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1 AFRICANIDADE NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA ATRAVÉS DE JOGOS DE MANCALA: UMA INTERVENÇÃO NA FEIRA DAS CIÊNCIAS DO CAP-MACAÉ LAURINDO, Gabriela Franklin 1 . LOURENÇO, Júlio Omar da Silva 2 . RESUMO Este trabalho apresenta uma proposta de aplicabilidade da Lei 10639/2003 nas aulas de matemática, através dos jogos de Mancala Kalah e Oware no Colégio de Aplicação de Macaé-RJ, durante a Feira das Ciências. Os métodos e técnicas utilizados foram a observação e intervenção durante a oficina dos jogos de Mancala e levantamento bibliográfico. A pesquisa buscou demonstrar que a matemática ensinada na rede de ensino no município de Macaé-RJ ainda é ocorre sob aspectos enviesados, reproduzida para a manutenção do “status quo” de uma elite colonial, mesmo diante da existência da Lei 10639/03. O objetivo de nossa pesquisa foi oferecer novas possibilidades à prática docente pelo viés da Etnomatemática. Através dos resultados obtidos, constatamos, que antes de nossa oficina, a maioria de nossos(as) alunos(as) nunca tivera contato com qualquer jogo de origem africana, principalmente nas aulas de matemática, e, que a maioria dos(as) professores(as) desconhecia as Leis 10639/2003 e 11645/2008. Sugerimos a inserção desses jogos nas aulas de matemática, inclusive nos anos iniciais do ensino fundamental. Verificamos que tais jogos podem ocupar espaço significativo no processo de ensino-aprendizagem por estimular o raciocínio-lógico na criação de estratégias ganhadoras, além de representar elementos históricos e culturais africanos e da diáspora, auxiliando, assim, no processo de formação identitária de crianças e jovens e no resgate de valores da tradição e memória africanas. Palavras-chave: Educação Antiracista; Educação Matemática; Mancala. 1. INTRODUÇÃO 1 Gabriela Franklin Laurindo nasceu em 1983, em Cabo Frio/RJ, onde cursou licenciatura plena em Matemática pela Ferlagos (2008). Pesquisa sobre as relações étnico-raciais na educação e temas transversais. Atualmente mora e trabalha Macaé/RJ. Ex-coordenadora estadual do Fórum de Juventude Negra do Rio de Janeiro (2009 2013) Professora regente (SEEDUC/RJ, desde 2010 e SEMAEB Macaé, desde 2011) e ativista-fundadora do Movimento Voluntário Cultural de Macaé. http://lattes.cnpq.br/9484785018947424 2 Júlio Omar da Silva Lourenço nasceu em Duque de Caxias em 1968, Cursou Administração de Empresas na Unigranrio (1993) e Matemática Universidade Castelo Branco (2004). Pesquisa sobre relações étnico-raciais na educação básica e Currículo. Atualmente mora em Duque de Caxias e trabalha em Macaé/RJ. Militante do MNU, professor regente (SEEDUC/RJ, desde 2004 e SEMAEB - Macaé, desde 2004). http://lattes.cnpq.br/5123791645640632

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AFRICANIDADE NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA ATRAVÉS DE JOGOS DE

MANCALA: UMA INTERVENÇÃO NA FEIRA DAS CIÊNCIAS DO CAP-MACAÉ

LAURINDO, Gabriela Franklin1.

LOURENÇO, Júlio Omar da Silva2.

RESUMO

Este trabalho apresenta uma proposta de aplicabilidade da Lei 10639/2003 nas aulas de

matemática, através dos jogos de Mancala – Kalah e Oware – no Colégio de Aplicação de

Macaé-RJ, durante a Feira das Ciências. Os métodos e técnicas utilizados foram a observação

e intervenção durante a oficina dos jogos de Mancala e levantamento bibliográfico. A pesquisa

buscou demonstrar que a matemática ensinada na rede de ensino no município de Macaé-RJ

ainda é ocorre sob aspectos enviesados, reproduzida para a manutenção do “status quo” de uma

elite colonial, mesmo diante da existência da Lei 10639/03. O objetivo de nossa pesquisa foi

oferecer novas possibilidades à prática docente pelo viés da Etnomatemática. Através dos

resultados obtidos, constatamos, que antes de nossa oficina, a maioria de nossos(as) alunos(as)

nunca tivera contato com qualquer jogo de origem africana, principalmente nas aulas de

matemática, e, que a maioria dos(as) professores(as) desconhecia as Leis 10639/2003 e

11645/2008. Sugerimos a inserção desses jogos nas aulas de matemática, inclusive nos anos

iniciais do ensino fundamental. Verificamos que tais jogos podem ocupar espaço significativo

no processo de ensino-aprendizagem por estimular o raciocínio-lógico na criação de estratégias

ganhadoras, além de representar elementos históricos e culturais africanos e da diáspora,

auxiliando, assim, no processo de formação identitária de crianças e jovens e no resgate de

valores da tradição e memória africanas.

Palavras-chave: Educação Antiracista; Educação Matemática; Mancala.

1. INTRODUÇÃO

1 Gabriela Franklin Laurindo nasceu em 1983, em Cabo Frio/RJ, onde cursou licenciatura plena em Matemática pela

Ferlagos (2008). Pesquisa sobre as relações étnico-raciais na educação e temas transversais. Atualmente mora e trabalha

Macaé/RJ. Ex-coordenadora estadual do Fórum de Juventude Negra do Rio de Janeiro (2009 – 2013) Professora regente

(SEEDUC/RJ, desde 2010 e SEMAEB – Macaé, desde 2011) e ativista-fundadora do Movimento Voluntário Cultural de

Macaé. http://lattes.cnpq.br/9484785018947424 2 Júlio Omar da Silva Lourenço nasceu em Duque de Caxias em 1968, Cursou Administração de Empresas na

Unigranrio (1993) e Matemática Universidade Castelo Branco (2004). Pesquisa sobre relações étnico-raciais na educação

básica e Currículo. Atualmente mora em Duque de Caxias e trabalha em Macaé/RJ. Militante do MNU, professor regente

(SEEDUC/RJ, desde 2004 e SEMAEB - Macaé, desde 2004). http://lattes.cnpq.br/5123791645640632

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Observando a realidade de nossos(as) alunos(as), vemos que não são contemplados na

forma da lei 10639/2003, mesmo tendo esta completado 15 anos. Neste cenário, propomos uma

reflexão acerca do que se transformou ensinar matemática, se não levarmos em consideração

quem são nossos(as) alunos(as), o que anseiam e o que a escola (e o currículo) desejam para

eles(as). Neste sentido, indica Ubiratan D'Ambrósio (1993, pp 14-5), "Vê-se, em muitos países

e de maneira muito clara, que a matemática tem sido utilizada como selecionador social, como

filtro para seleção de elementos úteis à estrutura de poder”. Faz-se necessário, então, que os(as)

professores(as) de matemática abandonem o raciocínio cartesiano, eurocentrado, colonial, de

dominação e complexo da disciplina em detrimento de formas mais lúdicas, humanas, num

pensamento outro de ensinar a fim de quebrar o paradigma do fracasso escolar.

Embora o COC (caderno de orientações curriculares de Macaé - 2012) utilize-se dos

PCN’s de matemática, do LEM e dos PCN's temas transversais, não contempla a lei 10639/03

ou abre precedentes para a utilização de uma etnomatemática que possibilite aos(as) discentes

o contato com o que determina esta lei.

Propomos aqui a utilização de jogos da família Mancala (ou Mankala), como

possibilidade de aplicação da Lei 10639/03 nas aulas de matemática, a fim de desconstruir o

currículo hegemônico e reduzir o abismo entre a Matemática e a vida cotidiana de nossos(as)

discentes, propondo um pensamento interdisciplinar e intercultural a fim de minimizar as

diferenças preconceituosas em prol de uma educação antirracista.

2. METODOLOGIA

O referencial teórico se fundamenta nas discussões da Etnomatemática, Pedagogia e

Currículo Deocoloniais. A intervenção ocorreu no CAp-Macaé (Colégio de Aplicação de

Macaé-RJ), na Sala da Matemática Interativa, durante a FECIMAC-2018 (Feira das Ciências

de Macaé)– primeira etapa – nos dias 19 e 20 de junho deste ano. Dentre os jogos e atividades

que haviam na sala, a oficina de jogos de Mancala – Kalah e Oware. O tema da Fecimac-2018

foi “Ciência para a redução das desigualdades”.

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Figura 1: Banner exposto sobre a Sala da Matemática Interativa

A sala, formada por um grupo de alunos(as) do segundo ano do ensino médio do CAp-

Macaé orientados(as) pela professora de matemática, foi uma demonstração de como se pode,

simplificar as aulas de matemática com o objetivo de amenizar o medo ou ódio pela

matemática. Este grupo inspirou-se no Laboratório de Ensino de Geometria da Universidade

Federal Fluminense, coordenado pela professora doutora Ana Maria Martensen Roland Kaleff.

Utilizaram-se de Tangram, Dominó Geométrico, Aparelhos Modeladores de Poliedros

Regulares, Poliedros feitos de varetas de bambu, Geoplano, Ciclo Trigonométrico, os Sólidos

Geométricos feitos em acrílico e da oficina de jogos de Mancala – Kalah e Oware.

Figura 2: Alguns do jogos e atividades usados na Sala da

Matemática Interativa

Figura 3: Jogos de Mancala - Oware e Kalah - na Sala

da Matemática Interativa

3. DISCUSSÃO

3.1. O ENSINO DE MATEMÁTICA NA REDE MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE

MACAÉ

3.1.1. O COC-MACAÉ (CADERNO DE ORIENTAÇÕES CURRICULARES)

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Em Macaé, toda a rede municipal de educação, tem o caderno de orientações curriculares

(COC-Macaé, 2012) que, junto a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017), norteia

tanto o conteúdo quanto a forma pela qual devemos pensar matemática em suas competências

e demandas.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto

orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das

etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de

aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação

(PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º

do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996)1, e está orientado

pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma

sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da

Educação Básica (DCN)2. (Base Nacional Comum Curricular, 2017, p.9)

E dentre outras competências mínimas, o COC de matemática aponta: resolver

problemas criando estratégias próprias de resolução; desenvolver a sensibilidade para as

relações da matemática com as atividades estéticas e lúdicas.

3.1.2. O LEM – LABORATÓRIO DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

No ano de 2009, na rede municipal de educação de Macaé, buscando auxiliar a prática

docente na construção dos saberes matemáticos para a leitura de mundo, através da resolução

de problemas matemáticos, foi criado o projeto LEM (Laboratório De Educação Matemática),

a fim de que pela resolução de problemas os alunos pudessem “olhar, falar, tocar e escrever

matemática”, visando a melhor compreensão do mundo que os cerca e ao pensamento com

autonomia. As atividades sugeridas no LEM também oportunizam o trabalho com os temas

transversais, propostos pelos PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais), para serem

abordados nas diversas áreas do conhecimento que, em particular, são contemplados na matriz

filosófica da Proposta Pedagógica da rede municipal de Macaé de Ensino através das

“Dimensões Integradoras do Currículo”. Dessa forma, as interfaces da Matemática com as

outras áreas podem se efetivar através de projetos de abordagem multidisciplinar contemplando

as já referidas dimensões integradoras da matriz filosófica: o desafio ao preconceito; a ética no

cotidiano escolar; a abordagem de cunho tecnológico dos conteúdos; a valorização da pesquisa,

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da diversidade e da sustentabilidade, do patrimônio e da cultura do município e de outros locais.

Neste sentido, nos orienta:

A contribuição da escola se ressalta nesse processo, no sentido de que, em sua função social, vem

oportunizar aos alunos a compreensão das questões sociais, econômicas e culturais vinculadas à sociedade

em geral, como também as possíveis intervenções de cada um nessas questões, através das ações cotidianas

que, na maioria, requerem competências matemáticas. (Caderno de Orientações

Curriculares de Macaé, 2012, p. 83)

3.1.3. OS PCN’S (PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS)

Outro ponto que norteia o COC são os PCN´S, ainda assim, voltados para os conteúdos,

métodos e avaliações mais adequadas à realidade de forma a conduzir a construção das

competências mínimas voltadas para resolução de problemas (procedimento mecânico que visa

às avaliações externas como Prova Brasil, por exemplo). No sentido contrário ao que nos indica

o COC, vemos o que nos vislumbra os PCN´S no que tange a matemática para educação básica:

Os Parâmetros Curriculares Nacionais explicitam o papel da matemática no ensino fundamental pela

proposição de objetivos que evidenciem a importância de o aluno valorizá-la como instrumental para

compreender o mundo à sua volta e de vê-la como área de conhecimento que estimula o interesse, a

curiosidade, o espírito de investigação e o desenvolvimento da capacidade para resolver problemas.

(Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática. 1998. p.15)

No entanto, na realidade, a forma de pensar/ensinar matemática na rede municipal de

educação de Macaé foge a este discurso, pois no próprio COC-Macaé (2012) observamos que

“A contribuição da matemática para as outras áreas se fortalece pelo aprofundamento do

conhecimento sobre tais modelos, tendo como eixo a estratégia da resolução de situações-

problema, dando abordagens significativas aos conteúdos”. Os temas transversais, propostos

pelos PCN´S, que visam à ética, à diversidade e ao combate ao preconceito, segundo as

Dimensões Integradoras da Matriz Filosófica, ainda assim referem-se à resolução de problemas

e os conteúdos. Ou seja, a matemática que nos serve como referencial

pedagógico/metodológico, é uma matemática conteudista de uma educação bancária e

excludente, a qual não dialoga com as identidades plurais que se apresentam em nossas escolas.

Não obstante, Freire (1996) diz que “há uma forma matemática de estar no mundo e há

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necessidade de mostrar a naturalidade do exercício matemático nos movimentos matematizados

do dia-a-dia, despertando o espírito matemático que adormece em cada um”.

3.2. ETNOMATEMÁTICA, UMA PROPOSTA

Hoje se faz necessário pensar matemática de uma forma mais próxima às pessoas,

dialogando com os saberes e necessidades humanas, interagindo com o outro e respeitando seu

tempo e seu espaço. Nesta forma de pensar matemática, devemos buscar a desconstrução do

pensamento eurocentrado e cartesiano que, a escola ainda ensina, buscando reduzir o abismo

de uma matemática estanque e distante da vida cotidiana dos nossos(as) discentes. Devemos

também ter a preocupação de não folclorizar o conhecimento outro. Neste sentido, “o que está

em jogo é evitar o elogio ao exótico, ao diferente de nós, (...) a folclorização dos saberes

subalternos, e também o seu duplo, a "gueto-ização” (Knijnik, 2010).

Propomos uma etnomatemática, não no sentido de uma matemática de diversas etnias, mas

que centralize a África como berço da humanidade, assim nos fala Diop ( apub, Munanga,

2015), “É incômodo o fato de que quase a totalidade dos estudiosos contemporâneos parecer se

recusar a relacionar a Cultura africana com alguma origem antiga, com alguma civilização

antiga que fosse”. Ao mesmo tempo em que Munanga (2015) nos diz que " reconhecer que a

África é o ponto de partida para discutir a diáspora negra que na historiografia dos países

beneficiados pelo tráfico negreiro também foi ora negada, ora distorcida, ora falsificada."

Assim, buscamos uma etnomatemática que nos permita resgatar o legado de nossos(as)

ancestrais, enquanto povo descobridor/inventor da matemática, uma matemática que nos

conduza a formas de relações que propicie um espaço e uma educação matemática visando

preservar o pensamento outro, não eurocentrado e eliminar a desigualdade discriminatória,

dando origem a uma nova organização de sociedade plural, não divisora, excludente, que não

perpetue o status quo de uns, em detrimento do outro. Neste mesmo sentido, corrobora

Halmenschlager (2000), “um processo pedagógico que estabelece vínculo entre educação

matemática e a discussão de processos de exclusão e desprivilegiamento de grupos humanos

em função de raça ou etnia e a interseção dessas com a dinâmica de classe social” a fim de

erradicarmos as diferenças preconceituosas para uma educação antirracista.

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3.3. JOGOS DE MANCALA NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

Em relação à inserção de jogos no ensino da Matemática, Os Parâmetros Curriculares

Nacionais de Matemática pontuam que estes:

[...] constituem uma forma interessante de propor problemas, pois permitem que estes

sejam apresentados de modo atrativo e favorecem a criatividade na elaboração de

estratégias de resolução de problema e busca de soluções. Propiciam a simulação de

situações-problema que exigem soluções vivas e imediatas, o que estimula o

planejamento das ações. (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998, p. 46)

Mancala (ou Mankala) é uma família de jogos que, nas suas variadas e numerosas

formas (aproximadamente 200 tipos diferentes), ficou conhecida como “o jogo nacional da

África”. Em cada região o jogo tem seu próprio nome e seu próprio conjunto de regras, como

por exemplo: Oware, em Gana; Walu, Adji ou Adi e Ti, no Brasil; em Portugal, Ouri; no leste

e sul da África, Bao (que significa tabuleiro); nos Estados Unidos da América e Daomé, Adi;

na Costa do Marfim, Awalé ou Awélé; no Congo Kinshasa, N’Golo; na Nigéria, Ayo; na Argélia,

Kalah; em Cabo Verde, Uril, Ori, Oro, Ouri, Urim ou Oril (cada denominação coincide com

uma especificidade de cada ilha). A palavra Mancala origina-se do árabe naqaala, que significa

“mover” ou “transferir” e com o tempo, passou a ser usada pelos/as antropólogos/as para

designar uma série de jogos disputados num tabuleiro com várias concavidades e com o mesmo

princípio geral na distribuição das peças. A forma pela qual se realiza a distribuição está

intimamente associada à semeadura. O movimento das peças (em sentido anti-horário) também

revela sua origem muito antiga. Em várias regiões está associado ao movimento celeste das

estrelas e, em certas mitologias tribais, o tabuleiro simboliza o Arco Sagrado. Existem

estudiosos/as que supõem que os Mancala possuem cerca de sete mil anos, com origem mais

provável no Egito, o que levaria a acreditar serem estes os jogos mais antigos do mundo. Os

tabuleiros destes jogos podem ser feitos de diferentes materiais: madeira esculpida; sulcos

cavados solo, como em algumas regiões da África; confeccionados em papel; ou através do

reaproveitamento de embalagens de ovos (de uma dúzia). Os tabuleiros são encontrados com

duas, três ou quatro fileiras, porém as mais conhecidas têm duas fileiras paralelas de seis casas

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e dois depósitos, e são atribuídas, a cada casa, quatro peças ou quatro sementes para o

funcionamento do jogo.

Figura 4: Tabuleiro de Mancala esculpido em madeira e sementes usadas como peças

Este jogo alia raciocínio, estratégia e reflexão, com desafio e competição de

uma forma lúdica. A sua prática contribui para o desenvolvimento da capacidade de

formalização de estratégias, memorização e para o desenvolvimento pessoal e

social. Um aspecto importante serão o tratamento e a exploração dos temas

“Números e Cálculo”, “Probabilidade e Estatística” e “Álgebra e Funções”

subjacentes ao jogo. Ao introduzir o jogo na escola pretende-se que os(as) alunos(as)

adquiram e desenvolvam em ambiente lúdico e interativo, e em diferentes contextos

– sala de aula, recreio, biblioteca, família – um conjunto de competências

consideradas relevantes para o desenvolvimento do pensamento matemático:

A destreza manual, a lateralidade, as noções de quantidade e de seqüência, as operações

básicas mentais, adequando a aplicação das regras em cada jogo, por exemplo, o sentido

convencional do jogo — sentido anti-horário;

O uso de processos organizados de contagem na abordagem de problemas

combinatórios simples, por exemplo, os conceitos de chance, de eventos aleatórios, de

eventos equiprováveis e não-equiprováveis;

A procura de padrões e regularidades e a formulação de generalizações;

No contexto numérico, durante o desenvolvimento de cada jogo de forma a encontrar

estratégias ganhadoras.

3.4. A INTERVENÇÃO DOS JOGOS DE MANCALA NO CAP-MACAÉ

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A intervenção ocorreu durante os dois dias de Feira das Ciências do CAp-Macaé, na

Sala da Matemática Interativa, por onde passaram cerca de 150 visitantes – alunos(as) e

professores(as) da rede municipal de educação de Macaé. A cada visita, com cerca de 10

pessoas por vez, o grupo de alunos(as), responsáveis pela sala, explanava a respeito da

Matemática Interativa; nós atuamos falando brevemente sobre os jogos de Mancala e, cada

um(a) dos(as) visitantes escolhia a atividade ou jogo de sua preferência. Recebemos alunos(as)

do 3º ao 9º ano do ensino fundamental da rede.

Figura 5: Grupo do Cap-Macaé explanando sobre a Matemática Interativa

Figura 6: Visitantes na Sala da Matemática Interativa durante a explanação

Figura 7: Alunos(as) da rede municipal de educação de Macaé durante a visitação na Sala da Matemática

Interativa

Figura 8: Alunos(as) da rede municipal de educação de Macaé durante a visitação na Sala da Matemática

Interativa

Os jogos de Mancala utilizados na Sala da Matemática Interativa foram o Kalah e o

Oware:

3.4.1. REGRAS DO JOGO KALAH, DA ARGÉLIA

I. distribuem-se 3 ou 4 sementes em cada uma das 12 cavidades (exceto nos

oásis, as cavidades que ficam nas duas extremidades);

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II. o território de cada jogador é formado pelas 6 casas da fileira à sua frente,

acrescido do oásis à direita (somente utilizado pelo proprietário);

III. o jogador pega todas as sementes de uma de suas casas e distribui uma a uma

nas casas subseqüentes, em sentido anti-horário;

IV. o jogador deverá colocar uma semente em seu oásis toda vez que passar por

ele e continuar a distribuição, sem colocar, no entanto, nenhuma semente no

oásis adversário;

V. todas as vezes que a última semente "parar" numa casa vazia pertencente ao

jogador, ele pode "comer" todas as sementes que estiverem na casa

adversária em frente, colocando-as todas (a sua mais as semesntes da casa

do adversário) em seu oásis;

VI. ao terminar a distribuição das sementes ("semeadura"), o jogador passa a vez,

exceto quando a última semente distribuída for colocada no seu próprio

oásis. Nesse caso, ele deve jogar de novo, escolhendo uma nova casa (do seu

próprio campo) para esvaziar;

VII. o jogo termina quando todas as casas de um dos lados estiverem vazias e o

jogador da vez não tiver mais nenhuma casa com um número suficiente para

alcançar o outro lado;

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VIII. Vence quem tiver maior número de sementes em seu oásis (as sementes

restantes no tabuleiro poderão ou não entrar na contagem).

Figura 9: Professor Júlio Lourenço ministrando oficina do jogo Kalah para uma aluna visitante

3.4.2. REGRAS DO JOGO

OWARE, DE GANA

I. Para iniciar o jogo,

distribuem-se quatro peças

em cada espaço. Os seis

espaços, chamados

“buracos”, em cada lado do

tabuleiro, pertencem ao

jogador mais próximo;

II. Os/as dois/uas

jogadores/as sentam-se

frente a frente, um/a de

cada lado do tabuleiro;

III. Para movimentar as peças,

os/as jogadores/as

revezam-se, pegando todas

as peças em qualquer um

de seus buracos e

lançando-as, uma em cada

buraco, indo para a direita

(sentido anti-horário). É o

que se chama “semear os

grãos”. Algumas peças

podem cair nos buracos

que ficam do lado do/a

adversário/a. Se os/as

jogadores/as retirarem

peças de um buraco que

contém doze ou mais

peças, deverão saltá-lo e

deixa-lo vazio enquanto

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semeiam ao redor do

tabuleiro;

IV. Para capturar: Se a última

peça lançada em um

buraco no lado do/a

adversário/a formar um

grupo de dois ou três, essas

peças podem ser

capturadas de buracos que

se encontram lado a lado

na parte mais distante do

tabuleiro;

V. Para terminar: Se todos os

buracos do/a adversário/a

estiverem vazios, um/a

jogador/a deve lançar

peças para dentro deles

quando chegar a sua vez.

Se isso não puder ser feito,

o jogo acaba. O/A

jogador/a junta as peças do

seu lado às do depósito.

Peças que dão voltas e

voltas sem capturas podem

ser divididas igualmente

entre os/as jogadores/as.

Aquele/a que tiver o maior

número de peças em seu

depósito é o/a vencedor/a.

Figura 10: Professora Gabriela Laurindo ministrando oficina do jogo Oware para um aluno do CAp-Macaé

Percebe-se o quanto os jogos de Mancala

agem para além dos benefícios no processo

de ensino-aprendizagem. Os(As) alunos(as)

negros(as) tem sua história e cultura

representada e os(as) não-negros(as) passa a

reconhecer elementos da cultura formadora

da ancestralidade humana.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A rede municipal de educação de macaé

não explicita o combate ao racismo em seu

caderno de orientações currculares, mesmo

tendo o amparo da lei 10639/2003, dos

PCN's, das Diretrizes Curriculares

Nacionais da Educação Básica. É

necessário, porém, que a existência do

racismo seja reconhecida e deliberar o

combate. Esconder as diferenças que forjam

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nossas identidades não é sinônimo de busca

pela igualdade. Quando se age de forma

indiferente, ignorando tais diferenças,

brancos(as) perpetuam seu status quo e os

não brancos(as), sua subalternidade. Na

Educação funciona da mesma forma: Como

educar o diferente, se o vemos como igual?

Como ensinar o outro, se ele é invisível, sua

Cultura, valores, história? Um currículo e

uma matemática que não vê o outro e não é

assimilada pelo não comum não conseguem

se unir à luta antirracista.

5. REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro

de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da

educação nacional.

BRASIL.Lei nº 10639, de 9 de janeiro de

2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de

dezembro de 1996, que estabelece as

diretrizes e bases da educação nacional,

para incluir no currículo oficial da Rede de

Ensino a obrigatoriedade da temática

"História e Cultura Afro-Brasileira", e dá

outras providências.

COSTA, Ricardo Cesar Rocha da.

Exclusão Social e Desenvolvimento

Humano: uma mapeamento das

desigualdades e do desenvolvimento sócio-

econômico do município de Macaé. Análise

sociológica da pesquisa domiciliar do

programa Macaé Cidadão, 2001-2003.

Macaé: Prefeitura Municipal de Macaé /

Programa Macaé Cidadão, 2007.

HALMENSCHLAGER, Vera Lucia da

Silva. Etnomatemática: uma experiência

educacional.São Paulo: Summus, 2010.

KNIJNIK, Gelsa; WANDERER, Fernanda;

OLIVEIRA, Cláudio José de (Orgs.).

Etnomatemática, Currículo e Formação

de Professores. Santa Cruz do Sul:

EDUNIDC, 2010.

LAURINDO, Gabriela Franklin.

Africanidade Na Educação Matemática

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