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    SACUTIABA E RIACHO DE SACUTIABA:

    NOTAS SOBRE UMA COMUNIDADE NEGRA RURAL

    NO OESTE BAIANO

    Sheila Brasileiro*

    A problemtica das comunidades remanescentes de quilombos ad-quiriu, nos ltimos anos, ampla visibilidade no panorama nacional. Tmsido veiculadas situaes concretas, nas quais essas comunidades, en-quanto movimento social organizado, atravs das suas entidades repre-

    sentativas, reivindicam ao Estado o cumprimento do Art. 68 do Ato dasDisposies Constitucionais Transitrias (ADCT), includo na Constitui-o Federal de 1988.

    semelhana dos processos de reconhecimento e legitimaooficial de povos e terras indgenas no Nordeste, antroplogos e juristastm se deparado, na identificao e legitimao das comunidades ne-gras rurais como remanescentes de antigos quilombos, com certas am-bigidades terico-metodolgicas, presentes, de um modo geral, na lite-ratura referente ao tema, principalmente quando se trata de precisar oscontextos scio-histricos nos quais tais grupos se constituram e seconsolidaram enquanto unidades discretas.

    No mbito dos diversos processos de reconhecimento elegitimao atualmente em curso, de comunidades negras rurais e deseus territrios tradicionalmente ocupados, o Ministrio Pblico Federal(MPF), atravs das suas Procuradorias Regionais dos Direitos do Cida-

    * Tcnica Pericial em Antropologia do Ministrio Pblico Federal.

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    do (PRDC), tem constitudo frum privilegiado originador de aesadministrativas e judiciais que ora tramitam nas esferas competentes, aexemplo dos processos Rio das Rs, Trombetas, Vale do Ribeira, dentre

    outros.Os primeiros contatos do Ministrio Pblico Federal com a co-

    munidade negra rural de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba datam de1995. Localizada a 850 km de Salvador, na regio oeste da Bahia, muni-cpio de Wanderley, s margens do rio Grande, a comunidade, constitu-da por cerca de duas centenas de indivduos, conforma, basicamente,uma grande famlia extensa aglutinada em torno de laos deconsanginidade e afinidade centralizados na liderana da matriarcaMaria Pereira dos Santos, 76 anos (conhecida como Maria da Cruz), 11filhos, 60 netos e 55 bisnetos.

    Em 24 de junho de 1990, Maria da Cruz e outros, representando acomunidade de Riacho de Sacutiaba, constituem advogado e entram naComarca de Wanderley com uma ao de manuteno de posse, visan-do assegurar o acesso estrada municipal que liga seus ncleos deocupao cidade de Wanderley, vedado por um fazendeiro confrontante.

    O fazendeiro modificou o traado do acesso, constrangendo a comuni-dade a passar em frente a uma sede por ele construda recentementeem uma rea antes ocupada por roas dos habitantes do Riacho.

    Em 21 de junho de 1990, declarao subscrita por trinta e duasassinaturas de notrios locais (polticos, comerciantes, fazendeiros, reli-giosos etc..), inclusive pelo ento prefeito de Wanderley, Antnio Porto,atesta a posse da comunidade, como animus domini, por si e por seus

    antecessores, h mais de duzentos anos, sobre uma rea de terra nalocalidade denominada Riacho de Sacutiaba, Wanderley/BA. Anexa-do aos autos da ao impetrada por Maria da Cruz, esta declaraoteria peso decisivo na concesso, pela juza substituta da comarca deCotejipe, em 02 de julho de 1990, de uma liminar favorvel.

    Aps um curto perodo de trguas, aproveitando a remoo dareferida juza para outra comarca e a propalada relutncia do juiz subs-tituto em fazer cumprir a liminar, o mesmo fazendeiro voltaria a provo-car, com uma srie de atos abusivos, a comunidade de Riacho deSacutiaba e Sacutiaba.

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    Em 4 outubro de 1995, a comunidade de Riacho de Sacutiaba eSacutiaba envia uma primeira representao Fundao Cultural Pal-mares, solicitando a regularizao do seu territrio, consoante os termos

    do art. 68 do ADCT da Constituio Federal de 1988. Em outubro domesmo ano, a Fundao Palmares encaminha o procedimento SextaCmara de Correo e Reviso do MPF (6 CCR), em Braslia, paraadoo das providncias cabveis. Ofcio de um assessor da 6 CCR,declara Fundao Palmares no existir nos autos elementos que com-provem que as comunidades so remanescentes de quilombos. Caberia Fundao Palmares desenvolver pesquisa nesse sentido, para verificaro possvel vnculo entre as comunidades e algum antigo quilombo da re-

    gio. Recomenda, por parte da Procuradoria Regional dos Direitos doCidado na Bahia, a adoo de providncias no acompanhamento do caso.

    Em 5 de maro de 1996, a Fundao Cultural Palmares impetraao civil pblica na Justia Federal da Bahia com pedido de liminar, a fimde que se suspenda a ocupao e o prosseguimento das obras na comuni-dade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba por parte do fazendeiro supracitado. Em seu despacho, o juiz Pedro Braga Filho, titular da 1 Vara da

    Justia Federal da Bahia, alega insuficincia de dados por parte da Funda-o Palmares na propositura da ao, solicitando o suprimento dos defei-tos e irregularidades apontados no prazo de dez dias, sob pena do seuindeferimento e extino do processo sem julgamento do mrito.

    Em 12 de abril de 1996, deciso do juiz federal substituto da 1Vara da Justia Federal da Bahia denega a liminar pleiteada na AoCivil Pblica, por incorrncia dos registros necessrios sua concesso:prova antropolgica e etnolgica ou da constatao, por documentosidneos e levantamentos histricos do fato da ocupao ancestral dasterras a serem declaradas de propriedade dos descendentes dos antigosquilombolas.

    Em novembro de 1996, na qualidade de tcnica pericial em An-tropologia do MPF2, realizei uma visita ao municpio de Wanderley, con-versando com polticos aliados da comunidade, especialmente o ex-pre-feito Antnio Porto, e a vereadora Irlndia Delgado, que nos conduzi-

    2 Juntamente com o colega Adolfo Neves de Oliveira Jr., lotado na 6CCR.

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    ram s localidades de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba. Conforme rela-tou Irlndia Delgado, ento presidente da Cmara de Vereadores deWanderley, ela e Antnio Porto travaram o primeiro contato com essa

    comunidade eleitora, dentre diversas outras, ribeirinhas, em 1985, quan-do se encontravam em campanha poltica pelo municpio. Desde ento,Irlndia e Antnio Porto tm se empenhado no sentido de auxiliar acomunidade a assegurar a posse do seu territrio tradicional.

    Dois meses aps essa primeira visita rea, assumi a coordena-o, no mbito de um convnio firmado pelo Centro de Estudos de Ter-ritrios e Populaes Tradicionais com o Ministrio da Cultura, de umaequipe de identificao da comunidade de Sacutiaba e Riacho deSacutiaba e de seu territrio tradicional.

    A memria social dos habitantes de Riacho de Sacutiaba eSacutiaba indica uma permanncia na rea de cerca de duzentos anos,em um estado de relativo isolamento, quebrado apenas por viagens oca-sionais de alguns de seus habitantes a localidades vizinhas tambm situ-adas s margens do rio Grande, como Goiabeira, Jatob, Boqueiro,Porto das Ilhas, Gregrio, Baboseira, Tabatinguinha, Tabatinga Grande,

    Conceio e, ainda mais esporadicamente, s cidades de Barra e Wan-derley. Maria da Cruz, como sua me e sua av materna, nasceu naSacutiaba, transferindo-se, aps o casamento, para a localidade de Ria-cho de Sacutiaba. O pai de sua me, Joaquim Pereira dos Santos, moroudurante muito tempo na Sacutiaba. Era proveniente, das bandas doTabuleiro e foi o primeiro a ser sepultado no cemitrio local, situado nocaminho para Sacutiaba. Trabalhou durante certo tempo como vaqueirodos Pinto, ento proprietrios da fazenda Sacutiaba. O av paterno deMaria da Cruz residia na Boca do Tabuleiro, transferindo-se posterior-mente para a localidade Riacho com mulher e filho. Est enterrado emum cemitrio localizado em uma das fazendas limtrofes, a Conceio.

    O antigo proprietrio das terras onde se localiza a comunidade deRiacho de Sacutiaba e Sacutiaba era Joaquim Pinto, irmo da me deCustdia Pinto. Esta herdou a Fazenda Sacutiaba e a vendeu em 1973aos seus atuais proprietrios, o pernambucano Eliezer Martins de Limas

    Dantas e um seu cunhado, Orlando Martins Delgado, com uma exten-so de 5.000 ha, e, de acordo com o relato de Maria da Cruz, com a

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    recomendao oral de eles no mexerem com os terrenos ocupadospelo pessoal, que se encontra na rea desde os tempos do Joaquim,como moradores dele. Quando os Pinto chegaram a fazenda Sacutiaba

    o local j era povoado pelos ngo vio. A sua chegada parece no terdeterminado mudanas significativas no cotidiano das pessoas do lugar.

    Desde que adquiriram Sacutiaba, Eliezer e Orlando tm se empe-nhado, por todos os meios, em expandir os seus limites. Hoje, eles afir-mam possuir uma extenso de 35.000 ha de terras que se encontrampraticamenteno mato, salvo por uma ou outra roa aberta recente-mente, por orientao do seu advogado, sobre terrenos tradicionalmentecultivados pela comunidade. O efetivo pecurio da fazenda no ultra-passa 200 cabeas de gado. Os grileiros tm buscado reduzir o territrioda comunidade s faixas alagadias, em sua maioria imprestveis pr-tica da agricultura, situadas margem do rio Grande, na estrada que ligaos ncleos de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba. A primeira circunscri-o de uma terra de direito contempornea a esse processo deespoliao. Antnio da Cruz relacionou as picadas abertas pela comuni-dade, quando demarcou, por conta prpria, os limites do que at ento

    considerava como rea de ocupao tradicional. Essa medio com uma extenso de cerca de 800 h a, no incluiu as faixas alagadias(algo em torno de 100 ha). Posteriormente, em agosto de 1995, a medi-o encomendada pela comunidade firma Planteca Ltda, sediada nacidade de Barreiras, incluiria parte desses terrenos, delimitando umaextenso de 993,20 ha:

    Eles botaram na fazenda dois variantes pra dividir com ns. So-bre os negcios do documento, n? A, depois, ns fizemos umavariante com aquela roa da estrada, ele mandou ns sair daextrema do Riacho pra l que ia ser vizinho nosso, no tinhaaborrecimento. Ento ns fizemos uma variante, a primeira vari-ante. Depois ele mandou fazer outro variante l na frente com 1km e 800 m. Quando chegou em 850 m ele disse que no dava, quens no tinha terra. Que no tinha direito. No, no posso darque vocs no tm esse direito. Ele disse que no podia no, quens no tinha terra, ele tinha comprado. Doutor, mas ns tem

    esse direito nosso. No, vocs no tm direito no, vocs tmdireito ao cho de casa, se acontecer, se no acontecer, vocs

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    no tm direito de nada.. A ns partimos pra justia. Ele aindafalou assim: se vocs tiverem direito a justia d. E a, ns tamoslutando na justia por causa disso.3

    A localidade de Riacho de Sacutiaba, primeira a ser acessada porquem chega pela estrada, da cidade de Wanderley, situada a 90 quil-metros desta, possui 178 habitantes (distribudos em 29 grupos domsti-cos). H trinta casas de moradia dispostas irregularmente, algumas de-las circundando um terreno sombreado por duas rvores de troncos es-pessos, espcie de praa de cho batido, com um campo de futebol,onde as pessoas do lugar se renem para conversar e brincar. As casas

    obedecem a um padro residencial que provavelmente pode ser esten-dido s demais populaes ribeirinhas situadas ao longo das margens dorio Grande: so construes compridas e estreitas, de taipa, cobertaspor palha de carnaba, geralmente com dois ou trs cmodos utilizadoscomo sala de jantar/estar, e dormitrios. As salas possuem duas sadasparalelas, sem portas. Uma dessas sadas d acesso a uma construocontgua, tambm sem portas, onde so preparados os alimentos, em umfogo de barro batido lenha. Apenas os dormitrios dispem de portas.

    As residncias, que congregam, via de regra, apenas uma famlianuclear, localizam-se preferencialmente no interior de um grande cerca-do que agrupa trs ou quatro casas de parentes prximos. No interiordo cercado encontram-se rvores frutferas em profuso, como man-gueira, mamoeira, bananeira, laranjeira, goiabeira, cajueiro etc., alm degiraus onde so plantados produtos de horta para consumo domstico,tais como hortel, coentro, pimento etc. tambm recorrente a exis-

    tncia de ps espordicos de produtos classificados localmente comode roa, como bananeira, milho etc., ou de semente mida, comomelancia, abbora, gergelim. H trs casas de moradia localizadas nocaminho Riacho/Sacutiaba, habitadas por famlias provenientes da locali-dade Riacho de Sacutiaba. O cemitrio local encontra-se situado nessecaminho. Os tmulos so protegidos individualmente, por cercas constru-das com toras de madeira, dispostas verticalmente, de forma irregular.

    3 Joo, morador de Riacho de Sacutiaba, janeiro de 1997.

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    A cerca de trezentos metros de distncia da praa encontra-se oriacho de Sacutiaba, afluente do rio Grande, este ltimo situado a umquilmetro de distncia do povoado No riacho so lavadas as louas e a

    roupa da casa, tarefa normalmente realizada pelas mulheres. H espaosclaramente demarcados para o desempenho dessas atividades: a jusante reservada s louas e a montante lavagem das roupas e aos banhos.Tambm do riacho provm toda a gua consumida no interior das casas.

    A quatro quilmetros de distncia da localidade Riacho deSacutiaba, subindo o rio, encontra-se o ncleo de Sacutiaba, ocupadopor 38 pessoas (06 grupos domsticos) e constitudo por sete casas demoradia dispostas de forma irregular no terreno, edificadas, grosso modo,segundo os mesmos padres observados nas residncias de Riacho deSacutiaba: construes compridas e estreitas, de taipa com coberturade palha de carnaba, com agrupamento de casas de parentes prxi-mos no interior de um mesmo cercado recoberto por rvores frutferase alguns produtos da roa, basicamente semelhantes queles encontra-dos nos cercados do ncleo Riacho de Sacutiaba. Todavia, diferente-mente do Riacho, as residncias a localizadas dispem de portas de

    sada e de uma cozinha no seu interior. Sacutiaba localiza-se na mar-gem esquerda do rio Grande, e seus terrenos, em pocas de grandesenchentes, ficam submersos. Nessas ocasies, seus habitantes se trans-ferem temporariamente para as roas. A populao local utiliza as guasda Lagoa da Porta, assim denominada devido sua localizao, pratica-mente na beira dos quintais das casas.

    Os moradores de Sacutiaba constituem uma espcie de prolonga-mento da parentela do Riacho. Sua habitante mais antiga a vivaArcanja, prima cruzada de Maria da Cruz, nascida na localidade Riachode Sacutiaba. Sua me, Francisca, originria de Sacutiaba. Casou comum irmo da me de Maria da Cruz, permanecendo, durante algunsanos, no Riacho. Posteriormente, voltou com o marido para Sacutiaba,onde criou os seus filhos. Arcanja afirma possuir uma escritura de do-mnio, uma escritura antiga, com tantos mirris de terra em Sacutiaba.De fato, sabe-se que, com o declnio do sistema escravocrata, os coro-

    nis passariam a estimular a vinda de agregados, acenando-lhes coma possibilidade de ali cultivarem em pequenas poresde terra.

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    Os moradores de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba praticam umaagricultura extensiva, voltada basicamente para a subsistncia. No hdiferenas significativas entre as duas localidades na qualidade dos ter-

    renos destinados agricultura: as terras de alto so da mesma qualida-de das da beira do rio, nos afirmou um de seus habitantes quando per-corramos os quatro quilmetros que separam as localidades de Riachode Sacutiaba e Sacutiaba. Os principais produtos cultivados so o milho,o feijo, a mandioca, o arroz e, na Sacutiaba, tambm o plantio do fumoalcana certa expressividade. As roas localizam-se prximas s casasde moradia; as mais distantes, conforme Antnio, esto a no mximocem metros das casas. As roas so abertas geralmente em uma

    rea de trs a cinco tarefas, sendo posteriormente acrescidas de reaslimtrofes. Algumas podem atingir uma extenso de 100 a 120 tarefas.A terra no sendo adubada, seu tempo de esgotamento curto, varian-do de quatro a seis anos, e o perodo de regenerao, , em mdia, detrs anos. Quando a terra est novamente ematada, feito o aceiro,isto , todo o mato derrubado, reunido no centro do terreno e queima-do. O plantio realizado entre os meses de outubro a janeiro, durante as

    chuvas, e o perodo de colheita cobre os meses de abril a setembro, commaior concentrao no ms de julho. Os produtos que no vo ser con-sumidos imediatamente ou estocados so vendidos ou trocados por ou-tros gneros nos paquetes, barcos a vapor e canoas de comrcio quenavegam pelo rio Grande. H dois portos de troca e comrcio, um situ-ado na localidade Riacho e outro, de maior porte, em Sacutiaba.

    Em Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba cada famlia possui umaquantidade expressiva de gado bovino, caprino e suno, alm de galin-

    ceos e eqinos. A pesca outra atividade reputada como de fundamen-tal importncia para a subsistncia do grupo, sendo realizada em lagoas,principalmente no perodo de chuvas. A caa atualmente realizada deforma muito espordica, face ao desmatamento promovido nas ltimasduas dcadas pelos fazendeiros proprietrios da Fazenda Sacutiaba, nasmatas localizadas no entorno, e fiscalizao que o IBAMA vem exer-cendo na rea. A carne de alguns animais silvestres, como tei, veado,

    peba, tatu e cutia consumida, ainda que no com a mesma freqnciaobservada em tempos idos. Frutos silvestres, como o umbu, cagarta,

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    jenipapo, cruili, ju, murici e timb so coletados na serra do Boqueiro.A madeira utilizada basicamente para a confeco de cercas, mveise para alimentar os foges de barro batido.

    Percorrendo a rea com Antnio da Cruz, indaguei acerca daorigem do envolvimento de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba com aFundao Cultural Palmares. Segundo relatou, essa conversa de Pal-mares partiu de um comentrio do ento advogado da comunidade,que lera sobre a existncia, na regio, de diversos grupos ribeirinhoscuja origem poderia ser facilmente remetida poca da chegada delevas de escravos oriundos do norte do estado de Minas Gerais, queteriam escapado pelo rio So Francisco, subindo, posteriormente, o rioGrande, instalando-se no sop da serra do Boqueiro, na margem direitado rio, em uma regio de difcil acesso4 .

    A hiptese de que os habitantes de Sacutiaba e Riacho deSacutiaba seriam descendentes dessas levas de escravos foi rapida-mente endossada pelo ex-prefeito de Wanderley e patrono da comuni-dade, Antnio Porto: a regio onde hoje se encontram os colonos de difcil acesso. Como eles teriam chegado, seno como refugiados?5

    Toda a rea situada s margens desse trecho do rio Grande parecemesmo ter sido povoada inicialmente por escravos e ex-escravos. napassagem do sculo XVIII ao XIX que surgem as informaes maisconsistentes sobre estabelecimentos de escravos fugidos ou rebeladosnessa regio. Ziglia Drea, em caracterizao histrica da comunidadenegra rural de Rio das Rs, situada na margem direita do mdio SoFrancisco, refere-se existncia de uma expedio de caa, no sculoXIX, ao quilombo de Xique-Xique (1801)6 . Localizando-se Xique-Xiqueaproximadamente confronte vila da Barra e serra do Boqueiro, quedista quinze a vinte lguas a oeste daquela, pode-se supor que no entor-no da vila da Barra, em ambas as margens do So Francisco e do rioGrande, situavam-se as principais fazendas de gado da regio, arruina-

    4 Essa verso acerca da origem do grupo foi rapidamente veiculada pela mdia local comoexpresso de um fato histrico concreto.

    5 Wanderley, dezembro de 1996.6 Ziglia Zambrotti. Drea. O Quilombo do Rio das Rs. In: ABA (org.). Terra deQuilombos. (Rio de Janeiro, ABA, 1995), p.16.

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    das ao longo do sculo XVIII.7 Nessas circunstncias, as encostas deserras prximas e suas vertentes propiciam, alm da relativa seguranafornecida pelo relevo, as melhores condies, no semi-rido, para a pr-

    tica da agricultura, fora da vrzea dos grandes rios.A simples possibilidade da formao de quilombos como os de

    Xique-Xique no lado ento pernambucano, indica claramente a serra doBoqueiro como local preferencial para o seu assentamento. A relevn-cia estratgica da fazenda Boqueiro certamente lhe permitia controlarum vasto territrio a oeste de sua sede, ainda que seja tambm certo oescasso domnio econmico de seus proprietrios sobre este territrio eseus habitantes, dada a quase completa ausncia, em toda a regio, deproduo agrcola ou pecuria voltada para mercado, e prpria escas-sez demogrfica. Com efeito, at meados dos anos setenta do presentesculo, quase toda a poro norte do atual municpio de Wanderley estendendo-se pela referida vertente ocidental da serra do Boqueiro epelas margens direitas do rio Grande e de seu afluente Tijucuu man-tinha-se em mos de um nico grupo de herdeiros, referidossucessoriamente propriedade Boqueiro, cuja cadeia dominial, segun-

    do um dos seus herdeiros8

    , remonta a 1820, seguramente no por coin-cidncia o mesmo ano em que se criou a comarca de Barra9 , a primeirado oeste baiano, na qual se encontra registrada sua escritura. A estsituada, h pelo menos cento e cinqenta anos, margem direita do rioGrande e a cerca de duas lguas do Boqueiro e da vertente de suaserra, a comunidade rural negra de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba.10

    A possibilidade de vir a ser enquadrada no Art. 68 do ADCT,como remanescente de quilombo, acenada pelo advogado como alter-nativa s injunes polticas que vinham paralisando os trmites do pro-cesso instaurado no mbito municipal, evidenciou-se imediatamente aosolhos da comunidade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba e aos seus

    7 Alis, a grande ilha que o So Francisco forma junto a Xique-Xique e que se estende atas proximidades de Barra chama-se, ainda hoje, sugestivamente, ilha do Gado Bravo.

    8 Conforme Acio Pinto Dantas Jnior, em informao pessoal.9 Durval Vieira de Aguiar, Provncia da Bahia, Rio de Janeiro, Livraria Editora Ctedra;

    Braslia, INL/ MEC, 1979[1888].10 As consideraes de carter histrico contidas nesses dois ltimos pargrafos foramelaboradas a partir de uma reflexo conjunta com o colega Jos Augusto Sampaio.

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    aliados como uma estratgia mais eficaz e profcua para assegurar a pos-se da terra tradicionalmente ocupada. A moradora mais antiga, Maria daCruz, desencadeadora do processo reivindicatrio, resumiu, em uma s

    frase, a legitimidade do pleito: No sei se meu pai foi escravo mas deveter sido porque herana de nego. Podem ter libertado, mas foi.11

    Como forma de se contrapor e desnaturalizar a situao atual deconfronto e esbulho vivenciada por sua comunidade, Maria da Cruz refe-riu inicialmente algumas categorias particulares de auto-adscrio e iden-tificao que apontam para a constituio progressiva de uma condiode orgulhosa independncia e liberdade. Moradores, roceiros, pos-seiros representam a conformao de um direito legitimado historica-mente pela permanncia na rea: Nunca teve fazendeiro pra abusar dens. Porque se abusasse quando chegasse aqui no encontrava ns.12

    As possibilidades de incorporao de uma identidade bsica emais geral, a sua prpria virtualidade, so um construto do presente,ainda que com substrato em um tempo pretrito. E os seus contornosvo sendo delineados com o recurso memria dos mais velhos. Lem-branas do tempo da escravido so ativadas, a terra toda ela deli-

    mitada e sinalizada em termos desse tempo pretrito, de sujeio:

    Capito Nelson que chegou a nos tempos dos nego vio, n?Dos revoltosos. Botava o pessoal pra fazer as coisas, s praganhar um prato de comida ou uma calcinha, ou um calozinho,um shortzinho pra vestir. A chegava aqui, se tinha um chicote naminha mo que era bom, ele tomava e saa andando. Chegava naSacutiaba, tinha uma panela no fogo, tava com fome, pegava,

    comia e saa andando. No tempo da escravido mesmo.

    13

    Localidades prximas comunidade, originadas de antigas fa-zendas de gado, so mencionadas. Toda essa rea teria sido povoadainicialmente por fazendeiros e seus escravos e ex-escravos:

    A maioria aqui dos baianos tudo preto. mais preto do quebranco, do que amarelo. duzentos pretos e cinco vermelhos.

    11 Entrevista concedida na localidade Riacho de Sacutiaba, em janeiro de 1997.12 Riacho de Sacutiaba, janeiro de 1997.13 Maria da Cruz. Riacho de Sacutiaba, janeiro de 1997.

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    (...)Quando eles se apossaram foi com os escravos deles. Era sgado. A mata aqui apertada, quando todo mundo chegou eentrou dentro e pronto. E eles tambm era fazendeiro mas no

    cercou nada. Tudo era mata aqui. Eles mesmo s criavam gado.Algum gado, porco, cabra. Os escravos eram pra dentro de casa.14

    Testemunhos do trabalho escravo so ainda hoje encontrados:

    (...)Tem uma casa com mais de duzentos anos na Goiabeira. Feitapelos escravos. A casa t abandonada assim, mas a dona tmorando numa outra casa. Os caibro dela da grossura dessatravessa a, de carnaba mesmo. Tem caibro de madeira de

    carnaba (...).15

    Finalmente, chega-se ao ponto de esboar um claro recorte tni-co, compatvel com as referncias histricas disponveis, precisando aorigem do comunidade. Maria da Cruz identifica sua bisav maternacomo uma nga nag legtima:

    A via era nag. A bisav minha, v de minha me. Mas o pai eracaboclo. Eu no lhe contei o causo que minha me dizia que a av

    dela no penteava os cabelos? Era nag, nega, cheia de berruga,tudo berrugento, ns tudo. A raa ficou toda assim, cheia deberruga. Eu sou cheia de berruga. Pode atravessar uma corda delao e amarrar nos chifres da berruga e puxar. Ns no tudodisgramado, sem cabelo? Porque nego no tem cabelo, negonag, cativo.16

    Direito sacramentado, pois, quando da assuno daquela identi-

    dade bsica e mais geral, que preside, conforme Barth, a construode uma etnicidade:

    Uma adscrio categrica uma adscrio tnica quando classifi-ca uma pessoa de acordo com sua identidade bsica e mais geral,supostamente determinada por sua origem e sua formao.17

    14 Idem.15 Idem.16

    Idem17 Friedrik Barth. Introduction, in Friedrik Barth (ed.), Ethnic Groups and Boundaries: TheSocial Organization of Cultural Difference (London, George Allen y Unwin, 1969), p.150.

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    Todo este processo segue, logicamente,pari passu a uma terri-torializao, isto , a prpria noo de terra de direito, ressemantizadapela comunidade nesse novo contexto, se expande temporal e espacial-

    mente de modo a atender aos pressupostos implcitos na constituio deum territrio tradicional de um grupo tnico. No caso de comunidadesremanescentes de quilombos, esses pressupostos so concebidos ima-gem e semelhana daqueles que presidem a definio de uma terraindgena, como demonstra a Port. Ministerial de n. 25, de 15 de agostode 1995, publicada no Dirio Oficial da Unio em 22 de agosto de 1995,onde a Fundao Palmares estabelece as normas que regero os tra-balhos de identificao, delimitao, titulao e demarcao das terras

    ocupadas por remanescentes de quilombos.O parecer que aprova o laudo de identificao e delimitao da

    Comunidade Negra Rural de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba comoremanescente de quilombo, com uma rea de 11.440,08 ha foi publicadano Dirio Oficial da Unio de 28 de maio de 1997. Legitimado o reco-nhecimento como comunidade remanescente de quilombo e definidoo seu territrio, a comunidade permanece exposta s investidas dos fa-

    zendeiros confrontantes, pois, at o presente janeiro de 1999, noforam firmados prazos nem competncias para direcionar os desdobra-mentos do processo de regularizao.