei terrivelmente as coisas. Se simplesmente não tivesse sido arrogante e não me tivesse ido embora, poderia ter conseguido alguma informação útil através dele. Devia ter pretendido que éramos compradores, mas a coisa é tão terrivelmente tola... Ora, quem somos nós para licitar contra Rosaleen e David? Eles têm o dinheiro. Entre nós todos, não conseguiríamos reunir quinhentas libras.

O superintendente pegou no isqueiro de ouro.

Já o tinha visto?

Uma ruga cavou-se entre as sobrancelhas de Rowley. Respondeu vagarosamente:

Sim, já o vi em qualquer parte, mas não me lembro onde. Não foi há muito tempo. Não... não me recordo.

Spence não depôs o isqueiro na mão estendida de Rowley. Pousou-o sobre a mesa e pegou no baton, fazendo-o sair para fora do estojo.

E isto?

Rowley arreganhou os dentes num sorriso forçado.

Para falar com franqueza, isso não é o meu forte, superintendente.

Pensativamente, Spence traçou com ele um traço nas costas da mão. Pôs a cabeça de lado. estudando-o apreciativamente.

Cor brunette observou.

Que coisas divertidas a polícia sabe comentou Rowley. Levantou-se. Não sabe... não sabe realmente... quem era o morto?

O senhor tem alguma ideia a esse respeito, Mr. Cloade?

Faço simplesmente suposições respondeu Rowley lentamente. Quero dizer... esse tipo era a nossa única pista para chegarmos a Underhay. Mas como agora está morto... bem, procurar Underhay é o mesmo que procurar uma agulha num palheiro.

Haverá publicidade, Mr. Cloade observou Spence. Não se esqueça de que, na devida altura, a imprensa falará muito disto. Se Underhay está vivo e ler o que se publicar... bem, pode ser que apareça.

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Sim disse Rowley duvidosamente. É possível.

Mas não crê?

Creio respondeu Rowley Cloade que o primeiro round foi ganho por David Hunter.

Admira-me respondeu Spence. Quando Rowley saiu, Spence pegou no isqueiro de ouro e olhou para as iniciais de David Hunter, nele gravadas. Um artigo caro declarou ao sargento Graves. Não é produzido em série. É facilmente identificável. Greatorex ou qualquer dessas casas da Bond Street.

Depois o superintendente considerou o relógio de pulso o vidro estava quebrado e os ponteiros indicavam nove e dez.

Olhou para o sargento.

Já tens o relatório deste, Graves?

Sim, sir. A corda está partida.

E o mecanismo dos ponteiros?

Está bom, sr.

Na tua opinião, o que nos indica o relógio, Graves? O sargento murmurou cautelosamente:

Parece indicar-nos as horas a que o crime foi cometido.

Ah! exclamou Spence. Quando se esteve tanto tempo na Force como eu estive, é-se levado a suspeitar de uma coisa tão simples como um relógio partido. Pode ser genuíno... mas é também uma velha manha muito conhecida. Desviar os ponteiros do relógio para uma hora conveniente... e parti-lo... e pôr-se a andar com um álibi eficaz. Mas não se engana um passarão dessa maneira. Mantenho uma opinião pessoal quanto às horas a que este crime foi cometido. O parecer médico situa-o entre as oito e as onze da noite.

O sargento Graves pigarreou.

Edwards, o ajudante de jardineiro de Furrowbank, diz que viu David Hunter sair dali por uma porta lateral, por volta das sete horas e trinta minutos. As criadas não sabiam que ele cá estava. Julgavam que estivesse em Londres com Mrs. Gordon. É uma prova de que estava nas vizinhanças.

Sim concordou Spence. Gostarei muito de ouvir o relato do próprio Hunter.

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Parece um caso claro, sir disse Graves, olhando para as iniciais do isqueiro.

Hum... fungou o superintendente. Temos ainda que contar com isto.

Indicou o baton.

Rolara para debaixo da cómoda, sir. Podia já lá estar há algum tempo.

Averiguei isso objectou Spence. A última vez que esse quarto foi ocupado por uma mulher, foi há três semanas. Bem sei que, hoje em dia, o serviço deixa muito a desejar... mas, em todo o caso, quero acreditar que limpem o pó debaixo dos móveis pelo menos de três em três semanas. De um modo geral, o «Stag» está razoavelmente limpo e arranjado.

Não há qualquer referência a ter estado Arden com alguma mulher.

Bem sei disse o superintendente. É por isso que eu chamo a esse baton, o «número desconhecido».

O sargento Graves absteve-se a custo de dizer cherchez la femme. Tinha uma boa pronúncia francesa e sabia muito bem que irritava o superintendente Spence, chamando-lhe a atenção para o facto. O sargento Graves era um rapaz cheio de tacto.

Capítulo 17

O superintendente Spence ergueu o olhar para o Shepherd’s Court, de Mayfair, antes de entrar no seu agradável vestíbulo. Situado modestamente na vizinhança de Shepherd’s Market, era discreto, caro e imperceptível.

Mal entrou, os pés de Spence enterraram-se na macia carpete do vestíbulo onde se via um sofá forrado de veludo e uma jardineira cheia de plantas em flor. À sua frente, encontrou um pequeno ascensor automático e, ao lado deste, um lanço de escadas. À direita do vestíbulo havia uma porta, com a indicação: «Escritório». Spence empurrou-a e entrou. Achou-se numa pequena divisão dividida por um balcão, atrás do qual ficava uma mesa com uma máquina de escrever e duas cadeiras. Uma destas estava chegada à mesa e a outra, de melhor aspecto, estava postada ao lado da janela.

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Não se via ninguém.

Spence descobriu um besouro no balcão de mogno e premiu-o. Porém, vendo que nada acontecia, voltou a premi-lo. Cerca de um minuto depois, abriu-se uma porta na parede oposta e apareceu uma pessoa trajando um uniforme esplendente. Tinha o aspecto de um general estrangeiro ou até de marechal-de-campo, mas a sua fala era de Londres e até de uma Londres mal-educada.

Sim, sir?

Mrs. Gordon Cloade?

No 3.° andar, sir. Devo anunciar...?

Está cá, não está? certificou-se Spence. Pensei que talvez estivesse no campo.

Não, sir, está cá desde sábado passado.

E Mr. David Hunter?

Mr. Hunter também cá está.

Não esteve fora?

Não, sir.

Esteve cá na noite passada?

Mas observou o marechal-de-campo, subitamente agressivo que vem a ser isto? Quer saber da vida de cada um?

Em silêncio, Spence apresentou-lhe o cartão de identificação. O marechal-de-campo acalmou-se imediatamente e tornou-se cooperativo.

Lamento desculpou-se. Não podia adivinhar, não é verdade?

Então, Mr. Hunter esteve cá a noite passada?

Sim, sir, esteve. Pelo menos, estou convencido de que sim. Quer dizer, não disse que ia sair.

Se ele tivesse saído era natural que o soubesse?

Bem, falando de um modo geral, não. Acho que não. Os cavalheiros e as senhoras dizem geralmente quando saem. Dão alguma indicação quanto a correspondência ou ao que devemos dizer se alguém telefonar.

As chamadas telefónicas são feitas através deste escritório?

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Não, a maior parte dos apartamentos têm linhas próprias. Uma ou outra pessoa prefere não ter telefone e então prevenimo-la pelo telefone interno e vem cá abaixo falar da cabina que está no vestíbulo.

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Mas o apartamento de Mrs. Cloade tem telefone próprio?

Tem, sim, sr.

E, segundo sabe, estavam cá na noite passada?

Exactamente.

Refeições?

Há um restaurante, mas Mrs. Cloade e Mr. Hunter não o utilizam muitas vezes. Geralmente vão jantar fora.

Pequeno-almoço?

É servido nos apartamentos.

Pode averiguar se esta manhã lhes levaram o pequeno-almoço?

Sim, sir, posso sabê-lo através do serviço de quartos.

Spence aplaudiu com um aceno de cabeça e declarou:

Vou agora lá acima. Dê-me a resposta, quando eu descer.

Muito bem, sir.

Spence entrou no elevador e premiu o botão do terceiro andar. Em cada piso, havia apenas dois apartamentos. Tocou à campainha do n.° 9.

David Hunter abriu a porta. Não conhecia de vista o superintendente e perguntou com brusquidão:

Bem, o que há?

Mr. Hunter?

Sim.

Superintendente Spence da Polícia do Condado de Oastshire. Pode receber-me?

Perdão, superintendente arreganhou os dentes num sorriso forçado julguei que fosse um corretor. Entre.

Conduziu-o para um aposento moderno e encantador. Rosaleen Cloade estava de pé, junto à janela, e virou-se, ao ouvi-los entrar.

O superintendente Spence, Rosaleen apresentou Hunter. Sente-se, superintendente. Toma qualquer coisa?

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Não, obrigado, Mr. Hunter.

Rosaleen inclinara levemente a cabeça. Estava agora sentada, de costas para a janela, com as mãos apertadamente unidas sobre o regaço.

Fuma? David ofereceu-lhe a cigarreira.

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Obrigado.

Spence tirou um cigarro, esperou... viu David meter uma mão numa algibeira, tirá-la para fora, franzir o sobrolho, olhar em volta e pegar numa caixa de fósforos. Raspou um e acendeu o cigarro do superintendente.

Obrigado.

Bem disse David, à vontade, enquanto acendia o próprio cigarro. O que corre mal por Warmsley Vale? A nossa cozinheira fez mercado negro? Ela dá-nos comida excelente, e sempre desconfiei que, por trás disso, houvesse qualquer história sinistra.

É bastante mais sério do que isso declarou o superintendente. Na noite passada, morreu um homem na estalagem «Stag». Talvez já tenha lido a notícia nos jornais?

David sacudiu a cabeça.

Não, não reparei. Que lhe aconteceu?

Não foi de morte natural. Foi assassinado. Efectivamente, tinha a cabeça despedaçada.

Rosaleen soltou uma exclamação meio abafada. David disse apressadamente:

Por favor, superintendente, não se alargue em pormenores. Minha irmã é muito sensível. Desmaia sempre que ouve mencionar sangue e casos impressionantes.

Oh, lamento disse o superintendente, mas não havia qualquer sangue a que referir-me. E, contudo, trata-se de um crime.

Fez uma pausa. David ergueu o sobrolho e disse suavemente:

Está a interessar-me. Que pretende?

Esperávamos que pudesse dizer-nos alguma coisa a respeito desse homem, Mr. Hunter.

Eu?

Foi visitá-lo na noite do último sábado. O seu nome... ou o nome com que se registou... era Enoch Arden.

Sim, certamente. Recordo-me agora.

David falara calmamente, sem qualquer embaraço.

Então. Mr. Hunter?

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Bem, superintendente, custa-me não poder ajudá-lo. Nada mais sei a respeito desse homem.

O seu nome seria realmente Enoch Arden?

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Duvido muito.

Por que foi procurá-lo?

Em virtude de mais uma dessas habituais histórias infelizes. Mencionou certos lugares, experiências de guerra, pessoas... David encolheu os ombros. Apenas um contacto. Toda a coisa bastante fictícia.

Deu-lhe algum dinheiro?

Fez-se uma pausa da fracção de um segundo e depois David respondeu:

Apenas uma nota de cinco libras... Para lhe dar sorte. Tinha estado na guerra.

Mencionou-lhe alguns nomes... seus conhecidos?

Sim.

Um desses nomes foi o do capitão Robert Underhay?

Agora, finalmente, conseguira o seu efeito. O rosto de David endureceu-se. Atrás dele, Rosaleen soltou uma pequena arfada assustada.

O que o faz pensar isso, superintendente? perguntou David, por fim.

Os seus olhos mostravam-se cautelosos, perscrutadores.

Uma informação recebida respondeu estolidamente o superintendente.

Seguiu-se um curto silêncio. O superintendente via os olhos de David, estudando-o, avaliando-o, esforçando-se por saber... Ele próprio esperou calmamente.

Faz alguma ideia de quem fosse Robert Underhay, superintendente? perguntou David.

Suponhamos que é o senhor quem mo diz.

Robert Underhay foi o primeiro marido de minha irmã. Morreu em África, há alguns anos.

Está absolutamente certo disso, Mr. Hunter? perguntou Spence, apressadamente.

Absolutamente certo. Não é verdade, Rosaleen? virou-se para ela.

Oh, sim ela falou precipitadamente, ofegantemente Robert morreu com febres... febres palustres. Foi um caso muito triste.

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Às vezes, espalham-se histórias que não são inteiramente verdadeiras, Mrs. Cloade.

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Ficou calada, sem o encarar, mas com os olhos fitos no irmão. Depois de um momento, declarou:

Robert morreu.

Segundo uma informação que possuo disse o superintendente presumo que esse homem, Enoch Arden, alegou ser amigo do falecido Robert Underhay e que, ao mesmo tempo, o informou, Mr. Hunter, de que Robert Underhay estava vivo.

David sacudiu a cabeça e objectou:

Isso é uma tolice, uma rematada tolice!

Afirma categoricamente que o nome de Robert Underhay não foi mencionado?

Oh David fez um sorriso encantador, foi mencionado. Esse pobre tipo tinha conhecido Underhay.

Não se tratou de chantagem, Mr. Hunter?

De chantagem? Não o compreendo, superintendente.

Não, de facto, Mr. Hunter? A propósito, por uma simples questão de pró-forma, onde esteve na noite passada... entre, digamos, as sete e as onze horas?

Simplesmente por pró-forma, superintendente, suponhamos que me recuso a responder?

Não estará a comportar-se um tanto infantilmente, Mr. Hunter?

Não creio. Desagrada-me... sempre me desagradou ser ameaçado.

O superintendente achou que provavelmente aquilo era verdade.

Já antes conhecera testemunhas do tipo de David Hunter.

Testemunhas que eram importunas pelo puro prazer de serem importunas e de forma nenhuma por terem qualquer coisa a esconder. O simples facto de se lhes pedir contas dos seus passos parecia despertar dentro delas um orgulho mau e teimoso. Empenhar-se-iam em causar à Justiça todo o incómodo que pudessem.

O superintendente Spence, embora se orgulhasse de ser um homem justo, dirigira-se a Shepherd’s Court com a firme convicção de que David Hunter era um assassino.

Mas agora, pela primeira vez, já não sentia a mesma certeza. A própria puerilidade do desafio de David abalara-lhe a certeza.

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Spence olhou para Rosaleen Cloade. Esta reagiu imediatamente:

David, por que não lhe dizes?

Muito bem, Mrs. Cloade. Nós apenas queremos esclarecer as coisas...

David cortou-lhe abruptamente a palavra:

Deixe-se de ameaçar a minha irmã, ouviu? Que lhe interessa saber se estive aqui ou em Warmsley Vale ou em Tombuctu?

Spence preveniu-o:

Será intimado a comparecer no inquérito, Mr. Hunter, e, nessa altura, será obrigado a responder às perguntas.

Esperarei então pelo inquérito! E agora, superintendente, quer fazer o favor de pôr-se a andar daqui para fora?

Muito bem o superintendente levantou-se, imperturbável, mas primeiramente tenho de interrogar Mrs. Cloade.

Não quero que incomode minha irmã.

Pois sim, mas preciso que ela veja o corpo e me diga se pode identificá-lo. Ali, estou investido dos meus poderes. Isso terá de fazer-se mais tarde ou mais cedo. Por que não lhe permite que me acompanhe agora para arrumarmos o assunto? Uma testemunha ouviu Mr. Arden declarar que conhecia Robert Underhay e, por conseguinte, pode dar-se o caso de Mrs. Underhay também o conhecer. Se o seu nome não é Enoch Arden, poderíamos realmente identificá-lo.

Um tanto inesperadamente, Rosaleen Cloade levantou-se.

Certamente que irei declarou.

Spence esperou uma explosão de David, mas surpreendeu-se ao ver que este sorria.

És muito boa, Rosaleen disse. Confesso que eu próprio me sinto curioso. No fim de contas, és capaz de dar um nome a esse tipo.

Spence dirigiu-se à rapariga.

Não o viu em Warmsley Vale? Ela sacudiu a cabeça.

Estou em Londres desde sábado passado.

E Arden chegou sexta-feira à noite... sim.

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Quer que vá agora? perguntou Rosaleen, quase com a submissão de uma garota.

Sem querer, o superintendente ficou favoravelmente impressionado. Havia nela uma docilidade, uma prontidão, com que não contara.

Seria muito gentil da sua parte, Mrs. Cloade. Quanto mais cedo pudermos estabelecer definitivamente certos factos, tanto melhor. Lamento não ter aqui um carro da polícia.

David dirigiu-se ao telefone.

Vou telefonar para os táxis urbanos. Fica para lá do limite legal... mas espero que isso lhe convenha, superintendente.

Creio que poderá consegui-lo, Mr. Hunter. Levantou-se e disse:

Esperarei por si lá em baixo.

Desceu no elevador e abriu uma vez mais a porta do escritório.

O marechal-de-campo esperava-o.

Então?

Ambas as camas ficaram desmanchadas a noite passada, sir. As casas de banho e toalhas foram utilizadas. Foi-lhes servido o pequeno-almoço, às nove horas e meia, no apartamento.

E não sabe a que horas entrou Mr. Hunter, ontem à noite?

Lamento nada mais saber dizer, sir!

Bem, era isso, pensou Spence. Gostaria de saber se, por trás da recusa de David em falar, haveria mais alguma coisa do que um simples desafio infantil. Devia compreender que pairava sobre ele uma acusação de assassínio. Certamente deveria compreender que, quanto mais cedo contasse a sua história, melhor seria. Nunca há qualquer vantagem em contender com a polícia. Mas contender com a polícia, pensou ele desconsoladamente, era exactamente o que David Hunter gostaria de fazer.

Falaram muito pouco durante o caminho. Quando chegaram à morgue, Rosaleen estava muito pálida. As mãos tremiam-lhe. David parecia preocupado com ela. Falou-lhe como se fosse uma criança.

Será apenas um minuto ou dois, queridinha. Não custa nada, mesmo nada. Não te enerves. Vais com o

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superintendente e eu fico à tua espera. Não tens que te preocupar. Vais ver que tem um aspecto tranquilo e que até parece estar a dormir.

Ela tranquilizou-o com um leve movimento de cabeça e estendeu-lhe a mão. Ele apertou-lha rapidamente.

Sê corajosa, querida.

Enquanto seguia o superintendente, disse-lhe com a sua voz meiga:

Deve achar-me muito cobarde, superintendente. Mas, quando morreram todos lá de casa... e só nós escapámos... naquela noite terrível em Londres...

Ele replicou delicadamente:

Compreendo, Mrs. Cloade. Sei que passou por uma terrível experiência nesse bombardeamento em que o seu marido morreu. Mas, na verdade, será apenas um minuto ou dois.

A um sinal de Spence, o lençol foi puxado para baixo. Rosaleen olhou para o homem que se dissera Enoch Arden. Spence pusera-se discretamente de lado, mas estudava-a atentamente.

Rosaleen contemplou o morto com curiosidade, como que espantada não denunciou o menor sobressalto, não evidenciou qualquer sinal de emoção ou de reconhecimento; limitou-se a olhá-lo com espanto. Depois, muito calmamente, fez o Sinal-da-Cruz.

Paz à sua alma disse. Nunca tinha visto esse homem. Não sei quem era.

Spence pensou «Ou é uma das melhores actrizes que tenho visto ou está a falar verdade».

Mais tarde, Spence telefonou a Rowley Cloade.

A viúva já cá veio anunciou. Afirma que não é Robert Underhay e que nunca o tinha visto antes. Por conseguinte, isto põe fim àquilo.

Houve uma pausa, que Rowley quebrou, dizendo:

Acha que sim?

Estou convencido que qualquer júri lhe dará crédito... à falta de provas em contrário, já se sabe.

Sim disse Rowley e desligou.

Depois, sobrolho franzido, pegou na lista telefónica não na da terra, mas na de Londres. O dedo indicador desceu metodicamente ao longo das páginas marcadas com a letra P. Pouco depois, encontrou o que procurava.

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LIVRO II

Capítulo 1

Hercule Poirot dobrou cuidadosamente o último jornal dos que mandara comprar a George. A informação neles publicada era bastante escassa. Segundo a opinião médica, o crânio do homem fora fracturado por uma série de golpes. O inquérito sofrera um adiamento de quinze dias. Pedia-se a todas as pessoas que soubessem dar alguma informação acerca de um homem chamado Enoch Arden, que se presumia ter chegado pouco tempo antes da Cidade do Cabo, que se pusessem em contacto com o chefe da Polícia de Óastshire.

Poirot colocou os jornais num monte perfeito e entregou-se à meditação. Sentia-se interessado. Era possível que tivesse passado pelo primeiro parágrafo sem sentir interesse, se não tivesse recebido a visita recente de Mrs. Lionel Cloade. Essa visita recordara-lhe nitidamente os incidentes ocorridos nesse dia no clube, durante aquele ataque aéreo. Recordou-se muito distintamente da voz do major Porter, dizendo «É possível que um certo Mr. Enoch Arden surja em qualquer ponto, a umas mil milhas daqui e recomece vida nova».

Desejava agora, veementemente, conhecer mais coisas acerca desse homem chamado Enoch Arden, vítima de morte violenta, em Warmsley Vale.

Lembrou-se de que conhecia vagamente o superintendente Spence da Polícia de Óastshire e lembrou-se também de que o jovem Mellon não só não vivia muito longe de Warmsley Heath como também conhecia Jeremy Cloade.

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Estava a pensar em telefonar ao jovem Mellon quando George entrou a dizer que um certo Mr. Rowley Cloade gostaria de falar-lhe.

Aah! exclamou Hercule Poirot com satisfação.

Manda-o entrar.

Entrou um homem novo, bem parecido, de aspecto preocupado e parecendo sentir-se um tanto atrapalhado para começar a falar.

Bem, Mr. Cloade disse Poirot esperançosamente

em que posso ser-lhe útil?

Rowley Cloade olhou Poirot um tanto indecisamente. Os bigodes extravagantes, a elegância do fato, as polainas brancas e os sapatos bicudos de verniz, tudo isso incutia naquele rapaz uma vaga de hesitação.

Poirot percebeu isso perfeitamente e sentíu-se muito divertido.

Rowley Cloade começou muito lentamente:

Receio ter de explicar-lhe quem sou e tudo o mais. O meu nome não lhe diz nada...

Poirot interrompeu-o:

Pelo contrário, conheço perfeitamente o seu nome. Sabe, sua tia veio procurar-me na semana passada.

Minha tia?

Rowley ficou de boca aberta. Olhou pasmado para Poirot. Aquilo era por tal forma inesperado para o rapaz que Poirot pôs de parte a sua primeira suspeita de que as duas visitas tivessem a mesma origem. Por um momento, pareceu-lhe uma coincidência notável que dois membros da família Cloade tivessem resolvido consultá-lo dentro de um período de tempo tão curto, mas, no segundo imediato, compreendeu que não se tratava de coincidência, mas simplesmente de uma sequência natural, resultante de uma mesma causa inicial.

Deduzo que Mrs. Lionel Cloade é sua tia. Rowley pareceu ainda mais surpreendido. Perguntou com a maior incredulidade:

A tia Kathie? Certamente... refere-se a... Mrs. Jeremy Cloade?

Poirot abanou a cabeça.

Mas que diabo podia a tia Kathie... Poirot murmurou discretamente:

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Veio procurar-me, creio eu, guiada por uma indicação espírita.

Oh, meu Deus! exclamou Rowley. Pareceu aliviado e divertido. Acrescentou como desejando tranquilizar Poirot. Sabe, é absolutamente inofensiva.

Admira-me disse Poirot.

Que quer dizer?

Existe... ou existiu já... alguém absolutamente inofensivo?

Rowley olhou-o, pasmado. Poirot suspirou:

Veio procurar-me para pedir-me alguma coisa?... Sim? animou-o, gentilmente.

O rosto de Rowley voltou a adquirir uma expressão preocupada.

Receio que seja uma história bastante longa... Poirot também receava o mesmo. Muito sagazmente,

calculava que Rowley Cloade não fosse do género de pessoa que aborda rapidamente o ponto essencial de um assunto. Recostou-se na cadeira e semicerrou os olhos, enquanto Rowley começava:

Como sabe, meu tio era Gordon Cloade...

Sei tudo a respeito de Gordon Cloade declarou Poirot.

Bom. Então, não preciso de explicar tudo. Casou-se umas semanas antes de morrer... com uma jovem viúva chamada Underhay. Desde que ele morreu, ela tem vivido em Warmsley Vale... ela e um irmão. Todos nós julgávamos que o seu primeiro marido tivesse morrido com febres, em África. Mas agora parece que não foi assim.

Ah! Poirot endireitou-se na cadeira. E o que o levou a essa suspeita?

Rowley relatou-lhe a chegada de Mr. Enoch Arden a Warmsley Vale.

Talvez tenha lido nos jornais...

Li, sim cooperou Poirot.

Rowley prosseguiu. Descreveu a primeira impressão que Arden lhe causara, a sua visita ao «Stag», a carta que recebera de Beatrice Lippincott e, finalmente, a conversa que esta surpreendera.

Evidentemente conjecturou Rowley que não se pode ter uma certeza do que ela ouviu realmente. Pode ter exagerado um pouco... ou até ouvido mal.

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Ela contou isso à polícia?

Rowley respondeu que sim, com um gesto de cabeça.

Eu disse-lhe que achava preferível que o fizesse.

Não compreendo muito bem... perdoe-me... por que veio procurar-me, Mr. Cloade? Quer que eu investigue esse... crime? Porque trata-se de um crime, presumo.

Oh, não, meu Deus! exclamou Rowley. Não quero nada disso. Isso é uma tarefa que compete à polícia. Foi assassinado, não há dúvida. Não, o que eu procuro, é descobrir quem era o homem.

Os olhos de Poirot semicerraram-se.

Quem pensa que fosse, Mr. Cloade?

Bem, quero dizer... Enoch Arden não é um nome. É uma citação. Tennyson. Fui consultá-lo. Um tipo que regressa e descobre que a mulher está casada com outro homem.

Então, julga disse Poirot calmamente que Enoch Arden era o próprio Robert Underhay?

Rowley respondeu prudentemente:

Bem, podia ter sido... quero dizer, com a mesma idade, aspecto e tudo o mais. Evidentemente que considerei o caso repetidas vezes com Beatrice. Como é natural, não consegue lembrar-se exactamente do que eles disseram. O tipo disse que Robert Underhay estava numa má situação, que andava com a saúde muito em baixo e que precisava de dinheiro. Ora, podia muito bem estar a falar de si próprio, não acha? Parece ter dito qualquer coisa que significasse não convir a David Hunter que Underhay aparecesse em Warmsley Vale... dando um pouco a impressão de que estava lá sob um falso nome.

Que prova de identificação se apresentou no inquérito?

Rowley sacudiu a cabeça.

Nada de definitivo. Apenas as pessoas do «Stag» que declararam ser o mesmo homem que ali fora instalar-se e se registara sob o nome Enoch Arden.

E documentos pessoais?

Não tinha nenhuns.

O quê? Poirot endireitou-se com surpresa. Nenhum papel de qualquer espécie?

Nenhum absolutamente.

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Isso é muito interessante comentou Poirot. Sim, muito interessante.

Rowley prosseguiu:

David Hunter, que é o irmão de Rosaleen Cloade, fora procurá-lo na noite imediata à da sua chegada. Segundo o que declarou à polícia, recebera uma carta dele, dizendo que fora amigo de Robert Underhay e que estava em má situação; que, a pedido da irmã, fora ao «Stag» procurar o sujeito e lhe dera cinco libras. Foi isto o que ele contou e é de crer que tencione sustentá-lo! Evidentemente que a polícia continua embaraçada acerca do que Beatrice ouviu.

David Hunter afirma que antes disso nunca vira o homem?

É o que ele diz. Seja como for, estou convencido de que Hunter nunca conheceu Underhay.

E Rosaleen Cloade?

A polícia pediu-lhe que fosse ver o corpo, por poder dar-se o caso de conhecer o homem. Mas ela declarou-lhes que lhe era completamente desconhecido.

Eh bien! exclamou Poirot. Então, isso responde à sua pergunta!

Sim? perguntou Rowley, confuso. Não vejo como. Se o falecido é Underhay, nesse caso, Rosaleen nunca foi mulher de meu tio e não tem direito a um centavo que seja do seu dinheiro. Julgo que, nessas circunstâncias, ela o reconheceria?

Não acredita nela?

Não acredito em nenhum deles.

Certamente que há muitas pessoas que podem dar a certeza se o morto é ou não Underhay.

Não me parece fácil. Aqui tem o que desejo que faça. Descubra-me alguém que conheça Underhay. Aparentemente, neste país, não tem parentes... e foi sempre um tipo de homem solitário e bicho-do-mato. Suponho que haja antigos criados... amigos... alguém... mas a guerra destruiu tudo e dispersou as pessoas. Eu não sei como começar o trabalho... e, no fim de contas, também não tenho tempo. Sou um lavrador... e luto com falta de pessoal.

Por quê eu? perguntou Hercule Poirot. Rowley pareceu embaraçado.

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Nos olhos de Poirot brilhou um leve fulgor.

Indicação espírita? murmurou.

Oh, valha-o Deus! exclamou Rowlley, horrorizado. Para falar com franqueza hesitou ouvi um sujeito meu conhecido falar de si... dizer que, neste género de coisas, o senhor era um mágico. Não sei quais sejam os seus honorários... elevados, suponho... estamos um pouco em baixo, mas, creio que entre nós todos será possível conseguirmos pagá-los. No caso de querer tomar conta do caso, está claro.

Hercule Poirot respondeu lentamente:

Sim, julgo que talvez possa ajudá-lo. Voltou-lhe aquela lembrança, uma lembrança muito precisa e definitiva. O maçador do clube, o ruído dos jornais, a voz monótona...

O nome... ouvira o nome... ocorrer-lhe-ia daí a pouco. E, se assim não sucedesse, poderia perguntá-lo a Mellon... Não, já se lembrava. Porter, major Porter.

Hercule Poirot pôs-se de pé.

Quer cá voltar esta tarde, Mr. Cloade?

Bem... não sei. Sim, suponho que sim. Mas certamente que não pode fazer nada num espaço de tempo tão curto!

Fitava Poirot com temor respeitoso-, com incredulidade. Poirot não teria sido humano se pudesse ter resistido à tentação de ostentar os seus méritos. Com as lembranças de um brilhante passado no espírito, declarou solenemente:

Tenho os meus méritos, Mr. Cloade.

Era nitidamente a coisa mais indicada para dizer. A expressão de Rowley tornou-se profundamente respeitosa.

Sim... certamente... realmente... não sei como os senhores fazem essas coisas.

Poirot não o elucidou. Quando Rowley se retirou, sentou-se e escreveu um pequeno bilhete. Entregou-o a George recomendando-lhe que o levasse ao Coronation Club e esperasse por uma resposta.

Esta foi altamente satisfatória. O major Porter enviava cumprimentos a M. Hercule Poirot e dizia que teria muito gosto em recebê-lo e ao seu amigo, nessa tarde, no n.° 79 da Edgeway Street, em Campden Hill.

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Às quatro horas e meia, Rowley Cloade voltou a aparecer.

Alguma novidade, M. Poirot?

Certamente, Mr. Cloade. Vamos agora procurar, um velho amigo do capitão Robert Underhay.

Como? Rowley estava boquiaberto. Fitava Poirot com o espanto que um rapazinho mostra quando um prestidigitador tira coelhos de dentro de um chapéu. Mas é incrível! Não compreendo como consegue fazer essas coisas... foi apenas em poucas horas.

Poirot agitou uma mão suplicante e procurou assumir um ar modesto. Não fazia a mínima tenção de revelar a simplicidade com que realizara essa habilidade. Agradava à sua vaidade impressionar aquele ingénuo Rowley.

Os dois homens saíram juntos e, chamando um táxi, dirigiram-se para Campden Hill.

O major Porter ocupava o primeiro andar de uma casa velha e modesta. Recebeu-os uma mulher alegre e de faces vermelhas que os levou lá acima. Entraram num quarto quadrado com estantes em toda a volta e com algumas gravuras desportivas, bastante más. Sobre o soalho viam-se dois tapetes uns bons tapetes com uma encantadora tonalidade pálida, mas já muito coçados. Poirot reparou que a parte central do soalho apresentava um aspecto novo e lustroso em contraste com o espaço à volta do quarto, velho e raspado. Percebeu então que, naquele sítio, houvera, até há pouco tempo, outros tapetes em melhor estado tapetes que, nesses dias, valiam bom dinheiro. Olhou para o homem que se perfilava junto à chaminé, no seu fato de bom corte, mas coçado. Poirot calculou que para o major Porter, oficial do exército aposentado, a vida era muito dura. Os impostos e o aumento de custo da vida dificultavam terrivelmente a existência dos antigos «cavalos de batalha». Contudo, havia algumas coisas a que o major Porter se apegaria até ao fim. Por exemplo, a sua assinatura do clube.

O major Porter falava aos sacões:

Receio não me lembrar de lhe ter sido apresentado, M. Poirot. No clube, diz? Há uns dois anos? Conheço o seu nome, evidentemente.

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Este disse Poirot é Mr. Rowland Cloade.

O major Porter baixou a cabeça, num cumprimento.

Muito prazer disse. Lamento não poder oferecer-lhes um cálice de Xerez. A verdade é que o meu comerciante de vinhos perdeu a sua provisão com os bombardeamentos. Mas tenho gin. Sempre o achei uma mistela. Ou preferem cerveja?

Aceitaram cerveja. O major Porter estendeu-lhes a cigarreira.

Fuma?

Poirot aceitou um cigarro. O major raspou um fósforo e acendeu o cigarro de Poirot.

Não fuma, bem sei disse o major a Rowley. Incomoda-o que acenda o meu cachimbo?

Acendeu-o depois de o limpar e soprar muitas vezes.

Ora, agora disse o major, depois de cumpridos todos esses preliminares digam-me o que os trouxe até cá?

Olhou para um e para outro. Poirot respondeu:

Já leu talvez no jornal a notícia da morte de um homem em Warmsley Vale?

Porter sacudiu negativamente a cabeça.

É possível, mas não me recordo.

Chamava-se Arden. Enoch Arden. Porter continuou a sacudir a cabeça.

Foi encontrado na estalagem do «Stag» com a nuca arrombada.

Porter franziu o sobrolho.

Deixe-me ver... sim, li qualquer coisa a esse respeito, creio eu... há alguns dias.

Isso. Tenho aqui uma fotografia... é uma fotografia de jornal e não muito nítida, receio! Gostaríamos de saber, major Porter, se já alguma vez tinha visto esse homem?

Estendeu-lhe a melhor reprodução da cara do morto que conseguira arranjar.

O major Porter pegou-lhe e olhou-a de sobrolho franzido.

Um momento o major tirou os óculos, ajustou-os ao nariz e examinou melhor a fotografia... depois teve um ligeiro sobressalto.

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Valha-me Deus! Cos diabos! exclamou.

Reconhece-o, major?

Certamente que o reconheço. É Underhay... Robert Underhay.

Tem a certeza? na voz de Rowley palpitava o triunfo.

Certamente que sim. Robert Underhay! Reconhecê-lo-ia em qualquer lado.

Capítulo 2

O telefone tocou e Lynn foi atendê-lo. Soou a voz de Rowley.

Lynn?

Rowley?

A voz da rapariga parecia desanimada. Como tens passado? Não te tenho visto, nestes últimos dias.

Oh, bem... há muito trabalho... compreendes. Andar de um lado para o outro com um cesto, esperar pelo peixe, estar na bicha para arranjar um bocado de bolo, que no fim sabe mal... todas essas coisas... O arranjo da casa.

Preciso de ver-te. Tenho uma coisa a dizer-te.

Que espécie de coisa? Rowley soltou um rizinho.

Boas notícias. Vem ter comigo ao Rolland Copse.

Boas notícias? Lynn pousou o auscultador no descanso. O que seriam boas notícias para Rowley Cloade? Finanças? Teria vendido aquele novilho por melhor preço do que esperara?

Devia ser mais do que isso, pensava. Enquanto subia o campo em direcção a Rolland Copse, Rowley deixou o tractor e veio ao seu encontro.

Olá, Lynn.

Mas Rowley... pareces... diferente! Ele riu-se.

Creio que sim. A nossa sorte mudou, Lynn!

Que queres dizer?

Lembras-te do velho Jeremy se ter referido a um certo Hercule Poirot?

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Lynn franziu a testa, procurando recordar-se.

Sim, lembro-me realmente de qualquer coisa...

Foi há bastante tempo. Estávamos ainda em guerra. Estavam naquele mausoléu do clube e havia um ataque aéreo.

E então? perguntou Lynn impacientemente.

Um tipo com roupas estranhas... Um tipo francês... ou belga. Um tipo estranho, mas boa pessoa.

Lynn franziu o sobrolho.

Não era... um detective?

Exactamente. Bem, sabes, aquele tipo que foi assassinado no «Stag»... não te disse nada, mas tinha cá uma ideia de que era possível que fosse o primeiro marido de Rosaleen Cloade.

Lynn riu-se.

Simplesmente porque se chamava Enoch Arden? Que ideia absurda!

Não é tão absurda como isso, minha filha! O velho Spence levou Rosaleen a vê-lo. E ela jurou que não era o seu marido.

Por conseguinte, a ideia foi posta de lado?

Ia sendo disse Rowley mas não o foi por minha causa.

Por tua causa? Que fizeste?

Fui procurar esse Hercule Poirot. Disse-lhe que precisávamos de outra opinião. Poderia descobrir alguma pessoa que tivesse realmente conhecido Robert Underhay? Palavra de honra, esse tipo é absolutamente mágico! Tal como tirar coelhos de dentro de um chapéu. Apresentou em poucas horas um tipo que era o melhor amigo de Underhay. Um velhote chamado Porter Rowley calou-se. Depois voltou a rir com a nota de excitação que surpreendera e sobressaltara Lynn. Agora, guarda segredo disto, Lynn. O superintendente fez-me jurar que guardaria segredo... mas gostaria que tu soubesses. O morto é Robert Underhay.

O quê? Lynn deu um passo para trás. Fitou Rowley, perturbada.

O próprio Robert Underhay. Porter não teve a mínima dúvida. Portanto, como vês, Lynn a voz de Rowley elevou-se excitadamente nós ganhámos! No

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fim de contas, ganhámos! Derrotámos esses malditos malandros.

Que malditos malandros?

Hunter e a irmã. Estão batidos. Rosaleen já não fica com o dinheiro de Gordon. Nós é que o recebemos. É nosso! O testamento que Gordon fez antes de casar-se com Rosaleen é ainda válido e divide o dinheiro entre nós. Eu recebo um quarto. Compreendes? Visto que o seu marido estava vivo quando ela casou com Gordon, ela nunca esteve casada com Gordon!

Tens... tens a certeza do que estás a dizer?

Ele fitou-a e pela primeira vez pareceu levemente embaraçado.

Certamente que tenho! É elementar. Tudo agora está bem. Exactamente como ele queria. Tudo está tal e qual como se esse precioso par nunca se tivesse intrometido.

Tudo está tal e qual... Mas, pensava Lynn, não se podia passar uma esponja por cima de tudo quanto se tinha passado. Perguntou lentamente:

Que vão eles fazer?

Hem? ela compreendeu que Rowley ainda não considerara essa pergunta. Não sei. Voltarão para o sítio de onde vieram, suponho. Sabes, acho que...ela via-o considerar o caso lentamente. Sim, acho que devíamos fazer qualquer coisa por ela. Está claro que se casou com Gordon de inteira boa fé. Creio que está absolutamente convencida de que o primeiro marido estava morto. Não é culpa dela. Sim, temos de fazer alguma coisa por ela... dar-lhe uma pensão decente. Podemos arranjar-lha entre nós todos.

Gostas dela, não gostas? perguntou Lynn.

Acho que sim Rowley considerou. Sob certo aspecto, sim. É uma pequena agradável. Conhece uma vaca logo que a vê.

Eu não disse Lynn.

Oh, aprenderás assegurou-lhe Rowley, gentilmente.

E... David? inquiriu Lynn. Rowley tomou um ar ameaçador.

Que vá para o Inferno, esse David! Seja como for,

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o dinheiro nunca foi dele. Ele limitou-se a aparecer e a viver à custa da irmã.

Não, Rowley, não foi assim... não foi. Ele não é um «chupista». É... é um aventureiro, talvez...

É um criminoso! Ela inquiriu ofegante:

Que queres dizer?

Ora, quem julgas tu que matou Underhay? Lynn gritou:

Não acredito! Não acredito!

Certamente que o matou! Quem mais podia tê-lo feito? Ele esteve cá, nesse dia. Chegou no comboio das cinco e meia. Eu tinha ido buscar umas coisas à estação e vi-o de relance, ao longe.

Ele voltou para Londres, nessa noite disse Lynn com vivacidade.

Depois de ter assassinado Underhay disse Rowley triunfantemente.

Não deves dizer essas coisas, Rowley. A que horas foi Underhay assassinado?

Bem... não sei exactamente Rowley abrandou o seu entusiasmo... considerou. Não creio que o saibamos antes do inquérito de amanhã. Foi entre as nove e as dez, calculo eu.

David apanhou o comboio das nove e vinte para Londres.

Ouve cá, Lynn, como sabes isso?

Eu... encontrei-o... ia a correr para apanhá-lo.

Como sabes que conseguiu apanhá-lo?

Porque mais tarde telefonou-me de Londres. Rowley gritou colericamente:

Por que diabo havia de telefonar-te? Ouve cá, Lynn, macacos me mordam se...

Que importa isso, Rowley? Seja como for, isso prova que apanhou o comboio.

Teve imenso tempo para matar Underhay e para depois apanhar o comboio.

Mas, se foi assassinado depois das nove, não teve.

Ora, pode ter sido assassinado pouco antes das nove.

Mas a voz de Rowley era um pouco hesitante. Lynn semicerrou os olhos. Seria essa a verdade?

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Quando, sem fôlego, a praguejar, David emergira do souto, teria sido um homem que acabara de assassinar um outro que a tomara nos braços? Recordava-se da sua estranha excitação... da ousadia da sua atitude. Seria dessa forma que o crime o afectaria? Talvez. Tinha de admiti-lo. Seria capaz de matar um homem que nunca lhe fizera qualquer mal... um fantasma surgido do passado? Um homem cujo único crime era estar entre Rosaleen e uma grande herança... entre David e a possibilidade de desfrutar do dinheiro de Rosaleen.

Por que havia de matar Underhay? perguntou num murmúrio.

Meu Deus, ainda o perguntas? Acabei de dizer-to! O facto de Underhay estar vivo significa que nós recebemos o dinheiro de Gordon! Seja como for, Underhay fez chantagem com ele.

Ah, assim explicava-se melhor. David podia matar um chantagista... Não seria exactamente dessa maneira que lidaria com um chantagista? Sim, isso ajustava-se à ideia que fazia dele. A pressa de David, a sua excitação... o seu amor feroz, quase irado. E mais tarde renunciando-a. «É melhor eu fugir...» sim, ajustava-se.

Depois de terem caminhado um bom pedaço, ouviu a voz de Rowley perguntar:

O que se passa, Lynn? Sentes-te bem?

Certamente que sim.

Então, pelo amor de Deus, não estejas com esse ar tão mal-humorado virou-se e o seu olhar desceu a encosta até Long Willows. Graças a Deus, agora poderemos modernizar bastante a casa... vou dotá-la de máquinas eléctricas para teres menos trabalho com o serviço... vou pô-la digna de receber-te. Não quero que te sintas mal nela, Lynn.

Devia ser aquele o seu lar... aquela casa. O seu lar e o de Rowley...

E uma manhã, às oito horas, David balançaria, suspenso pelo pescoço, até morrer...

Capítulo 3

Com um rosto pálido, mas resoluto, e olhos perscrutadores, David pousou as mãos nos ombros de Rosaleen.

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Tudo correrá bem, está descansada, tudo correrá bem. Mas não podes perder a calma e farás exactamente o que eu te disser.

E se eles te levarem? Tu disseste isso! Disseste que podiam levar-te!

Sim, é uma possibilidade. Mas não seria por muito tempo. A menos que percas a cabeça.

Farei o que me disseres, David.

Boa menina! Tudo quanto tens a fazer, Rosaleen, é sustentares a tua história. Continua a dizer que o morto não é o teu marido Robert Underhay.

Obrigar-me-ão a dizer coisas que não quero.

Não, não obrigarão nada. Correrá tudo bem, verás.

Vai correr mal... tem corrido sempre mal. Ficámos com dinheiro que não nos pertence. Passo noites em claro a pensar nisso, David. Ficámos com o que não nos pertence. Deus está a castigar-nos pela nossa maldade.

Ele olhou-a de sobrolho franzido. Ela estava a manifestar indícios de loucura... sim, não havia a menor dúvida. Houvera sempre esse resíduo religioso. A sua consciência nunca se sentira inteiramente acalmada. Portanto, a menos que fosse muitíssimo afortunado, ela acabaria por sucumbir. Bem, havia apenas uma coisa a fazer.

Ouve, Rosaleen pediu-lhe suavemente. Queres que me enforquem?

Ela arregalou os olhos, horrorizada.

Oh, David, tu não... eles não podem...

Há apenas uma pessoa que pode mandar-me para a forca... és tu. Se, por uma única vez que seja, admitires por um olhar, por um sinal ou por uma palavra que esse morto era Underhay, lanças-me a corda à volta do pescoço. Compreendes?

Sim, isso entrara-lhe na cabeça. Olhou-o com uns olhos esgazeados, horrorizados.

Sou tão estúpida, David.

Não és, não. Em qualquer dos casos, não precisas de ser esperta. Terás apenas de jurar solenemente que esse morto não é teu marido. És capaz disso?

Ela respondeu-lhe com um sinal de cabeça afirmativo

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Finge-te estúpida, se te apetecer. Finge não compreenderes bem o que eles te perguntarem. Isso não fará mal nenhum. Mas mantém-te firme nos pontos que te indiquei. Gaythorne defender-te-á. É um advogado criminal muito hábil, foi por isso que o arranjei. Estará presente no inquérito e livrar-te-á de qualquer embaraço. Mas até com ele tens de insistir na tua história. Por amor de Deus, não tentes ser inteligente ou pensar que podes ajudar-me com qualquer iniciativa tua.

Está descansado, David. Farei exactamente o que me dizes.

Boa pequena. Quando tudo estiver acabado, ir-nos-emos embora... para o Sul da França... para a América. Entretanto, cuida da tua saúde. Não passes as noites acordada afligindo-te e enervando-te. Toma esses soporíferos que o Dr. Cloade te receitou... brometo ou lá o que é. Toma o conteúdo de um pacotinho todas as noites, tem ânimo e lembra-te de que se aproxima o bom tempo!

Agora... olhou para o relógio de pulso são horas de comparecer no inquérito. Está marcado para as onze.

Percorreu com o olhar a comprida e bonita sala de estar. Beleza, conforto, luxo... Gozara tudo isso. Uma bela casa em Furrowbank. Talvez isso fosse o Adeus...

Metera-se numa alhada... isso era certo. Mas nem agora o lamentava. E quanto ao futuro... ora, continuaria a arriscar-se «Devemos aproveitar a corrente, quer favoreça ou prejudique as nossas aventuras».

Olhou para Rosaleen. Ela observava-o com uns grandes olhos suplicantes e intuitivamente ele compreendeu o que ela queria.

Não o matei, Rosaleen disse suavemente. Juro-o por todos os santos do calendário!

Capítulo 4

O inquérito teve lugar no Cornmarket.

O coroner, Mr. Pebmarsh, era um homem baixo e gorducho, com óculos e uma considerável noção da sua importância.

A seu lado, estava sentado o corpulento superintendente

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Spence. Num discreto assento, achava-se um homem baixo, com aspecto estrangeiro e um grande bigode negro. A família Cloade: os Jeremy Cloades, os Lionel Cloades, Rowley Cloade, Mrs. Marchmont e Lynn... estavam lá todos. O major Porter estava sentado, à parte, inquieto e contrafeito. David e Rosaleen foram os últimos a chegar. Sentaram-se também à parte.

O coroner pigarreou e, olhando para cada uma das nove sumidades locais, que constituíam o júri, começou os actos judiciais.

O polícia Peacock...

O sargento Vane...

O Dr. Lionel Cloade...

Estava a atender profissionalmente um paciente no «Stag» quando Gladys Aitkin foi ter consigo. Que disse ela?

Informou-me de que o ocupante do quarto n.° 5 estava estendido no chão, morto.

E em consequência disso, subiu ao n.° 5?

Sim.

Quer descrever o que encontrou?

O Dr. Cloade acedeu. O corpo de um homem... de bruços... ferimentos na cabeça... na nuca... tenazes.

Foi de opinião que os ferimentos tivessem sido provocados com as tenazes em questão?

Alguns deles foram-no, incontestavelmente.

E teriam sido desferidos vários golpes?

Sim. Não procedi a um exame minucioso porque achei que a polícia devia ser chamada antes de se tocar no corpo ou alterar-lhe a sua posição.

Muito bem. O homem estava morto?

Sim. Estava-o, há várias horas.

Na sua opinião, há quantas?

Hesitou em dar uma resposta categórica. Pelo menos, onze horas... mas também é possível que estivesse há treze ou catorze... digamos entre as sete e meia e as dez e meia da noite anterior.

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Obrigado, Mr. Cloade.

Depois foi a vez do cirurgião da polícia... que forneceu uma descrição completa e técnica das lesões. Havia um ferimento e um inchaço no maxilar inferior e

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na base da nuca tinham sido desferidos cinco ou seis golpes, alguns dos quais depois da morte.

Foi um acto de requintada selvajaria?

Exactamente.

Teria sido requerida muita força para infligir esses golpes?

Força, precisamente, não. As tenazes, agarradas pela extremidade dos braços, podiam ser vibradas facilmente sem grande esforço. A pesada esfera de aço que constitui a cabeça das tenazes, é uma arma formidável. Qualquer pessoa, ainda que fraca, podia ter causado essas lesões, isto é, se fosse levada a fazê-lo num frenesi de excitação.

Obrigado, doutor.

Seguiram-se pormenores acerca do estado do corpo... bem alimentado, saudável, com a idade aproximada de quarenta e cinco anos. Nenhuns sinais de doença... coração, pulmões, etc., tudo bom.

Beatrice Lippincott relatou a chegada do falecido. Registara-se como Enoch Arden, proveniente da Cidade do Cabo.

O falecido apresentou uma caderneta de racionamento?

Não, senhor.

Pediu-lhe alguma?

A princípio, não. Ignorava por quanto tempo ia demorar-se.

Mas chegou a pedir-lha?

Sim, senhor. Chegou na sexta-feira e, no sábado, disse-lhe que, no caso de tencionar demorar-se mais do que cinco dias, fizesse o favor de dar-me a sua caderneta de racionamento.

Que respondeu ele a isso?

Prometeu dar-ma.

Mas não chegou a fazê-lo?

Não.

Não lhe disse que a tinha perdido? Ou que não tinha nenhuma?

Oh, não. Disse-me apenas: «Vou tratar disso e dar-lha.»

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Miss Lippincott, na noite de sábado, surpreendeu por acaso uma conversa?

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Com uma profusão de explicações embaraçosas para justificar a sua necessidade de ir ao n.° 4, Beatrice Lippincott contou-lhe o que ouvira. O coroner encaminhava-a astutamente.

Obrigado. Mencionou esta conversa a alguém?

Sim referi-a a Mr. Rowley Cloade.

Por que a contou a Mr. Rowley Cloade?

Achei que devia sabê-lo. Beatrice corou.

Um homem alto e magro, Mr. Gaythorne, levantou-se e pediu licença para fazer uma pergunta.

No decurso da conversa ocorrida entre o defunto e Mr. David Hunter o falecido chegou alguma vez a dizer que era Robert Underhay?

Não... não...

Mas falou de «Robert Underhay» como se Robert Underhay fosse uma outra pessoa?

Sim... sim...

Obrigado, senhor coroner, era tudo quanto eu queria esclarecer.

Beatrice Lippincott voltou para o seu lugar e foi a vez de Rowley Cloade.

Confirmou que Beatrice lhe tinha-repetido a história e depois relatou a sua entrevista com o falecido.

Foram as últimas palavras que lhe dirigiu: «Não creio que prove isso sem a minha cooperação», sendo «Isso» o facto de Robert Underhay ainda estar vivo?

Foi isso o que ele disse, sim. E riu-se.

Riu-se? Que significado atribuiu a essas palavras?

Bem... pensei que tentava levar-me a fazer-lhe uma oferta, mas depois disso, comecei a pensar...

Sim, Mr. Cloade... mas o que o senhor pensou em seguida não tem muita importância. Deveremos considerar que, em resultado dessa entrevista, o senhor foi procurar uma pessoa que conhecesse o falecido Robert Underhay? E que, com uma certa ajuda, foi bem sucedido?

Rowley respondeu que sim com um aceno de cabeça e corroborou:

Exactamente.

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A que horas deixou o defunto?

Julgo que pelas nove menos cinco.

O que o levou a fixar essa hora?

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Quando ia na rua, ouvi o bater das nove horas através de uma janela aberta.

O defunto disse a que horas esperava esse cliente?

Disse: «De um momento para o outro.»

Não mencionou qualquer nome?

Não.

David Hunter!

Houve apenas um leve murmúrio quando os habitantes de Warmsley Vale estenderam os pescoços para verem o homem novo, magro e alto, de aspecto sombrio, que olhou desafiadoramente para o coroner.

Os preliminares realizaram-se rapidamente. O coroner continuou:

Foi procurar o defunto na noite de sábado?

Sim. Recebi uma carta dele pedindo-me auxílio e dizendo que conhecera em África o primeiro marido de minha irmã.

Tem essa carta?

Não, não guardo cartas.

Ouviu o relato feito por Beatrice Lippincott da sua conversa com o defunto. É um relato verdadeiro?

Absolutamente falso. O defunto referiu-se ao seu conhecimento de meu falecido cunhado, lastimou a sua triste sorte e ter ficado arruinado e pediu um certo auxílio financeiro que, como é costume, estava absolutamente certo de poder pagar.

Disse-lhe que Robert Underhay ainda estava vivo?

David sorriu.

Certamente que não. Disse: «Se Robert ainda fosse vivo, sei que me ajudaria.»

Isso difere muito do que Beatrice Lippincott nos contou!

As pessoas que escutam às portas sentenciou David ouvem geralmente apenas uma parte do que se diz e frequentemente embrulham tudo em virtude de fornecerem os pormenores que lhes faltam com auxílio da sua fértil imaginação.

Beatrice agitou-se colericamente e exclamou:

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Eu nunca...

O coroner recomendou repreensivamente:

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Silêncio, por favor.

Mr. Hunter, voltou a procurar o defunto na noite de terça-feira?

Não, não procurei.

Ouviu Mr. Cloade dizer que o defunto esperava um visitante?

É possível que sim, mas, ainda que assim fosse, eu não era esse visitante. Já lhe tinha dado cinco libras. Achei que era mais do que o suficiente. Não havia qualquer prova de que tivesse conhecido Robert Underhay. Minha irmã, desde que, por morte do marido, herdou um largo rendimento, tem sido alvo de todos os «chupistas» das vizinhanças e até pedinchões desconhecidos.

Calmamente, percorreu com o olhar o grupo dos Cloades.

Mr. Hunter, quer dizer-nos onde esteve na noite de terça-feira?

Descubram-no! desafiou David.

Mr. Hunter! o coroner deu uma pancada na mesa. Acaba de dizer uma coisa muitíssimo insensata e imprudente.

Por que hei-de dizer-lhe onde estive e o que fiz? Tenho imenso tempo para isso se me acusarem de ter assassinado o homem.

Se persiste nessa atitude, é possível que o façamos mais cedo do que pensa. Reconhece isto, Mr. Hunter?

Inclinando-se para a frente, David pegou no isqueiro de ouro. O seu rosto denotava perturbação. Devolveu-o, dizendo lentamente:

Sim, é meu.

Quando o teve pela última vez?

Perdi-o... fez uma pausa.

Então, Mr. Hunter? a voz do coroner era branda. Gaythorne agitou-se dando a impressão de querer

falar, mas David foi mais rápido do que ele.

Tinha-o ainda na sexta-feira passada... de manhã. Não me lembro de tê-lo visto depois disso.

Mr. Gaythorne levantou-se.

Com licença, Mr. Coroner. Visitou o defunto na noite de sábado. Não poderia lá ter deixado o isqueiro?

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É possível respondeu David lentamente. Mas

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não me lembro de tê-lo visto depois de sexta-feira... acrescentou. Onde o encontraram? O coroner respondeu:

Trataremos disso mais tarde. Pode voltar para o seu lugar, Mr. Hunter.

David voltou lentamente para o seu lugar. Baixou a cabeça e segredou a Rosaleen:

O major Porter.

Tossicando e tartamudeando um pouco, o major Porter tomou lugar no estrado das testemunhas. Ficou ali, ostentando um aprumo militar, como se estivesse numa parada. Só o modo como humedecia os lábios denotava o intenso nervosismo de que estava possuído.

É George Douglas Porter, antigo major do Royal African Rifles? Sou.

Até que ponto conhecia bem Robert Underhay? Com uma voz de praça de armas, o major Porter

referiu lugares e datas.

Já viu o corpo do defunto?

Sim.

Pode identificar esse corpo?

Sim. É o corpo de Robert Underhay.

Um murmúrio de excitação perpassou pela sala.

Declara isso categoricamente e sem a mínima dúvida?

Declaro.

Não há qualquer possibilidade de estar enganado?

Nenhuma.

Obrigado, major Porter. Mrs. Gordon Cloade. Rosaleen levantou-se. Passou pelo major Porter que

a olhou com uma certa curiosidade. Ela nem sequer o olhou de relance.

Mrs. Cloade, a polícia levou-a a ver o corpo do defunto?

Ela estremeceu e respondeu:

Sim.

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Afirma ser o corpo de um homem completamente desconhecido?

Sim.

Regimento colonial britânico.

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Em vista do depoimento que o major Porter acabou de fazer, deseja desdizer ou rectificar o seu depoimento?

Não.

Continua a afirmar que o corpo não era o de seu marido, Robert Underhay?

Não era o corpo de meu marido. Era o de um homem que eu nunca tinha visto na minha vida.

Mas, Mrs. Cloade, o major Porter reconheceu-o definitivamente como sendo o do amigo Robert Underhay.

Rosaleen declarou inexpressivamente:

O major Porter está enganado.

Neste tribunal, não está sob juramento, Mrs. Cloade, mas é de esperar que o esteja, dentro de pouco tempo, num outro tribunal. Está então resolvida a declarar sob juramento que o corpo não é o de Robert Underhay, mas o de um homem que lhe é desconhecido?

Estou resolvida a jurar que não é o corpo de meu marido, mas o de um homem que me é inteiramente desconhecido.

A sua voz era clara e firme. Aguentou o olhar do coroner sem estremecer.

Pode ir sentar-se murmurou este. Depois, tirando o pince-nez, dirigiu-se ao júri. Encontravam-se ali para descobrir como esse homem morrera. Quanto a isso, poucas dúvidas podia haver. Não podia considerar-se a ideia de suicídio ou de acidente. Nem sequer podia haver a sugestão de homicídio. Restava apenas um veredicto assassínio premeditado. Quanto à identidade do morto, isso ainda não estava claramente esclarecido.

Tinham ouvido uma testemunha, um homem de carácter recto e de reconhecida probidade, em cuja palavra se podia confiar, afirmar que o corpo era o de um antigo amigo, Robert Underhay. Por outro lado, a morte de Robert Underhay, em África, com febres, fora comprovada ao que parecia de modo a satisfazer as autoridades locais e sem que se tivesse levantado qualquer objecção. Em contradição com o depoimento do major Porter, a viúva de Robert Underhay, agora Mrs. Cloade, afirmava que o corpo não era o de Robert Underhay. Eram pois dois depoimentos diametralmente opostos. Depois da questão de estabelecimento de identidade, teriam de decidir se

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havia qualquer prova que indigitasse a mão que cometera o crime. Podiam pensar que as provas indicavam uma certa pessoa, mas era necessário uma boa quantidade de provas para se poder decifrar qualquer caso... provas... motivo... e oportunidade. Era necessário que alguém tivesse visto essa pessoa na vizinhança da cena do crime e em altura apropriada. Se tal não se verificasse, o melhor veredicto indicava crime premeditado sem provas suficientes que indigitassem o criminoso. Um veredicto dessa natureza daria liberdade à polícia para proceder aos necessários inquéritos.

Depois, deu-lhes liberdade para que considerassem o seu veredicto.

Levaram três quartos de hora.

Entregaram um veredicto de assassínio premeditado, contra David Hunter.

Capítulo 5

Já calculava que o fizessem! disse o coroner apologeticamente.

Prevenção local! Mais comovedor do que lógico. Depois do inquérito, o coroner, o chefe da Polícia,

o superintendente Spence e Hercule Poirot reuniram-se em conferência.

Fez o possível consolou-o o chefe da Polícia.

É prematuro dizê-lo retorquiu Spence, franzindo o sobrolho. E isso deixa-nos embaraçados. Conhece M. Hercule Poirot? Devemos-lhe a presença de Porter.

O coroner disse amavelmente:

Tenho ouvido falar de si, M. Poirot.

Este fez uma tentativa mal sucedida de assumir um ar modesto.

M. Poirot está interessado no caso explicou Spence com um arreganhar de dentes.

Exactamente, é isso mesmo confirmou Poirot. Já o estava, antes de haver um caso.

E, em resposta aos seus olhares interessados, contou a estranha cena no clube em que, pela primeira vez, ouvira mencionar o nome de Robert Underhay.

Isto constitui um ponto adicional a favor de Porter

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quando o caso for a julgamento observou o chefe da Polícia pensativamente Underhay planeou realmente uma morte falsa... e falou em usar o nome de Enoch Ar den.

O chefe da Polícia murmurou:

Mas será isso aceitável como prova? Palavras proferidas por um homem que agora está morto?

Pode não ser aceitável como prova admitiu Poirot pensativamente mas levanta uma hipótese muito interessante e sugestiva.

O que nós queremos fez notar Spence não é sugestão, mas factos concretos. Alguém que tenha visto realmente David Hunter no «Stag» ou perto dele, na noite de terça-feira.

Deve ser fácil declarou o chefe da Polícia, de sobrolho franzido.

Se tivesse sido no meu país, teria sido bastante fácil disse Poirot. Há sempre um pequeno café onde alguém toma café, à noite... mas na provinciana Inglaterra! ergueu as mãos.

O superintendente concordou com um aceno de cabeça.

Algumas das pessoas estão nas tabernas e ficam aí até serem horas de fechar, ao passo que o resto da população fica dentro das suas casas a ouvir o noticiário das nove horas. Se aqui percorremos a rua principal entre as oito e meia e as dez horas, achamo-la completamente deserta. Nem vivalma!

Ele contou com isso? sugeriu o chefe da Polícia.

Talvez admitiu Spence. A sua expressão não era feliz.

Pouco depois, o chefe da Polícia e o coroner retiraram-se. Spence e Poirot ficaram sós.

O caso não lhe agrada, pois não? perguntou Poirot, compreensívamente.

Aquele rapaz preocupa-me confessou Spence. É do tipo que nunca se compreende quando estamos com eles. Quando estão absolutamente inocentes num assunto, procedem como se estivessem culpados. E quando são culpados... seríamos capazes de jurar que são uns anjos!

Acha-o culpado? perguntou Poirot.

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E o senhor? ripostou Spence. Poirot estendeu as mãos.

Confesso que me interessaria saber exactamente quais os dados que dispõe contra ele?

Não quer dizer legalmente? Quer dizer no campo das probabilidades?

Poirot respondeu afirmativamente com um movimento de cabeça.

Há o isqueiro começou Spence.

Onde o encontrou?

Debaixo do corpo.

Impressões digitais?

Nenhuma.

Ah! exclamou Poirot.

Sim concordou Spence, eu próprio também não me sinto muito satisfeito com isso. Além disso, o relógio do morto estava parado às nove e dez. Isto ajusta-se perfeitamente à opinião médica... e com a declaração de Rowley Cloade de que Underhay esperava de um momento para o outro o seu «cliente»... presumivelmente, esse «cliente» era quase exacto.

Poirot concordou com um meneio de cabeça.

Sim... é tudo muito nítido.

E para mim, aquilo de que não nos podemos esquecer, M. Poirot, é que ele é a única pessoa ele e a irmã que têm o espectro ou sombra de um motivo. Ou David Hunter assassinou Underhay... ou então Underhay foi assassinado por qualquer estranho que o seguiu até cá por qualquer razão que desconhecemos... e isso parece-me muito improvável.

Oh, de acordo, de acordo.

Bem vê, não há ninguém, em Warmsley Vale, que pudesse ter um motivo a não ser que, por uma coincidência, viva aqui alguém, além dos Hunters que tenha qualquer relação com o passado de Underhay. Eu nunca excluo as coincidências, mas não houve nenhum indício ou sugestão de qualquer coisa no género. O homem era um desconhecido para toda a gente com excepção desse irmão e irmã.

Poirot concordou com um movimento de cabeça.

Para a família Cloade, Underhay seria a luz dos seus olhos que devia ser conservada a todo o custo.

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Robert Underhay, vivo e com saúde, significa a certeza de uma grande fortuna a dividir entre eles.

Mon ami, tem de novo o meu entusiástico acordo. Robert Underhay vivo e com saúde, é do que a família Cloade precisava.

Então, voltamos ao mesmo ponto... Rosaleen e David Hunter são as duas únicas pessoas que têm um motivo. Rosaleen Cloade estava em Londres. Mas David, sabemo-lo, esteve nesse dia em Warmsley Vale. Chegou às cinco e meia à estação de Warmsley Heath.

Nesse caso temos um MOTIVO, escrito em maiúsculas e a certeza de que, às cinco e meia e daí para diante até uma hora não especificada, ele esteve no lugar.

Exactamente. Agora considere o relato de Beatrice Lippincott. Acredito nele. Ela escutou o que disse ter escutado, embora tivesse aumentado um pouco, como é humano.

Como é humano, exactamente.

À parte conhecer a rapariga, acredito-a porque não podia ter inventado certas coisas. Por exemplo, nunca antes ouvira falar em Robert Underhay. Por conseguinte, acredito no seu relato acerca do que se passou entre os dois homens e não no de David Hunter.

Também euapoiou Poirot.Deu-me a impressão de ser uma testemunha singularmente verídica.

Temos a confirmação de que a sua versão é verdadeira. Por que julga que o irmão e a irmã foram para Londres?

É essa uma das coisas que mais me tem interessado.

Ora, a posição do dinheiro é esta. Rosaleen Cloade dispõe apenas de uma renda vitalícia da fortuna de Gordon Cloade. Não pode tocar no capital... excepto, creio eu, em mil libras, aproximadamente. Mas as jóias, etc., pertencem-lhe. A primeira coisa que ela fez, ao regressar à capital, foi levar das peças mais valiosas à Bond Street e vendê-las. Queria obter rapidamente uma avultada quantia em dinheiro contado... por outras palavras, tinha de pagar a um chantagista.

Atribui isso a David Hunter?

Não é também da mesma opinião?

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Poirot abanou a cabeça.

O facto de haver chantagem, sim. Mas não a intenção de cometer o assassínio. Não podemos tirar essas duas conclusões, mon cher. Esse rapaz ou tencionava pagar ou planeava assassinar. Acaba de me apresentar dados comprovativos de que ele tencionava pagar.

Sim... sim, talvez seja assim. Mas pode ter mudado de ideias.

Poirot encolheu os ombros.

Conheço esse tipo disse, pensativo, o superintendente. É um tipo que serviu durante a guerra. É dotado de coragem física. Audacioso e temerariamente descuidado da sua segurança pessoal. O género capaz de enfrentar quaisquer forças superiores. O género capaz de ganhar-a Victory Cross embora muitas vezes seja póstuma. Sim, em tempo de guerra, um homem desses é um herói. Mas em paz... bem, em paz, tais homens acabam geralmente na prisão. Gostam da excitação e não podem portar-se bem, pouco se importando com a sociedade... e, finalmente, não têm qualquer consideração pela vida humana.

Poirot concordou com um aceno de cabeça.

Digo-lhe repetiu o superintendente que conheço o género.

Seguiram-se alguns minutos de silêncio.

Eh bien! exclamou Poirot por fim. Concordamos que temos aqui o tipo de um assassino. Mas é tudo. E isso não nos adianta.

Spence olhou-o com curiosidade.

Tem um grande interesse no caso, M. Poirot?

Sim.

Posso perguntar-lhe porquê?

Sinceramente Poirot estendeu as mãos não sei bem. Talvez porque, quando há dois anos me achava sentado, muito incomodado do estômago porque não gostava de ataques aéreos e não sou muito corajoso, embora me esforce por manter as boas aparências quando, estava eu a dizer, me achava sentado com uma desagradável sensação aqui Poirot abraçou expressivamente o estômago na sala de fumo do clube do meu amigo, estava zumbindo, a um canto, o elemento-maçador do clube, o major Porter, uma longa história a que ninguém

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prestava atenção; mas eu ouvia-o, porque desejava distrair a atenção das bombas e porque os factos que relatava me pareciam interessantes e sugestivos. Pensei com os meus botões que era possível que algum dia pudesse resultar qualquer coisa dessa situação que narrava pela centésima vez. E, de facto, agora resultou alguma coisa.

Aconteceu o inesperado, hem?

Pelo contrário corrigiu-o Poirot. O esperado é que aconteceu... o que em si é suficientemente notável.

Esperava assassínio? inquiriu Spence, cepticamente.

Não, não, não! Mas uma esposa torna a casar-se. Possibilidade de que o primeiro marido ainda esteja vivo? Está vivo. Pode aparecer? Aparece! Pode haver chantagem? Há chantagem! Possibilidade, por conseguinte, de que o chantagista seja reduzido ao silêncio? Mas foi, é reduzido ao silêncio!

Bem disse Spence, olhando para Poirot bastante duvidosamente. Suponho que estas coisas se ajustem bastante ao tipo. É uma espécie de crime vulgar... chantagem que resulta em assassínio.

Acha que é um caso interessante? Usualmente, não o é. Mas este é interessante, porque, compreende

disse Poirot placidamente, está tudo errado.

Tudo errado? Que quer dizer com tudo errado?

Nada está, como hei-de dizer, da forma acertada? Spence olhou-o pasmado.

O chefe-inspector Japp disse sempre observou

que o senhor tinha um espírito tortuoso. Quer dar-me um exemplo do que diz errado?

Bem, o morto, por exemplo, esse está errado. Spence abanou a cabeça.

Não sente isso? perguntou-lhe Poirot. Oh, bem, talvez eu seja um fantasista. Mas considere este ponto: Underhay chega ao «Stag»; escreve a David Hunter; este recebe essa carta na manhã seguinte... à hora do pequeno-almoço?

Sim, é isso. Admite ter recebido nessa altura uma carta de Arden.

Foi a primeira Intimação, não foi, da chegada de

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Underhay a Warmsley Vale? Qual é a primeira coisa que ele faz?... Manda a irmã para Londres!

Isso é perfeitamente compreensível alegou Spence. Quer o caminho desembaraçado, para tratar das coisas à sua maneira. Deve ter receado que a rapariga fraquejasse. Não se esqueça de que o espírito director é ele. Mrs. Cloade está-lhe inteiramente na mão.

Oh, sim, isso vê-se perfeitamente. Por conseguinte, expede-a para Londres e visita Enoch Arden. Temos um relato bastante exacto da sua conversa, feito por Beatrice Lippincott e a coisa que difere, uma milha como vocês dizem, é que David Hunter não tinha a certeza se o homem com quem estava a falar era ou não Robert Underhay. Suspeitava-o mas não o sabia.

Mas nisso não há nada de estranho, M. Poirot. Rosaleen Hunter casou-se com Underhay, na Cidade do Cabo, e foi com ele para a Nigéria. Hunter e Underhay nunca se conheceram. Por conseguinte, embora, como diz, Hunter suspeitasse que Arden era Underhay, não podia ter a certeza disso... porque nunca o vira.

Poirot olhou pensativamente para o superintendente Spence.

Então, não há nada que o impressione... pela sua singularidade? inquiriu.

Sei onde quer chegar. Por que não disse Underhay claramente que era Underhay? Bem, creio que isso também é compreensível. As pessoas respeitáveis que fazem negócios escuros preferem salvaguardar as aparências. Gostam de fazer as coisas de uma certa maneira que as não comprometa... não sei se compreende o que quero dizer. Não... não acho que isso seja muito extraordinário. Temos de dar desconto à natureza humana.

Sim disse Poirot, a natureza humana. Isso, creio eu, é talvez a verdadeira resposta ao motivo por que estou interessado neste caso. Contemplei demoradamente o tribunal do coroner, olhei para todas as pessoas, especialmente para os Cloades... tantos e, todavia, todos eles ligados pelo mesmo interesse comum e todos eles de personalidades tão diferentes, nos seus pensamentos e sentimentos; todos eles dependentes, durante muitos anos, do homem forte, o poderoso da família, Gordon Cloade. Não quero dizer, talvez, directamente dependentes.

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Todos eles tinham os seus meios independentes de existência- Mas tinham ido, devem ter-se, conscientemente ou inconscientemente, apoiado nele. £ o que acontece... pergunto-lhe isto, superintendenteo que acontece à hera quando o carvalho, à volta do qual trepa, foi abatido?

Bem, isso não é bem uma pergunta do meu ofício respondeu Spence.

Acha que não? Pois eu acho que sim. A personalidade, mon cher, não enfraquece. Fortalece-se. Pode também deteriorar-se. O que uma pessoa é na realidade, só se vê quando chega o momento de prová-lo, isto é, o momento em que se mantém de pé ou cai.

Não estou realmente a ver aonde quer chegar, M. Poirot. Spence parecia confundido. Seja como for, os Cloades agora ficarão bem colocados, uma vez que as formalidades legais estejam cumpridas.

Poirot lembrou-se que isso devia levar algum tempo.

Há ainda que provar que o depoimento de Mrs. Gordon Cloade é falso. No fim de contas, uma mulher deve conhecer o marido quando o vê.

Pôs a cabeça um pouco de lado e olhou inquiridoramente para o enorme superintendente.

Não vale a pena a uma mulher não reconhecer o marido se disso depender o rendimento de dois milhões de libras? inquiriu cinicamente o superintendente. Além disso, se ele não fosse Robert Underhay, por que foi assassinado?

Na realidade murmurou Poirot a pergunta é essa.

Capítulo 6

Poirot saiu da esquadra da polícia, de sobrolho franzido. À medida que caminhava, os seus passos tornavam-se mais lentos. Parou na praça do mercado, olhando à volta. Ficava aí a casa do Dr. Cloade, com a sua placa de latão já gasta, e, um pouco mais adiante, a estação dos correios. Do outro lado, ficava a casa de Jeremy Cloade. À frente de Poirot, um pouco recuada do pavimento da rua, ficava a Igreja Católica Romana da Assunção, uma obra modesta, uma violeta definhada, em

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comparação com o agressivismo da de Santa Maria, erguida arrogantemente no meio da praça, em frente ao Cornmarket, proclamando a supremacia da religião Protestante.

Levado por um impulso, Poirot transpôs o portão e percorreu o caminho da entrada da Igreja Católica Romana. Tirou o chapéu, fez uma genuflexão em frente ao altar e ajoelhou-se atrás de uma das cadeiras. As suas orações foram interrompidas pelo som de soluços sufocados e confrangedores.

Virou a cabeça. Do outro lado da nave, estava ajoelhada uma mulher, vestida de negro, com o rosto metido entre as mãos. Pouco depois, levantou-se e, ainda soluçante, dirigiu-se para a porta. Poirot, com os olhos dilatados pelo Interesse, ergueu-se e seguiu-a. Reconhecera Rosaleen Cloade.

A rapariga parou junto do pórtico, procurando recompor-se, e foi aí que Poirot se lhe dirigiu, muito gentilmente:

Madame, posso ajudá-la?

Ela não mostrou quaisquer sinais de surpresa, mas respondeu com a simplicidade de uma criança infeliz:

Não respondeu, ninguém pode ajudar-me.

Está numa situação muito aflitiva, não está?

Levaram David... estou sozinha respondeu. Dizem que foi ele que matou... Mas não foi! Não foi!

Olhou para Poirot e perguntou-lhe:

Esteve lá hoje? No inquérito. Vi-o!

Sim. Se posso ajudá-la, madame, terei muito gosto em fazê-lo.

Estou assustada. David disse que eu estaria em segurança enquanto ele pudesse olhar por mim. Mas agora levaram-no... Tenho medo. Disse... que todos queriam a minha morte. É uma coisa terrível. Mas talvez seja verdade.

Deixe-me ajudá-la, madame.

Ela sacudiu negativamente a cabeça.

Não repetiu. Ninguém pode ajudar-me. Nem sequer posso desabafar. Tenho de aguentar sozinha o peso da minha maldade. Estou privada da misericórdia de Deus.

Ninguém disse Hercule Poirot está privado da misericórdia de Deus. Bem sabe isso, minha filha.

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Ela voltou a olhá-lo com um olhar infeliz e desorientado.

Queria confessar os meus pecados... confessar-me. Se pudesse confessar-me...

Não pode confessar-se? Veio à igreja para isso, não veio?

Vim procurar consolo... consolo. Mas que consolo há para mim? Sou uma pecadora.

Todos nós somos pecadores.

Mas teria de arrepender-me... teria de dizer... de contar... levou as mãos à cara. Oh, as mentiras que eu disse... as mentiras que eu disse.

Mentiu a respeito de seu marido? A respeito de Robert Underhay? Foi Robert Underhay quem foi assassinado aqui, não foi?

Ela virou-se vivamente para ele. Os seus olhos mostravam-se desconfiados, prudentes. Gritou desabridamente:

Já lhe disse que não era meu marido. Não se parecia nada com ele!

O homem morto não se parecia nada com seu marido?

Não respondeu firmemente.

Diga-me pediu-lhe Poirot como era seu marido?

Fitou-o de olhos arregalados. Depois espelhou-se-lhe no rosto uma expressão de alarme e os olhos mostraram um indizível pavor.

Gritou:

Não falarei mais consigo!

Afastou-se rapidamente, desceu o caminho da entrada e transpôs o portão que dava para a praça do mercado.

Poirot não procurou segui-la. Em vez disso, meneou a cabeça com profunda satisfação.

Ah! exclamou. Com que então é isso! Dirigiu-se lentamente para a praça.

Depois de uma hesitação momentânea, percorreu a High Street até chegar ao «Stag», que era a última casa antes do campo aberto.

Na entrada, encontrou Rowley Cloade e Lynn Marchmont.

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Poirot olhou interessadamente para esta. Era uma rapariga elegante, pensou, e inteligente também, mas não era o seu tipo. Preferia um género mais delicado, mais feminino. Achava que Lynn Marchmont era essencialmente um tipo moderno embora também pudesse, com igual justeza, chamar-se um tipo isabelino. Mulheres que pensavam por si sós, que tinham uma linguagem livre e que admiravam a iniciativa e a coragem dos homens.

Estamos-lhe muito gratos disse Rowley. Caramba, foi realmente um truque de prestidigitação.

Fora exactamente isso, pensou Poirot. Fazerem-nos uma pergunta cuja resposta conhecemos, não era nenhuma dificuldade. Calculou que para o ingénuo Rowley a apresentação do major Porter, por assim dizer, tirado do ar, fora tão formidável como qualquer truque com coelhos saídos do chapéu de um prestidigitador.

A maneira como faz essas coisas, confunde-me confessou Rowley.

Poirot não o esclareceu. No fim de contas, era apenas humano. O prestidigitador não explica ao público como faz a habilidade.

Seja como for, Lynn e eu estamos-lhe infinitamente reconhecidos prosseguiu Rowley.

Poirot pensou que Lynn Marchmont não parecia particularmente agradecida. Tinha pés-de-galinha à volta dos olhos e os seus dedos entrelaçavam-se e desprendiam-se nervosamente.

Isso representará uma enorme diferença para a nossa futura vida de casados disse Rowley.

Lynn interveio vivamente:

Como o sabes? Estou certa de que há ainda imensas formalidades a cumprir e outras coisas mais.

Quando se casam? perguntou Poirot delicadamente.

Em Junho.

Há muito tempo que estão noivos?

Há perto de seis anos respondeu Rowley. Lynn acaba de sair das Wrens.

É proibido casar-se enquanto se faz parte das Wrens, não é!

Lynn explicou brevemente:

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Estive no ultramar.

Poirot reparou no rápido franzir de sobrolho de Rowley.

Vamos, Lynn. Temos de ir andando. Julgo que M. Poirot quer regressar à capital.

Poirot declarou, sorrindo:

Não regresso à capital.

Como?

Rowley estacou, causando uma impressão estranha.

Vou instalar-me aqui, no «Stag», por algum tempo.

Mas... mas porquê?

C’est un beau paysage respondeu Poirot placidamente.

Rowley disse hesitantemente:

Sim, certamente... Mas não anda... bem, isto é... ocupado?

Tenho as minhas economias respondeu Poirot, sorrindo. Não necessito forçosamente de trabalhar. Posso gozar o meu lazer e passar o tempo onde a fantasia mo ditar. Ora, a minha fantasia inclina-se para Warmsley Vale.

Viu Lynn Marchmont erguer a cabeça e fitá-lo atentamente. Achou que Rowley estava levemente aborrecido.

Suponho que joga o golfe? disse ele. Há um hotel muito melhor em Warmsley Heath. Isto aqui é um sítio muito primitivo.

Os meus interesses assegurou-lhe Poirot residem inteiramente em Warmsley Vale.

Vamos Rowley incitou Lynn.

Rowley seguiu-a com certa relutância. À porta, Lynn parou e depois voltou rapidamente atrás. Dirigiu-se a Poirot em voz baixa e calma:

Prenderam David Hunter depois do inquérito. Acha... acha que fizeram bem?

Depois do veredicto, não tinham outra alternativa, mademoiselle.

Quero dizer... acha-o culpado?

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A menina acha que o é? ripostou Poirot. Mas Rowley estava de novo ao lado de Lynn. O rosto da rapariga adquiriu uma brandura fictícia.

Até à vista, M. Poirot... Espero que voltemos a encontrar-nos.

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«Estou pasmado», pensou Poirot.

Pouco depois, tendo já tratado da instalação com Beatrice Lippincott, voltou a sair. Os seus passos levaram-no a casa do Dr. Lionel Cloade.

Ah! exclamou a tia Kathie, abrindo a porta, e recuando um ou dois passos. M. Poirot!

Um seu criado, madame. Poirot inclinou-se numa vénia. Vim apresentar-lhe os meus respeitos.

É muito gentil da sua parte. Sim... bem... acho que é melhor entrar. Sente-se... talvez queira uma chávena de chá... simplesmente o bolo está terrivelmente rançoso. Tencionava ir aos Peacocks buscar alguns; às vezes, às quartas-feiras, têm torta suíça... mas um inquérito altera a rotina da vida doméstica, não acha?

Poirot respondeu que achava isso inteiramente compreensível.

Calculava que Rowley Cloade ficara aborrecido com a sua decisão de ficar em Warmsley Vale. A atitude da tia Kathie estava, sem dúvida, longe de ser acolhedora. Olhava-o com algo que não se afastava muito da consternação e segredou-lhe, inclinando-se para a frente, num sussurro rouco e conspirador:

Não diga a meu marido, não, que fui consultá-lo a respeito... bem, a respeito do que sabemos, não?

A minha boca está selada.

Bem... evidentemente que, naquela altura, eu não fazia a mínima ideia... de que Robert Underhay, pobre homem que fim tão trágico... estivesse realmente em Warmsley Vale. Parece-me, ainda assim, uma coincidência extraordinária!

Podia ter sido mais simples observou Poirot se a tábua ouija a tivesse guiado directamente ao «Stag».

A tia Kathie animou-se um pouco à menção da tábua ouija.

O modo como as coisas acontecem no mundo espírita parece muito inconcebível disse ela. Mas sinto, M. Poirot, que em todo ele há um propósito. Não sente isso na vida? Que há sempre um propósito?

Efectivamente acho, madame. Mesmo agora há um propósito para eu me encontrar aqui, sentado, na sua sala de estar.

Ah, sim? Mrs. Cloade pareceu um tanto embaraçada.

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A sério? Sim, creio que sim... Está de regresso a Londres, certamente?

Ainda não. Passarei alguns dias no «Stag».

No «Stag»? Ah... no «Stag». Mas, aí foi onde... oh, M. Poirot, acha que está a ser prudente?

Fui guiado para o «Stag» declarou Poirot solenemente.

Guiado? Que quer dizer?

Guiado por si.

Oh, mas nunca pensei... isto é, não tinha a mínima ideia. Tudo isto é tão terrível, não acha?

Poirot abanou tristemente a cabeça e respondeu:

Estive a conversar com Mr. Rowley Cloade e com Miss Marchmont. Ouvi dizer que vão casar-se muito em breve.

A tia Kathie ficou imediatamente distraída do assunto.

A querida Lynn é tão boa rapariga... e tão formidável para contas! Mas, eu sou uma negação para números... uma autêntica negação. Ter Lynn de novo connosco é uma bênção. Se estou metida numa embrulhada qualquer, ela endireita-me sempre as coisas. Querida pequena, desejo sinceramente que seja feliz. Rowley é evidentemente uma esplêndida pessoa, mas é capaz de ser... bem, um pouco insípido. Isto é, insípido para uma rapariga que já percorreu tanto mundo como Lynn. Rowley, sabe, esteve aqui na granja durante toda a guerra oh, muito justamente, evidentemente isto é, o Governo queria que ele ficasse esta parte é muito justa nada de penas brancas ou coisas assim como fizeram na Guerra dos Bóeres mas o que eu quero dizer é que isso o tornou um pouco acanhado nas suas ideias.

Seis anos de noivado é uma boa prova de afecto.

Lá isso, é! Mas acho que estas raparigas, quando voltam para casa, se sentem bastante impacientes... e se perto há mais alguém... alguém, talvez, que tenha levado uma vida aventureira...

Como David Hunter?

Não há nada entre eles afiançou ansiosamente a tia Kathie. Nada absolutamente. Tenho a certeza disso! Se assim não fosse, teria sido terrível, não acha, depois de se ter tornado um assassino? Oh, não, M. Poirot,

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por favor, não se vá com a ideia que existe algum entendimento entre Lynn e David. Na realidade, mais pareciam questionar um com o outro, todas as vezes que se encontraram. O que eu sinto é... oh, meu caro amigo, creio que vem aí meu marido. Não se esqueça, não, M. Poirot, nem uma palavra acerca do nosso primeiro encontro? O meu pobre e querido marido ficaria tão aborrecido se pensasse que... oh, Lionel querido, está aqui M. Poirot que tão inteligentemente trouxe o major Porter a ver o corpo.

O Dr. Cloade parecia cansado e abstracto. Os seus olhos, de um azul-pálido, com pupilas reduzidas a um ponto, percorreram vagamente o quarto.

Como está, M. Poirot? De regresso a Londres? «Mon Dieu, outro que me remete para Londres!»,

pensou Poirot e, em voz alta, disse pacientemente:

Não, fico no «Stag» um dia ou dois.

No «Stag»? Lionel Cloade tomou um ar carrancudo. Ah, a Polícia quer demorá-lo cá, por algum tempo?

Não. É por minha livre vontade.

Ah, sim? subitamente, os olhos do médico iluminaram-se com um rápido fulgor inteligente. Então, não se dá por satisfeito?

Por que há-de pensar, isso, Dr. Cloade?

Vamos, homem, é verdade, não é? gorjeando acerca do chá, Mrs. Cloade saiu da sala de estar. O médico prosseguiu:Tem um pressentimento de que alguma coisa está mal, não é verdade?

Poirot ficou espantado.

É estranho que diga isso. Tem então esse pressentimento?

Cloade hesitou.

N-n-não. Não é bem isso... talvez seja apenas uma sensação de irrealidade. Nos romances, o chantagista acaba sempre por morrer com uma bala no corpo. Na vida real, acontece o mesmo? Aparentemente, a resposta é sim. Mas não me parece natural.

Houve alguma nota insatisfatória no aspecto médico do caso? Não é uma pergunta oficial, evidentemente.

O Dr. Cloade respondeu pensativamente:

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Não, creio que não.

Sim... há qualquer coisa. Vejo que há qualquer coisa.

Quando Poirot o desejava, a sua voz podia adquirir uma qualidade quase hipnótica. O Dr. Cloade franziu um pouco o sobrolho e depois disse hesitantemente:

Não tenho experiência nenhuma, evidentemente, de casos policiais. E, seja como for, o parecer médico não é a prova definitiva e irrefutável que os leigos e novelistas parecem julgar. Não somos infalíveis... a ciência médica não é infalível. O que é a diagnose? Uma suposição, baseada num conhecimento muito reduzido e nalguns indícios indefinidos que apontam mais do que uma direcção. Sou muito seguro, talvez, a diagnosticar sarampo, porque, durante toda a minha vida, tenho visto centenas de casos de sarampo e conheço uma extraordinária variedade de indícios e sintomas. Dificilmente se compreende o que um livro textual nos indica como «um caso típico» de sarampo. Mas tenho visto algumas coisas curiosas... Já vi uma mulher praticamente na mesa de operações para sofrer a extracção do apêndice... e, no último momento, diagnosticar-se uma paratifóide! Vi uma criança com uma doença de pele atribuída a um caso de grave deficiência de vitaminas por um jovem médico consciencioso e cuidadoso e o veterinário local aparecer e dizer à mãe que o gato que a criança aperta nos braços apanhou impingem e que a criança ficou contaminada!

«Os médicos, tal como qualquer outra pessoa, são vítimas de ideias preconcebidas. Aqui temos um homem, obviamente assassinado, estendido no chão, com um par de tenazes ensanguentadas a seu lado. Seria tolice dizer que foi atacado com qualquer outra coisa e, contudo, falando clara e afoitamente, com absoluta inexperiência de pessoas com cabeças arrombadas, suspeitei de algo bastante diferente... de algo... oh, não sei, de algo com uma aresta mais cortante... um tijolo ou qualquer coisa assim.

Não disse isso no inquérito?

Não... porque, na realidade, não sei. Jenkins, o cirurgião da polícia, deu-se por satisfeito e a opinião dele é que conta. Mas há a ideia preconcebida... a arma

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ao lado do corpo. Poderia o ferimento ter sido produzido com ela? Sim, podia. Mas, se lhe mostrassem a ferida e lhe perguntassem o que a fez... bem, não sei se o diria, porque na realidade, não faz sentido... isto é, se tivesse dois tipos, um batendo-lhe com um tijolo e o outro com as tenazes o médico fez uma pausa e abanou a cabeça de um modo insatisfeito. Não faz sentido, pois não? perguntou a Poirot.

Poderia ter caído sobre algum objecto cortante? O Dr. Cloade abanou a cabeça.

Estava estendido de cara para baixo, no meio do chão... sobre uma boa e espessa carpete antiga de Axminster.

Interrompeu-se quando a mulher entrou.

Cá está Kathie com a bandeja anunciou.

A tia Kathie balouçava uma bandeja coberta com louça de barro, meio pão e alguma compota de aspecto desanimador no fundo de um frasco.

Julguei que a água estivesse a ferver disse duvidosamente, enquanto levantava a tampa do bule e espreitava para dentro.

O Dr. Cloade voltou a resfolegar e resmungou: «Maldita bandeja», e depois dessa explosão saiu dali.

Pobre Lionel, desde que rebentou a guerra, anda com os nervos num estado terrível. Trabalhava muitíssimo. Mandaram tantos médicos para fora... Não tinha descanso. Estava fora de casa de manhã, à tarde e à noite. Evidentemente que tencionava retirar-se mal a paz fosse restabelecida. Tudo isso foi combinado com Gordon. A sua predilecção favorita é a botânica, especialmente as ervas medicinais da Idade Média. Está a escrever um livro acerca disso. Tencionava levar uma vida calma, dedicada às necessárias pesquisas. Mas depois, quando Gordon morreu daquela maneira... ora, bem sabe, como hoje em dia as coisas são, M. Poirot. Impostos, etc... Não pode pensar em estudar e isso tem-no amargurado muito. E, na realidade, não me parece justo. Gordon morreu assim, sem deixar testamento... bem, isso abalou realmente muito a minha fé. Isto é, na realidade, não consegui ver o propósito que houve nisso. Pareceu-me, não pude deixar de senti-lo, um erro.

Suspirou e depois animou-se um pouco.

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Mas, do outro lado, recebo algumas informações animadoras, encantadoras. «Coragem e paciência e achar-se-á um meio.» E, na realidade, quando hoje esse simpático major Porter surgiu e declarou de um modo tão categórico que o pobre homem assassinado era Robert Underhay... bem, vi que esse meio fora achado! É maravilhoso, não acha, M. Poirot, como as coisas resultaram no melhor possível?

E num crime também acentuou Hercule Poirot.

Capítulo 7

Poirot entrou no «Stag», pensativo e um pouco a tremer, pois soprava um vento leste cortante. O vestíbulo estava deserto. Abriu a porta da antecâmara, que ficava à direita. Cheirava a fumo atrasado e a braseira estava quase apagada. Poirot, foi na ponta dos pés até à porta situada ao fundo do vestíbulo e que tinha o indicativo «Reservado aos Hóspedes». Havia ali uma boa lareira, mas, numa enorme poltrona, aquecendo confortavelmente os pés, achava-se uma monumental senhora idosa, que fitou Poirot com uma tal ferocidade que este bateu apologeticamente em retirada.

Parou por um momento no vestíbulo, junto à divisória de caixilhos de vidro àquela hora, vazia e olhou para a porta marcada, numa escrita firme e antiquada: CAFÉ. Devido a uma experiência adquirida em hotéis da província, Poirot sabia muito bem que a única hora a que ali serviam café era ao pequeno-almoço, e, mesmo então, de má vontade e tendo como principal componente uma boa porção de leite quente e aguado. Pequenas chávenas de um líquido semelhante a melaço e turvo, chamado Café Puro, eram servidas, não na Sala de Café, mas na antecâmara. A sopa Windsor, o bife à Viena com batatas e um pudim cozido a banho-maria, que constituíam o jantar, podiam obter-se na Sala de Café, às sete horas em ponto. Até lá, uma profunda paz reinava sobre a área residencial do «Stag».

Poirot subiu pensativamente as escadas. Em vez de virar para a esquerda, onde se situava o seu quarto.

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no n.° 11, virou para a direita e parou diante do n.° 5. Olhou à volta. Silêncio e vazio. Abriu a porta e entrou.

A polícia utilizara-se do quarto. Fora nitidamente limpo e esfregado de fresco. Sobre o soalho não se via a carpete. Presumivelmente a «antiga Axminster» fora mandada a limpar. Os lençóis estavam dobrados sobre a cama, num monte perfeito.

Depois de fechar a porta atrás de si, Poirot vagueou à volta do quarto. Estava limpo e estranhamente despido de interesse humano. Poirot examinou o mobiliário uma escrivaninha, uma cómoda de bom mogno antigo, um guarda-fatos semelhante presumivelmente o que encobria a porta de comunicação com o n.° 4, uma enorme cama de casal, de ferro, um lavatório com água quente e fria tributo ao modernismo e falta de pessoal, uma enorme e todavia bastante incómoda poltrona, duas cadeiras pequenas, uma antiga grelha vitoriana com um atiçador e uma pá crivada, pertencentes ao mesmo jogo que as tenazes, uma pesada escarpa de chaminé e um sólido rebordo de mármore com cantos pontiagudos.

Foi sobre estes que Poirot se Inclinou para examiná-los. Humedeceu o dedo, esfregou-o ao longo do canto direito e depois inspeccionou o resultado. O dedo ficara levemente negro. Repetiu a acção com outro dedo, no canto esquerdo do rebordo. Desta vez, o dedo permaneceu absolutamente limpo.

«Sim», pensou Poirot, «sim».

Olhou para o lavatório. Depois foi até à janela. Ficava sobranceira a umas telhas... o telhado de uma garagem. Calculou que desse para uma pequena azinhaga das traseiras. Um meio fácil de entrar e de sair do quarto n.° 5, sem ser visto. Mas também era igualmente fácil subir as escadas até ao n.° 5, sem ser visto. Ele próprio, o fizera, momentos antes.

Calmamente, Poirot retirou-se, fechando sem ruído a porta atrás de si. Estava realmente frio. Voltou a descer as escadas, hesitou, e depois levado pelo frio da noite, entrou ousadamente no «Reservado aos Hóspedes». Aproximou uma segunda poltrona da lareira e sentou-se.

A monumental senhora de idade conseguia ser mais formidável quando vista de perto. Tinha um cabelo de um

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cinzento de chumbo, um bigode farto e quando, pouco depois, falou uma voz profunda e horrenda.

Esta saletapreveniu-oé reservada às pessoas hospedadas no hotel.

Estou hospedado no hotel replicou Hercule Poirot.

A idosa senhora meditou, por um momento, antes de voltar ao ataque. Depois, observou, acusadoramente:

É estrangeiro.

Sou confirmou Hercule Poirot.

Na minha opinião, deviam todos ir-se embora.

Embora, para onde? inquiriu Poirot.

Para o sítio de onde vieram retorquiu a velha senhora firmemente, acrescentando como uma espécie de rifão, a sotto você Estrangeiros!

Isso retorquiu tranquilamente Poirot havia de ser difícil.

Que disparate! Foi para isso que fizemos a guerra, não foi? Para que as pessoas voltassem aos seus lugares e aí ficassem.

Poirot não se atreveu a uma controvérsia. Já aprendera que cada pessoa tinha uma versão diferente do tema «Para que fizemos a guerra?».

Fez-se um silêncio um tanto hostil.

Não sei onde isto vai parar dizia a velha senhora. Sinceramente, não sei. Todos os anos, venho instalar-me neste hotel. Meu marido faleceu há dezasseis anos. Está cá enterrado. Venho todos os anos passar aqui um mês.

Uma romagem piedosa comentou Poirot, cortesmente.

E as coisas pioram de ano para ano. Não há pessoal! A comida é intragável! Os bifes de Viena... com franqueza! Um bife ou é de lombo ou de alcatra... nunca carne de cavalo!

Poirot meneou compreensivamente a cabeça.

Uma coisa boa... fecharam o aeródromo filosofou a velha senhora. Foi uma desgraça, todos esses jovens aviadores virem para aqui com essas terríveis raparigas. Raparigas, francamente! Não sei o que, hoje em dia, as mães pensam. Deixá-las andar por onde lhes apetece, como fazem. Censuro o Governo. Mandar as

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mães trabalhar em fábricas. Só as dispensam se têm filhos pequenos! Filhos pequenos, que tolice! Qualquer pessoa pode cuidar de um bebé! Um bebé não anda a correr atrás dos soldados! As raparigas dos catorze aos dezoito anos é que precisam de ser cuidadas. Precisam das mães... É preciso uma mãe para saber-se o que uma rapariga anda a fazer. Soldados! Aviadores! É só no que elas pensam. Americanos! Negros! Rebotalho polaco! Nesta altura, a indignação obrigou a velha dama a tossir. Quando lhe passou o ataque de tosse, prosseguiu, entrando num frenesi agradável e usando Poirot como alvo do seu mau humor.

Por que têm arame farpado à volta dos acampamentos? Para impedirem que os soldados vão ter com as raparigas? Não, para impedirem que as raparigas vão ter com os soldados. Loucas por homens, é o que elas são! Repare no modo como elas se vestem. Calças! Algumas palermas usam calções... mas não o fariam, não, se soubessem o que parecem por trás!

Concordo inteiramente consigo, madame.

Que usam na cabeça? Chapéus decentes? Não, um bocado de pano torcido para cima e a cara coberta de pintura e pó. Uma pasta imunda nas bocas. E não são apenas as unhas das mãos que são encarnadas... as dos pés também!

A velha dama calou-se de repente e olhou expectativamente para Poirot. Este suspirou e abanou a cabeça.

Até na igreja prosseguiu a dama. Nada de chapéus. Às vezes, nem sequer esses lenços disparatados. Apenas aquele cabelo com «permanente», horrorosamente teso. Cabelo! Hoje em dia ninguém sabe o que é cabelo. Quando eu era nova, podia orgulhar-me do meu.

Poirot lançou um olhar furtivo àqueles bandós de um cinzento de chumbo. Parecia impossível que aquela mulher velha e feroz pudesse ter sido nova!

Uma delas meteu cá o nariz, ontem à noite! prosseguiu. Trazia a cabeça amarrada num lenço cor de laranja e a cara toda pintada e empoada. Olhei para ela. Bastou OLHAR. Foi-se embora pouco depois.

«Não era uma hóspede. Agrada-me poder dizer que aqui não está hospedada nenhuma pessoa daquele tipo! Por conseguinte, que vinha ela fazer, saindo do quarto de

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um homem? É repugnante! Falei nisso à pequena Lippincott... mas ela é tão boa como as outras... anda atrás de tudo quanto tem calças.

No espírito de Poirot despertou certo interesse.

Vinha do quarto de um homem? inquiriu. A velha dama atacou o tópico com deleite.

Foi exactamente isso que eu disse. Vi-a com os meus próprios olhos a sair do n.° 5.

Em que dia foi isso, madame?

Na véspera do dia em que se deu toda essa embrulhada do assassínio de um homem. É uma ignomínia que uma coisa dessas tenha acontecido aqui! Esta casa costumava ser um sítio pacato e muito decente. Mas, agora...

E a que horas do dia foi isso?

Do dia? Não foi de dia. Foi à noite. E já bastante tarde. Uma verdadeira ignomínia. Já passava das dez horas. Fui lá para cima para deitar-me às dez e um quarto. Ela saiu do n.° 5, com um aspecto muito descarado, viu-me e meteu-se logo para dentro, a rir-se e a falar com o homem que lá estava.

Ouviu-o falar?

Não estou a dizer-lhe que sim? Ela tornou a meter-se para dentro e ele gritou-lhe «Vamos lá, saia daqui. Já estou farto». Que maneira bonita de um homem falar a uma rapariga! Mas elas é que têm a culpa! As atrevidas!

Não participou isso à polícia? perguntou-lhe Poirot.

Ela fitou-o com um olhar basilisco e levantou-se tropegamente da cadeira. Debruçou-se sobre Poirot, dardejando-o com um olhar feroz e vociferou-lhe:

Nunca tive nada a ver com a polícia. A polícia, francamente! Eu, num tribunal da polícia?

Trémula de raiva e lançando a Poirot um último mau olhar, saiu do aposento.

Poirot ficou sentado ainda durante alguns momentos, cofiando pensativamente o bigode. Depois, foi em busca de Beatrice Lippincott.

Ah, sim, M. Poirot, refere-se à velha Mrs. Leadbetter? É a viúva de Canon Leadbetter. Vem cá todos os anos, mas para nós a sua estada aqui é quase uma provação. Às vezes, chega a ser terrivelmente rude para com

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as pessoas e parece não compreender que, nos tempos de hoje, as coisas são outras. Deve andar perto dos oitenta anos.

Mas está no seu perfeito juízo? Sabe o que diz?

Oh, sim. É uma pessoa muito esperta... às vezes, até de mais.

Sabe quem foi a mulher nova que visitou o homem assassinado na terça-feira à noite?

Beatrice mostrou-se atónita.

Não me recordo de que qualquer mulher tenha cá vindo visitá-lo. Como era ela?

Tinha à volta da cabeça um lenço cor de laranja, e suponho que o rosto muito pintado. Estava no n.° 5 a falar com Arden, às dez horas e quinze minutos da noite de terça-feira.

Sinceramente, M. Poirot, não faço a mínima ideia. Pensativamente, Poirot foi procurar o superintendente

Spence.

Este ouviu em silêncio o seu relato, depois recostou-se na cadeira e meneou lentamente a cabeça.

Tem piada, não tem? comentou. Quantas vezes chegamos à mesma velha fórmula Cherchez la femme.

A pronúncia francesa do superintendente não era tão boa como a do sargento Graves, mas, apesar disso, orgulhava-se dela. Levantou-se e atravessou o gabinete. Voltou com alguma coisa na mão. Era um baton num estojo dourado.

Tivemos, desde o início, esta indicação de que devia haver uma mulher implicada no caso disse.

Poirot pegou no baton e traçou uma leve marca nas costas de uma das mãos.

Boa qualidade apreciou. Um vermelho-cereja-escuro... provavelmente usado por uma morena.

Sim. Encontraram-no no chão do n.° 5. Tinha rolado para debaixo da cómoda, mas é possível, evidentemente, que já lá estivesse há algum tempo. Não tinha impressões digitais. Hoje em dia, como é sabido, não existe no mercado a variedade de batons que havia antigamente... apenas alguns produtos legais.

Procedeu, sem dúvida, a uma investigação, não é verdade?

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Spence sorriu e respondeu:

Sim, tal como diz, fizemos as nossas investigações. Rosaleen Cloade usa esta marca de baton. Lynn Marchmont também. Frances Cloade usa uma cor mais suave. Mrs. Lionel Cloade não usa nenhum. Mrs. Marchmont usa um matiz malva-pálido. Beatrice Lippincott não deve usar um produto tão caro como este... e a criada dos quartos, Gladys, também não.

Fez uma pausa.

Foi um trabalho perfeito aplaudiu Poirot.

Não completamente perfeito. Agora, parece que está imiscuída no caso uma pessoa desconhecida... talvez alguma mulher que Underhay tenha conhecido em Warmsley Vale.

E que esteve com ele às dez horas e quinze minutos da noite de terça-feira?

Sim confirmou Spence, que acrescentou com um suspiro. Isto iliba David Hunter.

Sim?

Sim. Sua excelência acedeu finalmente a fazer um depoimento, depois de o seu procurador tê-lo feito ver a luz da razão. Aqui tem o relatório que fez dos seus passos.

Poirot leu um memorando dactilografado.

«Saiu de Londres no comboio das quatro e dezasseis para Warmsley Heath. Chegou aqui às cinco e trinta. Seguiu por um atalho para Furrowbank.”

A razão que o levou a vir cá, segundo disse interveio o superintendente, foi buscar umas coisas que tinha cá deixado, cartas e documentos, uma caderneta de cheques e ver também se já tinham chegado umas camisas da lavandaria e que, já se sabe, não tinham chegado! Cá para mim, hoje em dia, a lavagem da roupa é um problema. Há quatro semanas que foram a nossa casa... não nos deixaram uma única toalha lavada e agora a minha mulher é quem me lava a roupa.

Depois desta interpelação muito humana, o superintendente voltou ao itinerário dos movimentos de David.

”Saiu de Furrowbank, às sete e vinte e cinco e declara que foi dar um passeio a pé, pois perdera o comboio das sete e vinte e só teria outro às nove e vinte.

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Para que lado foi dar o passeio? perguntou Poirot.

O superintendente consultou as suas notas.

Para Downe Copse, Bats Hill e Long Ridge.

Uma volta completa em torno de White House!

Palavra que aprendeu depressa a topografia local, M. Poirot!

Poirot sorriu e abanou a cabeça.

Não. Não reconheci os nomes que citou. Estava simplesmente a fazer uma conjectura.

Ah, estava? o superintendente pôs a cabeça de lado. Ora, de acordo com o que ele diz, quando subia Long Ridge viu que lhe restava já pouco tempo e começou a correr a corta-mato, para chegar a tempo à estação de Warmsley Heath. Apanhou o comboio por um triz, chegou a Vitória às dez e quarenta e cinco, dirigiu-se a pé para Shepherd’s Court, chegando ali às onze horas, declaração esta que é confirmada por Mrs. Gordon Cloade.

E que confirmação tem do resto?

Muito pouca... mas alguma. Rowley Cloade e outras pessoas viram-no chegar a Warmsley Heath. As criadas de Furrowbank tinham saído. Hunter tinha uma chave da casa, já se sabe e, por conseguinte, não o viram, mas encontraram uma ponta de cigarro na biblioteca, o que, suponho, as intrigou e deparou-se-lhes o armário da roupa branca em grande desordem. Um dos jardineiros ficou lá a trabalhar até tarde a fechar as estufas ou qualquer outra coisa e também o viu. Mrs. Marchmont encontrou-o em Mardon Wood... quando ele ia a correr para apanhar o comboio.

Alguém o viu entrar nele?

Não... mas telefonou de Londres a Miss Marchmont logo que lá chegou... às onze e cinco.

Isso foi confirmado?

Sim. Já tínhamos realizado um inquérito acerca das chamadas feitas desse número. Houve uma chamada de troncas às onze e quatro para Warmsley Vale 36. É o número das Marchmont.

Muito, muito interessante murmurou Poirot. Spence prosseguiu conscienciosa e metodicamente:

Rowley Cloade deixou Arden às nove menos cinco. É categórico ao afirmar que não era mais cedo. Por volta

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das nove e dez, Lynn Marchmont viu Hunter em Mardort Wood. Poder-se-á supor que tenha ido a correr desde o «Stag», que tenha tempo de ter procurado Arden, de ter questionado com ele, de tê-lo assassinado e chegado a Mardon Wood? Não creio que seja possível. Contudo, agora vamos começar de novo. Arden não estava assassinado às nove horas; estava vivo às dez horas e dez isto é, a não ser que essa velha dama esteja a sonhar. Foi assassinado pela mulher que deixou cair o baton, a mesma do lenço cor de laranja, ou por alguém que entrou depois dessa mulher ter saído. Quem quer que tenha sido, fez girar propositadamente os ponteiros do relógio para as nove e dez.

Isso significa que, se David Hunter não tivesse encontrado, ocasionalmente, Lynn Marchmont, num sítio muito improvável, teria sido extraordinariamente terrível para ele, não? conjecturou Poirot.

Sim, sem dúvida. O comboio das nove e vinte é o último que vai de Warmsley Heath para Londres. Estava a escurecer. Há sempre uns golfistas que regressam nele à capital. Ninguém teria reparado em Hunter e certamente que as pessoas da estação não o conhecem de vista. Chegado a Londres, não tomou nenhum táxi. Por conseguinte, temos apenas a palavra da irmã a dizer que ele regressou a Shepherd’s Court, às horas a que ele diz tê-lo feito.

Poirot permaneceu calado e Spence perguntou:

Em que está a pensar, M. Poirot?

Num longo passeio em volta da White House; num encontro em Mardon Woods; numa chamada telefónica a uma hora mais tardia... Ora, Lynn Marchmont está noiva de Rowley Cloade... Gostaria muito de conhecer o assunto dessa conversa telefónica.

É o interesse humano que o incita?

Sim respondeu Poirot. É sempre o interesse humano.

Capítulo 8

Estava a fazer-se tarde, mas Poirot queria fazer ainda outra visita. Encaminhou-se para a casa de Jeremy Cloade.

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Foi acompanhado ao escritório deste por uma criadita de aspecto inteligente.

Depois de ter ficado sozinho, Poirot olhou interessadamente em volta. Até ali, no lar, pensou Poirot, tudo era muito legal e seco como o pó. Sobre a secretária, havia uma grande fotografia de Gordon e uma outra, desbotada, de Lorde Edward Trenton montado a cavalo. Poirot examinava esta última, quando Jeremy Cloade entrou.

Ah, perdão Poirot pousou a fotografia emoldurada, um pouco embaraçado.

É o pai de minha mulher explicou Jeremy, deixando transparecer na voz uma leve nota congratulatória. E um dos seus melhores cavalos, o Chestnut Trenton. Classificou-se em segundo lugar no Derby de 1924. Interessa-se por corridas de cavalos?

Oh, não!

É um gosto que sai muito caro observou Jeremy secamente. Lorde Edward arruinou-se com isso... teve de ir viver para o estrangeiro. Sim, é um desporto caro.

Contudo, na sua voz notava-se ainda a notazinha de orgulho.

Poirot pensou que Jeremy Cloade mais facilmente seria capaz de atirar com dinheiro pela janela fora do que investi-lo em cavalos, mas que nutria uma secreta admiração e respeito pelos que o faziam.

Cloade prosseguiu:

Em que posso ser-lhe útil, M. Poirot? Na qualidade de membros da família, acho que temos para consigo uma dívida de gratidão... por ter encontrado o major Porter, que se prestou à identificação.

A família parece jubilosa com isso observou Poirot.

Ah! exclamou Jeremy secamente. É ainda demasiado cedo para regozijes. No fim de contas, a morte de Underhay foi acatada em África. São precisos anos para provar-se o contrário de uma coisa dessas... e, além disso, o testemunho de Rosaleen foi muito positivo... muito positivo, realmente. Causou uma boa impressão, bem sabe.

Era quase como se Jeremy Cloade sentisse relutância em acreditar numa melhoria das suas perspectivas.

Não me agradaria dar um parecer de um modo

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ou de outro. Nunca se pode dizer como um caso terminará

acrescentou.

Depois, afastando para o lado alguns papéis, com um gesto mal-humorado, quase enfastiado, informou-se:

Mas desejava falar-me?

Queria perguntar-lhe, Mr. Cloade, se tem realmente a certeza absoluta de que seu irmão não deixou testamento? Um testamento redigido depois do matrimónio?

Jeremy pareceu surpreendido.

Não creio que alguma vez tenha surgido a ideia de uma coisa dessas. Certamente que não fez nenhum antes de partir de Nova Iorque.

Podia tê-lo feito, durante os dois dias que esteve em Londres.

E ter ido ali procurar um advogado? Ou tê-lo feito pelo próprio punho.

Com testemunhas? Com que testemunhas?

Em casa, havia três criados lembrou-lhe Poirot.

Três criados que morreram na mesma noite do que ele.

Hum... sim... mas, se por qualquer acaso fez o que está a sugerir, o testamento também foi destruído.

Isso é o que resta saber. Ultimamente, têm-se decifrado, por um novo processo, muitíssimos documentos que se julgavam completamente destruídos. Incinerados dentro de cofres, por exemplo, mas não tão destruídos que não permitissem uma leitura.

Bem, realmente, essa sua ideia, M. Poirot, é muitíssimo notável. Mas não creio... não, na realidade, não creio que dê alguma coisa... Que eu saiba, na casa de Sheffield Terrace, não havia nenhum cofre. Gordon guardava todos os seus documentos importantes, etc., no escritório... e certamente que ali não havia nenhum testamento.

Mas podia-se investigar insistiu Poirot. Autoriza-me a fazê-lo?

Oh, certamente... certamente. É uma grande amabilidade sua oferecer-se para empreender uma coisa dessas, mas não tenho a menor fé no seu êxito. Todavia... bem, é uma possibilidade mais. Vai... vai então regressar já a Londres?

Os olhos de Poirot semicerraram-se. O tom de voz

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de Jeremy fora indubitavelmente ansioso. Voltar para Londres... Quereriam todos eles vê-lo pelas costas?

Antes de poder responder, a porta abriu-se e Francês entrou.

Poirot ficou impressionado por duas coisas. Primeiramente, pelo facto de a recém-chegada parecer extraordinariamente doente. Em segundo lugar, pela sua forte semelhança com a fotografia do pai.

M. Hercule Poirot veio visitar-nos, querida explicou Jeremy, superfluamente.

Ela apertou-lhe a mão e Jeremy Cloade participou-lhe imediatamente a sugestão de Poirot quanto a um testamento.

Francês mostrou-se incrédula.

Parece-me uma probabilidade muito fraca.

M. Poirot regressa a Londres e muito amavelmente vai proceder a investigações.

Segundo creio, o major Porter foi um Air Raid Warden (1), nesse bairro disse Poirot.

Pelo rosto de Mrs. Cloade perpassou uma expressão curiosa. Perguntou:

Quem é o major Porter? Poirot encolheu os ombros.

Um oficial do Exército, reformado, que vive da pensão.

Esteve realmente em África? Poirot olhou-a com curiosidade.

Certamente, madame. Por que não?

Não sei respondeu Francês, quase absortamente. Intrigou-me.

Sim, Mrs. Cloade disse Poirot compreendo. Francês olhou-o perscrutadoramente. Os seus olhos

adquiriram uma expressão quase receosa e, virando-se para o marido, disse-lhe:

Jeremy, sinto muita pena de Rosaleen. Está sozinha em Furrowbank e deve estar terrivelmente excitada com a detenção de David. Importas-te que a convide a cá ficar?

Achas realmente que isso seja aconselhável, querida? perguntou Jeremy, duvidoso.

(1) Corpo de vigilantes contra ataques aéreos.

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Oh... aconselhável? Não sei! Mas é humano. Está tão desamparada.

Duvido que ela aceite.

Em todo o caso, posso fazer-lhe o oferecimento. O advogado retorquiu calmamente:

Se achas que te sentes mais feliz com isso...

Mais feliz!

As palavras brotaram-lhe da boca com uma estranha amargura. Depois, lançou a Poirot um relance de olhos desconfiado.

Poirot murmurou cerimoniosamente:

Apresento agora as minhas despedidas. Ela acompanhou-o até ao átrio.

Regressa a Londres?

Amanhã, mas apenas por vinte e quatro horas, quando muito. Depois voltarei para o «Stag»... onde me encontrará se precisar de mim.

Por que viria a precisar de si? perguntou Francês com vivacidade.

Poirot não respondeu à pergunta, limitando-se a dizer:

Estarei no «Stag».

Mais tarde, na noite desse mesmo dia, Francês Cloade disse ao marido:

Não acredito que esse homem vá a Londres pelo motivo que diz. Não acredito que Gordon tenha feito um testamento. Acreditas, Jeremy?

Respondeu-lhe uma voz cansada e resignada:

Não, Francês, não... ele vai lá por qualquer outra razão.

Que razão?

Não faço ideia.

Que vamos fazer, Jeremy? Que vamos fazer? Jeremy Cloade, respondeu, pouco depois:

Acho, Francês, que há apenas uma coisa a fazer...

Capítulo 9

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De posse das necessárias credenciais, passadas por Jeremy Cloade, Poirot recebera as respostas às suas perguntas. Eram muito definitivas. A casa ficara totalmente destruída. O local fora desobstruído, apenas pouco tempo

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antes, com vista a novas edificações. Com excepção de David Hunter e de Mrs. Cloade, não houvera sobreviventes. Na casa havia três criados: Frederick Game, Elizabeth Game e Eileen Corrigan. Esses três tinham tido morte instantânea. Gordon Cloade fora retirado dos escombros ainda com vida, mas morrera a caminho do hospital, sem ter recuperado os sentidos. Poirot tomou nota dos nomes e das moradas dos parentes mais chegados dos três criados.

É possível explicou que, em conversa, tenham dito alguma coisa aos amigos ou tenham feito algum comentário que me dê uma pista para alguma informação de que tanto preciso.

O oficial com quem conversava parecia céptico. Os Games tinham vindo de Dorset e Eileen Corrigan do County Cork.

Em seguida, Poirot dirigiu os seus passos para a residência do major Porter. Lembrava-se de ter ouvido Porter dizer que fora um Warden e queria saber se, nessa noite em questão, estivera de serviço e presenciara alguma coisa do incidente ocorrido em Sheffield Terrace.

Além disso, tinha outras razões para querer falar com o major Porter.

Ao virar a esquina da Edge Street, ficou sobressaltado ao ver um polícia fardado, postado à porta da casa para onde se dirigia. Havia um círculo de garotos e de outras pessoas paradas, com os olhares fitos na casa. O coração de Poirot comprimiu-se ao interpretar aqueles sinais.

O polícia interceptou o avanço de Poirot.

Não pode entrar preveniu-o.

Que aconteceu?

Não vive na casa, pois não?

Poirot abanou a cabeça e o guarda inquiriu:

Quem queria visitar?

Queria visitar o major Porter.

É amigo dele?

Não, não me intitulo amigo. Que aconteceu?

Suponho que esse senhor se suicidou com um tiro. Ah, cá está o inspector.

A porta abrira-se e saíam duas pessoas. Uma delas era o inspector do bairro e a outra o sargento Graves de

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Warmsley Vale. Este último reconheceu-o e Poirot identificou-se prontamente ao inspector, que propôs:

É melhor entrarmos.

Os três homens entraram na casa.

Telefonaram para Warmsley Vale explicou Graves e o superintendente Spence mandou-me cá.

Suicídio?

O inspector respondeu:

Sim. Parece um caso nítido. Não sei se o facto de ter prestado provas no inquérito lhe transtornou o espírito. Às vezes, as pessoas comportam-se assim, estranhamente, mas creio que, ultimamente, também andava neurasténico. Dificuldades financeiras, uma coisa e outra. Matou-se com o próprio revólver.

Poirot inquiriu:

É-me permitido subir?

Se assim o deseja, M. Poirot. Acompanhe M. Poirot lá acima, sargento.

Graves indicou o caminho para o quarto do primeiro andar. Correspondia à recordação que Poirot guardava dele: as cores pálidas dos velhos tapetes, os livros... O major Porter estava na enorme poltrona. A sua atitude era quase natural, só a cabeça estava levemente descaída para a frente. O braço direito pendia a um lado... e abaixo dele, sobre o tapete, jazia o revólver. No ar, pairava ainda um tenuíssimo odor acre de pólvora.

Foi há coisa de duas horas informou-o Graves. Ninguém ouviu o tiro. A dona da casa tinha ido às compras

Poirot, de sobrolho franzido, contemplava aquele vulto imóvel, com uma pequena ferida chamuscada, na têmpora direita.

Tem qualquer ideia do motivo por que se suicidou, M. Poirot? inquiriu Graves.

Mostrava-se respeitoso para com Poirot porque vira o superintendente sê-lo embora a sua própria opinião fosse de que Poirot era um desses terríveis «escavadores» de factos.

Poirot replicou distraidamente:

Sim... sim, houve uma óptima razão. A dificuldade não está aí.

O seu olhar dirigiu-se para uma mesinha colocada à

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esquerda do major Porter. Sobre ela, achava-se um grande cinzeiro de vidro maciço, com um cachimbo e uma caixa de fósforos. Ali, nada. Os seus olhos vaguearam à volta do quarto. Depois, dirigiu-se a uma secretária de tampo rolante e aberto.

Estava em perfeita ordem. Viam-se documentos ordenadamente dispostos nos vários escaninhos. Ao centro, uma pequena pasta de coiro, um suporte para canetas, com uma caneta e dois lápis, uma caixa de molas para papéis e uma cartilha de selos. Tudo muito limpo e arrumado. Uma vida ordinária e uma morte ordenada... certamente... era isso mesmo... o que não se ajustava!

Não deixou nenhum bilhete... nenhuma carta para o coroner? perguntou a Graves.

Não, não deixou... era de esperar que um antigo oficial do Exército o fizesse.

Sim, isso é muito estranho.

Meticuloso em vida, o major Porter não o fora na morte. Era absolutamente impróprio, pensou Poirot, que Porter não tivesse deixado um bilhete.

Isto é um choque para os Cloades comentou Graves. Vai fazê-los retroceder. Terão de andar à caça de outra pessoa que tenha conhecido Underhay intimamente. Impacientou-se, perante a atitude calada de Poirot e perguntou. Deseja ver mais alguma coisa, M. Poirot?

Este meneou negativamente a cabeça e, acompanhado de Graves, saiu do aposento.

Na escada encontraram a dona da casa. Era indubitável que sentia prazer na excitação que a dominava e começou imediatamente um volúvel discurso. Graves fez uma retirada hábil e deixou que Poirot recebesse em cheio aquela torrente de palavras.

Até parece que me falta o ar. Coração, é o que é. Angina Pectora D, foi com o que a minha mãe morreu... caiu morta quando ia a atravessar o Caledonian Market. Quando o encontrei, ia-me dando uma coisa... oh, tive uma comoção tão grande! Nunca suspeitei de nada no género, embora ele andasse há muito tempo neurasténico. Preocupado com dinheiro, acho eu, e não comia o suficiente

H Pectoris. (N. do T.)

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para manter-se vivo. Nunca aceitou nada nosso. E depois, ontem, teve de ir a uma terra no Oastshire... Warmsley Vale... para prestar declarações num inquérito. Isso consumiu-o, não há dúvida. Voltou com um aspecto terrível. Passou toda a noite a andar de um lado para o outro. De um lado para o outro... de um lado para o outro. Parece que foi por causa de um amigo dele que foi assassinado. Coitado, aquilo transtornou-o. De um lado para o outro... de um lado para o outro. E eu que saí para fazer as compras... e tive de estar tanto tempo na bicha do peixe... quando subi a ver se ele queria tomar uma chávena de chá... ali estava ele, pobre senhor, com o revólver caído da mão, recostado na cadeira. Causou-me uma impressão horrível. E ter cá a polícia e todas essas coisas. Aonde o mundo vai parar é o que eu pergunto?

Poirot respondeu lentamente:

O mundo vai tornar-se um lugar difícil onde viver... excepto para os fortes.

Capítulo 10

Passava já das oito horas, quando Poirot chegou ao «Stag». Encontrou um bilhete de Francês Cloade, pedindo-lhe que fosse procurá-la. Foi imediatamente.

Francês esperava-o na sala de estar. Poirot ainda não vira esse aposento. As janelas abertas davam para um jardim cercado por um muro e cheio de pereiras em flor. Sobre as mesas viam-se jarras com túlipas. O velho mobiliário brilhava de encerado com afinco e o bronze do guarda-fogo da chaminé e o balde de carvão reluziam profusamente.

Era, pensou Poirot, um lindo aposento.

Disse que precisaria de si, M. Poirot. Teve toda a razão. Há uma coisa que deve contar-se... e considero-o a melhor pessoa a quem falar.

É sempre mais fácil, madame, contar uma coisa a alguém que já tem uma boa ideia do que seja.

Julga que sabe o que vou dizer? Poirot meneou afirmativamente a cabeça.

Desde quando...

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Deixou a pergunta em meio, mas Poirot replicou prontamente:

Desde que vi a fotografia de seu pai. As características da sua família estão muito fortemente vincadas. Não se pode duvidar que a senhora e ele sejam da mesma família. A semelhança era igualmente forte no homem que aqui veio, dizendo-se Enoch Arden.

Francês suspirou... foi um suspiro profundo, desalentado.

Sim... sim, tem razão... embora o pobre Charles tivesse barba. Era meu primo em segundo grau. M. Poirot... era a ovelha ronhosa da família. Nunca o conheci muito bem, mas, em crianças, brincámos juntos... e agora levei-o à morte... a uma morte terrivelmente sórdida...

Ficou calada por uns momentos. Poirot pediu gentilmente:

Vai contar-me... Ela endireitou-se.

Sim, a história tem de ser contada. Estávamos numa situação financeira desesperada... é aqui que começa. Meu marido... meu marido estava numa séria aflição... na pior espécie de aflições. A desonra, esperando-o talvez a prisão... e ainda lhe pesa sobre a cabeça essa ameaça, por causa disso. Mas acredite, M. Poirot, que a ideia que eu tive e pus em prática foi unicamente minha; meu marido nada teve a ver com ela. Seja como for, não teria tido uma ideia desse género... era demasiado arriscada. Porém, eu nunca me importei de correr riscos. Suponho também que sempre fui bastante falta de escrúpulos. Primeiramente, deixe-me que lho diga, pedi a Rosaleen Cloade um empréstimo. Não sei se, estando sozinha, mo teria concedido ou não. Mas o irmão apareceu. Estava muito mal-humorado e foi, pelo menos assim o achei, desnecessariamente insultuoso. Quando aquele ardil me ocorreu, não tive quaisquer escrúpulos em pô-lo em acção.

«Para melhor explicar as coisas, tenho de dizer-lhe que, no ano passado, meu marido me repetira umas declarações bastante interessantes que ouvira no clube. O senhor também lá estava, segundo creio, e, por conseguinte, não preciso de entrar em pormenores. Abria-me,

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porém, a possibilidade de que o primeiro marido de Rosaleen não tivesse morrido... e, evidentemente que, neste caso, ela não teria qualquer direito ao dinheiro de Gordon. Não passava, já se sabe, de uma vaga possibilidade, mas, nos recônditos dos nossos espíritos, havia uma espécie de possibilidade externa de que fosse verdade. Ocorreu-me a ideia de que poderia fazer-se alguma coisa, utilizando essa possibilidade. Charles, o meu primo, estava em Inglaterra e em más circunstâncias. Suponho que já tivesse estado preso e que não fosse uma pessoa escrupulosa, mas portou-se bem na guerra. Fiz-lhe a proposta. Tratava-se evidentemente de chantagem, mas achámos que havia boas esperanças de conseguirmos o que queríamos. Na pior das hipóteses, pensei, David Hunter recusar-se-ia a pagar. Não o supus capaz de recorrer à polícia... as pessoas do seu género não gostam da polícia.

A voz endureceu-se-lhe.

O nosso ardil deu resultado. David caiu no laço mais facilmente do que supúnhamos, mas evidentemente que Charles não podia intitular-se definitivamente «Robert Underhay». De um momento para o outro, Rosaleen podia descobrir tudo. Felizmente, porém, ela foi para Londres e isso deu a Charles a possibilidade de, pelo menos, sugerir que era Robert Underhay. Ora, como já disse, parecia que David caíra no laço. Ficou de levar-lhe o dinheiro às nove horas da noite de terça-feira. Em vez de...

A voz embargou-se-lhe.

Devíamos ter compreendido que David era... uma pessoa perigosa. Charles está morto... assassinado... e, se não fosse eu, ainda estaria vivo. Mandei-o para a morte.

Depois de um momento, prosseguiu com voz seca:

Bem pode calcular como me tenho sentido desde então.

Em todo o caso acusou Poirot foi suficientemente rápida a imaginar o desenvolvimento subsequente do ardil. Foi a senhora que induziu o major Porter a identificar seu primo como «Robert Underhay»?

Subitamente, porém, ela protestou veementemente:

Não, juro-lhe que não! Isso não! Ninguém ficou

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mais espantado... Espantado? Ficámos embatucados! Quando este major Porter apareceu a declarar que Charles Charles! era Robert Underhay, não compreendi... e continuo sem compreender!

Mas alguém procurou o major Porter. Alguém o persuadiu ou subornou... a identificar o homem como Underhay.

Francês declarou decisivamente:

Não fui eu e também não foi Jeremy. Nenhum de nós dois faria uma coisa dessas. Oh, compreendo que isso lhe pareça absurdo! Acha isso porque fiz chantagem e não vê por que razão não havia de cometer uma fraude, mas para mim trata-se de duas coisas completamente diferentes. Deve compreender que eu senti... e, na realidade, ainda sinto... que temos direito a uma parte do dinheiro de Gordon. O que eu não tinha conseguido por meios legais estava resolvida a consegui-lo à má-fé. Mas despojar Rosaleen de tudo, forjando a declaração de que ela não era mulher de Gordon... oh, sinceramente, não, M. Poirot, seria incapaz de fazer uma coisa dessas. Por favor, por favor, acredite-me.

Admitirei, pelo menos concedeu lentamente Poirot, que todas as pessoas têm os seus pecados particulares. Sim, acredito-a.

Depois olhou-a perscrutadoramente.

Já sabe, Mrs. Cloade, que, esta tarde, o major Porter meteu uma bala na cabeça?

Ela recuou com os olhos dilatados pelo horror.

Oh, não, M. Poirot... não!

Sim, madame. Sabe, au-fond, o major Porter era um homem honesto. Financeiramente, estava muito por baixo e, quando a tentação lhe acenou, tal como muitos outros homens, não soube resistir-lhe. Deve ter-lhe parecido, pode até ter-se convencido, de que a sua vida estava quase moralmente justificada. Estava já profundamente predisposto contra a mulher com quem seu amigo Underhay casara. Achou que ela lhe tratara o amigo ignominiosamente. E depois essa impiedosa «exploradora» casara-se com um milionário e fugira com a fortuna do segundo marido, em detrimento das pessoas da sua carne e do seu sangue. Deve ter-lhe parecido tentador meter-lhe algumas pedras no caminho... apenas as que ela

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merecia. E pelo simples facto de identificar um morto teria o futuro assegurado. Quando os Cloades estivessem de posse dos seus direitos, ele teria dado a sua cutilada... Sim, imagino a tentação... mas, como a muitos homens do seu tipo, faltava-lhe imaginação. No inquérito, estava muito incomodado, terrivelmente incomodado. Era notório. Num futuro próximo, teria de repetir aquela mentira sob juramento. Não era apenas isso; tinham detido um homem sob a acusação de assassínio... e a identidade do morto fornecia um motivo muito forte para essa acusação. «Voltou para casa e considerou as coisas friamente. Deu-lhes a solução que lhe pareceu melhor.»

Suicidou-se?

Sim. Francês murmurou:

Ele não disse quem... quem... Poirot abanou lentamente a cabeça.

Ele tinha o seu código. Não se encontrou qualquer referência a quem quer que o tenha instigado a cometer perjúrio.

Poirot observou-a perscrutadoramente. Teria havido um fulgor fugidio de alívio ou de afrouxamento de tensão? Sim, mas isso era natural, em qualquer dos casos...

Ela levantou-se e dirigiu-se à janela.

Voltamos, por conseguinte, ao ponto em que estávamos.

Poirot perguntou-se o que lhe iria no espírito.

Capítulo 11

Na manhã seguinte, o superintendente Spence utilizou quase as mesmas palavras de Francês:

Por conseguinte, voltámos ao ponto onde estávamos observou com um suspiro. Temos de descobrir quem era realmente esse tal Enoch Arden.

Posso dizer-lho já, superintendente prontificou-se Poirot. Chamava-se Charles Trenton.

Charles Trenton! o superintendente soltou um assobio. Hum! Um dos Trenton... suponho que foi ela que o levou a isso... refiro-me a Mrs. Jeremy... Contudo,

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não poderemos provar a sua relação com isso. Charles Trenton? Parece que me lembro...

Poirot confirmou com um aceno de cabeça.

Sim. Tinha cadastro.

Assim pensei. Se não me engano, por burlar hotéis. Costumava chegar ao Ritz, sair, comprar um Rolls, sujeito a experiência por uma manhã, ir no carro a todas as lojas mais caras e comprar coisas... e garanto-lhe que os cheques de um homem, que tem à porta um Rolls para transportar as compras para o hotel, não suscitam dúvidas? Além disso, tinha boa figura e bom trato. Demorava-se cerca de uma semana e depois, mal começavam a despertar as suspeitas, desaparecia tranquilamente, vendendo por pouco dinheiro as várias cautelas de penhor aos amigos que tinha arranjado. Charles Trenton. Hum... olhou para Poirot. O senhor tem jeito para descobrir coisas, não tem?

Que tal vai o seu caso contra David Hunter?

Teremos de soltá-lo. Nessa noite, esteve uma mulher com Arden. Isso não é testemunhado apenas pelas palavras dessa velha rabugenta. Jimmy Pierce voltava para casa, depois de o terem expulso do «Loadof Hay» após um copo ou dois fica brigão e viu uma mulher sair do «Stag» e entrar na cabina telefónica, em frente à estação dos correios... Ora, isso foi logo depois das dez. Disse que não era nenhuma pessoa sua conhecida e julgou que fosse alguma hóspede do «Stag». «Pássaro de Londres», foi o que ele lhe chamou.

Não esteve muito perto dela?

Não, no passeio fronteiro. Quem diabo era ela, M. Poirot?

Disse como ia vestida?

Com um casaco de tweed e com um lenço cor de laranja à volta da cabeça. Calças compridas e a cara muito pintada. Condiz com a descrição da velha.

Sim, condiz concordou Poirot, com ar carrancudo.

Spence perguntou-lhe:

Ora, quem era ela, de onde veio, para onde foi? Conhece o nosso horário de comboios. O comboio das nove e vinte é o último que vai para Londres... e o das dez e três é o que vai no sentido oposto. Essa mulher

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teria andado a vagabundear por aí, durante toda a noite, e seguido para Londres no das seis e dezoito da manhã? Teria carro? Ter-se-ia escondido? Já batemos todo o sítio e as redondezas... mas nada.

E quanto ao das seis e dezoito?

Vai sempre apinhado de gente... na maior parte, homens. Acho que teriam reparado numa mulher... nesse tipo de mulher, está claro. Suponho que pode ter aqui vindo e partido de carro, mas, hoje em dia, um carro é coisa que não passa despercebida em Warmsley Vale.

Nessa noite, não foi visto nenhum?

Apenas o do Dr. Cloade. Tinha ido atender um caso... no caminho de Middlingham. É de supor que alguém tivesse reparado numa mulher desconhecida que seguisse num carro.

Não é necessário que tenha sido uma desconhecida declarou lentamente Poirot. Um homem, levemente embriagado e a cem metros de distância, podia não ter reconhecido uma pessoa da terra que não conhecesse muito bem. Alguém, talvez, vestido de maneira diferente da habitual.

Spence olhava-o inquiridoramente.

Esse jovem Pierce reconheceria, por acaso, Lynn Marchmont? Ela esteve ausente durante uns poucos de anos.

A essa hora, Lynn Marchmont estava em White House com a mãe declarou Spence.

Tem a certeza?

Mrs. Lionel Cloade é a «avariada», a mulher do médico diz que lhe telefonou às dez e dez. Rosaleen Cloade estava em Londres. Mrs. Jeremy bem, nunca a vi em calças e não usa maquilhagem. Em todo o caso, já não é nova.

Oh, mon cher Poirot inclinou-se para a frente. Numa noite escura, apenas à luz fraca dos candeeiros da rua, pode saber-se se uma pessoa é velha ou nova ou a idade que tem por baixo da maquilhagem?

Ouça cá, Poirot, aonde quer chegar?

Poirot recostou-se na cadeira e semicerrou os olhos.

Calças, um casaco de tweed, um lenço cor de laranja em volta da cabeça, uma boa dose de maquilhagem, um baton caído. Tudo isso é sugestivo.

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Parece o oráculo de Delfos resmungou o superintendente. Não quer dizer que eu saiba o que era o oráculo de Delfos uma coisa que o jovem Graves se dá ares de saber e não lhe serve para nada no seu serviço de polícia. Tem ainda mais algumas declarações a fazer, M. Poirot?

Já lhe disse que este caso estava errado. Como exemplo, disse-lhe que o morto estava incorrecto. E estava-o, como Underhay. Underhay era nitidamente um excêntrico, um indivíduo cavalheiresco, antiquado e reaccionário. O homem que se hospedou no «Stag» era um chantagista; não era nem cavalheiresco, nem antiquado, nem reaccionário, nem particularmente excêntrico... por conseguinte, não era Underhay. Não podia ser Underhay porque as pessoas não mudam. A coisa interessante foi Porter ter declarado que era Underhay.

Levando-o a Mrs. Jeremy?

A semelhança levou-me a Mrs. Jeremy. Esse perfil Trenton tem uma nota muito especial. Para permitir-me um pequeno jogo de palavras, Charles Trenton, o morto, pertence ao mesmo molde. Mas subsistem ainda perguntas a que é necessário responder. Por que foi David Hunter tão pronto a permitir que lhe extorquissem dinheiro por chantagem? Será o género de homem que se preste a chantagem? Qualquer pessoa seria categórica a responder NÃO. Por conseguinte, ele também procede despropositadamente. Temos ainda Rosaleen Cloade. Todo o seu comportamento é incompreensível... mas há uma coisa que muito me agradaria saber. Por que motivo está amedrontada? Por que motivo pensa que, desde que não tem o irmão a seu lado para protegê-la, alguma coisa lhe acontecerá? Alguém... ou alguma coisa lhe incutiu esse medo. Mas não é o receio de perder a fortuna... não, é mais do que isso. É pela sua vida que ela receia...

Meu Deus, M. Poirot, não está a pensar...

Não nos esqueçamos, Spence, que, tal como há pouco acabou de dizer, voltámos ao ponto onde estávamos. Isto é, a família Cloade voltou ao ponto de onde tinha partido. Robert Underhay morreu em África e a vida de Rosaleen Cloade está de permeio entre eles e o dinheiro de Gordon Cloade...

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Julga realmente que algum deles seria capaz de fazer isso?

Julgo apenas isto: Rosaleen Cloade tem vinte e seis anos e, embora mentalmente seja um pouco fraca, fisicamente é forte e saudável. Pode viver até aos setenta e ainda mais. Ainda uns quarenta e quatro anos, digamos. Não acha, superintendente, que quarenta e quatro anos podem ser tempo demasiado para uma pessoa ficar em contemplação?

Capítulo 12

Quando Poirot saiu da esquadra, foi quase imediatamente abordado pela tia Kathie. Esta transportava vários embrulhos de compras e dirigiu-se-lhe tão excitada que quase perdera o fôlego.

Que coisa terrível essa morte do major Porter! comentou. Não posso deixar de sentir que a sua perspectiva da vida deve ter sido muito materialista. Vida de exército, compreende. Muito limitada e, embora tivesse passado grande parte da vida na índia, receio que nunca tenha tirado vantagem das oportunidades espirituais. Devia ser tudo pukka (1) e chota hazri (2) e tiffin (3) e alancear javalis... o acanhado ambiente do Exército. Pensar que podia ter-se sentado com um cheia (4) aos pés de um guru! (5) Ah, as oportunidades desperdiçadas, M. Poirot, como são tristes!

A tia Kathie meneou a cabeça e afrouxou o aperto com que segurava um dos sacos das compras. Para fora deste resvalou um desolado bocado de bacalhau, que foi cair na valeta. Poirot apanhou-o e a tia Kathie, na sua agitação, deixou escapar uma vasilha de melaço refinado que começou uma animada carreira ao longo da High Street.

Muito obrigada, M. Poirot a tia Kathie agarrou no bacalhau. Poirot foi na perseguição da vasilha. Oh,

(1) Gente snob. (N. do T.)

(2) Pequeno-almoço. (N. do T.)

(3) Almoço. (N. do T)

(4) Estudante budista. (N. do T.}

(5) Chefe espiritual. (N. do T.)

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obrigada... que desastrada!... Mas realmente tenho andado tão transtornada. Esse pobre homem... cuidado, é pegajoso... custa-me realmente sujar-lhe o seu lenço limpo. Bem, é muito gentil da sua parte... como eu estava a dizer, na vida estamos na morte... e na morte estamos na vida. Não me espantaria nada ver o corpo astral de um dos meus queridos amigos que morreram. Como é sabido, até se pode passar por ele na rua. Ora... só na outra noite, eu...

Dá-me licença? Poirot encafuou firmemente o bacalhau nas profundezas do saco. Estava a dizer, sim?

Corpos astrais respondeu a tia Kathie. Sabe, pedi uma moeda de dois dinheiros... porque só tinha moedas de meio-péni. Mas, naquela altura, o rosto pareceu-me familiar... simplesmente, não consegui localizá-lo. Morreu... talvez já há algum tempo... e, por isso, a minha memória não estava muito boa. É maravilhoso o modo como as pessoas são enviadas a uma outra que esteja nalgum apuro... ainda que se trate apenas de uma questão de moedas para falar ao telefone. Oh, meu caro, que bicha à porta dos Peacocks... devem ter Bolo Familiar ou Torta Suíça! Espero não chegar demasiado tarde!

Mrs. Lionel Cloade precipitou-se para o outro lado da rua e tomou lugar na ponta de uma bicha de mulheres de cara horrível, formada à porta da confeitaria.

Poirot continuou a descer a High Street. Não virou para o «Stag». Em vez disso, desviou os seus passos para a White House.

Desejava muitíssimo ter uma conversa com Lynn Marchmont e suspeitava de que Lynn Marchmont não seria avessa a ter uma conversa com ele.

Estava uma manhã encantadora... uma dessas manhãs de Verão, na Primavera, que têm uma frescura negada por um dia de verdadeiro Verão.

Poirot saiu da estrada principal. Avistou o atalho que passava por Long Willows e continuava a subir pela encosta da colina, passando também por Furrowbank. Charles Trenton tomara por esse atalho ao sair da estação, na sexta-feira anterior à sua morte. Ao descer a encosta, cruzara-se com Rosaleen Cloade, que a subia. Não a reconhecera o que não era para admirar, visto não ser Robert Underhay e ela, como é natural, não o reconhecera

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pela mesma razão. Mas, quando lhe tinham mostrado o corpo, jurara que nunca vira aquele homem. Tê-lo-ia dito para se salvaguardar? Ou, naquele dia, teria estado tão absorta nos seus pensamentos que nem sequer olhara para o rosto do homem com quem se cruzara no atalho? Se assim fora, em que estaria a pensar? Teria estado, por acaso, a pensar em Rowley Cloade?

Poirot percorreu a pequena estrada lateral que levava a White House. O jardim que a rodeava tinha um aspecto encantador. Ostentava muitos arbustos em flor, lilases e laburnos e, no centro do relvado, ficava uma enorme e velha macieira. Sob esta, estendida numa cadeira de lona, achava-se Lynn Marchmont.

Saltou nervosamente, quando Poirot, numa voz cerimoniosa, lhe desejou:

Bom dia!

Assustou-me, M. Poirot. Não o vi atravessar o relvado. Com que então ainda cá está... em Warmsley Vale.

Estou cá... sim.

Por quê?

Poirot encolheu os ombros.

É um lugar agradável, retirado do mundo, onde se pode descansar. Descanso.

Agrada-me que cá esteja disse Lynn.

O resto da sua família não me diz o mesmo. «Quando regressa a Londres, M. Poirot?» E esperam ansiosamente pela resposta.

Querem que regresse a Londres?

Assim parece.

Pois eu não.

Não... compreendo. Por quê, mademoiselle?

Porque significa que não está convencido. Não está convencido de que David Hunter tenha feito isso.

E deseja assim tanto... que ele esteja inocente? Notou-lhe um leve rubor sob a pele bronzeada.

Como é natural, não quero ver um homem enforcado pelo que não fez.

Como é natural... oh, sim!

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E a polícia tem-lhe má vontade, simplesmente porque ele não a quis ajudar. O mal de David está aí... gosta de contender com as pessoas,

A polícia não está tão predisposta contra ele como

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pensa, Miss Marchmont. A predisposição contra ele estava no espírito dos jurados. Recusaram-se a seguir a indicação do coroner. Pronunciaram-se por um veredicto acusatório e, por conseguinte, a polícia viu-se obrigada a prendê-lo. Mas posso dizer-lhe que não está nada convencida da sua culpabilidade.

Então, vão pô-lo em liberdade? perguntou Lynn ansiosamente.

Poirot encolheu os ombros.

Quem pensa a polícia que seja o culpado, M. Poirot?

Nessa noite, esteve uma mulher no «Stag» proferiu Poirot vagarosamente.

Não compreendo nada. Quando pensávamos que o homem era Robert Underhay, parecia tudo tão simples. Por que afirmou o major Porter que era Underhay, se o não era? Por que se suicidou? Voltámos ao ponto de partida.

É a terceira pessoa a empregar essa frase!

Sou? inquiriu Lynn, assustada. O que anda a fazer, M. Poirot?

A falar com pessoas. É o que ando a fazer. Simplesmente a falar com pessoas.

Mas não lhes faz perguntas a respeito do crime? Poirot abanou a cabeça.

Não, apenas... como hei-de dizer... ouço tagarelar.

Isso serve de alguma coisa?

Às vezes, ajuda. Ficaria surpreendida se soubesse quanto sei da vida quotidiana de Warmsley Vale, nas últimas semanas. Sei os sítios por onde as pessoas andaram a passear, quem encontraram, e, às vezes, o que disseram. Sei, por exemplo, que esse Arden dirigiu-se à aldeia, seguindo pelo atalho que passa por Furrowbank, que perguntou o caminho a Mr. Rowley Cloade, que levava às costas uma mochila e que não tinha bagagem. Sei que Rosaleen Cloade tinha passado mais de uma hora na granja com Rowley Cloade e que, contrariamente à sua maneira de ser, se sentira ali feliz.

Sim, Rowley contou-me isso. Disse que parecia alguém que estivesse a passar uma tarde de folga.

Ah, ele disse isso? Poirot fez uma pausa e depois prosseguiu. Sim, estou a par de muitas idas e

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vindas. E ouvi contar muita coisa acerca de dificuldades das pessoas... das suas e das de sua mãe, por exemplo.

Não há nenhum segredo a respeito de qualquer de nós disse Lynn. Todos nós tentámos extorquir dinheiro a Rosaleen. É isso que quer dizer, não é verdade?

Não disse isso.

Ora, é verdade! E suponho que também ouviu dizer coisas a meu respeito, a respeito de Rowley e de David.

Mas vai casar com Rowley Cloade?

Vou? Isso gostava eu de saber... Era o que procurava decidir nesse dia... em que David emergiu do souto. Foi como um grande ponto de interrogação no meu espírito. Devo? Devo? Até o comboio, que passava no vale, parecia estar a perguntar a mesma coisa. O fumo desenhava um perfeito ponto de interrogação no céu.

O rosto de Poirot adquiriu uma expressão curiosa. Lynn interpretou-a erradamente e gritou:

Oh, não compreende, M. Poirot, é tudo tão difícil. Não se trata de David. É de mim! Mudei. Estive ausente durante três anos... quatro anos. Agora voltei, mas não sou a mesma pessoa que partiu. Em toda a parte, sucede a mesma tragédia. Pessoas que regressam mudadas e que têm de reajustar-se. Não é possível ausentarmo-nos e levarmos uma espécie de vida diferente sem mudarmos!

Engana-se contrariou-a Poirot. A tragédia da vida está no facto de as pessoas não mudarem.

Ela fitou-o abanando a cabeça. Poirot insistiu:

Sim. É como lhe digo. Por que partiu, em primeiro lugar?

Por quê? Entrei para as Wrens. Fui em serviço.

Sim, sim, mas por que se alistou nas Wrens, em primeiro lugar? Estava pedida em casamento. Estava apaixonada por Rowley Cloade. Podia ter trabalhado, não é verdade, como camponesa, aqui, em Warmsley Vale?

Creio que sim, mas eu queria...

Queria partir. Queria ir para o estrangeiro, conhecer a vida. Queria talvez afastar-se de Rowley Cloade... E agora está desassossegada, ainda quer... partir! Oh, não mademoiselle, as pessoas não mudam!

Quando eu estava no Oriente, ansiava por regressar à pátria exclamou Lynn defensivamente.

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Sim, sim, deseja-se sempre estar onde não se está. Talvez isso seja sempre assim, consigo. Idealiza um quadro de si mesma, um quadro de Lynn Marchmont de regresso à pátria... Mas o quadro não se torna verdadeiro porque a Lynn Marchmont que imagina não é a verdadeira Lynn Marchmont. É a Lynn Marchmont que gostaria de ser.

Por conseguinte, na sua opinião, nunca estarei feliz em parte alguma? perguntou Lynn amargamente.

Não digo isso. O que lhe digo é que, quando partiu, se sentia desgostosa com o seu noivado e que, agora que voltou, continua desgostosa com o seu noivado.

Lynn arrancou uma folha e mastigou-a meditativamente.

É muito perspicaz a analisar as coisas, não é, M. Poirot?

É o meu metier replicou com modéstia. Há também outra verdade que julgo ainda não ter reconhecido.

Refere-se a David, não é? inquiriu Lynn, com vivacidade. Julga-me apaixonada por David?

Cabe-lhe a si dizê-lo murmurou Poirot, discretamente.

Mas eu... não sei! Há qualquer coisa em David que me mete medo... mas há também qualquer coisa que me atrai...ficou calada por um momento e depois prosseguiu. Estive ontem a falar com o comandante de David. Apareceu cá, logo que ouviu dizer que David tinha sido preso, para ver se poderia fazer alguma coisa por ele. Esteve a falar-me de David, disse-me que era terrivelmente temerário, que era um dos homens mais valentes que durante toda a sua vida tivera sob o seu comando. E, no entanto, sabe, M. Poirot, apesar de tudo quanto ele disse em seu louvor, tive a sensação de que não tinha a certeza, de que não tinha a certeza absoluta de que David estivesse inocente.

Também não tem a certeza?

Lynn esboçou um sorriso torcido, um tanto patético.

Não... compreende, nunca tive confiança em David. Pode amar-se uma pessoa em quem não se confia?

Infelizmente, sim.

Estive sempre de má-fé para com ele... porque

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não confiava nele. Acreditei em muita coisa da estúpida tagarelice da terra... que David não era David Hunter... mas simplesmente um amante de Rosaleen. Fiquei envergonhada quando conheci o comandante e ele me contou que conhecera David em rapaz, na Irlanda.

C’est épatant murmurou Poirot como as pessoas podem agarrar num pau pela ponta indevida!

Que quer dizer?

Apenas o que disse. Diga-me, se por acaso, Mrs. Cloade a mulher do médico lhe telefonou na noite do crime?

A tia Kathie? Sim, telefonou.

A que propósito?

Uma incrível confusão de contas.

Telefonou-lhe de casa?

Não, tinha o telefone avariado. Teve de ir a uma cabina.

Às dez e dez?

Pouco mais ou menos. Os nossos relógios nunca estão exactos.

Pouco mais ou menos repetiu Poirot, pensativamente. Prosseguiu delicadamente: Foi a única chamada que recebeu, nessa noite?

Não respondeu Lynn laconicamente.

David Hunter telefonou-lhe de Londres?

Lynn encolerizou-se subitamente.Suponho que também quer saber o que ele disse, não?

Oh, certamente que não presumo...

Estou pronta a dizer-lho! Disse que ia partir... desaparecendo da minha vida. Disse que não me merecia e que nunca se portaria bem... nem sequer por mim.

E, em vista disso ser provavelmente verdade, não gostou conjecturou Poirot.

Espero que ele parta... isto é, se for posto em liberdade... Desejo que vão ambos para a América, ou para qualquer outro lado. Depois, talvez deixemos de pensar neles... aprenderemos a manter-nos à nossa custa. Deixaremos de sentir ódio.

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Ódio?

Sim. Senti-o pela primeira vez, certa noite, em casa da tia Kathie. Ela deu um pequeno sarau. Talvez por eu ter acabado de regressar do estrangeiro e estar ainda

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muito excitada... pareceu-me senti-lo no ar que pairava à nossa volta. Ódio contra ela... contra Rosaleen. Não vê que desejávamos que ela morresse... todos nós! Desejávamos que ela morresse... E é horrível desejar-se... a morte de uma pessoa que nunca nos fez mal.

A sua morte, evidentemente, é a única coisa que lhes pode trazer qualquer bem material observou Poirot num tom vivo e prático.

Quer dizer, financeiramente? O facto de a sua propriedade estar aqui situada causou-nos mal, sob todos os aspectos! Invejar uma pessoa, odiá-la, explorá-la... não é bom para ninguém. E agora cá está ela, sozinha, em Furrowbank. Parece um fantasma... parece terrivelmente assustada... parece... oh!, parece estar transtornada da cabeça. E não quer que a ajudemos! Nenhum de nós. Todos nós tentámos fazê-lo. A Mamã convidou-a a vir para nossa casa e a tia Francês fez o mesmo. Até a tia Kathie se ofereceu para ficar com ela em Furrowbank. Mas ela agora não quer nada connosco e não a censuro. Nem sequer quis receber o comandante Conroy. Acho que está doente, doente de aflição, de terror e de angústia. E nós nada podemos fazer para tranquilizá-la, porque ela não deixa.

Já tentou?

Sim respondeu Lynn. Fui lá ontem perguntar-lhe se queria que a ajudasse nalguma coisa. Olhou-me... interrompeu-se subitamente e estremeceu. Julgo que me odeia. Disse «Você, menos do que todos». David recomendou-lhe, julgo eu, que ficasse em Furrowbank e ela faz sempre o que David lhe recomenda. Rowley levou-lhe ovos e manteiga de Long Willows. Creio que, de nós todos, é a única pessoa de quem ela gosta. Rowley é realmente bom.

Há pessoas comentou Poirot por quem se tem muita simpatia... muita piedade, pessoas que têm um fardo demasiado pesado a suportar. Por Rosaleen Cloade, sinto muita piedade. Se pudesse, havia de ajudá-la. Mesmo agora, se ela quisesse ouvir...

Com uma súbita resolução, pôs-se de pé.

Venha, mademoiselle incitou-a. Vamos a Furrowbank.

Quer que vá consigo?

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Se está disposta a ser generosa e compreensiva... Lynn exclamou:

Estou... sinceramente estou...

Capítulo 13

Levaram cerca de cinco minutos a chegar a Furrowbank. O atalho serpenteava, subindo através de compactos maciços de rododendros. Gordon Cloade não se poupara a qualquer esforço ou dispêndio para fazer de Furrowbank um lugar de sonho.

A criada que veio abrir-lhes a porta pareceu ficar surpreendida ao vê-los e um pouco indecisa quanto a poderem ser recebidos por Mrs. Cloade. Informou-os de que a senhora ainda não estava levantada. Todavia, conduziu-os à sala de visitas e subiu ao primeiro andar com o recado de Poirot.

Este olhou em volta. Comparava este aposento à sala de Francês este último, com uma nota tão íntima, tão característica da personalidade da dona de casa. A sala de visitas de Furrowbank era estritamente impessoal... testemunhando apenas opulência, temperada por bom gosto. Gordon Cloade cuidara do mínimo pormenor... tudo ali era de boa qualidade e de valor artístico, mas não havia qualquer indício de selectivismo, qualquer sinal dos gostos pessoais da dona daquele aposento. Dava a impressão de que Rosaleen não impregnara a casa com a sua individualidade.

Vivera em Furrowbank como um visitante estrangeiro pode viver no «Ritz» ou no «Savoie».

«Gostava de saber se a outra...», pensou Poirot.

Lynn interrompeu-lhe o decurso dos pensamentos, perguntando-lhe em que estava a pensar e por que tomara uma expressão tão desagradável.

Dizem que o salário do pecado é a morte. Mas, às vezes, o salário do pecado é o luxo. Há algum mais suportável? Ser-se separado da própria vida caseira. Ter talvez uma única e rápida visão dela, quando o regresso a essa vida está vedado...

Interrompeu-se. A criada pusera de parte o seu porte superior e foi uma simples mulher de meia-idade, assustada,

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que apareceu a correr na sala, gaguejando e sufocando com palavras que mal podia pronunciar.

Oh, Miss Marchmont! Oh, senhor, a senhora... lá em cima... está muito mal... não fala... não pode levantar a cabeça e tem as mãos muito frias.

Poirot virou-se vivamente e precipitou-se para fora do aposento. Lynn e a criada seguiram-no. Subiu a correr ao primeiro andar. A criada indicou-lhe a porta aberta, em frente, ao cimo das escadas.

Era um belo quarto de dormir, espaçoso, onde o sol entrava pelas janelas abertas incidindo sobre os belos tapetes de tons pálidos.

Rosaleen estava estendida na enorme cama de armação esculpida. Parecia dormir. As longas pestanas escuras descansavam sobre as faces e a cabeça estava naturalmente de lado, sobre a almofada. Numa das mãos, via-se um lenço amarfanhado. Parecia uma criança triste, que tivesse chorado, acabando por adormecer.

Poirot agarrou-lhe na mão e tomou-lhe o pulso. A mão estava gelada e não fez mais do que confirmar-lhe as suas suposições.

Disse, calmamente, a Lynn:

Já está morta, há algum tempo. Morreu enquanto dormia.

Oh, senhor... oh... que havemos de fazer? a criada irrompeu num pranto.

Quem era o médico dela?

O tio Lionel respondeu Lynn. Poirot ordenou à criada:

Telefone ao Dr. Cloade.

Ela retirou-se para cumprir a ordem, sem parar de soluçar. Poirot examinou todos os cantos do quarto. Uma pequena caixa branca de cartão, colocada ao lado da cama, tinha o rótulo «Pó para tomar ao deitar». Com o auxílio de um lenço, abriu-a. Continha três pacotinhos de papel. Dirigiu-se à escarpa da chaminé e depois à escrivaninha. A cadeira desta achava-se afastada para o lado e a pasta estava aberta. Via-se nela uma folha de papel com palavras garatujadas numa escrita infantil e informe.

Não sei o que fazer... não posso continuar... Tenho procedido tão perversamente. Tenho de desabafar com alguém e tranquilizar a minha consciência. Em primeiro

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lugar, não tencionava ser tão má. Não previ tudo quanto resultaria disto. Tenho de anotar...

As palavras seguintes estavam ilegíveis. A caneta encontrava-se onde fora deixada cair. Poirot ficou a olhar para aquelas palavras. Lynn continuou junto à cama a contemplar a rapariga morta.

Depois, a porta abriu-se violentamente e David Hunter precipitou-se, arquejante, para dentro do quarto.

David Lynn adiantou-se na sua direcção. Soltaram-te? Estou tão contente.

Hunter, sem fazer caso das suas palavras, empurrou-a para o lado, quase brutalmente, e debruçou-se sobre o rosto tranquilo e pálido.

Rosa! Rosaleen...tocou-lhe na mão e depois virou-se para Lynn, com o rosto rubro de cólera. As suas palavras soaram alto e vagarosamente: Com que então mataram-na, não é verdade? Finalmente, desembaraçaram-se dela! Desembaraçaram-se de mim, mandaram-me para a «gaiola», sob uma acusação forjada, e depois, entre vocês todos, puseram-na fora do jogo! Todos vocês ou apenas um de vocês? Pouco me importa como foi! Mataram-na! Queriam o maldito dinheiro... agora já o têm! A morte dela pô-lo nas vossas mãos! Agora todos se libertaram de apertos. Serão todos ricos... um bando de sórdidos ladrões e assassinos é o que vocês são! Enquanto estive a seu lado, não foram capazes de tocar-lhe. Eu sabia proteger a minha irmã... ela nunca foi capaz de proteger-se. Quando aqui ficou sozinha, vocês viram uma oportunidade e aproveitaram-na fez uma pausa, inclinando-se um pouco para o lado e em voz baixa e trémula, proferiu: Assassinos!

Lynn gritou:

Não, David. Não! Estás enganado. Nenhum de nós seria capaz de matá-la, de fazer uma coisa dessas!

Um de vocês a assassinou, Lynn Marchmont. E sabes isso tão bem como eu!

Juro-te que não a matámos, David. Juro-te que não o fizemos.

O olhar desvairado do rapaz suavizou-se um pouco.

É possível que não tenhas sido tu, Lynn.

Não fui, David, juro que não...

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Hercule Poirot deu um passo em frente e tossicou. David Hunter virou-se para ele.

Creio interveio Poirot que as suas suposições são um pouco ultradramáticas. Por que se apressa a concluir que sua irmã foi assassinada?

É capaz de dizer que não foi assassinada? Chama a isto indicou o corpo estendido na cama uma morte natural? Rosaleen sofria dos nervos, não há dúvida, mas não tinha um organismo fraco. Tinha um coração excelente.

Na noite passada continuou Poirot antes de se deitar, sentou-se aqui a escrever...

David passou por ele e inclinou-se sobre a folha de papel.

Não lhe toque recomendou Poirot.

David retirou a mão que já estendera e leu as palavras, sem pestanejar.

Depois, virou vivamente a cabeça e olhou perscrutadoramente para Poirot.

Está a sugerir suicídio? Por que havia Rosaleen de suicidar-se?

A voz que respondeu à pergunta não foi a de Poirot. A voz calma, com a acentuação de Oastshire, do superintendente Spence respondeu, da entrada da porta.

Suponhamos que, na passada terça-feira, à noite, Mrs. Cloade não esteve em Londres, mas em Warmsley Vale? Suponhamos que foi procurar o homem que estivera a fazer chantagem com ela? Suponhamos que, num acesso de nervos, o assassinou?

David dirigiu ao superintendente um olhar duro e irado.

Minha irmã estava em Londres, na noite de terça-feira. Estava no apartamento, quando eu lá entrei, às onze horas.

Ora disse Spence isso é a sua versão, Mr. Hunter. E estou certo de que continuará a sustentá-la. Mas não sou obrigado a acreditar nessa história. E, em qualquer dos casos, não é já um pouco tarde?... com um gesto apontou a cama. O caso já não será levado a tribunal.

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Capítulo 14

Ele não quer admiti-lo, mas estou convencido de que sabe que ela o fez declarou Spence, sentado à secretária do seu gabinete da esquadra e olhando para Poirot, instalado à sua frente. É curioso como fomos tão cuidadosos em verificar o seu álibi. Nunca nos preocupámos muito com ela. E, contudo, não há nenhuma prova que corrobore a sua estada, nessa noite, no apartamento de Londres. Temos apenas a palavra dele, de que a irmã lá estava. Sabemos desde o princípio que apenas duas pessoas tinham motivo para eliminarem Arden. David Hunter e Rosaleen Cloade. Eu virei-me logo contra ele e deixei-a de lado. Ela parecia tão inofensiva um pouco estúpida até mas acho que isso explica, em parte, toda a coisa. Muito provavelmente David Hunter despachou-a para Londres por essa mesma razão. Deve ter percebido que ela perderia a cabeça e que era do género que se torna perigoso quando se enche de pânico. Uma outra coisa curiosa: via-a muitas vezes com um vestido de linho cor de laranja. Era uma das suas cores preferidas. Lenços cor de laranja um vestido às riscas, cor de laranja, uma boina cor de laranja. E, todavia, até quando a velha Mrs. Leadbetter descreveu uma mulher nova com a cabeça metida num lenço cor de laranja, não me ocorreu que devia ter sido a própria Mrs. Gordon. Penso, contudo, que ela não estava no seu juízo perfeito... que não foi totalmente responsável. O modo como a viu na igreja católica, aqui da terra, dá a impressão de que estava meio transtornada da cabeça com o remorso e sentimento de culpabilidade.

Sim, tinha um sentimento de culpabilidade concordou Poirot.

Spence conjecturou pensativamente:

Deve ter atacado Arden, numa espécie de frenesi. Não creio que ele tivesse a mínima suspeita do que ia acontecer-lhe. Com uma amostra de rapariga como aquela, não se teria posto em guarda ruminou, durante um momento, em silêncio e depois acrescentou: Há ainda uma coisa que não consigo compreender bem. Quem diabo foi ter com Porter? Diz que não foi Mrs. Jeremy? Aposto que foi tudo a mesma coisa!

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Não afiançou Poirot não foi Mrs. Jeremy. Garantiu-mo e eu acredito-a. Fui estúpido nesse ponto. Eu devia logo ter sabido quem foi. O próprio major Porter mo disse.

Ele disse-lho?

Oh, indirectamente, já se sabe, sem dar por isso.

Quem foi, então?

Poirot pôs a cabeça um pouco de lado.

Primeiramente, é-me permitido fazer-lhe duas perguntas?

O superintendente pareceu surpreendido.

Pergunte o que quiser.

Aqueles pós soporíferos, na caixa ao lado da cama de Rosaleen Cloade, o que eram?

O superintendente pareceu ainda mais surpreendido.

Aqueles? Oh, eram absolutamente inofensivos. Brometo. Calmante de nervos. Tomava o conteúdo de um pacotinho todas as noites. Analisámo-los, está claro. Eram absolutamente inofensivos.

Quem os receitou?

O Dr. Cloade.

Quando lhos receitou?

Oh, há já algum tempo.

Que veneno é que a matou?

Bem, na realidade, ainda não recebemos o relatório, mas não creio que haja muitas dúvidas a esse respeito. Morfina, e numa boa dose.

Encontraram alguma morfina na sua posse? Spence olhou curiosamente para Poirot.

Não. Aonde quer chegar, M. Poirot?

Passarei agora à minha segunda pergunta respondeu Poirot evasivamente. David Hunter fez uma chamada de Londres para Lynn Marchmont às onze e cinco da noite de terça-feira. O senhor diz que verificou as chamadas. Essa foi a única chamada feita do apartamento de Shepherd’s Court. Houve algumas chamadas feitas aqui da terra?

Uma, às dez e quinze. Também de Warmsley Vale. Foi feita de uma cabina telefónica pública.

Compreendo Poirot ficou calado por um momento.

Qual é a sua ideia, M. Poirot?

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Atenderam a chamada? A telefonista recebeu resposta do número de Londres?

Compreendo o que quer dizer declarou Spence, vagarosamente. Devia ter estado alguém no apartamento. Não podia ser David Hunter pois seguia no comboio, em viagem de regresso. Parece pois que devia ter sido Rosaleen Cloade. E, se assim foi, Rosaleen Cloade não podia ter estado no «Stag» alguns minutos antes. Aonde quer chegar, M. Poirot, é que a mulher com o lenço cor de laranja não era Rosaleen Cloade. E, neste caso, não foi Rosaleen Cloade quem assassinou Arden. Mas então por que razão se suicidou?

. A resposta a isso é muito simples retrucou Poirot. Não se suicidou. Rosaleen Cloade foi assassinada.

O quê?

Foi assassinada deliberadamente, a sangue-frio.

Mas quem assassinou Arden? Eliminámos David...

Não foi David...

E agora elimina Rosaleen? Mas, cos diabos!, esses dois eram as únicas pessoas com uma sombra de motivo!

Sim disse Poirot. Motivo. Foi isso que nos despistou. Se A tem um motivo para matar C e B tem um motivo para matar D... bem, não parece fazer sentido, não é verdade, que A mate D e B mate C?

Spence resmungou.

Acalme-se Poirot, acalme-se. Ainda nem sequer comecei a compreender o que está para aí a dizer com os seus AA, BB e CC.

É complicado concedeu Poirot é muito complicado. Porque, bem vê, tem aqui duas espécies diferentes de crime e, consequentemente, tem, deve ter, duas espécies diferentes de assassinos. Registe Primeiro Assassino e registe Segundo Assassino.

Não cite Shakespeare resmungou Spence. Isto não é um drama isabelino.

Pelo contrário, é até muito shakespeariano... estão aqui todas as emoções... as emoções humanas... em que Shakespeare devia ter revelado... os ciúmes, os ódios... as rápidas acções apaixonadas. E aqui há também um oportunismo bem-sucedido, «Na vida de cada ente, há uma maré oportuna, cuja torrente, aproveitada

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na enchente, pode levar à Fortuna...» Alguém agiu de acordo com isso, superintendente. Agarrar a oportunidade e fazê-la servir os seus próprios fins isso foi triunfantemente consumado debaixo do seu nariz, por assim dizer! Spence esfregou irritadamente o nariz.

Fale de modo que eu o entenda, M. Poirot pediu. Se é possível, diga simplesmente o que quer exprimir com isso.

Serei muito claro... tão claro como cristal. Temos três mortes, não é verdade? Concorda com isto, não é assim? Morreram três pessoas.

Spence olhou-o com curiosidade.

Certamente que sim... Não vai querer fazer-me acreditar que uma delas ainda está viva?

Não, não tranquilizou-o Poirot. Estão todas mortas. Mas como morreram elas? Como, digamos assim, classificaria as suas mortes?

Bem, quanto a isso M. Poirot, conhece os meus pontos de vista. Um assassínio e dois suicídios. Mas, de acordo consigo, o último suicídio não é um suicídio. É outro assassínio.

De acordo comigo sublinhou Poirot houve um suicídio, um acidente e um assassínio.

Acidente? Quer dizer que Mrs. Cloade se envenenou acidentalmente? Ou quer dizer que a bala que o major Porter meteu na cabeça se deve a um acidente?

Não respondeu Poirot. O acidente foi a morte de Charles Trenton... por outras palavras, Enoch Arden.

Acidente! o superintendente explodiu Acidente? Chama a um assassínio extraordinariamente brutal, em que a cabeça de um homem fica despedaçada por repetidos golpes, um acidente?!

Absolutamente imperturbável perante o calor do superintendente, Poirot replicou calmamente:

Quando digo um acidente, quero dizer que não havia a mínima intenção de matar.

Não houve intenção de matar... quando a cabeça de um homem ficou desfeita? Quererá dizer que foi atacado por um lunático?

Acho que essa hipótese se aproxima muito da verdade. embora não muito no sentido que lhe atribui.

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Mrs. Gordon, era a única mulher tarada que havia neste caso. Notei-lhe algumas vezes um aspecto muito estranho. Evidentemente que Mrs. Lionel Cloade é um bocado desaparafusada... mas nunca seria violenta, Mrs. Jeremy tem a cabeça colocada no seu lugar! A propósito, diz que não foi Mrs. Jeremy que subornou Porter?

Não. Sei quem foi. Como já lhe disse, foi o próprio Porter que mo deu a entender. Apenas uma leve observação... ah, devia bater com a cabeça nas paredes, por não ter reparado nisso naquela altura.

Então o seu lunático anónimo assassinou Rosaleen Cloade? perguntou Spence cuja voz soava cada vez mais impregnada de cepticismo.

Poirot sacudiu vigorosamente a cabeça.

De forma alguma. É aqui que o Primeiro Assassino sai e o Segundo Assassino entra. Este é um tipo de criminoso inteiramente diferente, sem ódio, sem paixão. Um assassínio premeditado, a sangue-frio e, posso dizer, superintendente Spence, que o assassino de Rosaleen Cloade será enforcado por este crime.

Levantou-se enquanto falava e dirigiu-se para a porta.

Eh! gritou Spence. Tem de dar-me alguns nomes. Não pode deixar a coisa nesses termos.

Dentro de muito pouco tempo... sim, dar-lhos-ei. Mas estou à espera de uma coisa... Para ser exacto, de uma carta do outro lado do mar.

Não fale como um adivinho barato! Eh... Poirot. Mas Poirot sumira-se.

Atravessou a praça e tocou à campainha da casa do Dr. Cloade. A mulher do médico veio abrir a porta e, ao ver Poirot, soltou a habitual arfada. Este não perdeu tempo. Madame, preciso de falar-lhe.

Oh, certamente... entre... não tive ainda muito tempo para limpar o pó, mas...

Quero perguntar-lhe uma coisa. Há quanto tempo seu marido é morfinómano?

A tia Kathie irrompeu num pranto súbito.

Oh, meu Deus, meu Deus... tinha tantas esperanças de que nunca ninguém chegasse a saber... Começou

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com a guerra. Andava tão terrivelmente extenuado e sofria de uma nevralgia tão forte! Desde então, tem procurado diminuir a dose... lá isso tem. Mas é isso que o torna, por vezes, tão irascível...

É essa uma das razões por que tem precisado de dinheiro, não é verdade?

Suponho que sim. Oh, meu caro M. Poirot, ele prometeu-me ir para um sanatório...

Acalme-se, madame, e responda-me a mais uma pequena pergunta. Na noite em que telefonou a Lynn Marchmont, fê-lo da cabina telefónica em frente à estação dos correios, não foi? Encontrou alguém na praça, nessa noite?

Oh, não, M. Poirot, nem vivalma.

Mas ouvi dizer que teve de pedir emprestada uma moeda de dois dinheiros porque tinha apenas uma moeda de meio-péni.

Ah, sim. Tive de pedi-lo a uma mulher que ia a sair da cabina. Deu-me dois dinheiros em troca do meio-péni.

Que aspecto tinha essa mulher?

Bem, muito teatral, não sei se me faço entender. Um lenço cor de laranja em volta da cabeça. O mais engraçado é que tive quase a certeza de tê-la já visto noutro sítio qualquer. A cara dela pareceu-me muito familiar. Penso que devia ter sido alguma pessoa que já tivesse morrido. E, apesar disso, sabe, não pude lembrar-me de onde e como a tinha conhecido.

Obrigado, Mrs. Cloade agradeceu Hercule Poirot.

Capítulo 15

Lynn saiu de casa e contemplou o céu.

O Sol aproximava-se do poente, mas no céu não havia qualquer tonalidade, apenas uma luminosidade quase irreal. Sentia-se a tranquilidade daquele anoitecer. Mais tarde, pensou, haveria tempestade.

Bem, chegara a altura. Não podia adiar as coisas por mais tempo. Devia ir a Long Willows falar com Rowley. Pelo menos, devia-lhe isso... ”ser ela própria a dizer-lho e não optar pelo modo mais fácil de uma carta.

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Estava decidida... decididíssima... repetiu a si própria e, contudo, sentia uma relutância estranha. Olhou em volta e pensou: «É um adeus a tudo isto... ao meu mundo... ao meu modo de viver.»

Realmente, não tinha ilusões. A vida com David era um jogo... uma aventura que tanto podia acabar mal como bem. Ele próprio a prevenira...

Na noite do crime, pelo telefone.

E depois, poucas horas antes, dissera-lhe:

Tencionava sair do teu caminho. Fui um louco... em pensar que me seria possível partir e deixar-te. Iremos para Londres e casaremos com uma licença especial... Oh, sim, não te darei ocasião para irresoluções. Tens raízes lançadas aqui, raízes que te prendem. Tenho que arrancar-te por elas. E acrescentara: Participaremos o caso a Rowley depois de já seres Mrs. David Hunter. Pobre diabo, é a melhor maneira de dizer-lho.

Mas Lynn não concordara com esse ponto, embora, naquela altura, não lho tivesse dito. Não, ela própria devia participá-lo a Rowley.

Era a casa de Rowley que ia agora!

A tempestade começou no momento preciso em que Lynn bateu à porta de Long Willows. Rowley abriu-a e pareceu atónito ao vê-la.

Olá, Lynn, por que não telefonaste a dizeres que vinhas? Podia não estar em casa.

Preciso de falar contigo, Rowley.

O rapaz desviou-se para o lado para lhe dar passagem e seguiu-a até à enorme cozinha. Sobre a mesa viam-se ainda os restos da sua ceia.

Estou a pensar em pôr um H ou um S, neste sítio disse. Será mais cómodo para ti. E um novo lava-louças... em aço...

Ela interrompeu-o.

Não faças planos, Rowley.

Dizes isso porque aquela pobre rapariga ainda não está enterrada? Acho que isto parece bastante falta de coração, mas ela nunca me deu a impressão de uma pessoa particularmente feliz. Doentia, talvez. Nunca se refez daquele maldito ataque aéreo! Seja como for, já está irremediavelmente morta e para mim... ou antes para nós, a diferença...

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Lynn tomou fôlego.

Não, Rowley. Não se trata de nenhum «nós». Foi o que vim dizer-te.

Ele olhou-a, pasmado. Lynn acrescentou lentamente, odiando-se a si própria, mas firme no seu propósito:

Vou casar com David Hunter, Rowley.

Lynn não sabia muito bem o que esperava protestos talvez e uma explosão encolerizada, mas o que certamente não esperava era que Rowley aceitasse essa sua declaração da maneira que o fez.

Fitou-a, durante um momento, depois foi atiçar o fogão e, por fim, virou-se numa atitude quase distraída.

Bem propôs, esclareçamos o assunto. Vais casar com David Hunter. Por quê?

Porque o amo.

Tu amas-me a mim.

Não. Amava-te... quando parti. Mas passaram-se quatro anos... e mudei. Ambos mudámos.

Enganas-te... contrariou-a calmamente. Eu não mudei.

Bem, talvez não tenhas mudado muito.

Não mudei nada, não tive grande oportunidade de mudar. Continuei simplesmente a cavar por aqui. Eu não me atirei de pára-quedas, nem trepei por rochedos, de noite, nem passei um braço em torno de um homem para apunhalá-lo...

Rowley...

Eu não estive na guerra. Eu não combati. Eu não sei o que é a guerra! Levei aqui uma bela vida, em segurança, nesta granja. O felizardo do Rowley! Mas, como marido, terias vergonha de mim!

Não, Rowley... oh, não! Não é nada disso!

Pois eu digo-te que sim!

Aproximou-se dela. O sangue entumescia-lhe o pescoço e as veias da testa sobressaíam de inchadas. Aquele brilho que lhe animava os olhos... já ela uma vez o vira quando passara por um toiro, num campo. Vira-o bater com as patas, sacudir e baixar lentamente a cabeça armada de grandes chifres. Aguilhoado por uma enorme fúria, por uma raiva cega...

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Está calada, Lynn. Para variar, hás-de ouvir-me.

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Não fiz o que devia ter feito. Perdi a minha oportunidade de lutar pelo meu país. Vi os meus melhores amigos partirem e morrerem. Vi a minha noiva... a minha noiva... fardada e partir para o ultramar. Fui apenas o Homem Que Ela Deixou. A minha vida foi o inferno... não compreendes, Lynn? Foi o Inferno. E depois tu voltaste... e, desde então, tem sido pior que o Inferno. Desde que, naquela noite, em casa da tia Kathie, te vi olhar para David Hunter, quando estávamos à mesa. Mas ele não te terá, estás a ouvir? Já que não és para mim, também não serás para ninguém. Que julgas tu que eu sou?

Rowley...

Ela levantara-se e recuava a pouco e pouco. Estava aterrorizada. Aquele homem deixara de ser um homem, era uma besta bruta.

Matei duas pessoas declarou-lhe Rowley Cloade. Julgas que hesitarei em matar uma terceira?

Rowley...

O rapaz lançara-se sobre ela e passava-lhe as mãos à volta do pescoço...

Já não posso suportar mais, Lynn...

As mãos apertaram-lhe o pescoço, o quarto andou à roda, escuridão, uma escuridão prolongada, sufocação... tudo se tornava escuro...

E depois, subitamente, tosse. Uma tosse empertigada, levemente fictícia.

Rowley deteve-se... as suas mãos afrouxaram o aperto e caíram pendentes aos lados do corpo. Lynn, soltando-se, caiu amarfanhada no soalho.

Do lado de dentro da porta, estava Hercule Poirot, tossindo apologeticamente.

Espero desculpou-se não ter sido um intruso. Bati à porta. Sim, certamente que bati, mas ninguém respondeu... Suponho que estava ocupado?

Durante um momento, a atmosfera ficou tensa, eléctrica. Rowley fitava-o, pasmado. Por um instante, pareceu que ia atirar-se a Hercule Poirot, mas, por fim, afastou-se. Uma voz calma e inexpressiva disse-lhe:

Chegou a tempo... por um triz.

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Capítulo 16

Hercule Poirot levara a sua atmosfera de anticlimax a uma outra, tremente de perigo.

A água da caldeira está a ferver? perguntou. Rowley respondeu lentamente... sombriamente:

Sim, está a ferver.

Então, talvez não se importe de fazer um pouco de café? Ou de chá, se for mais fácil.

Rowley obedeceu como um autómato.

Hercule Poirot tirou da algibeira um enorme lenço limpo, ensopou-o em água fria, espremeu-o e aproximou-se de Lynn.

Olhe, mademoiselle, se o atar à volta do pescoço... isso. Sim, tenho um alfinete de segurança... Vê, isso diminui logo a dor.

Lynn agradeceu-lhe numa voz rouca. A cozinha de Long Willows... Poirot andando de um lado para o outro... tudo isso lhe parecia um pesadelo. Sentia-se horrivelmente mal e a garganta doía-lhe terrivelmente. Levantou-se, cambaleando, e Poirot conduziu-a suavemente para uma cadeira onde a ajudou a sentar-se.

Ora, aí está! exclamou, e virando a cabeça para trás perguntou. O café?

Está pronto respondeu Rowley.

Levou-lho. Poirot encheu uma chávena e deu-a a Lynn.

Ouça lá disse Rowley. Parece que não compreendeu. Tentei estrangular Lynn.

Tá-tá fez Poirot, numa voz enfadada, parecendo deplorar um lapso de mau gosto, cometido por Rowley.

Tenho na minha consciência duas mortes confessou Rowley. A dela teria sido a terceira... se o senhor não tivesse chegado.

Vamos beber o nosso café propôs Poirot e não falemos de mortes. Não é agradável para mademoiselle Lynn.

Meu Deus!exclamou Rowley, fitando Poirot. Lynn sorveu o café com dificuldade. Estava forte e

quente. Pouco depois, sentiu a garganta menos dorida e o estimulante começou a agir.

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Ora, está melhor, não está? informou-se Poirot.

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Ela respondeu meneando afirmativamente a cabeça.

Agora, podemos conversar alvitrou. Quando digo isto, quero dizer realmente que sou eu quem vai falar.

O que é... que sabe? perguntou Rowley lentamente. Sabe que matei Charles Trenton?

Sim. Já sei isso há algum tempo. A porta abriu-se. Era David Hunter.

Lynn! exclamou. Não me tinhas dito... Calou-se embaraçado, percorrendo com o olhar cada um dos circunstantes.

Que tens no pescoço?

Outra chávena pediu Poirot.

Rowley tirou uma do guarda-louças. Poirot agarrou-a, encheu-a com café e estendeu-a a David. Poirot dominava uma vez mais a situação.

Sente-se disse a David. Ficaremos aqui sentados, a tomar o nosso café, e os três escutarão Hercule Poirot enquanto este lhes faz uma dissertação sobre crimes.

Olhou-os e meneou satisfatoriamente a cabeça.

Lynn pensou: «Tudo isto é um pesadelo fantástico. Não é real!»

Parecia que estavam todos sob a influência daquele absurdo homenzinho de grandes bigodes. Ficaram ali sentados obedientemente Rowley, o assassino; ela, a vítima; David, o homem que a amava, todos eles segurando na mão uma chávena de café, escutando esse homenzinho que os dominava a todos, de um modo estranho.

Qual a causa de um crime? inquiriu retoricamente Hercule Poirot. Isto é um problema. Que estímulo se requer? Que disposição ingénita tem de haver? Será toda a gente capaz de matar... ou de cometer um crime? E o que acontece... é isto o que me tenho perguntado desde o início... o que acontece quando as pessoas que têm estado couraçadas contra a realidade da vida, contra os seus assaltos e destruições, se vêem subitamente privadas dessa protecção?

«Refiro-me, bem vêem, aos Cloades. Há apenas aqui um membro Cloade e, por conseguinte, posso falar

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perfeitamente à vontade. O problema fascinou-me desde o início. Temos aqui uma família inteira que as circunstâncias sempre impediram de viver à própria custa. Embora cada membro desta família tivesse um modo de vida, uma profissão, nunca nenhum deles se afastou da sombra de uma protecção beneficente. Nunca sentiram medo. Viveram em segurança... numa segurança que era irreal e fictícia. Gordon Cloade estava sempre por trás deles a protegê-los.

«O que lhes digo é que nunca se pode conhecer um carácter humano antes de este ser submetido a um teste. Para a maior parte das pessoas, esse teste ocorre bem cedo na vida. Qualquer homem vê-se muito cedo a braços com a necessidade de manter-se à sua custa, de encarar perigos e dificuldades e de resolvê-los por si só. Pode fazê-lo de uma maneira recta ou condenável... em qualquer dos casos, todo o homem conhece, geralmente depressa, a têmpera de que é feito.

«Mas os Cloades só tiveram oportunidade de conhecer a sua fraqueza no momento em que ficaram subitamente despojados de protecção e foram forçados, com uma absoluta falta de preparação, a encarar a dificuldade. Uma coisa, apenas uma coisa, se interpunha entre eles e a recuperação da segurança a vida de Rosaleen Cloade. Estou absolutamente certo de que cada um dos Cloades pensou em qualquer altura «Se Rosaleen morresse...»

Lynn estremeceu. Poirot fez uma pausa, deixando que as palavras produzissem bem o seu efeito, e depois prosseguiu:

A ideia da morte, da sua morte, perpassou por todos os espíritos... disso estou eu certo. Teria acontecido o mesmo quanto à ideia do crime? E teria essa ideia, numa dada ocasião, ultrapassado o pensamento e entrado em acção?

Sem alterar o tom de voz, virou-se para Rowley:

Pensou em matá-la?

Sim confessou Rowley. Foi no dia em que ela veio à granja. Não havia cá mais ninguém. Nessa altura, pensei que podia matá-la muito facilmente. Ela parecia patética e muito bonita como as bezerras que mandei para o mercado. Nota-se bem como são patéticas

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mas, apesar disso, mandamo-las abater. Espantei-me, na realidade, que ela não estivesse assustada... Certamente o estaria, se tivesse sabido o que me ia no espírito... Sim, estava a pensar naquilo quando peguei no isqueiro para acender-lhe o cigarro.

Ela deixou-o cá, creio eu, e assim se explica que você tenha ficado com ele.

Rowley confirmou com um aceno de cabeça.

Não sei porque não a matei disse meditativamente. Lembrei-me de fazê-lo. A sua morte podia ter-se atribuído a um acidente, a qualquer coisa...

Não era o seu tipo de crime declarou Poirot. Aí tem a resposta. Você matou um homem, mas fê-lo num acesso de raiva... e imagino que não tivesse realmente intenção de matá-lo.

Não, valha-me Deus! Esmurrei-lhe o queixo. Ele caiu para trás e bateu com a cabeça no guarda-fogo de mármore. Quando vi que estava morto, mal podia acreditar que fosse verdade.

Depois, subitamente, lançou um olhar penetrante a Poirot.

Como soube isso? perguntou-lhe.

Creio ter reconstituído as suas acções com bastante exactidão. Se me enganei, diga-mo. Foi ao «Stag» e Beatrice Lippincott contou-lhe a conversa que ouvira, não foi? Em consequência disso, foi, segundo me disse, a casa de seu tio Jeremy Cloade, pedir-lhe a sua opinião de solicitador quanto à situação. Mas viu aí qualquer coisa que o fez mudar de ideias quanto a consultá-lo. Creio saber o que foi. Viu uma fotografia.

Rowley confirmou com um aceno de cabeça.

Sim. Estava sobre a secretária. De repente, compreendi a semelhança. Compreendi também por que motivo a cara do homem me parecera tão familiar. Deduzi que Jeremy e Francês tinham chamado algum parente desta para, por meio de uma artimanha, extorquirem dinheiro a Rosaleen. Fiquei encolerizado. Fui direito ao «Stag» subi ao n.° 5 e acusei o tipo de intrujão. Riu-se e admitiu sê-lo. Declarou-me que David Hunter ia levar-lhe o dinheiro, nessa mesma noite. Fiquei de cabeça perdida, quando compreendi que a minha própria família estava

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a enganar-me. Chamei-lhe cão e esmurrei-o. Caiu como já disse. Seguiu-se uma pausa que Poirot interrompeu:

E depois?

Foi o isqueiro disse Rowley lentamente. Caiu-me da algibeira. Trazia-o comigo com a intenção de dá-lo a Rosaleen quando a visse. Caiu sobre o corpo e vi as iniciais D. H. Era, portanto, de David e não dela.

«Desde aquela noite em casa da tia Kathie, compreendi... bem, isto não importa. Às vezes, tenho pensado que enlouqueço... Talvez tenha um pouco de louco. Primeiramente, a partida de Johnny... depois a guerra... eu... eu não posso falar acerca de certas coisas, mas, às vezes, fico cego de raiva... e agora Lynn... e este tipo. Arrastei o morto para o meio do quarto e virei-o de cabeça para baixo. Depois, agarrei naquelas pesadas tenazes de aço... bem, não vou entrar em pormenores. Limpei as impressões digitais, o rebordo de mármore... e depois, premeditadamente, desloquei os ponteiros do relógio para as nove menos dez e parti-lhe o vidro. Levei a caderneta de racionamento e todos os documentos... pensei que pudessem estabelecer a sua identidade, por meio deles. Depois, fui-me embora. Parecia-me que com a história que Beatrice me contara culpariam David de tudo aquilo.

Obrigado agradeceu David.

E depois continuou Poirot foi procurar-me. Foi uma comediazinha que representou, não foi, pedindo-me que arranjasse uma testemunha que conhecesse Underhay? Tornou-se-me imediatamente claro que Jeremy Cloade repetira à família a história que o major Porter contara. Durante cerca de dois anos, toda a família acalentara uma secreta esperança de que Underhay pudesse surgir. Esse desejo influenciou inconscientemente Mrs. Lionel Cloade na sua manipulação da tábua ouija, mas foi um incidente muito revelante.

Eh, bien, realizo o meu «truque de prestidigitação». Gabo-me de tê-lo impressionado e, na realidade, o verdadeiro simplório sou eu. Sim, e no quarto do major Porter este, depois de me oferecer um cigarro, diz-lhe: «Não fuma, pois não?»

Olhou-os iradamente e prosseguiu:

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Mas depois o major Porter desfez essa combinação. Não estava disposto a ser testemunha sob juramento num julgamento de assassínio e a consistência do caso contra David Hunter dependia em grande parte da identidade do morto. Por conseguinte, o major Porter desistiu.

Escreveu-me a dizer que desistia da combinação explicou Rowley tristemente. O louco! Não via que tínhamos ido demasiado longe para recuar. Disse que preferia meter uma bala na cabeça do que cometer perjúrio num caso de assassínio. A porta da rua não estava fechada à chave... subi e encontrei-o.

«Não posso descrever-lhe o que senti. Foi como se eu próprio fosse um assassino pela segunda vez. Se, ao menos, ele tivesse esperado... se, simplesmente, me tivesse deixado falar-lhe...

Encontrou lá algum bilhete? inquiriu Poirot. Levou-o?

Sim... depois procurei outros elementos. Já que as coisas tinham chegado àquele ponto, também podia ir até ao fim. O bilhete era para o coroner. Dizia apenas que prestara uma declaração falsa no inquérito. O morto não era Robert Underhay. Levei o bilhete e destruí-o.

Rowley deu um murro na mesa.

Era como um sonho mau... um pesadelo horrível! Mas eu tinha começado essa coisa e tinha de continuá-la. Queria o dinheiro para ter Lynn e queria ver Hunter enforcado. E depois... não pude compreender... o caso contra ele ficou demolido. Uma história qualquer acerca de uma mulher... uma mulher que, mais tarde, esteve com Arden. Não consegui compreender isso e ainda o não consigo. Que mulher? Como é que uma mulher podia lá ter estado a falar com Arden depois dele estar morto?

Não houve nenhuma mulher declarou Poirot.

Mas, M. Poirot observou Lynn, em voz lamentosa. Essa senhora velha... viu-a, ouviu-a.

Aah! exclamou Poirot. Mas o que viu ela? E o que ouviu ela? Viu uma pessoa de calças, com um casaco claro de tweed. Viu uma cabeça completamente envolta num lenço cor de laranja, colocado como um turbante, um rosto coberto de maquilhagem e uma boca

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pintada. Viu isso numa semiescuridão. E o que ouviu ela? Viu a «atrevida» retirar-se para dentro do n.° 5 e ouviu uma voz de homem, proveniente do interior do quarto, dizer «Vamos lá, saia daqui. Já estou farto». Eh bien, foi um homem que ela viu e um homem que ouviu! Mas foi uma ideia muito engenhosa, Mr. Hunter acrescentou Poirot, virando-se placidamente para Hunter.

Que quer dizer? perguntou o rapaz com vivacidade.

Agora, é a si que vou contar uma história. Dirigiu-se ao «Stag» às nove horas, pouco mais ou menos. Não foi lá com a intenção de matar, mas sim de pagar. O que encontra? Encontra o homem que fizera chantagem consigo, estendido no chão, assassinado de uma maneira particularmente brutal. O senhor discorre com rapidez, Mr. Hunter, e compreende imediatamente que corre um perigo iminente. Que o saiba, ninguém o viu entrar no «Stag» e a sua primeira ideia é desaparecer dali o mais depressa possível, apanhar o comboio das nove e vinte para Londres e jurar a pés juntos que não esteve nas proximidades de Warmsley Vale. A única possibilidade que tem de apanhar o comboio é correr a corta-mato. Ao fazê-lo, depara-se-lhe inesperadamente Miss Marchmont e compreende que não pode apanhar o comboio. Embora não o saiba, ela também viu o fumo, mas não compreendeu conscientemente que o senhor não poderia apanhar o comboio e, quando lhe diz que é às nove e quinze, ela aceita confiadamente essa sua declaração.

«Para convencê-la de que apanha o comboio, inventa um plano muito engenhoso. Efectivamente, agora tem de inventar um plano inteiramente novo para desviar a suspeita de si.

«Volta a Furrowbank, entra calmamente com a sua chave, pega num lenço de sua irmã, num dos seus batons e trata de pintar a cara de uma maneira altamente teatral.

«Volta ao «Stag» a uma hora conveniente, faz-se notar pela velha dama que está sentada na saleta «Reservada aos Hóspedes» e cuja peculiaridade é tagarelar no «Stag». Depois, sobe ao n.° 5. Quando a ouve ir deitar-se, sai para o corredor, depois mete-se apressadamente para dentro e põe-se a dizer em voz alta «Vamos, saia daqui...».

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Poirot fez uma pausa e depois observou:

Uma actuação muito hábil.

Isso é verdade, David? gritou Lynn. É verdade?

David distendeu os lábios num sorriso largo.

Tenho uma boa impressão a meu respeito como personagem feminino. Meu Deus, deviam ter visto a cara daquela velha harpia!

Mas como pudeste estar aqui às dez horas e telefonar-me de Londres às onze? inquiriu Lynn, perplexa.

David Hunter indicou Poirot com um gesto de cabeça e respondeu:

Todas as explicações são dadas por Hercule Poirot, o homem que sabe tudo. Como o fiz?

Muito simplesmente retorquiu Poirot. Telefonou a sua irmã para o apartamento, da cabina pública, e deu-lhe determinadas instruções precisas. Às onze e quatro exactas, fez uma chamada para Warmsley Vale 34. Quando Miss Marchmont atendeu o telefone, a telefonista verificou o número e depois disse sem dúvida «Uma chamada de Londres» ou «Fala, Londres» ou qualquer coisa semelhante, não é verdade?

Lynn confirmou com um aceno de cabeça.

Rosaleen Cloade pousou depois o auscultador no descanso. Você Poirot virou-se para David anotando cuidadosamente as horas, marcou o 34, atenderam, carregou no botão A e disse «Fala, Londres» numa voz levemente dissimulada. Depois falou com a sua voz natural. O lapso de um minuto ou dois não seria nada de estranho numa chamada telefónica destes tempos e Miss Marchmont apenas o atribuiria a uma reconexão.

Lynn perguntou lentamente:

Foi então por isso que me telefonaste, David?

Na sua voz, apesar de calma, houve algo que levou David a olhá-la perscrutadoramente.

Virou-se para Poirot e fez um gesto de resignação.

Não há dúvida. O senhor sabe tudo! Para dizer a verdade, eu estava terrivelmente assustado. Tinha de inventar alguma coisa. Depois de ter telefonado a Lynn, palmilhei cinco milhas até Dasleby e regressei a Londres no primeiro comboio da manhã. Cheguei ao apartamento

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a tempo de desmanchar um pouco a cama e de tomar o pequeno-almoço com Rosaleen. Nunca me passou pela cabeça que a polícia pensasse que ela o fizera.

«E já se sabe que eu não tinha a mínima ideia de quem o tinha matado! Nem sequer podia imaginar quem podia ter querido matá-lo. Que eu visse, absolutamente ninguém tinha um motivo, a não ser eu próprio e Rosaleen.

O grande erro foi esse declarou Poirot. Motivo. Você e sua irmã tinham um motivo para matar Arden. Todos os membros da família Cloade tinham um motivo para matar Rosaleen.

David interveio com vivacidade:

Então, sempre a mataram? Não foi suicídio?

Não. Foi um crime cuidadosamente arquitectado e premeditado. A morfina substituiu o brometo num desses pacotinhos de soporífero... num que estava no fundo da caixa.

Juntamente com o soporífero. David franziu o sobrolho. Não se refere... não pode referir-se a Lionel Cloade?

Oh, não respondeu Poirot. Compreende, praticamente qualquer dos Cloades podia ter lá posto a morfina. A própria tia Kathie podia tê-lo feito antes de os pacotinhos terem saído do armário da farmácia. Aqui o Rowley foi a Furrowbank levar manteiga e ovos a Rosaleen. Mrs. Marchmont também lá foi. Mrs. Jeremy Cloade igualmente. Até Lynn Marchmont. Cada um e todos eles tinham um motivo.

Lynn não tinha motivo nenhum! gritou David.

Todos nós tínhamos motivos disse Lynn. É isso o que quer dizer?

Sim confirmou Poirot. Foi isso o que dificultou o caso. David Hunter e Rosaleen tinham um motivo para matar Arden mas não o mataram. Todos vocês. Cloades, tinham um motivo para matar Rosaleen Cloade e, contudo, nenhum de vocês a matou. Este caso é e sempre foi um ciclo vicioso. Rosaleen Cloade foi assassinada pela pessoa que mais tinha a perder com a sua morte virou ligeiramente a cabeça. Foi o senhor, Mr. Hunter, quem a matou...

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Eu? gritou David. Por que diabo havia eu de matar a minha irmã?

Matou-a porque não era sua irmã. Rosaleen Cloade morreu durante um ataque aéreo, em Londres, há cerca de dois anos. A mulher que o senhor matou era uma jovem criada irlandesa, Eileen Corrigan, cuja fotografia recebi hoje da Irlanda.

Tirara-a da algibeira enquanto falava. Com a rapidez do relâmpago, David arrancou-lha da mão, correu para a porta, transpô-la num salto e, batendo-a atrás de si com estrondo, desapareceu. Com um rugido de raiva, Rowley precipitou-se em sua perseguição.

Poirot e Lynn ficaram sós.

Não!, não pode ser verdade! gritou Lynn.

Oh, sim, é verdade. Você vislumbrou meia verdade quando conjecturou que David Hunter não fosse irmão dela. Considere isso de outra maneira e verá que tudo se ajusta. Essa Rosaleen era uma católica (a mulher de Underhay não era católica), torturada pela consciência, inteiramente dedicada a David. Imagine as sensações deste, naquela noite do bombardeamento aéreo, com a irmã morta e Gordon Cloade moribundo... e aquela boa vida endinheirada a escapar-se-lhe... Seguidamente, depara-se-lhe essa rapariga, da mesma idade que a irmã, única sobrevivente, além dele, atingida também pela explosão e desmaiada. Não há dúvida que já a possuíra e está certo de que poderá levá-la a fazer o que quiser.

Sabia lidar com as mulheres acrescentou Poirot secamente, sem olhar para Lynn, que corou.

É um oportunista e agarra essa oportunidade de fortuna. Identifica-a como sua irmã. Ela volta a si e encontra-o a seu lado. Persuade-a e convence-a a desempenhar aquele papel.

«Calcule agora a consternação deles quando recebem a primeira carta chantagista. Não sei se Hunter seria realmente o género de homem que se presta tão facilmente a ser vítima de chantagem. Parecia também que não tinha a certeza de que o outro fosse Underhay ou não. Mas como poderia tê-la? Rosaleen Cloade poderia dizer-lhe imediatamente se o homem era seu marido ou não. Por que despachá-la, à pressa, para Londres antes de ela ter podido ver aquele homem? Porque só podia

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haver uma razão porque não podia arriscar-se a que o homem a visse. Se o homem era de facto Underhay, não devia de forma alguma descobrir que Rosaleen Cloade não era Rosaleen. Havia apenas uma coisa a fazer. Pagar o necessário para manter o chantagista calado e depois... bater as asas... partir para a América.

«Mas depois, inesperadamente, o chantagista desconhecido é assassinado e o major Porter identifica-o como Underhay. David Hunter nunca, em toda a vida, se vira em maior embrulhada! Pior ainda, a própria rapariga começa a dar sinais de loucura. A sua consciência começa a tornar-se cada vez mais activa. Evidencia sinais de alienação mental. Mais cedo ou mais tarde, acabaria por confessar, por confessar tudo e por entregá-lo à justiça. Além disso, acha as suas perguntas cada vez mais fastidiosas. Apaixonou-se por si e, por conseguinte, resolve escolher do mal o menos. Eileen tem de morrer. Substitui o conteúdo de um dos pacotinhos receitados pelo Dr. Cloade, por morfina, incita-a a tomar um todas as noites, incute-lhe pavor à família Cloade. Não se suspeitaria de David Hunter pois que a morte da irmã significa que o dinheiro voltaria para os Cloades.

«A sua carta de trunfo era essa... falta de motivo. Como já lhe disse... este caso foi sempre um ciclo vicioso.»

A porta abriu-se e o superintendente Spence entrou.

Eh bien? inquiriu vivamente Poirot.

Está tudo bem. Já o apanhámosinformou Spence.

Ele... disse alguma coisa? perguntou Lynn em voz baixa.

Disse que tinha gozado uma bela vida... É curioso acrescentou o superintendente como falam sempre no momento inoportuno... Avisámo-lo já se sabe, mas ele disse «Deixe-se disso, homem. Sou um jogador... sei quando perco a última cartada».

Poirot recitou em voz baixa:

Na vida de cada ente

há uma maré oportuna

cuja torrente

se for aproveitada na enchente

pode levar à fortuna.

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Sim, a maré enche... mas também vaza... e pode levar-nos para o largo.

Capítulo 17

Num domingo de manhã, Rowley foi ver quem lhe batera à porta e deparou-se-lhe Lynn. Deu um passo para trás.

Lynn?

Posso entrar, Rowley?

Ele retrocedeu um pouco, Lynn dirigíu-se para a cozinha. Fora à igreja e tinha ainda o chapéu na cabeça. Calmamente, em gestos quase rituais, levantou as mãos, tirou o chapéu e pousou-o sobre o peitoril da janela.

Voltei para casa, Rowley.

Que diabo queres dizer com isso?

Simplesmente isto: voltei para casa. isto é a casa... aqui, contigo. Fui uma parva em não o ter percebido há mais tempo... em não ter reconhecido o fim da viagem, quando realmente regressei. Não compreendes, Rowley, voltei para casa!

Não sabes o que estás a dizer, Lynn. Eu... eu tentei matar-te.

Bem sei Lynn fez uma careta e levou cuidadosamente os dedos à garganta. Para dizer a verdade, foi exactamente quando pensei que me tivesses assassinado, que comecei a compreender como tinha sido tão tola.

Não compreendo.

Oh, não sejas estúpido. Desejei sempre casar contigo, não foi? Depois, perdi o contacto contigo... pareceste-me tão dócil, tão submisso... Achei que, contigo, a vida seria tão segura... tão insípida. Apaixonei-me por David porque era perigoso e atraente... e, para ser sincera, porque sabe muito de mulheres. Mas nada disso era real. Quando me agarraste pela garganta e disseste que, já que não era para ti, também não o seria para ninguém... bem... compreendi então que era a tua mulher. Infelizmente pareceu-me que o sabia... demasiado tarde... Felizmente entrou Hercule Poirot e salvou a situação. E eu sou a tua mulher, Rowley.

Rowley sacudiu a cabeça.

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É impossível, Lynn. Matei dois homens... assassinei-os...

Tolices! proferiu Lynn. Não sejas cabeçudo e melodramático. Se uma pessoa tem uma querela com um homenzarrão desajeitado e o esmurra, se ele cai e bate com a cabeça contra um guarda-fogo... isso não é um assassínio. Nem sequer o é legalmente.

É homicídio. Vai-se para a cadeia por causa disso.

É possível. Se assim for, achar-me-ás à porta, quando saíres.

E há ainda Porter. Moralmente, sou responsável pela sua morte.

Não, não és. Ele era uma pessoa adulta, inteiramente responsável... podia ter rejeitado a tua proposta. Não se pode atirar para cima de uma pessoa com as culpas dos erros que uma outra decide fazer com os olhos bem abertos. Sugeriste-lhe um procedimento desonesto, concordou, depois arrependeu-se e optou por uma solução rápida. Era um carácter fraco.

Rowley sacudiu obstinadamente a cabeça.

Não serve de nada, minha filha. Não podes casar-te com um «pássaro na gaiola».

Não acredito que vás para a cadeia. Se assim fosse, já a polícia te teria vindo buscar.

Rowley fitou-a, pasmado.

Mas, cos diabos!, homicídio... suborno de Porter...

Que te leva a pensar que a polícia saiba ou venha a saber alguma coisa acerca disso?

Esse Poirot sabe-o bem.

Não é a polícia. Vou dizer-te o que esta julga: pensa que David Hunter matou Arden e Rosaleen, pois sabem agora que, nessa noite, esteve em Warmsley Vale. Não o acusarão disso porque não é necessário... e, além disso, creio que não se pode ser julgado duas vezes sob a mesma acusação. Ora, enquanto pensarem que o fez, não procurarão mais ninguém.

Mas esse tipo, Poirot...

Disse ao superintendente que foi um acidente e suponho que o superintendente se riu dele. Se queres saber a minha opinião, acho que Poirot não dirá nada a ninguém. É uma pessoa encantadora...

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Não, Lynn. Não posso arriscar-te a isso. Além de tudo o mais, eu... bem, isto é... poderei eu confiar em mim próprio? Quero dizer que não seria seguro para ti.

Talvez não... mas, vê se compreendes, Rowley, eu amo-te... e tu passaste um bocado tão mau... e, no fim de contas, na realidade, nunca me importei muito com a segurança...

FIM

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LISBOA

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Agatha Christie nasceu em 1890, filha de pai americano e de mãe inglesa. Passou a infância em Devonshire (cenário de muitos dos seus livros) e cedo se familiarizou com a literatura inglesa através da leitura de Charles Dickens e de Jane Austen. Mais tarde, seria leitora fervorosa de Sherlock Holmes. A sua educação escolar não foi além de dois anos de estudo de piano e de canto, em França.

Em 1915, casou-se com o coronel Archibal Christie de quem se separou em1926. Quatro anos mais tarde casou-se com Sir Max Mallowan, famoso arqueólogo e professor da Universidade de Oxford, que acompanhou em numerosas viagens e expedições arqueológicas. Até à sua morte. Agatha Christie escreveu as mais empolgantes ficções policiais, criando” personagens curiosíssimas, tais como o celebérrimo Hercule Poirot, Miss Marple, Tuppence e Tommy, o superintendente Battle e Ariadne Oliver.

A obra de Agatha Christie permanecerá no património cultural internacional como testemunho inesquecível da extraordinária capacidade humana nos domínios da ficção, do raciocínio e do conhecimento da psicologia do comportamento obra imorredoira a vários títulos e retrato imperecível de uma época e de um modo de encarar os conflitos fundamentais da vida.