afroasia_n17_p159

Upload: rebeca-campos-ferreira

Post on 05-Apr-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    1/13

    DANA DO QUILOMBO:o s significados de uma tradio*Demian Moreira Reis

    A danaEs te trabalho s e situa entr e a histria e a antropologia, pois um a iniciati-va d e estudar uma dana d e tradio negra e indgena, a dana do Quilombod e Alagoas, qu e ent re ou tros significados, no s rem ete ao tem a d a escravi-do no Brasil. O Quilombo uma dana dramtica popular de origemalagoana, cujas primeiras notcias re mo ntam a primeira metade do sculoXIX. Seu registro m ais remoto datado d e 1839,num a postura municipalda cidade d e Marech al Deodoro, Alagoas. Porm, ex iste um outro regis-tro, d e autor annimo, d e 1844 da dana praticada na ento Vila da Impe-ratriz - atual cidade d e Unio d os Palmares - localizada na s proximidadesda S er ra da Barriga, onde provavelmente situava-se Macaco, a capital d osquilom bos dos P almares: "Incla hoje h por l (na Vila da Im peratriz) co-memorao, e m um a espcie de torneio qu e s e celebra nas ocasies festi-vas, e qu e do o nome de - Quilombos. C onsiste em dua s guerrilhas, um ade ndios, outra de negros aquilombaclos; travam-se, e os-negros vencidos soprisioneiros, e os vencedores os levam de folia pelas ruas, oferecendo-os, ou ven-dendo-os a troco de doce s e bebidas, com q ue uns e outros s e encharcam,e isso en tret m e d iverte muito a que m nun ca viu m ais do que isso."De um modo geral, os Quilombos encenam um a luta e ntr e ndios enegros que termina com a derrota e a escravizao do s negros. O s neg rosroub am objetos e alimentos, levando-os para o s se us m ocambos, feitos depalha d e palmeira, on de o s roubo s so cons um idos coletivamente. O s ndi-

    * Este trabalho o resultad o parcial d e um a pesqu isa d e Iniciao Cicntilica (Pibic/CNPq) com o aluno do Departamen to d e Histria da UNICAMP, so b a orientao de MariaClementina Percira Cunha. Alm dela, gostaria tambm de agrad ece r Joo Jos Reis eSilvia Hunold Lara pelos comcntarios .Opsculo da descripo geogrdphica e topogriiphica, j k w c a , polz'ficae histrica do queunicamente respeita Pruvincia das Alagoas no Ittzperio do Brasil. Rio d e janeiro, Typ. d eBcrth e Haring, 1844. Cilado por: Moacir Medciros Sant'ana, "O auto do s quilombos: su aorigem alagoana, in Jornal rle Alagoas, Macei, 8 d e junho, caderno 2, 1977; e por T hc oBrando, Quiloitrbo,Fun artc /Ca dern os d c Folclore, Rio d e Janeiro, 1978, p. 10.

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    2/13

    os invadem os m ocambos e resgatam os pertences roubados e aprisionama rainha branca do s negros. Esta invaso provoca a gu er ra e ntre o s doisgrupos. A luta principal en tre o rei negro e o rei indgena, que acabavencendo aquele. O s ndios fazem dos negro s escravos e o s vendem parao pblico, que deve pagar uma quantia para cada escravo. Es se dinheiroseria uma maneira de rem une rar o s danadores. Que m no contribuir cor-re o risco d e se r sujo pelos produtos utilizados pelos neg ros para escurece-re m a su a pele (carvo misturado com banh a, fuligem, leo e mel cabaso alg uns do s produtos utilizados).Atravs d a anlise d os significados da dana do Quilombo possvelapr een der m os outros significados so br e a histria da escravido n a regiod e Alagoas. Alm do m ais, a dana possui uma dramaturgia histrica, ouseja, conta a histria d e luta en tre ndios gu er re iro s e negros quilombolas,e revela uma situao em q ue necessrio con trolar a resistncia negra aescravido, mais precisamente, impedir que es te s se organizem em tornodos quilombos. E.P. Thom pson utilizou a noo d e teatro para ente nde rformas d e contro le na Ing late rra do sculo XVlIl, m as afirma qu e "in a11societies, of course, theatre is an essential component both of politicalcontrol and of prote st or even rebellion." Concordo com isso. A m euver, tanto a s tradies d as congadas, originalmente cons entida s pelaadministrao colonial, quanto a dana do Quilombo, podem ter sidocriados para impor controle simblico s ob re as populaes negras, m astanto um com o o outro, nas su as respectivas trajetrias histricas, foramalterando os sentidos de sua prtica, freque ntem ente entra ndo em atri-to com a s autoridades. De outra m aneira no podem os ent end er o apa-rec im en to d e tan tas posturas proibindo e ssa s e outras prticas ao longodo sculo XIX.A dana do Quilombo deve s er pensada no contexto da cultura esc ravade Alagoas da primeira m etade do sculo XIX, pois quando t em os notici-a s de posturas proibindo a su a encenao, momento e m que ela causa umcer to impacto nas autoridades pblicas, por se r considerada imoral e br-bara. A figura do escravo fugitivo qu e s e transforma em quilombola audaz uma im agem que condiz com um mom ento histrico em que ainda exis-tem escravos rebeldes que se arriscam com a formao de mocambos, osaqu e de fazendas, o levante urbano e outras estratgias de luta temidas pelasauto ridad es e pela populao branca livre. Sem con tar com a longa tradi-o d e quilombos, desde pelo menos o sculo XVll. Para a regio de Alagoas

    E.P Tho mp son , "Folklore, Anthropolgy and Social History", The Indian IlistoricalReuiew, 111, no.2, (1977). p. 254.

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    3/13

    e Pernambuco nas dcadas de 1820 e 1830, sabem os de pelo menos doisgrande s movimentos que envolveram escravos fugidos e aquilombados: aguerra dos cabanos, com a participao dos negros papa-inis, e osquilombos dos malunguinhos nas vizinhanas do R e ~ i f e . ~e a formaode quilombos pelos escravos fugitivos e a s guerr ilha s de que es te s partici-pavam podem se r considerados formas d e rebelio contra a escravido, aencenao d e su as dana s dramticas pode ter sido uma forma simblicade dem onstrar a s ua afronta escravido; s assim podemos entende r asua proibio e m 1839 na cidade de Marechal Deodoro, por exemplo. Mas ,por ora, vamos ver ou tros exemplos da participao negra em manifesta- es culturais.

    Para Mrio d e Andrade, o fundamento essencial das danas dramticasbrasileiras de origem religiosa; a celebrao da mo rte e ressurreio doboi e a luta de cristos e mouros estariam na base da inaioria do s bailadosbrasileiros. O simbolismo do primeiro est ligado "a representao coleti-va, a necessidade do alimento (qualquer), as dificuldades e lutas para con-quista r o alimento, bem com o prticas da vida familiar e coletiva. Ao passoque a luta e ntr e cristos e m ouros, sem significado nem histrico para ns,simboliza em geral a s brigas religiosas e o exerccio da guerra , em que sebasearam todos os sistem as poltico-nacionalistas de at agora". As da nasbrasile iras foram perclenclo o se u fundo religioso e com o tempo foramganhan do ou tros sentidos. O interesse pelo cmico e pela questo da lutapela vida reorientam completamente os tem as dramatizados nes sas dan-as . Nesta fase, tem as no religiosos sobre "o hero sm o, a coragem, o strabalhos quotidianos, a tradio profana, a ptria, a gue rra , a histria, con-co rre m vastam ente com tocla a sua simblica, desorientando, confundin-do, deformando, mascarando, dando m esm o a alguns bailados uma finali-dade nova, qu e no sendo nunca falsa (o povo nunca falso), no mais aoriginria." Se a religio estava na base da criao de ss as danas, ao lon-

    Sob re a Gue rra d os Cabanos ver: Manoel Co rreia de Andradc, A Guerra dos Cabanos,[tio dcJancii.o, Conquisla, 1965; Dkcio Freitas, Os Guerrilhe iros do Itnperarlor, Rio d e Janc i-ro , Graal, 1978. Sobre os quilombos dos malunguinhos ver: "O Quilombo do Catuca emIJcrnambuco", C(~ciernoCHII, P 15(1991), pp. 526.

    "ario d c h d r a d c , "As Danqas Dramticas do Brasil" , in Boletitrr Latino-Awericanode Mtsieu, IGo d e Jane iro , Instituto Intciramcricano d e Musicolog ia, 1947, p. 51.

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    4/13

    go d o tempo a s populaes foram incorporando outro s significados a elas,transformando o s sentidos de sua prtica e at m esm o criando outras tradi-e s ou outras maneiras d e interpretar e represent-las.Apesar d e Mrio de Andrade dizer qu e a dimenso simblica das dan-as d ram ticas foi transfo rma da ao longo do tempo, e le no procu ra enten-de r como isso s e deu para cada dana. A sua interpretao ainda procuraentender o s significados das d anas d e uma maneira que p ermitisse ape-nas chegar a caractersticas ge rais suficientes para a gru par ou classificara s dan as tradicionais. O seu inte ress e ainda est voltado para o inventriodessas tradies: ao invs de tentar entender os significados existentesnos diferentes con textos culturais e histricos em qu e foram produzidos,est s em pre rastreando nas tradies da s danas dramticas uma origemimemorial. Mrio de Andrade dividiu tecnicam ente em trs tradies bsi-cas a s danas dramticas:"1.O costume de cortejo mais ou me nos coreogrfico e cantado, emqu e coincidem a s tradies pags d e Janeira s e Maias, a s tradies profa-nas crists da s corpora es proletrias e outras, os cortejos reais africanose a s prociss es catlicas com folias de ndios, pretos e brancos.2. 0s Vilhancicos religiosos, de que os nossos Pastoris, bem com o a sReisaclas portug as, so ainda form as desniveladas popularescas.

    3. Finalmente, os brinquedos populares ibricos, celebrando a s lutasdeaktcxernourosgO congo ou congada, por exemplo, faz parte d os cortejos reais afnca-nos. M rio d e Andrade, na s ua busca do 'folclrico', quer dizer, coi sas au-tenticamente produzida pelo 'povo', conside ra est a tradio uma sobrev i-vncia do matriarcado na frica. Para le o importante nessa dana acelebrao da rainha ne gr a7M as a afirmao de que a dana uma sobre-vivncia social do matriarcado de uma reg io da frica revela m uito poucoso br e os significados desta dana no prprio espao histrico e cultural doBrasil.Vamos seguir mais de perto um outro estudo so bre uma outra danatradicional negra que provavelmente tem sua origem nos cortejos reaisafricanos d e Pernam buco . Trata-se do Maracatu. Leonardo Dan tas Silvapublicou um artigo s ob re o Maracatu de Recife, mostrando como se u car-ter religioso vai dando lugar a uma forma profana carnavalizadaa8Para

    8Leo~iardoDaiilas Silva, "Prcselic;a da frica n o carnaval do Recife", in Leitura, SoPaulo, 12 de evcrciro de 1994.

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    5/13

    Dantas, o Maracatu tem su a origem nos prstitos de coroao dos reis erainha s negro s patrocinados pelas irman dade s de Nossa Senhora do Ros-rio e de So Benedito, que por sua vez existiam desde o sculo XVI noBrasil, prom ovidas pela prpria adm inistrao colonial portugues a. Ess aprtica j existia na Espanha e Frana desde o sculo XV. A prtica dacoroao conhecida , atravs d os documentos, e m "Sevilha quando a 11de novembro d e 1475 o s Reis Catlicos deram o titulo d e 'Mayoral' d etodos o s neg ros cativos ou fo rros a Juan d e Valladolid; em Lisboa, desde1563, e na Frana , a pa rtir de 1498. No Recife ess e costum e conhecidodocum entadamen te, desde 1674, segundo assentamento dos livros da Ir-mandad e d e Nossa Senhora do Rosrio do s Homens P retos, no bairro deSanto Antnio, que tratam das coroaes dos reis e rainhas de A n g ~ l a " . ~mais importante d ess as coroaes era a do Congo, cuja organizao s ebaseava numa verdadeira hierarquia d e poder, com reis, vice-reis, duques,governad ores, mestres-de-campo, coronis, capites-mandantes, provedo-re s , juzes-de-fora e conselheiros-mor.Se o objetivo original d e incentivar os ne gros a realizar as coroaeser a criar hierarqu ias para facilitar o controle dos m esm os, no parec e s e rcom es se sentido que os pretos praticavam o Maracatu ou os reinados doCongo. Pelo menos o que mostra uma srie de problemas que essa stradies tero com a s autoridade s polticas e policiais, ao longo do sculoXVllI e XIX. Durante o governo de Jo s Cezar de M enezes (1774-1788),tanto o M aracatu quanto outros bailes e batuq ues organizados pelos pre-tos sofreram ce nsura s e at interveno policial. A partir da segu nda me-tade do sculo XlX, tambm sok eram perseguies, segundo mostram diver-so s dirios de Pernambuco da dcada d e 1850.10Num deles temos a refern-cia de um Maracatu que sai para comemorar a viagem de vrios neg ros liber-tos de volta a frica, um exemplo em que os significados da festa esto com-pletamente dissociados dos festejos religiosos de Nossa Senhora do Rosrio,e simbolizam muito mais o desejo de retorno a terra natal, de onde foramarrancados para o cativeiro, do que fazer reverncia a uma santa catlica dospretos. O festejo do Maracatu, nas ocasies em que negros embarcavam devoltava a frica, mostra que a idia de ptria dos pretos oscilava entre oBrasil e a frica, as veze s m ais para o lado d e l do qu e o lado d e c.Os folcloristas e a dana do Quilombo

    Vamos d iscutir um pouco o olhar folclorista so br e a dana do Quilombo.

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    6/13

    H uma polmica comum e ntre os e studiosos, sejam ele s folcloristas,literatos, musiclogos ou cientistas sociais, so br e a possvel historicidadeda dana. O questionamento des sa historicidade deriva basicamente daabo rdagem folclrica qual a dana submetida. Tentarei apresentar, emordem cronolgica, o s autore s e o s argum entos que eles utilizam em su asdefinies do Quilombo, de modo a mos trar a s divergncias e o s consen-so s no aspecto da historicidade da dana.aco rdo com Alfredo Brando - primeiro folclorista a nos fornecer,em 1914, uma descrio da dana em Viosa d e Alagoas- o auto populardos quilombos uma festa puramente alagoana que relem bra um do s fac-tos ma is importante s da nossa histria- guerra d os Palmares...". O fatode dana do Quilombo s e r original d e Alagoas, som ado ao fato d e ter sidoem Alagoas o quilombo dos Palmares, e o en redo do auto contar a histriad e um mocambo d e negros que destrudo por ndios, s o os elem entosque convencem Alredo Brando d e que o auto pelo m eno s "relembra" agu er ra d os Palmares. Portanto, d e acordo com ele, o auto do Quilombopossui uma historicidade que , de alguma forma, o liga ao fato histrico daguenadosPain aresooomano sEab XVIL1lAr thur Ramos, por su a vez, concordando com Alfredo Brando em re-lao a historcidade do Quilombo, considera o auto uma "sobrevivnciahistr ica dos negros no Brasi l , que "relembra" o acontecimento dePalmares. Ramos, j influenciado pela psicanlise, localiza a historic idadedo auto do quilombo no "inconsciente coletivo" dos neg ros d e Alagoas. Oauto r vai alm d e Alfredo Brando, pois efetivamente sug er e uma conti-nuidade na mem ria da s populaes q ue habitam a s imediaes da se rr ada Barriga e dos vales do Parahyba e Munda, que s e expressaria no sauto s folclricos. Arth ur Ramos chega me sm o a dizer: "No auto, podere-mo s at c erto ponto recompor a vida do s negro s confederados no quilomboclebre, cuja histria no foi sufficientemente escripta."12

    Apesar d e afirmar qu e o auto do Quilombo uma sobrevivncia hist-rica da gue rra dos Palm ares que no s permite, at certo ponto, recom por avida dos negros palmarinos, Ramos situa essa 'lembrana" no inconscientefolclrico, pois nenhum dos negros a quem ouviu "tinha a menor noodas lucta s histricas d os Palmares. Elles ignoravam por completo a signifi-

    l lAlfrcdo Brando, Viosa de Alagoas - o t t tunicfj io e a cidade. Notas histricas,geogmphicas e arqueolgicas, Recife, Imp rensa Industrial, 1914, pp.959 8.I2Arthur Ramos, O Folclore Negro no Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,1935, pp . 6 5 7 3 .

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    7/13

    cao do auto dos quilombos. Ou procuravam uma explicao qualquer,mas sem a menor ligao com a epopia palmarina".13 Portanto, seg undoRamos, a mem ria do acontecimento histrico d e Palm ares es t present eno auto dos quilombos, m as no n a mem ria consciente da s populaesdo interior d e Alagoas.Renato Almeida, outro com entador da dana do s quilombos, aceita aidia d e qu e ela uma sobrevivncia inconsciente, m as ac redita q ue sejainsuficiente o argu mento que Ramos usa para explicar a rivalidade ent reneg ros e ndios. Segundo Ramos, esta animosidade provm da expedioorganizada pelo governad or da capitania d. Ped ro d e Almeida, e da qualfaziam pa rte soldados, ndios, pardos d a Ordenana e pretos do capitoHenriq ue Dias. Almeida no considera e ss e fato relevante, e s ug er e a pos-sibilidade de imaginao popular aumen tar a s propores d os fatos secun-

    drios, dando-lhes importncia essencial. Em segu ida Almeida lana ahiptese de que o folguedo teria sido criado por se nho res d e eng enho parase rvi r de advertncia ao s escravos. Da a substituio do inimigo tradicio-nal dos negro s- ntenda-se os brancos- elos ndios. O au tor admite,no entanto, a falta d e base histrica para confirmar a hiptese.I4Para M rio de Andrade, a dana do Quilombo no repre sen ta um a ins-pirao direta do ca so histrico de Palmares. Ele v no rapto e na recon-quista da m ulher bran ca a repetio d e um "motivo temtico" qu e faz parted e outra s danas tradicionais: " o rapto e a reconquista da princezinhacrist, muito frequen te na pa rte dram atizada d a s Cavalhadas. E o rapto e areconquista da Salia que o corre em algumas Cheganas. J o argumentod e lutarem en tre si negro s e ndios no Quilombo parec e indicar o casohistrico de Palmares. M as tambm eu creio se tratar d e um motivotemtico, pois d e ndios e de negr os em com bate, existem outras dan asdram ticas no centro do pas [...I. Tu do isto no impede, est claro, que adana do Quilombo ten ha o s eu fundamento histrico, a nica da s nossa sdanas dramticas que s e inspira num Gto da histria brasileira."'5 Mrio d eAndrade usa o princpio da luta entre o Bem e o Mal para explicar a luta en trendios e negros, enquanto o rapto e resgate da mulher branca se ligam ao"motivo temtico" presen te nas cavalhadas e nas cheganas. Assim, s ua in-terpretao vai no sentido dos princpios gera is qu e s e repetem aqui e acol.

    I3Idcm, Ibidcni.I4Renato Almeida, Ilistbria da Msica Brasileira, Rio d e Janeiro, E Briguiet & Comp.,1942. pp.270-278. A definio da dana do Quilombo d e Renato Almeida foi literalmentetranscrita no Dicionrio rio Folclore Brasile iro (1954),d e Luis da Cmara Cascu do.l5 Andradc, "As Dan as Dramticas do Brasil", p. 56.

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    8/13

    Para Oneyda Alvarenga, a dana do Q uilombo s e inspira incontestavel-m ente no fato histrico do s quilombos, m as defende qu e no h elementocapaz de su stenta r qu e o auto celebre, particilarmente, o quilombo d osPalmares. Alvarenga descarta o argumento geogrfico sustentado porAlfredo Brando e A rthu r Ramos, que s e baseiam na coincidncia d e autotematizar o Q uilombo e a o m esmo tempo s e originar em Alagoas, ondeexistiu Palma res. O neyda parec e aceitar a idia, lanada por RenatoAlmeida, d e que o auto seria uma manipulao d os se nh ore s com o objeti-vo d e conter a s fugas e o aquilombamento do s neg ros e desviar seu diopara o s ndios, j qu e viam na dana uma celebrao d a derrota do s ne-g ro s e a afirmao d e uma animosidade entre ndios e negros. Em relaoao segu ndo aspec to da dana , Alva renga apon ta pa ra um poss ve lparalelismo, pre sen te na poesia popular, on de o preconceito d e cor anti-neg ro suste nta que ndios e caboclos so sup eriores ao s negros. Assim, aagres so m tua entre ndios e negr os confirmada num outro mbito cul-tural, o do racismo.16Alceu Maynard Arajo ainda trabalha com a idia d e que o auto doQuilombo "relembra a s lutas e o s anseios de l iberdade dos negros escra-vos q ue um dia s e refugiaram nas florestas d e Palmares." E continua: "Du-zentos e tanto s ano s depois, o s caboclos' ,o s 'pretos', o s 'catirina' lad res,o s 'pais-de-mato', no se u bailado q ue se apresenta na ribalta da praa pbli-ca, mostram-nos que os entremezes desta dana dramtica de hoje sofragmentos do episdio histrico da 'Troia Negra', farrapos da Iladaalagoana, escrita com o san gue d e milhares d e negros, ndios e brancos,sabiam ente aproveitado do catequista qu e alm d e teatraliz-la no s e es-que ceu d e fixar ce rto s preceitos religiosos com o o da ressurreio.' ' Ne staverso o s neg ros s o todos mo rtos pelos ndios ma s o rei dos caboclos o sfaz ressuscitar com folha-de-mato, agora como escrav os pron tos para s ere m vendidos.17 Arajo aceita o modelo d e historicidade do auto qu e oidentifica com o acontecimento d e Palmares, ma s determina um elementonovo com o criador d a dana: o catequista. O episdio da ressu rreio, pre-se nt e na verso de Piaabuu, confirmaria a interveno catequista.At aqui a polmica e m torno do Quilombo, no aspecto d a historicidade,incide na possvel origem histrica do auto nos acontecimentos d e Palmares.

    I60ney da Aivarenga, Msica Popular Brasileira, Porto Alcgre, Globo, 1950,pp. 116119.I7Alceu Maynard Arajo,Folclore Nacional -festus,bailados, tnitos e lendas, S o Paulo,Mclhoramcntos, 1964, pp. 387-389

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    9/13

    Essa historicidade perceb ida do ponto de vista da localizao geogrficae da identificao dos provveis criadores da dana. Quando os autorespercebem a historicidade a partir da geografia, eles tendem a asso ciar otema do auto- ma ssacre de um mocambo d e negros- om o lugar emque ela foi apresentada - nterior de Alagoas, regio onde sabe-se porevidncia histrica que existiu o que ficou conhecido como o quilombodos Palmares. Quando os autores percebem a historicidade a partir datentativa de identificar os criadore s da dana, tendem a enxergar influn-cia branca, pois para eles trata-se de um folguedo em que o s neg ros cele-bram su a prpria derro ta pelos ndios. A animosidade entre ndios e ne-gros confirmaria definitivamente a origem do folguedo negro enquantomanipulao branca.J Edison Carneiro s e posiciona da seguinte forma: o auto "parece s e r

    uma adaptao semi-erudita do auto dos Congos para come morar a vitriadas ar m as luso-brasileiras con tra o quilombo do s Palmares."18 Carneirocoloca que a dana tinha com o objetivo "criar um a conscincia contra a sinsurreies de escravos, que por todo o sculo XVll intranquilizaram aregio." Nesse sentido o contedo da pea no possui verdade histricado ponto de vista dos negros escravos, provveis danadores da poca.Seu argumento principal contra a historicidade palmarina que os ndiosque combateram os quilombolas em algum as expedies na Serra da Bar-riga no eram de Alagoas ou Pernam buco, pois os ndios da regio fizeramamizade com os palmarinos, inclusive lutando favor dos s eu s mocambos.Por outro lado, a populao sabia que eram as tropas de linha que seem brenhav am n as m atas perseguindo o s quilombolas e no o s ndios. Porltimo, se nd o o Zumbi um chefe muito popular, s e o auto fosse d e criaopura mente negra , ele ressaltaria o Zumbi com o heri. interessante per-ceb er q ue C arneiro nega a historicidade da dana como uma criao pura-mente popular, mas identifica na manipulao branca uma tentativa decontrolar formas d e resistncia negra escravido, con~ionsurreices es-cravas, o que d e ce rta forma devolve historicidade a os escravos d e Alagoas.Abelarclo Duarte, traz uma novidade na interpretao do Quilombo.Comea concordando com a idia de que o auto uma "sobrevivnciahistrica", j que evocaria episdios da guerra dos Palmares. Seguindo atrilha de Arthur Ramos, Du arte tambm situa o auto no inconsciente fol-clrico, de modo qu e sua significao estaria fora do alcance d os pratican-

    lsEdison Carneiro, Dindtrricu do Folclore, 2a. ed., Rici de Janeiro, Civilizao Brasilei-ra, 1965, p. 187.

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    10/13

    tes. Acrescenta, no entanto, qu e o auto usa elem entos lendrios pre sen tesna literatura oral da regio do s vales do Jacupe, Munda e Paraba. Porexemplo, refere-se a lenda d e que Zumbi vivia com uma moa branca qu efoi raptada d e uma enge nho de Porto Calvo. Com relao participaoindgena no enredo, m ostra qu e est em sintonia com o s acontecimentoshistricos, pois descobriu um documen to d e 1864 qu e relata uma reivindi-cao por parte do s descendentes dos Tapuias do tero d os paulistas d eDom ingos Jorge Velho, "ndios que s e aldearam por toda a vasta regio dovelho 'distrito do s Palmares'." Eis o que diz so br e o documento: "Em 1864,o major e p rocurador do s ndios, cidado ndio Jo s Lopes da Silva, dirigin-do uma reclamao ao imperador Dom Ped ro 11 so bre a apropriao d eter ras nas aldeias indgenas d e sua jurisdio por parte d e terceiros, diziatextualmente que 'na Provncia Alagoas existiam as Aldeias de Atalaia,Urucu, Limoeiro, Palmeiras, Colgio e Jacu, compreendendo cerca de147.736 fogos, ocupando o vasto territrio ou trora dominado pelos profugosde Palm ares, expulsos e ste s pelos esforos e sacrifcios do s ndios, fun-dand o e ste s a s aldeias referidas, etc'." l9 O qu e suger e que o auto seriaento uma celebrao indgena d e sua vitria so br e os palmarinos e nouma celebrao negra de sua de rrota frente ao s ndios. uma pena qu eDu arte apenas indique, se m precisar, q ue o documento foi encontrado noArquivo do Instituto Histrico e Geogrfico de Alagoas, m as pelo m en osfoi o primeiro a t aqui a relacionar o significado do en red o a uma informa-o histrica concreta, dois sculo s distantes do fim de Palmares. A refe-rncia a aldeia de Limoeiro, por exemplo, interessante, pois na minhabreve pesquisa d e campo tive a oportunidade d e presenciar a en cenaoda dana do Quilombo precisamente na atual cidade de Limoeiro d e Anadia,no dia 20 de janeiro de 1995.Theo Brando publicou o texto de maior flego sobre o auto doQuilombo. Seu trabalho, seguin do a linha da s abord age ns folclricas, ofe-re ce m ais etnografia do q ue anlise. Rene e tra nscrev e fontes e posiesd e folcloristas, historiadores e estudiosos que s e debateram com o assun-to e finaliza com su as prprias observ ae s d e um auto do Q uilombo emBebedouros, bairro tradicional de Macei. Na par te qu e dedica aos da do shistricos do Quilombo, acaba rejeitando a s tes es de que o auto pertenceao inconsciente coletivo, ou que fosse uma sobrevivncia histrica doquilombo dos Palrnares, principalmente devido a ignorncia por par te dosprprios danado res sob re os acontec imentos de Palmares. Valoriza a idia

    lgAbelardo Duarie, Folclore Negro das Alugoas (reas de can uiie a car ~, esquisa einterjretao, Macei, Departamento de Ass~mlos ulturais, 1974, pp. 377-378.

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    11/13

    d e que s e trata d e um auto de influncia branca, e menciona particular-mente a sugesto d e Oneyda de que possvel sup or que a priso do reinegro aps sua m orte e ressurreio, pa rte final da encenao, fosse umapa rte introduzida a partir d e elementos semi-eruditos, provavelmente feitano final do sculo XlX.20 Concordo quan to a possveis modificaes, m asest a no fora feita no final do sculo XIX, pois h registros de que des de1844 o enredo do Qui lombo acaba com a escrav izao dos negrosaquilombados, informao q ue inclusive consta do prprio texto d e The oBrando.A interpretao m ais recente que encontrei sob re a dan a do quilombod e Alagoas foi publicada em 1983 por D irceu Lindoso. O qu e nos interes sano seu livro sobre rebelies de pobr es em Alagoas, en tre 1832 e 1850, ocaptulo que dedica "Copla do 'Folga Negro ' e a Menina B r a n ~ a " . ~ ~autor prefere negar qu e o contedo da pea possa relem brar com inteirezaa guerra dos Palmares do sculo XVll, porm levanta alguns pontos queacredita se rem situaes anlogas: o nome dado a pea, quilombo, a exis-tncia de gu err eiro s e um rei negros, a referncia contra os brancos nacopla, a de rrot a do rei negro e a destruio do quilombo. Por outro lado,aponta outros trs episdios da encenao contrrios ao argumento d e qu erelembra Palmares: a existncia de uma rainha-menina-branca, a defesada rainha-menina-branca pelos ndios e a dana do tor em oposio a coplado "folga negro". Acaba afirmando, no entanto, que e ss es tr s elem entosda encenao poderiam se r explicados, como j apontara Abelardo Duar te,pela "lenda que conta qu e Zumbi tomava, como m ulhe r, uma mulher bran-ca raptada em Porto Calvo. 0 s caboclos guerre iros so o s ndios do TeroPaulista d e Domingos Jorge Velho, que com bateram o s m ucambos dosP a l m a r e ~ . ~ ~Mas Lindoso est convencido de uma outra viso sobre a dana doQuilombo, que a coloca mais prxima de uma tcnica pedaggica brancad e inferiorizar a condio negra frente a o sistema "sesmeiro-escravista".Acha absurda a hiptese de que a encenao fosse uma criao apena s deescravo s negros, porque ela ressalta a su a derrota e no a sua vitria. Amanifestao Idica seria um canal para s e "interiorizar nos negros e ou-tro s pob res a im agem d e sua misria como fato natural, e no um inconsci-en te produto histrico e social." De certa form a Lindoso es t recolocando

    21 I )~I .CCU I i ~ l d o so ,A Utopia Arnaria - rebelies populares nas rrratas do torrrbo real(18.72-1850),Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983, pp. 325-345.

    22 Idcrn, p. 335.

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    12/13

    a interpretao de Edison Carn eiro, porm especificar melh or a su a argu-mentao. Aponta qu e es sa tcnica pedaggica de red uo social teriacomo alvo os m ucam bos do s Papa-Mis, d e Alagoas, e do s ma lunguinhosda mata do Catuc, de Pernambuco. O s negro s Papa-Mis participaram daguer ra d os Cabanos d e 1832 a 1836, que ocorreu entr e o n or te d e Alagoase o sul de Pernambuco, e malunguinho era o nom e dado ao s escravos queformaram mocam bos a o redor do Recife, entre 1828 e 1836.A coincidn-cia cronolgica entr e es se s dois eventos e a semelhana da s foras sociaismobilizadas sero retom adas com o fim de avanar ria an lise d os signifi-cado s da dana do Quilombo num outro trabalho.2JSugestes para uma reinterpretao da dana do QuilomboUma anlise histrica s ob re a dana do quilombo deveria procurar d es-vendar se us significados num d eterm inado contexto e, s e possvel, umabusca d e fontes primrias sobr e a vida dos escrav os (quilombslas em po-tencial) e ndios, tanto o s que s e aliavam aos n egr os quanto o s que e ramman dados para lutar contra eles. To m em os, por exemplo, um registro d e1851: "Tradies. Costum a-se fazer nesta Provncia um a brincadeira toscacham ada o s Quilombos que n este a no s e fez tambm nesta capital consis-tindo e m um arr em edo do assalto d os ndios aos Negros, qu e depois d evencidos s e vendem a os espectadores. Isso um a recordao que o povotem conservado des de aque la poca at o presente. (158 an os depois dosucesso!) e q ue s e fora bem desem penhado seria uma funo provincialre la t ivamente m~ral izadora" .~~registro fala que s e a dana "fora bemdesem penhado se ria uma funo provincial re lativamente moralizadora."Essa afirmao no s deixa du as dvidas quanto a sua eficcia moralizado-ra: primeiro s e ela no for bem des em pen had a no ter um a funo mora-l i z ad o r a e n o a t en d o t e r i a o u t r a f u n o , n o - m o r a l i z ad o r a o udesmoralizadora, d o ponto d e vista de um funcionrio pblico provavel-mente branco e livre. Ma s do ponto de vista dos encen adores, provavel-

    23Andrade, A Gue rra dos Cubanos; Freitas, Os G uerrilheiros do Iw@erqdor; Carvalho,"O Quilombo de Catuc". A antroploga Beatriz Gis Dantas discute o Lambe-sujo, umavariante da dana do Quilombo em Laranjeiras, Sergipe, qu e pretendem os analisar numoutro trabalho. Ver: Beatriz Gis Dantas. "O jogo da m emria: dos registros da s lembran-a s as represen taes das einias no lambe-sujo x caboclinho", in Estudos de Folclore emhotttenagem a Munuel Digues Jnior, Iiio de Janeiro/Mac ei, Com isso do Folclore/ Ins-tituto Arn on de Mello, 1991.

    ""Guerra do s Palmares", O Constitucional, Macei, s ri e 11, n.26, 23 julho, 1851, p.4. Citad o por Sant'ana, "O auto d os quilombos."

  • 8/2/2019 afroasia_n17_p159

    13/13

    me nte negro s livres ou escravos, quem s ab e a dana cumpria uma funo.Um segundo ponto que, ao colocar a frase no pretrito imperfeito -"seria" - aut or do registro est sugerindo qu e a dana poderia ser mo-ralizadora, m as no est sendo. Portanto, estaria prevalecendo a outramoral - alvez uma moral m ais prxima d os intere sse s do s negros, liber-tos ou escrav os - u a imoralidade do ponto d e vista de um branco livre.Com respeito a "moralidade" tem os ainda a noticia da postura que pro-be a dana em Marechal Deodoro, em 1839,alguns anos depois da guerr ados Cabanos e da destruio dos mocam bos do malunguinho: "Art. 11-Fica proibido o brb aro e imoral espetculo denominado - Quilombo. Oscontraventores sofrero a pena de oito dias de priso e multa de dois milris, e sendo escravos sero seu s sen hor es obrigados a multa somente." 25Teramos qu e ter uma idia mais precisa do que quer dizer 'brbaro eimoral" no espetculo do Quilombo para o s que reivindicavam a sua proi-bio. Q uem sa be a encen ao naquele mom ento estive sse ligada a umaoutra orde m d e acontecimentos? Ser que ne ssa verso afinal eram osquilombolas que venciam e, a partir da s proibies, os arti stas adaptarama e strutura dramtica a uma forma "moralizadora"? A indicao de um apena diferenciada para esc ravo s e livres ou liber tos m ostra q ue provavel-m ent e brincavam livres e esc ravos juntos: ser qu e o ritual da e ncena oabolia perigosamente a s fronteiras entre escrav os e neg ros livres? O certo que para a s autoridades e os fazendeiros, a quebra de ssa s fronteiras e ravista como ameaa. pois poderia mobilizar foras que ameaassem a es-cravido.

    2501impio E u b i o de A rroxellas Galvo & Tib rcio Valeriano d e Arajo, Com~ilaodas leis prouinciues ctus Alugoas de 1835 a 1817 (sic) Tomo 1.Maceio, Typ. Comercial deA.J da Costa, 1870,p.358, citado por Sant'ana, "O auto do s quilombos".