agamben,giorgio - o que é o contemporâneo e outros ensaios

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 s s o c i a ~ a o Brasileira das Editoras Universitarias Giorgio Agamben o que e contemporaneo e outros ensaios Tradu«ao Vinicius Nicastro Honesko edltora do Unochapec Chapeco 2 9

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  • Associa~ao Brasileira das Editoras Universitarias

    Giorgio Agamben

    o que e 0 contemporaneo? e outros ensaios

    Traduao Vinicius Nicastro Honesko

    edltora do Unochapec6

    Chapeco, 2009

  • 2008 nottctempo sri Titulo original: Che cos'e il contemporanco? 2006 nottctempo sri Titulo original: Che cos'e un dispositivo? 2007 nottetempo sri Titulo original: L'amico

    ~) 2009 da tradu~ao brasileira: Editora Argos Este livro Oll parte dele nao pode ser reproclllziclo por qualquer meio scm autorizayao cscrita do Editor.

    r-h UNOCHAPECO UNIVERSIDAOECOMUNITARIAREGIONALDECHAPW'i

    REITOR: Odilon Luiz Poli VICE-REITOR DE PESQUISA, EXT EN sAO E POS-GRADUA

  • Cumprindo mais uma exigencia de sua pr6pria obra, Giorgio Agamben aprofunda nestes ensaios, ora reunidos, a investiga
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    maior ou menor medida, a tentativa reiterada de uma revoluc;:ao. No entanto, nao se trata de urn plano (pro-jeto) revolucionario cujos fins sejam determinantes para as escolhas dos meios de consecuc;:ao da revo-luc;:ao, is so e, de urn ajuste - que inclusive pode ser violento - do mundo. Pelo contrario, longe de de-terminac;:5es cronoI6gico-causais, a revolw;ao que Agamben pretende pode ser entendida como a cons-tante interrupc;:ao da cronologia por urn tempo ou-tro, que Walter Benjamin chamava, na esteira de Pau-lo, kair6s,2 0u tempo messianico. Ou seja, uma au-tentica revoluc;:ao e sempre uma revolu~ao messianica, uma revoluc;:ao que - como na parabola sobre 0 reino messianico contada por Scholem a Benjamin3 - nao e

    2 E de toda forma fundameutallembrar aquele que talvez seja 0 livro mais imp~rtante de Agamben, Ii Tempo che resta, lanyado em 2000, no qual o filosofo desenvolve a tese de que Benjamin era urn arguto leitor de Paulo ap6stolo e, nesse sentido, participante de uma tradiyao messianica-

    ~ot~-s~, urn messianismo diverso daqueles desenvolvidos pelas gran des 1ll~tJtU1y6:s das tres gran des religi6es monoteistas (e messianicas) do oCldente: Judaismo, cristianismo e islamismo - da qual 0 fil6sofo italiano tambem se considera herdeiro.

    3 Cf. BE~JAMIN, .wa~ter apud AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que vem. Llsboa: Edltonal Presenya, 1993. p. 44. e, tambem, BENJAMIN Walt~r. A Modernidade e os Modern os. Traduyao Heidrun Krieger Men~ des SIlva; Arlete de Brito; Tania Jatoba. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitario, 1975. p. 99-100.

    a entrada fOr

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    ou ao menos de sondar, essas perguntas que O que o contemporneo?, O que um dispositivo? e O Ami-go traam, em menor ou maior medida, seus objeti-vos.

    Em O que um dispositivo?, por meio de um trabalho filolgico revelador, Agamben sucintamen-te descreve todo o procedimento com o qual oikonomia - termo grego para gesto do oikos, da casa - passa a ser traduzido para o rspido latim dos padres da alta Idade Mdia como dispositio. A partir desse levantamento, Agamben prope uma chave de leitura do termo dispositivo em Michel Foucault. Confessando-se tributrio de Foucault, Agamben, entretanto, toma o termo dispositivo do pensamento do filsofo francs para ampli-lo e elev-lo catego-ria fundamental para a compreenso do mecanismo poltico contemporneo. Dispositivo passa a ser "qual-quer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seres viventes."4 Dividindo todo o existente em duas grandes categorias, os viventes e os

    4 Cf. p. 40 da presente edio.

    dispositivos, Agamben trata de revelar como o dis-positivo atua naquilo que denomina processo de subjetivao: "Chamo sujeito o que resulta da relao e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos."5

    Como mquina que no contato com os viventes produz sujeitos, o dispositivo tambm uma mquina de governo (os sujeitos, livres, so sempre sujeitados a um poder). No entanto, diferentemente do que acontecia com os dispositivos ditos tradicionais (a confisso, a priso, as escolas etc.), isto , um ciclo completo de subjetivao (um novo sujeito que se constitui a partir da negao de um velho), nos dis-positivos hodiernos (a internet, os telefones celula-res, a televiso, as cmeras de monitoramento urbano etc.), no mais possvel constatar a produo de um sujeito real, mas uma recproca indiferenciao entre subjetivao e dessubjetivao, da qual no surge se-no um sujeito espectral. Eis que Agamben constata um paradoxo latente nessa situao, capaz de expor ento o irremedivel eclipse pelo qual atualmente passa a poltica: quanto menos subjetividades so forma-

    5 Idem, p. 41.

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    das no corpo a corpo dos indivduos com os dispo-sitivos tanto mais dispositivos so criados como ten-tativa inelutvel de sujeio dos indivduos s dire-trizes do poder. Ou seja, uma vez que para o funcio-namento do mecanismo operativo da poltica seria necessria a conflagrao de sujeitos reais que nunca se configuram, a poltica parece ser no mais que uma forma que gira no vazio (um mecanismo oikonomico de autorreproduo) e, desse modo, encaminha-se catstrofe.

    Ainda que algumas correntes do pensamento contemporneo postulem meios de reproduo e manuteno do mecanismo poltico, sugerindo o aco-lhimento dessa situao e aceitao de uma humani-dade que no encontra outras tarefas histricas seno na sua auto gesto (seja por meio dos ditos consensos democrticos, ou, ainda que renegadas, pela via dos novos fundamentalismos religiosos e pela violncia ditatorial muitas vezes travestida), Agamben prope uma outra sada: a profana06 dos dispositivos de

    6 No ensaio sobre o dispositivo, Agamben d algumas noes do conceito de profanao por ele desenvolvido e aprofundado em Profanazioni, livro publicado na Itlia em 2005. A traduo brasileira foi publicada pela Boitempo em 2007. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Profanaes. Traduo Selvino Assmann. So Paulo: Boitempo, 2007.

    governo e a assuno de um ingovernvel como ponto de fuga e incio de uma nova poltica.

    Podemos tomar como uma tentativa de compre-enso e exposio desse ingovernvel justamente o ensaio O Amigo. A partir de trechos dos livros oita-vo e nono da tica a Nicmaco de Aristteles, especial-mente 1170a 28 at 1171b 35, Agamben prope uma leitura que assinala de modo premente o estatuto ontolgico e ao mesmo tempo poltico da amizade. Ele anota que o texto aristotlico fala de equivalncias, por assim dizer, sensitivas entre ser e viver, entre um sentir-se existir e sentir-se viver. Com uma leitura e traduo muito prprias, Agamben diz: "Nessa sen-sao de existir insiste uma outra sensao, especifica-mente humana, que tem a forma de um com-sentir (synaisthanesthai) a existncia do amigo. A ami-zade a instncia desse com-sentimento da existn-cia do amigo no sentimento da existncia prpria. Mas isso significa que a amizade tem um estatuto ontolgico e, ao mesmo tempo, poltico. A sensao

    7 Con-sentire em italiano. Agamben acaba por fazer um jogo nos signific~ntes: consentir e com-sentir, isto , um dar consenso ou aprovao e um s~nt:r com o outro. Notamos tambm que, para marcar sua leitura, Agamben mSlste na utilizao do lfen, que preferimos manter na traduo.

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    do ser , de fato, j sempre dividida e com-dividida, e a amizade nomeia essa condiviso."8

    A amizade no est atrelada intersubjetividade; no uma relao entre sujeitos - capazes de contratar entre si e, por meio disso, delimitar uma identidade e a fundao de uma societas-, mas uma "des-subjetivao no corao mesmo da sensao mais ntima de si."9 Isto , mais do que um espao categorial, para o qual se predicaria a qualidade de ser amigo, a amizade se atm ao prprio fato da existncia. Porm, tal existir, ao com-sentir a existncia do amigo, j sempre prenhe de uma potncia poltica: "a amizade a condiviso que precede toda diviso, porque aquilo que h para repartir o prprio fato de existir, a prpria vida. E essa partilha sem objeto, esse com-sentir originrio que constitui a poltica."1O

    Nesse sentido, uma comunidade humana na qual a poltica possa estar radicada nessa com-diviso da prpria existncia - uma comunidade que vem, como

    8 Cf. p. 88-89 da presente edio. Lembremos tambm que condivisione, em italiano, significa "o compartilhar". Preferimos manter condiviso _ e suas variantes no texto: condividir, condivisvel, condividem (sempre em itlico) - pois, ainda que seja um neologismo em portugus, esboa melhor a leitura de Aristteles feita aqui por Agamben.

    9 Idem, p. 89. 10 Idem, p. 92.

    lembrava Agamben j em 1990 em livro homnimo ll -no uma comunidade em cuja poltica est a divi-so e a partilha de uma ou outra classe de fundao comunitria (um local de nascimento, uma lngua, uma cor etc.); tampouco uma comunidade que se paute pela simples ausncia genrica de condies de sua fundao (como uma comunidade negativa), mas uma comunidade do ser tal qual (quodJibet), cuja nica diviso e partilha seja puramente existencial, isto , uma comunidade em que a poltica seja a amizade.

    preciso frisar, no entanto, que quando Agamben prope uma comunidade que vem no o faz como projeto futuro, ou seja, como se o que vem estivesse sempre atrelado a um futuro. Alis, como uma espcie de linha subterfugia dos procedimentos cronolgicos da atual situao poltica, Agamben trata de abrir o que vem justamente nas sombras do presente, no kairs inapreensvel que nos sempre o contemporneo.

    Num procedimento que mantm conexes com o pensamento barroco, Agamben afirma que a entrada

    11 Cf. AGAMBEN, Giorgio. La Comunit che viene. Torino: Bollati Boringhieri, 2001. Cf. tambm a traduo portuguesa: AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que vem. Traduo Antnio Guerreiro. Lisboa: Editorial Presena, 1993.

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    na temporalidade do presente uma caminhada em direo a uma arqueologia daquilo que no presente no podemos viver e, "restando no vivido, inces-santemente relanado para a origem, sem jamais po-der alcan-la." 12 Baltazar Gracin, talvez o mais instigante pensador do mundo barroco, discorre so-bre arte na sua relao com os modos de vida. Dessa maneira, a arte pode ser pensada como produtora de um saber prtico que antes de mais nada tambm uma maneira de pensar as relaes de poder. Em A agudeza e a arte do engenho, Gracin desenvolve sua noo de arte sutil como uma dobra da noo mesma de reserva. Uma arte sutil requer uma dilao, uma hesitao e um atraso. O rten, a reserva, em to-das as matrias sempre foi uma grande regra do viver, sobretudo o do viver com xito, o que era uma ques-to de extrema importncia para o pensador barroco, e no o deixa de ser, com suas variaes, no caso da fora reflexiva do pensamento de Agamben.Para o filsofo italiano, o contemporneo que se pode en-trever na temporalidade do presente sempre retor-no que no cessa de se repetir, portanto, nunca funda

    12 Cf. ensaio O que o contemporneo? p. 55 da presente edio.

    uma origem e, com isso, se aproxima da noo de po-esia. Por isso, Agamben, em O que o Contempor-neo?, recorre ao poema, de 1923, intitulado O sculo, do poeta russo Osip Mandel'Stam, para novamente enunciar sua tese de que a poesia define-se por ser re-torno. Diz-nos Agamben: "No apenas a poca -fera tem as vrtebras fraturadas, mas vek, o sculo recm-nascido, com um gesto impossvel para quem tem o dorso que-brado quer virar-se para trs, contemplar as prprias

    d d t "13 A pegadas e, desse mo o, mostra o seu rosto emen e.

    poesia, portanto, sempre retorno, mas um retorno que adiamento, reteno e no nostalgia ou busca por uma origem; um caminhar, mas no um simples marchar para frente, um passo suspenso. Versura o termo latino que Agamben usou em outro estudo, O fim do poema, para tratar do trao essencial do verso, o ponto no qual o arado faz a volta ao final do sulco. Dessa maneira, o poema se define no seu fim. Para Agamben a poesia esse movimento do olhar para trs operado no poema e, portanto, um olhar para o no-vivido no que vivido, tal como a vida do con-temporneo. O voltar-se para trs, suspender o passo,

    13 Idem, p. 62.

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    ver o escuro na luz, entrever um limiar inapreensvel entre um ainda no e um no mais e compreender a modernidade como imemorial e pr-histrica so algumas das fraturas, das cises no tempo com as quais o sujeito, o poeta, tem que lidar.

    Segundo Agamben, no basta mais evocar a ca-tegoria da subjetividade, como o fazia a metafsica, para empreender essas aes em suspenso, sem as quais no h um passo em direo revoluo, nova experincia do tempo. J ao ler o sujeito como resul-tado de processos de subjetivao, estes que so um corpo a corpo entre vivente e dispositivo, Agamben procura desativar a proposta metafsica que v o su-jeito como uma essncia (de certo modo, essa tam-bm a ideia da filosofia moderna, de Descartes at Husserl). Como dissemos antes, proliferao dos dispositivos qual assistimos na atual fase do capita-lismo no correspondem processos de subjetivao cujos resultados sejam sujeitos reais, mas to somen-te espectros de sujeitos. A partir dessa compreenso espectral do sujeito, podemos ter a impresso de que "a categoria da subjetividade no nosso tempo vacila e perde consistncia; mas se trata, para ser preciso, no de um cancelamento ou de uma superao, mas de uma disseminao que leva ao extremo o aspecto de

    mascaramento que sempre acompanhou toda iden-tidade pessoal."14 Diante disso, no nos resta outra sada seno pensar para alm do sujeito, ou seja, nas palavras de Agamben, pensar uma singularidade qual-quer (um quodJibet, uma forma-de-vida,15 uma rela-o de amizade). Do sujeito vacilante, espectral deve emergir ento um gesto;16 no entanto, o gesto; a ao a que se reduz esse sujeito uma suspenso, o rten, a reserva, que em todas as matrias uma grande regra do viver com xito.

    Assim, a filosofia de Agamben se desenvolve de um modo no qual ontologia, poltica e poesia se en-contram tramadas pela estratgia do filsofo. Diz ele que no se pode falar em retorno s condies perdi-das na histria, mas que somente nos possvel en-trever em meio s luzes do presente o escuro que lhe inerente, uma origem que no est fora da histria,

    14 Idem, p. 41-42. 15 Sobre a ideia de forma-de-vida em Agamben cf.: AGAMBEN, Giorgio.

    Mezzi senza Fine. Bollati Boringhieri, 1996. p. 13-19; AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. I Traduo Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. . .

    16 Cf. ensaio sobre o gesto publicado por Agamben em: AGAMBEN, GlorglO. Mezzi senza Fine. Bollati Boringhieri, 1996. p. 45-53. H uma traduo brasileira do ensaio em: AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o Gesto. Tra-duo Vincius Nicastro Honesko. Artefilosofia, n. 4, jan. 2008. Ouro Preto: Tessitura, 2008, p. 9-13.

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    mas que garante um olhar no saudosista para o pas-sado e um mirar o futuro sem esperanas outras que no a prpria capacidade de repensar o presente. As-sim, estes trs ensaios agora publicados em lngua por-tuguesa do uma mostra da estratgia de ao traada por Agamben: pensar uma prxis indecidvel de uma teoria; pensar uma poltica que recobre sua dimen-so ontolgica.

    Susana Scramim e Vincius Nicastro Honesko

  • o que um dispositivo?l

    Giorgio Agamben apresentou uma primeira verso deste ensaio como uma das conferncias que realizou no Brasil em setembro de 2005; uma dessas conferncias foi proferida na Universidade Federal de Santa Catarina. O autor cedeu o texto da conferncia, que foi traduzido do original em italiano por Nilcia Vadati, para a edio do nmero 5 da Revista Outra TI'avessia, cujo ttulo A exceo e o excesso. Agamben&Bataille, organi-zado em comemorao pela passagem do filsofo italiano por aquela universidade.

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  • 1. As questes terminolgicas so importantes na

    filosofia. Como disse uma vez um filsofo pelo qual tenho o maior respeito, a terminologia o momen-to potico do pensamento. Isso no significa que os filsofos devam necessariamente a todo instante de-finir os seus termos tcnicos. Plato nunca defi-niu o mais importante dos seus termos: ideia. Ou-tros, ao contrrio, como Spinoza e Leibniz, preferem definir more geometrico as suas terminologias.

    A hiptese que pretendo propor-lhes que a palavra "dispositivo" seja um termo tcnico decisivo na estratgia do pensamento de Foucault. Ele o usa com frequncia, sobretudo a partir da metade dos anos setenta, quando comea a se ocupar daquilo

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    que chamava de "governabilidade" ou de "governo dos homens': Embora nunca tenha elaborado propria-mente a definio, ele se aproxima de algo como uma definio numa entrevista de 1977:

    Aquilo que procuro individualizar com este nome , antes de tudo, um conjunto absolutamente he-terogneo que implica discursos, instituies, es-truturas arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados cientfi-cos, proposies filosficas, morais e filantrpicas, em resumo: tanto o dito como o no dito, eis os elementos do dispositivo. O dispositivo a rede que se estabelece entre estes elementos [ ... ] [ ... ] com o termo dispositivo, compreendo uma espcie - por assim dizer - de formao que num certo momento histrico teve como funo essen-cial responder a uma urgncia. O dispositivo tem, portanto, uma funo eminentemente estratgica [ ... ] Disse que o dispositivo tem natureza essencialmen-te estratgica, que se trata, como conseqncia, de uma certa manipulao de relaes de fora, de uma interveno racional e combinada das relaes de fora, seja para orient-las em certa direo, seja para bloque-las ou para fix-las e utiliz-las. O dispositivo est sempre inscrito num jogo de po-der e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos limites do saber, que derivam desse e, na mesma medida, condicionam-no. Assim, o dispositivo : um con-junto de estratgias de relaes de fora que condicionam certos tipos de saber e por ele so condicionados. (Dits et crits, v. III, p. 299-300).

    Resumamos brevemente os trs pontos: a. um conjunto heterogneo, lingustico e

    no-lingustico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo ttulo: discursos, instituies, edif-cios, leis, medidas de polcia, proposies filosficas etc. O dispositivo em si mesmo a rede que se esta-belece entre esses elementos.

    b. O dispositivo tem sempre uma funo estra-tgica concreta e se inscreve sempre numa relao de poder.

    e. Como tal, resulta do cruzamento de relaes de poder e de relaes de saber.

    2. Gostaria agora de tentar traar uma sumria

    genealogia deste termo, inicialmente no interior da obra de Foucault e, posteriormente, num contexto histrico mais amplo.

    N o final dos anos sessenta, mais ou menos no momento em que escreve A Arqueologia do saber, para definir o objeto de suas pesquisas Foucault no usa o termo dispositivo, mas o termo, etimologicamente prximo, "positivit': tambm desta vez sem defini-lo.

    Frequentemente me perguntei onde Foucault tinha encontrado este termo, at o momento em que, no

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    muitos meses atrs, reli o ensaio de Jean Hyppolite, Introduction La philosophie de Fhistoire de Hegel. Provavelmente os senhores conhecem a forte relao que ligava Foucault a Hyppolite, a quem s vezes defi-ne como "o meu mestre" (Hyppolite foi efetivamente seu professor durante a khgne no liceu Henri IV e de-pois na cole Normale).

    O captulo terceiro do ensaio de Hyppolite leva o ttulo: Raison et histoire. Les ides de positivit et de destin (Razo e histria. As ideias de positividade e de destino). Ele concentra aqui a sua anlise sobre duas obras hegelianas do assim chamado perodo de Berna e Frankfurt (1795-1796): a primeira "O esp-rito do cristianismo e o seu destino", e a segunda -aquela da qual provm o termo que nos interessa - ''A positividade da religio crist" (Die Positivitat der christliche Religion). Segundo Hyppolite, "destino" e "positividade" so dois conceitos-chave do pensamen-to hegeliano. Em particular, o termo "positividade" tem em Hegel o seu lugar prprio na oposio entre "reli-gio natural" e "religio positiva: Enquanto a religio natural diz respeito imediata e geral relao da razo humana com o divino, a religio positiva ou histrica compreende o conjunto das crenas, das regras e dos ritos que numa determinada sociedade e num de-terminado momento histrico so impostos aos

    indivduos pelo exterior. "Uma religio positiva', es-creve Hegel numa passagem que Hyppolite cita, "im-plica sentimentos que vm impressos nas almas por meio de uma coero e comportamentos que so o resultado de uma relao de comando e de obedincia e que so cumpridos sem um interesse direto".2

    Hyppolite mostra como a oposio entre natureza e positividade corresponde, nesse sentido, dialtica entre liberdade e coero e entre razo e histria. Numa passagem que no pode no ter suscitado a curiosidade de Foucault e que contm algo mais que um pressgio da noo de dispositivo, Hyppolite escreve:

    V-se aqui o n problemtico implcito no concei-to de positividade e as tentativas sucessivas de Hegel em unir dialeticamente - uma dialtica que no tomou ainda conscincia de si mesma - a pura ra-zo (terica e, sobretudo, prtica) e a positividade, isto , o elemento histrico. Num certo sentido, a positividade considerada por Hegel como um obstculo liberdade humana, e como tal con-denada. Investigar os elementos positivos de uma religio, e se poderia j acrescentar, de um estado social, significa descobrir aquilo que nestes impos-to por meio de uma coero aos homens, aquilo

    2 J. Hyppolite, Introduction La philosophie J'histoire de Hegel, Seuil, Parigi 1983, p. 43 (1. ed. 1948).

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  • 321

    que torna opaca a pureza da razo; mas, num ou-tro sentido, o que no curso do desenvolvimento do pensamento hegeliano acaba por prevalecer, a positividade deve estar conciliada com a razo, que perde ento o seu carter abstrato e se adapta riqueza concreta da vida. Desta forma, compreen-de-se como o conceito de positividade est no cen-tro das perspectivas hegelianas.3

    Se "positividade" o nome que, segundo Hyppolite, o jovem Hegel d ao elemento histrico, com toda sua carga de regras, ritos e instituies impostas aos indiv-duos por um poder externo, mas que se torna, por as-sim dizer, interiorizada nos sistemas das crenas e dos sentimentos, ento Foucault, tomando emprestado este termo (que se tornar mais tarde "dispositivo"), toma posio em relao a um problema decisivo, que tambm o seu problema mais prprio: a relao entre os indivduos como seres viventes e o elemento hist-rico, entendendo com este termo o conjunto das insti-tuies, dos processos de subjetivao e das regras em que se concretizam as relaes de poder. O objetivo ltimo de Foucault no , porm, como em Hegel, aquele de reconciliar os dois elementos. E nem mesmo

    3 Ibidem, p. 46.

    o de enfatizar o conflito entre esses. Trata-se para ele, antes, de investigar os modos concretos em que as positividades (OU os dispositivos) agem nas relaes, nos mecanismos e nos "jogos" de poder.

    3. Deveria agora estar claro em que sentido propus

    como hiptese que o termo "dispositivo" um ter-mo tcnico essencial do pensamento de Foucault. No se trata de um termo particular, que se refere somente a esta ou quela tecnologia do poder. um termo geral, que tem a mesma amplitude que, segundo Hyppolite, "positividade" tem para o jovem Hegel e, na estrat-gia de Foucault, este vem ocupar o lugar daqueles que ele define criticamente como "os universais" (les universaux). Foucault, como sabem, sempre recusou a se ocupar daquelas categorias gerais ou entes da ra-zo que chama de "os universais", como o Estado, a Soberania, a Lei, o Poder. Mas isso no significa que no haja, no seu pensamento, conceitos operativos de carter geral. Os dispositivos so precisamente o que na estratgia foucaultiana toma o lugar dos univer-sais: no simplesmente esta ou aquela medida de se-gurana, esta ou aquela tecnologia do poder, e nem mesmo uma maioria obtida por abstrao: antes,

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  • 341

    como dizia na entrevista de 1977, "a rede Ue rseau) que se estabelece entre estes elementos':

    Se tentarmos agora examinar a definio do ter-mo "dispositivo" que se encontra nos dicionrios fran-ceses de uso comum, veremos que estes distinguem trs significados para o termo:

    a. Um sentido jurdico estrito: "o dispositivo a parte de um juzo que contm a deciso separada-mente da motivao': Isto , a parte da sentena (ou de uma lei) que decide e dispe.

    b. Um significado tecnolgico: "O modo em que esto dispostas as partes de uma mquina ou de um mecanismo e, por extenso, o prprio mecanismo."

    c. Um significado militar: "O conjunto dos meios dispostos em conformidade com um plano:'

    Todos os trs significados esto, de algum modo, presentes no uso foucaultiano. Mas os dicionrios, em particular aqueles que no tm um carter his-trico-etimolgico, operam dividindo e separando os vrios significados de um termo. Essa fragmenta-o, no entanto, corresponde em geral ao desenvolvi-mento e articulao histrica de um nico signifi-cado original, que importante no perder de vista. Qual , no caso do termo "dispositivo", este signifi-cado? Certamente o termo, no uso comum como no foucaultiano, parece remeter a um conjunto de

    prticas e mecanismos (ao mesmo tempo lingusticos e no-lingusticos, jurdicos, tcnicos e militares) que tm o objetivo de fazer frente a uma urgncia e de obter um efeito mais ou menos imediato. Mas em qual estratgia de prxis ou de pensamento, em qual contexto histrico o termo moderno teve origem?

    4. Nos ltimos trs anos, fui me envolvendo numa

    pesquisa cujo fim apenas agora comeo a entrever e que poderei definir, com alguma aproximao, como uma genealogia teolgica da economia. Nos primeiros sculos da histria da Igreja - digamos, entre o segundo e o sexto sculos -, o termo grego oikonomia desempe-nou na teologia uma funo decisiva. Oikonomia sig-nifica em grego a administrao do oikos, da casa, e, mais geralmente, gesto, management. Trata-se, como diz Aristteles (PoI. 1255 b 21), no de um paradigma epistmico, mas de uma prxis, de uma atividade pr-tica que deve de quando em quando fazer frente a um problema e a uma situao particular. Por que os padres sentiram a necessidade de introduzir este ter-mo na teologia? Como se chegou a falar de uma "eco-nomia divina"?

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  • 361

    Tratava-se, com preciso, de um problema extre-mamente delicado e vital, talvez, da questo decisiva na histria da teologia crist: a Trindade. Quando, no decorrer do segundo sculo, comeou-se a discutir sobre uma Trindade de figuras divinas, o Pai, o Filho e o Esprito, houve, como era de se esperar, no interior da Igreja uma fortssima resistncia por parte dos seus mentores que pensavam com temor que, deste modo, se arriscava a reintroduzir o politesmo e o paganismo na f crist. Para convencer estes obstinados advers-rios (que depois foram definidos "monarquianos", isto , partidrios do governo de um s), telogos como Tertuliano, Hiplito, Irineu e muitos outros no en-contraram melhor maneira do que se servirem do ter-mo oikonomia. O argumento deste era mais ou me-nos o seguinte: "Deus, quanto ao seu ser e sua subs-tncia, , certamente, uno; mas quanto sua oikonomia, isto , ao modo em que administra a sua casa, a sua vida e o mundo que criou, , ao contrrio, trplice. Como um bom pai pode confiar ao filho o desen-volvimento de certas funes e de certas tarefas, sem por isso perder o seu poder e a sua unidade, assim Deus confia a Cristo a 'economia', a administrao e o governo da histria dos homens." O termo oikonomia foi assim se especializando para significar de modo par-ticular a encarnao do Filho e a economia da redeno

    e da salvao (por isso, em algumas seitas gnsticas, Cristo acaba por se chamar "o homem da economia", ho anthrpos ts oikonomias). Os telogos se habi-tuaram pouco a pouco a distinguir entre um "discur-so - ou logos - da teologia" e um "logos da econo-mia", e a oikonomia torna-se assim o dispositivo me-diante o qual o dogma trinitrio e a ideia de um go-verno divino providencial do mundo foram intro-duzidos na f crist.

    Mas, como frequentemente acontece, a fratura que os telogos procuraram deste modo evitar e remover em Deus sob o plano do ser reaparece na forma de uma cesura que separa em Deus ser e ao, ontologia e prxis. A ao (a economia, mas tambm a poltica) no tem nenhum fundamento no ser: esta a esquizofrenia que a doutrina teolgica da oikonomia deixa como heran-a cultura ocidental.

    5. Penso tambm que, atravs desta exposio su-

    mria, vocs tenham se dado conta da centralidade e da importncia da funo que a noo de oikonomia desenvolveu na teologia crist. J a partir de Clemen-te de Alexandria esta se funde com a noo de provi-dncia, e passa a significar o governo salvfico do

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  • 381

    mundo e da histria dos homens. Pois bem: qual a traduo deste fundamental termo grego nos escritos dos padres latinos? Dispositio.

    O termo latino dispositio, do qual deriva o nos-so termo "dispositivo': vem, portanto, para assumir em si toda a complexa esfera semntica da oikonomia teolgica. Os "dispositivos" de que fala Foucault es-to de algum modo conectados com esta herana teo-lgica, podem ser de alguma maneira reconduzidos fratura que divide e, ao mesmo tempo, articula em Deus ser e prxis, a natureza ou essncia e a operao por meio da qual ele administra e governa o mundo das criaturas. O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivao, isto , devem produzir o seu sujeito.

    luz desta genealogia teolgica, os dispositi-vos foucaultianos adquirem uma riqueza de signifi-cados ainda mais decisiva, num contexto em que es-tes se cruzam no apenas com a "positividade" do jo-vem Hegel, mas tambm com a Gestell do ltimo Heidegger, cuja etimologia anloga quela da dis-positio, dis-ponere (o alemo stellen corresponde ao latim ponere). Quando Heidegger, em Die Technik und die Kehre (A tcnica e a volta), escreve que

    Ge-stell significa comumente "aparato" (GerIit), mas que ele entende com este termo "o recolher-se daque-le (dis)por (5tellen), que (dis)pe do homem, isto , exige dele o desvelamento do real sobre o modo do ordenar (Bestellen)", a proximidade deste termo com a dispositio dos telogos e com os dispositivos de Foucault evidente. Comum a todos esses termos a referncia a uma oikonomia, isto , a um conjunto de prxis, de saberes, de medidas, de instituies cujo objetivo gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supe til, os gestos e os pensamentos dos homens.

    6. Um dos princpios metodolgicos que sigo cons-

    tantemente em minhas pesquisas o de individuar nos textos e nos contextos em que trabalho o que Feuerbach definia como o elemento filosfico, ou seja, o ponto da sua Entwicklungsfahigkeit (literalmente, capacidade de desenvolvimento), o locus e o momento em que estes so passveis de desenvolvimento. To-davia, quando interpretamos e desenvolvemos neste sentido o texto de um autor, chega o momento em que comeamos a nos dar conta de no mais poder seguir alm sem transgredir as regras mais elementares

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  • 41

    da hermenutica. Isso significa que o desenvolvimen-to do texto em questo alcanou um ponto de indecidibilidade no qual se torna impossvel distin-guir entre o autor e o intrprete. Embora este seja para o intrprete um momento particularmente feliz, ele sabe que o momento de abandonar o texto que est anali-sando e de proceder por conta prpria.

    Convido-os, portanto, a abandonar o contexto da filologia foucaultiana em que nos movemos at agora e a situar os dispositivos num novo contexto.

    Proponho-lhes nada menos que uma geral e ma-cia diviso do existente em dois grandes grupos ou classes: de um lado, os seres viventes (ou, as substn-cias), e, de outro, os dispositivos em que estes so in-cessantemente capturados. Isto , de um lado, para retomar a terminologia dos telogos, a ontologia das criaturas, e, do outro, a oikonomia dos dispositivos que procuram govern-las e gui-las para o bem.

    Generalizando posteriormente a j bastante am-pla classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegu-rar os gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seres viventes. No somente, portanto, as prises, os manicmios, o Panptico, as escolas, a confisso,

    as fbricas, as disciplinas, as medidas jurdicas etc., cuja conexo com o poder num certo sentido evi-dente, mas tambm a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegao, os com-putadores, os telefones celulares e - por que no - a prpria linguagem, que talvez o mais antigo dos dispositivos, em que h milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem se dar conta das consequncias que se seguiriam - teve a inconscin-cia de se deixar capturar.

    Recapitulando, temos assim duas grandes clas-ses, os seres viventes (ou as substncias) e os disposi-tivos. E, entre os dois, como terceiro, os sujeitos. Cha-mo sujeito o que resulta da relao e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos. Naturalmente as substncias e os sujeitos, como na velha metafsica, parecem sobrepor-se, mas no com-pletamente. Neste sentido, por exemplo, um mesmo indivduo, uma mesma substncia, pode ser o lugar dos mltiplos processos de subjetivao: o usurio de telefones celulares, o navegador na internet, o es-critor de contos, o apaixonado por tango, o no-glo-bal etc. Ao ilimitado crescimento dos dispositivos no nosso tempo corresponde uma igualmente dissemi-nada proliferao de processos de subjetivao. Isso pode produzir a impresso de que a categoria da

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    1.1

    I.:

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    : , (ii

    !

  • 42 1

    subjetividade no nosso tempo vacila e perde consis-tncia; mas se trata, para ser preciso, no de um cance-lamento ou de uma superao, mas de uma dissemi-nao que leva ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal.

    7. No seria provavelmente errado definir a fase

    extrema do desenvolvimento capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulao e prolife-rao de dispositivos. Certamente, desde que apare-ceu o homo sapiens havia dispositivos, mas dir-se-ia que hoje no haveria um s instante na vida dos in-divduos que no seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo. De que modo, en-to, podemos fazer frente a esta situao, qual a estra-tgia que devemos seguir no nosso quotidiano cor-po a corpo com os dispositivos? No se trata sim-plesmente de destru-los, nem, como sugerem alguns ingnuos, de us-los de modo correto.

    Por exemplo, vivendo na Itlia, isto , num pas cujos gestos e comportamentos dos indivduos foram remodelados de cima abaixo pelo telefone celular (cha-mado familiarmente de "telefonino"), eu desenvolvi um dio implacvel por este dispositivo, que deixou ainda

    mais abstratas as relaes entre as pessoas. Apesar de ter me surpreendido muitas vezes pensando em como des-truir ou desativar os "telefoninos" e em como eliminar ou ao menos punir e aprisionar aqueles que os usam, no creio que seja esta a soluo justa para o problema.

    O fato que, segundo toda evidncia, os dispo-sitivos no so um acidente em que os homens ca-ram por acaso, mas tm a sua raiz no mesmo processo de "hominizao" que tornou "humanos" os animais que classificamos sob a rubrica homo sapiens. O evento que produziu o humano constitui, com efeito, para o vivente algo como uma ciso que reproduz de algum modo a ciso que a oikonomia havia introduzido em Deus entre ser e ao. Esta ciso separa o vivente de si mesmo e da relao imediata com o seu ambiente, isto , com aquilo que Uexkhl e depois dele Heidegger chamam o crculo receptor-desinibidor. Quebrando ou interrompendo esta relao, produzem-se para o vi-vente o tdio - isto , a capacidade de suspender a relao imediata com os desinibidores - e o Aberto, isto , a possibilidade de conhecer o ente enquanto ente, de construir um mundo. Mas com essas possi-bilidades dada imediatamente tambm a possibili-dade dos dispositivos que povoam o Aberto com instrumentos, objetos, gadgets, bugigangas e tecnologias de todo tipo. Por meio dos dispositivos, o

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  • 441

    homem procura fazer girar em vo os comportamentos animais que se separaram dele e gozar assim do Aberto como tal, do ente enquanto ente. Na raiz de todo dispo-sitivo est, deste modo, um desejo demasiadamente hu-mano de felicidade, e a captura e a subjetivao deste desejo, numa esfera separada, constituem a potncia es-pecfica do dispositivo.

    8. Isso significa que a estratgia que devemos ado-

    tar no nosso corpo a corpo com os dispositivos no pode ser simples, j que se trata de liberar o que foi capturado e separado por meio dos dispositivos e restitU-los a um possvel uso comum. nesta pers-pectiva que gostaria agora de falar-lhes de um con-ceito sobre o qual me ocorreu trabalhar recentemen-te. Trata-se de um termo que provm da esfera do di-reito e da religio (direito e religio so, no apenas em Roma, estreitamente conexos): profanao.

    Segundo o direito romano, sagradas ou religio-sas eram as coisas que pertenciam de algum modo aos deuses. Como tais, eram subtradas ao livre uso e ao comrcio dos homens, no podiam ser vendi-das, nem penhoradas, cedidas ao usufruto ou grava-das em servido. Sacrlego era todo ato que violasse

    ou transgredisse esta especial indisponibilidade que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (e eram ento chamadas propriamente "sagradas") ou inferiores (neste caso, chamavam-se simplesmente "re-ligiosas"). E se consagrar (sacrare) era o termo que designava a sada das coisas da esfera do direito hu-mano, profanar significava, ao contrrio, restituir ao livre uso dos homens. "Profano", podia assim escre-ver o grande jurista Trebazio, "diz-se, em sentido pr-prio, daquilo que, de sagrado ou religioso que era, restitudo ao uso e propriedade dos homens."

    Pode-se definir religio, nessa perspectiva, como aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas do uso comum e as transfere a uma esfera separada. No s no h religio sem separao, mas toda separao contm ou conserva em si um ncleo genuinamente religioso. O dispositivo que realiza e regula a separao o sacrifcio: por meio de uma srie de rituais minu-ciosos, diversos segundo a variedade das culturas, que Hubert e Mauss pacientemente inventariaram, o sacrif-cio sanciona em cada caso a passagem de alguma coisa do profano para o sagrado, da esfera humana divina. Mas aquilo que foi ritualmente separado pode ser resti-tudo pelo rito esfera profana. A profanao o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifcio tinha separado e dividido.

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  • 461

    9. O capitalismo e as figuras modernas do poder

    parecem, nessa perspectiva, generalizar e levar ao ex-tremo os processos separativos que definem a reli-gio. Se considerarmos a genealogia teolgica dos dispositivos que acabamos de delinear, a qual os conecta ao paradigma cristo da oikonomia, isto , do governo divino do mundo, veremos que os dis-positivos modernos apresentam, porm, uma diferen-a em relao aos tradicionais, o que torna particu-1armente problemtica a sua profanao. De fato, todo dispositivo implica um processo de subjetivao, sem o qual o dispositivo no pode funcionar como dis-positivo de governo, mas se reduz a um mero exerc-cio de violncia. Foucault assim mostrou como, numa sociedade disciplinar, os dispositivos visam, atravs de uma srie de prticas e de discursos, de saberes e de exerccios, criao de corpos dceis, mas livres, que assumem a sua identidade e a sua "liberdade" de sujeitos no prprio processo do seu assujeitamento. Isto , o dispositivo , antes de tudo, uma mquina que produz subjetivaes e somente enquanto tal tambm uma mquina de governo. O exemplo da confisso aqui iluminador: a formao da subjeti-vidade ocidental, ao mesmo tempo cindida e, no en-tanto, dona e segura de si, inseparvel da ao

    plurissecular do dispositivo penitencial, no qual um novo Eu se constitui por meio da negao e, ao mes-mo tempo, assuno do velho. A ciso do sujeito ope-rada pelo dispositivo penitencial era, nesse sentido, produtora de um novo sujeito que encontrava a pr-pria verdade na no-verdade do Eu pecador repudia-do. Consideraes anlogas podem ser feitas para o dispositivo prisional, que produz como consequncia mais ou menos imprevista a constituio de um sujei-to e de um milieu delinquente, que se torna o sujeito de novas - e, desta vez, perfeitamente calculadas - tc-nicas de governo.

    O que define os dispositivos com os quais te-mos que lidar na atual fase do capitalismo que estes no agem mais tanto pela produo de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivao. Um momento dessubjetivante estava certamente implcito em todo processo de subjetivao, e o Eu penitencial se constitua, hava-mos visto, somente por meio da prpria negao; mas o que acontece agora que processos de subjetivao e processos de dessubjetivao parecem tornar-se re-ciprocamente indiferentes e no do lugar recom-posio de um novo sujeito, a no ser de forma larvar e, por assim dizer, espectral. Na no-verdade do su-jeito no h mais de modo algum a sua verdade.

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  • 481

    Aquele que se deixa capturar no dispositivo "telefo-ne celular", qualquer que seja a intensidade do dese-jo que o impulsionou, no adquire, por isso, uma nova subjetividade, mas somente um nmero pelo qual pode ser, eventualmente, controlado; o espec-tador que passa as suas noites diante da televiso recebe em troca da sua dessubjetivao apenas a mscara frustrante do zappeur ou a incluso no cl-culo de um ndice de audincia.

    Aqui se mostra a futilidade daqueles discursos bem intencionados sobre a tecnologia, que afirmam que o problema dos dispositivos se reduz quele de seu uso correto. Esses discursos parecem ignorar que, se a todo dispositivo corresponde um determinado processo de subjetivao (ou, neste caso, de dessubjetivao), to-talmente impossvel que o sujeito do dispositivo o use "de modo correto': Aqueles que tm discursos simi-lares so, de resto, o resultado do dispositivo miditico no qual esto capturados.

    10. As sociedades contemporneas se apresentam as-

    sim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivao que no correspondem a nenhuma subjetivao real. Daqui o eclipse da poltica,

    que pressupunha sujeitos e identidades reais (o mo-vimento operrio, a burguesia etc.), e o triunfo da oikonomia, isto , de uma pura atividade de governo que visa somente sua prpria reproduo. Direita e esquerda, que se alternam hoje na gesto do poder, tm por isso bem pouco o que fazer com o contexto poltico do qual os termos provm e nomeiam sim-plesmente os dois polos - aquele que aposta sem es-crpulos na dessubjetivao e aquele que gostaria, ao contrrio, de recobri-la com a mscara hipcrita do bom cidado democrtico - de uma mesma mqui-na governamental.

    Daqui, sobretudo, a singular inquietude do po-der exatamente no momento em que se encontra diante do corpo social mais dcil e frgil jamais constitudo na histria da humanidade. por um paradoxo ape-nas aparente que o incuo cidado das democracias ps-industriais (o bloom, como eficazmente se suge-riu cham-lo), que executa pontualmente tudo o que lhe dito e deixa que os seus gestos quotidianos, como sua sade, os seus divertimentos, como suas ocupa-es, a sua alimentao e como seus desejos sejam comandados e controlados por dispositivos at nos mnimos detalhes, considerado pelo poder - talvez exatamente por isso - como um terrorista virtual. En-quanto a nova normativa europeia impe assim a todos

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  • 50 I

    os cidados aqueles dispositivos biomtricos que de-senvolvem e aperfeioam as tecnologias antropomtricas (das impresses digitais fotografia sinaltica) que fo-ram inventadas no sculo XIX para a identificao dos criminosos reincidentes, a vigilncia por meio de videocmera transforma os espaos pblicos das cidades em reas internas de uma imensa priso. Aos olhos da autoridade - e, talvez, esta tenha razo - nada se assemelha melhor ao terrorista do que o homem comum.

    Quanto mais os dispositivos se difundem e dis-seminam o seu poder em cada mbito da vida, tanto mais o governo se encontra diante de um elemento inapreensvel, que parece fugir de sua apreenso quan-to mais docilmente a esta se submete. Isto no signi-fica que ele representa em si mesmo um elemento revolucionrio, nem que possa deter ou tambm so-mente ameaar a mquina governamental. No lugar do anunciado fim da histria, assiste-se, com efeito, ao incessante girar em 'vo da mquina, que, numa espcie de desmedida pardia da oikonomia teolgi-ca' assumiu sobre si a herana de um governo pro-videncial do mundo que, ao invs de salv-lo, o con-duz - fiel, nisso, originria vocao escatolgica da providncia - catstrofe. O problema da profanao

    dos dispositivos - isto , da restituio ao uso comum daquilo que foi capturado e separado nesses - , por isso, tanto mais urgente. Ele no se deixar colocar cor-retamente se aqueles que dele se encarregam no esti-verem em condies de intervir sobre os processos de subjetivao, assim como sobre os dispositivos, para levar luz aquele Ingovernvel, que o incio e, ao mesmo tempo, o ponto de fuga de toda poltica.

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  • o que o contemporneo?

    o texto retoma aquele da lio inaugural do curso de Filosofia Teortica 2006-2007 junto Faculdade de Arte e Design do IUAV de Veneza.

  • 1. A pergunta que gostaria de escrever no limiar

    deste seminrio : "De quem e do que somos con-temporneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporneo?". No curso do seminrio deveremos ler textos cujos autores de ns distam muitos sculos e outros que so mais recentes ou recentssimos: mas, em todo caso, essencial que consigamos ser de algu-ma maneira contemporneos desses textos. O "tem-po" do nosso seminrio a contemporaneidade, e isso exige ser contemporneo dos textos e dos autores que se examinam. Tanto o seu grau quanto o seu xito sero medidos pela sua - pela nossa - capacidade de estar altura dessa exigncia.

    I

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    I I

  • 581

    Uma primeira e provisria indicao para orien-tar a nossa procura por uma resposta nos vem de Nietzsche. Numa anotao dos seus cursos no College de France, Roland Barthes resume-a deste modo: "O contemporneo o intempestivo'~ Em 1874, Friedrich Nietzsche, um jovem fillogo que tinha trabalhado at ento sobre textos gregos e, dois anos antes, havia atin-gido uma inesperada celebridade com O nascimento da tragdia, publica as Unzeitgemasse Betrachtungen, as "Consideraes intempestivas': com as quais quer acertar as contas com o seu tempo, tomar posio em relao ao presente. "Intempestiva esta considerao o ", l-se no incio da segunda "Considerao': "por-que procura compreender como um mal, um incon-veniente e um defeito algo do qual a poca justamen-te se orgulha, isto , a sua cultura histrica, porque eu penso que somos todos devorados pela febre da his-tria e deveremos ao menos disso nos dar conta'~ Nietzsche situa a sua exigncia de "atualidade': a sua "contemporaneidade" em relao ao presente, numa desconexo e numa dissociao. Pertence verdadeira-mente ao seu tempo, verdadeiramente contemporneo, aquele que no coincide perfeitamente com este, nem est adequado s suas pretenses e , portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamen-te atravs desse deslocamento e desse anacronismo,

    ele capaz, mais do que os outros, de perceber e apre-ender o seu tempo.

    Essa no-coincidncia, essa discronia, no signi-fica, naturalmente, que contemporneo seja aquele que vive num outro tempo, um nostlgico que se sente em casa mais na Atenas de Pricles, ou na Paris de Robespierre e do marqus de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver. Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que no pode fugir ao seu tempo.

    A contemporaneidade, portanto, uma singular relao com o prprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distncias; mais precisamen-te, essa a relao com o tempo que a este adere atravs de uma dissociao e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a poca, que em to-dos os aspectos a esta aderem perfeitamente, no so contemporneos porque, exatamente por isso, no con-seguem v-la, no podem manter fixo o olhar sobre ela.

    2. Em 1923, Osip Mandel'stam escreve uma poesia

    que se intitula "O sculo" (mas a palavra russa vek significa tambm "poca"). Essa contm no uma

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  • 601

    reflexo sobre o sculo, mas sobre a relao entre o poe-ta e o seu tempo, isto , sobre a contemporaneidade. No o "sculo': mas, segundo as palavras que abrem o primeiro verso, o "meu sculo" (vek moi):

    Meu sculo, minha fera, quem poder olhar-te dentro dos olhos e soldar com o seu sangue as vrtebras de dois sculos?4

    o poeta, que devia pagar a sua contemporaneidade com a vida, aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu sculo-fera, soldar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo. Os dois sculos, os dois tempos no so apenas, como foi sugerido, o sculo XIX e o XX, mas tambm, e antes de tudo, o tempo da vida do indivduo (lembrem-se que o latim saeculum significa originalmente o tempo da vida) e o tempo histrico coletivo, que chamamos, nesse caso, o sculo XX, cujo dorso - compreendemos na

    4 Essa traduo feita diretamente do texto italiano apresentado por Agamben na edio italiana de Che cos' ii contemporaneo? Desse poema existe uma traduo para o portugus, sob o nome A Era, feita por Haroldo de Campos em Poesia Russa Moderna, Editora Brasiliense, 1987. N.doT.

    ltima estrofe da poesia - est quebrado. O poeta, enquanto contemporneo, essa fratura, aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra. O paralelismo entre o tempo - e as vrtebras - da criatura e o tempo -e as vrtebras - do sculo constitui um dos temas es-senciais da poesia:

    Enquanto vive a criatura deve levar as prprias vrtebras, os vagalhes brincam com a invisvel coluna vertebral. Como delicada, infantil cartilagem o sculo neonato da terra.

    O outro grande tema - tambm este, como o pre-cedente, uma imagem da contemporaneidade - o das vrtebras quebradas do sculo e da sua sutura, que obra do indivduo (nesse caso, do poeta):

    Para liberar o sculo em cadeias para dar incio ao novo mundo preciso com a flauta reunir os joelhos nodosos dos dias.

    II'

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  • 621

    Que se trate de urna tarefa inexecutvel- ou, de todo modo, paradoxal- est provado pela estrofe suces-siva que conclui o poema. No apenas a poca-fera tem as vrtebras fraturadas, mas vek, o sculo recm-nasci-do, com um gesto impossvel para quem tem o dorso quebrado quer virar-se para trs, contemplar as pr-prias pegadas e, desse modo, mostra o seu rosto de-mente:

    Mas est fraturado o teu dorso meu estupendo e pobre sculo. Com um sorriso insensato como uma fera um tempo graciosa tu te voltas para trs, fraca e cruel, para contemplar as tuas pegadas.

    3. O poeta - o contemporneo - deve manter fixo

    o olhar no seu tempo. Mas o que v quem v o seu tempo, o sorriso demente do seu sculo? Neste ponto gostaria de lhes propor urna segunda definio da contemporaneidade: contemporneo aquele que mantm fixo o olhar no seu tempo, para nele perce-ber no as luzes, mas o escuro. Todos os tempos so, para quem deles experimenta contemporaneidade,

    obscuros. Contemporneo , justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. Mas o que significa "ver as trevas", "perceber o escuro"?

    Urna primeira resposta nos sugerida pela neuro fisiologia da viso. O que acontece quando nos encontramos num ambiente privado de luz, ou quan-do fechamos os olhos? O que o escuro que ento vemos? Os neurofisiologistas nos dizem que a ausn-cia de luz desinibe urna srie de clulas perifricas da retina, ditas precisamente off-ce1ls, que entram em atividade e produzem aquela espcie particular de viso que chamamos o escuro. O escuro no , por-tanto, um conceito privativo, a simples ausncia da luz, algo corno urna no-viso, mas o resultado da ati-vidade das off-cells, um produto da nossa retina. Isso significa, se voltamos agora nossa tese sobre o escu-ro da contemporaneidade, que perceber esse escuro no urna forma de inrcia ou de passividade, mas implica urna atividade e urna habilidade particular que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provm da poca para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que no , no entanto, separvel daquelas luzes.

    Pode dizer-se contemporneo apenas quem no se deixa cegar pelas luzes do sculo e consegue entrever

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    I'

    1" ii I, III

    I

  • 64/

    nessas a parte da sombra, a sua ntima obscuridade. Com isso, todavia, ainda no respondemos a nossa pergunta. Por que conseguir perceber as trevas que provm da poca deveria nos interessar? No talvez o escuro uma experincia annima e, por definio, impenetrvel, algo que no est direcionado para ns e no pode, por isso, nos dizer respeito? Ao contr-rio, o contemporneo aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e no ces-sa de interpel-lo, algo que, mais do que toda luz, di-rige-se direta e singularmente a ele. Contemporneo aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provm do seu tempo.

    4. No firmamento que olhamos de noite, as estre-

    las resplandecem circundadas por uma densa treva. Uma vez que no universo h um nmero infinito de galxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos no cu algo que, segundo os cientistas, necessita de uma explicao. precisamente da explicao que a astrofsica contempornea d para esse escuro que gostaria agora de lhes falar. No universo em expan-so, as galxias mais remotas se distanciam de ns a uma velocidade to grande que sua luz no consegue

    nos alcanar. Aquilo que percebemos como o escuro do cu essa luz que viaja velocssima at ns e, no entanto, no pode nos alcanar, porque as galxias das quais provm se distanciam a uma velocidade supe-rior quela da luz.

    Perceber no escuro do presente essa luz que pro-cura nos alcanar e no pode faz-lo, isso significa ser contemporneo. Por isso os contemporneos so ra-ros. E por isso ser contemporneo , antes de tudo, uma questo de coragem: porque significa ser capaz no apenas de manter fixo o olhar no escuro da po-ca, mas tambm de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para ns, distancia -se infinitamente de ns. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar.

    Por isso o presente que a contemporaneidade percebe tem as vrtebras quebradas. O nosso tempo, o presente, no , de fato, apenas o mais distante: no pode em nenhum caso nos alcanar. O seu dorso est fraturado, e ns nos mantemos exatamente no ponto da fratura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporneos a esse tempo. Compreendam bem que o compromis-so que est em questo na contemporaneidade no tem lugar simplesmente no tempo cronolgico: , no tem-po cronolgico, algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgncia a intempestividade, o

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    II I III

    'II

    !II I I

  • 661

    anacronismo que nos permite apreender o nosso tem-po na forma de um "muito cedo" que , tambm, um "muito tarde': de um "j" que , tambm, um "ainda no': E, do mesmo modo, reconhecer nas trevas do pre-sente a luz que, sem nunca poder nos alcanar, est pe-renemente em viagem at ns.

    5. Um bom exemplo dessa especial experincia do

    tempo que chamamos a contemporaneidade a moda. Aquilo que define a moda que ela introduz no tem-po uma peculiar descontinuidade, que o divide se-gundo a sua atualidade ou inatualidade, o seu estar ou o seu no-estar-mais-na-moda (na moda e no simplesmente da moda, que se refere somente s coi-sas). Essa cesura, ainda que sutil, perspcua no senti-do em que aqueles que devem perceb-la a percebem impreterivelmente, e, exatamente desse modo, atestam o seu estar na moda; mas, se procuramos objetiv-Ia e fix -la no tempo cronolgico, ela se revela inapreensvel. Antes de tudo, o "agora" da moda, o instante em que esta vem a ser, no identificvel atravs de nenhum cronmetro. Esse "agora" talvez o momento em que o estilista concebe o trao, a nuance que definir a nova maneira da veste? Ou aquele em que a confia ao

    desenhista e em seguida alfaiataria que confecciona o prottipo? Ou, ainda, o momento do desfile, em que a veste usada pelas nicas pessoas que esto sempre e apenas na moda, as mannequins, que, no entanto, exa-tamente por isso, nela jamais esto verdadeiramente? J que, em ltima instncia, o estar na moda da "ma-neira" ou do "jeito" depender do fato de que pessoas de carne e osso, diferentes das mannequins - essas vti-mas sacrificiais de um deus sem rosto -, o reconheam como tal e dela faam a prpria veste.

    O tempo da moda est constitutivamente adianta-do a si mesmo e, exatamente por isso, tambm sempre atrasado, tem sempre a forma de um limiar inapreensvel entre um "ainda no" e um "no mais". provvel que, como sugerem os telogos, isso dependa do fato de que a moda, ao menos na nossa cultura, uma assina-tura teolgica da veste, que deriva do fato de que a primeira veste foi confeccionada por Ado e Eva de-pois do pecado original, na forma de um tapa-sexo entrelaado com folhas de figo. (Para ser preciso, as vestes que ns usamos derivam no desse tapa-sexo vegetal, mas das tunicae pelliceae, das vestes feitas de pele de animal que Deus, segundo Cen. 3, 21, faz ves-tir, como smbolo tangvel do pecado e da morte, nossos progenitores no momento em que os expulsa do paraso.) Em todo caso, qualquer que seja a razo

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    'I' :I,i' II

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    disso, o "agora': o kairos da moda inapreensvel: a frase "eu estou neste instante na moda" contradit-ria, porque no timo em que o sujeito a pronuncia, ele j est fora de moda. Por isso, o estar na moda, como a contemporaneidade, comporta um certo "agia': 5 uma certa dissociao, em que a sua atualida-de inclui dentro de si uma pequena parte do seu fora, um matiz de dmod. De uma senhora elegante se dizia em Paris, no sculo XIX, nesse sentido: "Elle est contemporaine de tout le monde':

    Mas a temporalidade da moda tem um outro ca-rter que a aparenta contemporaneidade. No gesto mesmo no qual o seu presente divide o tempo segundo um "no mais" e um "ainda no': ela institui com es-

    "t t " dI ses ou ros empos - certamente com o passa o e, ta _ vez, tambm com o futuro - uma relao particular. Isto , ela pode "citar" e, desse modo, reatualizar qual-quer momento do passado (os anos 20, os anos 70, mas

    5 Agio, do latim: " vontade" e, dependendo do contexto, pode dar a ideia de intervalo, espao livre. Preferimos no traduzir o termo agio, pois se trata de um termo-chave do vocabulrio de Agamben. H, inclusive, um ensaio denominado Agio em "La Comunit che viene. Bollati Boringhieri, 2001. p. 23-25:' Tambm o tradutor portugus desse livro (A Comunida-de que Vem. Lisboa: Editorial Presena, 1993.), Antnio Guerreiro, op-tou por no traduzir o termo. N. do T.

    tambm a moda imperial ou neoclssica). Ou seja, ela pode colocar em relao aquilo que inexoravelmente dividiu, rechamar, re-evocar e revitalizar aquilo que tinha at mesmo declarado morto.

    6. Essa especial relao com o passado tem tambm

    um outro aspecto. De fato, a contemporaneidade se escreve no pre-

    sente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os ndices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporneo. Arcaico significa: prximo da ark, isto , da origem. Mas a origem no est situada ape-nas num passado cronolgico: ela contempornea ao devir histrico e no cessa de operar neste, corno o embrio continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criana na vida psquica do adulto. A dis-tncia - e, ao mesmo tempo, a proximidade - que define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais fora do que no presente. Quem viu pela primeira vez, ao chegar pelo mar num ama-nhecer, os arranha-cus de Nova York subitamente per-cebeu essa fades arcaica do presente, essa contiguidade

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    com a runa que as imagens atemporais do 11 de se-tembro deixaram evidente para todos.

    Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno h um compromisso secreto, e no tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascnio par-ticular quanto porque a chave do moderno est es-condida no imemorial e no pr-histrico. Assim, o mundo antigo no seu fim se volta, para se reencon-trar, aos primrdios; a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. nesse sen-tido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que no regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente no podemos em ne-nhum caso viver e, restando no vivido, incessante-mente relanado para a origem, sem jamais poder alcan-la. J que o presente no outra coisa seno a parte de no-vivido em todo vivido, e aquilo que im-pede o acesso ao presente precisamente a massa da-quilo que, por alguma razo (o seu carter traumtico, a sua extrema proximidade), neste no conseguimos viver. A ateno dirigida a esse no-vivido a vida do contemporneo. E ser contemporneo significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos.

    7. Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade

    puderam faz-lo apenas com a condio de cindi-la em mais tempos, de introduzir no tempo uma essen-cial desomogeneidade. Quem pode dizer: "o meu tem-po" divide o tempo, escreve neste uma cesura e uma descontinuidade; e, no entanto, exatamente atravs dessa cesura, dessa interpolao do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o contem-porneo coloca em ao uma relao especial entre os tempos. Se, como vimos, o contemporneo que fraturou as vrtebras de seu tempo (ou, ainda, quem percebeu a falha ou o ponto de quebra), ele faz dessa fratura o lugar de um compromisso e de um encon-tro entre os tempos e as geraes. Nada mais exem-plar, nesse sentido, que o gesto de Paulo, no ponto em que experimenta e anuncia aos seus irmos aquela contemporaneidade por excelncia que o tempo messinico, o ser contemporneo do messias, que ele chama precisamente de "tempo-de-agora" (ho nyn kairos). No apenas esse tempo cronologicamente indeterminado (o retorno do Cristo, a parusia, que assinala o fim desse tempo, certo e prximo, mas incalculvel), mas ele tem a capacidade singular de co-locar em relao consigo mesmo todo instante do passado, de fazer de todo momento ou episdio da

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    illl ii

  • histria bblica uma profecia ou uma prefigurao (typos, figura, o termo que Paulo predica) do presen-te (assim, Ado, atravs de quem a humanidade rece-beu a morte e o pecado, "tipo': ou figura, do messias, que leva aos homens a redeno e a vida).

    Isso significa que o contemporneo no ape-nas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; tambm aquele que, divi-dindo e interpolando o tempo, est altura de transform-lo e de coloc-lo em relao com os ou-tros tempos, de nele ler de modo indito a histria , de "cit-la" segundo uma necessidade que no pro-vm de maneira nenhuma do seu arbtrio, mas de uma exigncia qual ele no pode responder. como se aquela invisvel luz, que o escuro do presente, pro-jetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder s trevas do agora. algo do gnero que devia ter em mente Michel Foucault quando escrevia que as suas perquiries histricas sobre o passado so apenas a sobra trazida pela sua interrogao te-rica do presente. E Walter Benjamin, quando escrevia que o ndice histrico contido nas imagens do passa-do mostra que estas alcanaro sua legibilidade so-mente num determinado momento da sua histria. da nossa capacidade de dar ouvidos a essa exigncia e

    quela sombra, de ser contemporneo no apenas do nosso sculo e do "agora", mas tambm das suas figu-ras nos textos e nos documentos do passado, que de-pendero o xito ou o insucesso do nosso seminrio.

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  • L A amizade to estreitamente ligada prpria de-

    finio da filosofia que se pode dizer que sem ela a filo-sofia no seria propriamente possvel. A intimidade en-tre amizade e filosofia to profunda que esta inclui o philos, o amigo, no seu prprio nome e, como frequen-temente ocorre para toda proximidade excessiva, corre o risco de no conseguir realizar-se. No mundo clssico, essa promiscuidade e quase consubstancialidade do amigo e do filsofo era presumida, e certamente por uma inteno de alguma maneira arcaizante que um filsofo contemporneo - no momento de colocar a pergunta extrema: "O que a filosofia?" - pode escre-ver que esta uma questo para ser tratada entre amis. De fato, hoje, a relao entre amizade e filosofia caiu

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    em descrdito, e com uma espcie de embarao e de m conscincia que aqueles que fazem da filosofia uma profisso tentam acertar as contas com este partner incmodo e, por assim dizer, clandestino de seu pensamento.

    Muitos anos atrs, meu amigo Jean-Luc Nancy e eu decidimos trocar cartas sobre o tema da amizade. Estvamos persuadidos de que esse era o melhor modo de se aproximar e quase "colocar em cena" um pro-blema que, de outro modo, parecia escapar a um trata-mento analtico. Eu escrevi a primeira carta e esperei, no sem trepidao, a resposta. No este o lugar para tentar compreender por quais razes - ou, talvez, mal-entendidos - a chegada da carta de Jean-Luc sig-nificou o fim do projeto. Mas certo que a nossa ami-zade - que nos nossos propsitos deveria nos ter aber-to um acesso privilegiado ao problema - foi para ns, ao contrrio, um obstculo e, de algum modo, resul-tou ao menos provisoriamente obscurecida.

    por um anlogo e, provavelmente, consciente mal-estar que Jacques Derrida escolheu como leitmotiv do seu livro sobre a amizade um tema sibilino que a tradio atribui a Aristteles e que nega a amizade no prprio gesto com que parece invoc-la: o philoi, oudeis philos, ", amigos, no h amigos". Um dos temas do livro , de fato, a crtica daquilo que o autor

    define como a concepo falocntrica da amizade que domina a nossa tradio filosfica e poltica. Quan-do Derrida ainda estava trabalhando no seminrio a partir do qual o livro nasceu, havamos discutido jun-tos um curioso problema filolgico que dizia respei-to precisamente ao mote ou cisma em questo. Este se encontra citado, entre outros, em Montaigne e em Nietzsche, que o teriam extrado de Digenes Laerzio. Mas se abrirmos uma edio moderna das Vidas dos filsofos, no captulo dedicado biografia de Aristteles (V, 21), no encontraremos a frase em questo, mas sim uma em aparncia quase idntica, cujo significa-do todavia diverso e bem menos enigmtico: oi (mega com iota sublinhado) philoi, oudeis philos, "aquele que tem (muitos) amigos no tem nenhum

    . " amIgo. Uma visita biblioteca foi suficiente para escla-

    recer o mistrio. Em 1616 aparece a nova edio das Vidas que teve a curadoria do grande fillogo genebrino Isaac Causabon. Junto passagem em questo - que na edio que teve a curadoria de seu sogro Henry Etienne ainda trazia o philoi ( amigos) - ele corrigi-ra sem hesitar a enigmtica lio dos manuscritos, que se tornava assim perfeitamente inteligvel e, por isso, fora acolhida pelos editores modernos.

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    Uma vez que logo informei Derrida do resulta-do das minhas pesquisas, fiquei surpreso quando o livro foi publicado com o ttulo Politiques de l' amiti, por nele no encontrar nenhum vestgio do proble-ma. Se o mote - apcrifo segundo os fillogos mo-dernos - a aparecia na sua forma originria, no era certamente por um esquecimento: era essencial, na estratgia do livro, que a amizade fosse, ao mesmo tempo, afirmada e colocada em dvida.

    Nisso, o gesto de Derrida repetia o gesto de Nietzsche. Quando era ainda um estudante de filologia, Nietzsche tinha comeado um trabalho so-bre as fontes de Digenes Laerzio e a histria do tex-to das Vidas (e, portanto, tambm a correo de Casaubon) devia ser-lhe perfeitamente familiar. Mas a necessidade da amizade e, ao mesmo tempo, uma certa desconfiana em relao aos amigos era essen-cial para a estratgia da filosofia nietzschiana. Daqui o recurso lio tradicional, que j no seu tempo no era mais corrente (a edio Huebner de 1828 tem a verso moderna, com a anotao: legebatur o philoi, emendavt Causabonus).

    2. possvel que para esse incmodo dos filsofos

    modernos tenha contribudo o particular estatuto semntico do termo "amigo". notrio que ningum jamais conseguiu definir de modo satisfatrio o sig-nificado do sintagma "eu te amo", tanto que se pode-ria pensar que este tenha carter performativo - isto , que o seu significado coincida com o ato do seu proferimento. Consideraes anlogas poderiam ser feitas para a expresso "sou seu amigo", mesmo se aqui o recurso categoria do performativo no pa-rea possvel. Ao contrrio, penso que "amigo" perten-a quela classe de termos que os linguistas definem no-predicativos, isto , termos a partir dos quais no possvel construir uma classe de objetos na qual ins-crever os entes a que se atribui o predicado em ques-to. "Branco", "duro'~ "quente" so certamente termos predicativos; mas possvel dizer que "amigo" defina, nesse sentido, uma classe consistente? Por estranho que possa parecer, "amigo" compartilha essa qualidade com uma outra espcie de termos no-predicativos, os in-sultos. Os linguistas demonstraram que o insulto no ofende quem o recebe porque o inscreve numa cate-goria particular (por exemplo, aquela dos excrementos, ou dos rgos sexuais masculinos ou femininos, se-gundo as lnguas), o que seria simplesmente impossvel

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    ou, de qualquer modo, falso. O insulto eficaz exata-mente porque no funciona como uma predicao constativa, mas sim como um nome prprio, porque chama na linguagem de um modo que o chamado no pode aceitar, e do qual, todavia, no pode se de-fender (como se algum insistisse em me chamar Gastone, sabendo que me chamo Giorgio). Isto , aquilo que ofende no insulto uma pura experincia da lin-guagem, e no um referimento ao mundo.

    Se isso verdadeiro, "amigo" compartilharia essa condio no apenas com os insultos, mas com os termos filosficos que, como se sabe, no tm uma denotao objetiva, e, como aqueles termos que os lgicos medievais definiam "transcendentes': signifi-cam simplesmente o ser.

    3. Na Galeria Nacional de Arte Antiga em Roma

    conserva-se um quadro de Giovanni Serodine que representa o encontro dos apstolos Pedro e Paulo na estrada do martrio. Os dois santos, imveis, ocupam o centro da tela, circundados pela gesticulao desordenada dos soldados e dos carrascos que os conduzem ao supl-cio. Os crticos frequentemente notaram o contraste entre o rigor heroico dos dois apstolos e a comoo da

    multido, iluminada aqui e ali por partculas de luz qua-se esboadas ao acaso sobre os braos, os rostos e as trom-betas. Da minha parte, penso que aquilo que torna este quadro propriamente incomparvel que Serodine re-presentou os dois apstolos to prximos, com as fron-tes quase coladas uma na outra, que estes absolutamente no podem se ver: na estrada para o martrio, estes se olham sem se reconhecerem. Essa impresso de uma pro-ximidade por assim dizer excessiva ainda acrescida do gesto silencioso das mos que se apertam embaixo, dificilmente visveis. Sempre me pareceu que esse qua-dro contenha uma perfeita alegoria da amizade. O que , de fato, a amizade seno uma proximidade tal que dela no possvel fazer nem uma representao nem um conceito? Reconhecer algum como amigo sig-nifica no poder reconhec-lo como "algo". No se pode dizer "amigo" como se diz "branco", "italiano" ou "quente" - a amizade no uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito.

    4. Mas tempo de comear a leitura da passagem

    de Aristteles que pretendia comentar. O filsofo de-dica amizade um verdadeiro tratado, que ocupa os

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    livros oitavo e nono da Etica nicomachea.6 J que se trata de um dos textos mais clebres e discutidos de toda a histria da filosofia, tomarei como pressupos-to o conhecimento das teses mais consolidadas: que no se pode viver sem amigos, que preciso distin-guir a amizade fundada sobre a utilidade ou sobre o prazer da amizade virtuosa, na qual o amigo amado como tal, que no possvel ter muitos amigos, que a amizade a distncia tende a produzir o esquecimento etc. Tudo isso notrio. H, ao contrrio, uma passa-gem do tratado que me parece no ter recebido sufi-ciente ateno, ainda que contenha, por assim dizer, a base ontolgica da teoria. Trata-se de 1170a 28-1171 b 35. Leiamos juntos a passagem:

    Aquele que v sente (aisthanetai) que v, aquele que escuta sente que escuta, aquele que caminha sente que caminha e assim para todas as outras ativida-des h algo que sente que estamos exercitando-as (oti energoumen), de modo que se sentimos, nos

    6 Existem ao menos duas edies portuguesas da tica a Nicmaco: ARISTTELES. tica a Nicmaco. Traduo Edson Bini. So Paulo: Edipro, 2007; ARISTOTELES. tica a Nicmaco. Traduo Pietro Nassetti. So Paulo: Martin Claret, 2001. Entretanto, como Agamben faz um trabalho prprio de traduo dos textos gregos para o italiano, em todos os trechos aqui citados preferimos traduzir a verso apresentada por Agamben no seu texto. N. do T.

    sentimos sentir, e se pensamos, nos sentimos pensar, e isso a mesma coisa que sentir-se existir: existir (to einal) significa, de fato, sentir e pensar. Sentir que vivemos por si s doce, j que a vida naturalmente um bem e doce sentir que um tal bem nos pertence. Viver desejvel, sobretudo para os bons, j que para estes existir um bem e uma coisa doce. Com-sentindo (synaisthanomenoi) provam doura pelo bem em si, e isso que o homem bom prova em relao a si, o prova tambm em relao ao ami-go: o amigo , de fato, um outro si mesmo (heteros autos). E como, para cada um, o fato mesmo de existir (to auton einai) desejvel, assim - ou qua-se - para o amigo. A existncia desejvel porque se sente que esta uma coisa boa e essa sensao (aisthesis) em si doce. Tambm para o amigo se dever ento com-sentir que ele existe e isso acontece no conviver e no ter em comum (koinonein) aes e pensamentos. Nes-se sentido, diz-se que os homens convivem (syzen) e no como para o gado, que condividem7 o pasto. [ ... ] A amizade , de fato, uma comunidade e, como acontece em relao a si mesmo, tambm para o amigo: e como, em relao a si mesmos, a sensao de existir (aisthesis oti estin) desejvel, assim tam-bm ser para o amigo.

    7 Condividono: terceira pessoal do plural do verbo condividere, em italiano. Condivisione, em italiano, significa "o compartilhar': Preferimos manter condiviso - e suas variantes no texto: condividir, condivisvel, condividem (sempre em itlico) - pois, ainda que seja um neologismo em portugus, esboa melhor a leitura de Aristteles feita aqui por Agamben. N. do T.

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    5. Trata-se de uma passagem extraordinariamente

    densa, porque Aristteles a enuncia teses de filosofia primeira que no so encontradas nessa forma em nenhum outro de seus escritos:

    1) H uma sensao do ser puro, uma aisthesis da existncia. Aristteles repete isto vrias vezes, mo-bilizando o vocabulrio tcnico da ontologia: aisthanometha oti esmen, aisthesis oti estin: o oti estin a existncia - o quod est - enquanto oposta essn-cia (quid est, ti estin).

    2) Essa sensao de existir em si mesma doce (edys).

    3) H equivalncia entre ser e viver, entre sentir-se existir e sentir-se viver. uma decisiva antecipao da tese nietzschiana segundo a qual: "Ser: ns no te-mos disso outra experincia que viver': (Uma afirma-o anloga, mas mais genrica, pode ser lida tambm em De An. 415b 13: "Ser, para os viventes, viver".)

    4) Nessa sensao de existir insiste uma outra sen-sao, especificamente humana, que tem a forma de

    um com-sentir' (synaisthanesthai) a existncia do amigo. A amizade a instncia desse com-sentimen-to da existncia do amigo no sentimento da existn-cia prpria. Mas isso significa que a amizade tem um estatuto ontolgico e, ao mesmo tempo, poltico. A sensao do ser , de fato, j sempre dividida e com-dividida, e a amizade nomeia essa condiviso.9 No h aqui nenhuma intersubjetividade - esta quimera dos modernos -, nenhuma relao entre sujeitos: em vez disso o ser mesmo dividido, no-idntico a si, e o eu e o amigo so as duas faces - ou os dois polos -dessa com-diviso. lO

    5) O amigo , por isso, um outro si, um heteros autos. Na sua traduo latina - alter ego - esta expres-so teve uma longa histria, que no aqui o lugar de reconstruir. Mas importante notar que a formula-o grega tem algo a mais do que nela compreende um ouvido moderno. Antes de tudo, o grego - como o latim - tem dois termos para dizer a alteridade: allos

    8 Con-sentire em italiano. Mais uma vez Agamben marca sua leitura por meio da utilizao do hfen. N. do T.

    9 Cf. nota de traduo n. 6. 10 Con-divisione: aqui tambm preferimos uma traduo literal. Agamben

    utiliza-se do hfen para salientar sua leitura do texto aristotlico. N. do T.

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    (lat. alius) a alteridade genrica, heteros (lat. alter) a alteridade como oposio entre dois, a heterogeneidade. Alm disso, o latim ego no traduz exatamente autos, que significa "si mesmo". O amigo no um outro eu, mas uma alteridade imanente na "mesmidade': um tornar-se outro do mesmo. No ponto em que eu per-cebo a minha existncia como doce, a minha sensa-o atravessada por um com-sentirll que a desloca e deporta para o amigo, para o outro mesmo. A amiza-de essa des-subjetivao no corao mesmo da sen-sao mais ntima de si.

    6. Neste ponto, o estatuto ontolgico da amizade

    em Aristteles pode ser considerado j conhecido. A amizade pertence pro te philosophia, porque aquilo que nesta est em questo concerne prpria experincia, prpria "sensao" do ser. Compreende-se ento por que "amigo" no possa ser um predicado real, que se acres-centa a um conceito para inscrev-lo numa certa classe. Em termos modernos se poderia dizer que "amigo"

    11 Cf. nota de traduo n. 7.

    um existencial e no um categoriaL Mas esse existen-cial - como tal, no-conceitualizvel - atravessado, entretanto, por uma intensidade que o carrega de algo como uma potncia poltica. Essa intensidade o syn, o "com" que divide, dissemina e torna condivisvel -ou melhor, j sempre condividida - a sensao mesma, a doura mesma de existir.

    Que essa condiviso tenha, para Aristteles, um significado poltico est implcito numa passagem do texto que acabamos de analisar e sobre a qual opor-tuno retornar:

    Mas, ento, tambm para o amigo se dever com-sentir que ele existe, e isso acontece no conviver (syzen) e no ter em comum (koinonein) aes e pensamen-tos. Nesse sentido, diz-se que os homens convivem e no, como para o gado, que condividem o pasto.

    A expresso que traduzimos por "condividir o pasto" en to auto nemesthai. Mas o verbo nemo -que, como vocs sabem, rico em implicaes pol-ticas, basta pensar no deverbal nomos -, razoavelmen-te, significa, em sua forma medial, tambm "tomar

    parte'~ e a expresso aristotlica poderia significar sim-plesmente "tomar parte no mesmo': Essencial , em todo caso, que a comunidade humana seja aqui definida, em relao quela animal, atravs de um conviver (syzen

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    adquire aqui um significado tcnico) que no defi-nido pela participao numa substncia comum, mas por uma condiviso puramente existencial e, por as-sim dizer, sem objeto: a amizade, como com-senti-mento do puro fato de ser. Os amigos no condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar, um gosto): eles so com-divididos pela experincia da amizade. A amizade a condiviso que precede toda diviso, porque aquilo que h para repartir o prprio fato de existir, a prpria vida. E essa partilha sem objeto, esse com-sentir originrio que constitui a poltica.

    Como essa sinestesia poltica originria tenha se tornado no decurso do tempo o consenso ao qual con-fiam hoje seus destinos as democracias na ltima, extre-ma e extremada fase da sua evoluo , como se diz, uma outra histria sobre a qual deixo vocs refletirem.

    Uma primeira verso deste texto foi lida pelo autor na ocasio do recebimento do "Prix Europen de l'Essai Charles Veillon 2006", em 19 de fevereiro de 2007, em Lousanne.